Continente #168 - Humor na web

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# 168

#168 ano XIV • dez/14 • R$ 11,00

CONTINENTE

E MAIS DAVID HARVEY LINA BO BARDI TOM JOBIM ISAAC ASIMOV BRUNO VILELA

HUMOR NA WEB A CONTROVERSA COMICIDADE PRODUZIDA NAS REDES SOCIAIS

DEZ 14

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ENTRADA FRANCA INFORMAÇões 81 - 3363 0138 www.virtuosi.com.br

Rafael Garcia diretor artístico Homenagem aos 150 anos de nascimento de Richard Strauss Arthur Moreira Lima Benjamin Schmid Catalin Rotaru Christian Christian Lindberg DJ Dolores & Naná Vasconcelos Arthur Moreira Lima Benjamin Schmid Catalin Rotaru Lindberg DJ Dolores & Naná Vasconcelos Leonardo Altino Roby Lakatos Ensemble Orquestra Virtuosi sob a regência do Maestro Rafael Garcia Leonardo Altino Roby Lakatos Ensemble Orquestra Virtuosi sob a regência do Maestro Rafael Garcia PATROCINIO:

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REPRODUÇÃO

DEZEMBRO 2014

aos leitores “Foi uma das primeiras vezes em que vi isso: a chamada Geração da Zoeira envergando um luto respeitoso — e por um humorista!”. A observação, feita pelo quadrinista Arnaldo Branco, em artigo publicado n’O Globo, no começo de agosto, referia-se à repercussão, nas redes sociais, da morte de Fausto Fanti, comediante e roteirista, mais conhecido como o Renato do programa televisivo Hermes & Renato. A frase de Branco parece comprovar uma análise de Henri Bergson: a de que, para haver humor, é necessário um distanciamento emocional, mesmo que temporário, do objeto do riso. “O cômico exige algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito”, sentenciara o filósofo francês, em O riso - ensaio sobre a significação do cômico (1899). A surpresa com relação ao “luto respeitoso” se deveu ao fato de que vivemos numa época em que nada escapa ao humor, seja para o bem ou para o mal. Se, por um lado, as inovações tecnológicas vêm permitindo que amadores produzam e reproduzam conteúdo humorístico, tirando o cômico da redoma à qual, até então, estava confinado, por outro, há uma ausência de parâmetros por parte desses novos humoristas pós-internet.

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Nada nem ninguém mais passa incólume à comicidade. Nem as crianças. Muitas têm seus rostos estampados em memes que são multiplicados à exaustão em posts nas redes sociais. Portanto, deve haver mesmo uma “anestesia do coração” generalizada e generalizante que faz esquecer até que são menores de idade. Essa explosão humorística na web, tão marcante nestes tempos em que estamos atados a computadores e smartphones, tornou-se tema da nossa matéria de capa. Fomos em busca da opinião de profissionais da área e de especialistas no assunto para discutir os desdobramentos e consequências do humor na era da internet, principalmente aquele que é produzido de forma anônima e que pode deixar vítimas pelo meio do caminho, sejam celebridades ou pessoas comuns, como o garoto judeu cujo vídeo caseiro se tornou um dos maiores virais da rede. Na sua mais famosa máxima, Andy Warhol previu que, no futuro, todos teriam seus 15 minutos de fama. Só não supôs que essa projeção em massa da imagem poderia se dar através de um elemento chamado meme e que ser famoso pode não ser algo tão excitante como ele considerava.

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sumário Portfólio

Carlo Giovani 4

Cartas

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Expediente + colaboradores

6

12

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70

Entremez

72

Visuais

76

Matéria Corrida

78

Sonoras

84

Palco

88

Criaturas

Entrevista

David Harvey Geógrafo e urbanista britânico discute como o capitalismo está tão impregnado na nossa vida, que nem aventamos a possibilidade do seu fim

Conexão

Vacatussa Revista literária chega aos 10 anos apostando na divulgação de autores pernambucanos e no comentário literário

Balaio

Musa de Gabo Por conta de uma conversa fortuita em aeroporto parisiense, modelo acriana tornou-se personagem do autor de 100 anos de solidão

História

Santiago Norte-americana reúne textos e compilações deixados pelo mordomo dos Moreira Salles

Ronaldo Correia de Brito Os trabalhos e as horas

Bruno Vilela Artista volta de residência em Portugal e prepara material para exposição, mantendo temática mitológica e tons sombrios

Ilustrador gaúcho realiza trabalho com recorte de papéis e montagem de cenários, que são fotografados e vertidos em livros infantis e peças publicitárias

12

José Cláudio Jururu

Tom Jobim e Astor Piazzolla O encontro entre o brasileiro e o argentino aconteceu uma vez, nos anos 1980. Mas eram muitas as afinidades criativas entre eles

Sobre o luto Moçambicano Manuel Castomo dança para superar a dor da morte, no espetáculo Entre matéria e memória

Renato Aragão Por Rafael Silva

Tradição

Superstição Embora rechaçada pela ciência, a prática perpetua-se entre as culturas, sobretudo por causa do medo do desconhecido

Cardápio

Espumantes Vinhos que se diferenciam pelas borbulhas, eles têm nomes diferentes na Europa, sendo famoso o champagne. Produção brasileira tem sido elogiada

54 CAPA ILUSTRAÇÃO Cau Gomez

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Capa

Especial

Piadas, memes, animações, charges, textos. São variadas as formas do humor na internet, assim como o seu teor, que pode ir do genial ao completo mau gosto

No centenário de nascimento da arquiteta italiana, um olhar sobre suas obras aponta para sua preocupação em criar espaços para usufruto do público

Claquete

Leitura

Completa 30 anos o estúdio criado por Hayao Miyazaki e Isao Takahata para produzir animes de alta qualidade, como a obra genial Nausicaä do Vale do Vento

Antes leitura de “gueto”, a ficção científica atrai leitores, talvez pela imersão tecnológica atual. Mestre no gênero, Asimov tem obras reeditadas

Humor na web

20

Studio Ghibli

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Lina Bo Bardi

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Dez’ 14

Sci-fi

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cartas ÍNDIO SAN

a construção da identidade e do desenho urbanos. CARLOS FERNANDO ECKHARDT RECIFE–PE

Murakami Gostei bastante da reportagem sobre o escritor Haruki Murakami, publicada na Continente de novembro. Eu ainda não tinha sido convencida pelo burburinho em torno dele, mas a matéria me conquistou. Vou começar a ler a trilogia 1Q84.

Design & cidade Adorei participar da matéria de capa da Continente de novembro. Foi muito instrutiva sobre o tema e extremamente adequada para o momento de discussão sobre a cidade e seus atores. RENATA GAMELO RECIFE–PE

Design & cidade 2 Li a reportagem sobre o design e a cidade e gostei muito do modo como o tema foi explorado pela revista, que sempre traz discussões bastante relevantes, não somente

para a cultura, mas para a vida urbana atual. Gostaria também de parabenizar o consultor Carlos Fernando Eckhardt pelo artigo. SANDRA SOUTO MAIOR RECIFE–PE

Design & cidade 3 Muito feliz por ter participado da matéria de Luciana Veras sobre Design+cidade na Continente #167 com um artigo sobre marcas de gestão. Falas inspiradoras de Gentil Porto Filho, Luciana Calheiros e Renata Gamelo e um debate necessário sobre

BIANCA DIAS RECIFE–PE

Autoral Jamais encaminhei qualquer missiva para seções como esta. Mas penso que novidades costumam nos mover e a Continente, de certa forma, mexeu comigo. Nasceu a vontade… Bem, para uma revista tão autoral, bonita e repleta de cultura, prefiro apostar num elogio curto e prosaico: meus parabéns, continuem assim! BRUNO GARRET

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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RECIFE–PE

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colaboradores

Antonio Clériston de Andrade Professor universitário, músico e cartunista, autor do Projeto HQ/ CD – e o som virou quadrinhos

Cau Gomez

Lucas Colombo

Mariana Lacerda

Cartunista, chargista, ilustrador, artista gráfico, design gráfico e artista visual

Jornalista, professor de Jornalismo Cultural, editor e colunista do site Mínimo Múltiplo

Jornalista e cineasta, autora dos curtas Menina Aranha e Pausas silenciosas

E MAIS Carlos Eduardo Amaral, jornalista e mestre em Comunicação. Eduardo Sena, jornalista. Gilson Oliveira, jornalista. Guilherme Novelli, jornalista, assessor de comunicação do Coletivo Cartográfico. Jarbas Domingos, ilustrador, chargista e quadrinista, trabalha no Diario de Pernambuco. Olívia Mindêlo, jornalista e mestre em Sociologia. Pio Figueiroa, fotógrafo. Rafael Silva, ilustrador e caricaturista. Renato Contente, jornalista.

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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO

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DAVID HARVEY

“Vivemos sob a dominação do modo liberal de pensar” Geógrafo e urbanista britânico, que lança agora dois volumes de Para entender O Capital, aponta que o capitalismo está tão imbricado no cotidiano, que nem imaginamos sua falibilidade ou seu desaparecimento TEXTO Luciana Veras

CON TI NEN TE

Entrevista

“Não me considero nos termos de

otimismo ou pessimismo. Penso que é importante estar engajado e ativo e sempre tentando fazer as coisas acontecerem”, disse à Continente, numa recente manhã de domingo, o geógrafo britânico David Harvey, um dos mais argutos observadores da realidade urbana e autor de livros essenciais para se refletir sobre o contemporâneo, a exemplo de Condição pós-moderna, Cidades rebeldes e O enigma do capital. “Temos que sempre pensar no que e em como podemos fazer algo”, complementa o professor de pós-graduação da City University de Nova York, um cortês senhor de 79 anos, que veio ao Brasil em novembro para lançar Para entender O Capital – Livros II e III, sua nova incursão pelo universo de Karl Marx (1818-1893), já nas livrarias pela editora Boitempo. Harvey, fala pausada, olhar atento e argumentação incisiva, passou pelo país como um pop star: cerca de 9 mil pessoas foram às suas palestras em Brasília, Curitiba, Fortaleza, São Paulo e no Recife – onde participou do Ocupe Estelita. “O bom de ser geógrafo é que, aonde vou, outros geógrafos se apercebem de mim.

E já que conhecem minhas simpatias políticas, não me levam a encontros da Teologia da Libertação ou a alguma vizinhança endinheirada. Já havia ouvido falar da resistência do Ocupe Estelita e percebo uma consistência nessa organização”, comentou o pensador das interações nocivas entre capitalismo e a vida urbana atual. CONTINENTE Por que ler e traduzir Karl Marx? DAVID HARVEY Acadêmicos devem lê-lo, obviamente, porque ler textos difíceis e tentar entendê-los é parte da nossa vocação. Mas é claro que Marx é um comentarista muito perspicaz sobre como o capitalismo opera. E, se, por um lado, o capitalismo que ele observou é um pouco diferente daquele que vemos hoje, há muito que se lê em O capital que faz sentido à luz de hoje. Além disso, eu acredito que ele tem um modo crítico de pensar que nos encoraja a não ter absoluta fé, por exemplo, no que a mídia ou mesmo os acadêmicos nos dizem; que nos leva à atividade crítica e a tentar pensar por nós mesmos. Quando surge algum tipo de problema, perguntamos: de onde vem? É minha culpa ou a culpa

do sistema? Vivemos sob uma espécie de dominação dos modos liberais de pensar em que tudo é culpa nossa, o sistema é perfeito, então, se há algo errado, é uma culpa individual. Acho isso completamente inverídico. Marx, por sua vez, é muito bom em revelar as razões pelas quais nós convivemos com a pobreza ou com a degradação ambiental ou, ainda, por que a desigualdade social está crescendo tão dramaticamente em diversas partes do mundo. Ao mesmo tempo, ele aprecia alguns dos bons frutos que o capitalismo nos deu, como as inovações tecnológicas. Existe alguém que prefere viver sem eletricidade ou telefones celulares? Nesse contexto, também creio que Marx é uma leitura bastante útil. Não se trata, porém, de uma bíblia em que você lê determinadas verdades, e, sim, de um modo de pensar que nos ensina a perceber o que acontece ao nosso redor com um espírito crítico, ao mesmo tempo em que nos leva a pensar em maneiras possíveis de mudar o mundo e em ser pessoas melhores. CONTINENTE Como voltou a O capital? DAVID HARVEY Nunca havia lido Karl

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situações em que usava os conceitos de Marx diante de pessoas que não sabiam de onde aquilo vinha. E elas diziam: “Ah, isso é muito bom, uma ótima perspectiva”. E não tinham ideia de onde eu havia tirado aquilo. CONTINENTE O senhor acredita que Marx tem o peso da pecha de “comunista”? Pelo menos no Brasil, ainda se fala em “medo do comunismo”. DAVID HARVEY Bem, há dois aspectos com relação a isso. O primeiro: as pessoas provavelmente não diriam que não leriam O capital por Karl Marx ser comunista, mas porque não é, de verdade, um livro muito fácil. Não é fácil de compreender numa primeira leitura. Uma das coisas que tenho tentado fazer para torná-lo mais acessível a todo

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Marx até os 35 anos de idade, então posso dizer que comecei relativamente tarde. E a razão para ler foi por estar profundamente insatisfeito com a literatura das ciências sociais da época. Cheguei aos Estados Unidos no meio das rebeliões urbanas, após o assassinato de Martin Luther King. Era como se fosse uma grande explosão; a julgar pelos textos convencionais que eu estava lendo, aquele tipo de coisa não estava prevista. Porque o mercado estaria bem, e assim produziria os resultados necessários para todos. Mas estava claro, na cidade em que eu me encontrava, que o mercado falhava miseravelmente. Quem é que escreve sobre esses assuntos e diz que os mercados, na verdade, não são tão legais? Marx não é o único,

CON TI NEN TE

CONTINENTE Não? Por quê? DAVID HARVEY Para falar a verdade, não. Mas isso mudou, quanto mais eu fui conhecendo sua obra. Ele possui conceitos muito simples e comecei a usar esses mesmos conceitos para explicar a natureza do problema a mim mesmo e a outras pessoas. São conceitos robustos e úteis. Frequentemente, eu me pegava em

CONTINENTE Era tudo teoria? DAVID HARVEY Não, mas você consegue imaginar um monge medieval sendo requisitado para falar do capitalismo? Ele não saberia o que dizer. Estamos tão imbricados no capitalismo, que é muito difícil imaginar como seria qualquer alternativa. Nossa vida inteira é

“Agora, tudo foi empurrado até desaparecer e o que existem são edifícios altos que não servem nem para a classe média, mas, sim, para uma classe alta”

Entrevista mas é um dos que compõem esse time. Então comecei a ler sobre o que havia de errado com esse capitalismo do livre mercado e sobre como o mais rico país do mundo tinha uma pobreza incrível e uma gigantesca população marginalizada, na maioria afroamericanos. Conheci as ideias de Marx e, a princípio, não fiquei muito convencido.

muito bom em criticar o capitalismo, então, eu o utilizo para criticar a sociedade capitalista, mas não para que me diga que tipo de sociedade eu deveria construir ao longo do caminho. Quanto a essa noção recorrente do medo do comunismo, acho que há um mito de que ele tinha clareza do que o socialismo ou o comunismo seria. Ele não tinha.

mundo é disponibilizar em transmissões na internet as minhas palestras sobre o livro, de modo que seja possível seguir o texto e minhas palestras. Há também as versões impressas delas, que, no Brasil, saíram agora pela Boitempo, nas quais tento ajudar os leitores a percorrer o texto e ter uma melhor compreensão. Porque acho que isso é extremamente importante. Costumo reclamar de alguns dos meus colegas acadêmicos por acreditar que eles passam muito tempo fazendo Marx mais complicado do que ele de fato é. Todos nós conhecemos sua filosofia, mas o que me interessa mais é a vida cotidiana na cidade. Há vários conceitos em Marx que nos ajudam a entender a vida urbana do jeito que é hoje. E há o segundo aspecto: Marx era

construída ao redor dele. Mas Marx tem um truque interessante. Ele nos ensina que, se houver uma sociedade diferente da atual, então os elementos já devem estar ao nosso redor. Em outras palavras, vamos olhar em nossa volta e constatar o que difere do mercado. Por exemplo, existe trabalho que fazemos para outras pessoas que não é através do mercado. Há voluntariado. Sobre isso, acredito que Marx diria se tratar de uma resposta a uma diferente noção de valor. Em tempos de crise, como tsunamis, sempre se vê ajuda e voluntariado. Quando houve o furacão em Nova York, muita gente se ofereceu de imediato para auxiliar de qualquer maneira. Então, é como se estivéssemos dizendo que a

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sociedade não se mexe apenas à base do mercado, e que existem áreas que não se alicerçam de forma alguma no mercado ou na troca de dinheiro. CONTINENTE A história nos ensina a olhar o passado para vislumbrar o futuro. Nesse sentido, Marx e seu O capital seriam ferramentas essenciais para se entender o que acontece em um mundo globalizado e de cidades inchadas? DAVID HARVEY E também para explicar por que as mudanças ocorreram como ocorreram. A última vez em que estive no Recife foi em 1973. É claro que essa é uma cidade completamente diferente. O capital chegou e ergueu uma cidade. Mas que tipo de cidade foi erguida? É uma cidade perfeita? Claramente, é muito boa para alguns, já para outros é péssima.

pessoas, em várias grandes cidades do mundo, sendo deixadas para trás. CONTINENTE Quatro décadas depois, quais as suas outras impressões do Recife? DAVID HARVEY Em primeiro lugar, é uma cidade maior. Em segundo, é nítida a infusão de investimento financeiro, do jeito típico e clássico do capitalismo. E isso é uma tragédia. Porque, de várias maneiras, a cidade se parece com quase todas as outras grandes cidades que conheço. Parece com Miami Beach, por exemplo. É possível dizer que o capital está destruindo a diversidade social e cultural local. Sim, ainda existe uma culinária regional deliciosa, mas em comparação ao que era… É uma pena, em todos os sentidos. E a desigualdade

“Tem que haver um movimento para reverter a militarização da vida urbana. E como há muita militarização secreta ocorrendo, é preciso que essa reversão se dê no âmbito da política” CONTINENTE Mas existe uma cidade perfeita? DAVID HARVEY Não, mas há cidades melhores. E o Recife é uma cidade que o capital construiu. Acho bom que haja piscinas para quem puder pagar por elas. Mas em lugares como Brasília Teimosa e o Coque, que visitei rapidamente, percebi que a vida é bem diferente. Aí você indaga: quem não quer uma cidade onde todos possam ter boas oportunidades e chance de viver em casa e ambiente decentes? Mas ninguém vai ver o capital produzindo isso. Porque o capital se especializa em produzir esse tipo de arranha-céu para as pessoas que podem pagar. E o que acontece com aquelas pessoas que não possuem o dinheiro? São deixadas para trás. E o que se vê é cada vez mais

social é ainda tão grande como antes. Me lembro de andar um pouco pela orla e de observar as casas existentes à beira-mar. Agora, tudo foi empurrado até desaparecer e o que existem são edifícios altos que não servem nem para a classe média, mas, sim, para uma classe alta. Entretanto, há resistências, a exemplo do Ocupe Estelita. E onde existe a resistência, eu estou. CONTINENTE O capitalismo tem um modo único de produzir e manter desigualdades sociais. Encontrar o equilíbrio é nosso maior desafio? DAVID HARVEY Sim, esse é um dos nossos maiores desafios, ladeado pelo desafio da degradação ambiental, incluindo aí as alterações climáticas, a perda da biodiversidade e os problemas

da poluição. E não se pode solucionar qualquer um desses problemas, se é que isso será algum dia possível, sem grandes intervenções na vida urbana. Essa é uma das razões pelas quais, como urbanista, insisto em que devemos prestar atenção ao modo como construímos nossas cidades. Em como perpetuamos a desigualdade e aprofundamos a degradação, ao insistir em transporte privado e na construção de estradas e shopping centers. Há um imenso trabalho a fazer para modificar a natureza do processo urbano e para mudar nossas cidades. E, após esses anos, minha conclusão é de que o capital não pode resolver esses problemas. CONTINENTE Se o capital não resolve, e o capital governa o mundo, estamos condenados? DAVID HARVEY Bem, milhões de pessoas serão afetadas, se não lidarmos com essas questões. O capital pode sobreviver até bem, mas, para isso, vai capturar o estado e os instrumentos de repressão estatal e assim reprimir todas as formas de divergência. Você pode até achar isso um conto distópico, mas me baseio nas respostas que a polícia tem dado, inclusive no Brasil, em 2013, e percebo uma indicação de como será o futuro. Basta olhar o que aconteceu na Turquia e na cidade norte-americana de Ferguson, onde um jovem negro foi executado a tiros e a polícia alegou legítima defesa. Uma coisa é a polícia dizer isso, a outra é que houve protestos na rua e os policiais agiram como se estivessem na guerra contra o Iraque, quando na verdade marchavam contra cidadãos nas ruas de um subúrbio americano. Isso é absurdo. Se esse é o mundo para onde vamos, não é o mundo onde quero viver. CONTINENTE O que fazer para mudar isso? DAVID HARVEY Tem que haver um movimento que reverta a militarização da vida urbana. E como há muita militarização secreta ocorrendo no cotidiano urbano, é preciso que essa reversão se dê no âmbito da política. Mas aí de novo temos a questão de quem controla o poder político, de quem licencia o equipamento militar para a polícia de Ferguson. Quem fez isso? Só porque há armamento militar sobrando da guerra do Iraque não significa que deva ser dado à polícia de Ferguson, uma tropa local, é bom lembrar.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

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HUMOR

ISAAC ASIMOV

Como complemento à matéria de capa deste mês, que aborda a explosão cômica na era da internet, o site da Continente disponibiliza o documentário O riso dos outros, que traz a controvérsia em torno do humor que utiliza estereótipos e preconceitos. O vídeo alterna trechos de performances infelizes de comediantes de stand-up comedy, com suas piadas de mau gosto, e críticas a esse tipo de humorismo. Veja também o documentário Nos bastidores da comédia, de Jerry Seinfeld. O comediante discute com humoristas americanos os percalços que enfrentam para fazer rir.

Confira entrevista do escritor de ficção científica e bioquímico. Além da conversa, o programa traz um vídeo baseado no livro Viagem fantástica.

Conexão

MÚSICA Assista à memorável participação de Astor Piazolla no Chico & Caetano. O encontro do argentino com Tom Jobim, no programa de TV, em 1986, é tema da seção Sonoras.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

BODY ART

FESTIVAL

PESQUISA

ENCONTRO

Site oferece serviço através do qual é possível escolher modelos de tatuagens

Boi da Macuca reúne, quatro vezes por ano, música e cultura popular

Capes disponibiliza acervo digital de periódicos, livros e demais obras de referência

Acampamento para meninas tem como leitmotiv música e autoestima e tenta 3ª edição

www.tattoodo.com

www.boidamacuca.com.br

www.periodicos.capes.gov.br

www.girlsrockcampbrasil.org

Tattoodo é uma ferramenta feita para ajudar quem quer uma tatuagem, mas fica inseguro quanto ao desenho. O procedimento é simples: você descreve a sua ideia, paga a taxa cobrada pelo site e inicia um concurso entre os artistas inscritos na plataforma. No final, ou você escolhe entre as tatuagens customizadas ou o seu dinheiro é devolvido. O site disponibiliza os portfólios dos artistas, com milhares de fotos que podem servir de inspiração, gratuitamente.

O festival Boi da Macuca acontece há 25 anos, sempre na mesma fazenda, no município de Correntes, interior de Pernambuco. Com quatro edições por ano, sempre regidas pela lua cheia, a fazenda abre as portas com programações específicas para apresentações de jazz, rock e cultura popular. Em sua última edição, em novembro deste ano, recebeu shows de bandas como Ave Sangria e Duofel. A próxima acontece em fevereiro, no período do Carnaval.

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação (MEC), fez um aplicativo para disponibilizar o conteúdo do seu Portal de Periódicos a 424 instituições de ensino cadastradas na biblioteca virtual. O acervo conta com cerca de 36 mil periódicos e 250 mil livros eletrônicos, além de oferecer conteúdo audiovisual, enciclopédias e obras de referência. O aplicativo está disponível para IOS, Android e outros sistemas operacionais.

O Girls Rock Camp Brasil é um daqueles acampamentos a que as crianças vão durante as férias. A diferença é que este é exclusivo para meninas e, mais especificamente, para as que têm interesse por música. O evento, que dura uma semana, teve duas edições e lançou crowdfunding para realizar a terceira em 2015. As realizadoras têm como missão estimular a autoestima das frequentadoras através da música e de atividades que promovam o empoderamento. Lá, elas aprendem a tocar algum instrumento, formam uma banda e terminam o acampamento com uma apresentação aberta a mães, pais e amigos.

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blogs ESCOLA ENGENHO http://www.escolaengenho.com

O projeto Escola Engenho nasce da percepção de contradições existentes nas relações das crianças com o audiovisual: se elas são consideradas imaturas para produzir imagens, por que não o são para consumi-las? O projeto tem capacitado, de 2010 para cá, crianças de até 13 anos a produzirem conteúdo audiovisual, além de promover atividades cineclubistas para elas.

LITERATURA INDEPENDENTE

SÉTIMA ARTE

A revista Vacatussa comemora 10 anos, reunindo críticas literárias e oferecendo espaço de publicação e circulação para autores

Felipe André Silva é estudante de cinema e escreve críticas para o blog Pipocracia. Além de criticar os filmes em cartaz ou exibidos em festivais, o autor divulga notícias relacionadas a lançamentos e profissionais do campo. As informações são complementadas com listas como 10 clipes por cineastas famosos.

http://www.vacatussa.com/

A Vacatussa foi criada em maio de 2004 por, então, alunos da Oficina de Literatura Raimundo Carrero. O grupo passou a fazer reuniões semanais no intuito de produzir e debater literatura. Mais tarde, os integrantes sentiram necessidade de escoar suas narrativas e resolveram criar a própria publicação. A revista se propôs, então, a divulgar a produção literária do grupo e, mais do que isso, abrir espaço para os autores que encontravam dificuldades em publicar suas obras. A primeira edição foi lançada no primeiro semestre de 2005 e, em 2006, a Vacatussa colocou seu site no ar. A partir dele, passaram a publicar textos inéditos e começaram o consolidar o espaço como um lugar de reflexão, a partir da produção de críticas literárias e resenhas de livros. A revista é editada por Thiago Corrêa, jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. A equipe conta, ainda, com o jornalista Hugo Viana e Cristhiano Aguiar, crítico literário e também mestre em Teoria da Literatura (UFPE). O site disponibiliza oito edições para download gratuito. A edição privilegia a dobradinha texto + ilustração. O número mais recente (out/nov), começou a ser gestado no final de julho, como conta o editor. O portal gerencia, ainda, um blog com notícias relacionadas a eventos literários. PETHRUS TIBÚRCIO

http://pipocracia.com

ESCRITÓRIO FEMINISTA http://www.cartacapital.com.br/blogs/ escritorio-feminista

Os blogs têm sido espaços importantes no fortalecimento da luta feminista. A exemplo de Escreva, Lola, escreva e do coletivo Blogueiras Feministas, o Escritório Feminista, vinculado ao site da revista Carta Capital, foca as questões relativas à liberdade da mulher. O conteúdo do blog é produzido, principalmente, por Aline Valek, Clara Averbuck e Djamila Ribeiro.

sites sobre

Studio Ghibli OFICIAL

ONLINE GHIBLI

DOWNLOADS

http://site.studioghibli.com.br

http://www.onlineghibli.com

http://ghiblicon.blogspot.com.br

O Studio Ghibli é a produtora mais conhecida dentro da animação japonesa (por sucessos como A viagem de Chihiro), tendo como fundadores Hayao Miyazaki e Isao Takahato.

O Online Ghibli é uma boa fonte de informações sobre os filmes feitos pelo estúdio, com notícias, fichas técnicas e um fórum para discussão.

Indicado pelo site oficial, o Ghibli Blog disponibiliza uma série de downloads de obras menos conhecidas e críticas sobre os filmes da produtora.

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Carlo Giovani

PERSONAGENS E CENÁRIOS DE PAPEL TEXTO Mariana Oliveira

Quem, quando criança, não comprou publicações recreativas com imagens de personagens desenhadas que deveriam ser recortadas, dobradas e coladas para que ganhassem vida – os hoje chamados paper toys? O trabalho do ilustrador gaúcho Carlo Giovani passeia por essa técnica, cuja matéria-prima é o papel, que cria universos mágicos habitados por figuras surpreendentes. Apesar de atuar com outras técnicas (como o stop motion, o desenho e a pintura), suas ilustrações tridimensionais em papel, executadas a partir de diversas possibilidades de dobradura, recorte e modelagem, tornaram-se sua marca. Suas narrativas em papel já ilustraram publicações nacionais e também compuseram peças publicitárias de marcas como Coca-Cola, Unilever, Havaianas e Tim. O seu processo de criação tem início em esboços manuais, que depois ganham forma e dimensão espacial. Montada a ambientação – quase sempre rica em detalhes, camadas e texturas – e com os personagens posicionados, chega o momento de fazer o registro fotográfico, que documentará o trabalho e seguirá para o destinatário, seja editorial ou publicitário. Segundo ele, quem atua no campo da criação não desliga nunca, e é justamente no cotidiano que surgem as inspirações para os projetos. “Muitos dos meus personagens nascem, por exemplo, de objetos. Um abajur pode ser o ponto de partida para os traços de uma de minhas figuras”, conta, destacando que não produz apenas a partir da demanda de clientes. Giovani desenvolve projetos autorais, como a série Pin-ups – na qual buscou novas possibilidades de formas, optando por não usar volumes sólidos, mas luz.

