Continente #169 - Edição de 15 anos

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Sua fotografia merece esta chancela de qualidade.

# 169

Novo Atelier de Impressão

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ANOS # 169 • ano XV• jan/15 • R$ 10,00

2001

2015 EDIÇÃO DE ANIVERSÁRIO

CONTINENTE

O QUE MUDA NA CULTURA NESTE COMEÇO DE SÉCULO?

Atelier de Impressão em novas instalações que continuam atendendo aos rigorosos requisitos da verdadeira impressão fine-art. Infraestrutura ampla e moderna, equiparada aos maiores centros de impressões artísticas do mundo. Mais uma ação que vem para reafirmar o rigor técnico que faz do ADI referência em qualidade e tratamento de imagem no mercado nacional. Atelier de Impressão, aqui sua fotografia é tratada como obra de arte. Venha conhecer!

Recife Rua da Moeda, 140, Bairro do Recife 81 3424.1310

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São Paulo Al. Lorena, 1257, Casa 05, Jd Paulista 11 4432.1253

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ESPECIALISTAS COMPARAM OS PRIMEIROS ANOS DOS SÉCULOS 20 E 21

NÚMEROS TRAÇAM O PERFIL CULTURAL DO BRASILEIRO

CINCO NOMES DO CINEMA LOCAL CONVERSAM SOBRE OS RUMOS DO SETOR

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aos leitores Este ano, a revista Continente completa 15 anos. Pode parecer um pequeno marco, mas, se observarmos o panorama de publicações do gênero no Brasil, perceberemos que se trata de um grande feito. Isto porque são poucos os títulos, voltados ao jornalismo cultural, que se mantêm ao longo dos anos, a despeito das flutuações de mercado e de leitores. Como que antevendo tal fragilidade, o editorial da edição de número 0, publicada em dezembro de 2000, afirmava: “Quem já se ocupou ou se ocupa de periódico sabe esta verdade singela: mais difícil que editá-lo é mantê-lo viável. Não basta ter uma boa ideia ou saber dividi-la em colunas e povoá-las de boas imagens. O trabalho árduo sustentado em profissionalismo e a constância amparada em bases materiais sólidas são pré-requisitos para que a iniciativa tenha fôlego e perenidade”. E a base sólida em que se estrutura a revista Continente tem sido o compromisso assumido pelo Governo do Estado, através da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), em oferecer ao leitor pernambucano, e brasileiro, uma revista de excelente qualidade editorial e gráfica, que apresente e discuta, com seriedade, leveza e beleza, assuntos de interesse contemporâneo sobre aspectos da cultura, de comportamentos, das manifestações artísticas e da tradição tornados perenes pela abordagem oferecida na publicação. Soma-se a essa relação, que a revista mantém com seu público, aquela que diz respeito aos profissionais que têm trabalhado e colaborado com a Continente – jornalistas, fotógrafos, ilustradores, revisores, designers, acadêmicos, especialistas, artistas, estudantes. São eles os responsáveis por atribuir qualidade e consistência ao material publicado. Ao longo desses 15 anos – que também são os que inauguram os anos 2000 –, a revista passou por sutis e bem-vindas mudanças no seu projeto editorial e gráfico, procedimento comum a qualquer periódico em circulação, como uma demanda do próprio tempo e de uso.

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Uma transformação de grande impacto ocorreu na edição de número 100 da revista, em abril de 2009, em que, aproveitando o momento, discutimos os rumos do jornalismo cultural no Brasil (que, naquele momento, tinha uma configuração diferente da atual). Recorrendo novamente a esse editorial, na edição de 2009, afirmava-se: “Mudamos também, tantas vezes agradecidos, sem necessariamente sairmos do lugar. Assim entendemos esta reforma que operamos na revista Continente. Porque ela quer preservar os méritos que a publicação conquistou e manteve, nos seus oito anos de existência, mas admite a necessidade de inserir em seu contexto novas formas de observar e produzir cultura, de pensar o mundo, de empreender um jornalismo cultural que se pretende informativo, reflexivo, dinâmico. Rigorosamente, não saímos do lugar, estamos aqui fincados, buscando a solidez e a permanência, mas supomos que para isso precisamos nos mexer, transformar.” Uma qualidade à qual atribuímos o que pode ser chamado hoje de “poder de permanência” da revista, afora a base sólida antes mencionada, é a de um recorte editorial bastante claro e definido: o local de fala. A Continente tem sido, todos estes anos, uma revista de cultura de Pernambuco, o que significa uma afirmação de ponto de vista. Este tem sido um aspecto sempre destacado como essencial e valioso pelos leitores e pelos que fazem a revista. Isto não significa, entretanto, que a Continente é “regional”, termo que só diminui a dimensão da interlocução. Ser uma revista “de Pernambuco” significa, desde o número inaugural, ser “escancaradamente pernambucana. Sem ranços de regionalismos nem cosmopolitismos fáceis. Mas, sobretudo, querendo conhecerse e expandir-se no que lhe é próprio, sem esquecer-se de privilegiar o novo e o inédito”. Assim tem sido, e esperamos que seja por muitos anos mais.

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sumário Entrevista

Especial

Autor de Planeta favela e mais duas dezenas de livros, professor norteamericano fala sobre contradições e desigualdades da sociedade mundial

A convite da Continente, cinco especialistas em setores da produção cultural traçam comparações entre os primeiros anos do século 20 e do atual

Comportamento

Ensaio

Como está a relação do brasileiro com a fruição de bens culturais? O que mudou nos últimos 15 anos? Essas são questões que esta reportagem busca responder

Quatorze indivíduos e um casal (acima) que, nas miudezas do dia a dia, realizam feitos, revoluções, alegrias, se não para o mundo, ao menos, para si mesmos

Mike Davis

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Perfil cultural

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Anônimos

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Cartuns

A Continente

Numa dobradinha divertida e perspicaz, Samuca Andrade e Yellow comentam sobre invenções que mudaram nossas vidas nesses últimos 15 anos

Com edição n° zero lançada em dezembro de 2000, a revista cultural de Pernambuco mostra como se modificou e atualizou para chegar até aqui, 15 anos depois

Tecnologias

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Projetos editoriais

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Jan’ 15

Nota da redação

Excepcionalmente, nesta edição especial de aniversário, não publicaremos diversas seções da revista, incluindo as colunas de Ronaldo Correia de Brito e José Claúdio.

Conversa

HQ

A revista inaugura, nesta edição, um programa bimestral de encontros com realizadores, para que se discutam demandas dos segmentos de produção

Em seis quadros, Alexandre Dantas nos lembra situações que simplesmente deixaram de fazer parte das nossas vidas, como o aluguel de fitas VHS em locadoras

Cinema

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Tempos modernos

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GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO

CONTINENTE ONLINE

ATENDIMENTO AO ASSINANTE

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Adriana Dória Matos

Olivia de Souza (jornalista)

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melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio. Endereço: Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro,

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colaboradores

Alexandre Dantas

Alexandre Figueirôa

Daniel Schenker

Carol Nogueira

Ilustrador, é formado em Design pela UFPE, com mestrado em Quadrinhos, na França.

Jornalista, professor da Unicap, doutor em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Paris 3.

Doutor em Artes Cênicas pela UniRio, professor de História do Teatro do Instituto CAL e da Faculdade Candido Mendes.

Jornalista, trabalha em Los Angeles como freelancer da Folha de S.Paulo, fazendo cobertura musical.

Coletivo Luz de Janela

Fábio Lucas

José Geraldo Couto

Kelvin Falcão Klein

Formado pelos fotógrafos Alcione Ferreira, Everson Verdião e Ivan Melo, documenta o universo dos anônimos.

Jornalista, mestre em Filosofia pela UFPE e editorialista do Jornal do Commercio.

Crítico de cinema, jornalista e tradutor. Autor de André Breton (Brasiliense) e Brasil: anos 60 (Ática).

Doutor em Teoria Literária pela UFSC, crítico literário e professor. Autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas.

Maria Carolina Vasconcelos Oliveira Mestre e doutora em Sociologia, pesquisa políticas culturais.

Moacir dos Anjos

Samuca Andrade

Yellow

Pesquisador e curador da Fundaj. Fez curadoria da 29ª Bienal de São Paulo, em 2010.

Cartunista, ilustrador e chargista do Diario de Pernambuco.

Designer gráfico, músico, professor da Aeso e mestre em Ciências da Linguagem.

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MIKE DAVIS

“As megafavelas são o recurso mais subutilizado do mundo” Autor de mais de 20 livros, em que analisa as contradições da sociedade, escritor norte-americano discute a “superurbanização” e as desigualdades e incoerências das metrópoles TEXTO Luciana Veras

CON TI NEN TE

Entrevista

Ecologia do medo (Record, 2001), Holocaustos coloniais (Record, 2002), Planeta favela (Boitempo, 2006), O monstro bate à nossa porta (Record, 2006), Cidades mortas (Record, 2007) e Apologia dos bárbaros – ensaios contra o império (Boitempo, 2008) são alguns dos 20 livros que o escritor norteamericano Mike Davis lançou nas últimas duas décadas. Tal fortuna crítica é indubitável, serve-lhe de credencial para refletir sobre o mundo e as vertiginosas, contraditórias e intensas transformações ocorridas nos primeiros anos do século 21. No entanto, ele faz uso da modéstia ao conversar com a Continente. “Essas são questões majestosas para alguém que viajou pouquíssimo como eu e que tem quase nenhum contato pessoal com acadêmicos das várias disciplinas dos estudos urbanos. Eu ensino a escrever como meio de vida, sou politicamente controverso pelos meus ataques às elites de Los Angeles e nunca recebi uma única oferta de emprego em nenhum campo remotamente conectado aos tópicos de Planeta favela. Tenha isso em mente”,

escreveu de San Diego, na Califórnia, em uma tarde de dezembro, em meio ao “frenesi das festas de fim de ano, maior ainda para quem tem uma família grande”, como ressaltou. Embora, de fato, lecione no Departamento de Escrita Criativa da Universidade da Califórnia/Riverside, Davis não é “apenas” um professor. Historiador, teórico, pesquisador sobre o ocaso da arquitetura, o fracasso de soluções econômicas ou as contradições da atual sociedade, ele se tornou uma das vozes mais originais – e incisivas – no debate que coteja e contrapõe urbanismo e capitalismo. Sua publicação mais famosa, Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles, de 1990, relançada no Brasil em 2009 pela Boitempo, foi eleita o melhor livro em política urbana pela American Political Science Association e recebeu o prêmio Isaac Deutscher da London School of Economics. Nesse livro, como de regra em todos os subsequentes, Mike Davis analisa o capitalismo, as exclusões por ele causadas e as desigualdades e incoerências das metrópoles, cada

vez mais inchadas em oposição ao esvaziamento do campo – temas que alinhavou com precisão nas suas respostas à entrevista. Ele ainda transcendeu as questões propostas pela Continente, para cometer o que chamou de “uma pequena digressão”, enriquecendo o debate sobre a circulação de informações na internet. “Enquanto, por um lado, o setor de tecnologia da informação ainda mantém uma aura de empreendedorismo criativo e genial, por outro, é melhor caracterizado como uma guerra contínua entre gigantes, que competem para controlar toda a informação, passada e futura, do mundo”, afirma, sugerindo um horizonte para a rede. “A internet, especialmente a Google e seus competidores, deveriam ser uma utilidade pública regulada democraticamente. A legislação antimonopólio deveria ser aplicada à Amazon, Ebay e companhias afins. Deixemos que os empreendedores genuínos criem os novos apps e fiquem ricos, mas as plataformas e a mídia precisam ser de

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REPRODUÇÃO

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Entrevista propriedade do povo, e administradas pelos representantes eleitos por voto direto – e não por agentes apontados pelo estado”, resumiu. CONTINENTE O mundo atual: o que aconteceu nos últimos anos para fazer de nossas cidades lugares quase insuportáveis, até mesmo com um ar difícil de respirar? MIKE DAVIS A crise do nosso mundo urbano é, acima de tudo, a crise globalizada do campo. Dezenas, até centenas de milhões de pessoas foram deslocadas de suas terras por corporações agrícolas de larga escala, acordos de comércio livre e reforma agrária ao contrário. O resultado, na minha opinião, tem sido a “superurbanização”, já que a população rural percebe suas únicas esperanças de emprego e educação no cassino de oportunidades da metrópole; mais vale uma chance pequena de melhora em uma favela

do que nenhuma no campo. Além do mais, as cidades agrícolas e os pequenos municípios do interior foram totalmente negligenciados por urbanistas, políticos e legisladores. Sou especialmente crítico com relação às políticas públicas de investimento que mantêm a concentração de recursos culturais e educativos no centro. Por outro lado, a situação urbana, de uma forma bem generalizada, deve-se ao poder de instituições financeiras do hemisfério norte e a uma geração de desenvolvimento perdida graças à crise das dívidas dos anos 1980 e 1990. Em consequência, vemos uma urbanização sem uma proporcional criação de postos de trabalho no setor formal; uma tendência à desindustrialização em países como México, Brasil e África do Sul; uma competição superdarwiniana nos mercados de trabalho e habitação informais; tributação absolutamente

regressiva na escala metropolitana; falta de controle democrático sobre a maioria das decisões acerca do uso da terra e dos investimentos públicos; um desenvolvimento excessivo e desregulado que, quando transborda, traz impacto para lençóis freáticos cruciais e reservas ecológicas; a crescente automobilização das cidades asiáticas; o retiro das classes abastadas para dentro de mundos murados, separados do tecido urbano popular; o armazenamento dos pobres, especialmente os novos migrantes, nas periferias urbanas que não são cidade nem campo; a ascendente dependência dos moradores de favelas do crime de subsistência, assim como a criminalização da polícia; e, acima de tudo, a ausência de qualquer estratégia popular para redistribuição de riqueza e poder. Os crescimentos significativos no bem-estar social na Venezuela e no Brasil se devem, em

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larga escala, a um aumento na partilha pública das exportações de commodities primárias e não são, portanto, sustentáveis, para atravessar futuras crises econômicas globais. CONTINENTE E o que ocorreu para acarretar tal enorme fracasso do planejamento urbano? Negligência, talvez, dos governos ao redor do mundo? MIKE DAVIS Na última geração, o Brasil tem sido o Vale do Silício do urbanismo alternativo, um laboratório para experimentos dramáticos em orçamento participativo, governanças por bairro, trânsito das massas, reciclagem metropolitana e por aí vai. Mas, ao mesmo tempo, tem sido a fronteira orwelliana para aplicações avançadas em contrainsurgência