Página anterior 1 TÉCNICA

As ilustrações tridimensionais em papel são a marca do trabalho de Carlo Giovani

Nestas páginas 2-3 LIVROS

Para o designer, é importante que a capa traga algo de novo para quem já leu o título, e atraia quem não o leu

4 O MÁGICO DE OZ Nas ilustrações para a obra, a iluminação teve papel fundamental

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Essas explorações livres trouxeram outras interessantes descobertas. “Na maior parte das vezes, são mudanças processuais, mas que acabam resultando em uma diferença substancial no resultado do trabalho, que pode ou não evoluir para outro caminho. Um exemplo disso foi quando comecei a construir personagens articulados, o que me levou à experiência da animação”, detalha. Recentemente, o designer teve a oportunidade de viver novas experiências, ao ser convidado para criar capas de livros. A primeira foi para o clássico Viagem ao centro da terra, de Júlio Verne. Giovani trabalhou diversas camadas de ilustração (dessa vez, em digital), que trouxessem referências importantes da obra, num formato cíclico, dialogando com a trajetória dos personagens do livro. No quesito tipografia, ele

optou por destacar o nome do autor, algo comum nas edições clássicas, e utilizou como base a Pheaton, uma fonte orgânica com irregularidades, que lhe permitiu criar ornamentos a partir dela. “Fazer capas de livros tem sido uma experiência bem interessante. Tento propor uma nova leitura, trazer ideias que a obra possa sugerir, sem entrar em confronto com o discurso do autor. Quero que a capa surpreenda quem já leu o livro, e atraia quem não o leu. Leio e releio o texto diversas vezes, até que surjam as ideias.” Ele também ilustrou e fez capas para títulos como O mágico de Oz (Salamandra) e Os mundos de Teresa (Companhia das Letras). Foi nesse exercício com os livros que o designer passou a ter maior controle sobre a direção de fotografia, algo que vinha sendo desenvolvido há alguns anos, quando ele mesmo começou a fotografar suas criações. Foi nessas duas obras que Giovani conseguiu usar a luz com mais dramaticidade,

transformado-a em parte da ilustração, quase com o mesmo peso dos personagens e cenários. “Nesses trabalhos, a luz muda de acordo com o que quero contar. Fica mais dura, mais suave, muda de temperatura, ou seja, ela conversa com a cena, e não fica ali parada apenas como uma fonte de iluminação”, descreve. O artista também acaba de finalizar as ilustrações para um livro de lendas e mitos do Japão, que será lançado pela Cosac Naif no início de 2015. Nesse projeto, ele usa o papel, mas com uma técnica bastante diferente, mais orgânica. Nela, o material é modelado através de um processo demorado, no qual é molhado, amassado e seco mais ou menos na posição em que deve ficar, variando em função da gramatura do papel usado. As experimentações e estudos do designer com dobras, texturas e camadas nesse material, independentemente da técnica, reforçam a sua busca em entender como se dá a relação entre as formas e o espaço, em imagens que saltam aos olhos.

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5 PIN-UPS Na série autoral, Giovani optou por não usar volumes sólidos 6-8 PROCESSO O designer inicia um projeto com o esboço dos cenários e personagens, que depois ganham vida no papel

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CAÇA AOS SANTOS

A musa brasileira de Gabo Num dia de tempo ruim, a modelo acriana Silvana de Faria se apressou para chegar ao Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, para buscar familiares que vinham do Brasil. O voo estava atrasado e ela, na época com 26 anos e casada com um diretor de cinema francês, conseguiu sentar na última cadeira livre do lugar lotado, ao lado de um homem agradável com quem passou duas horas e meia conversando. Era Gabriel García Márquez, com cerca de 60 anos e nenhuma intenção de se identificar. Conversaram sobre amor à primeira vista, vícios em remédios e sobre a obra do escritor, misturando francês, português e espanhol. A brasileira contou à revista Newsweek que só percebeu com quem conversava quando estava indo embora, pouco antes do colombiano lhe entregar um bilhete que dizia “para você, sou Gabo”, com endereço, telefone e fax (informações que ela jamais utilizou, pois se sentiu enganada pela situação). Após a morte do escritor, Silvana se deparou com o conto Avião da Bela Adormecida, do livro Doze contos peregrinos. Ali, um registro do encontro: “‘Esta é a mulher mais bela que vi na vida’, pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no Aeroporto Charles de Gaulle de Paris.” LAÍS ARAÚJO

CON TI NEN TE

A FRASE

“O humor compreende também o mau humor. O mau humor é que não compreende nada.” Millôr Fernandes, humorista

Nos últimos anos, o Ministério Público de Minas Gerais recuperou cerca de 600 obras de arte sacra que pertenceram a igrejas barrocas do estado. A missão é liderada pelo promotor Marcos Paulo de Souza Miranda que, atualmente, busca cerca de 100 peças do período e também criou um banco de dados no qual é possível identificar as obras procuradas. Recentemente, ele conseguiu recuperar um busto de São Boaventura, de Aleijadinho (na foto), já exposto fora do país e que fazia parte da coleção de João Marino, falecido em 1997, deixando uma das maiores coleções de arte sacra do país. O promotor fundamenta sua tese numa lei do Império, não mais em vigor, que afirmava que os bens da igreja pertenciam ao patrimônio da monarquia. Pedro Bicudo, advogado e neto de Marino, alega que essa tese ameaçaria todas as coleções privadas de arte sacra. “Isso abre um precedente perigosíssimo. Uma coisa é recuperar peças roubadas, outra é perseguir coleções privadas”, disse à Folha de S. Paulo. Acabou a caça às bruxas, e começou a caça aos santos… (Mariana Oliveira)

Balaio OS RICOS E OS LASCADOS A Oxfam, uma organização internacional que busca soluções para o problema da pobreza e da injustiça através de campanhas e ações emergenciais, divulgou que as 85 pessoas mais ricas do mundo acumulam uma “mufunfa” de cerca de R$ 3,8 trilhões, enquanto 3,5 bilhões dos mais pobres dividem outra quantia equivalente. São níveis de desigualdade não vistos desde 1920. Os mais ricos do mundo (1%) concentram mais da metade de todo o dinheiro no globo. Eles possuem, juntos, o equivalente a 65 vezes mais do que a riqueza total da “rafameia” do mundo junta. Os dados, compilados do relatório World Wealth, do Credit Suisse, e da lista de bilionários da Forbes, mostra que a elite de “rabo-cheio” aumentou suas fortunas entre 1980 e 2012. A Oxfam teme que essa concentração de recursos econômicos ameace a estabilidade política e acabe na maior bronca do mundo. A organização postula que a luta contra a pobreza não pode ser vencida até que — Sem essa de guerra a desigualdade seja de classes, ok? extinta. (Luiz Arrais)

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O RETORNO DE FRANKSTEIN A clássica história do monstro de Victor Frankenstein, escrita pela inglesa Mary Shelley, no século 19, está chegando ao Brasil numa versão inédita. Trata-se da quadrinização da obra, ilustrada pelo artista Bernie Wrightson e lançada originalmente pela editora norteamericana Dark Horse, em 1983. É claro que essa dinâmica de conversão de prosa para a HQ já é algo comum, mas, neste caso, vem configurada numa situação especial: Wrightson é o maior desenhista de horror da história dos quadrinhos e a retratação de Frankenstein é sua obra-prima. A técnica de luz e sombra desenvolvida pelo mestre, em que o contraste entre o branco do papel e o preto do nanquim cria o volume e a dimensão das figuras, tornou-se referência para gerações de quadrinistas. Na adaptação aqui comentada, Bernie compôs 252 páginas de puro virtuosismo técnico. Nelas, o artista consegue traduzir as palavras de Shelley numa série de complexos painéis hachurados, cujo realismo vem mediado somente pela sensibilidade com que o ilustrador estreita a linha que separa verossimilhança e estilização. É um lançamento absoluto. (Fernando Athayde)

Duzentos anos sem Sade “Eu sou um libertino, confesso, mas não sou um criminoso, nem um assassino”, escreveu, em uma de suas cartas, Donatien Alphonse François de Sade (1740–1814). Aristocrata, prisioneiro de Estado e responsável pelo maior catálogo de perversões da literatura, o Marquês de Sade permanece, dois séculos após a sua morte (no dia 2 de dezembro, aos 74 anos), como foco de debates. Transgressor psíquico, sexual e filosófico, é difícil categorizar sua dimensão como patrimônio analítico. A obra de Sade ocupa tanto o espaço de ponto zero na literatura erótica, por exemplo, como tem força suficiente para ser estudada com afinco, sozinha, por psiquiatras de diversas nacionalidades. No ensejo das lembranças aos 200 anos do falecimento do Marquês, a editora Iluminuras lança edições de Justine – clássico do francês, ao lado de 120 anos dias de Sodoma –, Os libertinos de Sade, de Clara Castro, e uma reedição de Sade – a felicidade libertina, da pesquisadora brasileira Eliane Robert Moraes. Um dos pontos que merecem mais atenção nesta data é a constante necessidade de discussão acerca da violência do desejo. O encantamento e a curiosidade de investigar a vida de alguém que trouxe tal temática para a literatura, ainda no século 18, parecem inevitáveis. PRISCILLA CAMPOS

QUEM MATOU VAN GOGH? Assim como sua obra, a vida de Van Gogh sempre fascinou os amantes da arte, principalmente pelo comportamento dramático que o levou ao suicídio, em 1890. O trágico fim do pintor holandês era consenso até a chegada, em 2011, da biografia vencedora do Pulitzer, Van Gogh: a vida, na qual os autores Steven Naifeh e Gregory White Smith defendem a tese de que o gênio teria sido assassinado. Atendendo ao convite dos autores, o médico legista Vincent Di Maio estudou o caso e afirmou à Vanity Fair que, de acordo com as descrições das lesões, o projétil foi disparado a um ou dois metros de distância. O livro sustenta que o tiro foi desferido por duas crianças. Van Gogh, em seu leito de morte, contou que tentou se matar. A declaração falsa seria uma forma de protegê-las. Se foi mesmo vítima dessa fatalidade, teremos mais um motivo para o admirarmos. (Débora Nascimento)

OS RICOS E OS LASCADOS 2 Falando em pobres e ricos, curiosa é a situação de Eike Batista (foto) que, cheio de jactância, do mesmo modo que chegou no clube dos mais endinheirados do mundo, de repente, caiu no maior liseu, virando-se nos 30 mil por cento para pagar o que deve. Deve ter sido praga da Luma de Oliveira. Do jeito que a maré de azar está para o lado dele, se bobear, vai acabar vendendo queijo de coalho assado em alguma praia poluída do Rio para poder sobreviver. (LA)

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CAU GOMEZ

CON TI NEN TE

CAPA

WEB O humor nos tempos da rede

A comicidade irrestrita, produzida, consumida e distribuída na internet, torna-se o maior vetor para a comunicação da atual geração, além de controverso veículo para a transmissão subliminar de ideias TEXTO Débora Nascimento

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CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

Um garoto judeu , residente em

São Paulo, está prestes a completar 13 anos e, como manda a tradição do seu povo, deve participar do bar mitzvah, cerimônia que marca a maioridade religiosa no judaísmo. Em comemoração à data, a família do adolescente prepara uma festa para 400 pessoas. Além do cardápio e da banda, os pais pensam em entreter os presentes com a exibição de um vídeo mostrando o cotidiano do filho. Procuram uma produtora. A empresa realiza, então, um clipe com imagens do adolescente, tendo como background montagens toscas e uma paródia de What makes you beautiful, hit da boy band One Direction. A “nova” letra ressalta que o menino é estudioso, organizado, simpático e adora viajar com o núcleo familiar. O videoclipe, claro, foi um sucesso no evento. Mas, para que outros familiares também o assistissem, o pai resolveu postá-lo no YouTube. Com isso, sem querer, transformou a produção audiovisual caseira num dos maiores memes da história recente da internet no Brasil. Rapidamente, a brincadeira, que seria para poucos espectadores, alcançou milhares de acessos. Dois anos após aquela primeira postagem fatídica, uma busca do nome do garoto no site de vídeos traz mais de 9 mil registros, a maioria, arremedos. Fica difícil contabilizar os “espectadores”. Apenas um vídeo, cópia do original, possui mais de 700 mil visualizações. Estima-se que, ao todo, são cerca de 3 milhões. Não é um número tão grande, se comparado ao do mencionado clipe da música do One Direction, 500 milhões de visitas; mas, levando-se em conta que o jovem foi alvo de zombaria e não de tietagem, dá para fazer uma ideia do estrago que esse tipo de incidente pode causar na vida de qualquer pessoa, principalmente na de um adolescente. Ainda em 2012, seus pais entraram com um processo judicial para retirar do ar os vídeos e pedir R$ 30 mil reais como indenização por danos morais. No entanto, em agosto deste ano, perderam a ação para a Google, empresa que detém os direitos do YouTube.

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Ainda hoje, o garoto, que está com 15 anos, precisa conviver com o que é denominado de cyberbullying, intimidação virtual que se tornou prática crescente em todo o mundo e que está ligada a um componente bastante comum no universo virtual, a necessidade, a qualquer custo, do humor. Nunca fomos tão cercados por ele. Nunca fomos tão vítimas dele. Em O riso – ensaio sobre a significação do cômico (obra de 1899), o filósofo francês Henri Bergson defendeu que, para haver comicidade, é preciso um distanciamento emocional entre a plateia e o objeto do riso: “O cômico exige algo como certa anestesia momentânea do

coração para produzir todo o seu efeito. Ele se destina à inteligência pura”. Para o pensador, o humor pode também cumprir uma função de castigo, causando à vítima humilhação. Através da galhofa, a sociedade aplicaria sua vingança sobre aqueles que possam transgredir o senso comum. “O riso parece precisar de eco.”

SOCIEDADE HUMORÍSTICA

Quase um século depois, no final da década de 1980, outro filósofo francês, Gilles Lipovetsky, sentenciou que vivíamos em uma “sociedade humorística”: “Cada vez mais, a publicidade, as emissões de animação, os slogans das

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1-2 NISSIM OURFALI Vídeo rendeu paródias e memes 3 PIERRE LÉVY Filósofo acreditou numa ética na web 4 ALLAN SIEBER Desenhista questiona quais os interesses do humorista anônimo 3

manifestações e a moda adotam um estilo humorístico. Até as publicações sérias se deixam influenciar em maior ou menor medida pela atmosfera da época: basta ler os títulos ou subtítulos dos diários, dos semanários e mesmo dos artigos científicos ou filosóficos. O tom universitário dá lugar a um estilo mais cômico, feito de piscadelas de olho e jogos de palavra”. Com a era da internet, esse comportamento se intensificou. Nada mais escapa à artilharia da comicidade: das eleições, passando pelos problemas sociais, Copa do Mundo no Brasil e até mortes de celebridades, tudo acaba em piadinhas e memes. O termo meme foi criado pelo biólogo Richard Dawkins, e difundido em seu livro O gene egoísta, de 1976: “Da mesma forma como os genes se propagam no ‘fundo’, pulando de corpo para corpo através dos espermatozoides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagamse no ‘fundo’ de memes, pulando de cérebro para cérebro por meio de

um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação. Se um cientista ouve ou lê uma ideia boa, ele a transmite a seus colegas e alunos. Ele a menciona em seus artigos e conferências. Se a ideia pegar, pode-se dizer que ela se propaga a si própria, espalhandose de cérebro em cérebro”.

Nada mais escapa à comicidade: eleições, problemas sociais, Copa do Mundo no Brasil e até a morte de celebridades Sua teoria vingou com toda força nos 00, principalmente com a utilização do humor como vetor para transmitir ideias. Pode-se dizer que nunca se produziu tanto material humorístico no mundo. O cartunista Allan Sieber concorda e atribui essa explosão cômica à facilidade de acesso às tecnologias: “É que os

meios ficaram bem mais baratos, como todo mundo sabe: câmeras, computadores etc. Mas tem um humor muito rasteiro por aí, tanto na internet, quanto na TV e no cinema”. Ou seja, as pessoas começaram a ter maior poder de compra, mas possivelmente não desenvolveram discernimento suficiente e princípios éticos diante de tanta liberdade para criar, consumir e distribuir humor. Um agravante, no caso das vítimas do “humor da internet”, é que, em sua maioria, ele é anônimo. O garoto judeu do vídeo tem seu rosto estampado em diversos memes. Basta “dar um google” e ter acesso a vários deles. Esse é o lado perverso da graça que não tem assinatura: ela pode destruir reputações, caluniar, desinformar, humilhar e, ainda assim, deixar seu autor obscuro escapar ileso. Esse cenário a que assistimos é exatamente o inverso do que Pierre Lévy avaliou em 1999, quando lançou o livro Cibercultura. Em resposta à questão “A cibercultura não é sinônimo de caos e confusão?”, o filósofo francês foi otimista: “É certo que nenhuma autoridade central garante o valor das informações disponíveis no conjunto da rede. Ainda assim, os sites são produzidos e mantidos por pessoas e instituições que assinam suas contribuições e defendem sua validade frente à comunidade dos internautas. As comunidades virtuais, fóruns eletrônicos ou

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5-7 BEYONCÉ Alvo de zombaria, cantora proibiu fotógrafos não autorizados em seus shows 8-9 NEIL DEGRASSE Meme “Ui” foi extraído de frame de uma entrevista do astrofísico 10 ANÔNIMOS Foto de motorista de ônibus é uma das imagens, hoje, mais compartilhadas 5

newsgroups são frequentemente moderados por responsáveis que filtram as contribuições de acordo com sua qualidade ou pertinência. Esses operadores (de sistemas), que dispõem de um grande poder ‘regional’ no ciberespaço, podem eliminar dos servidores, sob sua responsabilidade, informações ou grupos de discussão contrários à ética da rede (a famosa netiqueta): calúnias, proxenetismo, disseminação sistemática de informações impertinentes etc. O que explica, por sinal, que haja tão poucas informações ou práticas desse tipo na rede”. Lévy preparou o terreno teórico para muito do que vemos hoje, mas só não contava com o advento dos blogs, das redes sociais, do YouTube e do Google.

PIADAS NAS REDES SOCIAIS

O Facebook apenas surgiria em 2004, cinco anos após o lançamento de Cibercultura, para causar uma revolução na forma como nos comunicamos e consumimos informação e entretenimento. Dez

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anos após a sua criação, o site, projetado por Mark Zuckerberg como meio de comunicação entre os alunos da Universidade de Harvard, ultrapassou 1 bilhão de usuários, uma parte considerável da população do planeta. No Brasil, são mais de 76 milhões de membros, curiosamente o mesmo número de brasileiros que têm acesso à internet com conexão doméstica. Fora isso, somos o segundo país com mais internautas que entram diariamente na rede social. Muitos deles estão em busca de se relacionar com amigos e conhecer pessoas. Um estudo realizado pelo psicólogo Pedro Guimarães de Barros apontou que a maioria dos membros procura se divertir através de piadas e memes. “A frequente menção ao humor chamou bastante a minha atenção. Em suas respostas, vários dos entrevistados mencionaram o acesso regular a conteúdos de humor, ou a ‘coisas engraçadas’. A pergunta que serviu de ponto de partida para a dissertação foi: ‘De que estes jovens estão rindo online?’

Ou, formulada de outro modo: ‘Que humor é esse a que eles se referem?’” A busca da palavra humor no Facebook leva a incontáveis páginas: Humor inteligente, Humor engraçado, Humor político, Humor da net, Humor sarcástico, Humor diário, Humor vintage. Isso sem contar com as que não são batizadas com o termo humor, como a do Bode Gaiato e do Chapolin Sincero, com 4,2 milhões e 5,5 milhões de seguidores, respectivamente. O curioso é que o princípio do conteúdo humorístico dessas fanpages se firma exatamente no amadorismo deliberado: memes com design e fotografias mal-executados, desenhos toscos e ortografia errada. Muitas das imagens usadas são pescadas na própria internet, como a do anônimo motorista do “A que ponto chegamos?”, ou do senhor do “Ui”, cujo gesto das mãos levantadas foi extraído de um frame de uma entrevista do astrofísico Neil DeGrasse Tyson, apresentador do programa Cosmos. No exato momento, ele enumerava os feitos de Isaac Newton antes

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dos 26 anos. Nada a ver com a manipulação de sentido posterior. Para tentar administrar o uso de suas imagens, alguns artistas já estão tomando providências. Beyoncé, por exemplo, passou a proibir fotógrafos não autorizados em seus shows. A medida foi imposta após ter visto a propagação de fotos em que aparece com expressões faciais que maculam sua beleza. Kate Bush, a compositora e cantora inglesa que passou 35 anos sem fazer espetáculos, ao anunciar seu retorno aos palcos, exigiu que absolutamente ninguém registrasse sua performance nas 22 datas em Londres. Não custa lembrar que, com o clipe do megasucesso Wuthering heights (1978), a garota-prodígio foi alvo de diversas paródias. Mas isso foi na época em que a massificação de sátiras ainda engatinhava. Imagine se Jimi Hendrix resolvesse estrear hoje sua nova forma de tocar guitarra (com os dentes e com o instrumento nas costas)? O que isso não renderia de piadas? “Eventualmente, fico me perguntando quem faz isso e por que, já que é anônimo e não vai ganhar nem reconhecimento. Talvez seja o fetiche de ser replicado, vá saber. Tem uns simplesmente geniais, um primor de síntese, quase humor popular nível Mussum, muito bom. Já outros nascem datados ou são uma piada muito interna e cretina. Se pensarmos bem, as tiras do André Dahmer são feitas para serem memes, por exemplo: um slogan barato, uma palavra de ordem para ser colada em adesivo no carro de algum universitário – ou estamparem uma camiseta – e

O termo meme foi criado em 1976, para exemplificar que a propagação de ideias seria igual à reprodução de genes aquele desenhinho copy/paste sem alma. Falta ferocidade a tudo isso, acaba e morre no ‘fofo irritadinho’ (que não irrita ninguém)”, critica Allan Sieber. “Acho bacana esse humor anônimo, mas estranho também. Quando comecei a botar quadrinhos

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em blogs, não era pago, só minha vaidade autoral era recompensada. A nova geração não faz questão nem disso, fico meio pasmo com tanto desapego. Mas algumas das coisas mais engraçadas que vi ultimamente vieram assim, sem assinatura”, afirma o quadrinista Arnaldo Branco, que agradece à internet por ampliar seus conhecimentos na área. “Graças a ela posso assistir a humorísticos do mundo todo e ver surgirem novas maneiras de fazer humor, que é uma arte mutável e perecível. Só os gênios do humor podem se dar ao luxo de não mudar nunca, trabalhadores braçais como eu estão sempre lutando contra a obsolescência.”

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CON CAPA TI NEN TE CLERISTON DE ANDRADE/CORTESIA

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Artigo

ANTONIO CLÉRISTON DE ANDRADE VINTE CHAVES QUE ABREM O SENTIDO DO HUMOR Quem não morreu de rir ou de ódio ao ver uma charge protagonizada por um dos candidatos à presidência nas redes sociais ou em revistas e jornais? Quem não compartilhou ou deletou imagens julgadas hilárias ou grosseiras no Facebook ou WhatsApp? Pois é, pimenta no tempero dos outros é refresco. Mas, afinal, o que faz de uma imagem que contém uma situação um enunciado de humor?

Em 2011, completei um quebracabeça de 300 páginas, também conhecido como tese de doutorado em Linguística, na UFPE, no qual apontei 20 elementos discursivos que corroboram para os efeitos de sentidos que uma “piada gráfica” permite suscitar. E não é que deu certo? Articulei, na fundamentação teórica, postulados da Análise do Discurso francesa sob a perspectiva de Dominique Maingueneau com o pensamento sobre a eventicidade da existência humana posta pelo russo Mikhail Bakhtin. Desse modo, noções como as de alteridade, dialogismo, heterogeneidade constitutiva, formação discursiva, interdiscurso e efeitos de sentidos configuram os pilares de um aparato de análise que permite uma leitura menos inocente do mundo, principalmente dos acontecimentos mediados por dispositivos eletrônicos e impressos.

Vamos a eles. Comecemos por suporte meio. Toda enunciação tem um espaço físico ou virtual no qual o material publicado pode ser acessado. Uma caricatura não é “a mesma”, caso estampe a capa da revista Veja ou da Carta Capital. O autor é o segundo agente do aparato teórico de análise que tem influência sobre os sentidos do que se enuncia: “Você pode ganhar um aumento” tem sentidos distintos, se é dito pelo diretor de uma empresa para um funcionário, ou se é o que diz um horóscopo. O tema não deve ser visto como um verbete, de modo abrangente e vago. Quando se traz o tema “corrupção” para uma charge, ele é trazido com sujeito, verbo e predicado: um iceberg com sua parte submersa. Tira ou caricatura? Jornalismo ou publicidade? É o quadro cênico que nos leva a discernir quanto à cena genérica e englobante: do

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11 INTERTEXTUALIDADE Na charge, unem-se vários elementos de conhecimento prévio do leitor, como as promessas não cumpridas de um “Pinóquio”

outro que responde ou retruca. Nas tirinhas, temos os heróis, e, nas redes sociais, são criados seres falantes, como o Bode Gaiato. Há casos em que uma cidade, objeto ou animal protagoniza o enunciado, geralmente produzindo falas. Nos enunciados, há outras vozes, além da do autor, a que chamamos de aspecto polifônico. Num cartum, podemos encontrar a voz da igreja, do discurso racista, de modo dissimulado, ou a citação direta de uma personalidade, capaz de evocar ódios e simpatias. Através da intertextualidade, trazemos fragmentos de outros textos, como o nariz de Pinóquio posto em um deputado; porém, através do princípio da interdiscursividade, esse marcador evoca a mentira, atributo que passa a ser associado ao parlamentar. E denomina-se por intradiscursividade a convocação de elementos

Um cartum feito no Carnaval não tem o mesmo efeito em julho, em Tóquio, pois local e tempo são base à sua compreensão que se trata, e em qual âmbito instituído o leitor é interpelado a se posicionar – como consumidor, eleitor ou torcedor de clube. No aparato de análise, contamos com três aspectos contextuais: um amplo, que diz respeito aos já ditos, ao histórico, somado à consciência que o sujeito tem de si no mundo; um de horizonte imediato, cuja perspectiva do aqui e agora nos fez vivenciar há pouco uma disputa eleitoral; e um mais restrito, a situação de comunicação que diz respeito às condições de produção e fruição do enunciado. Um cartum produzido na época do Carnaval não tem o mesmo efeito se visto em julho, em Tóquio. Se, no romance, escrevese o nome do falante, nas charges, desenha-se a figura dos protagonistas, geralmente um que pergunta ou comenta, e

recorrentes, forjados no próprio meio, como a alegoria da inflação, no caso das charges, na forma de um dragão.

INTERVENÇÃO SURPREENDENTE

No processo de enunciação, o autor pode optar pelo fundo em branco, ou elaborar uma cenografia, criando uma ambiência reconhecida pelo leitor, como o Congresso Nacional ou uma quadra de tênis. Às vezes, é aí que está uma chave importante da estratégia narrativa espirituosa. Outra noção interessante é a de ethos, isto é, como o enunciador institui a si próprio através da sinestesia e da entonação, denotando ironia, euforia ou desprezo em seu dizer. Porém, o mais importante dos elementos constitutivos do enunciado de humor é a intervenção surpreendente. É o acréscimo, supressão, substituição ou modificação de uma cena reconhecida pelo interlocutor, para uma situação nova, inesperada e divertida.

Embora haja muitos registros sem palavras, os itens lexicais e falas contribuem para variadas formas de enunciação. As mais comuns são os balões de diálogos, os títulos e as siglas que designam partidos e instituições, de cujas alterações nas formas decorrem novos pontos de vista. O traço e o delineamento no enunciado conferem força expressiva ao que é encenado. Um balão delineado com uma linha tracejada pode indicar sussurro, enquanto outro, com saliências angulosas, denotaria gritos. No processo de acabamento artístico e editoração são realizados os detalhes que dão vigor e precisão ao enunciado: pela cor, indica-se a identidade de um partido ou um clube; aplicada na pele, pode designar alguém “roxo de raiva”; o vermelho pode evocar lugares do imaginário, como o inferno. Cores e texturas podem funcionar como adjetivos e devem ser empregadas com parcimônia pelo autor-enunciador. Quanto aos efeitos de sentidos, estes são resultado da enunciação, considerando-se todos os elementos discursivos que corroboraram para tal empreendimento, lembrando que eles são irrepetíveis, até para os mesmos interlocutores. A releitura de um livro é uma nova experiência. O vigésimo elemento discursivo é o posicionamento axiológico do enunciador. Este pode ser inferido pelo modo como enuncia e pelas marcas deixadas para se saborear. Embora possamos tirar conclusões sobre o posicionamento de um autor, é mais seguro analisar o conjunto da obra, a fim de caracterizar uma formação ideológica, pois esta deve revelar certa coerência e dispersões sobre os temas tratados. Dificilmente, um enunciado coincide com o que parece dizer. Os pés para trás, por exemplo, desmontam a fala de uma personalidade que diz “olhar o futuro”. Esse conjunto pertence a uma proposição de Teoria Dialógica da Enunciação, que estendi a outros tipos de enunciados, como fotografia, aula, publicidade e cinema. No momento, aplico a metodologia à enunciação do empreendimento, afirmando a organização e seu produto como discurso e sentidos na região em que atua.

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IDEIAS “O discurso humorístico é também ideológico”

Frase do cartunista Laerte ganha respaldo em meio à batalha da defesa de opiniões travada na internet, sob o formato de piadas, paródias e memes TEXTO Débora Nascimento

O compartilhamento de humor no Facebook extravasou os limites da intenção do riso e passou também a tentar angariar novos adeptos a determinados pensamentos. Como já defendeu o cartunista Laerte: “O discurso humorístico é também um discurso ideológico”. Talvez sem desconfiar dessa premissa, boa parte dos usuários multiplica piadas carregadas de intenções ideológicas subliminares. Algumas páginas vêm se especializando nesse tipo de produto, como a da TV Revolta, que começou como um canal no YouTube. Em meados deste ano, a página, que existe há quatro anos no Facebook, passou a ganhar maior visibilidade por conta do período eleitoral. Misturando piadas de mau gosto com uma militância política superficial, conquistou 3,5 milhões de seguidores e um alcance de 27 milhões de internautas – 10 milhões a mais que a audiência do Jornal Nacional. “O entretenimento e a informação trabalham juntos desde a popularização do cinema. O que muda hoje são apenas a linguagem e a mídia, a fórmula continua a mesma”, disse o administrador da página, o radialista João Vitor Almeida Lima, o João Revolta, ao YouPix. O site, ao final da entrevista, deixou um alerta ao leitor: “Não baseie seu posicionamento político em cima de postagens engraçadinhas de fanpages! Leia, pesquise, busque fontes de discussão e informação confiáveis”. O aviso foi dado em maio deste ano, mas o que se viu, com intensidade, a partir de junho, época do início da campanha eleitoral, foi o compartilhamento alucinante de memes voltados para a disputa política. A maior parte com frases falsas atribuídas aos candidatos, declarações, números e informações sendo analisadas fora do contexto e um festival de boataria. Já os debates eleitorais nas TVs serviram apenas como motes para tuítes engraçadinhos nas redes sociais, com direito até a “eleição virtual” do candidato queridinho da Geração da Zoeira (ou Zuêra, para usar a “ortografia da internet”), Eduardo Jorge, do Partido Verde. “Não sei se o humor é capaz de virar uma eleição, mas ajuda a deixar evidente o ridículo de certas iniciativas dos marqueteiros. O sujeito, no comitê do Aécio Neves, que sugeriu

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a contratação de posts da Lindsay Lohan deve ter pesadelos com as piadas até hoje. E eu prefiro o uso do humor ao panfletarismo puro e simples”, opina Arnaldo Branco. Na eleição de 2010, o Facebook tinha apenas 8,8 milhões de usuários no Brasil. Em apenas quatro anos, cresceu mais de 700%, com os já citados 76 milhões de membros brasileiros, um número bastante expressivo, se levarmos em consideração que a candidata vencedora da disputa presidencial, Dilma Rousseff, teve 54 milhões de votos. Foi nesse terreno estratégico que os candidatos travaram uma nova forma de batalha no jogo da política. Páginas como a Dilma Bolada (que busca aliviar a imagem de durona da presidenta – sim, a palavra existe no dicionário!) são meios estratégicos para preparar o terreno antes do período eleitoral, pois, através do humor, buscam aproximar o político das graças do povo. O sucesso dessa fanpage, que tem 1,1 milhão de seguidores, despertou, segundo seu fundador, Jeferson Monteiro, uma tentativa de cooptação. Uma agência de publicidade, ligada a um candidato rival, teria tentado comprar a página. Outra fanpage que cresceu, nos últimos meses, foi a da comunidade virtual Haddad Prefeito Gato, que faz postagens engraçadas com fotos do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. O gestor, hoje, é um dos raros nomes da política nacional a ganhar menções simpáticas e espontâneas dos usuários, principalmente por conta de ações municipais que geram imagens atrativas ao perfil do frequentador de redes sociais. Nelas, o prefeito já apareceu tocando guitarra, andando de bicicleta e grafitando um muro, com a já famosa tentativa malsucedida de desenhar um Pato Donald, claro, que gerou piadas e comentários, disseminados a partir do Twitter.

VERBO TUITAR

“O Twitter é a rua, o Facebook é o shopping”, como já tuitou a sabedoria popular virtual. O designer, músico, radialista e tuiteiro Jota Bosco, cujo perfil costuma frequentar a lista semanal da compilação O Melhor do Twitter, trata a rede social do passarinho como vício, tal qual o cigarro. “No Twitter, seus limites são ditados por você; no Facebook, pela

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quantidade de familiares adicionados.” Tanta frequência propicia o aumento da possibilidade de conflitos? “Já fui um perfil mais brigão (principalmente na eleição de 2010). Hoje, sou paz e amor total. Penso duas vezes antes de postar algo. E não me arrependo disso. Inclusive, acho que me tornei uma pessoa melhor devido às redes sociais. Sabe aquela piadinha de teor homofóbico que a gente – pá! – soltava? Hoje em dia, paro, penso, e reflito ‘desnecessário fazer isso’”. O webdesigner acredita que essa mudança também atingiu outros usuários, e não somente pela patrulha com a postagem alheia. “Não acho que mudaram por causa de vigilância. Acho que é conscientização mesmo. Você passa a ter contato (mesmo que virtual) com pessoas as quais não teria pessoalmente, por falta de oportunidade, distância ou outros fatores. A gente fica sabendo do dia a dia dos que sofrem com preconceito. Começa a entender melhor como são oprimidos…” E complementa: “Sério que alguém quer lutar pelo direito de ofender alguém?”. O questionamento faz referência ao embate travado na web: direito à liberdade de expressão dos humoristas x dignidade das vítimas de piadas preconceituosas. Um dos exemplos: o comediante de stand-up Rafinha Bastos

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12 ARNALDO BRANCO Para quadrinista, piadas infames sempre existiram, mas hoje são mais difundidas 13 JOTA BOSCO Webdesigner, viciado em Twitter, critica a defesa da liberdade em prol da ofensa

se considera alvo de censura, por ter sido proibido judicialmente de contar anedotas envolvendo deficientes físicos. Ele é o mesmo que cometeu, em maio de 2011, essa aberração: “Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia…Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e, sim, uma oportunidade. Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço”. Dois meses antes, o New York Times o apontara como a celebridade mais influente do mundo no Twitter. Um dos critérios de análise da pesquisa, feita pela empresa Twitalyzer, foi a medição da quantidade de retuitadas e de citações de seu nome. A velha máxima “Falem mal, mas falem de mim” foi bem útil para o humorista. Diante de tantas polêmicas envolvendo comediantes, podemos considerar que a liberdade que se tem na web é um novo teste que pode medir e revelar o nível da nossa civilidade. “A humanidade sempre foi capaz de coisas terríveis bem antes do advento da internet – a civilidade já bateu em níveis mais baixos antes dos trolls de rede social”, argumenta Arnaldo Branco,

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Porque vocês dão risada. Quem é FDP, eu? Não, vocês.” Em outro trecho, o famigerado Rafinha Bastos, após falar algo que poderia virar mais uma nova polêmica, repete por três vezes: “É apenas uma piada”. “O humor é sempre um conteúdo disfarçado. Então, ele pode dizer que foi só uma brincadeira. Eu não acredito nisso. Porque eu levo essa brincadeira a sério. As piadas não têm um fundo de verdade. Elas são a verdade. A verdade com nariz de palhaço”, defende o cronista Antônio Prata. “Quando você faz uma piada, está colocando uma ideia no mercado das ideias. Está ajudando a criar essa massa da cultura e a maneira como as pessoas pensam. É totalmente político.”

ESTEREÓTIPOS

“O ambiente real é, na verdade, grande, complexo e transitório demais para um conhecimento direto. Embora tenhamos que agir nesse ambiente, precisamos reconstruí-lo em um modelo mais simples, antes de conseguir lidar

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referindo-se às impertinências virtuais. “As tragédias do passado (Bateau Mouche, Tancredo, Senna) inspiravam as mesmas piadas de humor negro, a diferença é que elas chegavam alguns dias mais tarde.” No documentário O riso dos outros, de Pedro Abrantes, o politicamente incorreto no humor é discutido a partir de trechos das apresentações de alguns dos mal-afamados humoristas brasileiros de stand-up, que destilam suas barbaridades sob aplausos das plateias. Em dado momento, Danilo Gentili, numa performance, culpa o público pela piada que acabara de contar. “Todo comediante, quando não tem o que falar, fala ‘Preta Gil’ (disse anteriormente que ela era feia) e todo mundo ri. Eu não gosto de falar isso. Então, por que eu conto?

A piada preconceituosa se ancora em valores sociais solidificados, por isso é fácil fazer graça com elas com ele”, definiu o escritor Walter Lippmann. Dessa simplificação das coisas e da realidade, surgiriam os estereótipos, muitos dos quais as pessoas têm acesso pela exposição cultural a que foram submetidas. Em Subliminar – como o inconsciente influencia nossas vidas, o físico Leonard Mlodinow lembra um estudo realizado em 1998, na Universidade de Washington. A pesquisa prova que a estereotipagem é produto do inconsciente. Isso seria a regra, não a exceção. “O trabalho apresentava uma ferramenta computadorizada, chamada Teste de Associação Implícita, ou IAT, na sigla em inglês, que se tornou uma das ferramentas-padrão da psicologia social para medir o grau com que um indivíduo associa inconscientemente traços a categorias sociais. A IAT ajudou

14 PRESIDENCIÁVEIS Desempenho dos candidatos rendeu inúmeras piadas 15 CAMPANHA ELEITORAL Tirinha de Arnaldo Branco satiriza a guerra travada nas redes sociais 16 QUEM É MILLÔR FERNANDES? Tumblr reuniu posts de tuiteiros que desconheciam o escritor

a revolucionar a maneira como os cientistas veem a estereotipagem.” De acordo com essa tese, os humoristas precisam brigar com seus inconscientes, se quiserem realizar um trabalho, no mínimo, decente. “A piada preconceituosa se ancora em determinados valores solidificados na sociedade. Então, é fácil fazer graça com esses estereótipos, porque eles estão prontos para você. Desmontá-los é muito mais difícil”, avalia Idelber Avelar, ensaísta e professor de Literatura. “As piadas preconceituosas são o primeiro nível do humor. É o humor mais baixo, o mais fácil, o mais raso”, aponta Antônio Prata. Ou seja, não estamos apenas diante de anedotas que julgam mal os outros, mas também muito ruins. Dentro desse contexto, uma boa medida que vem sendo adotada por diversos internautas é a exclusão de amigos que compartilham conteúdo depreciativo, sejam piadas ou memes homofóbicos, racistas ou com ideias retrógradas sobre questões atuais. Esse banimento digital seria uma espécie de nova peneira social. Afinal, a rede trouxe de volta ao convívio, pelo menos virtual, de cada usuário pessoas que já tinham sido, digamos, “filtradas” na vida real, ao longo dos anos, seja por conta de diferenças na visão de mundo, nas afinidades, nos gostos. No entanto, o Facebook resgata, para seus membros, algumas figuras de seus passados e as coloca todas num mesmo ambiente, que reúne familiares, ex e atuais companheiros, vizinhos, conhecidos, professores, colegas de trabalho, chefes, o dono da venda. É previsível, então, que a tensão e/ou o conflito se deem em, pelo menos, algum momento. Por conta dessa crescente babel virtual, a fórmula facebookiana pode, um dia, esgotar-se, assim como aconteceu com o Orkut. Mas a rede de Mark Zuckerberg vem tentando

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driblar os possíveis problemas entre seus integrantes, criando mecanismos de administração de postagens, o que torna a convivência virtual menos turbulenta. “Têm uns alienígenas do passado que me adicionaram. Depois de ler umas três postagens que apareceram na minha TL, já apertei o ‘Deixar de seguir’. É quando a gente entende o porquê do destino separar”, ressalta Jota Bosco. As redes sociais afastam ou aproximam as pessoas? “Pergunta difícil. Eu responderia que as duas coisas. Hoje, tenho vários amigos espalhados pelo país. Chego em São Paulo, Belo Horizonte, Belém e vou me reunir com uma galera massa, graças ao Twitter. Em compensação, por mim, não sento nem em uma mesa de bar com gente próxima, devido ao Facebook.” A chave dessa questão pode estar nessa observação do físico Leonard Mlodinow: “Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de in-group, e qualquer grupo que as exclui de out-group. Diferentemente do uso coloquial, no sentido técnico, in-group e outgroup se referem não à popularidade dos que pertencem a grupos, mas apenas à distinção ‘nós-eles’. Todos pertencemos a muitos grupos. Por conseguinte, a maneira como nos identificamos muda de situação para situação. (…) Alterar a filiação do grupo que adotamos em dado momento é um truque que todos usamos, e ajuda a manter uma aparência simpática, pois os in-groups com que nos identificamos são um importante componente de nossa autoimagem”. Em outras palavras, mesmo dentro da grande teia das redes sociais e da diversidade de pessoas e ideias, o usuário sempre estará ligado a alguma turma. “Os computadores em rede parecem ir na direção oposta àquela

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da cultura do impresso, estando mais próximos do tribalismo anterior à escrita e à imprensa. Podemos dizer que a dinâmica social atual do ciberespaço nada mais é que esse desejo de conexão se realizando de forma planetária. Ele é a transformação do PC (Personal Computer), o computador individual, desconectado, austero, feito para um indivíduo racional e objetivo, em CC (Computador Coletivo), os computadores em rede. Assim, a conjunção de uma tecnologia tribalizante (o ciberespaço) com a sociabilidade contemporânea vai produzir a cibercultura profetizada por McLuhan. Parece que a homogeneidade e o individualismo da cultura do impresso cede, pouco a pouco, lugar à conectividade e à retribalização da sociedade”, observou André Lemos, em Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea.

Ou seja, o pessimismo dos que veem na internet apenas más consequências, como solidão, depressão e abandono do “real”, pode dar brecha para outras interpretações. Afinal, estamos apenas na adolescência da vida virtual, na qual ainda não se descobriu que um dos canais de comunicação, como o humor, não “é apenas uma piada”. “O humorismo é a quintessência da seriedade”, como já definiu Millôr Fernandes, cujo poder de síntese pode lhe oferecer a alcunha de Avô do Twitter, aquele que chocou os integrantes da Geração da Zoeira com a repercussão de sua morte, em 27 de março de 2012. Não pela perda, mas porque não sabiam de quem se tratava. Foram tantos tuítes, que chegou a ser criado o tumblr Quem é Millôr Fernandes?. A maioria desses tuiteiros, no entanto, deve saber quem é Nissin Ourfali. E se você, felizmente, não sabe: é o tal garoto do bar mitzvah. DEBORA NASCIMENTO

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CON CAPA TI NEN TE

Entrevista

RAPHAEL DOUGLAS TENÓRIO “UTILIZAMOS A MENTIRA A SERVIÇO DA VERDADE” No rol das formas de humor que angariam adeptos e seguidores, as fake news vêm se mostrando também concorrentes de peso do jornalismo tradicional e da “realidade”. “Informativos”, a exemplo do The Piauí Herald, Sensacionalista e Diário Pernambucano, são compartilhados diariamente como forma de entretenimento, embora haja leitores menos atentos, ou calejados pelo surrealismo do dia a dia, que acreditam nas “notícias”. O professor universitário, mestre em Filosofia, editor e repórter do DP, Raphael Douglas Tenório, concedeu entrevista à Continente, na qual faz uma análise desses periódicos. “Não se pode negar que essas falsas notícias, ao causarem um choque de perspectiva em meio às leituras cotidianas, encorajam a audiência a uma pausa reflexiva, ainda que por poucos segundos.” CONTINENTE Quando, como e por que surgiu a ideia de criar o Diário Pernambucano? RAPHAEL DOUGLAS TENÓRIO O insight aconteceu num sábado à tarde dos idos de 2010. A ideia era criar um site de notícias “falsiês” (falsas), emulando eficazmente a linguagem jornalística, adicionando uma pitada de acidez humorística tipicamente nordestina e o intuito de espraiar críticas, sátiras e todo tipo de investidas contra figuras sociopolíticas pouco exploradas pelos tentáculos da ironia. Foi bem difícil no início, uma vez que havia muitos colaboradores de diversas visões políticas e apolíticas. Darwin agiu e sobraram apenas dois: Heráclito Veras (quem vos escreve agora) e Giuseppe Nocchio (pseudônimos oficiosos). Dizem por aí que o Diário Pernambucano tem sido o jornal de maior credibilidade em linha reta da América Latina. CONTINENTE Já vi compartilhamentos de notícias do Diário Pernambucano

como se fossem verídicas. A que você atribui esse crédito das pessoas? RAPHAEL DOUGLAS TENÓRIO Primeiro, porque utilizamos a mentira a serviço da verdade, o que acarreta dizer que “não mentimos”. Quem diz que o Diário Pernambucano mente, está faltando com a verdade! Tão somente oferecemos de forma oblíqua algo parecido com a verdade. Ao passo que vivemos um contexto de progressivo descrédito sobre os meios oficiais de informação, a oportunidade de informar de maneira alternativa encontra terreno fértil. Pode a mentira ser um indício de uma verdade? Costumo citar o filósofo Espinosa nesse caso. “Assim como a luz manifesta a si mesma e manifesta as trevas, assim a verdade é norma de si e do falso.” Não é o caso que o talento proposto seja o de desinformar. Dentro de todas as nossas notícias, há o fator do episódio real, da análise do fato para além da ficção. Temos o exemplo de quando soltamos a notícia de que Suzane Richthofen assumiria a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, nota absurdamente compartilhada. É uma óbvia mentira.

Nas redes sociais, via de regra, consumimos somente as manchetes e as compartilhamos como verdades Mas a ironia que ela carrega atinge de frente as ocasiões do contexto. Naquela altura, Marco Feliciano, recémnomeado presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias causava amotinação pelo país. Começamos a pensar o que seria mais absurdo que um sujeito preconceituoso se fazendo líder das minorias. Achamos a fórmula! Alguém que matou os próprios pais pode assumir a segurança e tutela das famílias brasileiras! Algo como Hitler tomando conta de judeus. Por que tão compartilhado? Porque é um absurdo possível! Na cabeça do brasileiro, uma notícia verossimilhante. No mais, para além da risada gratuita, passamos a depreciar o papel do “humor pastelão” e assumimos um

status de meio “noticioso”. Através de uma sátira engajada, da mentira cômica e da linguagem jornalística, procuramos atingir indivíduos ou costumes operacionalizando denúncias, provocações e questionamentos de toda ordem. Outro fator que faz com que as notícias sejam tomadas como verdade é que, como diria Nicholas Carr, autor de Superficiais, na web a leitura é descuidada, o pensamento é apressado e o aprendizado é superficial. Nas redes sociais, via de regra, consumimos somente as manchetes, que são macroestruturas semânticas, e as compartilhamos como verdade, sem sequer aprofundar a leitura. Nesse movimento aparentemente pueril das mentirinhas programadas, entretanto, evidenciam-se certos equívocos de procedimento na apuração por parte dos profissionais de jornalismo, a frágil e manipulável credulidade do consumidor e a cultura generalizada de leitura e compreensão superficial dos produtos noticiosos. No fim das contas, estamos propondo uma pedagogia da apuração. CONTINENTE A confiança dos leitores nessas notícias estapafúrdias seria um indício do quão mal anda a cobertura jornalística, o discernimento das pessoas ou a realidade? Ou tudo isso junto? RAPHAEL DOUGLAS TENÓRIO Definitivamente, um mix dos três elementos. Uma vez que há uma crise generalizada de credibilidade por parte dos leitores sobre as mídias tradicionais, cada vez mais a serviço de interesses privados, as oportunidades de informar através de mídias alternativas crescem e muita gente se predispõe a consumir. Pode-se notar que a “instiga” das mídias como o Diário Pernambucano, é, entre outras coisas, escarnecer o fazer jornalístico tradicional. Entretanto, ao mesmo tempo em que se mune de chacota para criticar os grandes meios de comunicação, dependem diretamente, para garantir audiência, da emulação da linguagem desses que são historicamente deificados. Inclusive eu, Heráclito Veras, tenho em mente a ideia de estudar em que medida o pseudoperiodismo satírico digital, atuando entre humor e contra-hegemonia, pode ser considerado um produto informativo ou contrainformativo. Basta ter em

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mente as pesquisas, nos Estados Unidos, encabeçadas pelo Pew Research Center, entre 2004 e 2012, demonstrando o aparecimento de uma numerosa audiência adolescente emergida na busca de informação oriunda das fake news, que são versões atualizadas dos antigos pastiches e hebdomadários satíricos, em detrimento dos jornais tradicionais. O jovem, antes de optar pela CNN ou pelo NY Times, corre atrás do que disse Stephen Colbert ou Jon Stewart. Essa crise de confiança se dá, também, pelo fato de que alguma massa crítica se liberta da passividade e começa a construir por si meios de informar. Teóricos têm taxado esse pessoal de “neojornalistas”. Ou seja, todo mundo pode produzir informação. Ademais, a rarefação da imprensa de opinião impele o leitor a buscar informação construtiva em outras jazidas. De outra parte, há o emburrecimento da cultura, através da já citada superficialidade na navegação e do vício no excesso de infoentretenimento. Além das pesquisas personalizadas, o que o especialista em tecnologias Eli Parisier chama de “filtros bolha”. A tela do computador

e dos smartphones se converte, cada dia mais, em um espelho. Buscamos, de forma manobrada, o que já temos e já sabemos: tudo proposto por algoritmos de ferramentas de busca. E, por fim, a realidade. Ah, a realidade… No Diário Pernambucano costumamos dizer que não há maior concorrente aos nossos esforços que a realidade. De modo que afirmamos erigir as notícias mais verossímeis que uma realidade absurda é capaz de produzir. CONTINENTE Qual seria, ou quais seriam, o(s) motivo(s) do sucesso desses periódicos de noticiário fake? RAPHAEL DOUGLAS TENÓRIO Sem dúvidas, as notícias satíricas possuem a capacidade de ter um impacto positivo sobre a audiência e as pesquisas citadas acima corroboram o que muitos jornalistas já têm em conta: a mídia tradicional, em suas diversas plataformas, vem se tornando cada vez menos fonte de consulta por parte de um público cuja formação é indissociável do ciberespaço e que busca informação no seio das mídias alternativas, na tentativa de evasão de fenômenos como

o sensacionalismo e a desinformação. O produto diverte, aguça o senso crítico e dá a possibilidade de enxergar um fato através de outras lentes, de outras perspectivas. O humor é uma das mais tradicionais formas na injeção de uma crítica e os nossos dias, miméticos e irônicos, logram terreno propício para a semeadura de toda sorte de infossátiras. A combinação de duas fórmulas atavicamente contra-hegemônicas, a sátira e o jornalismo, faz das notícias fakes um meio caminho entre a realidade construída pelo jornalismo de massa, o puramente objetivo e a farsa deliberada. Atuando entre entretenimento e contrainformação, esses sites vêm causando certa polêmica, ao confundir leitores e impelindo jornais tradicionais a publicarem erratas. No entanto, não se pode negar que essas falsas notícias, ao causarem um choque de perspectiva em meio às leituras cotidianas, encorajam a audiência a uma pausa reflexiva, ainda que por poucos segundos. Há, por fim, um divertimento especial dos leitores conscientes do objetivo das falsas notícias em trollar os desavisados. DÉBORA NASCIMENTO

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JOVECI C.DE FREITAS/AGÊNCIA ESTADO. FONTE: ESTADÃO CONTEÚDO

CON TI NEN TE

ESPECIAL

LINA BO BARDI Uma obra solidária

No centenário de nascimento da arquiteta italiana, seus projetos de maior destaque são lembrados como aqueles que promoveram “uma revolução contra o postiço”, como postulou o Movimento Antropofágico, com o qual ela se identificou ao chegar ao Brasil TEXTO Mariana Lacerda FOTOS Pio Figueiroa

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“Cada cidade tem seus aspectos

próprios, tem um lugarzinho onde todo mundo faz um pequeno esfregão no dedo de uma estátua, pedindo que seja feliz da vida. Aqui (em São Paulo) nós temos um outro fato, que é o Teatro Oficina (…).” Eis uma passagem do discurso de Aziz Ab’Saber, no dia 25 de janeiro de 2000. Sua fala era então dedicada ao teatro de José Celso Martinez Corrêa. Na ocasião, aniversário da capital, a companhia promovia mais um evento em defesa de seu patrimônio, um edifício-teatro projetado por Lina Bo Bardi cujo entorno é constantemente ameaçado pela brava especulação imobiliária paulista. Aziz Ab’Saber era um frequentador especial do Oficina. Foi ele, maior

LINA BO BARDI

A arquiteta, em 1988, na sua residência, no Morumbi, que ficou conhecida como Casa de Vidro

geógrafo brasileiro, falecido em 2012 aos 87 anos, o responsável pelo primeiro tombamento do lugar, em 1982, garantindo a proteção de 300 metros ao redor do teatro. À época, Ab’Saber estava à frente do Conselho Estadual de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico – o Condephaat. “Trata-se de um tombamento imaterial, pelo modo de fazer teatro que foi instituído nesse espaço”, explica a arquiteta Carila Matzenbacher, construtora de cena do Teatro Oficina. No período, o Oficina ainda funcionava num local projetado por Flávio Império (1935-1985) e Rodrigo Lefévre (19381984), que terminaram por apoiar que o lugar fosse reformulado a partir de um novo espaço planejado por Lina Bo Bardi e Edson Elito, entre 1980 e 1984. Foi igualmente Aziz que, em 2010, dirigiu-se ao Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional (Iphan) em favor do tombamento do teatro de Zé Celso e do lugar criado por Lina e Edson Elito. O parecer de tombamento, de 2010, assinala não somente os valores do edifício da Rua Jaceguay, nº 520, no bairro paulistano do Bixiga, mas também o testemunho que ele guarda em suas paredes e estruturas de ferro e vidro para a história do teatro no Brasil e no mundo. “Minha vida se viu confundida com este lugar que virou meu destino”, escreveu José Celso Martinez, em texto publicado no pequeno livro Lina Bo Bardi – Teatro Oficina (Editorial Blau/Instituto Lina Bo e P.M Bardi). Ele afirma que seu trabalho e a arquitetura de Lina se misturam. “Minha obra não seria a minha obra sem este espaço criado pela Lina”, declarou ele recentemente, no documentário holandês Precise poetry – Lina Bo Bardi’s architecture (2014), de Belinda Rukschcio. Na arquitetura de Lina (e Elito), o teatro é uma rua, uma passarela na Rua Jaceguay. As paredes envoltórias de tijolos da década de 1920 foram mantidas, os seus arcos romanos de embasamento continuam ao fundo. Uma cobertura deslizante (ar), um jardim (terra), um lugar para um espelho d’água. “Para o fogo, foi prevista uma

rede de gás que abastece um ponto no centro geométrico do teatro”, escreveu Elito sobre o teatro, pontuando os quatro elementos da natureza que marcam a arquitetura de Lina. “Os atores e as atrizes, os técnicos, o público, bem como todo equipamento ou objeto de cena ou não, fazem parte do espetáculo, comungam ou se contrapõem e não há como esconder nenhum deles. Todos participam da cena”, diz Elito em seu texto. A lateral do teatro é em pano de vidro, salvaguardada por uma árvore, que permite que a luz e a paisagem de fora incidam sobre o lugar e o que nele se encena. “Uma janela de vidro que nos faz dialogar com o lado de fora, o terreno, o Bixiga, o Minhocão. Quando a lua está na janela, ou quando a ventania entra pelas portas, nossa!, é de agradecer para sempre a Lina por ela ter-nos dado esse privilegio”, conta Nash Laila, atriz do Oficina há três anos. “O espaço é a nossa cena. Acho que depois que vivenciei um teatro de Lina fica impossível voltar para uma caixa preta”, conta ela. Lina Bo Bardi projetou o Oficina para ela, Nash, para Zé, para Aziz, para todos, até para os meninos e meninas sem teto da região do Bixiga, comumente convidados a participar de ações onde o teatro está localizado e é palco e interlocutor de um profundo debate acerca da urbanização da região, sempre sob ameaças dos megaempreendimentos que tanto assustam São Paulo. O Oficina ocupa um terreno pequenininho, pertencente ao governo do Estado de São Paulo. Porém, o seu entorno, que garante o cenário citado por Nash Laila, é um terreno grande, pertencente ao grupo Silvio Santos. O Oficina luta, há muitos anos, para fazer dali um Teatro de Estádio, cujo projeto dialoga com a revitalização da região e os principais preceitos da arquitetura de Lina, “que, desde sua chegada ao Brasil (em 1946), identifica-se intelectualmente com o projeto formulado pelo Movimento Antropofágico. Trata-se do que Oswald de Andrade chamou de ‘uma revolução contra o postiço, contra o inautêntico’, uma reação contra o brilho superficial da civilização que desvitaliza e destrói o próprio sentido

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da existência”, explica a arquiteta Olivia de Oliveira, professora da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora da obra de Lina Bo Bardi.

VÃO LIVRE

“Acima do Belvedere, no nível da Avenida Paulista, ergue-se o edifício do Museu de Arte de São Paulo. O edifício, de 70 metros de luz, cinco metros de balanço de cada lado, oito metros de pé direito livre de qualquer coluna, está apoiado sobre quatro pilares (…). Gostaria que lá fosse o povo, ver exposições ao ar livre e discutir”, escreveu Lina, em um de seus textos sobre o Masp, hoje publicado no livro Lina Bo Bardi (Empresa das Artes, Instituto Lina Bo e P.M.Bardi, 1993).

Apesar da proposta de uso popular, em 2013, cogitou-se cercar o Masp, para evitar manifestações e ocupações O povo foi e continua indo, todos os dias, ao vão livre do Masp. Ali, toda a gente está: para ler em solidão, para conversar, para iniciar ou encerrar uma manifestação, para fumar maconha, para dormir quando não se tem casa. O espaço projetado por Lina é, e sempre foi, palco para feiras públicas e exibições

de cinema da Mostra de São Paulo (e esses são apenas exemplos). Apesar disso, no dia 20 de novembro de 2013, o jornal O Estado de S. Paulo defendeu, em seu editorial, que o museu fosse cercado. O motivo: evitar que servisse de lugar para manifestações e para toda gente que ali passa a noite adormecida, entorpecida. Em um ano tão simbólico como o de 2013, em que o povo foi às ruas em defesa do que é publico, a administração do Masp cogitava cercar o espaço que Lina criou, inaugurado em 1968, em plena ditadura militar brasileira, justamente para que pessoas, sejam pobres ou ricas, jovens e velhas, pudessem se encontrar e, nesse encontro, mudar o curso da história.