“Vitórias da esquerda têm levado, comumente, ao desmantelamento das mesmas organizações de base que colocaram esses políticos de esquerda no poder” urbana, corrupção policial e remoção de favelas. Somente os brasileiros podem explicar esse paradoxo e tirar daí as lições políticas apropriadas. CONTINENTE Como o mundo é afetado pelas megafavelas que toda grande cidade tem e tenta esconder? MIKE DAVIS As megafavelas, com suas populações jovens e energias culturais de alta voltagem, são o maior e mais subutilizado recurso do mundo. Mas o problema-chave com a favela, eu repito, não é habitação ou infraestrutura, e, sim, emprego. Uma proporção significativa da humanidade urbana se tornou o excesso da acumulação do capital na escala global e não será integrada à economia privada formal em nenhum futuro concebível. Isso é, portanto, um desperdício de trabalho humano e de criatividade em uma escala catastrófica. Postos

de trabalho devem vir da expansão do setor público sob condições democráticas e redistribucionistas mais radicais do que as que existem hoje, mesmo em países progressivos como o Brasil. Toda a genialidade, a bondade e o poder espiritual para salvar a Terra existem nas favelas e devem ser libertados. CONTINENTE A considerar tudo que vemos hoje em metrópoles como São Paulo, Mumbai, Lagos ou mesmo o Recife, você acredita que é possível antever um futuro em que toda a população que habita as favelas vai ser, ao menos, percebida como cidadã? MIKE DAVIS Cidadania e sua franquia não significam nada, a não ser que possibilitem à população pobre fazer mudanças estruturais nas suas situações de vida. Enquanto todo mundo estava focado nas “revoluções coloridas” do início dos anos 1990, na Europa oriental e na ex-União Soviética, uma outra revolução, mais quieta, porém de importância comparável, acontecia em cidades variadas ao redor do mundo, como Seul, Cidade do México e Londres. Depois de anos de batalha, governos municipais antes indicados pelo poder central foram democratizados e os moradores das cidades ganharam o direito (ou esse direito foi restaurado) de votar em prefeitos e conselheiros (vereadores). A cidadania municipal assumiu um significado substancioso e grandes esperanças foram criadas por reformas mais efetivas, especialmente quando a esquerda tomou o poder por algum tempo em praticamente toda cidade importante da América Latina. Mas esse registro é misturado; em alguns casos, o fracasso ou a escassez de mudança social desmobilizou as forças populares que trouxeram a democratização. Então, quando você pergunta sobre uma cidadania “autêntica” para os moradores da favela, o que de fato está questionando, eu penso, é se valem a pena o voto e o ativismo político deles. Que mudanças podem resultar de uma mobilização puramente eleitoral dos pobres urbanos? Menos mudanças do que nós desejamos uma vez. Cidadania sem direitos econômicos explícitos e organização extraeleitoral é simplesmente uma reintegração à

pobreza para a maioria. Os líderes carismáticos do povo, é claro, podem ser elevados a grandes alturas pela política eleitoral; enquanto a advertência deles, quase sempre, é “confie nos seus representantes e pare de protestar”. Vitórias da esquerda têm levado, comumente, ao desmantelamento das mesmas organizações de base que colocaram esses políticos de esquerda no poder. CONTINENTE É possível argumentar que um dos aspectos mais intrigantes e antropológicos da globalização, em especial nessa primeira década do século 21, é o fato de que todas as cidades se parecem. David Harvey assim o disse ao visitar o Recife e constatar que a capital pernambucana se assemelhava a Miami. À luz das suas pesquisas, não apenas para Planeta favela, mas também para seus outros livros, você concorda? Teria a pobreza a mesma expressão visual no Brasil, na Nigéria, na Índia, nos Estados Unidos e na China? MIKE DAVIS Todo mundo olha agora para megaprojetos e conjuntos de arquitetura monumental (recorrentemente envolvendo remoção de população) para “rotular” as cidades, em vez de observar a qualidade da vida pública. Já no começo do século 20, teóricos sociais discutiam a homogeneização dos espaços em que a classe média europeia vivia, viajava e tirava férias. Mais de um século depois, podemos encontrar clones de subúrbios californianos nas redondezas de Cairo, Pequim, Jacarta ou Buenos Aires. Os ricos, bem como os mais afluentes estratos das classes médias, mudaram-se para as colônias off world de Blade runner – um assustadoramente uniforme e completamente desenraizado simulacro de estilos de vida luxuosos da América do Norte ou da Europa ocidental. Isso é particularmente impressionante na Ásia. A alma de uma cidade, bem como sua individualidade, permanece nos seus bairros populares e nas suas lutas. Enquanto os trabalhadores mantiverem um pé no tecido urbano tradicional, mesmo o mais pobre povoado urbano vai ter uma imbatível soberania cultural. Mas quando o espaço público democrático se contrai, quando as vizinhanças

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pelo menos deveríamos estar) de que a ausência de saneamento básico degrada as mulheres pobres e mata bebês através da água contaminada. E é claro que urbanização sem investimento público em saneamento básico, água encanada e infraestrutura sanitárias – especialmente no caso da África ocidental, a mais rápida região em urbanização do mundo – cria o habitat perfeito para o surgimento de novas doenças e para a disseminação de pandemias. O ebola pode ser nosso último aviso. CONTINENTE Você acredita que o capitalismo teve atuação importante na “favelização” do planeta? Na sua opinião,

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“Quando o espaço público democrático se contrai, quando o proletariado urbano é empurrado para fora, rumo a periferias sem forma – as cidades começam a morrer espiritualmente”

Entrevista são “renovadas” pela gentrificação, quando os encontros inter-raciais são vistos como muito “perigosos”, quando o proletariado urbano é empurrado para fora, rumo a periferias sem forma – as cidades começam a morrer espiritualmente. Seis ou sete anos atrás, fui convidado para dar uma série de palestras a arquitetos e urbanistas, em Paris. Em um determinado momento, alguém me perguntou o que eu achava da cidade – daquela Paris agora bem limpa, “escovada” de toda a sujeira, segura para pedestres e extremamente bem policiada. Eu disse que era um belo e estéril museu, paraíso para turistas e burocratas, mas, como o retrato de Dorian Gray – sem alma e secretamente grotesco. Se ainda estivesse viva, Edith Piaf não teria cantado, mas simplesmente chorado.

CONTINENTE Há um capítulo em Planeta favela chamado A ecologia da favela, no qual você descreve o mais devastador cotidiano dos pobres, entre lixo, dejetos humanos e destroços. Na sua opinião, qual é o assunto mais urgente a ser confrontado: a degradação ambiental ou as desastrosas condições de vida urbana? É possível contornar os dois? MIKE DAVIS Saúde pública e sustentabilidade ambiental são dois lados da mesma moeda. Os mais importantes medicamentos na Terra são água e ar limpos. Cidades não podem existir sem recursos naturais e um metabolismo urbano saudável depende da conservação do espaço aberto nas áreas de nascente e foz de rios e da proteção dos lagos e águas urbanos dos lixos humano e industrial. Até mesmo diversas cidades abastadas ainda jogam o esgoto nos rios ou no mar. Eu acho que estamos todos cientes (ou

estaríamos vivendo em uma Terra diferente, se o capital não tivesse feito do mundo o seu reino? MIKE DAVIS Como a maioria das pessoas, eu me entusiasmei com o sucesso do movimento Occupy em ressaltar as crescentes desigualdades de renda e lucro que, nos Estados Unidos, são tão grandes agora como foram na década de 1920, ou talvez até mesmo nos anos 1890. Mas o maior problema em uma plutocracia não é tanto sua riqueza, e, sim, seu poder econômico. A maioria das decisões econômicas fundamentais (que, claro, são também decisões ambientais) nesse planeta são agora feitas em esferas privadas por provavelmente não mais do que 20 mil pessoas. Esse contingente inclui, claro, os cabeças dos 50 maiores bancos e 200 maiores corporações, como também seus investidores principais e seus congêneres estatais cleptocráticos. Um pequeno, mas extremamente

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rico, grupo de países produtores de petróleo (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Oman, Qatar e Bahrain) são pouco mais do que corporações privadas com monarcas absolutos no papel de CEOs. Então, o maior desafio é também o mais simples. Será que esses 20 mil indivíduos e grupos superpoderosos possuem tanto a motivação como a capacidade para resolver os maiores desafios da civilização na próxima geração: gerar empregos para 2,5 bilhões de pessoas, salvaguardar a humanidade contra mortes em massa em decorrência de epidemias e desastres naturais, levar adiante uma nova revolução agrícola para garantir segurança alimentar e ainda desarmar as maiores potências nucleares? Se, de fato, os senhores do universo souberem atuar racionalmente, eles continuarão a acumular riqueza e poder, enquanto amplamente ignoram o destino da humanidade. Vai haver, é claro, alguma fachada de filantropia, como a Fundação Gates, mas seu impacto será trivial. Enquanto isso, a regulação do poder econômico global por meio das instituições políticas nacionais e internacionais existentes é simplesmente uma ilusão. Nenhum parlamento ou congresso do mundo pode ainda sonhar em estabelecer parâmetros para decisões sobre macroinvestimentos ou para controle do fluxo de capital. Basta considerar o fracasso da reforma bancária

“Nenhum parlamento ou congresso do mundo pode ainda sonhar em estabelecer parâmetros para decisões sobre macroinvestimentos ou para controle do fluxo de capital” na Europa e nos Estados Unidos após a crise de 2008. Somente em circunstâncias semirrevolucionárias, como na Bolívia e, possivelmente, na Venezuela, nós pudemos ver tentativas sérias de dar assento ao povo no gabinete que controla a economia. Qualquer novo modelo de uma política socialista ou populista que não mira, seriamente, a democratização de setores-chave da economia não é novidade em hipótese alguma. E, como o caso da América Latina já mostrou, a única saída real do neoliberalismo tem que ser em escala regional ou continental. CONTINENTE Nesse contexto, qual seria o papel dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul? MIKE DAVIS Deixe-me expressar uma opinião sobre a China. Desde que a crise do euro explodiu o mito da União Europeia, ficou bem claro

que apenas uma única sociedade na Terra está atualmente engajada em um verdadeiro e compreensivo planejamento a longo prazo com implicações para o resto da humanidade. Mas, como muito da engrenagem concreta das decisões financeiras e comerciais na China fica escondida da vista comum dentro de bancos estatais enigmáticos e comitês executivos, é praticamente impossível fazer qualquer tipo de julgamento sobre a estabilidade daquela grande sociedade. Um grupo de observadores vê apenas o milagre; outro, só as contradições políticas e econômicas. Como um socialista, vejo a China como a maior classe trabalhadora industrial da história do mundo sem o direito de organizar sindicatos independentes ou de participar na tomada das decisões econômicas. Qualquer transformação democrática real na China deve ser liderada pelo trabalho e, ao contrário dos movimentos provenientes da classe média, não pode parar com liberdade de expressão e eleições, mas demandar uma igualização na riqueza e participação na gestão econômica. Será a democracia industrial compatível com a escala de planejamento que o futuro da China requer? Melhor: o crescimento da China pode continuar sem algum nível de planejamento democrático? Os BRICS, menos a irremediavelmente corrupta e xenófoba “R”, são as melhores esperanças para a renovação do socialismo.

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KARINA FREITAS

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ESPECIAL

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2000 2015 “Narrar é ação presente de invenção do tempo. (...) Narrar é também selecionar, excluir, incluir...”, definiu Moacir dos Anjos, num dos textos que compõem este especial, no qual o curador e mais quatro profissionais (a jornalista Carol Nogueira e os críticos Daniel Schenker, Kelvin Falcão Klein, José Geraldo Couto) entrelaçam análises sobre os eventos ocorridos em cinco campos artísticos nos inícios dos séculos 20 e 21: artes visuais, cinema, literatura, música e teatro. Os especialistas convidados avaliaram de quais maneiras os acontecimentos estéticos, tecnológicos, sociais e políticos do passado influíram na forma como produzimos, consumimos e entendemos arte hoje. Um ponto de convergência entre as observações é a afirmação do papel da Primeira Guerra Mundial na ruptura de diversos projetos estéticos e no estímulo da vontade de ultrapassar as fronteiras nacionais através do conhecimento da produção artística de outras culturas.

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HALLINA BELTRテグ

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LITERATURA A Renascença de 1910

Ensaísta Guy Davenport defende a existência de um período de intensa atividade intelectual e estética, que transformou todas as artes TEXTO Kelvin Falcão Klein

Avaliar o tempo presente pode

ser bastante difícil por uma série de razões. Uma delas é o simples fato de que é impossível conhecer o futuro e, consequentemente, dizer se aquilo que parece relevante, hoje, será amanhã, ou de que maneira irá se transformar. Daí a importância da perspectiva histórica e do cuidado em estabelecer certos pontos de ancoragem, que podem se traduzir em temas, obras, conceitos ou intensidades. Se pensarmos em alguns momentos da literatura contemporânea – de 2000 a 2015, por exemplo –, tendo como contraponto momentos da literatura do passado – de 1900 a 1915 –, encontraremos um ponto de ancoragem, que nos permitirá refletir mais sobre aquilo que conhecemos (ou que podemos conhecer) do que sobre aquilo que ainda não conhecemos. Às vezes, é a própria ficção que se ocupa dessa tarefa de estabelecer um contraponto – talvez o paradigma seja o Dom Quixote e sua relação com os romances de cavalaria. Um exemplo recente pode ser dado pela obra do escritor espanhol Enrique Vila-Matas: em livros como Bartleby e companhia (2001), O mal de Montano (2002) e Doutor Pasavento (2005), Vila-Matas mescla ficção, ensaio e crítica literária, usando como personagens vários escritores

ativos entre 1900 e 1915. Entre eles, destacam-se Robert Musil – que publica O jovem Törless em 1906 –, Robert Walser – O ajudante, em 1908, e Jakob von Gunten, em 1909 –, e Franz Kafka – que escreveu Amerika, O processo e A metamorfose no intervalo entre 1912 e 1914. Vila-Matas não utiliza nomes e obras somente pelo esporte da curiosidade e da citação. Seu objetivo principal parece ser o de resgatar um momento da história da literatura no qual o estilo tem preponderância – tempo fugaz, abruptamente interrompido pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Chegando a esse ponto, surgem dois caminhos incontornáveis. O primeiro diz respeito a essa importância dada ao estilo na literatura de 1900-1915; o segundo diz respeito ao papel da guerra na dissolução de uma série de projetos estéticos cultivados no período. Os dois caminhos se encontram no desejo de ultrapassagem das fronteiras nacionais por meio do exercício de leitura e escritura. No caso de Kafka, duas de suas principais referências não tinham relação direta nem com seu idioma de trabalho, o alemão, nem com seu contexto histórico e geográfico – Gustave Flaubert e Charles Dickens. Outro gênio do período, Fernando Pessoa, insistia também nessa fuga dos

limites nacionais restritos (era leitor de Poe, do Rubaiyat, de Walt Whitman), o que reverberou em uma revolução também na forma, ou seja, nos limites restritos dos gêneros literários. O livro do desassossego, de Pessoa, misto de romance, poesia, filosofia e autobiografia, nasceu em 1913, quando o autor publica um texto que anuncia O livro, “Na floresta do alheamento”. No caso de Kafka, o que chamou sua atenção em Flaubert foi a luta constante com a linguagem. O estilo de um escritor nasce de um exaustivo combate com a língua e com as estratégias de amansamento e domesticação da língua. Na ficção, é preciso que as palavras se façam sentir, e é isso que Kafka retira de Flaubert, que, por sua vez, retirou de Stendhal, o grande pioneiro no combate contra os ornamentos e as regras fixas de composição que dominaram o século 18. E nisso vemos a importância dos pontos de ancoragem e da perspectiva: VilaMatas nos leva a Walser e Kafka; Kafka nos leva a Dickens e Flaubert; Flaubert nos leva a Stendhal, numa dinâmica associativa virtualmente infinita. Essa dinâmica associativa está por trás daquele desejo de proliferação criativa das fronteiras referido acima como característica da literatura entre