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2 MASP O vão livre do museu foi pensado como espaço aberto ao público para os mais variados fins

queria eliminar a parede e o recurso imediato da legenda (que passou a ser apresentada no verso), restando apenas a obra e seu espectador, em uma “experiência da simplificação”, como ela mesma escreveu. “A notícia deve ser comemorada”, disse o pesquisador e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Renato Anelli, um dos diretores do Instituto Lina Bo e P.M Bardi, em São Paulo. Anelli, em um texto publicado logo após o anúncio da nova gestão do Masp (Lina Bo Bardi ganha presente de 100 anos, disponível no site Vitruvius), explica que o projeto expográfico pensado por Lina tem uma longa genealogia que remonta às vanguardas artísticas da década de 1920. “Os primeiros modos modernos de expor foram coerentes com a intenção de dissolver os limites do quadro para conquistar o espaço. Já em 1925, a Cidade no Espaço, de Friedrick Kiesler (arquiteto ucraniano, 18901965), fazia flutuar planos e objetos do pavilhão austríaco em Paris. Pouco mais tarde, em 1934, essa mesma estratégia já era usada por Edoardo Persico (19001936) em suas exposições em Milão, enquanto Pietro Maria Bardi destacava os quadros das paredes da sua Galleria d’Arte de Roma (1930-33)”, explica Anelli em seu texto. Não foi a primeira vez, nem a segunda ou terceira que o Masp foi ameaçado. Em setembro deste ano, a mudança de gestão realizada pelo museu trouxe de imediato aquela que foi comemorada como uma excelente notícia – e presente de aniversário pelo centenário de Lina. O novo diretor da instituição, Heitor Martins, anunciou, em entrevista coletiva à imprensa, que retomaria o uso dos cavaletes de vidro idealizados por Lina Bo Bardi enquanto suporte expositivo para obras de arte. Com base de concreto, essas estruturas transparentes estavam aposentadas desde os anos 1990. Foram projetadas por Lina para que dessem a sensação de que as obras flutuam no espaço. Com esse elemento, ela também

CAVALETES

Quando chegaram ao Brasil, em 1946, Anchillina Bo e Pietro Maria Bardi trouxeram essas e outras heranças. Pietro, colecionador e então já importante crítico de arte na Itália (onde editava a revista Quadrante), foi convidado por Assis Chateaubriand a dirigir o Museu de Arte de São Paulo, que funcionava na Rua 7 de Abril, centro da cidade, na sede do edifício dos Diários Associados. Lina desenhou as primeiras cadeiras do museu (Dobrável e Empilhável), que vieram a ser também o primeiro design moderno de móveis feito em São Paulo. Ali, ela também suspendeu obras de arte em placas de vidro,

quebrando limites entre estas e espaço. “Mas a radicalidade dessa operação só seria completada em 1968, com a inauguração da nova sede do Masp”, escreveu Anelli, refererindo-se aos cavaletes de vidro e concreto projetados por Lina e postos por ela na pinacoteca do Masp, na Avenida Paulista, prédio também envolto por panos de vidro. Ao longo do curso da história, contudo, a direção do museu abandonou os caveletes após a morte de Lina, em 1992, e o afastamento de Bardi que, então doente, faleceu em 1999. Os cavaletes desapareceram, assim como as laterais transparentes do edifício foram escondidas por paredes de alvenaria, que hoje sustentam obras de Renoir, Monet, Manet, Cézanne, ToulouseLautrec e Van Gogh, entre tantos outros nomes — numa das mais importantes coleções de arte da América Latina. Desapareceram assim importantes vestígios da “inflexível arte e arquitetura de Lina Bo Bardi, simultânea – solidária com o povo”, como escreveu o arquiteto holandês Aldo Van Eyck (1918-1999), no texto Um dom superlativo, no livro Museu de Arte de São Paulo. Amigo de Lina, conhecedor de sua obra, e um dos protagonistas do estruturalismo na arquitetura mundial, Aldo descreveu os cavaletes de Lina como algo fora do comum: “O que é anormal — neste caso à revelia, devido a seu caráter único – também é vulnerável, no sentido de que corre o risco de ser mudado ou desmantelado completamente, o que seria uma perda inominável”. Cavaletes que tiravam a importância da moldura do quadro e da parede para liberá-los unicamente à vivência de quem o olha: o público. Cavaletes marginais e, portanto, relegados ao porão do museu na Avenida Paulista, mas que muito agradaram ao arquiteto holandês Piers Gough que, ao reformar a National Portrait Gallery de Londres, dirigiu uma carta ao Instituto Lina Bo e P.M Bardi explicando que a proposta em expor “as pinturas sustentadas em paredes de vidro” recebeu “influência direta do projeto de Lina para o Masp”, conforme conta a pesquisadora Olivia de Oliveira, em seu livro Lina Bo Bardi – obra construída (Editora Gustavo Gilli, 2014). Tão logo foi anunciado que os cavaletes de vidro voltariam, o setor de atendimento ao público do Masp

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CON ESPECIAL TI NEN TE recebeu e-mails de visitantes festejando a iniciativa. No passado, Lina parece ter previsto o futuro. Sobre isso, em um de seus inúmeros escritos, ela anotou: “Acho o meu projeto de painel cavalete-cavalete da pinacoteca do Masp uma importante contribuição à museografia internacional. Os três mil visitantes do museu, aos sábados e domingos, o demonstram, contra uma dezena de queixosos”.

CIDADELA CULTURAL

“Entrando pela primeira vez na então fábrica abandonada de tambores da Pompeia, em 1976, o que me despertou curiosidade, em vista de uma eventual recuperação para transformar o local num centro de lazer, foram aqueles galpões distribuídos racionalmente conforme projetos ingleses do começo da industrialização europeia, nos meados do século 19. (...). Na segunda vez em que lá estive, um sábado, o ambiente era outro (...). Crianças corriam, jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caía dos telhados rachados, rindo com os chutes da bola na água. Mães preparavam churrasquinhos (...). Pensei: isso tudo deve continuar assim, com toda essa alegria.” Essas foram algumas das primeiras anotações de Lina sobre o seu projeto para o Sesc Pompeia, localizado no bairro de mesmo nome, nascido a partir da recuperação de uma antiga fábrica desativada, cujos espaços eram divididos por uma simpática ruela que, abandonada, fazia papel de praça numa cidade tão carente de espaços públicos de lazer. Importante dizer que Lina Bo Bardi fazia arquitetura também pela escrita. Na Itália, tinha sido editora de publicações importantes como a Domus e Quaderni di Domus. Antes de se mudar para o Brasil, lançou, ao lado de Bruno Zevi (1918-2000), a revista A – Cultura della Vita, pequeno, porém importante marco na historiografia da arquitetura mundial. No Brasil, escrevia para Habitat, um periódico que aos poucos dava vida ao Masp. Ao trabalhar, anotava e ilustrava o percurso de seu pensamento com croquis e aquarelas que, diariamente, instituíam a memória de seu processo criativo, formando, por fim, um rico acervo de anotações e desenhos (de

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“Antes de iniciar qualquer projeto, Lina imaginava as pessoas e o tipo de uso que fariam do espaço” André Vainer

objetos a projetos arquitetônicos) cujos originais compõem o patrimônio do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi. As reproduções desse material deixado por ela estão em exposições e livros dedicados à sua obra. “Antes de iniciar qualquer projeto, imaginava as pessoas e o tipo de uso que fariam daquele espaço. A forma era o

que menos importava. Interessava como os usuários iriam se locomover, se sentar, se relacionar. E isso ela anotava”, explica o arquiteto André Vainer, integrante da equipe de Lina na concepção e execução do projeto do Sesc Pompeia, iniciado em 1977 e inaugurado em 1986. “A ideia inicial de recuperação do dito Conjunto foi a de ‘Arquitetura Pobre’, isto é, não no sentido de indigência, mas no sentido artesanal que exprime Comunicação e Dignidade máxima através dos menores e humildes meios”, anotou Lina. Foi assim que os galpões da antiga fábrica tornaram-se áreas expositivas, refeitório (que, à noite, transforma-se em local para shows), biblioteca. Novamente, como no Teatro Oficina,

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3 SESC POMPEIA Das passarelas que ligam dois edifícios se tem vista privilegiada da cidade 4 TEATRO OFICINA Projetado por Lina e Edson Elito, nos anos 1980, prédio tem estrutura de rua, de corredor

Lina trouxe para os espaços do Sesc elementos da natureza: o fogo (em uma lareira) e a água, em um espelho d’água que serpenteia um dos espaços expositivos e é chamado de Rio São Francisco. Esse “rio” homenageia o povo nordestino, que ela tanto admirava e conhecia, por meio de suas experiências na Bahia, quando lá esteve numa temporada para reforma do Solar do Unhão (1959-1963), que se desdobraria em outras intervenções feitas por Lina em Salvador. Ao decidir manter os galpões da fábrica, o que restava disponível do terreno era uma longa faixa, também estreita, que ligava a um outro terreno, então disponível. Nessa faixa estreita, Lina criou um aespécie de corredor que

Os quatro elementos da natureza (terra, ar, água e fogo) são marcas da arquitetura de Lina, que aparecem de formas diversas

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remete a uma pequena praia, tratava-se de um deck para se tomar sol. Ao fim dele, ela projetou dois edifícios robustos (“pensei na maravilhosa arquitetura dos fortes militares brasileiros, perdidos perto do mar”), que abrigam piscinas e quadras poliesportivas. Os dois prédios são ligados (“se abraçam”, escreveu ela) por passarelas suspensas

de concreto protendido, de onde se tem vista privilegiada, livre, da cidade. As fendas nas fachadas nas quadras, sem vidro, sem nada, permitem a ventilação e são heranças, na obra de Lina, de uma narrativa pessoal daquela que viu a guerra de perto. “Lina Bo Bardi chamou o conjunto do Sesc de Cidadela Cultural. Para ela, a palavra cidadela tem um duplo sentido e significa tanto fortaleza para defesa quanto lugar de ataque”, diz Olivia de Oliveira. Defesa contra a opressão, em tempos de pragmatismo, desconfiança e cautela, em um Brasil que ensaiava uma abertura política. Para o Sesc Pompeia, Lina pensou das estruturas físicas às roupas dos funcionários e o cardápio do restaurante. Tudo de modo que dignificasse e alegrasse as pessoas, trazendo para perto, muito perto, referências do povo, em particular do Nordeste. Tinha uma intenção: aproximar diferenças, eliminá-las. Tornar todos iguais – respeitando diferenças. Ela conseguiu e não há uma só pessoa que conheça o Sesc Pompeia que não o tenha como um espaço especial na imensa São Paulo. “Ela fez dali uma pequena experiência socialista, em seu sonho de mundo livre, entre pessoas iguais”, diz André Vainer que, ao lado do arquiteto Marcelo Ferraz, assina a curadoria da exposição Lina política, em cartaz até 14 de dezembro no próprio Pompeia – uma homenagem à arquiteta que ali imprimiu o sonho de uma sociedade mais justa, igualitária, que caminha em direção ao futuro levando consigo as referências importantes e simbólicas do passado. “Sua obra possui uma dimensão civilizatória, humanista, ética, simbólica e crítica, também comum a uma geração de arquitetos e artistas latino-americanos que consideravam importante repensar eticamente os ideais modernos em sua relação com o passado e a tradição popular”, diz Olivia de Oliveira. Eis os traços mais profundos do modo de pensar, escrever e fazer arquitetura de Lina Bo Bardi.

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FOTOS: PIO FIGUEIROA

PROPOSTAS Para se comunicar com as pessoas

Lina Bo Bardi dedicou-se a diversas atividades, do design de objetos a projetos urbanísticos, todos preocupados com a interação com o público

“Eu nunca quis ser jovem. O que eu queria era ter história. Com 25 anos, queria escrever memórias, mas não tinha matéria.” Em seu “currículo literário”, um texto que reúne anotações biográficas (publicado no livro Lina Bo Bardi — São Paulo, Instituto Lina Bo e P.M Bardi, 1993), ela narra o seu percurso. “Meu anjo da guarda foi um soldado”, conta. De pulso forte, Achillina di Enrico Bo Bardi, nascida no dia 5 de dezembro de 1914, gostava de trabalhar no próprio canteiro de obras e de se comunicar diretamente com toda a gente. Preferia os croquis às plantas arquitetônicas, pois isso a ajudava na comunicação. “Trabalho total das oito da manhã até meia-noite, sábados e domingos

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incluídos. O trabalho: desde o design de xícaras e cadeiras, desde a moda, isto é, roupas, até projetos urbanísticos (…)”, anotou ela, que, ao longo de sua trajetória, também assinou arquiteturas cênicas para peças teatrais, como Na selva das cidades (1969), direção de José Celso Martinez, amigo a quem Lina foi apresentada por Glauber Rocha. Em 1946, veio o casamento com Pietro Maria Bardi, “admirador desde meninasoquete no tempo do Liceu Artístico de Roma”. No mesmo ano, a partida de uma Itália em ruínas. “A chegada no Rio de Janeiro, de navio, em outubro. Deslumbre. Para quem chegava pelo mar, o Ministério da Educação e Saúde (Lúcio Costa, 1945) avançava como um grande navio branco e azul contra o céu. (…). Me

senti em um país inimaginável, onde tudo era possível”, anotou Lina que, em 1951, naturalizou-se brasileira. Lina e Pietro escolheram São Paulo como morada (Pietro foi convidado para dirigir o Museu de Arte de São Paulo). Em um bairro chamado Morumbi, ainda bastante inabitado, os dois construíram sua residência em 1951, uma casa suspensa no ar – apesar de sustentada por colunas de ferro e envolta por painéis transparentes, que fizeram com que moradores populares da região a chamasse de Casa de Vidro (tombada em 2007 pelo Iphan). Aquele que está dentro da casa vivencia o seu entorno (a natureza), e vice-versa. Nela, “estamos muito próximos da ideia lecorbusiana de ‘o exterior é sempre um interior’, escreveu a pesquisadora Olivia de Oliveira, em seu livro Lina Bo Bardi – obra construída (editora Gustavo Gilli, 2014). E lá estão, logo na entrada da Casa de Vidro, as pedrinhas incrustadas em pisos e muros, marca singela de Lina (“O meu amor pelo Brasil acordou de forma potente o meu amor pelas pedras”, escreveu ela), que compõem alguns de seus projetos, entre eles o do Sesc Pompeia. “Lina dizia que toda pedra é preciosa”, conta André Vainer, arquiteto que trabalhou ao seu lado. A Casa de Vidro, por meio do Instituto Lina Bo e Pietro M.Bardi, é a guardiã de seu acervo. Visitá-la é encontrar o olhar e a história de Lina em suas coisas, pequenas e grandes, que ela recolheu pelo mundo ou criou, moldou, ao longo de sua trajetória. Logo na entrada da casa, está a Cadeira de Beira de Estrada (1967), composta por toras de madeiras amarradas com

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CASA DE VIDRO

Erguida em 1951, numa área até então pouco habitada, é sustentada por colunas de ferro e envolta por painéis transparentes

cipó. Lina acreditava e defendia que o design brasileiro deveria nascer também a partir de nossas expressões mais simbólicas. “Antes de enfrentar o problema industrial do design em si mesmo, você tem que enquadrá-lo dentro de um contexto sociopolíticoeconômico, na estrutura do lugar, do país, no caso, o Brasil”, anotou. Nesse sentido, foram pensados muitos dos móveis projetados por Lina e atualmente expostos na Casa de Vidro, na mostra Mobiliário de Lina Bo Bardi, tempos pioneiros, com curadoria de Sergio Campos e em cartaz até 6 de dezembro. Em suas criações em mobiliário, Lina prezava pelos materiais simples, em comunicação com a cultura local, como uma lona de rede, por exemplo, presente na Cadeira tripé (1948), ou a Cadeira conduíte (1949), que utiliza tubulações de ferro, usadas em sistemas elétricos em sua estrutura. Com seus móveis, Lina termina por inaugurar o design moderno de mobiliário no Brasil, indo além dele, “pois suas referências são cada vez mais profundas”, diz Sergio Campos. Segundo ele, sua forma de criar e entender mobiliário influenciará de forma determinante a história do design brasileiro, espelhando-se no trabalho de designers referenciais de móveis do país: José Zanini Caldas (1919–2001), Geraldo de Barros (1923–1998) e Sérgio Rodrigues (1927–2014).

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DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

História

BIOGRAFIA Os escritos de Santiago 1

As 25 mil páginas deixadas pelo antigo mordomo da família Moreira Salles foram todas lidas por pesquisadora que pretende escrever sobre ele TEXTO Laís Araújo

Era meia-noite, 20 de novembro de um ano impreciso, no Bairro da Gávea, Rio de Janeiro: enquanto limpa porcelanas da casa, Santiago é chamado pelo chefe dos garçons à mesa com cerca de 60 convidados, todos chiques, visitas da Europa. Vai, sem compreender o motivo, e é surpreendido por um pedido geral de silêncio da senhora, sua patroa, que avisa aos presentes sobre o aniversário do mordomo. Brindam com taças do champanhe Laurent-Perrier. Ele, que havia abdicado de uma viagem de férias para zelar pelo jantar importante, bebe junto e vive um momento maravilhoso, que descreve posteriormente – enquadrado a distância em escalas de cinza no documentário Santiago – como o melhor presente possível. Dois mil e doze, aniversário de 100 anos de Santiago, Nova Jersey, EUA: passados oito anos de sua morte, uma pequena e elegante festa acontece em sua homenagem numa sala com janelas

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espetáculos, das grandes festas de gala. Não dava para tentar rivalizar, mas eu tinha que fazer algum gesto para marcar o momento. Senti que ele teria gostado”, conta Flora, hoje com 22 anos, botafoguense doente e forte sotaque carioca, apesar de ter nascido numa pequena cidade da Virgínia. A improbabilidade geográfica não foi forte o suficiente para ganhar da série de episódios que levou Flora a se tornar a única pessoa a ter lido as cerca de 25 mil páginas deixadas por Santiago Bardariotti Merlo, todas catalogadas com cuidado e amarradas com uma fita vermelha. Conhecido por ser, pelo menos a princípio, protagonista do documentário Santiago, que João Moreira Salles levou 13 anos para finalizar, ele chegou a Flora também no formato audiovisual, durante uma exibição do filme numa cadeira na universidade. A primeira impressão que ela teve foi a de que o mordomo parecia um personagem de

Quando a norteamericana viu Santiago no filme, logo o associou a um personagem de Borges medievais da Universidade de Princeton. Organizado por Flora Thomson-Devaux, tudo é detalhadamente pensado para o evento: ela, que além de usar salto alto e xale sobre os ombros, encomendou um arranjo de flores tropical, porém discreto para a ocasião, convida três amigos, que sabiam do seu afeto por Santiago, para celebrar a data. Leem trechos do Inferno de Dante, poemas de Carlos Drummond e Jorge Luis Borges, escutam Bach, e bebem Laurent-Perrier (num gesto sensível e ilegal, já que Flora, com menos de 21 anos, não poderia beber em solo estadunidense). O único deslize da noite, porém, são as taças. Na indisponibilidade das corretas, os amigos bebem o champanhe francês que ele adorava em taças de vinho, detalhe indiferente para muitos, mas que nunca aconteceria numa festa sob a responsabilidade de Santiago. “Senti que tudo era insuficiente, porque Santiago era o mestre dos

Borges, alguém como Ireneo Funes, homem um tanto infortunado que tomba de um cavalo não domado e perde a memória temporariamente, descobrindo-se paralítico ao recuperála, mas conseguindo, a partir desse momento, enumerar todos os desapercebidos detalhes de suas lembranças, em diversas línguas, que aprende sem esforço algum. Santiago, que rezava em latim, deixou suas páginas escritas em português, inglês, italiano, espanhol e francês. Foram Carmen Miranda e a imprecisão do Google Tradutor que fizeram Flora estreitar sua relação com a língua portuguesa, com o Brasil e com Santiago, por consequência: uma amiga de sua irmã traduzia a biografia de Carmen assinada por Ruy Castro com a ajuda do serviço online e Flora sentiu que poderia fazer um trabalho melhor que o do site. Foi contratada e levou a tradução adiante, a partir do capítulo 26. “Traduzir

o livro foi apaixonante, intoxicante, tanto quanto descobrir a geração de ouro dos anos 1920 e 1930 da música brasileira”, conta. Imersa na língua e na cultura, decidiu estudar por um ano no Brasil e na Argentina, causando choque em alguns amigos e familiares, que não compreendiam a razão para se afastar da prestigiada Universidade de Princeton. Ela veio ao país em 2011, começando pelo Rio de Janeiro. Havia conhecido João Moreira Salles no seu segundo ano da faculdade, quando ele ministrou uma aula sobre Ética da Representação. Sabendo que Flora iria para a cidade, sugeriu que suas pesquisas fossem realizadas no Instituto Moreira Salles (IMS), a casa da Gávea onde sua família morou e que Santiago considerava ser o Palácio Pitti, de Florença. A casa, que antes existia em preto e branco na sua mente, virou parte da sua rotina, assim como o registro de suas impressões sobre o Rio de Janeiro. Flora passou a escrever no blog Questões estrangeiras, da revista Piauí, e pautou a imprensa carioca com suas opiniões: ao escrever que a PUC lembrava o Ensino Médio, porque quase ninguém parecia querer estar ali, viu sua impressão virar matéria sobre a qualidade do ensino privado; ao fazer um breve comentário sobre o personagem brasileiro do filme A pele que habito, recebeu de resposta uma coluna de Caetano Veloso, que conversou com Pedro Almodóvar, o diretor, para complementar seu pensamento. Ela passou seis meses no Rio, onde viu nascer tímido e crescer barulhento seu amor pelo Botafogo, experienciou o ritmo caótico da cidade, conviveu com Eduardo Coutinho, provou todo tipo de suco de fruta. Foi para Buenos Aires – “uma cidade linda e cinza, mas que não é o Rio de Janeiro” – onde decidiu cometer a autoproclamada maior loucura de sua vida acadêmica: matou uma semana de aula para voltar ao Rio e viver o Carnaval. E foi em Santa Teresa que, num daqueles momentos epifânicos, escolheu o tema de sua monografia: investigar a fundo Santiago e seus papéis nunca lidos – todos disponíveis no IMS, onde, entre outras, pesquisava as músicas de Carmen Miranda e Noel Rosa que, naquele dia, ouvia sendo tocadas nas ruas do Rio pela primeira vez. Meses depois,

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FLORA THOMPSON-DEVAUX/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

História

encontraria nos escritos de Santiago que o Rio de Janeiro parecia uma “lata de lixo grandiosa” durante o Carnaval.

WIKIPÉDIA ANALÓGICA

Voltou para a Argentina após a Quartafeira de Cinzas, mas, com a certeza do que queria estudar, retornou ao Rio em junho de 2012, para consultar os papéis datilografados no IMS. Numa experiência imersiva, mergulhou nas caixas fora de ordem e iniciou sua pesquisa, lendo os papéis em francês, língua que não dominava. “João (Moreira Salles) não achava que haveria interesse, pois Santiago era um homem que transcrevia, que organizava os livros dos outros. Poderia ser considerado uma wikipédia analógica muito particular,

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uma enciclopédia caseira de cinco idiomas. Lendo todo aquele material, percebi que tinha uma visão de Santiago muito parecida com a posição do autor dentro da crítica literária: ele era um ser abstrato, construído pelo seu texto, pelo que escrevia. Faltava a ele uma biografia, e eu sentia um grande vazio. Não era somente sua obra que eu buscava agora, eu pretendia conhecê-lo.” E o personagem de João Moreira Salles (a quem chamava de Joãozinho) sugeria ser um autor para além da cópia, no documentário a seu respeito. No filme, Santiago logo apresenta sua “velha metralhadora”, a máquina de escrever Remington na qual, por 40 anos, escreveu todos os seus abortos mentais. Num deles, escolhido por Flora como um

de seus preferidos, ele se descreve como um “vendedor de partículas de ilusão, com abortos mentais que o perseguem pela madrugada como fogos-fátuos, que torturam e tiram a paz do espírito, causam insônia e também a impressão de que se é rei de um país inabitado”. Mordomo da família Moreira Salles e escritor desconhecido, que catalogou o comportamento e as tragédias de 500 dinastias, Santiago Badariotti Merlo era filho de imigrantes italianos, nascido em 1912, em uma pequena cidade rural chamada Sunchales, na Argentina. Serviu presidentes e embaixadores pela América, gostava de castanholas e de Beethoven, nutria respeito e admiração pela aristocracia que pesquisava e pelas famílias para quem trabalhou, mas era igualmente crítico delas (o que ele quase não transparece no filme, comportamento que Flora credita à noção de respeito que conservava, sobretudo por João – “nunca por falsidade”). “Ele ficou com os Moreira Salles por 30 anos, admirava-os muito e se dava muito bem com a família. Mas, em consequência disso, as pessoas veem o Santiago do filme como o mordomo que idolatrava as famílias ricas e nobres. Não é o caso”, afirma a pesquisadora. “Ele tinha uma crítica muito áspera a certas famílias para quem trabalhou: comenta sobre os diplomatas pomposos que depois escrevem suas inúteis memórias, sobre as famílias que não liam os livros dos quais ele tirava poeira, sobre as que guardavam para si obras-primas que mereciam estar em museus, e ele se indignava porque o povo não podia vê-las. Ele sabia que não teria tido acesso, se não fosse mordomo.” Entre as críticas, com uma escrita que privilegia a caracterização à descrição de incidentes específicos, “Santiago sempre pede perdão, sempre se desculpa”. No documentário, numa passagem dolorosa, difícil de assistir, Santiago repete, entre ordens da equipe e barulho de claquete, uma frase de Bergman que recorda sempre: “Somos mortos insepultos, apodrecendo debaixo de um céu cruel e completamente vazio”. Alguém que pensava muito na morte e com uma dependência acentuada da vida que guardava na memória, o argentino se referia ao apartamento no Leblon, locação dos enquadramentos

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REPRODUÇÃO

inspirados em Yasujiro Ozu e onde passou seus últimos anos de vida, como “seu túmulo” (não por acaso, referia-se à realização da obra como seu próprio embalsamamento). Edvaldo Caveari, amigo de Santiago, por tempo breve copeiro da casa da Gávea, e também funcionário do escritório do embaixador (localizado num edifício na Glória, onde hoje funcionam a Piauí e a Videofilmes), cuidou dele em seus últimos meses de vida e herdou tudo o que deixou. Flora foi até ele, numa cidade interiorana de 10 mil habitantes chamada Aperibé. Gratos pelo interesse de uma norte-americana pela pilha de coisas que se empoeirava na garagem, ele e esposa levaram a pesquisadora aos cerca de 300 títulos pertencentes a Santiago, metodicamente catalogados com localização, data e, por vezes, a fita vermelha, o que ajudou na construção da narrativa sobre a sua vida. Ajudou num entendimento melhor da sua personalidade também: Edvaldo contou que Santiago o ensinou a se manter invisível, a não se manifestar e também a pôr em ordem as coisas na mesa. Mas, ao notar que ele tinha aprendido bem demais, o mordomo vez ou outra entrava enciumado numa sala recém-arrumada e invertia os talheres para que seu trabalho não ficasse tão perfeito assim.

QUEBRA DE PÁGINA

“Era inverno na Patagônia e o aeroporto já estava para fechar. Estava com minha malinha e com o livro Guerra e paz, porque demora uma eternidade para ser lido e isso traz algum conforto. Mas estava muito frio. Achei que ela havia desistido e não queria mais falar comigo”, conta Flora, sobre o dia em que foi ao encontro de uma sobrinha de Santiago perto das cordilheiras andinas. Era agosto de 2013 e a pesquisa na América do Sul, interrompida pelo fim de intercâmbio pouco depois da ida a Aperibé, retornava com o apoio de Princeton (numa reunião com nove reitores, Flora levou as castanholas de Santiago e explicou a importância e a pressa de coletar informações, antes que pessoas morressem e papéis se rasgassem, convencendo a Universidade de que, entre todas as outras propostas, era a pesquisa sobre a vida dele que trazia mais mérito e experiência pessoal

Página anterior 1 DOCUMENTÁRIO

Flora “encontrou” o seu personagem no filme de João Moreira Salles

Nestas páginas 2 ESCRITOS

Os conjuntos de textos foram cuidadosamente empacotados pelo autor

3 JUVENTUDE Foto de Santiago foi encontrada pela pesquisadora em seus percursos

Para encontrar fontes para a pesquisa, Flora seguiu vestígios e anotações em fotografias, em nomes rabiscados à proponente: ganhou a bolsa para prosseguir). Antes de sair do Rio, fez “ligações deselegantes” para cidades argentinas, procurando pessoas com o sobrenome Bandariotti Merlo ou com alguma conexão com os nomes rabiscados e fotografias que achava pelo caminho. Uma delas, por sorte, encontrou. Entre as coisas que Edvaldo guardava estavam um diário empoeirado e uma fotografia de casamento com o nome Pirucha – que, após investigação, descobriu chamar-se Haydée –, que atendeu sua ligação. A espera no aeroporto foi causada por uma confusão com datas e, no outro dia – brava consigo mesma e emocionada pelo encontro –, Pirucha estava lá, levando a pesquisadora em

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direção à sua casa na pequena cidade de Las Lajas, na província de Neuquén, quase nos Andes. Narrando o episódio, Flora faz uma descrição poética do local: “Era tão deslumbrante, que parecia ficção, aquelas montanhas arrogantes, quase transparentes, de tão celestiais. E a Patagônia parecia que já tinha sido o fundo do mar, planícies infinitas e secas, com uma poeira macia”. Na casa, junto a quatro sobrinhosnetos de Santiago, estavam seus discos de samba, livros, retratos e suas memórias, intituladas Scherzado ou Autobiografía breve y grotezca con varios tiempos que, sin ser de Beethoven filosofa Sinfonía, tiene ciertos “movimientos” de una enigmatica fiesta... São as memórias de um homem singular, com relatos da Buenos Aires dos anos 1930, das famílias para quem lá trabalhou, e da cidade do México, a partir de 1945, onde se empregou na embaixada americana e teve os anos (que descreveu para os amigos próximos e para si) como os mais felizes de sua vida. “Santiago era, ao mesmo tempo, uma pessoa viva e ativa e um homem pós-moderno, de opiniões fortes e atividades mentais frenéticas,

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FLORA THOMPSON-DEVAUX/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

História

4 AUTORRETRATO Flora Thomson-Devaux registrou sua imagem junto às madonas caras a Santiago

mas achou seus vestígios. “Tentei recuperar o encanto que ele sentia pelos lugares, fui a palácios, museus, igrejas. Não posso conhecer quem Santiago conheceu tal como era antes. Mas posso parar em frente às madonas que ele adorava e elas estão iguais. Me posicionar em frente a obras e ver o que Santiago via também. Fico com um pé atrás de dizer isso, porque parece um misticismo desnecessário por alguém que foi uma pessoal normal, como você ou eu. Mas é emocionante, porque eu estava procurando contato. Tudo é uma tentativa de compreensão.”

PRODUTOS DE PESQUISA

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que acabou por se fechar nos livros. O México foi onde ele viveu mais fora do papel”, afirma Flora. Da felicidade documentada entre narrativas sobre a vertiginosa capital mexicana, ele passa ao tom triste e fúnebre, em 1951, ao seguir para a embaixada brasileira em Washington, nos Estados Unidos, onde dizia ver um morto a cada esquina. Sentia-se num local frio e isolado, e viveu essa pequena morte traduzindo livros e escrevendo uma crônica sobre a própria vida: uma prosa com rimas internas, como um poema épico da própria existência. Flora tentou não romantizar o material que encontrou, mas sentiu dificuldades. Santiago havia deixado muitas coisas belas escritas, entre elas, a descrição da própria sexualidade. Na cena-chave do documentário de João Moreira Salles, Santiago pede que Joãozinho escute um segredo que guarda sobre ser parte de um grupo de seres malditos, mas a câmera é desligada. “Há uma descrição em que Santiago conta como se deu conta de que era gay, o que chama de tremendo destino. Ele se referia a si mesmo como maldito, e diz que havia sido escolhido por Deus para ser um menino gay, que gostava de

ópera, de Dante e de dinastias europeias, na pequena cidade de Sunchales no interior argentino, com 3 mil habitantes, praticamente uma aldeia na época.” Nos seus escritos pessoais, muitas vezes rasurava o que havia escrito e trocava nomes masculinos por femininos. Os Estados Unidos foram o último país onde trabalhou antes de seguir para a Casa da Gávea dos Moreira Salles, no Rio de Janeiro. “Sobre a família não deixou nada escrito, mas ele admirava imensamente e se dava muito bem com o embaixador (Walther Salles), tanto que escolheu trabalhar para ele e topou ir pra outro país. Elisa (Gonçalves) dizia que Santiago fazia os arranjos de flores mais lindos que viu na vida. Amava os meninos, João sobretudo”, relata Flora. Entre as muitas peculiaridades que ela descobriu enquanto seguia o caminho de Santiago, estava o seu hábito de distribuir alguns “abortos mentais” em papeizinhos, páginas com pequenos poemas e parágrafos bizarros, em especial nos seus últimos anos de vida, quando já saía pouco de casa. No México, para onde Flora também viajou atrás de suas histórias, mas teve resultados infrutíferos, ela não encontrou a cidade que Santiago amava,

É do México o grupo de realizadores que fez um documentário sobre a pesquisa de Flora, a ser lançado em breve. Com o cuidado de preservar a memória do homem que se tornou conhecido a partir do exercício autocrítico de João Moreira Salles, Flora digitalizou todos os seus escritos e atualmente estuda a melhor forma de levar a público as produções e a história de Santiago. “Temos falado da possibilidade de uma exposição sobre ele, embora nada tenha se concretizado. Mas seria um desperdício não disponibilizar.” Nos Estados Unidos, atualmente Flora dá andamento ao seu doutorado (ela faz 23 anos neste dezembro, é válido ressaltar) e pensa em retornar ao Rio de Janeiro no começo de 2015, para realizar mais entrevistas e coordenar a transferência dos livros do argentino para o Instituto Moreira Salles. A biografia que escreve sobre Santiago ainda não tem data para ser finalizada e seu título flutua entre duas opções (que ainda não agradam totalmente à autora): La danza de las marionetas, o título que Santiago queria dar ao seu próprio livro de reflexões, ou The many deaths and singular life of Santiago Badariotti Merlo, autoexplicativo e preciso. Num trecho do documentário a seu respeito, Santiago se pergunta para quem irá tudo aquilo que deixou escrito (“que fiz com tanto carinho, tanto amor”) e afirma que, se não for para alguém que realmente goste dos seus papéis, que tudo se queime. Parece não haver esse risco.

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SUPERSTIÇÕES Gestos arraigados do nosso cotidiano

Por séculos desprezadas pela ciência, devido à “irracionalidade”, crendices atraem especialistas de várias áreas do conhecimento, por estarem na essência do homem, expressando sonhos e medos TEXTO Gilson Oliveira ILUSTRAÇÕES Jarbas Domingos

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CON TI NEN TE

Tradição

Comer lentilha, sim, pois ela tem um formato que lembra o da moeda e, consumida ao romper o Anonovo, pode trazer fartura nos 365 dias seguintes. Para quem está a fim de correr o mundo, uma fórmula é batata: andar pela casa com uma mala de viagem. Agora, se o objetivo é afastar azar, olho-gordo e maus espíritos, o melhor é, durante a queima dos fogos, gritar ou tocar um sino. Embora a diferença entre o dia 31 de dezembro e o 1º de janeiro seja apenas uma baita ressaca, essa transição temporal tem irresistível simbolismo e proporciona ao ser humano a perspectiva de renovação da existência, como diz a frase “Anonovo, vida nova!”. A hora da virada

Para Monique Augras, a superstição é a crença sobre relações de causa e efeito contrárias à ciência e à racionalidade é, portanto, o momento de reflexão sobre o ano que passou e, claro, de elaborar listas de metas: este ano, farei as pazes com a balança, economizarei para comprar aquele apartamento… Difícil mesmo é colocar a coisa em prática… Então, para que os 12 meses que vêm pela frente constituam realmente um “ano da graça”, é

bom, como muitos pregam, alguns cuidados adicionais na chegada dele. Exemplos: usar cueca ou calcinha nova (principalmente quem está começando um namoro); deitar e rolar na carne de porco (animal que fuça para a frente, o que significa avanço e prosperidade); e consultar numerólogos (a propósito, o ano de 2015 será regido pelo número 8, que é simbolizado pela rosa, cor que trabalha a afetividade). O réveillon é, realmente, um período em que as superstições também fazem a festa, com participação, inclusive, de muitos que dizem não crer nelas. Acreditar, não acredito, mas, por via das dúvidas… Na verdade, em maior ou menor grau, o homem sempre foi e será supersticioso, como dizem

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O GATO PRETO CRUZOU A ESTRADA… Tradicionalmente associadas ao sobrenatural, as superstições possuem causas naturais. E, embora estejam expostas a mecanismos de propagação que misturam realidade e fantasia, elas têm sua origem situada no tempo e no espaço. Pelo menos é o que, paradoxalmente, também diz a tradição. Caso da crença, muito presente no século 21, de que cruzar com gato preto dá azar. Pelo que se conta, ela tem início na Idade Média, quando, devido à cor e aos seus hábitos noturnos, esses animais eram vistos como filhos das tr evas. Tal crendice ganhou tanta força, que a Inquisição mandou muitos bichanos para a fogueira. Outras antigas superstições fazem parte do nosso cotidiano: 1) a crença de que dá azar abrir guarda-chuva dentro de casa – diz o cientista Charles Panati que tudo começou na Inglaterra vitoriana, quando esses objetos tornaram-se metálicos e deixá-los abertos em certos ambientes podiam ferir alguém; 2) atribuir sorte à ferradura – para os gregos, isso acontecia porque o ferro protege contra todo mal e, além disso, tem o formato de lua crescente, símbolo de fertilidade e prosperidade; e 3) que espelho quebrado dá sete anos de azar – os romanos acreditavam que a saúde das pessoas mudava a cada sete anos e olhar-se no espelho quebrado, por distorcer a imagem, atraía doenças por igual período de tempo.

especialistas, a exemplo da psicóloga francesa Monique Augras, para quem a superstição – crença sobre relações de causa e efeito contrárias à ciência e à racionalidade – não resulta de ignorância e de falta de informação. Como exemplo disso, Augras cita o cientista Niels Bohr, Prêmio Nobel de Física em 1922, cuja casa tinha uma ferradura na porta de entrada.

ATÉ TU, SIGMUND!

O que não falta, no Brasil e no mundo, é gente que ficou famosa também por suas manias. Embora considerasse a superstição similar à neurose obsessiva (caracterizada por ideias fixas, receios injustificados e atos compulsivos), Sigmund Freud, o “pai

da psicanálise”, uma vez surpreendeu Salvador Dalí ao dizer, após ter sua imagem pintada pelo espanhol: “Este retrato preconiza minha morte próxima”. Tempos depois, Dalí daria detalhes do encontro: “Quando tive a honra de conhecer Sigmund Freud, ele me explicou que as superstições possuíam um fundamento erótico e eficaz junto às forças ocultas. Desde então, mergulho cada vez mais profundamente na superstição. Carrego comigo um pedaço de madeira, que nunca me deixa”. O que se pode deduzir de vários registros é que Freud era um cientista, mas Sigmund, um supersticioso como qualquer ser humano. Uma das obsessões era a data de sua morte,

reforçada depois que conheceu, em 1894, a teoria dos números mágicos, criada pelo médico Wilhelm Fliess. A partir daí, começou a dizer que morreria em 1906, previsão revista em 1907, quando escreveu uma carta ao psicanalista Sándor Ferenczi, com nova data: 1910. Viveria mais 29 anos! Na área da música, um caso em que as manias se tornaram tão famosas quanto o artista, é o de Roberto Carlos. Entre outras coisas, por não usar preto ou marrom, nem sentar na poltrona 13 do avião. Na Fórmula 1, uma das poles positions é Felipe Massa, que costuma usar, enquanto o tecido resistir, a mesma cueca em todas as corridas e treinos. Na área política, o ex-candidato à presidência dos EUA, John McCain, foi eleito grande supersticioso, quando o jornal Psychological Science revelou que, na campanha de 2008, ele carregava sempre 31 centavos (13 ao contrário) no bolso. O que não evitou que o eleito para presidente fosse Barack Obama.

PENSAMENTO MÁGICO

A afirmativa de Monique Augras de que as superstições nada têm a ver com o subdesenvolvimento ganhou apoio científico em uma pesquisa realizada na Inglaterra – país detentor de um dos maiores IDH do mundo –, a qual demonstra que a ascensão social e cultural do ser humano não diminui o chamado “pensamento mágico”. Segundo o estudo, que consultou duas mil pessoas, a maioria afirmou ter algum tipo de ação para atrair a sorte e afastar o azar. Duas das mais comuns, encontráveis em quase todo o mundo, são: bater na madeira para afastar a má sorte (as árvores são a morada dos deuses, de acordo com a cultura celta) e nunca passar debaixo de uma escada (ela é a imagem da subida, da ascensão social, e passar por baixo é renunciar a isso). No Brasil, um dos intelectuais que mais se interessaram pelo tema foi Kurt Kloetzel, autor do livro O que é superstição, no qual diz: “Embora a superstição possa nos fazer mal, ela é muitíssimo necessária, porque responde à nossa necessidade de segurança. Não é por coincidência que justamente o campo da saúde e da doença, onde nosso desamparo se

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CON TI NEN TE

Tradição SEXTA-FEIRA, 13 DE AGOSTO! O número 13 se torna mais temível quando ligado à sexta-feira, crendice atribuída aos cristãos, devido ao fato de Jesus Cristo ter sido crucificado nesse dia, além de que, na última ceia, havia 13 pessoas à mesa. Na mitologia nórdica, a culpa do numeral estigma é de Friga, que, junto com mais 11 feiticeiras e o demônio – num total de 13 participantes –, usava as sextas-feiras para lançar pragas contra a humanidade. Mas existem os empenhados em melhorar a imagem do número. Para isso, usaram “dados” sobre o compositor Richard Wagner, que nasceu em 1813. Ele compôs 13 óperas e a primeira delas estreou em 13 de setembro de 1837. Concluiu a Tannhäuser em 13 de abril de 1860, e foi depois da apresentação em 13 de maio de 1865 que a obra ganhou o mundo. Como nos EUA a superstição do 13 é das fortes – existe até edifício em que os andares pulam do 12º para o 14º –, um grupo de pessoas criou o Triskedecafobia (Fobia do Número 13), clube voltado para lutar contra suas crendices. Tinha 13 sócios, que usavam as sextas-feiras para reuniões. Nelas, circulavam entre gatos pretos, quebravam espelhos, abriam guardachuvas, passavam debaixo de escadas. As comemorações especiais eram nas sextas-feiras 13. Se fosse no mês de agosto, era pompa total!

torna mais evidente, esteja minado por toda sorte de crendices. A superstição nos oferece abrigo seguro. Pois em nós não reside somente o barro, como também o escultor, como bem reconheceu o filósofo Nietzsche”. É a consciência de sua pequenez diante das forças e mistérios da vida que faz o homem criar, desde a mitologia mais antiga até o presente, grande arsenal de heróis e fórmulas mágicas, caso da lâmpada de Aladim, da poção maravilhosa de Astérix e do espinafre do marinheiro Popeye. O que a ciência diz hoje é que superstição e magia compõem as duas faces da mesma moeda e têm muito a ver com a ideia que a criança possui de si mesma e do mundo.

A religião construiu o mito de que existem santos e santas aptos a resolver determinados tipos de problemas O que isso quer dizer? Uma dica inicial está numa frase de Freud: “A investigação dos povos primitivos mostra a humanidade inicialmente aprisionada pela crença infantil em sua própria onipotência”. Essa concepção, comum a vários outros pensadores, como o psicólogo Jean Piaget, nasceu quando a

ciência começou, conforme Kurt Kloetzel, a mapear seriamente a mente humana, visando conhecer “a evolução das ideias, dos primeiros passos da magia à religião, da religião à ciência. E não tardou para que descobrissem um extraordinário paralelismo entre a mente primitiva e o pensamento infantil”. Isso porque, segundo Piaget, a criança, nos seus primeiros meses, vive um profundo egocentrismo, achando que o universo gravita em torno dela. “O pensamento mágico manifestase a partir do berço. O poder do desejo é soberano: é só querer e deixar o resto por conta da mágica. Se perguntarmos a uma criança sobre as nuvens, saberemos que elas se movem porque

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SANTO PARA TUDO

a criança assim o quer”, diz Kloetzel, acrescentando: “Por seu componente mágico, o pensamento infantil, assim como aquele das culturas primitivas, serve de protótipo para todas as superstições, sejam as individuais, sejam as coletivas”. O interesse da ciência por esse tema começou em 1868, quando foi descoberta a Caverna de Altamira, na Espanha, em cujo interior existe um tão rico e bempreservado conjunto de pinturas do homem pré-histórico, que ela foi chamada de “Capela Sistina da arte rupestre”. Com cerca de 35.600 anos, as pinturas provocaram muitas indagações nos cientistas, como: são uma forma de expressão

artística? Mas, se o motivo fosse esse, por que escolher um lugar tão distante dos olhares? E qual a razão da repetição dos temas: cenas de caças, figuras de veados, renas e bisões? Ao perceberem que os animais retratados eram os mesmos usados como alimento, os cientistas concluíram que as pinturas eram alegorias, através das quais o homem buscava dominar a realidade e pedir ajuda aos poderes sobrenaturais para alcançar êxito na caça. Eram os primeiros passos da magia, a crença no poder do desejo. “A magia é o instrumento usado pela criança, o homem primitivo e o supersticioso para dominar a natureza e livrarse de perigos”, ressalta Kloetzel.

As adversidades cotidianas fizeram a força do desejo e a ideia de onipotência caírem por terra e, para se proteger e entender o mundo, o homem construiu um universo mitológico, do qual surgiu a religião, embora esta se considere porta-voz da verdade. Sobre isso, diz Kloetzel: “Seria utópico esperar uma ruptura radical com as formas anteriores de pensamento. Logo, não surpreende reconhecermos na religião resquícios de magia – incluindo oferenda aos deuses, rituais de sacrifício –, bem como uma abundância de mitos, milagres e revelações proféticas”. A presença da magia e do mito na religião – portanto, da superstição – ainda é muito forte nos dias de hoje, como mostra o imenso número de santos e santas existentes, aptos a resolver qualquer problema, como Santo Expedito, que, no seu dia, 19 de abril, enche as igrejas de endividados; Santo Ambrósio, contra o adultério; São Elmo, desordem intestinal; São Fiacre, hemorroidas; e Santa Bibiana, ressaca. Para tentar antever o que lhe reserva o futuro – esse temível desconhecido –, o homem recorreu a outro tipo de divindade, a “Santa Astrologia”, que ainda hoje continua brilhando tanto quanto os próprios astros que observa e interpreta à luz dos mitos. Na Roma antiga, os astrólogos chegaram a ser tão acreditados, que até os reis os consultavam antes de tomar alguma importante decisão de Estado. Ao que tudo indica, nem a crescente cientifização e tecnologização do mundo vai conseguir pôr fim ao pensamento supersticioso, porque – recorrendo mais uma vez a Kloetzel – “a necessidade dos homens de acreditar sempre se mostrou mais poderosa que o apetite pela verdade e é preciso ser muito ingênuo para pensar que a superstição possa um dia ser erradicada da face da terra”. Talvez por isso, Francis Bacon, o fundador da ciência moderna, afirmou que “evitar superstições é outra superstição”. O poeta Fernando Pessoa foi além: “Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizada a auge, marcam o homem superior”.

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REPRODUÇÃO

Cardápio

ESPUMANTE O prazer das voluptosas borbulhas

Chamada de “champanhe”, a bebida é produzida com garbo na Europa, onde ganha várias denominações. No Brasil, é símbolo do potencial vitivinífero nacional TEXTO Eduardo Sena

Em uma das recomendações do seu

livro Na sala com Danuza 2, Danuza Leão é cirúrgica: “Nunca esbanje dizendo que tomou um champanhe francês, é redundante. Se é de fato champanhe tem que ser produzido na França”. Fato é que a bebida das bolinhas (que, aliás, se chamam perlages) sempre foi resumida grosseiramente. Bastou fazer algum barulho na hora de abrir e ser colocada numa taça flûte (aquela comprida e estreita) que recebe, equivocadamente, o nome de champanhe.

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“Pronunciar a palavra champanhe significa concentrar-se em um terroir delimitado de 30 mil hectares, situado entre as cidades de Reims e Troyes, é disso que o mundo tem inveja”, alfineta o chef e escritor francês Alain Ducasse, no seu dicionário afetivo da cozinha francesa Ducasse de A a Z. A regra é clara. Desde 1927, só pode ser chamado de champanhe o vinho espumante produzido em Champagne-Ardenne, com as uvas chardonnay, pinot noir e pinot meunier, por meio do método champenoise, também conhecido como tradicional. “Nessa técnica, a segunda fermentação ocorre dentro das garrafas, que são giradas regularmente e passam, aos poucos, da posição horizontal para a vertical. Desse modo, as leveduras se acumulam no gargalo e são posteriormente eliminadas no dégorgement – quando o gargalo é congelado e a pressão expulsa os sedimentos”, explica o sommelier Helton Silva. Outro método para obtenção do gás carbônico é o charmat, de natureza industrial, com o líquido sendo colocado em enormes tanques de aço pressurizados, chamados de autoclaves. É tecnicamente inferior e

Os espumantes são todos os vinhos que passam por uma segunda fermentação para ganhar o gás carbônico A bebida é um dos vários tipos de espumantes – vinhos brancos e rosés – que passam por uma segunda fermentação para ganhar sua característica principal: o gás carbônico, responsável pelas borbulhas que hipnotizam e dizem muito a respeito de sua qualidade. “Perlage fina, elegante e consistente”, é como os sommeliers costumam adjetivá-la positivamente. No tilintar das taças, todo champanhe é um espumante, mas nem todo espumante é um champanhe.

bem mais barato provocar a segunda fermentação dessa maneira. Mas é como é obtido o prosecco, espumante italiano que recentemente obteve sua Denominação de Origem Controlada (DOC), atingindo o mesmo patamar de nomenclatura que tem o champanhe. “As DOCs são importantes para demarcar a área e o método de produção, influenciando diretamente na qualidade permanente do vinho produzido, já que estabelece regras e restrições iguais para todos os

produtores”, pontua Helton Silva. No caso do prosecco, para ser chamado assim, deve atender à premissa de ser produzido no norte da Itália, na região do Vêneto, mais precisamente na sub-região de Valdobbiadene, com uma única uva, a glera, antes chamada de prosecco. A mudança do nome da cepa foi mais uma estratégia dos produtores daquelas plagas para limitar o uso do termo.

CAVA, BAIRRADA E OUTROS

A lista de espumantes que recebem nome próprio é longa e traz exemplares de diferentes uvas, origens e etapas produtivas. O cava é outro deles. Mais conhecido (e importante) espumante da Espanha, assim como o vizinho francês, é produzido pelo método tradicional. Encorpado e dono de aromas minerais fortes, esse vinho deve ser feito com as castas viníferas macabeo, xarelo e parellada da região da Catalunha, além de respeitar o tempo de nove meses de vinificação. Na Penísula Ibérica, ainda há um outro tipo de DOC vitivinífero. “Em Portugal, as borbulhas etílicas mais famosas vêm da Bairrada, prestigiada região que tem mais de 100 mil hectares de terras planas e solos arenosos e argilosos”, afirma a enóloga gaúcha Flávia Cavalcanti, que atualmente promove pesquisas na região. Hoje, existem mais de 20 marcas que atendem aos requisitos técnicos de produção e origem obrigatórios para conquistar a denominação Bairrada. “As uvas selecionadas podem ser maria gomes, sercial, bical, arinto, chardonnay e baga, que formam vinhos de bom volume, muita intensidade aromática, além de serem muito secos, característica dos espumantes via champenoise”, pontua. Ainda na Europa, a França também produz outros espumantes famosos. Conhecidos entre enólogos e enófilos como os “primos pobres do champanhe”, os mousseux, blanquette ou crémant (mais famoso dessa série b) ainda lutam pelo DOC, mas já ganham fama pela boa qualidade e vantagem de exibirem preços bem mais baixos que “os parentes” do nordeste da França.

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REPRODUÇÃO

CARA DO BRASIL

Falando em francês, até o jornal Le Monde, num artigo recente, diagnosticou a Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul, como um dos 100 terroirs obrigatórios para o vinho no mundo. Para quem acha a lista extensa, Portugal, sozinho, tem quase uma centena de lugares como esse. E adivinha qual o tipo de produto vinícola brasileiro que vem ganhando projeção mundial? “Em meu país, é raro encontrar vinho-base para espumantes dessa qualidade”, comentou o reputado sommelier chileno Hernán Amenabar, durante a Avaliação Nacional de Vinhos, no último mês de setembro, em Bento Gonçalves (RS), mostrando-se surpreso com a ausência de amargor na bebida que degustava naquele momento frente a um público de quase mil pessoas. A observação mostra o patamar em que se encontra o espumante brasileiro. É que, para elaborar bons produtos desse segmento, a qualidade do vinho-base, como é chamada a bebida resultante da primeira fermentação, é fundamental. Caso contrário, a segunda etapa fermentativa (seja champenoise ou charmat) fica comprometida. “Poucas regiões do mundo têm características climáticas que favoreçam a produção de uvas para elaboração de espumantes, mas, na Serra Gaúcha (de onde parte 90% da produção vitivinífera nacional), assim como acontece na região de Champagne, o microclima é especial para produção de uvas com essa finalidade, como acontece com as variedades chardonnay e pinot noir”, defende Daniel Geisse, enólogo da Vinícola Geisse, instalada no município de Pinto Bandeira, dentro da privilegiada área, e que coleciona prêmios nos quatro cantos do mundo. O profissional se refere a um perfeito nível de madurez, preservando uma boa acidez e baixa graduação de açúcar, características fundamentais para elaboração de espumantes de alta qualidade – e difíceis de serem encontradas em outras regiões produtoras. Os números respaldam esse comentário. Segundo dados do Instituto Brasileiro

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JANE PRADO/DIVULGAÇÃO

1 CHARDONNAY É uma das uvas utilizadas na produção de espumantes 2 VINÍCOLA A Perini é uma das marcas nacionais estabelecidas nas serras gaúchas 3 DÉGORGEMENT Método tradicional utilizado para a segunda fermentação, no qual as garrafas passam aos poucos da posição horizontal para a vertical

do Vinho (Ibravin), referentes a 2013, a cada 100 garrafas de espumantes vendidas no Brasil, 79 são nacionais. “Todas as regiões do mundo podem produzir tudo e, muitas vezes, mais de um tipo de vinho. Espumantes, fortificados, vinho de mesa, vinho de sobremesa… Mas nenhum lugar produz mais de dois vinhos com qualidade máxima. O terroir sempre se adequa melhor a um estilo. O Brasil já achou o seu grande vinho”, diagnostica o sommelier Helton Silva. Estamos falando de produtos que já não competem com os da América do Sul, como os chilenos e argentinos, e, sim, com os espanhóis, italianos e, claro, franceses. Diretor comercial da Vinícola Perini, localizada em Farroupilha, também na Serra Gaúcha, Franco Perini destaca que o espumante é, acima de tudo, a porta de entrada para os vinhos nacionais. “Acredito que o consumidor brasileiro seguirá as tendências mundiais de consumo moderno de vinhos, preferindo os que possuem pluralidade gastronômica, acidez natural, leveza, frescor e álcool moderado. Exatamente as qualidades dos espumantes brasileiros”, conclui. Não à toa, a sua marca apresenta um dos melhores custo x qualidade no

A importação de espumantes perdeu espaço, devido à grande demanda do consumidor brasileiro pelos nacionais mercado nacional, trazendo mais de nove variedades desse tipo de vinho.

DESAFIO FUTURO

Além de transformar essa percepção positiva em competitividade frente aos “primos de segundo grau” europeus, o desafio da indústria nacional é a manutenção da qualidade alcançada. Apesar de ser uma região com características especiais para elaboração de espumantes de alta qualidade, em virtude do relevo e das diferentes composições de solo, a serra não permite a produção de grandes volumes, preservando o mesmo nível de qualidade. “Por isso, o caminho ideal para que o Brasil possa se consagrar no mundo do vinho como um excelente produtor são a restrição e a busca por agregação de valor a médio e longo prazo, tentando preservar a qualidade e se tornar

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uma referência em espumantes pela sua diferenciação pelo alto padrão, e não pelo volume”, diz Daniel Geisse, que, apesar da demanda, desde 2011 põe anualmente 230 mil garrafas nas prateleiras. A procura está maior do que a oferta. Segundo Franco Perini, o consumidor brasileiro tem solicitado tanto os espumantes daqui, que a exportação desses produtos deixou de ser foco prioritário. “Espumante não é apenas uma bebida festiva, de ocasiões especiais, como antes. Pode ser o vinho do dia a dia. Nosso embate agora é equiparar o valor do nosso produto, que tem tributação muito maior que a dos importados, aos de referência de qualidade”, explica. O que aparentemente está bemencaminhado. O consumidor está percebendo o alto nível das borbulhas tupiniquins e a excelente relação custo-benefício frente a outros produtos. Por exemplo, ao adquirir um espumante nacional, obtido por método tradicional, na faixa dos R$ 90, terá que gastar, em um champanhe de nível de qualidade similar, algo em torno de R$ 300, sendo que este sofreu muito mais com transporte e armazenamento para chegar até o consumidor.

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Claquete

MOSTRA Um vento para volver artistas

Japonês Hayao Miyazaki, criador do Studio Ghibli, terá longas seus exibidos junto aos de seguidores TEXTO Renato Contente

Para driblar a ausência dos pais, duas irmãs encontram em um espírito da floresta o afeto e a amizade que lhes faltava. Uma bruxa, prestes a completar 13 anos, realiza entregas em sua vassoura, para sobreviver em uma cidade estranha. Um rapaz é ferido por um deus javali endemoniado e luta contra o tempo para não ser infectado pelo espírito mau. Uma garotinha vê os pais virarem porcos, após terem comido uma refeição destinada aos deuses e é escravizada para pagar a “dívida”.

Cada descrição acima carrega uma parte do vasto universo construído pelo cineasta japonês Hayao Miyazaki, criador do Studio Ghibli e responsável por uma animação autoral que se contrapunha aos padrões estabelecidos pela indústria massificada dos desenhos nipônicos. Com filmes como Meu vizinho Totoro (1988), O serviço de entregas da Kiki (1989), Princesa Mononoke (1997) e A viagem de Chihiro (2001), o diretor urdiu uma linguagem que conecta aspectos do fantástico a uma estética detalhista e delicada, em que as técnicas de animação

tradicionais se sobrepõem a quaisquer artifícios da computação gráfica. Contemplado no mês de novembro com um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra, Miyazaki também será homenageado pela Academia no próximo ano, quando o Studio Ghibli completa três décadas de existência. No Recife, neste mês, o cineasta será o carro-chefe de uma mostra de filmes que tem como foco a animação japonesa autoral. Com 18 longas-metragens, debates e oficinas, a mostra O Universo de Miyazaki |Otomo |Kon acontece entre

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do formato de séries de produção barateada, com pouco custo e grande alcance de público, Miyazaki propôs longas autorais e, muitas vezes, de abordagem crítica em relação a temas ecológicos, históricos e sociais. No Japão, a partir dos anos 1950, a expressão anime (do inglês animation) passou a designar qualquer tipo de animação, independentemente do país de origem. Na década de 1980, o termo foi reprocessado por outras culturas e tornou-se sinônimo do estilo peculiar das animações japonesas, que costumam retratar personagens de olhos grandes, cabelos espetados e movimentos exagerados. De acordo com o animador Jansen Ravieira, um dos curadores da mostra, o anime, ou animê, virou sinônimo de um gênero de animação com produção limitada, prazos curtos e pequenos orçamentos, sempre na forma de séries televisivas. “Mas o mesmo processo industrial que desembocou nesse estilo gerou uma grande insatisfação em alguns artistas, que discordavam dessa maneira de produzir. Miyazaki foi pioneiro ao optar pela animação de características autorais em longas, ao invés da massacrante produção de séries para TV”, explicou. Para Rodrigo Carreiro, professor de Cinema da UFPE, embora alguns O Universo de Miyazaki | Otomo | Kon 2–13 Dez Caixa Cultural Recife

2 e 13 de dezembro, na Caixa Cultural Recife. O evento ainda exibirá filmes de Katsuhiro Otomo e Satoshi Kon, diretores que seguiram a linha autoral consolidada pelo mestre. Quando criou o Studio Ghibli, em 1985, ao lado de Isao Takahata, Miyazaki tinha como proposta fazer dos seus filmes “um vento que varresse a cabeça dos artistas”, ao explorar histórias originais e valorizá-las nas telas dos cinemas, o que subvertia a lógica televisiva à qual a animação japonesa de então estava subordinada. Ao invés

Hayao Miyazaki foi contemplado com um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra, que inclui A viagem de Chihiro (ao lado) seriados de animação japonesa dos anos 1960, como Speed Racer, possuíssem menos elementos autorais, já se mostravam distintos dos desenhos ocidentais. “Isso era visto no traço, na narrativa, no estilo de animar a ação física. Sobre filmes do Ghibli, como Nausicaä do Vale do Vento (1984) e A viagem de Chihiro, talvez sua maior característica seja um mergulho na história e mitologia do Japão, em vez de se basearem na arte ocidental. É esse mergulho na cultura do próprio país que diferencia esses desenhos dos concorrentes”, analisou.