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CON ESPECIAL TI NEN TE 1900 e 1915. Em vários de seus ensaios, especialmente naqueles reunidos em The geography of the imagination (1981), Guy Davenport defende a existência de uma espécie de “Renascença de 1910”, um período de intensa atividade intelectual e estética que transformou a configuração de todas as artes. Segundo Davenport, os temas e os procedimentos dos principais modernistas já estavam amadurecidos nessa época – Picasso, Rilke, Ezra Pound, Gertrude Stein e James Joyce –, e floresciam de forma vertiginosa, até a interrupção da guerra. Davenport argumenta que a guerra não apenas interrompeu de forma direta tais esforços artísticos, mas que também influenciou na leitura posterior dessas obras e autores. O mundo se revela mais conservador e avesso às revoluções depois da guerra, algo que vai se delineando aos poucos nos variados movimentos nacionalistas, da Rússia à Espanha – “Alemanha declarou guerra à Rússia; à tarde, fui nadar”, escreve Kafka em seu diário, em 2 de agosto de 1914. Aliás, é possível ligar alguns desses modernistas diretamente a Kafka e sua batalha do estilo, a partir de Flaubert, sobretudo Joyce e Gertrude Stein – ela chega em Paris em 1903 e publica Três vidas em 1909, que

pode ser lido como uma espécie de Três contos (livro que Flaubert publica em 1877) cubista e transfigurado. Tal “Renascença de 1910” ganha sua força estética e sua relevância histórica justamente pela dinâmica associativa que a configura: mescla de idiomas, justaposição de pontos de vista, contato entre “alta” e

A Primeira Guerra despertou o desejo de ultrapassagem de fronteiras nacionais, tanto na leitura quanto na escritura “baixa” cultura, movimentações radicais tanto no tempo quanto no espaço, recusa deliberada dos pertencimentos fixos, sejam nacionais ou subjetivos. Um dos marcos desse período é a publicação da Interpretação dos sonhos, de Freud, que abre o século 20. Esse é o grande combustível da dinâmica associativa, que vai levar o desejo de dissolução das fronteiras para o interior do sujeito, defendendo a porosidade entre o sono/sonho e a vigília, entre os atos “deliberados” e os atos

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“impensados”, o atravessamento inelutável entre razão e sentimento. Freud vai mostrar que não há posse exclusiva do que quer que seja, tampouco da subjetividade e dos processos inconscientes, que nos são acessíveis somente através dos gestos corporais e da linguagem. Essa revelação será fundamental para boa parte da literatura do século 20, e também para autores ativos entre 1900 e 1915, como Italo Svevo, Henri Barbusse ou André Gide. Um romance recente de Jean Echenoz, lançado há pouco no Brasil, dá conta de forma precisa dessa suspensão inesperada que foi a Primeira Guerra Mundial. No primeiro capítulo de 14 – lançado na França em 2012 –, Echenoz apresenta seu protagonista pedalando em direção a uma colina, com a intenção de aproveitar sua folga ao ar livre, lendo um livro. No meio do caminho, ele escuta um som forte e distante: são os sinos da igreja, anunciando a mobilização militar. Dias depois, já com os uniformes, a maioria diz que a guerra será coisa rápida, questão de duas semanas – até que começam as batalhas, as trincheiras, os gases tóxicos e as enormes baixas. Por essa perspectiva, o período de 1900 a 1915 se apresenta como uma

1. INTERNET BANDA LARGA No início, em 1996, a internet comercial era tão lenta, via modem, que o computador tomava conta da linha telefônica da casa. Devido à lentidão, os sites eram baseados principalmente em textos, com poucas imagens. Com os serviços de banda larga, a internet ficou mais veloz e estável, e assim pôde incorporar recursos de áudio e vídeo, acostumandonos a buscar informação no YouTube, ao invés conseguirmos informações pela leitura. Podemos concluir, portanto, que, contraditoriamente, a banda larga tornou a transmissão de informação mais lenta. (Yellow)

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janela de respiro espontâneo, antes da imersão em uma nova Idade das Trevas. Os impérios que entraram na guerra saíram dela debilitados, mas foi isso que, paradoxalmente, deu fôlego aos nacionalismos cada vez mais exacerbados, e não demorará muito para chegarmos a Hitler, Mussolini, Stalin, Franco e Salazar – o extremo oposto de todo o “espírito 1900-1915”, portanto. Como Davenport faz na crítica, Echenoz resgata na ficção a “Renascença de 1910”, mas em seu viés cotidiano, em sua potencialidade poética – o mundo foi pego desprevenido, projetos de vida sendo suspensos e o mergulho no caos. A partir da década de 1950 – grosso modo –, a literatura passa a explorar não só esse intervalo amplo que vai da Primeira à Segunda Guerra Mundial, mas sobretudo seus frutos tardios, ou seja, os regimes totalitários que abundavam. É nesse contexto que lemos autores como Soljenítsin, Elio Vittorini ou George Orwell, e outros mais recentes como Milan Kundera, Herta Müller, W. G. Sebald e Roberto Bolaño. Esses e tantos outros autores usam a ficção para elaborar traumas históricos do século 20, às vezes mesclando um olhar direto ao presente com um

pano de fundo arcaico, tradicional – como as Novas cartas portuguesas, de 1972, em que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa atacam a censura da ditadura, usando uma história de amor do século 17. Talvez seja possível, agora, perceber melhor como a literatura do século 20 se desenvolveu a

Certa vertente da literatura atual atualiza o desejo de experimentação fronteiriça das artes de 1900-1915 partir de temas e eventos que a distanciavam cada vez mais do ambiente e do contexto de 1900-1915. Retornemos à questão do estilo, pois é ela que nos permite saltar esse intervalo e perceber, na literatura contemporânea, ecos de 1900-1915. O estilo vem do confronto com a padronização da linguagem, e esse inconformismo se espalha em direção a outras fronteiras – a dinâmica associativa de que falamos acima. Tal dinâmica se reconhece hoje no contato da

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literatura com as artes visuais e com outros gêneros, e sobretudo na oscilação identitária dos escritores: indivíduos desterritorializados, que respondem a múltiplos pertencimentos, reivindicando experiências fragmentárias do mundo e da linguagem. Livros como A artista do corpo (2001) ou Ponto ômega (2010), de Don DeLillo, Histórias reais (2002), de Sophie Calle, O projeto Lazarus (2008), de Aleksandar Hemon, A Folie Baudelaire (2006), de Roberto Calasso, ou Shiki Nagaoka: um nariz de ficção (2001) e Jacó, o mutante (2002), de Mario Bellatín, entre tantos outros, são projetos artísticos que testam os limites da linguagem e dos gêneros, peças dentro de um jogo que prima não pelas posições fixas, mas pela contínua mobilidade de sentidos. Certa vertente da literatura de 2000 a 2015 busca, portanto, resgatar e atualizar o desejo de experimentação fronteiriça das artes que existiu em 1900-1915, mas com uma consistente ampliação em direção a outros domínios, como o da ciência – Michel Houellebecq e Ian McEwan –, ou dos limites entre “humano” e “não humano” – J. M. Coetzee, João Gilberto Noll e César Aira. Quem pode dizer o que o futuro nos reserva? O passado, provavelmente.

2. WIRELESS A tecnologia wireless mudou nossas vidas porque fez crescer exponencialmente o número de pilhas que gastamos por mês, e o número de horas em que precisamos deixar nossos celulares carregando. Onde já se viu precisar de pilha para teclados de computador e mouse? As conexões sem fio nos deram uma pequena comodidade em troca de toneladas de lixo tóxico, que serão deixadas de herança para as futuras gerações. (Yellow)

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HALLINA BELTRÃO

ARTES CÊNICAS A soberania dos gêneros ligeiros

Apesar de terem passado por transformações ao longo do tempo, o musical e a comédia permanecem em destaque no início do século 21 TEXTO Daniel Schenker

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A associação entre o teatro realizado entre 1900 e 1915 e o praticado nos 15 primeiros anos do século 21 inspira alguns cuidados. Talvez o principal deles seja evitar incorrer em equivalências forçadas. Na ânsia de encontrar pontos de conexão entre esses períodos, não se deve perder de vista as especificidades de cada contexto. De qualquer modo, a ligação entre a cena do começo do século 20 e a do início do 21 parece residir no alcance dos chamados gêneros ligeiros – a comédia e, especialmente, o musical, ambos no Rio de Janeiro, cidade que monopolizou, em boa parte, a produção artística no passado. A cena carioca de 2014 contempla certa diversidade, entre extremos do que se convencionou denominar de teatro de pesquisa e teatro de mercado. No primeiro caso, artistas mergulham em processos investigativos, frequentemente instigantes, e enfrentam dificuldades para permanecer em cartaz. As temporadas costumam ser curtas e as plateias compostas, muitas vezes, por espectadores ligados ao meio teatral. Há uma quantidade crescente de trabalhos apresentados em casas ou apartamentos. Por um lado, tratase de uma tendência interessante, que propõe um contato mais

individualizado com o espectador; por outro, preocupa, devido à inclusão dentro de um quadro em que o teatro dá sinais de se afastar cada vez mais da esfera pública. No que se refere ao teatro de mercado, há a soberania dos musicais e das comédias, dois gêneros que vêm atravessando a história do teatro brasileiro. Os musicais são de portes variados, mas sobressai um desejo de domínio do know-how através do aprimoramento técnico dos atores e do investimento em espetáculos grandiosos. A vertente biográfica, centrada na trajetória de cantores e cantoras, ganhou força nas últimas décadas. No que diz respeito à comédia, é possível notar a continuidade de uma linhagem: a da comédia de costumes, de observação social e comportamental. Outro ramo bastante valorizado é o do humor calcado em identificação imediata entre espectadores e personagens concebidos a partir de traços genéricos de homens e mulheres no cotidiano.

PANORAMA HISTÓRICO

Em relação às associações entre a cena contemporânea e a dos 15 primeiros anos do século 20, os elos parecem recair mais sobre o

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campo musical. Para trazer à tona o panorama teatral do período, é preciso retornar brevemente no tempo para destacar a instauração dos gêneros ligeiros na cena brasileira, interrompendo um processo natural que seguiria com o Naturalismo, após as manifestações do Romantismo e do Realismo. Esse corte, provocado pela força com que as variantes do gênero musical desembarcaram no Brasil, suscitou revolta em alguns, que avaliaram de forma negativa as novas tendências da cena. Na segunda metade do século 19, o teatro brasileiro foi tomado por revistas, operetas, burletas e mágicas. Desses quatro subgêneros do musical, o teatro de revista imperou. De origem francesa, a revista nasceu nas feiras parisienses do século 17 e tinha como objetivo comentar os acontecimentos do ano anterior. Sua adaptação à cena brasileira não se revelou simples porque, em princípio, não interessaria ao espectador daqui assistir a um espetáculo sobre fatos específicos de outro país. Seria necessário aprender os procedimentos do gênero para, então, inserir dados da realidade brasileira. Foi o que fez Arthur Azevedo, dramaturgo que dominou admiravelmente a gramática dos gêneros ligeiros.

3. CARTÃO DE DÉBITO/ CRÉDITO Em 1949, um tal Frank McNamara esqueceu em casa a carteira e, por não poder pagar pelo jantar, criou o Diners Club, cartão que substituiria o dinheiro. Assim, mais uma camada de virtualidade foi adicionada a uma entidade já virtual. O cartão ajuda a perda de noção do quanto nós temos e podemos gastar, e essa abstração é suficiente para que muitos incautos vivam endividados. Nesses últimos 15 anos, tornouse cada vez mais estranho pagar usando dinheiro em espécie, carteiras servem para transportar cartões e a expressão “dar o troco” perde o sentido. (Yellow)

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CON ESPECIAL TI NEN TE O início do século 20 gerou certa aceleração no modelo de revista, devido às transformações na vida urbana, evidenciadas na gestão do prefeito Francisco Pereira Passos, que procurou imprimir no Rio de Janeiro uma atmosfera europeia por meio da abertura de grandes avenidas e do afastamento das camadas menos abastadas para bairros mais distantes ou para morros, ações que produziram uma tensão entre o erudito e o popular, entre o apreço pela cultura internacional e a resistência através da música. Em sintonia com o ritmo mais vertiginoso da vida – e também em decorrência do advento do cinema, arte recente –, Cinira Polônio importou de Portugal o sistema do teatro por sessões, passando a realizar três apresentações por dia do mesmo espetáculo. Em 1900, havia pouco mais de 10 teatros no Rio de Janeiro. As ofertas de entretenimento eram crescentes, num momento em que o Brasil recebia visitas constantes de companhias estrangeiras. Essa tendência só diminuiu a partir da Primeira Guerra Mundial. Houve esforços no sentido de chamar a atenção para a produção brasileira nas primeiras décadas do século 20, como o teatro da exposição (dentro do evento concebido, em

1908, para comemorar o centenário da abertura dos portos do Brasil ao comércio internacional). Não se pode deixar de mencionar a fundação, em 1909, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mais voltado ao repertório operístico e estrangeiro do que ao nacional, ainda que não se deva esquecer importantes manifestações do teatro brasileiro ao longo do tempo no suntuoso palco. O teatro de revista afirmou uma identidade brasileira a partir do elo estabelecido com o Carnaval. Os espetáculos se tornaram difusores de marchinhas, nova característica que não implicou no imediato abandono das anteriores: passar em revista os acontecimentos locais numa estrutura atravessada pela figura do compère, espécie de mestre de cerimônias encarregado da ligação entre as cenas do espetáculo; e buscar, acima de tudo, o riso do espectador, ambição maior do ator de revista, que, por meio de cacos, complementava o trabalho do autor num registro interpretativo que mesclava convenções (o repertório de cada ator) com frescor (a “contracena” com a plateia do dia). A revista parece se distanciar de suas plataformas originais, à medida que envereda pela perseguição do luxo.

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Paralelamente ao fortalecimento da revista, o teatro brasileiro deu partida a um lento e gradual processo de renovação, em oposição à cena vigente, capitaneada por um primeiro ator – que aproximava os personagens de sua própria personalidade, contagiava o público com o seu carisma e não decorava o texto (havia o ponto para lembrá-lo das falas), tendo em vista que a dramaturgia era colocada a serviço do intérprete. Uma cena conduzida por ensaiadores, que não imprimiam assinaturas sobre os espetáculos, já que as bases de realização estavam pré-determinadas. A partir da década de 1930, houve iniciativas que aceleraram a transição para o teatro moderno, que foi instalado em 1948, com a fundação de duas companhias (Teatro Brasileiro de Comédia e Teatro Popular de Arte) e uma escola (Escola de Arte Dramática). O teatro brasileiro moderno começou em São Paulo porque o Rio de Janeiro ainda estava muito atado, no final dos anos 1940, à revista, que entra em decadência na década de 1950, terminando em 1961. Nesse sentido, a articulação entre o teatro musical que imperou entre 1900 e 1915 e o vigente entre 2000 e 2015 inspira precaução. Os dois períodos são atravessados pelo musical, mas

4. COMPRA ONLINE Nada consegue descrever o horror abjeto de acordar de ressaca, tentar lembrar o que aconteceu na noite anterior e encontrar uma aba do navegador aberta no Mercado Livre. A relação entre a posição de oferta de um produto e a do seu mercado alvo, um dos vetores fundamentais do marketing, foi sumariamente abolido e a dimensão física foi sobrepujada pela irresponsabilidade consumista. Agora é possível comprar salgadinhos sem nem ao menos gastar as calorias de ir ao supermercado. (Yellow)

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5. PEN DRIVE

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No século passado, colecionávamos quinquilharias imperfeitas que prometiam transportar nossos arquivos digitais mais pesados – disquetes, zip drives, CDs e DVDs regraváveis. O pen drive nos abençoa com a possibilidade de transportar trabalhos acadêmicos, fotos da família, demos de nossas bandas, evidências de crimes hediondos e temporadas inteiras de séries de TV em um dispositivo simples e cada vez mais barato, capaz de sobreviver até a máquinas de lavar, quando os esquecemos nos bolsos. Permite também a propagação de vírus terríveis, que podem destruir nossas vidas digitais, pessoais e profissionais, matando-nos de raiva (ver A nuvem).

hoje a revista vive em evocações e/ou em esforços de atualização que não constituem tendência.

O PASSADO EM CENA

Entre as montagens que estiveram nos últimos anos em cartaz na cena carioca e presentificaram, de diferentes maneiras, o passado, destacam-se: Forrobodó, Sassaricando e A revista do ano – O Olimpo carioca. A primeira surgiu de um resgate do diretor André Paes Leme, que realizou duas montagens – uma, em meados da década de 1990, e outra, mais recentemente. Burleta de Carlos Bettencourt e Luiz Peixoto que estreou no Teatro São José em 1912, Forrobodó é ambientada no Grêmio Recreativo Flor do Castigo do Corpo da Cidade Nova, região do Rio de Janeiro que passou a abrigar a população de baixa renda após as reformas de Pereira Passos. A segunda é uma reunião de cerca de 100 marchinhas carnavalescas garimpadas por Rosa Maria Araújo e Sergio Cabral. No texto de divulgação do espetáculo, o diretor Claudio Botelho confirma – mas relativiza – o parentesco do espetáculo com as revistas. “É uma espécie de revista, mas não nos moldes da brasileira. É a revue americana, que apresenta um conjunto de obras, ou mesmo de

Até meados do século 20, o teatro teve importância na vida da sociedade. Hoje, sua valorização arrefece a cada dia ideias, mas sem um enredo definido. Não há falas; no nosso caso, o texto são as próprias marchinhas de Carnaval”, esclarece. Na terceira, a autora Tania Brandão atualizou referências dentro do formato de revista de ano, material transportado para o palco por Sérgio Módena. A peça coloca o público diante de uma crise na Grécia, momento em que três “entidades” do Olimpo – os Deuses Hefaísto e Dionísio e a musa Mulher Labareda – resolvem vir para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Ao chegarem aqui, percebem que a Cidade Maravilhosa não é tão perfeita como imaginavam. Diante de uma profusão de lugares e personagens, Hefaísto se perde de Dionísio e da Mulher Labareda, que reviram a cidade à sua procura. Para não incorrer em semelhanças artificiais, cabe detectar não “apenas”

os pontos de aproximação, como os de distanciamento em relação à cena realizada entre 1900 e 1915 e entre 2000 e 2015. No passado, o Brasil era visitado por muitas companhias estrangeiras. No presente, o desembarque proporciona ao público contato com a produção de encenadores como Peter Brook e Ariane Mnouchkine. Contudo, o Brasil recebe musicais que seguem à risca o modo com que são apresentados no país de origem, exigência que inviabiliza a chance de apropriação desse material e remete ao período anterior ao surgimento do encenador na história do teatro. No início do século 20, o musical caminhava no sentido de se tornar uma atividade comercial bemsucedida. Hoje, é possível constatar a força com que o gênero se encontra instalado. Na primeira metade do século 20, o drama tinha espaço reduzido, em comparação com as revistas e as comédias. Nos dias atuais, verifica-se, ainda que em medida diversa, a permanência de certa preferência do público pelo entretenimento ligeiro. Até meados do século 20, o teatro ganhou importância crescente na vida da sociedade. Agora, a valorização dessa arte parece diminuir cada vez mais.

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CINEMA Revolução em dois tempos

No começo do século 20, o setor passou rapidamente de curiosidade tecnológica à indústria, que hoje luta para manter seu poderio TEXTO José Geraldo Couto

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Fascinante o desafi o proposto

pela Continente: cotejar as mudanças experimentadas pelo cinema nos primeiros 15 anos do século 20 com aquelas verificadas nos primeiros 15 anos do século atual. À primeira vista, não haveria comparação possível, pois entre 1900 e 1915 o cinema viu surgirem – ou consolidarem-se – as bases tecnológicas, industriais, estéticas, culturais, sociais e políticas que fariam dele a “arte do século” e o modo hegemônico de narrar ficções, registrar a realidade e criar mitos de nossa era. Antes de abordar a mais recente década e meia e suas possíveis revoluções, cabe observar mais detidamente o que estava acontecendo com o cinema 100 anos atrás. Na primeira década do século 20, o cinema passou rapidamente de curiosidade científica (irmãos Lumière) e espetáculo de feira (Méliès) a meio de expressão autônomo, com uma linguagem própria e toda uma economia que encadeava a produção, a distribuição e a exibição. O sucesso das primeiras apresentações em feiras, parques e teatros de variedades propiciou o surgimento dos nickelodeons, salas

populares de exibição que cobravam um níquel pelo ingresso para sessões contínuas de filminhos de um rolo. Essa espécie de “cinema 1,99”, que se espalhou por vários países, em especial pelos Estados Unidos, gerou o capital inicial dos futuros magnatas dos grandes estúdios hollywoodianos, em geral judeus pobres vindos do Leste Europeu. Ao mesmo tempo em que os aperfeiçoamentos tecnológicos permitiam a realização de filmes mais longos, toda uma linguagem narrativa, com sua gramática e sintaxe próprias, foi sendo constituída. O maior responsável pelo desenvolvimento dessa linguagem, como se sabe, foi o pioneiro norte-americano D. W. Griffith (1875-1948), que introduziu recursos como o close, a montagem paralela e vários dos movimentos de câmera que se tornaram corriqueiros. É de Griffith também o longametragem fundador do cinema americano, O nascimento de uma nação, lançado justamente no ano que fecha o período que estamos examinando, 1915. Um ano antes, o italiano Giovanni Pastrone havia realizado o monumental Cabiria, épico histórico ambientado em

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300 a.C. que exerceria grande influência sobre o longa seguinte do próprio Griffith, Intolerância (1916). Ao lado do drama histórico, do documentário, da comédia de costumes e do melodrama romântico que davam seus primeiros passos no cinema europeu, surgiam nos Estados Unidos alguns gêneros especificamente americanos, como o western e o filme de gângsteres. Estava em curso uma substituição, que seria acelerada pela Primeira Guerra Mundial (1914-18), da hegemonia da produção francesa pela americana, o que se explica, entre outros motivos, pelo afluxo constante e massivo de imigrantes e pela pujança econômica da jovem nação. E dentro dos próprios EUA verificava-se um importante deslocamento geográfico da produção cinematográfica, do nordeste do país (Nova York) para o extremo oposto, o sudoeste (Los Angeles). Essa mudança de eixo teve várias razões. Em primeiro lugar, o desejo dos produtores de fugir do controle de patentes de Thomas Edison, que, baseado em Nova Jersey, cobrava royalties pela utilização de equipamentos que ele alegava ter inventado. Além disso, havia o clima propício da Califórnia, com sol o ano

6. SMARTPHONE Os telefones celulares tornaramse mais inteligentes, em lenta evolução. Aos poucos, os aparelhos que serviam a ligações telefônicas e troca de mensagens de texto passaram a portar jogos sofisticados, integraram-se à internet, ao GPS e incorporaram câmeras digitais e telas sensíveis ao toque. Essa evolução foi ofuscada, em 2007, pelo surgimento do melhor deles. O smartphone surgiu como mágica, quando a Apple anunciou o primeiro iPhone. Uma poderosa ferramenta de comunicação multimidiática. São também fascinantes algemas que nos prendem às redes sociais e ao trabalho, roubando-nos do aqui e agora, míopes a colibris, arco-íris e crepúsculos que enfeitam os céus. (Yellow)

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7. E-READERS Livros digitais são objetos que ainda não possuem a popularidade que merecem. Eles são fáceis de armazenar, transportar, e neles é muito fácil encontrar informações. As pessoas que não os usam sempre dizem é que “é um saco ler em uma tela de computador”. Mas vários desses aparelhos já resolvem esse problema, com telas que emitem pouca ou nenhuma luz. Quem adquire um e-reader muda seus hábitos de leitura, pesquisa e escrita. O único problema que ainda não foi resolvido são os preços extorsivos dos livros digitais, arquivos que custam quase nada para serem armazenados e distribuídos, o que não justifica que autores recebam apenas 35% de seu valor (como no modelo de publicação direta da Amazon). (Yellow)

todo, e a proximidade com os mais diversos tipos de paisagem (mar, montanha, deserto). Somando-se a tudo isso a abundância de terrenos relativamente baratos na região, é possível entender o surgimento de um polo de produção em Hollywood, então um arrabalde de Los Angeles.

NASCE UMA INDÚSTRIA

Livres do tacão de Edison, os produtores enriquecidos com a exploração dos nickelodeons começaram a estabelecer em Hollywood seus grandes estúdios. O primeiro, a Universal, surgiu em 1912. Em seguida, vieram a Paramount e a Fox, em 1916. Portanto, os passos dados pelo cinema entre 1900 e 1915 são gigantescos. Seu sentido, por outro lado, é bastante ambivalente. Pois, ao mesmo tempo em que abre horizontes e desenvolve uma linguagem própria, o cinema também cristaliza algumas formas duradouras de conservadorismo, com a consolidação de estruturas narrativas codificadas em gêneros, o predomínio da lógica industrial e a hegemonia geopolítica norte-americana. Ao longo das décadas seguintes, surgirão, sobretudo na Europa, mas também no próprio seio dos EUA, movimentos e correntes alternativas

O 3D não é uma inovação, mas um aperfeiçoamento, através da tecnologia digital, de uma ideia testada em 1915 a esse modelo hegemônico, mas em linhas gerais ele predomina até hoje. Agora, vamos dar um salto de 100 anos até o início do século atual. O que mudou, de fato, no cinema nos últimos 15 anos? Em termos de linguagem, de invenção narrativa ou estética, praticamente não surgiu nada de novo. Quanto à tecnologia, muitas são as novidades. Algumas delas talvez sejam fugazes e cosméticas; outras vieram para ficar e podem transformar de modo mais ou menos profundo o cinema tal como o conhecemos. Fala-se muito do 3D, por exemplo, mas não se trata propriamente de uma inovação, e, sim, do aperfeiçoamento, propiciado pela tecnologia digital, de uma ideia testada pela primeira vez em 1915, e que desde então passou por diversas experiências e processos. O curioso, no caso do 3D, é que, com exceção de algumas aventuras mais autorais (A caverna dos sonhos

esquecidos, de Werner Herzog, Pina, de Wim Wenders, ou Adieu au langage, de Godard), a técnica tem sido usada para reforçar os aspectos espetaculares de filmes destinados ao público infantojuvenil e justifica-se mais pelo aspecto de curiosidade de feira do que pelo que acrescenta às possibilidades expressivas do meio. Corresponde, por um lado, a uma certa infantilização do público de todas as idades e, por outro (que talvez seja o mesmo), a uma espécie de embotamento ou anestesia dos sentidos numa época de saturação audiovisual, de tal maneira, que o espectador parece precisar de estímulos cada vez mais fortes e óbvios para ter alguma emoção. Com exceções, os filmes de ação convertem-se em gigantescos videogames, cheios de som e de fúria significando nada. Mas uma revolução mais radical é a que ocorre nos meios de captação, tratamento e difusão da imagem e do som. Câmeras digitais relativamente baratas tornam muito mais acessível a produção de obras audiovisuais do que na época dos equipamentos pesados da filmagem em película de 35 milímetros. Os processos eletrônicos de edição também facilitaram e baratearam drasticamente a finalização de filmes, tanto de ficção como documentários.

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8. GPS No ano 2000, o presidente americano Bill Clinton autorizou o compartilhamento público dos dados dos seus satélites militares, tornando o sistema de posicionamento global útil para o resto do planeta. Ainda estamos vivendo um período de amadurecimento no uso da tecnologia, com sistemas computacionais que integram o serviço ao trânsito (Waze) e gastronomia (FourSquare). Nossas crianças e seus companheiros viverão em um mundo de rédeas cada vez mais curtas. (Yellow)

Mais que isso: as novas tecnologias multiplicaram as formas de recepção das obras audiovisuais. Em suas primeiras décadas, os filmes só podiam ser vistos no cinema. Depois, passaram a ser difundidos pela televisão, pelo home vídeo, pelo DVD. Hoje, as plataformas são inúmeras: computador, tablet, celular – além das que foram citadas. Em princípio, portanto, estão dadas as condições tecnológicas que potencialmente poderiam romper o poder hegemônico dos grandes impérios audiovisuais que começaram a ser construídos um século atrás. Na prática, porém, não é bem isso o que ocorre. Um exemplo é o da distribuição. Com a substituição da película pela produção audiovisual digital, que prescinde de um suporte físico, em tese, um filme (curto ou longo, de ficção ou documentário, nacional ou estrangeiro) poderia circular livremente, sem precisar submeterse ao jugo das grandes distribuidoras. No entanto, os sistemas de codificação e decodificação de sinais a que estão submetidas as salas exibidoras mantêm o poder de distribuição – e, consequentemente, de ocupação das salas – nas mãos das chamadas majors.

Temos, hoje, condições tecnológicas para romper o poder hegemônico dos grandes impérios audiovisuais Fora do circuito de salas exibidoras, o contexto é mais pulverizado e, até certo ponto, livre. Filmes e séries feitos diretamente para a internet acabam encontrando seu público, à margem das velhas estruturas. Trabalhos audiovisuais captados com celular ou tablet já têm seus canais de difusão e até seus festivais. Mesmo filmes “comerciais” são baixados e difundidos (por via legal ou pirata) por computador.

UMA NOVA CINEFILIA

Em função desse conjunto de mudanças, tem havido uma transformação visível de perfil do público de cinema (majoritariamente jovem e de classe média urbana, dado o confinamento das salas em shopping centers e multiplexes), com o circuito ocupado cada vez mais por um punhado de blockbusters e a consequente exclusão das produções

independentes e oriundas de cinematografias não hegemônicas. No Brasil, onde agora temos também nossos próprios estouros de bilheteria (todos, invariavelmente, da Globo Filmes), esse processo é flagrante. Como resultado dessas mudanças no cinema como comércio, há também uma transformação da cinefilia, ou do cinema encarado como arte. Perde peso, com exceção de certas mostras e festivais, o comparecimento ritual às salas de exibição como locais de culto, discussão e celebração. A sala de cinema passou a ser o templo do consumo descartável, onde a pipoca tem importância equivalente à do filme exibido, se não maior. A cinefilia foi banida para a internet, para os filmes baixados e compartilhados, para os sites, blogs e revistas digitais que cumprem, hoje, grosso modo, o papel que no passado foi dos cineclubes e das publicações impressas. É uma cinefilia atomizada. Daí a euforia que percebemos nos olhos, palavras e gestos dos frequentadores de eventos como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival do Rio ou a Janela Internacional de Cinema do Recife. É o reencontro, ainda que fugaz, com o cinema como lugar de descoberta, comunhão, sonho coletivo. Hoje, como há 100 anos.