FUTUROS SÓCIOS

Filho de um fabricante de peças para aviões e de uma dona de casa, Miyazaki, ao contrário da maior parte da população do Japão durante a Segunda Guerra, teve uma juventude relativamente confortável, apesar da sofrida luta de sua mãe contra uma tuberculose. Depois de ter cursado Ciências Políticas e Economia, período em que participou de um clube de pesquisa de literatura infantil, o artista se aproximou do universo da animação, a partir de um estágio no Toei Animation, megaestúdio de onde mais tarde sairiam séries como Dragon Ball, Sailor Moon e Cavaleiros do Zodíaco. O encontro entre Miyazaki e Isao Takahata, futuros fundadores do Ghibli, aconteceu no período do estágio, no início dos anos 1960. Em pouco tempo, a parceria dos dois tomaria corpo com uma proposta dos magnatas da Toei, que, já líderes na TV, desejavam ocupar as salas de cinema, cada vez mais esvaziadas, por conta de suas próprias séries. Assim, foi concebido o longa Hórus: o príncipe do sol (1968), animação sobre seres mitológicos nórdicos que pavimentaria o caminho para projetos como o média Panda e o filhote (1972) e o bem-sucedido O Castelo de Caliostro (1979), estreia individual de Miyazaki na direção de um longa. “Acho que a produção desse tipo de animação fomenta e solidifica para o resto do mundo um estilo próprio que já vinha sendo constituído décadas antes, após a Segunda Guerra. A animação japonesa cria uma série de códigos gráficos e narrativos que são assimilados por outras cinematografias e se torna universal. Depois da guerra, ela teve de se reinventar. Os mangás, especialmente os de Osamu Tezuka, foram a principal fonte de inspiração”, defendeu Marcos Buccini, animador e professor de design experimental e animação da UFPE. Talvez seja possível afirmar que o primeiro longa de Miyazaki a aglutinar as principais características de sua proposta fílmica tenha sido Nausicaä do Vale do Vento, baseado em um mangá de sua autoria. A formalização do Ghibli como estúdio, em 1985, é creditada ao sucesso do longa, lançado no ano anterior. “A animação reuniu aspectos essenciais da obra de Miyazaki: mundos imaginários complexos, onde fantasia e realidade se confundem, abordando temas ecológicos através de personagens marcantes.

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Habitante de um mundo de vales verdes com insetos gigantes, Nausicaä é uma princesa guerreira que luta para proteger o ecossistema de seu planeta”, descreveu a publicitária Miriam Souto Maior, autora da monografia Ghibli: a consolidação do animê como produto global de consumo. Entre os 15 longas dos quais assumiu a direção, sendo dois deles da fase pré-Ghibli, Miyazaki emprestou seu olhar a temas como o desmatamento, o horror da guerra, a violência dos regimes totalitários, a perda da inocência em nome do amadurecimento pessoal

e o cultivo de valores como lealdade, gratidão, coragem, autossacrifício e amor. Como defende a pesquisadora Dani Cavallaro, no livro The animé art of Hayao Miyazaki (McFarland Publishers), o cineasta, “defensor convicto da sabedoria das crianças, encara com consistência assuntos difíceis de lidar, sem suavizar nem sentimentalizar seus significados ou apresentar soluções definitivas para os problemas de suas personagens”. O raciocínio e a serenidade para enfrentar problemas, sustenta o autor, são mais potentes do que desfechos idealizados.

De acordo com Dani Cavallaro, outro aspecto marcante na obra do artista é a sua preocupação em desenvolver, nas suas personagens, um senso de responsabilidade e autonomia numa idade precoce. Essa tendência se manifesta em praticamente todos os protagonistas criados por Miyazaki, em especial nas suas personagens femininas, retratadas como figuras fortes e destemidas, ao invés dos estereótipos sexualizados comuns ao universo dos animes e mangás. Assim são, por exemplo, Mononoke, princesa criada entre deuses-lobos e responsável por proteger o grande espírito da floresta da ganância humana, e Chihiro, uma menina mimada que tem o comportamento transformado, ao se deparar com o risco de perder os pais. Como observado por Cavallaro, os filmes de Miyazaki são carregados de elementos biográficos, como a ausência da mãe, em Meu vizinho Totoro. A pesquisadora defende que o cineasta se torna uma espécie de advogado de princípios pacifistas e igualitários, ao mesmo tempo em que luta para conciliar certo sentimento de culpa por sua família ter sido, de alguma forma, conivente com a guerra, já que seu sustento vinha da fabricação de lemes para aviões utilizados no confronto. “Ele tem uma consciência aguda e,

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de certa maneira, envergonhada por conta da situação privilegiada da qual ele e sua família gozaram durante a guerra, quando tiveram condições de se mudar para o interior, distante de Tóquio, principal alvo dos ataques aéreos”, defende a pesquisadora. Essa culpa sobre a qual a pesquisadora escreve se manifesta de maneira mais incisiva nos filmes “adultilizados” do autor, como Porco Rosso (1992) e Vidas ao vento (2013), anunciado por Miyazaki como o seu último longa-metragem. Situado na Itália dos anos 1920, Porco Rosso narra as desventuras de um piloto veterano da Primeira Guerra que, ao ser amaldiçoado, é transformado parcialmente em porco. Apesar da aparente leveza, o longa tece críticas mordazes aos absurdos da guerra e ao mito do herói nacional. Dramaticamente mais denso, Vidas ao vento traz à tona as contradições de um projetista de aviões que enfrenta o remorso, ao constatar que sua invenção foi utilizada como ferramenta para a morte de milhares.

POPULARIZAÇÃO NO OCIDENTE

Se longas-metragens como Akira (1988), ficção científica cyberpunk de Katsuhiro Otomo, e O túmulo dos vagalumes (1988), de Isao Takahata, sobre dois irmãos que tentam sobreviver à guerra, abriram os olhos do Ocidente para

Os personagens de Miyazaki têm em comum o senso de responsabilidade e a autonomia em idade precoce

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essa safra japonesa autoral, pode-se dizer que a repercussão de Princesa Mononoke (1997) e A viagem de Chihiro (2001), que recebeu o Oscar de Melhor Animação em 2003, foram decisivos para a popularização e legitimação desse recorte do cinema asiático. “Aos olhos ocidentais, acredito que a própria estranheza oriunda da mitologia nipônica – uma cultura muito diferente da nossa – fez com que esses trabalhos fossem consumidos mais pelos adultos, aqui no Ocidente. Então, acho que a produção japonesa acabou mostrando aos nossos animadores que havia um mercado importante entre o público adulto”, opinou Rodrigo Carreiro. Um dos principais influenciados pela arte de Miyazaki, John Lasseter, chefe de criação da Pixar, não esconde a admiração pelo mestre, seja em homenagens discretas – como quando fez o cowboy Woody abraçar um boneco de Totoro em Toy Story 3 (2010) – ou em

BIOGRAFIA

Miyazaki traz elementos de sua vida para as obras, como a ausência da mãe em Meu vizinho Totoro PORCO ROSSO

Conta as desventuras de um piloto veterano da Primeira Guerra que, ao ser amaldiçoado, é transformado parcialmente em porco HAYAO MIYAZAKI

Criou o Studio Ghibli em 1985, com foco na animação japonesa autoral

falas públicas elogiosas ao ídolo, como no anúncio do Oscar honorário a Miyazaki, no último mês. “Na Pixar, quando temos um impasse e não conseguimos resolvêlo, vemos um filme de Miyazaki como fonte de inspiração. Essa tática sempre funciona – ficamos logo maravilhados e cheios de ideias. Toy Story tem um imenso débito de gratidão aos seus filmes”, revelou Lasseter, num texto para uma edição americana dos filmes do Ghibli. De acordo com Rodrigo Carreiro, a influência da estética do Studio Ghibli sobre os filmes da Pixar vai além dos planos contemplativos e de uma abordagem mais complexa das relações humanas. “Acho que o que a Pixar tem feito com os filmes japoneses é algo muito parecido com o que a geração de Scorsese, Coppola e Spielberg fez com o pessoal da nouvelle vague (Godard, Truffaut): transportou as inovações em termos de estilo e narrativa para uma forma dramática mais rígida, mais ocidental, culturalmente próxima dos Estados Unidos”, defendeu. Segundo Miyazaki, o nome Ghibli foi retirado de um livro antigo de aviação e diz respeito a um termo árabe adotado por pilotos italianos que significa “um vento quente e seco que sopra pelo Mediterrâneo a partir do Saara”. O nome serviu para reforçar sua proposta: a de ser um vento fresco que revolucionasse a cabeça dos artistas e varresse para longe os vícios mercadológicos que emperravam a animação nipônica. Aos 73 anos, o cineasta fez inúmeros anúncios recentes sobre sua aposentadoria, afirmando que “a era dos filmes feitos com lápis e papel está chegando ao fim”. Apesar disso, o artista trabalha diariamente, ainda que em ritmo reduzido, em um novo projeto de mangá. Aos admiradores, resta esperar que seus traços saiam mais uma vez do papel e voltem a levar aquela magia tão potente para as grandes telas.

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ROAD MOVIE Viagem com a morte

No longa Uma passagem para Mário, diretor Eric Laurence aborda a perda do amigo num percurso por paisagens desérticas da América TEXTO Pethrus Tibúrcio

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Sair do Recife , atravessar a Bolívia

e chegar ao deserto do Atacama era o plano de Eric Laurence junto a Mário Duques, que dá nome ao longa Uma passagem para Mário. Mas, no dia 19 de outubro de 2010, Eric Laurence pegou o avião sozinho, no Aeroporto Internacional Gilberto Freyre, rumo ao deserto chileno. Isso porque, quatro anos antes, Mário recebeu a notícia de que tinha um câncer no fígado. Decidiu deixar o tratamento por um tempo e fazer uma viagem em tom de despedida, como quem

precisa aproveitar muito o mundo, mas faleceu antes de realizar o intento, aos 34 anos de idade. Eric continuou a viagem sozinho e terminou de gravar o filme, que teve o seu roteiro adaptado diante das circunstâncias tristes. O trajeto fílmico é marcado por contraluzes em janelas de ônibus de turismo, intercaladas com depoimentos de moradores e turistas em cidades como Santa Cruz de La Sierra, Sucre, Potosí, Uyuni e San Pedro de Atacama. O filme funciona como uma road trip

solitária, na qual o cineasta tenta simbolizar a presença do amigo, impedido de viajar, nos assentos dos ônibus, nas pedras rachadas e nos quartos de albergue. Isso é feito através da exibição, em seu computador pessoal, de vídeos que Mário tinha gravado para registrar a própria vida depois do câncer, com o qual passou mais de quatro anos: a visita ao médico, um beijo de uma namorada na mesa de um bar, um banho de piscina daquelas de plástico, que se improvisa no quintal.

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ATACAMA

Eric Laurence seguiu sozinho para o deserto chileno, onde terminou de gravar o filme que planejara com seu amigo Mário Duques

minutos, quem não o conheceu também lamente a sua história. Mais perto do seu desfecho, o filme encontra um de seus maiores méritos. Primeiro, na cena gravada pelo próprio Mário, em que, pela primeira vez, ele não fala praticamente nada. Liga a câmera, afasta-se, deixa o sol bater, olha ao redor e sobe por uma escada. Depois, na última cena gravada por Eric, uma tentativa de materialização do amigo posterior a uma série de cenas dele sozinho em planos abertíssimos. As imagens que antes vimos em telas de computador ou ampliadas no cinema são projetadas em pedras em alguma noite do Atacama e musicadas pela trilha sonora de Plínio Profeta. Falar de permanência é importante num filme no qual alguém se apresenta e diz como quer ser lembrado. O filme é sobre morte, mas é também sobre como a gente quer se manter, de alguma maneira, vivo. Nele, ainda bem, a memória que fica é a de um Mário submerso em água, acenando e sorridente.

Eric Laurence registrou conversas com estranhos que falaram – em tom de consolo – sobre vida, morte e amizade Pode parecer que o documentário seja uma busca por conforto ou por esclarecimento. Nos 45 dias de estrada, Laurence registrou uma série de conversas com estranhos que falaram – em tom de consolo, como quem tinha acabado de ouvir a sinopse do filme – sobre vida, morte e amizade. Em um lugar qualquer, três amigos se abraçam e avisam: “Unir-se é a coisa mais revolucionária do mundo”. A sensação de busca através de alguém que parece perdido é reforçada pelos

ambientes vazios e os sussurros de vento que sonorizam a aridez das paisagens incríveis do deserto. Mário é bem-apresentado pelo filme. As imagens que faz de si são marcadas pelo contraste entre a aparente fragilidade de seu corpo e a constância de suas piadas. Parece o tipo de gente que as pessoas costumam lamentar também a sua morte pela postura que assumia diante dela. A personalidade dele e a sua resistência diante de um tratamento sofrido fazem com que, em poucos

O diretor Eric Laurence é cearense, radicado no Recife desde 2003. Começou a trabalhar com cinema três anos antes, em 2000, e de lá para cá ganhou mais de 50 prêmios com seus primeiros curtas, Entre paredes, O prisioneiro, No rastro do camaleão e Azul. Também é publicitário e foi responsável pelo videoclipe Canção que não morre no ar, de China, além de dirigir um DVD para o cantor Silvério Pessoa. Uma passagem para Mário, seu primeiro longametragem, estreou nacionalmente no último dia 6 de novembro.

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ANTÔNIO NÓBREGA Os passos que levam a Tonheta

Dirigido por Walter Carvalho, Brincante proporciona um mergulho no universo do artista e remonta à trajetória de seu personagem mais emblemático TEXTO Fernando Athayde

Em 1992, o artista pernambucano Antônio Nóbrega concebeu, ao lado do escritor Bráulio Tavares, o espetáculo Brincante, que conta a saga do personagem Tonheta, um carroceiro itinerante, com ares de bufão, notório por deixar

todos os lugares por que passava marcados por suas inestimáveis peripécias. Vinte e dois anos depois, o título da obra teatral ganha novo espectro, desta vez, cinematográfico e dirigido pelo premiado cineasta Walter Carvalho.

No longa, lançado oficialmente nos cinemas brasileiros em 4 de dezembro de 2014, o fundamental não é a reencenação da peça teatral homônima com uma linguagem adaptada à grande tela, mas a possibilidade de um mergulho no universo artístico contido na mente do próprio Antônio Nóbrega. Dessa forma, Brincante traz aos olhos do espectador um panorama da cultura popular visto a partir da ótica do artista, que, há quatro décadas, pesquisa as ramificações culturais nascidas e criadas pelo Brasil. A abordagem linguística que o filme utiliza para sustentar tal prerrogativa também demonstra grande sensibilidade, fazendo jus a seu protagonista. Se Nóbrega teve sua vida e obra erguidas sob a utilização de diversos gêneros artísticos, interagindo intimamente com a arte através da confluência de várias

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INDICAÇÕES formas de expressão, como a música e o teatro, Brincante é pródigo em captar essa aura experimental. O filme, ainda que preze pela ideia de contar a história linear da vida de Nóbrega, não se rende à formatação narrativa tradicional do documentário. A projeção tenta colocar em gestos e movimentos o conteúdo das palavras, soando como uma obra em que a mensagem seminal não está contida nos depoimentos. Assim, os aspectos históricos abordados no filme surgem metaforizados numa ficção gerada por representações imagéticas relacionadas diretamente com a peça de teatro homônima, escrita há duas décadas. Na prática, a obra assinada por Walter Carvalho está situada num ponto médio entre a fantasia, as referências ao texto original e a homenagem à trajetória de Antônio Nóbrega. Da sua relação com o movimento armorial ao estudo da música erudita, ele deixou sua marca na história da cultura brasileira como um violinista de formação clássica que viu a possibilidade de mergulhar no abismo que é o processo criativo e se moldar a todo gênero artístico a que seu corpo se permitisse.

ADAPTAÇÃO

Brincante não é a primeira colaboração entre Antônio Nóbrega e Walter Carvalho. A dupla se conheceu durante a produção do especial de fim de ano da Rede Globo em 1992, o Auto da luz, de Luiz Fernando Carvalho, e desde então vinha amadurecendo a relação artística que os une, focada, sobretudo, na possibilidade de levar para o

cinema as obras de Nóbrega. Uma prova disso é o fato de que várias das peças de Nóbrega lançadas em DVD, nos anos 2000, contaram com a direção de Carvalho. No início da década de 1990, época em que o espetáculo Brincante foi concebido e bem-recebido por público e crítica, já havia especulações sobre uma possível adaptação destinada à grande tela, fato que acabou procrastinado até recentemente. Em parte, poderíamos dizer que um aspecto interessante dessa demora reside na própria trajetória do realizador Walter Carvalho como cineasta. Famoso por seu trabalho como diretor de fotografia, a estreia de Walter como diretor ocorreu em 2001, com o longa-metragem Janela da alma. Assim, foi paralelamente a esse processo de redescoberta e de adequação às possibilidades intrínsecas da linguagem audiovisual que ele desenvolveu a premissa de que Brincante deveria se desdobrar como uma simbiótica união entre a vida e obra de Antônio Nóbrega. E, se Walter de Carvalho assume aqui a função de diretor, também é importante pontuar que o roteiro do longa foi escrito por Leonardo Gudel, parceiro habitual de Carvalho, cuja bagagem inclui obras como Raul – o início, o fim e o meio. A junção dos dois culmina numa proposta estética caracterizada plasticamente por cores fortes e saturadas, além de elementos e arquétipos vinculados à própria trilha por onde o Brasil e Antônio Nóbrega caminham de igual para igual.

DOCUMENTÁRIO

DRAMA

Dirigido por Jonathan Caouette Com Jonathan Caouette, Renee LeBlanc, Adolph Davis Wellspring Media

Dirigido por Manolo Nieto Com Felipe Dieste, Alejandro Urdapilleta, Rosana Cabrera 4L/Roken Filmes

TARNATION

O MILITANTE

Documentário autobiográfico que explora as possibilidades do “eu” nessa linguagem cinematográfica. Jonathan utiliza imagens em super-8, que gravou desde a infância, para contar a própria história: de uma típica família norteamericana “perfeita”, na sua infância, tudo foi mudando quando sua mãe caiu de um telhado e passou a receber eletrochoques como tratamento. Esse evento parece determinar todas as tragédias seguintes. Um exercício confessional.

Um estudante de Montevidéu é informado da morte do pai durante uma assembleia estudantil e precisa viajar a Salto, no interior do país. Naquela paisagem pouco explorada no imaginário estrangeiro sobre o país, ele descobre que herdou uma fazenda hipotecada, uma casa que precisa dividir com a amante do pai e um cachorro idoso. O ator Felipe Dieste foi bastante premiado pelo trabalho, e seu personagem ganha atenção, mesmo nos silêncios, numa fotografia bem-trabalhada.

SUSPENSE

COMÉDIA DRAMÁTICA

Dirigido por Juliana Rojas e Marco Dutra Com Helena Albergaria, Marat Descartes, Naloana Lima Polifilmes

Dirigido por Ramon Zürcher Com Jenny Schily, Anjorka Strechel, Mia Kasalo Aramis Films

TRABALHAR CANSA

A dona de casa Helena realiza um desejo antigo e abre um mercado de bairro. Ocupada com a nova rotina, ela contrata Paula para tomar conta da casa e da filha. Um dia, seu marido perde o emprego e as relações trabalhistas e pessoais que todos mantinham se embaralham, explicitando cada vez mais os problemas sociais presentes naquela família. As tensões de classe são tão fortes, que acabam por reverberar um clima de terror.

GATINHA ESTRANHA

Uma tradicional família alemã e suas atitudes sem aparente relevância são reveladas pelo jovem diretor Ramon Zürcher, que fez o filme como trabalho de conclusão de curso. A experiência é imersiva e intensa, com câmera de enquadramentos quase incômodos e personagens que surgem, passam e fazem comentários aleatórios sem que ninguém os conheça bem. O filme é muito bem-realizado, e não se interessa por conclusões, abrindo espaço para ressignificações.

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ISAAC ASIMOV Digno representante da era de ouro da sci-fi

Com o aquecimento desse segmento da literatura, editora investe no relançamento de obras do autor, a exemplo de Eu, robô e da Trilogia da fundação TEXTO Priscilla Campos

Leitura Duas características constantes, de

origens aleatórias, são puro deleite para os fãs de ficção científica: a coerência narrativa tão próxima do cotidiano e a possibilidade do cruzamento de referências entre autores e obras do gênero. No seriado britânico Doctor Who, clássico do sci-fi desde os anos 1960, diversos diálogos e monólogos (estes últimos, sempre presentes na trajetória do personagem principal) oferecem tais desdobramentos ao público. Entre as incontáveis divagações já proferidas pelo “último” Senhor do Tempo, existe uma que elucida com espantosa precisão geek a obra do escritor e bioquímico russo, naturalizado norte-americano, Isaac Asimov. “We are all stories in the end. Just make it a good one”, disse o Doutor para Amelia Pond, uma de suas companheiras de viagem. Desde suas primeiras publicações em revistas científicas, Asimov explora com propriedade a simples afirmação feita pelo décimo Doutor: o futuro e a realidade são apenas histórias; o importante é vivê-las (e contá-las) da melhor forma possível.

Em outubro deste ano, o cientista Arthur Obermayer, amigo do escritor, divulgou um ensaio inédito no qual Asimov disserta sobre a criatividade. De acordo com Obermayer, o texto, escrito em 1959, descreve não só o processo criativo e a natureza das pessoas inventivas, como também explica o tipo de ambiente que pode promover momentos de inspiração. Ainda nos primeiros parágrafos, o escritor constrói um pensamento focado no surgimento de novas teorias e em como as gerações se organizam para formulá-las. Asimov então afirma que, para criar ou descobrir algo novo, não são suficientes apenas pessoas com conhecimentos em campos específicos, “é necessário também que os indivíduos sejam capacitados a fazer conexões entre dois itens que, normalmente, não estariam conectados”. Essa aptidão para soluções com alto teor imaginativo e, muitas vezes, científico, pode ser encontrada em boa parte de sua obra literária. A escrita de Asimov alcança a melhor recepção que uma narrativa de ficção

científica pode almejar – leitores confiantes e, ao mesmo tempo, curiosos com o que está por vir. “A importância de Asimov para a literatura de ficção científica é a mesma de Paul McCartney para o rock. Ele foi um marco. Junto com Artur C. Clarke, foi o principal representante da ‘era dourada’ da FC. Além de ser um excelente criador de histórias, com as tramas extremamente inventivas e deliciosamente surpreendentes, Asimov era um cientista, e adicionava muita veracidade e plausibilidade às suas histórias. A sua influência no universo literário, e além, é gigante. A própria criação das três Leis da Robótica é um exemplo, algo incorporado por diversos outros autores em muitas histórias de robôs”, afirma o publisher e sócio da Aleph, Adriano Fromer. Nos últimos anos, a editora paulista tem ampliado seu catálogo de scifi e relançado alguns clássicos do escritor, como a Trilogia da fundação e Cavernas de aço, este último, importante título para compreender as três leis da robótica. O último

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hit que está de volta às prateleiras é a coletânea de contos Eu, robô, publicada pela primeira vez em 1950. Na introdução de Cavernas de aço, Asimov relata como surgiu o primeiro texto da compilação, intitulado Robbie. Leitor assíduo de várias revistas sci-fi, o escritor russo confessa que estava à espera de “algo melhor” em relação às novelas de robôs, e encontrou na edição de dezembro de 1938 da Astounding Science Fiction. “Essa edição continha Helen O’Loy, de Lester Del Rey, uma história na qual um robô era retratado de modo compassivo.” E continua: “Quase na mesma época, na edição de janeiro de 1939 da Amazing Stories, Eando Binder retratou um robô simpático em I, robot. (…) Comecei a ter uma vaga sensação de que queria escrever uma história na qual um robô seria retratado afetuosamente”. De início, Robbie foi recusada pelo editor da Astounding, pois estava

Asimov conta que escreveu Eu, robô a partir da leitura de narrativa de Lester Del Rey, que não tiranizava a máquina muito parecida com a narrativa de Lester Del Rey. Outra revista aceitou publicá-la, e, posteriormente, ela foi incluída no livro lançado em 1950. De acordo com Asimov, o editor da Gnome Press, responsável pela primeira tiragem de Eu, robô, não se incomodou com o fato da publicação ter o mesmo nome da história de Eando Binder. “‘Quem se importa?’ disse o editor (embora seja uma versão editada do que ele realmente disse) e, constrangido, eu permiti que ela me persuadisse”, escreve.

Utilizar a primeira história de robôs escrita por Asimov como abertura do livro foi uma ótima escolha para destacar a evolução do processo imaginativo do escritor. Naquele conjunto textual, estava o marco zero “teórico” das tão faladas e discutidas Leis da Robótica: 1) um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano venha a ser ferido; 2) um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei; e 3) um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou com a Segunda Lei. Assim como acontece na Trilogia da fundação, as premissas da Série dos robôs criam um universo que mantém em constante diálogo o real e o simbólico. Asimov desenvolvia um equilíbrio narrativo sem excessos. Suas histórias

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Leitura 1

NOVAS EDIÇÕES

Capas dos títulos publicados pela Aleph

pareciam ter saído de um esboço atento ao prazer de invenção, sem esquecerse de referências ao então presente político, científico, privado e cultural. “As boas obras de ficção científica têm uma função muito importante: fazer com que o leitor se distancie do universo em que ele vive para, paradoxalmente, desenvolver um olhar mais crítico e atento ao seu próprio universo”, observa Fromer.

PERSONALIDADES

Uma das particularidades na escrita de Asimov é a composição dos personagens. Seu método certeiro nesse aspecto narrativo pode ser observado na Trilogia da fundação. Nos livros da série, o escritor desenvolve com mestria os personagens que a professora, crítica literária e ensaísta Beth Brait classifica como “agentes da ação” (condutor da ação, oponente e coadjuvante). Três deles

merecem destaque: Hari Seldon, Salvor Hardin e Hober Mallow. Asimov não opta por fluxo de consciência ou descrições estéticas detalhadas. A força de seus agentes concentra-se nos diálogos e nos posicionamentos escolhidos por cada um durante a trama. Outro ponto interessante é a ideia de que as relações entre eles avançam em paralelo ao desenvolvimento do enredo. Salvor Hardin não existiria se não fosse a psicohistória, ciência que mistura história, matemática e sociologia elaborada por Seldon; Mallow, por sua vez, relembra frases emblemáticas e momentos decisivos na administração de Hardin para decidir quais rumos tomar em termos políticos. A estrutura tipo “quebracabeça” (utilizada em várias obras de ficção científica) é estendida, então, para todos os personagens. Talvez, a diferença entre Asimov e outros autores do gênero seja essa preocupação em encaixar todos os elementos da história em seu “molde” particular. O “caráter inspirativo”, citado por Frommer como uma terceira característica permanente da literatura sci-fi, também pode surgir a partir dos espaços (abstratos

e concretos) ocupados pelos indivíduos naquele mundo modificado. “Você ter contato com um futuro que ‘pode vir a acontecer um dia’, por mais absurdo que ele seja, é uma experiência única, e serve como propulsão para a própria criatividade e o poder de imaginação do leitor”, conclui o editor. Isaac Asimov in persona também era um grande personagem. Para além da literatura, o russo esteve envolvido em pesquisas científicas, trabalhos sobre astronomia, química, Shakespeare; além de ter sido membro da Baker Street Irregulars, uma sociedade temática sobre Sherlock Holmes. Querido e respeitado por escritores e produtores cinematográficos de obras sci-fi, Asimov era convidado com frequência para exercer consultoria científica. Isso aconteceu, por exemplo, no primeiro filme Jornada nas estrelas, lançado em 1979. Em 2009, uma cratera em Marte foi batizada de “Asimov”, em homenagem ao célebre literato geek. Sua produção editorial foi massiva. A estimativa é que Asimov tenha escrito ou editado mais de 500 livros. Durante entrevista antológica concedida ao jornalista Bill Moyers, em 1988, o escritor

mostrou-se incomodado com a importância que o público dava aos números. “No fim das contas, fico com a impressão de que ninguém liga para o que eu escrevo.” Hoje, no Brasil, o comportamento dos leitores de sci-fi é diferente. De acordo com Frommer, o gênero de ficção científica está “finalmente transcendendo o nicho”. “A literatura geek passou de uma categoria de ‘leitura excluída’ para a de um produto cultural cool, hype. Não ter lido Isaac Asimov ou Philip K. Dick, hoje em dia, é quase uma heresia literária, não importa muito em qual meio a pessoa está inserida. Acredito que a questão da imersão nos bytes e a ‘tecnodependência’ na qual estamos inseridos também contribui para esse interesse”, aponta. Se mudanças são observadas no padrão de consumo e receptividade dos leitores, muitas premissas levantadas por Asimov tornaram-se atemporais, permanentes. Ele próprio parece ter definido sua literatura na conversa com Moyers: “A história humana é uma coisa caótica. Pequenas mudanças apresentam grandes resultados em direções imprevisíveis”.

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INDICAÇÕES ROMANCE

ELVIRA VIGNA Por escrito Companhia das Letras

HISTÓRIA

F. A. PEREIRA DA COSTA Arredores do Recife

A eterna tensão entre nós e o outro é um dos temas constantes na literatura de Elvira. Em seu décimo romance, a escritora carioca utiliza a protagonista como centro de uma abordagem sobre o não pertencimento, o não caber em certo espaço (concreto ou sentimental). Elvira investiga até que ponto existe anulação e entrega total na nossa vida cotidiana.

Editora Massangana

JORNALISMO

INFANTIL

Biscoito Fino

Cosac Naify

Um tempo de invasões, fortes e igrejas. Léguas no tempo. Saborosa leitura, sobre os (des)caminhos dessa cidade. Assim repercute o livro de Pereira da Costa, que comenta 24 localidades que deixaram de existir ou que foram transformadas pelo crescimento. O leitor pode experimentar a nostalgia do não vivido.

Infantil

O OUTRO LADO DO LOBO MAU São muitas as histórias infantis que trazem o lobo como um vilão causador de distúrbios, de quem só conhecemos algumas características: sua fome insaciável e sua maldade. Em clássicos como Chapeuzinho Vermelho e Os três porquinhos, não temos a chance de conhecer a “versão” do personagem sobre os acontecimentos. Como seria sua vida? O que o levaria a perseguir criancinhas e outros animais na floresta? Contar uma história que invertesse os papéis e colocasse o lobo no centro da narrativa, não apenas como um vilão, mas também como um herói, foi o desafio a que se lançou Habib Zahra, ao escrever O último golpe do lobo mau. O texto – uma “re-versão” da clássica fábula de Esopo Um lobo em pele de carneiro – transforma o animal no protagonista da história, um lobo perigoso, malvado e, acima de tudo, orgulhoso. Para ele, os outros lobos, aqueles das outras fábulas, eram “tristes imitações” . Ele não entendia como seus colegas podiam ser enrolados por três porquinhos, ao entrarem numa chaminé, ou mesmo não conseguirem enfrentar um caçador... Para atacar suas presas favoritas, as brancas ovelhinhas, o “vilão” bola um plano infalível: cobrir-se com uma pele de carneiro e, disfarçado, juntar-se a um rebanho para atacá-las a noite. Porém, tudo muda na vida do lobo, quando ele passa a conviver com as indefesas ovelhas e perceber o quanto é bom cultivar amigos e receber carinho... Segundo Habib, entre outras coisas, a obra pode ser interpretada como uma crítica à “lei do mais forte” que parece reger o mundo de hoje. As ilustrações que acompanham o texto do egípcio, naturalizado brasileiro, são de sua esposa, a espanhola Valeria Rey Soto. Essa é a segunda parceria do casal que, em 2012, lançou o livro O burro errante, também para o público infantil – fábula inspirada nas andanças do autor pelo mundo. O último golpe do lobo mau, cuja edição é muito bem-acabada e valoriza as belas aquarelas produzidas por Valeria, teve o patrocínio do Funcultura e já foi adaptado para o teatro. MARIANA OLIVEIRA

RENATA MARIA DO AMARAL Gastronomia – prato do dia do jornalismo cultural Nesta pesquisa, além da análise sociocultural do incremento da gastronomia no jornalismo cultural, Renata do Amaral documenta e observa críticas e crônicas publicadas em veículos de grande circulação, sobretudo a partir da análise de discurso. Leitura elucidativa.

RUDOLF ERICH RASPE As surpreendentes aventuras do Barão de Munchauser Absurdas e inacreditáveis, as histórias de um veterano de guerra do século 18 percorreram o mundo. Nesta nova edição, as estripulias vividas e narradas pelo Barão de Munchausen ganham contornos do ilustrador paulista Rafael Coutinho. Esqueça a noção de livro apenas para as crianças.

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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

OS TRABALHOS E AS HORAS Faz alguns dias que meu pai morreu. Há dois anos tinha sido diagnosticado um câncer em suas cordas vocais, uma lesão insignificante, mas o oncologista aconselhou que fosse irradiada. Como sequela das 35 sessões de radioterapia, ele ficou rouco e com dificuldade para deglutir. Fumante desde a adolescência, chegara à marca dos 40 cigarros diários. Quando o radiologista examinou a tomografia de pescoço e tórax, espantou-se que valorizassem a mancha vermelha na laringe e não dessem importância ao enfisema pulmonar. Meu pai sempre tapeou a morte. Até os 87 anos nunca sofreu doenças, dormia e comia bem. Cumpria rigorosa jornada de trabalho, só descansando no sábado à tarde. Aos domingos, fazia a feira e ia para a cozinha preparar o almoço da família. Sangrava, escaldava, depenava e tratava a galinha comprada viva; cortava, punha nos temperos e deixava cozinhando. Sentia orgulho de sua força e vitalidade. Humilhava os irmãos cheios de sintomas, enquanto ele vendia saúde. Às vésperas de completar 90 anos, papai ainda tocava seu comércio. Os filhos o proibiram de dirigir, temendo

a segurança dele e das pessoas. A radioterapia se revelara mais danosa do que curativa: o pescoço se tornou rígido, a laringe perdeu a sensibilidade, a glote ameaçava fechar. Comer exigia um enorme sacrifício, por conta da tosse e dos engasgos. Papai, que sempre se orgulhara de ser imune ao fumo, sentiu que os cigarros cobravam a conta. Surgiram os sintomas da doença pulmonar obstrutiva, porém ele nunca se queixava, nem faltava ao trabalho um único dia. Eu o visitava com frequência e numa das viagens ao Crato ele me confessou: estou acabado. Não havia pesar na sua voz, nem lamúria, nem dor. Era uma constatação pragmática. Minhas irmãs faziam guerra para que deixasse de fumar. Do outro lado do front eu permitia que fumasse, pois não se pode tirar de um homem de 90 anos seu derradeiro prazer. Há bem pouco tempo ele perdera a esposa, com quem esteve casado durante 70 anos. Mamãe sofria de uma doença crônica, que a obrigou a viver dentro de uma unidade semi-intensiva, na própria casa transformada em hospital. Sempre me comoveu o silêncio

de papai nesses três anos em que mamãe respirava graças a um aparelho e mal abria os olhos. Numa das visitas, ele me chamou até o jardim. Percebi que desejava comunicar algo importante. – Meu filho, vou lhe dizer uma coisa: eu não acredito em outro mundo. Pra mim, alma não existe. A gente finda quando morre. Não há mais nada além dessa vida. Morreu, pronto, acabou-se tudo. Fiquei calado, com vontade de pedir um cigarro e propor fumarmos juntos. Ele saiu para um passeio na beira do canal, no lugar onde antigamente corria um rio, o Granjeiro, agora transformado em esgoto a céu aberto. Entristecia-me ver papai fumando escondido, achava humilhante, uma degradação. Na penúltima vez em que fui ao seu encontro, achei-o cansado, eliminando muita secreção dos brônquios. Apresentara indícios de uma parada respiratória. Insisti que consultasse o cirurgião de cabeça e pescoço e fizesse uma nova laringoscopia. O exame mostrou a glote quase fechada. O médico propôs cirurgia ou

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KARINA FREITAS

traqueostomia. Ele recusou a cirurgia, falou que estava no fim, preparado para morrer. O jovem cirurgião expôs os riscos de um procedimento de urgência, caso a glote fechasse. Era uma sexta-feira e papai só pensava na feira do Crato, na segunda, quando o seu armazém tinha um pique de vendas. – Fazemos na terça, fechou questão. De volta a casa, quando tentou se alimentar, teve outra ameaça de parada respiratória. Acionamos o médico, foi realizado o procedimento de urgência, ocorreram complicações. Contrariando o que sempre desejara, papai acabou num leito de UTI, de onde saiu morto depois de sete dias. Foi um curto sofrimento para quem sempre viveu bem. No sétimo

Eu o visitava com frequência e numa das viagens ele confessou: eu estou acabado. Não havia pesar na sua voz, nem lamúria, nem dor dia, os filhos tomaram a decisão de levá-lo pra um quarto, onde poderia passar as últimas horas, junto à família. Os protocolos médicos da UTI contrariavam o pragmatismo do homem João Leandro. Para ele, um sertanejo, morrer era um costume que sabia ter toda gente. Mesmo sem o recurso da fala, por conta do

traqueóstomo e do respirador, ele administrava seu comércio com gestos e garatujas mal escritas. Infelizmente, continuou na terapia intensiva. Em meio à agonia de morrer, brincava com as visitas, só perdendo a consciência quando o sedaram para minimizar o desconforto da dispneia. A presença carinhosa dos filhos e netos não provocou suas lágrimas, pois nunca costumava chorar. Porém houve uma hora em que o homem firme cedeu ao pranto. Igualzinho ao relato de Heródoto, que serviu de mote ao ensaio de Walter Benjamim sobre a distensão. Quando conquistou Mênfis, o persa Cambises para humilhar o rei Psaménito mandou desfilar à frente dele sua filha vestida de escrava, na companhia de outras jovens da nobreza. Os pais caíram no pranto, mas Psaménito apenas baixou a cabeça. Depois Cambises ordenou que desfilasse um cortejo com dez mil jovens da mais alta casta, entre eles o filho do rei, todos com uma corda no pescoço e um freio à boca. Iam ser executados. O rei soube controlar os sentimentos e igualmente quando viu a filha, não chorou. Logo após passarem os jovens, Psaménito botou os olhos sobre um velho e andrajoso mendigo e reconheceu nele um dos seus comensais. Despojado de sua antiga riqueza, ele ia de porta em porta implorando um pouco de alimento. Diante da cena, o soberano não se conteve, chamou o homem pelo nome e caiu no pranto. Quando foi interrogado por que procedera dessa maneira, Psaménito falou: “As desgraças de minha família são muito grandes para que eu as possa chorar; mas a triste sorte de um amigo que, já na velhice, cai na indigência, merece minhas lágrimas sinceras”. Papai chorou uma única vez, nos seus derradeiros dias. Foi quando entrou para visitá-lo um velho empregado, que passava o tempo com ele no armazém onde os dois trabalhavam. Papai já não conseguia falar e por isso eu não perguntei o motivo das suas lágrimas. Talvez ele se preocupasse com o futuro do estimado ajudante. Ou talvez se lembrasse com saudade dos trabalhos e das horas que viveram juntos. Amar o trabalho acima de todas as coisas era um mandamento para meu pai. .

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REPRODUÇÃO

RESIDÊNCIA As travessias de Bruno Vilela

Artista pernambucano acaba de voltar de temporada artística em Portugal e trabalha na elaboração de exposição TEXTO Olívia Mindêlo

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Conta a mitologia grega que Pã,

deus dos bosques, rebanhos e pastores, amedrontava aqueles que tinham de atravessar noites em matas escuras e misteriosas. Divindade campestre, personificação da natureza, Pã despertava o imaginário supersticioso dos mortais, que, por sua vez, o associavam aos pavores súbitos, sem explicação aparente. Thomas Bulfinch (1796 –1867) conta essa história em seu famoso A idade da fábula, ou Livro de ouro da mitologia, e escreve que os chamados “terror e pânico”, ou simplesmente pânico, passaram a ser atribuídos a esses medos repentinos. Tomado pela mitologia, o artista Bruno Vilela gosta de compartilhar saberes dessa estirpe, seja na arte ou na vida – dimensões que, aliás, não se separam. Bruno lembra que a palavra pânico, tão em uso hoje em dia, em pleno solo de concreto, vem de Pã e revela que, com essa figura, já “tomou um chá e fumou um charuto”, mas no momento atravessa “a ponte” sem medo. “Quando as pessoas estão insatisfeitas com um casamento ou um emprego, por exemplo, e permanecem neles; quando não conseguem dar o salto e se apegam a uma estrutura de vida falida, a água fica parada e apodrece. Então, algumas decidem mudar de uma vida para outra e atravessam a ponte. Nesse caminho, elas geralmente encontram Pã. O que acontece é que há as que ficam com medo e voltam, mas é preciso ‘pirar’ com Pã, mergulhar no turbilhão, e seguir”, disse Bruno Vilela, cuja fase atual de vida-arte encontra-se, como ele diz, em uma “zona fronteiriça”. Ou seja, algo que poderia estar entre o desenho e a pintura; entre a fama e o anonimato; a luz e a escuridão; ou, mesmo, entre o Brasil e Portugal, onde mora seu irmão e artista Márcio Vilela, e para onde Bruno tem ido desde o ano passado. Seja como for, a trajetória do artista pernambucano está em plena transformação e ascendência. Em 2014, por exemplo, teve a exposição individual Animattack sob curadoria de Moacir dos Anjos, na Galeria Amparo 60, no Recife, e passou dois meses em residência artística no Carpe Diem Arte e Pesquisa, sediado no edifício secular do Palácio Pombal, em Lisboa. Dessa

vez, Bruno foi a convite da instituição cultural portuguesa e com apoio do colecionador Sérgio Carvalho, que vive em Brasília e tem em sua coleção nomes de diferentes estados do Brasil, incluindo Pernambuco, como Marcelo Silveira, Oriana Duarte e Amanda Melo. Seu conjunto de arte contemporânea brasileira ganhou tanta expressão, que Sérgio foi chamado a expor este ano, no Paço das Artes, em São Paulo, parte de suas obras na mostra Duplo olhar – coleção Sérgio Carvalho. Aqui, não há como esquecer o ímpeto de gente como o colecionador e galerista pernambucano Marcantonio Vilaça (1962–2000). Carvalho parece seguir a mesma linha, apostando em artistas emergentes, como é o caso de Bruno Vilela, que ainda não estava em sua coleção. Agora, parte dos trabalhos produzidos pelo artista em Portugal irá se juntar ao acervo do colecionador.

ALÉM-MAR

Em setembro de 2015, Bruno deverá voltar a atravessar o mar para mostrar, no mesmo local de sua residência, o resultado de sua experimentação artística na capital portuguesa. Deverão ser expostos seus estudos, feitos a partir de paisagens fotografadas em viagens por diferentes regiões de Portugal; pinturas a óleo, em diversos tamanhos, que ele produzirá no primeiro semestre do próximo ano, com a mesma fonte de inspiração, as paisagens; e um caderno de artista, que é uma espécie de diário em Lisboa. “No dia da abertura, vai ser lançada uma caixa com duas publicações: o catálogo das obras e dos estudos, e uma cópia em fac-símile do diário. Além disso, vai haver o lançamento do curta-documentário feito por Beto Brant e Cláudio Assis sobre minha produção”, antecipou o artista, enquanto ainda estava em residência, em novembro passado. E para onde leva agora a ponte a que se referiu Bruno? “Acredito que meu trabalho tenha amadurecido e está apontando para um caminho sem volta. O principal é a vida e a arte é resultado dessa vida. Viajar, conhecer pessoas, estar próximo dos amigos”, respondeu. Para definir a sua obra, gosta de remeter à ideia de contrastes ou à noção de escuridão e luz do mito

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Visuais Página anterior 1 O ANCESTRAL Pintura da série Animattack sintetiza caráter de mistério e terror recorrente na obra do artista Nestas páginas 2 IMERSÃO Na residência, Bruno trabalhou no sótão do palácio do Marquês de Pombal

3

ELA Pastel seco sobre papel, obra fez parte da exposição Animattack

de Perséfone, a deusa que se divide entre a terra e o mundo dos mortos, simbolizando a primavera e o inverno. Na linguagem de Bruno, no campo das artes, isso se reflete tanto em seus momentos de recolhimento e criação no ateliê, quanto nos de holofotes expositivos. Reflete também na paleta que usa em pinturas e desenhos, ora soturnos, ora solares – nos últimos tempos, muito mais misteriosos e carregados de simbologias. Nos trabalhos que estão por vir, ele mantém os tons escuros – como o preto, o azul profundo, o roxo e o verde-musgo – presentes em Voodoo drama e Animattack, suas últimas exposições no Recife, na Amparo 60. Em Portugal, essas cores coincidiram

com as paisagens outonais/invernais que encontrou, entre outubro e novembro, nos locais por onde passou. Entre os quais, Serra dos Gerês, Serra da Estrela, Cabo da Roca, Sintra, Praia de Nazaré e Tomar, para onde viajou nos finais de semana, com intuito de colher imagens para desenvolver seus estudos no ateliê do Palácio Pombal, de segunda a sexta. “No Recife, trabalho todos os dias da semana, o dia todo, como um funcionário. Mas aqui é diferente, estou em função da arte. Começo com a memória fresca de uma viagem incrível que acabei de fazer. Depois, estou no sótão do palácio de Marquês de Pombal. Vivo cercado de história, parece um filme. Isso vai mexendo com a cabeça e o trabalho é outro”, disse, ainda em Portugal.

SELVAGEM

Interessante notar que Bruno Vilela está sempre próximo da natureza, como a própria mitologia ou os lugares que escolheu para viajar no país dos navegantes. A Serra da Estrela, por exemplo, abriga um parque natural

de ecoturismo, com montanhas e vegetação típica. O Cabo da Roca pertence a outro parque natural português, o de Sintra Cascais, com paisagens espetaculares. O mesmo pode se dizer da Serra dos Gerês, a segunda maior elevação de Portugal continental, com 1.546 metros de altitude, ou da Praia de Nazaré, que é pico de surfe. Nas andanças do artista, somente Sintra e Tomar têm mais carga histórica do que natural. Mesmo assim, ele fotografou florestas aí. No Brasil, não costuma ser diferente para Bruno, apaixonado por destinos como a Chapada Diamantina, na Bahia, onde já desenvolveu a série de trabalhos fotográficos Búfalo branco e Ofélia, que tem a artista Gio Simões Glasner como intérprete de suas personagens. Mesmo em Lisboa, fez “um bando de imagens no Jardim Botânico e no Parque de Monsanto”, como conta. Um dos estudos resultou no desenho em pastel preto de dois ciprestes, árvores do tipo pinheiro ou coníferas, de zonas temperadas e comumente vistas em cemitérios.

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ALEXANDRE SEVERO/DIVULGAÇÃO

Homenagem

PARA ALEXANDRE SEVERO Para o artista, a imagem do cipreste lembrou chifres e foi assim que intitulou seu trabalho de O Diabo, que estará presente na exposição de 2015, no Carpe Diem. Para Bruno, essa relação com a natureza é, antes, a ponte para uma dimensão selvagem e misteriosa, mesmo quando ele se fixa no aspecto humano. O quadro O ancestral (óleo sobre tela, 150 x 200 cm), presente na citada Animattack, ilustra essa noção. Como descreve o curador Moacir dos Anjos, no texto da exposição, “nele, vê-se uma figura entre homem e animal – ou quiçá híbrido de gente e espírito – que dá as costas a este mundo do lado de cá e adentra uma floresta escura. Faz recordar que esses são trabalhos que demandam, de quem os vê, atentar para o que está além do que eles podem jamais exibir”. É como

se Bruno Vilela espreitasse as elipses de nossa alma e transformasse em traço, em pincelada, nossas dimensões naturais mais fantásticas e profundas. A missão de Bruno seria apontar para esse lugar do imaginário. O próprio conceito de Animattack nasce da junção do termo anima, de Carl Jung, com a ideia de ataque e pânico associada à entidade da floresta. Podemos dizer que isso é amadurecimento, pois não é de hoje que o artista vasculha o seu lado bicho e fareja os caminhos de sua ancestralidade. Desde as ninfas com meias listradas a figuras sombrias, como a da obra O ancestral, a carga mitológica e psicológica faz parte do arsenal criativo de Bruno. São temas também caros à história da arte, mas nas mãos do artista eles se atualizam e ressurgem sob novas feições.

O trabalho de Alexandre Severo tornou-se conhecido entre aqueles que acompanham a produção fotográfica no Recife, sobretudo o fotojornalismo, por sua atuação na grande imprensa e participação em reportagens especiais, que resultaram em ensaios marcantes como À flor da pele (sobre crianças albinas, 2009, na imagem acima), Sertanejos (série de retratos para reportagem realizada a partir da leitura de Os sertões, de Euclides da Cunha, 2009) e Cambinda brasileira (documentação do maracatu rural, 2012). No dia 13 de agosto deste ano, o fotógrafo foi vítima do acidente de avião que matou integrantes da equipe de campanha do presidenciável Eduardo Campos, da qual fazia parte. Agora, numa homenagem póstuma, Severo é tema da exposição Pela luz dos olhos teus, em cartaz na Arte Plural Galeria (Rua da Moeda, Bairro do Recife), até o dia 20 de dezembro. A curadoria da exposição passou por duas fases. Na primeira, 19 amigos fotógrafos selecionaram, cada um, três imagens que gostariam que integrassem a mostra. Depois, a curadora Simonetta Persichetti escolheu uma de cada trio para compor um conjunto de 19 fotos, que contemplassem os principais ensaios do homenageado. Entre as pessoas que participaram da seleção, estão Ana Lyra, Guta Galli e Rodrigo Marcondes (que escolheram juntos), Lia Lubambo, Luciana Cavalcanti, Marcos Michael, Paulo Fahlauer, Renato Spencer, Ricardo Reichardt, Thiago Calazans e Rodrigo Lobo. Em São Paulo, onde Alexandre Severo estava morando desde que deixou o Recife em busca de novas perspectivas profissionais, outro grupo de amigos coletou online contribuições em dinheiro para ampliar em grande formato fotos de seu acervo e espalhálas pela cidade. Com as doações, conseguiram expandir o projeto para o Recife. Agora, o grupo se empenha em reunir verba para financiar um documentário que registre o projeto, que se chama Bem-vindo ao meu coração.

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José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

JURURU

Do tupi xearu’ru , estar tristonho (Aurélio), palavra não minha conhecida de que o pintor Carybé gostava (Hector Julio Páride Bernabó, Lanus, Argentina, 1911-Salvador, 1997). Ando me sentindo aéreo, ouvindo somente o eco das coisas. Sem perder a noção dos deveres, no entanto. Morte de um rapaz que trabalhava para mim. Acidente de moto. Esticava tela etc. Eu mesmo posso fazer esse trabalho. Era mais um conforto. Muitos pintores achavam melhor não ter ajudante, como o próprio Carybé depois da época em que trabalhei com ele nos murais. Ou Miró, que disse numa entrevista não ficar à vontade, e deu o exemplo de uma dor de barriga que terminou num quadro: a tinta vocês imaginam. Parece que li isso num livro. Noutra entrevista na televisão disse que a certa altura da vida ficou cego durante algum tempo sem saber que poderia recuperar a visão. Mas recuperou. Nessa ocasião da entrevista na televisão, já estava muito velho, não tinha mais força para erguer o braço, pegar no pincel e dar um traço

na tela: disse que isso era mil vezes pior do que ficar cego. Aliás conheci em São Paulo, anos cinquentas, Joan Ponç, pintor mais ou menos da minha idade, que trabalhara com Miró, não sei se na qualidade de empregado ou aluno. Disse que aqueles riscos que ele traçava na tela, fazia bem devagarinho, a mão quase imóvel, se deslocando quase imperceptivelmente, quando, à primeira vista, parece que o pincel riscou a tela na maior velocidade, num gesto impulsivo. Também, quando fui pintar o retrato de Gil Vicente, ele me vendo pintar, disse ter se surpreendido com a minha vagarosidade, e que meus quadros sempre lhe tinham dado impressão de pintados com maior rapidez. Enquanto principiava essas lucubrações, o telefone tocou. Era Hélio Masur, para me dar os pêsames. Ele disse que sempre teve vontade de ter uma moto. Mas não aqui. Só se morasse na Noruega ou no Canadá. Ele disse que aqui não temos condições de ter nem um automóvel, quanto mais

moto. Não temos condições nem de ter estradas. Eu concordo. Me lembro muito bem quando tomei conhecimento do automóvel, quando entrei nele pela primeira vez, vi como andava, o volante da direção, e notei imediatamente quão perigoso seria dirigir uma geringonça daquela. Nunca, nenhuma vez, nestes meus oitenta e dois anos e dois meses de vida, tive vontade de guiá-lo. Nunca me sentei diante da roda do volante fazendo bi-bi-te fingindo guiá-lo como os outros meninos faziam. Talvez, pensava eu, tocando inadvertidamente num daqueles botões ou alavancas ele saísse do canto e eu não pudesse freá-lo, ele pudesse matar uma pessoa, bater em alguma coisa e danificá-la, ou danificar-se, ou a mim. Alcancei os primórdios do automobilismo em Ipojuca, quando lugar isolado. Muita gente morria de velho sem nunca ter botado os pés no “Rucife”. Sempre cito descrição de um caminhão feita pelo Mestre Eugênio, do Maracatu Dois de Ouro, que virou Gato Preto, ou vice-versa, que era a nossa literatura, como quem descrevesse

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ILUSTRAÇÃO: JOSÉ CLÁUDIO

algo apocalíptico: “Seu Barreto tem um caminhão/tem caixa de marcha/ acelera na mão//Também tem/um cardam de lata/com quatro borracha/ pra correr no chão”. Deus nos livrasse de chegar junto de um bicho desse, mais imprevisível, veloz, maior e mais feroz do que boi brabo, porque boi é de carne, não uma coisa insensível. E olhe que minha mãe perdeu um único filho homem que teve depois de mim, que seria o meu único irmão homem, por causa do susto causado por um boi brabo que entrou na loja de meu pai. Só fui andar de moto na África, no Benin, em 1993, com 61 anos. Lá não tinha táxi e pouco se via carro, particularmente na cidade onde eu estava, Uidá. Também não tinha miséria nem favela que eu tenha visto ou sabido, nem ouvi falar de desastre. Hoje, não sei, mas na época bem poderia o Benin constar da lista de Hélio Masur. Certa vez, de dia, o mototaxista fez um caminho inusitado, enveredou pelo aceiro de uma mata e por dentro de um cemitério, isto é, um cemitério que ficava no aceiro de uma mata,

Só fui andar de moto na África, no Benin, em 1993, com 61 anos. Lá não tinha táxi e pouco se via carro na cidade onde eu estava, Uidá lugar ermo, e me perguntou se eu estava com medo. O francês dele era tão fraco quanto o meu, porque a língua nativa dele era o fon. Só sabíamos as palavras essenciais. Respondi que não, porque todos nos haviam visto sair naquela moto dele e se eu não chegasse ao destino certamente iriam pedir contas a ele. O cemitério de Uidá não mete medo mesmo a gente passando pelo meio dos túmulos, assinalados com uma lapidezinha em pé, de mármore, de dois ou três palmos, sem cruz ou outros símbolos distintivos de religião ou o que seja. Não tem lugar onde um fantasma se esconda, sem muro ou outra delimitação, um mato meio careca que não dá para

saber se plantado ou nascido por si. Parece que morte lá não dá ibope. “Põe em ordem a tua casa porque amanhã morrerás”, disse o profeta Isaías ao rei Exequias. No ano 2014 quase somente o que fiz foi falar de mortes. Samico, Liêdo, Maria Carmen, Abelardo. Seguindo os conselhos do amigo Joaquim Falcão, homem previdente, bem mais moço do que eu, estou começando a trabalhar no POM, Programa, Projeto ou Providências da Organização da Morte, que eu sugiro da Ultimação da Morte, PUM, pensando, entre outras coisas, na lenda indígena do veado e a onça e o jabuti. Li no colégio, tempo de ginásio, não sei em que livro. Deve ter na internet. O veado e o jabuti encontraram no meio da mata, por onde costumavam andar, uma onça morta. Isto é, presumivelmente morta. Sem se aproximarem demais, que seguro morreu de velho, o jabuti perguntou ao veado, como em segredo, mas suficientemente alto que a onça, caso viva, pudesse ouvir, se ela, a onça, já tinha soltado o peido, prova definitiva de sua morte. A onça, atentíssima à conversa dos dois, soltou um sonoro pum. O jabuti aí disse ao veado, desta vez sem que a onça pudesse ouvi-lo: “Vamos embora, compadre. A onça está viva”.

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JOBIM & PIAZZOLLA Eu, você, nós dois

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ÚNICO ENCONTRO Tom Jobim e Piazzolla, com Chico e Caetano, para ensaio de programa de TV, em 1986

As semelhanças e os encontros na obra desses grandes músicos latino-americanos, que souberam propor um diálogo entre as tradições musicais populares e eruditas TEXTO Lucas Colombo

Sonoras Até onde se sabe, aqueles que Vinicius

de Moraes considerou, nos anos 1970, serem os dois maiores músicos modernos da América Latina – para o futuro confirmá-lo –, só se encontraram uma vez, nos ensaios do programa Chico & Caetano, apresentado por Chico Buarque e Caetano Veloso na TV Globo, em 1986. Tom Jobim e Astor Piazzolla eram os convidados da edição de maio. Por pouco, contudo, o roteiro não teve de ser rasgado. Irritado por Chico não ter concluído a letra para um tango que compusera, a ser executado no programa, o argentino quis ir embora da gravação. No que o diretor Daniel Filho, para não perdê-lo, lançou mão de uma boa jogada: “Espere, gostaria que conhecesse o maestro Antonio Carlos Jobim”. Ao ver o colega brasileiro, então, Piazzolla ficou calmo e respeitoso. Os dois tiveram uma conversa animada, inclusive sobre as “omissões” do parceiro Chico, e a gravação do programa – em que Jobim tocou Coração vagabundo (de Caetano), Sabiá, Tema de Gabriela e Águas de março, e Piazzolla, Michelangelo 70 e Adiós Nonino – transcorreu bem, sem cenas de drama argentino ou de desorganização brasileira. Se encontro “físico” só houve esse, e se os países e gêneros musicais dos dois são diferentes, o mesmo não se pode dizer de suas trajetórias e das

características de suas obras. Jobim e Piazzolla têm vários pontos em comum e causaram impactos culturais similares em seus países. Nascido em 1927 e morto há 20 anos, em dezembro de 1994, Jobim estudou música sinfônica na juventude e iniciou a carreira tocando piano em bares e boates cariocas e fazendo arranjos para cantores, até ser convidado por Vinicius para musicar Orfeu da Conceição. Nascido em 1921 e morto em 1992, Piazzolla, também lembrado neste 2014 em razão dos 40 anos de Summit – reunión cumbre, disco que gravou com o saxofonista Gerry Mulligan e que se tornou um dos mais estimados do jazz, de igual modo estudou piano clássico na adolescência – bandoneón, ele aprendeu ainda criança – e começou a trabalhar como músico em pequenos shows em Buenos Aires, até entrar para a orquestra tanguera de Anibal Troilo e, depois, fundar seu próprio grupo. O gosto de ambos por música de concerto, porém, conviveu com audições de jazz e música “popular” de seus países. Jobim, apreciador de Chopin, Ravel, Debussy e Villa-Lobos, também foi formado por Gershwin, Pixinguinha e Caymmi. Piazzolla, ao mesmo tempo em que adorava Bach e Stravinsky, ouvia Duke Ellington e, claro, Gardel. A mistura desaguou em seus trabalhos autorais. Uma das marcas

das obras de Jobim e Piazzolla é, justamente, o rompimento de fronteiras entre “erudito” e “popular”. Os acordes e melodias inspirados em sonatas e prelúdios que Jobim trouxe ao samba – ouça: os primeiros compassos de Insensatez têm quase as mesmas harmonia e melodia do Prelúdio em mi menor, op.28, n.4, de Chopin –, unidos depois à batida sincopada do violão de João Gilberto, configuraram a bossa nova. Piazzolla, também nos anos 1950, empreendeu uma revolução análoga: aliou o tango a formas que conhecia do jazz e de peças sinfônicas e, assim, levou-o para salas de concerto, e não apenas para salões de baile, como era comum até então. “Tanto Jobim quanto Piazzolla usam à exaustão aquela harmonia que vem de Bach: ir descendo os baixos. As harmonias de Insensatez e Libertango, por exemplo, que são quase as mesmas, vêm desses baixos contínuos barrocos, de onde Chopin partiu também”, analisa o músico e radialista gaúcho Arthur de Faria, fã dos dois compositores. O nuevo tango de Piazzolla comportava ainda dissonâncias típicas do jazz e da música “erudita” do século 20, da qual Stravinsky é o maior nome. Jobim igualmente formava acordes dissonantes (mas sem soar difícil ou desagradável).

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JANIO SANTOS SOBRE REPRODUÇÃO

A conexão com o jazz, nesse aspecto, se dá porque os músicos do bebop, segundo Arthur, estudaram os mesmos impressionistas franceses que Jobim estudou, e Piazzolla também, embora sua ênfase tenha sido em Stravinsky.