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HALLINA BELTRÃO

MÚSICA Os 15 anos que mudaram o mercado

As evoluções tecnológicas do início do novo milênio transformaram a forma como fazemos e consumimos composições TEXTO Carol Nogueira, de Los Angeles

Quinze anos podem parecer pouco tempo, mas não para o cenário da música nesse novo milênio. Se, nas décadas anteriores, a indústria musical ia de vento em popa, vendendo quase 1 bilhão de discos por ano e gerando dinheiro suficiente para satisfazer os estilos de vida mais excessivos possíveis, agora, a história é diferente. Foram tantos os avanços tecnológicos que mudaram a forma como fazemos e ouvimos música que nem nos damos conta hoje em dia, de tanto que nos acostumamos, mas em 2000, vivíamos realmente em outro século. É difícil acreditar, mas, naquela época, fazer o download de uma música usando internet discada levava cerca de 10 minutos – isso considerando que sua conexão fosse boa – e um disco inteiro levava horas. As pessoas carregavam um discman e seus CDs favoritos consigo. Ver clipes só era possível na MTV, e quando eles resolvessem passar o

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que você queria – tinha gente que até gravava em fita VHS pra poder assistir quando quisesse. Avance 15 anos e, hoje em dia, baixar uma música não leva mais que cinco segundos, isso é, quando você baixa uma música, porque é mais comum ouvirmos em streaming. Suas músicas não estão mais nem no seu iPod, que você já acha ultrapassado, mas, sim, na nuvem. A MTV não exibe mais clipes – que viraram sinônimo de sites como YouTube e Vevo. As mudanças ocorridas nos primeiros 14 anos deste novo século foram tantas, que são incomparáveis às que aconteceram no mesmo período do século anterior. O primeiro gramofone de uso pessoal foi lançado em 1906. Ele e os discos, que comportavam apenas quatro minutos de música, custavam tão caro, que só os ricos podiam comprá-los. Algumas famílias tinham pianos em suas casas. A primeira transmissão de rádio com música aconteceu também em 1906, mas o rádio só se popularizou depois da Primeira Guerra Mundial. Sendo assim, naquela época, e para a maior parte da população, ouvir música era um acontecimento, exclusivamente ao vivo, isso, quando ocorria. Avancemos 100 anos. Mais precisamente, na virada do novo milênio, entre 1999

e 2000. Os computadores pessoais haviam se popularizado na década de 1990, mas a conexão à internet, feita por modo discado, ainda era muito lenta, cara e difícil de usar. Foi então que apareceu a banda larga, que era muito mais rápida e possibilitava downloads em menos tempo. Em 2000, apenas 3% da população norteamericana tinha acesso à internet banda larga, enquanto, em 2013, esse número cresceu para 70%. Observando essa realidade, em junho de 1999, o estudante da Universidade Northeastern de Boston Shawn Fanning, de apenas 18 anos, criou o serviço Napster, no qual usuários podiam trocar as MP3s que tinham em seus computadores com qualquer pessoa conectada no mundo. Após menos de um ano, o serviço se tornou extremamente popular e incomodou tanto as gravadoras que, em 2001, foi fechado por decisão jurídica. Mas pouco tempo depois surgiram serviços similares, como o Kazaa, Morpheus e Limewire. Mais ou menos na mesma época, o tamanho de armazenamento dos computadores aumentou significativamente, permitindo que o usuário mantivesse uma grande biblioteca de arquivos de música no seu computador,

algo que antes seria impossível ou, pelo menos, muito caro. Isso não afetou somente o fã de música, mas também os artistas. Como eles começaram a perder dinheiro com a venda de discos, passaram a fazer mais shows para compensar seu faturamento, e as gravadoras, por sua vez, criaram um novo tipo de contrato para ajudá-las a se manter no negócio, conhecidos por acordos “360”, nos quais elas ganham uma parte da renda total do artista, não apenas da venda de discos, mas também shows, camisetas entre outros itens. Em 2001, a Apple, empresa fundada em 1976 por Steve Jobs e Steve Wozniak, revolucionou o mercado de tocadores de música portáteis lançando o primeiro iPod, com capacidade para 5GB (mil músicas). No entanto, sua compatibilidade exclusiva com computadores Mac e o preço alto dificultaram sua popularização – o que só foi acontecer em 2004, quando a empresa lançou os primeiros aparelhos com display colorido, com capacidade de 20, 40 ou 60GB. Na sequência, surgiram também os modelos menores, Nano e Shuffle. Outras marcas passaram a lançar produtos similares e, em pouco tempo, o discman se tornou obsoleto. Com a popularização da banda larga e de tocadores portáteis de MP3, além

9. YOUTUBE

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O YouTube foi um dentre dezenas de sites a hospedarem vídeo na internet. Mas a marca teve a sorte de aparecer no momento certo, para cair no gosto dos internautas. Esse serviço finalmente nos deu os 15 minutos que Andy Warhol prometeu – cada um de nós guarda um viral dentro de si. E nem só de vídeos de gatinhos vive o site. Nele, podemos encontrar tutoriais para tudo, de como cortar o próprio cabelo a como aprender a nadar. E o mais surpreendente de tudo foi que o modo de produção capitalista não entrou em colapso, frente a tanto conteúdo de entretenimento disponível às pontas dos dedos. (Yellow)

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CON ESPECIAL TI NEN TE da criação de programas de troca de arquivos online, a venda de CDs caiu drasticamente durante toda a década. Nos Estados Unidos, o número de cópias vendidas caiu de 942,5 milhões, em 2000, para 165,4 milhões em 2013. Com isso, quem sofreu também foram as lojas de discos. Entre 2005 e 2009, aproximadamente 2.680 lojas de discos foram fechadas somente nos EUA. Em 2003, a Apple revolucionou o mercado mais uma vez criando o iTunes, serviço de venda de arquivos digitais que deu esperança às gravadoras, que começaram a substituir a venda de CDs pela de downloads. Muitas pessoas começaram inclusive a converter seus CDs em arquivos digitais de áudio para poderem escutar onde e quando quisessem. Apesar de a indústria musical ter sofrido um baque com a queda na venda de CDs, os artistas independentes acabaram se beneficiando das novas tecnologias, porque ficou mais fácil mostrar o próprio trabalho. Em 2003, foi criado o MySpace, rede social na qual era possível fazer o upload de arquivos de música. Muitos artistas famosos hoje em dia foram descobertos lá, como Lily Allen, Owl City, Sean Kingston, Arctic

Monkeys e, no Brasil, Mallu Magalhães. As rádios online também ganharam força, o que significava que agora as pessoas podem ouvir até as rádios mais obscuras de países europeus, enquanto antes só tinham acesso às rádios locais e a televisão (MTV), se muito. Além de ser bom para os artistas, isso também facilitou

Criado em 2005, o YouTube é hoje o segundo site mais visitado do mundo, só perde para o Google, ao qual pertence uma maior oferta de música, e as bandas puderam aproximar-se de mercados antes difíceis de atingir. Também ficou mais fácil criar música. Se, antes, os artistas precisavam das gravadoras para bancar horas caríssimas em estúdios, hoje em dia, podem fazer quase tudo em casa em seus computadores. Nos anos 2000, a maioria dos produtores e engenheiros de som passou a usar softwares como o Pro Tools para gravar discos, tornando praticamente obsoletos os gravadores

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de fita analógicos – hoje vistos com saudosismo por bandas como o Foo Fighters, que fala sobre o assunto no documentário Sound city, sobre o estúdio californiano que leva o mesmo nome. Além de começar a vender música em formatos digitais, as gravadoras também passaram a inventar formas de ganhar dinheiro, uma delas, com ringtones, os famosos toques de celular. Somente em 2004, essa indústria gerou cerca de US$ 4 bilhões. Mas uma mudança ainda maior estava para acontecer. Em 2005, os amigos Steve Chen, Chad Hurley e Jawed Karim, que trabalhavam no site PayPal, criaram um serviço de compartilhamento de vídeos amadores que chamaram de YouTube – talvez você o conheça, afinal, apenas um ano depois, ele foi comprado pela Google por US$ 1.65 bilhão e é hoje o segundo site mais visitado do mundo, com 1 bilhão de visitantes únicos por mês, perdendo apenas para o próprio Google. O Youtube se tornou uma plataforma de divulgação para novos talentos musicais, revelando, por exemplo, o cantor Justin Bieber e a cantora Carly Rae Jepsen (da música Call me maybe). Apesar de ter sido criado com a intenção de privilegiar os vídeos amadores de anônimos, o site também virou a maior plataforma de vídeos

10. GOOGLE Antes dele, os sites de busca listavam a internet inteira à mão, tateando todos os links possíveis em busca de novas URLs. A internet era um emaranhado intransponível de texto em todas as línguas do mundo. O sistema de busca e ordenação criado por Larry Page e Sergey Brin, em 1997, tornou-se hoje uma das maiores corporações multinacionais. A empresa possui também o maior apanhado de informação sobre a humanidade, e é a personificação do cérebro eletrônico que nos conhece (Gmail, Google+), sabe onde estamos (GoogleMaps, Waze), antecipa nossos passos (GoogleNow) e, em breve, dirigirá nossos carros (Google Self-Driving Car), adquirirá consciência (Google Brain). É sério. (Yellow)

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online e logo passou a hospedar videoclipes (que já não tinham mais espaço na MTV, que preferiu apostar em reality shows e séries), programas de televisão, webseries, vídeos de comédia e por aí vai. Tão relevante se tornou o Youtube para a música, que, em 2013, a revista americana Billboard passou a incorporar dados dele em sua lista semanal das mais tocadas nas rádios americanas. A novidade teve um efeito imediato na época, quando elevou à primeira posição da lista a música Harlem shake, do DJ novato Baauer, que “viralizou” com a ajuda de vídeos postados no site em que pessoas dançavam a música de maneiras inusitadas e divertidas. Voltando alguns anos, tudo isso estava acontecendo online, mas a maioria das pessoas só tinha acesso à internet em seus computadores. Era hora de mais um passo gigante: a popularização dos smartphones e, em 2007, o lançamento do iPhone, indicando que, mais uma vez, a Apple estava na vanguarda da revolução da música digital. Os smartphones possibilitaram o acesso à internet de onde o usuário estivesse, o que significava poder ver e ouvir milhares de vídeos e músicas online. Além disso, eles eliminaram a necessidade de ter um iPod, pois

também armazenavam música. Outra característica revolucionária do iPhone e do iPad, este lançado em 2010, foram os aplicativos voltados para produção musical. No mesmo ano de lançamento do iPhone, o sueco Daniel Ek criou o Spotify, o primeiro serviço de streaming de música a fechar acordos

Enquanto a indústria sofreu a queda nas vendagens de discos, os artistas independentes se beneficiaram com as gravadoras para legalizar seu conteúdo – o que significa que eles podem cobrar pelo serviço e, assim, torná-lo um negócio sustentável. Ainda que seu modelo de negócio seja extremamente criticado (os artistas ganham apenas cerca de US$0,007 por play), é considerado a salvação da indústria musical e foi copiado por dezenas de outras empresas, que lançaram serviços semelhantes, como Deezer e rdio. Hoje, 64% da música é consumida em formatos digitais, enquanto

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31% em CDs e apenas 3% em vinil – o número de vendas em vinil, formato que havia sido deixado de lado nas décadas anteriores com a popularização das fitas-cassete e, depois, do CD, pode parecer pouco, mas vem crescendo significativamente nos últimos anos. Estima-se que, em 2014, tenham sido vendidos 8 milhões de discos de vinil somente nos EUA – em 2013, haviam sido 6 milhões. Tanto aconteceu nesses últimos 15 anos, que deu tempo de uma das principais invenções para a música no período, o iPod, já ser considerado obsoleto. Em sua leva de lançamentos mais recentes, em 2014, a Apple silenciosamente descontinuou a versão Classic do modelo, que tinha capacidade de até 160GB, e agora vende apenas as versões Shuffle, Nano, e Touch, que comportam, respectivamente, até 2GB, 16GB ou 64GB. Tudo porque a música digital avançou tanto, que ninguém precisa mais carregar toda a música da vida em um só disco rígido. Basta acessar a nuvem, ou um serviço de streaming, e escutar o que você quiser com apenas alguns cliques. Esses 15 anos fizeram bem, e muito, para a música. E deve melhorar. Especialmente se continuarmos tendo avanços assim nos próximos 15.

11. REDES SOCIAIS A Microsoft e a Apple tinham planos bem específicos do que fariam com a internet – seria um produto das grandes empresas, e os usuários precisariam “pagar pedágio” para usar a superestrada da informação. A Web, um formato aberto, gratuito e neutro inaugurado em 1991 por Tim Berners-Lee, pôs fim a esses planos de dominação, até a chegada das redes sociais. Prometendo nos manter em contato com pessoas que conhecemos, acabaram por tornar-se uma espessa camada de maquiagem entre nós e a Web, que limita o alcance de nossas mensagens, a menos que paguemos pedágio. Elas também vêm sendo matéria-prima das gafes do novo milênio. (Yellow)

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ARTES VISUAIS Outros sotaques na língua global da arte

Se compararmos o cenário do início do século 20 ao atual, verificaremos que regiões antes invisíveis do globo passaram a questionar hegemonias TEXTO Moacir dos Anjos

Não existe uma História somente, isso já é sabido e acordado. Não existe uma narrativa do que acontece no tempo – narrativa de fatos e atos que produzem a sensação do passar de dias, meses e anos – que seja reconhecida por todos como única. A todo instante, histórias diversas, contadas por gentes distintas e a partir de contextos os mais diferentes, disputam a primazia de serem reconhecidas como resumo fiel do que ocorreu em vários lugares e momentos. A História é uma disciplina errante. Que erra porque não cessa de moverse em direção ao que se passou e, simultaneamente, rumo ao mundo que seu discurso sobre o ocorrido ajuda a ser construído. Narrar é ação voltada ao passado e ao futuro desde um ponto de vista que se imagina e se quer verdadeiro, quando, de fato, é apenas um entre tantos que existem em litígio. Narrar é ação presente de invenção do tempo. É disputa pelo poder de comando sobre a ideia que se tem dos acontecimentos. A História também não é bloco indiviso de ocorrências, posto que são muitas e intricadas as tramas que produzem os eventos. Narrar é também selecionar, incluir e excluir movimentos e cenas passadas tidos

como importantes ou supérfluos para o discernimento do acontecido. É abarcar alguns territórios e ignorar vários outros por serem opacos aos interesses de quem tem a primazia de contá-los; de quem tem o poder de fazer com que contem ou não na soma dos fatos que se passam por História. História é representação do mundo e, como tal, com ele não se confunde, sendo sempre um pouco (ou um tanto) mais acanhada que ele. Representação feita não somente através da fala inscrita na linguagem, mas também, com maior ou menor intensidade e desígnio, por meio de imagens, sons e outros vestígios que sugerem uma narrativa particular dos acontecimentos. História é abstração atravessada e informada por vozes dissonantes que se embatem pelo poder de afirmarse diante de suas concorrentes. Assim também se passa com as Histórias particulares de cada campo de conhecimento e de ação humanos, inclusive com as chamadas artes visuais. A História da arte é feita e refeita desde perspectivas as mais diversas, que se confrontam, traindo um lugar do mundo que ocupa posição destacada na hierarquia dos olhares que observam e tentam enquadrar a sucessão embaralhada de

inventos que os artistas fazem. O que está e o que não está nas narrativas artísticas canônicas – além do modo como aquilo que lá está se articula com o resto da vida – ecoa uma dinâmica mais ampla de partições e desigualdades sociais e econômicas. Por esse motivo, a cada momento, a História pode ser e é efetivamente reimaginada desde vários cantos. Outras histórias se insinuam, forçam a entrada, desmancham o que já se pensava saber. Instauram uma pedagogia de desaprender consensos. Inauguram outros possíveis passados e imaginam futuros imprevistos. Fazem política. É por isso, entre outras razões aqui dispensadas, que comparar o que se passou na arte em momentos distantes é tão difícil quanto revelador dessa disputa. E só se faz interessante, se expõe (ou ao menos arranha) o que move esses discursos. Há, portanto, um inequívoco grau de arbitrariedade na comparação, a partir do campo das artes visuais, entre o que ocorreu nos primeiros 15 anos do século 20 e o que se tem passado nos primeiros 15 anos do século atual. Não há, por necessidade, convergências ou oposições marcantes que autorizem essa empreitada. Tomadas nelas mesmas, são narrativas que se autojustificam

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CON ESPECIAL TI NEN TE através dos mecanismos de validação e de distinção, vigentes e dominantes em cada período. São as representações hegemônicas da produção artística realizada em diferentes momentos. Nesse contexto, uma maneira mais produtiva de relacionar essas narrativas talvez seja ler uma através da outra, o passado através do que calhou de ser o seu porvir. Escavar, em uma, aquilo que está gravado na outra, de modo a confrontá-las como histórias vivas e hesitantes, e não como falas que se querem prontas. Não existe um ponto de partida melhor do que outro para adentrar em uma História que é um novelo. Há muitas maneiras possíveis para fazêlo, e a escolha aqui busca abreviar caminhos, pois é uma que já considera o conflito agonístico entre versões da História como a norma para entendêla, e não como um desvio a ser de alguma maneira abafado ou corrigido. Em 2004, um grupo de quatro conhecidos historiadores e críticos de arte – Hal Foster, Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois e Benjamim H. D. Buchloh – publicou um livro chamado Art since 1900 (arte a partir de 1900), que buscava refazer as trilhas da História estabelecida e tomada como certa, questionando critérios por

décadas hegemônicos no campo das artes visuais. Apoiados em métodos teóricos diversos – psicanálise, história social, estruturalismo e pós-estruturalismo –, os autores se propunham, em uma análise da produção artística do mundo feita ano a ano ao longo de mais de um século, a corroer as tradições desse campo, deixando-o aberto e fértil para novas interpretações. Mas, se a orientação crítica das abordagens do livro é capaz de subverter leituras engessadas de

Um ponto de analogia entre os dois inícios de séculos é ainda a hegemonia de artistas oriundos da Europa e dos EUA obras e movimentos já conhecidos – sugerindo novas hipóteses para a sua compreensão e assumida importância –, não parece ser o bastante para renovar o corpus do que se supõe engendrar a História da criação artística. Tomados os 15 primeiros anos do século 20 discutidos no livro,

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não há quase surpresa entre as presenças destacadas, alinhando-se ali, cronologicamente, nomes como Gustav Klimt, Egon Shiele, Henri Matisse, Auguste Rodin, André Derain, Paul Gauguin, Pablo Picasso, Wassily Kandisnky, Umberto Boccioni, Giacomo Balla, Giorgio de Chirico, George Braque, Fernand Léger, Piet Mondrian, Robert Delaunay, Marcel Duchamp, Vladimir Tatlin e Kazimir Malevich, entre poucos outros. Todos eles homens e europeus. E, ainda que as interpretações sejam destoantes daquelas antes estabelecidas, os contextos abordados são quase os mesmos, reiterando a importância de escolas, agrupamentos e momentos de ruptura já consagrados na historiografia então vigente. O fato de um projeto acadêmico disposto a rever as interpretações correntes da História da arte não conseguir ser inclusivo e autorreflexivo o bastante para questionar a própria formação do cânone de um século atrás diz muito a respeito da impermeabilidade do campo das artes visuais naquele momento. Os últimos capítulos do livro sugerem, porém, o quão restrito esse campo ainda é no início do século 21, dado que os artistas ali destacados são também europeus, ou provenientes da América do Norte:

12. A NUVEM Chamamos de nuvem os serviços (como iCloud, Dropbox e Google Drive) que realizam armazenamento ou processamento de arquivos em um servidor, ao qual nos conectamos através da internet. Além de não corrermos mais o risco de perdermos arquivos, outra vantagem é que quase tudo é de graça! Por que será? Ora, porque ela é o Grande Irmão – nossas informações são cuidadosamente guardadas, decupadas, analisadas e vendidas a quem der mais. E isso impacta nossas vidas muito mais do que os serviços que ela nos presta. Não é coincidência que a publicidade dos sites nos oferece produtos e serviços cada vez mais relevantes para nós. No fundo, nós não usamos a nuvem, ela é que está usando a nós. (Yellow)

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13. MP3

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A popularização do algoritmo de compactação de áudio, que faz com que eles ocupem menos espaço nas máquinas e sejam transferidos com mais rapidez pela internet, aqueceu a pirataria musical online. É claro que a qualidade do som não se compara à das mídias analógicas, mas a cavalo dado não se olham os dentes! Hoje temos à ponta dos dedos toda a música publicada pela humanidade! O formato de arquivo foi o estopim para a criação das redes de transferência de arquivos peer-to-peer, e ajudou a destruir e reformular a indústria da música. (Yellow)

James Turrel, Bill Viola, Douglas Gordon, Stan Douglas, Jeff Wall, Sam Taylor-Wood, Andreas Gursky, Liam Gillick, Thomas Hirschhorn, Pierry Huygue e Tacita Dean. A ausência eloquente de artistas e movimentos da América Latina, África, Ásia e Oceania – tanto na narrativa histórica do início do século 20, quanto naquela dedicada ao início do seguinte, e ainda mais em livro de autores que se situam criticamente à historiografia dominante –, é indicador seguro de que a hegemonia que vigia antes é ainda forte o bastante para naturalizar a exclusão de tantos, sem prejuízo para o reconhecimento do valor dos artistas citados. É evidente que há estudos históricos que buscam desconstruir e refazer cânones; ou mesmo criar outros, paralelos e mais inclusivos; ou, ainda, ignorá-los totalmente, ocupando-se de casos precisos sem a pretensão ou o interesse de organizálos em uma hierarquia que talvez não faça mais sentido formar. O caso aqui citado evidencia, porém, que no âmbito da difusão e do ensino basilar da História da arte – ao qual a publicação citada é destinada –, o mundo de agora não difere muito daquele de um século atrás. Há um outro lugar de discurso no campo artístico, entretanto – que

não é o da historiografia consagrada –, onde se esboçam e se formam as tentativas mais insistentes e consistentes de alterar esse quadro antigo que teima em não se desfazer. É no campo mais ruidoso e arriscado das exposições de arte que outras histórias vêm sendo tecidas desde o final do século 20, rumo a um

É sintomático que, nas bienais, venha ocorrendo o fim as chamadas representações nacionais entendimento da produção visual – passada e presente – que quase ainda não consta nem conta nas discussões disciplinares da História da arte. No melhor dos casos, são incluídas na disciplina como um segmento específico por vezes chamado de História das exposições. Como se não fosse nesses espaços que a arte é dada a ver e se torna coisa pública – passível, portanto, de ser partilhada no comum da vida. Como se a História da arte não fosse, em larga medida, a história das exposições.

É já muito conhecida a importância, assim como as limitações, de projetos curatoriais como o da mostra Magiciens de la Terre, ocorrida em Paris, em 1989, bem como a centralidade das bienais de Havana, de São Paulo e de algumas poucas outras ocorridas do final do século 20 em diante, além de edições específicas da Documenta, em Kassel (as de 2002 e 2012, principalmente), para o avanço conceitual e político dessa discussão – para que o mundo de ontem e o que virá sejam reinventados no presente. Exposições que buscam romper com os cânones vigentes da História da arte, tornando-a mais porosa, complexa e abrangente. E é sintomático que tenha ocorrido, nesse período que ainda vigora, o fim das chamadas representações nacionais nas bienais (com a exceção importante da Bienal de Veneza, a mais antiga de todas), ao mesmo tempo em que se testemunha a presença cada vez maior e mais potente, nessas mostras, de artistas vindos de países que jamais haviam participado de uma exposição internacional, permutando-se uma geopolítica oficial – imposta desde regiões, países e historiografias hegemônicos – por outra que reflete os conflitos em curso no mundo.

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CON ESPECIAL TI NEN TE São exposições que reconhecem a impossibilidade de afirmar, no mundo contemporâneo globalizado, certezas canônicas, posto que a intensificação dos fluxos que é própria dele – fluxos materiais, financeiros, simbólicos, de corpos – não ocorre em um ambiente pacificado de trocas, tampouco contribuindo para seu gradual estabelecimento. Não existe nenhuma associação causal, como é por vezes sugerido, entre a crescente globalização do mundo e o suposto acesso de diferentes povos a direitos que outros já usufruem. A intensificação desses fluxos constitui, ao contrário, dinâmica marcada por interações truncadas e pela atualização das relações de poder violento. É justamente algo que é próprio do tempo presente – a instauração vertiginosa de um ambiente de contato próximo entre regiões distintas – que torna possível atualizar antigas formas de apropriação desigual dos ganhos materiais que essas interações engendram. As relações efetuadas nas “zonas de contato” globalizadas se dão de modo hierarquizado, (re)produzindo, o tempo inteiro, disparidades e danos. Nesse ambiente, local e global não formam par de conceitos que se excluem, mas que se constroem

e que se mantêm mutuamente como expressões de um mundo simultaneamente integrado e partido. Esses projetos expositivos se associam a vozes e movimentos contra-hegemônicos que atualizam a ideia de que o local é também o lugar de onde pode vir a reinvenção de uma ideia de mundo mais ruidosa e ampla, sem com isso se confundir com afirmações identitárias rígidas. São estratégias que produzem, em vez disso, formas de pertencimento híbridas, instáveis e em negociação aberta e conflitiva com o outro dominante. São formas e acenos de resistência à homogeneização e estreitamento simbólicos do mundo. Por meio dessas exposições, dá-se visibilidade a estratégias artísticas que afirmam o “direito de narrar” para locais subordinados e distintos. Estratégias que não se ancoram mais na suposta singularidade de lugares, de ideias ou de temas para afirmar diferenças. Em um mundo globalizado, o que torna a arte feita em um lugar distinta da arte feita em outros lugares não é mais o confronto estanque entre elas, mas as maneiras como conhecimentos e legados produzidos em toda parte (e amplamente disponíveis a quase todos) são acolhidos, descartados e

EM 15 ANOS...

recombinados por artistas a partir de lugares diferentes. Essas articulações entre códigos diversos fazem com que a chamada língua global da arte – aquela que dominou os cânones artísticos no passado, que quer continuar dominando e que se julga universal, mas é somente dominante – seja falada com sotaques específicos. Sotaques que revelam não somente quem está falando, mas também a partir de que posição do mundo se está falando, a depender de quão próximo ou quão distante estejam dos padrões dominantes de enunciação da língua que a arte pretensamente global quer ensinar. Sotaques que torcem as normas da língua global da arte e afirmam uma arte que é, simplesmente, do mundo. Buscando-se fazer ouvir nos muitos espaços em que se disputa a hegemonia de representações da realidade, essa produção – que quase não consta ou é considerada nos meios que afirmam o cânone contemporâneo – demanda que sejam considerados, como partes de um comum partilhado, sujeitos e maneiras de compreender fatos que antes não eram contados nesse campo da produção artística. Que não eram contados há 100 anos, e que agora querem fazer parte dessa contagem. Uma disputa ainda em curso, e que acontece em todo canto.

14. MP3 PLAYER Um pen drive que processa os arquivos mp3. Uma ideia simples, que finalmente permitiu que corredores ouvissem música com qualidade digital sem que o walkman quebrasse, ou o CD pulasse. Permite, também, que ouçamos podcasts e livros de áudio em engarrafamentos ou na academia. Contribui significativamente para a perda de audição de nossos contemporâneos. Torna mais toleráveis tarefas mundanas, como a lavagem de pratos e roupas, e permite a criação de cápsulas de lapso espaçotemporal nas quais podemos, com sucesso, ignorar colegas de trabalho, transeuntes e familiares. (Yellow)

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15. NETFLIX O Netflix está ajudando a traçar o novo modelo de consumo de mídia audiovisual. Assim como os serviços de rádio na web (como o Spotify) estão permitindo uma pós-vida à indústria da música, os de vídeo sob demanda garantem receita a quem vende animação, filmes e séries. É o que deveria ter acontecido imediatamente após a polêmica do Napster, em 1999, mas demorou 10 anos para ficar pronto. Ainda existem ajustes a serem feitos – muitos artistas e estúdios reclamam que recebem pouco pelo consumo de suas obras. Mas, por conta de modelos como esse, a nova geração de internautas mal sabe o que é pirataria. (Yellow)

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LALO DE ALMEIDA/FOLHAPRESS

CON TI NEN TE

COMPORTAMENTO

VIRTUALIZAÇÃO DA

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Com o impulso da globalização e das tecnologias de comunicação, o consumo cultural no Brasil cresceu no século 21, mas problemas na formação de públicos de arte persistem TEXTO Fábio Lucas

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Entre um autor e seus leitores, entre um diretor de cinema e seus espectadores, entre um músico e sua audiência, prevalecem o vínculo que une expectativas e um tipo de prazer difícil de descrever. No universo de inquietações da cultura, toda manifestação é troca. Uma espécie de mercado simbólico que se estabelece entre o artista e o público, mediado por técnicas e por profissionais em campos de facilitação da produção, da exibição e da interação que compõem a relação cultural. No Brasil dos últimos 15 anos, parte importante do que foi consumido nesse mercado – longe de só simbólico, também sujeito ao risco e ao lucro – tem experimentado novas relações. Relações remodeladas por novíssimas mediações, que conectam o indivíduo à cultura globalizada, e põem na palma da mão de cada um a possibilidade de consumir o que quiser, quando quiser: músicas, filmes, shows, livros, notícias, fofocas, artigos, palestras, cursos… Onde houver um bit de informação, há um brasileiro conectado. Pesquisa divulgada em dezembro de 2014 pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) mostrou que o brasileiro gasta mais por mês com internet e celular do que com ingressos de teatro, cinema e shows. A diferença em cifras é pequena – de R$ 104 para R$ 96 –, mas não se pode desprezar o fato de que a posse permanente da ferramenta tecnológica de comunicação, representada pela conta mensal, é mais relevante do que o entretenimento proporcionado pelos canais tradicionais de entretenimento e cultura. O celular e a internet estão entre as maiores prioridades das despesas familiares, de acordo com a mesma pesquisa: perde para os gastos com roupas, mas fica à frente da quantia reservada a calçados. Para os brasileiros, a conectividade é quase gênero de primeira necessidade. De acordo com o consultor de políticas públicas para o livro e a leitura, Felipe José Lindoso, o fenômeno não é brasileiro. Com isso, o acesso se tornou mais amplo. “Os livros eletrônicos, o streaming de filmes, músicas e programas de TV ampliaram dramaticamente a

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A abundância de oferta de conteúdos online traz o problema da seleção e a ilusão da gratuidade do que se está consumindo

possibilidade de acessar conteúdos culturais e informativos. E também os que se podem classificar como sendo de diversão ou entretenimento. Não é, evidentemente, um fenômeno apenas brasileiro, e, sim, uma tendência mundial”, lembra Lindoso, que também é tradutor e editor. Entretanto, em sua visão, esse acesso continua sendo desigual. “Não apenas os aparelhos necessários para entrar no mundo digital são caros, o que por si só é uma restrição. A infraestrutura de acesso continua insuficiente, pois o programa de banda larga não foi implementando. Os custos também são caros e restritivos, pois a transmissão de dados no Brasil tem uma das tarifas mais altas do mundo.”