FALSA DIVISÃO

Ambos sabiam que andavam num terreno livre. “Não defino linhas de fronteira entre a música popular e a erudita. Inclusive Chopin, Villa-Lobos, estão cheios de temas populares dentro da música erudita. Essa divisão é falsa, não leva a nada”, declarou Jobim. Villa-Lobos, aliás, autor tanto de choros e valsas quanto de obras orquestrais, talvez tenha sido a maior referência do pianista. Piazzolla parecia concordar sobre essa “falsa divisão”: dizia que a “lógica interna” do seu trabalho embasava-se na música de concerto, apesar de ter as raízes no tango. “Tanto os músicos de tango como os eruditos me odeiam”, afirmava. Ele compôs Las cuatro estaciones porteñas, inspirado em Vivaldi, mas as fez em separado, sem querer montar uma suíte em quatro movimentos. Além disso, chegou a

Tanto o músico brasileiro quanto o argentino dividiram álbuns com saxofonistas expoentes do jazz elaborar peças estritamente “eruditas”, bem como Jobim. Essas, contudo, não alcançaram a mesma expressão que as composições “populares” deles. Jobim contestou Paulo Francis, quando o jornalista disse que bossa nova era “50% jazz”, porém nunca negou que a música americana também o formou. Como atesta até um título de canção, houve influência do jazz, sim, na gestação da bossa nova. Parcerias com músicos dos EUA, por sinal, de igual modo marcam Jobim e Piazzolla. Os dois dividiram álbuns com saxofonistas expoentes do jazz: Stan Getz, no caso de Jobim, e o já citado Gerry Mulligan, no de Piazzolla. O primeiro encontro resultou em Getz/Gilberto, disco lançado há 50 anos e que, com João Gilberto

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ao violão e nos vocais, traz a versão mais envolvente de Corcovado. Já Summit contém a arrebatadora Años de soledad. Eles podiam, ainda, trabalhar ou não com palavras. Jobim era mais cancionista, mas compôs vários temas instrumentais. Três, de forte inspiração villa-lobiana e debussyana, estão no disco Urubu, de 1976. Piazzolla, nesse quesito, era mais de criar temas: fez sucesso com Balada para un loco (“Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao…”), parceria com o poeta Horacio Ferrer, e, com As ilhas, que compôs com o brasileiro Geraldo Carneiro, e foi gravado por Ney Matogrosso. Aproximam-se de novo, entretanto, nos ataques que sofreram em seus países. Com suas aberturas ao que de bom se produzia nos EUA e na Europa, Jobim e Piazzolla, claro, foram acusados de “desnacionalizar” seus gêneros. O pesquisador José Ramos Tinhorão e o escritor recentemente falecido Ariano Suassuna, para citar dois críticos notórios, tacharam Jobim de “americanizado”, quando o que ele fez foi modernizar a MPB, não americanizá-la (como escreveu Daniel

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REPRODUÇÃO

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Sonoras

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Piza, “no Brasil, quando se olha o fundo das opiniões, o que se encontra é o raso da ideologia”). Na Argentina, puristas igualmente desprezaram Piazzolla, por verem em seu trabalho, em que tinham vez até instrumentos como vibrafone e guitarra elétrica, um abandono da tradição do tango. Quem tem ideia do que fala, todavia, sabe que ambos os músicos conjugaram o nacional ao internacional, num diálogo saudável e frutífero. Olhavam para dentro e para fora, atitude rara na cultura latino-americana, tão polarizada. E, desse jeito, renovaram e enriqueceram a música de seus países – a bossa nova que Jobim ajudou a criar, por exemplo, é samba, mas mais complexo, com harmonias intrincadas e outra divisão rítmica. Tal incompreensão nacional colaborou para que Jobim e Piazzolla tivessem maior sucesso no exterior. O argentino era particularmente admirado na Europa e América Latina. Jobim, por sua vez, embora sempre tocasse aqui, não se conformava em ser mais reconhecido em Nova York do que numa cidade brasileira.

TRILHAS

Outro traço comum a eles é a composição de trilhas sonoras memoráveis. Jobim criou, entre outras, a do filme Gabriela (1983), de Bruno

Embora sempre tocasse no Brasil, Tom Jobim não se conformava em ser mais reconhecido em Nova York que aqui Barreto, adaptação do romance de Jorge Amado, na qual consta o Tema de Gabriela, e fez a canção-tema de Eu te amo (1981), de Arnaldo Jabor, belamente letrada por Chico Buarque (“Na bagunça do teu coração/ Meu sangue errou de veia e se perdeu”). Elaborou ainda as músicas da minissérie global O tempo e o vento, adaptação da obra de Erico Veríssimo, exibida em 1985, entre as quais a não menos bela Passarim. No mesmo ano, Piazzolla desenvolveu a trilha ora agressiva, ora romântica de Tangos, o exílio de Gardel, filme de Fernando Solanas sobre um grupo de artistas portenhos exilados em Paris durante a ditadura militar argentina (1976-83). As cenas iniciais, de muito apuro visual, mostram um casal a dançar Duo de amor em pontes sobre o Sena. Mas familiares também motivaram os dois: Jobim fez Ângela para Ana Lontra, sua segunda mulher, e Samba de Maria Luiza para a filha caçula;

20 ANOS SEM TOM Ao falecer, em dezembro de 1994, compositor havia deixado obras fundamentais para a música brasileira

Piazzolla compôs a triste e linda Adiós Nonino, de longe sua melodia mais conhecida, após saber da morte do pai. Por fim, ligam-nos os fatos de terem, depois de tudo, se tornado grandes mestres, com raros a ainda torcer-lhes o nariz, e de suas obras representarem suas nações para o mundo. Só faltou uma parceria. Treze anos antes do encontro na Globo, Piazzolla, numa entrevista em que se revelou fascinado pela MPB, disse que gostaria de trabalhar com Jobim: “Não me importa que ele seja brasileiro, como a ele não deve importar que eu seja argentino. A única coisa que deve importar é que a gente faça boa música”. Não passou de um desejo, mas a justificativa permanece. Professor do curso de música popular da UFBA e baixista da Banda Base, de música instrumental, Ivan Bastos parece tê-la em mente: uniu os estilos dos dois criadores num tema chamado Antonio e Astor. “Sem racionalizar muito, achei, à medida que fui compondo, que havia algo de nuevo tango na parte A da música, a qual me remetia a Piazzolla. A parte B é mais bossa nova, mais Jobim”, conta. Já executada pela Orquestra Sinfônica da Bahia, Antonio e Astor evidencia o diálogo travado pelas obras e vidas dos geniais Jobim e Piazzolla. Apreciador de música, outro artista genial, Machado de Assis, no conto Trio em lá menor, apresenta a personagem Maria Regina, pianista amadora dividida entre dois pretendentes que vê como complementares. Uma noite, ela sonha que morre e sua alma voa até “uma bela estrela dupla”, que se parte em duas. A moça, a voar de um pedaço para outro, ouve então uma voz dizer que aquela era sua pena: oscilar para sempre entre dois astros, “ao som desta velha sonata do absoluto”. Pois optar entre Jobim e Piazzolla também parece tarefa ingrata – a audição de um enriquece a do outro. Melhor ficar com ambos. Isso, porém, não seria uma “pena”, mas uma fonte de prazer estético. Eterna.

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CORDAS Uma celebração ao violão

Embora seja restrito o círculo de compositores que criaram obras clássicas para o instrumento, a exemplo de Villa-Lobos, ele conta com autores dedicados, como Ricardo Tacuchian TEXTO Carlos Eduardo Amaral

Como brinca Fabio Zanon, logo no

prefácio de Ricardo Tacuchian e o violão, sempre que algum violonista pleiteava ingressar na pós-graduação, era logo perguntado ao candidato “que aspecto da obra de Villa-Lobos você pretende estudar?”, tamanha a gravitação que as peças deixadas pelo compositor brasileiro exerceram durante anos, na

falta gritante de gravações, partituras e execuções do repertório violonístico de outros compositores brasileiros. Mal se sabe que o próprio Villa-Lobos experimentou diversas dificuldades para ter suas obras para violão tocadas e gravadas, tendo recebido aclamação primeiro no exterior – graças ao amigo Andrés Segovia (tido como o maior

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virtuose das seis cordas na história), que o estimulava a escrever peças de elevado nível. O “Villa” fez parte, ainda por cima, de um círculo muito restrito de criadores musicais que dominavam o instrumento, a exemplo de Berlioz e Paganini. Essa capacidade de tocar violão, e de saber as técnicas de escrita específicas dele, foi um fator que afugentou os demais compositores da tarefa de criar peças para o instrumento. Tal receio tem-se dirimido com a colaboração cada vez maior entre compositores e intérpretes, quando os compositores passam a adotar uma postura mais aberta e humilde, de aprender com os intérpretes os meandros técnicos evoluídos desde os tempos de Fernando Sor (1778-1839). É o caso de Ricardo Tacuchian, que compõe há cinco décadas, e, como professor, contribuiu para a abertura do primeiro bacharelado em Música com habilitação em violão no país, em 1980, na Escola de Música da UFRJ. O ex-presidente da Academia Brasileira de Música por duas gestões (1993–1997, 2006–2009) escreveu 38 partituras incluindo o instrumento, sendo 29 solo,

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Página anterior 1 INTÉRPRETES Compositor, ladeado pelo Quarteto Radamés Gnattali Nesta página

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ESTUDO Tacuchian, ao lado de Humberto Amorim, que realizou dissertação sobre sua obra

Sonoras desde 1978, o que motivou Humberto Amorim a dedicar-se à análise delas no mestrado que fez de Interpretação em Violão Clássico, na Espanha. A dissertação do violonista rondoniense nascido em Manaus transformou-se em um livro editado pela Academia Brasileira de Música (o segundo de autoria dele, com o selo da instituição, depois de Heitor VillaLobos e o violão) e lançado junto com um DVD, em razão das comemorações dos 75 anos de idade de Tacuchian em 2014. O DVD contém gravações de boa parte das obras estudadas (feitas por Humberto em cinco países), as respectivas partituras em PDF e uma entrevista inédita com o compositor.

PRECONCEITO

Em um país que aparenta ser de grande tradição violonística, como o Brasil, chama a atenção que o primeiro curso superior de violão tenha surgido apenas nos anos finais do regime militar. A resistência ao instrumento deveu-se a resquícios de um preconceito bastante difundido, como conta Humberto Amorim: “O estigma de instrumento ‘menor’ não foi importado da Europa. Ele nasceu e se sedimentou em solo brasileiro a partir, sobretudo, da segunda metade do século 19, quando o violão passou a ser identificado e associado simbolicamente com gêneros de música popular e personagens sociais das classes mais baixas”. Em meio à repressão, o violão ia contribuindo para a formação de gêneros musicais hoje consagrados, como o choro, o samba e, um pouco antes, o lundu, o maxixe, e outros. “Tais gêneros, discriminados socialmente e nos quais o violão tinha ampla presença, ajudaram a construir uma imagem de ‘instrumento de vagabundos e desocupados’. Havia uma lenda urbana

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de que os policiais, nessa época, ao se depararem com sujeitos nas ruas, observavam primeiramente se neles havia ‘calos nos dedos’. Se houvesse, eles seriam levados diretamente para o xadrez”, completa o violonista. Ricardo Tacuchian comenta a visão academicista sobre o violão até os anos 1970, influenciada por aquele estigma:

No Brasil, o violão sofreu o estigma de instrumento “menor”, por ser associado simbolicamente a gêneros populares “A Escola de Música da UFRJ é hoje uma instituição progressista e muito atuante, com professores excepcionais. Entretanto, ela foi uma escola conservadora, não obstante também possuísse excelentes professores. O grupo dominante nunca admitiu conviver com um instrumento que tinha a fama de música ‘inferior’. Essa mentalidade sempre me incomodou, principalmente depois de conhecer a obra de Villa-Lobos para o instrumento. A oposição ao violão, na UFRJ, nunca foi ‘oficial’, mas a meias palavras.”

Com a volta ao Brasil de Turibio Santos – o primeiro a gravar todos os 12 estudos de Villa-Lobos –, em 1980, Tacuchian propôs a criação do curso de violão na UFRJ e o reconhecimento do título de notório saber ao virtuose maranhense, confiando-lhe a direção do curso, em seguida. O compositor rechaça qualquer glória para si nesse processo: “Meu único mérito foi ter tido a sensibilidade de perceber que ‘estava na hora’ (do curso)”.

INEDITISMO

Ricardo Tacuchian e o violão é o primeiro livro dedicado à obra violonística de um compositor clássico brasileiro após Villa-Lobos e também o primeiro focado no músico carioca. O capítulo inicial faz uma revisão bibliográfica de citações, verbetes e artigos sobre Tacuchian, além de escritos do próprio compositor, enquanto que o segundo capítulo aborda aspectos biográficos e profissionais – regente, professor, líder cultural, pesquisador e criador. A descrição das fases musicais de Tacuchian, no segundo capítulo, abrange do nacionalismo e neoclassicismo da década de 1960, do pluralismo sintético dos anos 2000 até o presente, passando pelo vanguardismo dos anos 1970 (resumido na série de oito Estruturas, para diversas formações instrumentais)

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INDICAÇÕES e pelo pós-modernismo das duas décadas seguintes (representado mormente no noneto de câmara Rio/L.A. e no balé Hayastan). Dentre os fatos mais interessantes do lado pessoal de Tacuchian, filho de um armênio com uma descendente de libaneses, estão o dilema entre a medicina e a música (ele fez as duas graduações paralelamente e trabalhou durante alguns anos como médico, até se decidir de vez pela composição), e a censura da ditadura, quando teve sua Cantata dos mortos (1965) impedida de ser estreada em 1969, por causa da letra de Vinicius de Moraes – a peça só viria a público após a revogação do AI5, em 1978. O compositor narra o episódio: “Meu professor José Siqueira era amigo de Ayres de Andrade (diretor musical da Sala Cecília Meireles entre 1966 e 1970) e conseguiu um espaço para a obra. Alguns dias após, fui chamado pelo Ayres para ele me informar que a obra não poderia ser programada, por causa do texto. Na época, eu era um jovem e desconhecido compositor e aquela seria uma grande oportunidade de apresentar em público meu primeiro trabalho de fôlego. Foi como água na fervura. Eu me lembro que ele, muito amigavelmente, me disse que era melhor para mim porque a obra falava muito em liberdade. Isso poderia trazer complicações políticas para mim. Quando voltei, desanimado e frustrado, para casa, reli o poema do Vinicius e não encontrei, nenhuma vez, a palavra liberdade”. A segunda metade do livro é que entra no mérito da análise composicional das 38 peças tacuchianas para (ou com) violão, abordando estruturações, técnicas,

linguagens, dedilhados e contextos extramusicais, e incluindo considerações tanto do autor quanto de outros intérpretes conhecedores das partituras estudadas. Mesmo sendo uma publicação de um trabalho originalmente acadêmico, os capítulos iniciais de Ricardo Tacuchian e o violão poderiam ter sido mais enxutos, e todas as notas de rodapé e referências autorais estilo ABNT não fariam falta, se adaptadas ou abolidas. Contudo, a clareza e riqueza das explicações mais técnicas e a complementação que o DVD oferece a elas compensam aquele ponto. O que fica evidente do pensamento composicional de Tacuchian ao longo de todo o livro, tal qual Humberto destaca em uma epígrafe, serve de lição para os compositores atuais, sejam quais forem as linguagens adotadas por eles: “Todo este edifício teórico pode ser subvertido a qualquer momento. A expressão sempre terá prioridade sobre a norma”. Fabio Zanon explica como esse pensamento do compositor se traduziu em quase 40 preciosas obras: “…muitos compositores adotam uma máscara quando escrevem para violão. Ao moldar sua linguagem ao instrumento, diluem-na; a obra de violão é de ocasião, adota um colorido de latinidade superficial, para atender a um pedido ou a uma situação específica, uma nota de rodapé esquecida ao longo de uma trajetória musical. Outros decidem fazer com que o violão seja, apesar da singeleza de sua única pauta, um veículo para um enunciado musical à altura de obras sinfônicas ou camerísticas”. A guitarra clássica brasileira, portanto, já vai bem além dos aspectos da obra de Heitor Villa-Lobos.

REGIONAL

TRIO 3-63 Muacy

ORQUESTRA RETRATOS De sol a sol

A flautista Andrea Ernest Dias, dedicada estudiosa da obra de Moacir Santos, o percussionista Marcos Suzano (que também coordena os efeitos eletrônicos do trio) e o pianista Paulo Braga releem os principais sucessos do compositor pernambucano, como Coisa n° 5 e Sambatango, ao lado de músicas de grandes parceiros de “Muacy”: Carlos Negreiros, Radamés Gnattali e Paulo Braga.

O mais recente disco do Conservatório Pernambucano de Música traz 12 peças para cordas dedilhadas, escritas por uma nova e atuante geração de compositores e arranjadores residentes no Recife. Sempre baseadas nos gêneros populares e folclóricos pernambucanos, as partituras mostram sobretudo uma sofisticação de escrita que valoriza o talento das cordas dedilhadas da orquestra.

INSTRUMENTAL

Sambatown

WORLD MUSIC

BONSUCESSO SAMBA CLUBE Coração da boca sai Independente

Terceiro disco da banda olindense que mescla gêneros e sonoridades desde o início da década de 2000. Ao trabalhar aspectos tradicionais da música pop brasileira e outros ritmos como o ska e o folk, o grupo faz uso de metais, guitarra e todo tipo de possibilidade sonora advinda da exploração dos timbres. O novo disco ainda conta com ilustres participações, como a do cantor Lenine e do maestro Spok.

CPM Gravações

EXPERIMENTAL/NOISE

LIGHTNING BOLT Wonderful Rainbow Load Records

Duo norte-americano formado por bateria, baixo e vocal. Experimental, a dupla intervém no som que toca de todas as formas possíveis, desde a captação do áudio, feita através de microfones de câmera de filmagem, até a performance, em que os artistas utilizam problemas estruturais e ruídos como linguagem. De dificil apreciação, Lightning Bolt é encarnação sonora da ultraviolência, um fluxo de distorção e energia que dispensa os formatos convencionais da composição para investir na força e no impacto causados no ouvinte à primeira audição.

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Entre matéria e memória 15 e 20–Dez, às 20h Teatro Hermilo Borba Filho – Bairro do Recife

Palco CATARSE Cura e superação através da dança

Entre matéria e memória, espetáculo do bailarino Manuel Castomo, une danças das cerimônias fúnebres de Moçambique à contemporânea TEXTO Guilherme Novelli

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“E longos carros fúnebres, sem música nem tambor, desfilam lentamente na minha alma. A esperança inteira chora, a angústia atroz desfralda a dor.” Esse trecho de Charles Baudelaire, integrante do espetáculo Entre matéria e memória, a ser apresentado nos dias 15 e 20 de dezembro no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife, pode sintetizar o momento que o bailarino Manuel Castomo atravessou no período de luto e depressão em decorrência da perda de sua mãe, em 2012, na Cidade de Beira, Moçambique, sua terra natal. “Eu montei o espetáculo em homenagem a ela, lembrando todos os momentos em que estivemos juntos, da sua roupa, da esteira em que se deitava…” Em Moçambique, há um ritual muito peculiar: quando alguém morre, seus parentes queimam toda a roupa, fotografias e outros pertences. “Depois disso, nós não temos mais a memória física do ente querido, mas eu relembro tudo no espetáculo, inclusive, uso um vestido para representar minha mãe e, simbolicamente, queimo o vestido no palco, o que também significa a superação do meu luto.” Quando os moçambicanos queimam os pertences, estão libertando o espírito do falecido. “No outro plano, o espírito precisa ficar em paz. Se permanecermos com as roupas ou com as fotografias, acabamos lamentando a perda e, em decorrência, o espírito não fica em paz.” Eles queimam tudo para emanar luz ao espírito, mas a memória do ente querido e do corpo permanece. Logo após o falecimento de sua mãe, naquele ano, Manuel Castomo veio ao Recife, num intercâmbio internacional em parceria com a ONG Pé no Chão. Trabalhou como educador social, coreógrafo e professor de percussão para crianças que moram em comunidades carentes, numa continuação do trabalho que desenvolvia em Moçambique pela Fundação Terre des Hommes (Suíça). Terminado o projeto, voltou a Moçambique, mas, encantado pelo polo artístico-cultural pernambucano, resolveu vir para cá novamente. “Eu disse que não seria

uma empreitada fácil. O mercado brasileiro, de uma maneira geral, é muito concorrido e o Recife tem dificuldades particulares”, conta Arnaldo Siqueira, coreógrafo, produtor e curador. “Isso é muito comum por aqui. Depois da crise na Europa, artistas, sobretudo europeus, me procuram pedindo aconselhamento profissional”, continua. Desde então, Arnaldo tem sido como um padrinho do bailarino moçambicano. “Manuel tem uma presença cênica muito forte, uma característica genuinamente africana que ele carrega, um tipo de célula coreográfica bastante original, inusitada, bem diferente do que estamos acostumados a ver aqui no Nordeste, nessa profusão de danças afro-brasileiras com padrões de movimentos um tanto repetitivos.” Em Entre matéria e memória, o bailarino faz o público vivenciar essa

Neste espetáculo, Castomo leva o público a vivenciar uma África diversa da nossa cultura afro-brasileira outra África que não é a nossa afrobrasileira. “Chamei-o para participar da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, no fim de abril deste ano, apresentando outro solo, criado por mim a partir do repertório dele. Era na cena do Bacanal de Herodes, interpretando um escravo africano. Essa outra África que ele traz impressionou todo mundo.”

DANÇA E RITUAL

Em Moçambique, assim como na África em geral, a dança está presente no cotidiano. Ela tem uma dimensão épica: dialoga com a música, a narração, o teatro. As danças tradicionais, historicamente, começam a ser executadas a partir de um acontecimento e acabam permeando a tradição moçambicana. Elas fazem parte dos rituais de nascimento, iniciação, casamento e morte. As danças tradicionais também são uma forma de resistência cultural

tribal contra a conversão aos costumes do colonizador, no caso, Portugal. Entre matéria e memória foi composto a partir das danças das cerimônias fúnebres moçambicanas, misturadas à dança contemporânea, num trabalho composto por narração, canto, dança e música (em percussão, violão e flauta transversal), nos moldes do espetáculo épico africano. No centro de Moçambique, há uma dança fúnebre chamada utsi, em que as mulheres tocam percussão e abordam questões sociais. Depois do funeral, os parentes e amigos voltam para a casa do falecido e passam três, quatro, cinco dias tocando, dançando, para alegrar a família. “Eu conto a história do utsi porque é a dança da minha região. Exploro o repertório dessa dança para enriquecer meu trabalho, retratar a minha história, a perda da minha mãe, dar relevo a essa questão.” Manuel Castomo criou o espetáculo para superar o luto da mãe e, ao mesmo tempo, o luto do pai, que ele não conheceu, pois faleceu em 1988, antes do seu nascimento, no mesmo ano. “Há esse universo de contato, apesar de não ter conhecido meu pai. Faço uma reflexão de maneira a atingir a catarse nesse movimento, nesse choro. A possibilidade da dança é a da própria cura. Se não fosse a dança, acredito que estaria hoje numa fase muito difícil. Ela me consolou, me libertou.” A perda do pai também aparece de forma indireta, através da perda da mãe. “Quando meu pai faleceu, queimaram todos os seus pertences. Eu não tenho nenhuma memória física dele. Minha mãe sempre ficava chorando a morte do meu pai e eu me perguntava: ‘Como ela ficava a chorar, se tinham queimado tudo?’ Nada se perdeu, afinal de contas, porque ela tinha a memória espiritual dele. Eu não conheci meu pai, mas acredito que a gente tem um subconsciente da própria memória.” O espetáculo Entre matéria e memória traz a possibilidade de aceitar o luto, a perda. “Isso é fundamental, porque a gente amadurece, lidando com isso, se torna melhor pessoa. Trago esse espetáculo para fortalecer cada um de nós, porque ‘O que a memória ama fica eterno’”, comenta o bailarino, citando trecho de Rubem Alves.

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JU BRAINER/DIVULGAÇÃO

Palco

ACERVO Memória virtual da dança pernambucana

RecorDança disponibiliza online informações relativas ao setor – fotos, vídeos, programas de espetáculos, bios de coreógrafos – de 1970 a 2000 TEXTO Olivia de Souza

Realizado desde 2003 pela Associação Reviva, com coordenação da dançarina, professora e pesquisadora Valéria Vicente, o Acervo RecorDança é uma ação de pesquisa, documentação e difusão da história da dança pernambucana que reúne, em formato digital, registros fotográficos, entrevistas em vídeo e áudio, programas e cartazes de espetáculos, e documentos que se referem à prática da dança, além de disponibilizar informações sobre os artistas e grupos atuantes no estado. O projeto se baseia no discurso dos próprios artistas, que, através de entrevistas, vão indicando os rumos a serem tomados. A primeira fase do projeto procurou mapear a produção artística da dança realizada no Recife de 1970 a 2000. Esse estudo se baseou em 25 entrevistas com professores, coreógrafos e diretores de grupos que atuaram na cidade durante o

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EXPOSIÇÃO Este ano, o grupo de pesquisa realizou a mostra RecorDança 10 anos: construir, sentir e olhar a dança

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período. Nelas, foram abordados temas como formação, produção, criação e profissionalização artística. Entre os entrevistados, estão profissionais como Flávia Barros, Carol Lemos, Maria Eduarda Gusmão, Isabel Sehbe, Alexandre Macedo, Raimundo Branco, Cláudia São Bento, Dayse Caraciollo, Ubiracy Ferreira, André Madureira, Mônica Lira e Christianne Galdino. O material digitalizado foi resgatado no mais recente projeto do Acervo, o Histórias ao Pé do Ouvido, que ofereceu ao público, através de podcasts (arquivos digitais de áudio), oito programas divididos em eixos temáticos, que abordam questões como temporalidade, formação, profissionalização e políticas públicas. A equipe, liderada pelos pesquisadores e bailarinos Marcelo Sena e Elis Costa, junto a Alice Moreira e Ju Brainer, vem, desde o início do ano, se detendo sobre o extenso material de áudio (cerca de 25 horas de entrevista)

para tentar compreender a trajetória e o contexto da dança realizada em Pernambuco. A primeira temporada do programa resgatou as primeiras entrevistas do projeto, gravadas em 2003 e 2004, e está disponível online, na página do RecorDança. Segundo Elis Costa, que participa do projeto há três anos, a divisão dos assuntos foi feita de forma orgânica, através da própria escuta do material: “Inicialmente, tínhamos três eixos para nos nortear: formação, criação e profissionalização. A divisão dos assuntos abordados nos programas foi feita através de uma proposta de Marcelo Sena, que orientou a pesquisa. Ele sugeriu que escutássemos todas as entrevistas e, a partir daí, tentássemos identificar a demanda do próprio material, que também era a dos próprios artistas. Muitos falavam sobre questões de gênero, outros sobre formação, profissionalização.

Os podcasts incluem depoimentos de profissionais como Mônica Lira, Carol Lemos, Raimundo Branco e Flávia Barros Chegamos, enfim, a oito eixos temáticos: temporalidades, múltiplas linguagens, mobilizações, gêneros, formação, êxodos, políticas públicas e profissionalização”, afirmou. Segundo Elis, não havia a intenção inicial de disponibilizar esse material ao público. “Essas entrevistas foram feitas com o propósito de definir os nortes do projeto. Não tínhamos intenção de publicá-las. Como foi um material colhido em 2003 e 2004, a tecnologia de captação ainda era um pouco precária, então, alguns áudios não estão muito bons, embora nada comprometa a audição.”

BANCO DE DADOS

Depois de uma primeira fase de captação e escuta, o Acervo RecorDança identificou, em 2005, a possibilidade de expansão de suas ações. Coordenada por Valéria Vicente, Liana Gesteira e Roberta Ramos, a

equipe estabeleceu a demanda pela construção de um banco de dados na internet. Além disso, realizou estudos sobre a história da dança em Salvador e Fortaleza para firmar parcerias com instituições desses locais, a fim de ampliar o acervo. Essa mudança do suporte físico para o virtual lançou a segunda etapa do projeto: a criação de um sistema de busca gratuito na internet. O RecorDança On Line, em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco, disponibilizou o material coletado na primeira fase: fotos, vídeos e programas de espetáculos, informações sobre coreógrafos, professores, dançarinos, espetáculos e grupos, entre outros dados. No ano seguinte, o acervo – que continha informações da década de 1970 a 2000 – foi ampliado até o período de 2008. Essa etapa foi finalizada em 2009, com a inserção do material atualizado na internet. O período também marcou a parceria com o Acervo Mariposa, videoteca pública especializada em dança. Em comemoração aos seus 10 anos, o Acervo RecorDança realizou, em agosto deste ano, no Centro Cultural Correios, a exposição RecorDança 10 anos: construir, sentir e olhar a dança. Dividida em três ambientes-conceito (Bastidores, Palco e Plateia), a mostra teve como finalidade oferecer ao público um mergulho na história e nas práticas da dança pernambucana. Durante essa última década, a dança cênica pernambucana obteve projeção nacional por sua diversidade, produção criativa e articulação política, e trabalhos como o do RecorDança são um importante registro dessa evolução. Para a pesquisadora Elis Costa, um dos aspectos mais fortes da dança no estado é a sua resistência. “Temos grandes conquistas, originadas de demandas da sociedade civil, como a criação do curso de Dança na UFPE, por exemplo. Como em qualquer área, há perdas e ganhos, mas independentemente disso, o mais importante é ressaltar a resistência da dança, sua sobrevivência política, artística. Acho que esse é o maior aspecto a ser apontado, o fato de que existe uma área de conhecimento legitimada, entendida, reconhecida, e respeitada”, declarou.

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CON TI NEN TE

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Renato Aragão por Rafael Silva

Não é exagero dizer que dois personagens estão associados, no imaginário nacional, ao humor lírico e ao sucesso comercial das “grandes marcas”: Mônica, de Mauricio de Souza, e Didi Mocó, de Renato Aragão. Por coincidência, o paulista e o cearense completam 80 anos em 2015. O primeiro a apagar as velinhas será o Didi, em janeiro. O Trapalhão tem feito, desde os anos 1970, o povo morrer de rir de suas leseiras, no melhor estilo palhaço ingênuo. CONTINENTE DEZEMBRO 2014 | 88

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Rafael Garcia diretor artístico Homenagem aos 150 anos de nascimento de Richard Strauss Arthur Moreira Lima Benjamin Schmid Catalin Rotaru Christian Christian Lindberg DJ Dolores & Naná Vasconcelos Arthur Moreira Lima Benjamin Schmid Catalin Rotaru Lindberg DJ Dolores & Naná Vasconcelos Leonardo Altino Roby Lakatos Ensemble Orquestra Virtuosi sob a regência do Maestro Rafael Garcia Leonardo Altino Roby Lakatos Ensemble Orquestra Virtuosi sob a regência do Maestro Rafael Garcia PATROCINIO:

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