Para Lindoso, também ex-diretor da Câmara Brasileira do Livro (CBL), outro ponto a se destacar é a dificuldade na seleção de conteúdo. “A abundância é tamanha, que a busca do conteúdo adequado se tornou um problema. Essa abundância traz outro problema: a ilusão do conteúdo grátis. Ilusão, porque simplesmente isso não existe: há que pagar o custo da transmissão de conteúdo. Ilusão também porque a proliferação do que se pode acessar nominalmente grátis (depois de pagar o provedor e o trânsito da informação) é geralmente de péssima qualidade e, o que é pior, disfarça-se como ‘democrático’, já que qualquer um coloca online a porcaria que desejar”, critica. Gerase então, nessa perspectiva, uma “desvalorização do que é produzido de modo sistemático e sério, tanto no âmbito da informação (a substituição da apuração e verificação do conteúdo das notícias pela suposta instantaneidade da informação proveniente do público em geral, através da chamada mídia social),

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CONECTIVIDADE Pesquisa aponta que brasileiro gasta mais por mês com internet e celular do que com ingressos para teatro, cinema e shows

contemporânea que deve crescer”, acredita Ferraz. Segundo a pesquisa Públicos de cultura, divulgada em 2013 pelo Sesc, 61% das pessoas entrevistadas nunca chegaram a ver uma peça de teatro. O que não surpreende quem é do meio. “Teatro é arte cara e para poucos. Por isso nossa luta pelos incentivos públicos. Com bilheteria minguada, como sobreviver? Mas é uma arte para um público pequeno”, reconhece Ferraz.

INTERAÇÃO X INTERATIVIDADE

como do conteúdo propriamente cultural, produzido por autores, músicos e similares que precisam de remuneração para continuar produzindo e veem seu trabalho desvalorizado, pirateado”. O fato é que, como no resto do planeta, no Brasil do século 21, a cultura virtual ganha força, o que vem a ser evidenciado pelos produtores culturais. “Principalmente a partir dos anos 2000, com esse incremento tecnológico cada vez maior (iPads, iPods, ‘iTudo’, canais a cabo), os públicos foram diminuindo e o teatro precisou repensar como falar às plateias”, afirma o ator e pesquisador de teatro Leidson Ferraz. A virtualização da vida interferiu no hábito do público e na forma de fazer teatro, resultando em montagens intimistas, para pouca gente, às vezes feitas em domicílio. “Vejo o teatro (de arte) cada vez mais assim, ocupando pequenos espaços, de contato direto com o espectador, tocando em assuntos pessoais (inclusive de quem está em cena). Esse voltarse para dentro é uma tendência

A formação de público, de maneira geral, é um problema que persiste em todas as formas de expressão artística. Nesse prisma, a contribuição da virtualização seria negativa, ao desestimular a convivência. “A situação caótica que se instalou parece menosprezar a necessidade e a importância de locais onde aconteçam a produção, a fruição e o aperfeiçoamento da qualidade do que se ‘consome’. Bibliotecas, centros culturais e outras instituições de caráter educativo e formador são menosprezadas em nome da exacerbação do individualismo que se expressa nos aparelhinhos de consumo personalizado e fechado, como smartphones, tablets, computadores etc.”, diz Felipe Lindoso. Para ele, é preciso aprofundar a “busca de um equilíbrio entre as facilidades de acesso proporcionadas pela tecnologia e as interações comunitárias e socialmente mais produtivas que se dão nesses tipos de instituições, que muitos qualificam como antigas, mas que são locus fundamentais da interação e da convivência social”. De acordo com a citada pesquisa Públicos de cultura, 89% dos entrevistados nunca foram a um concerto de ópera ou de música clássica em sala de espetáculo; 75% nunca estiveram em espetáculos de dança ou balé no teatro; 71% jamais visitaram exposições de pintura, escultura e outras artes em museus ou outros locais; e 70% não estiveram numa exposição de fotografia. Em compensação, 91% revelaram assistir a filmes em casa ou noutro lugar diferente do cinema; 80% costumam

dançar em bailes e baladas; 78% declararam ir ao cinema; 72% têm costume de ir ao circo; e 69% assistem a um show de música em casa ou outro local diferente de casas de espetáculos. Há espaços recém-inaugurados que contribuem para mudar esse quadro. Como a Caixa Cultural, aberta no Bairro do Recife em 2012. De frente para a Praça do Marco Zero, um dos principais pontos turísticos da capital pernambucana, a Caixa Cultural contabiliza mais de 300 mil visitantes, em 127 projetos realizados desde a inauguração. Em 2014, o espaço recebeu sete exposições de artes visuais, sete espetáculos de dança, cinco de teatro, quatro projetos de arte-educação e quatro mostras de cinema, além de 17 apresentações de música. De acordo com o gerente em exercício, Elton Rodrigues, pelo espaço cultural passam pessoas que vão diretamente para lá e aquelas que passeiam pelo Recife Antigo, e aproveitam para conhecer os equipamentos culturais do bairro. “Isso impõe a responsabilidade de atuar na formação do público e o desafio de apresentar sempre projetos de qualidade para atrair esses visitantes, surpreendê-los e motivar sua volta em novos projetos.” A interatividade é o apelo dos espaços surgidos no país de 2000 para cá. Entre eles, o Museu da Língua Portuguesa (2006) e o Museu do Futebol (2008), em São Paulo; o Cais do Sertão e o Paço do Frevo, ambos abertos em 2014, no Recife. Com elementos tecnológicos em destaque e o uso extensivo de vídeos e áudios, esses museus do século 21 representam uma aposta para a conquista de públicos cada vez mais acostumados a vivenciar a cultura como levam o cotidiano – recheado de apetrechos técnicos à palma da mão e com a possibilidade de fácil compartilhamento da experiência. Apenas nos três primeiros anos de funcionamento, o Museu da Língua Portuguesa recebeu em suas instalações mais de 1,6 milhão de visitantes, logo tornando-se um dos principais destinos culturais do Brasil e da América Latina.

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TURNÊS Grandes plateias

Com a profusão de espetáculos, o mercado passou por um processo de aperfeiçoamento técnico e tecnológico

Se o teatro padece de esvaziamento provocado, em parte, pelo avanço das mídias e do entretenimento virtual, outros segmentos culturais encontraram nichos de mercado e conseguem reunir pequenas multidões, de modo crescente. É o caso dos shows musicais e das feiras literárias, que se multiplicaram e se firmaram no Brasil nos últimos 15 anos. “Diria que, a partir de 2000, vivenciamos um boom, o país entrou definitivamente na rota internacional, por diversos fatores”, relata Horácio Brandão, CEO da Midiorama Comunicação e Imagem, que, ao longo das últimas décadas, trabalhou com nomes como Kiss,

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Placido Domingo, David Bowie, Björk, Eric Clapton, Elton John, Beyoncé, Madonna, Marisa Monte, Daniel, Ana Carolina e outras estrelas do showbiz nacional e internacional. De acordo com ele, os artistas tiveram que excursionar mais, devido à redução das vendas físicas, fruto da pirataria e dos downloads. “As mudanças econômicas nos mercados europeu e americano, e uma certa estabilidade no Brasil, também influenciaram. Nesse período, grandes empresas do entretenimento mundial fizeram parcerias significativas com os players nacionais, e o Brasil tomou a frente, ao puxar turnês”, conta Horácio. “Passamos a comprar mais datas de shows dentro de turnês pela

INSTABILIDADE Mercado ainda tem incertezas: último show de Madonna no Brasil não lotou, devido ao alto valor dos ingressos

América do Sul do que os hermanos vizinhos, como o Chile e Argentina.” A curva ascendente do mercado de shows, nesse caso, acompanhou o aumento da mania pelo entretenimento tecnológico. “Somos um país musical, festivo, torcedor. Não é novidade para ninguém que nossas plateias são volumosas e passionais. Tudo aqui é muito, seja o número de celulares, computadores, gente na internet, e isso faz o bolo do entretenimento crescer”, avalia Horácio Brandão, que começou a carreira como consultor de imagem para eventos, há mais de 20 anos. “Quando iniciamos, não existia internet, telefonia celular, e isso mudou a maneira de se comunicar. Além de consultoria de comunicação e imagem para o mercado, voltamos nosso olhar para o consumidor final, o fã. Hoje, lidamos com milhares de fãs através das mídias sociais, provendo conteúdo, promoções e estreitando o laço com seus ídolos”, diz Brandão, que define a posição de sua empresa, atualmente, como um hub, um canal entre mídia, produtos de entretenimento e público. Com acesso a novas tecnologias, que põem os shows na dianteira do sonho de consumo de muita gente, os grandes artistas não dispensam o aparato que for necessário para oferecer à plateia um espetáculo de imagens e efeitos especiais. Segundo Brandão, tecnicamente falando, o “circo” dos shows evoluiu e se profissionalizou nesses 15 anos. Ganhou melhores técnicos e investimentos em som, iluminação e palcos. “Não somos mais um país que não tenha profissionais e equipamento de alto gabarito”, afirma. O que não quer dizer que não existam problemas. “Com artistas nacionais, ainda vinga a lei do contratante que dita as condições, e vemos DVDs bem-produzidos e artistas em

versões menores de produção pelas feiras, rincões, festivais e casas de shows. Isso não acontece em países preparados para que cada show, em cada arena, tenha a mesma entrega e acabamento”, compara. Porém o mercado de shows no país ainda tem o que aperfeiçoar, e está longe de ser estável. “As turbulências ocorrem toda vez que o público tem mais oferta do que procura. Eventos de grandes proporções, como as turnês de Lady Gaga e Madonna, que ocorreram quase simultaneamente em território nacional, não conseguiram alcançar o público ideal, o que foi algo inesperado”, recorda o produtor. “Incertezas de resultados como esses podem ocorrer. Tem de haver equilíbrio entre oferta e demanda, e equacionamento de uma infinidade de variáveis, como o câmbio, o patrocínio, o valor de ingressos e os serviços.”

Artistas tiveram que excursionar mais devido à queda de vendas físicas, fruto da pirataria e dos downloads Para ele, a principal tendência do mercado nacional de shows para os próximos anos, tomando por base a evolução do cenário no início do século 21, é justamente a maior interatividade com o público, que terá mais domínio para ditar as regras do mercado. “Eles não dependem mais da propaganda ou da mídia convencional, o público sabe o que quer. Hoje, é possível esgotar ingressos em semanas”, ressalta. Na sua opinião, promotores de shows devem deixar de olhar para plateias como “consumidores acéfalos e que se comportam como massa” – na mesma linha do que disse à Continente, em entrevista, o jornalista Paulo Roberto Pires (leia a seguir). Nesse aspecto, a compreensão dos hábitos do brasileiro é fundamental, para não mais tratar os consumidores como massas uniformes.

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MERCADO Mais feiras, mais leitores?

Nos últimos 15 anos , a

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Apesar do crescimento significativo dos eventos literários, as vendas de livros ainda estão abaixo da expectativa

quantidade de eventos literários no Brasil apresentou aumento inegável. As festas literárias, com a presença de escritores renomados e plateias seletas, como a Flip, em Paraty, no Rio de Janeiro, e a Fliporto, que começou em Porto de Galinhas e hoje é realizada em Olinda, dividem espaço no calendário com as grandes cidades do livro, montadas em pavilhões enormes, as bienais, como as de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Pernambuco. As cidades do interior ganharam vez no circuito, descentralizando as concorridas palestras com os autores, valorizando a produção local e incrementando o mercado fora dos grandes centros. A expansão do mercado editorial não se dá apenas com a abertura de novas livrarias – e várias abriram, incluindo as megalojas, notadamente

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em shopping centers, desde o ano 2000, no país. O impacto do consumo virtual também se vê na venda de livros, especialmente nas cidades de médio porte do interior, como Caruaru, Garanhuns, Petrolina, de acordo com o escritor e gestor público em cultura Wellington de Melo. “Levando-se em conta que, no interior, existem pouquíssimas livrarias, a internet se tornou o principal meio de adquirir títulos usados ou novos”, aponta Wellington. Ainda no panorama do mercado virtual, o autor de Estrangeiro no labirinto acredita na tendência de maior consumo de livros digitais, que ainda representam uma parcela ínfima do mercado. “Isso depende da democratização e barateamento dos aparelhos leitores, da melhora das tecnologias e da ampliação dos acervos. Uma das barreiras, creio, também é o custo dos livros digitais. Embora sejam mais baratos que os de papel, o valor é muito alto para uma mídia que se reproduz infinitamente e cujos custos de produção e distribuição são irrisórios. As editoras precisam rever suas margens de lucros para que o e-book venha a deslanchar o mercado.” Além disso, a chegada da Amazon, para vender livros de papel, também deve mudar o cenário no Brasil. “Mas não sei se para melhor. A forma predatória com que agem tende a sufocar as pequenas livrarias e mesmo as redes maiores. É uma tática usada por eles para esmagar a concorrência e poder garantir um monopólio posterior”, critica Wellington de Melo, que também é editor. “O consumidor pensa ganhar, mas, a médio prazo, pode se tornar refém da multinacional, que praticará seus preços sem concorrência, além da repercussão que isso trará para a geração de empregos locais”, pondera. A pesquisa de Produção e Venda do Setor Editorial, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), encomendada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pelo Sindicato Nacional de Editores (SNEL), revelou que o faturamento das editoras foi de R$ 5,36 bilhões em 2013, valor nominalmente 7,52% acima do obtido em 2012 – se considerada a inflação,

o aumento real foi de 1,5%. O número total de exemplares comercializados foi de 479 milhões, com alta de 4,1%, levando em conta apenas o mercado, e mais de 20%, se computadas as aquisições de governo. O curioso é que a quantidade total de exemplares produzidos no país teve uma queda de 3,5%, de 485 milhões para 467 milhões de livros. Embora tenham sofrido uma variação positiva de 225% de um ano para o outro, as vendas de livros eletrônicos ainda são mínimas para os negócios do setor, com pouco mais de R$ 12 milhões de faturamento. O aquecimento do mercado, no entanto, parece se reduzir a um limitado contingente de leitores. Segundo a pesquisa Públicos de Cultura, quase 60% dos entrevistados não haviam lido nenhum livro em seis meses. E, entre aqueles que leram, a média de leitura mal passou de um livro no período.

Livrarias se expandem nas grandes cidades, mas quase 6 mil municípios não contam com pontos de vendas de livros O consultor de políticas públicas para o livro e a leitura Felipe José Lindoso contesta o tom efusivo de editores e livreiros. “O crescimento da indústria editorial não acompanha o crescimento demográfico. O faturamento sequer nivela-se aos parcos índices de crescimento do PIB, descontada a inflação (sem falar que as medições são altamente duvidosas). Além disso, o peso das compras governamentais – que, sem dúvida é um fator positivo em si – também provoca distorções, pela dependência crescente disso para alguns segmentos editoriais”, afirma Lindoso. “Sempre critiquei a preguiça da indústria editorial na criação e ampliação do mercado. Além, e apesar das dificuldades de logística (você já se perguntou sobre o absurdo de serem necessárias frotas de caminhões para levar livros do Rio e São Paulo para o Recife, quando se poderia

usar a tecnologia da impressão sob demanda?), tanto as editoras quanto as livrarias esperam os compradores. O marketing é voltado exclusivamente para os best-sellers. Pouquíssimo é feito para melhorar a distribuição por todas as áreas das capitais.” O aumento na quantidade de livrarias também é refutado por Lindoso. “Isso de as livrarias estarem crescendo é pura balela: crescem algumas redes que se localizam nas grandes cidades, e a maioria dos quase seis mil municípios não tem nenhuma livraria, nenhuma sala de cinema e muito menos um teatro ou salas para espetáculos musicais. Novos formatos de livros e outros canais de distribuição não entram no radar das editoras como uma necessidade crucial para o desenvolvimento do mercado. Ainda assim, aumenta o número de leitores (não na proporção necessária), por força da inércia. E os editores e livreiros ficam felizes com isso. Não se dão conta do que falta para ser conquistado e pode ser conseguido. O aumento do número de estudantes conta, e medidas como o Vale-cultura podem se tornar progressivamente importantes. Mas, repito, é um crescimento inercial, não orgânico”, enfatiza, lamentando que o Brasil continua longe de estar no rumo de ser um país de leitores, como também de frequentadores de cinema e teatro. A proliferação de feiras e festivais, entretanto, é uma fonte de otimismo, segundo Felipe José Lindoso, com as iniciativas de saraus e centros de produção de poesia e texto. Mas não é garantia de mais leitores, de acordo com Wellington de Melo, muito embora o fluxo de gente nesses eventos impressione. “Creio que os eventos literários, no geral, fortalecem a qualificação dos leitores existentes. A formação de leitores se dá muito antes, na escola, com os professores, mediadores de leitura, e em casa, com os pais. Quem vai para eventos literários, normalmente, já são leitores, com exceções. Naturalmente, há eventos que têm uma programação infantil, como a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, e, nesse sentido, colaboram com a formação de leitores. Mas eventos com perfil adulto têm outra proposta”, avalia.

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Entrevista

PAULO ROBERTO PIRES “PAREM DE SE PREOCUPAR COM O PÚBLICO MÉDIO” Com a cultura virtual se

expandindo em ritmo acelerado no país e a produção tradicional em processo de descentralização, a massificação sofre, cada vez mais, com a baixa qualidade. A saída é apostar no mais alto nível da produção. É o que enxerga o professor da Escola de Comunicação da UFRJ Paulo Roberto Pires, que é jornalista, escritor e editor da Serrote, revista quadrimestral de ensaios do Instituto Moreira Salles. “No mainstream do consumo, as classes emergentes são tratadas com condescendência como público”, avalia Pires. Para ele, no entanto, isso começa a mudar, graças à ampliação de opções possibilitada pela internet. Agora, o desafio é elevar o padrão do que se consome. “Parem de se preocupar com um público médio”, sugere em entrevista para a Continente, na qual também fala sobre o mercado editorial nacional e a tendência segundo a qual o jornalismo cultural está finalmente deixando a subordinação à agenda de eventos de lado, para se voltar a discussões mais profundas, especialmente na mídia digital e nas publicações alternativas.

CONTINENTE O que pode ser apontado como principal mudança no consumo cultural dos brasileiros nos últimos 15 anos, na sua visão? PAULO ROBERTO PIRES A mudança fundamental é a disseminação da internet. Com tudo o que ela tem de bom e ruim. O número de produtores culturais aumentou e descentralizou-se; ampliou-se o acesso a livros, discos e filmes – muitas vezes através da pirataria, o que não deixa de ser um problema para os autores. Isso tudo acontece ao mesmo tempo, dentro e fora do mainstream, porque o consumo de massa, tradicional, virou mesmo um desastre de mediocridade, o que não é um fenômeno brasileiro, diga-se. CONTINENTE Do ponto de vista do acesso à cultura, os avanços seguem a trilha da ampliação do mercado, de modo geral, às classes chamadas emergentes? PAULO ROBERTO PIRES No mainstream do consumo, as classes emergentes são tratadas com condescendência como público e muitas vezes folclorizadas como personagens. Mas acho que, quando o cara tem uma conexão na mão, ligada no telefone ou na lan house, tudo já começou a mudar. E cada vez é maior o número de pessoas plugadas que, não necessariamente, têm o Zorra Total ou o Esquenta como campeões de audiência. E nem acham Romero Brito um Picasso (como, aliás, muitos das chamadas classes altas). CONTINENTE Em que sentido a formação de público precisa melhorar, para a democratização efetiva dos bens culturais? PAULO ROBERTO PIRES O primeiro e mais difícil passo é acabar com a associação de “popular” à “porcaria”, uma pauta perversa que vem norteando boa parte da produção de massa. É claro que a base de tudo, como infelizmente estamos cansados de saber, é a educação formal. Mas, se ela falha, e falha muito, que os produtores de cultura parem de se preocupar com um público médio e ofereçam, generosamente, os tais biscoitos finos para a massa. Se dá certo ou não, é outra história.

CONTINENTE Estamos a caminho de um país de leitores? E que leitores são esses, hoje? PAULO ROBERTO PIRES Estamos longe de um país de leitores. Nesses 15 anos, aconteceu algo curioso, que sempre destaco. Criou-se um público para a literatura, que não é necessariamente leitor. São mais de 200 eventos literários, dezenas de trocadilhos com “Flip”, plateias imensas. Mas só uma parte ínfima delas, a mesma parte, aliás, consome os livros – se o autor for brasileiro, de ficção, complicou mais ainda. Mas há, como em todo o mundo, uma imensa massa de leitores jovens que têm movimentado e até sustentado o mercado. Foram criados na geração Harry Potter, mas não sei se deixaram as séries de fantasia, para ler Machado de Assis. Acho que continuam lendo a mesma coisa. Mas os tais young adults, como se diz no jargão do mercado, são a força do mercado. Força careta, acho eu, mas, ainda assim, força. CONTINENTE A impressão que se tem, pelo menos nos jornais e revistas, é de que o jornalismo cultural vem perdendo espaço na pauta, resumindo-se muitas vezes à cobertura da agenda, de maneira protocolar. Como o jornalismo cultural evoluiu no Brasil, nesses 15 primeiros anos do século 21? PAULO ROBERTO PIRES Desconfio do discurso permanente da decadência. O tempo passado nunca pode ser o melhor tempo, simplesmente porque não temos acesso a ele. Do que temos na mão, piorou a mídia tradicional e melhoraram a digital e as publicações alternativas. Depois de um saturamento do agendismo, da sonolenta cobertura do mercado, começa-se, uma vez mais, a discutir as questões da cultura com mais profundidade. É claro que tem o blog do moleque que só faz considerações superficiais sobre o que lê, mas há boa crítica literária e de cultura na rede. E o caminho é aproveitar a diversidade e investir no nível mais alto. O Millôr Fernandes dizia que o leitor ideal é o de mais alto nível: quem não entendeu que corra atrás. Ou não. Mas o jornalista tem que fazer sua parte.

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ACERVOS Um mercado a se expandir

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CAIS DO SERTÃO Museu dedicado à cultura sertaneja e à obra de Luiz Gonzaga foi aberto em 2014, no Recife

DIVULGAÇÃO

Novos museus e galerias sugiram em diversas capitais brasileiras, mas números apontam ainda uma baixíssima visitação, o que coloca a formação de público em xeque

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A arte contemporânea no Brasil experimenta, nos anos iniciais do terceiro milênio, um impulso nos negócios que têm movimentado o setor e animado artistas, galeristas e curadores. Mas a formação de público permanece posta em xeque. Para a pesquisadora em arte e psicanálise Liana Vila Nova, os grandes centros de arte contemporânea coincidem com os grandes centros econômicos. “O mercado nacional é jovem e em processo de internacionalização. Um universo de aproximadamente mil artistas é representado pelas galerias de arte. São Paulo comporta 59% das galerias do Brasil, Rio de Janeiro representa 29%, Curitiba 4%, Recife 2%, Ribeirão Preto 2%, Belo Horizonte 2% e Porto Alegre 2%”, informa Liana; e lembra que, em 2011, a arte brasileira quebrou o recorde

na Christie’s, com uma obra da artista Adriana Varejão, que atingiu o preço de US$ 1,7 milhão. Em consonância com esse cenário, o setor ganhou o primeiro fundo de investimentos em arte contemporânea no país, o Brazil Golden Art (BGA), em 2011. “O BGA consolida no país a ideia de arte como investimento, envolvendo os diversos players.” A feira de arte do Rio de Janeiro, ArtRio, criou uma plataforma de encontro internacional. “Assim como a SP-Arte, feira de arte de São Paulo, criada em 2005 e responsável pelo início da mobilização das galerias brasileiras em prol de um evento convergente”, indica Liana Vila Nova. A galerista Lúcia Santos, da Amparo 60, concorda que, nos últimos 15 anos, o mercado tem crescido. “O Brasil nunca chamou tanto a atenção lá fora, não só São Paulo, como também Pernambuco.

Nos últimos 10 anos, participamos de feiras internacionais, o que tem ajudado a expandir muito nosso público”, diz Lúcia. Segundo ela, a visibilidade tem aumentado. “Somos convidados sempre para feiras e atividades fora do Brasil, e, continuamente, recebemos visita de curadores importantes, do Brasil e de fora.” Lúcia conta que mostras de artistas contemporâneos fizeram com que um público mais jovem passasse a frequentar sua galeria. Para ela, faltam políticas de apoio às instituições, especialmente os museus, para incentivar a população a visitá-los. “Isso seria bom para todo o mercado”, acredita. A curadora Cristiana Tejo destaca, nesses 15 anos, a profissionalização e o aumento de mercado. “Museus surgiram em cidades como Porto Alegre, Fortaleza, Recife, Goiana, Belém, além de feiras de arte”, relaciona. Ela recorda, no entanto, que, em 2007, uma pesquisa do IBGE apontou que 70% da população brasileira nunca havia entrado em qualquer museu. Quando as artes visuais eram a especialidade do museu, este número subia para 90%. “Ou seja, apesar de o mercado de arte e a oferta de exposições ter aumentado no Brasil, não há dados recentes que indiquem que houve uma mudança do lugar que as artes visuais ocupam na sociedade”, observa Tejo. Liana Vila Nova acrescenta que o cenário fica mais complexo com a presença de novas galerias, espaços alternativos e de residência no país. “Tudo isso contribui para uma maior abertura do mercado e trocas internacionais mais amplas. Essa dinâmica traduz-se em todos os indicadores quantitativos e qualitativos que apontam tendências positivas para o mercado e o sistema das artes como um todo”, acredita a pesquisadora.

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CON COMPORTAMENTO TI NEN TE DIVULGAÇÃO

AUDIOVISUAL Da telona às telinhas

Nas últimas décadas, aumentaram os meios de acesso às produções, com a inaguração de diversas salas e o incremento tecnológico

Entre as principais mudanças

ocorridas nos últimos 15 anos, destaque para o aumento do incentivo, que favoreceu o incremento da produção nacional de filmes. O número de salas de cinema aumentou, alavancado pela abertura de shopping centers, sobretudo no interior. E, no que diz respeito à TV, a concorrência entre a TV aberta e a TV por assinatura se firmou, em paralelo à invasão da cultura digital, em que os canais de sites passaram a desempenhar um papel crucial no entretenimento do público nacional – como a audiência de humoristas no YouTube, por exemplo, arrebatando milhões de seguidores e visualizações.

Em 2013, graças às leis de incentivo, foram produzidos 129 longas no Brasil, um recorde. E, desses, 10 tiveram um público superior a 1 milhão de espectadores. No mesmo ano, a venda total de ingressos no país atingiu a cifra de R$ 1,7 bilhão, com quase 150 milhões de ingressos, 8% a mais do que em 2012. Em 2008, o número de espectadores foi de 89 milhões. De 2008 a 2013, o público de filmes brasileiros saltou de 8,8 milhões (quando foram feitos 79 filmes) para 27,7 milhões. Os números são da Ancine. Nos últimos cinco anos, o aumento da quantidade de salas de cinema

beirou os 30%, com tendência de descentralização agregada à expansão do comércio: no primeiro trimestre de 2014, das 60 novas salas inauguradas, 61% foram abertas em cidades interioranas, e 88% delas integraram complexos em shopping centers. Parece um deslocamento importante, no entanto, em 2013, somente 7% dos municípios brasileiros tinham sala de cinema – nesse passo, será necessária a abertura de muitos centros de compras para dar conta do deficit em território nacional, pois menos de 400 municípios têm salas. Das quase 3 mil existentes hoje no país, cerca de 90% estão instaladas

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EXIBIDORAS Das quase 3 mil salas do país, 90% estão instaladas em shopping centers

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em shoppings. Na década de 1970, quando a maioria dos cinemas era de rua, a quantidade de salas era um pouco maior, cerca de 3,2 mil. Enquanto a produção nacional de filmes ganha fôlego e os centros de compras garantem a recuperação da rede de distribuição, a concorrência com a TV por assinatura, e seus diversos canais de filmes à disposição, também avança. De acordo com a Anatel, havia no Brasil, em outubro do ano passado, quase 20 milhões de acessos à TV paga, representando aproximadamente 30% dos domicílios brasileiros. No estado de São Paulo, a presença da TV por assinatura chega a mais de 50% dos domicílios. Tratase de um item de consumo ainda bastante desigual, geograficamente: no Piauí, essa relação mal ultrapassa 8%. Para se ter uma ideia do avanço da nova TV nas residências, em 2006, existiam pouco mais de 4,5 milhões de acessos no Brasil, e em dois anos consecutivos, em 2010 e 2011, o crescimento registrado nas assinaturas da chamada TV fechada foi de mais de 30%.

Artigo

ALEXANDRE FIGUEIRÔA PRODUÇÃO NACIONAL E MODOS DE FRUIÇÃO A produção de filmes no Brasil cresceu por conta de fatores que vão dos financiamentos pelos editais para o audiovisual, apoiando não só a realização de filmes, como também os eventos e publicações, até o maior acesso aos equipamentos. Por conta da modernização e barateamento proporcionado pela tecnologia digital, hoje, produzir uma obra audiovisual é um processo bem mais fácil do que há alguns anos. Quanto à distribuição, isso tem que ser observado a partir de diversos pontos. A produção brasileira ainda se ressente de uma política mais eficaz na distribuição de suas obras nas salas de cinema, consideradas por muitos como o espaço mais nobre para se lançar um filme. O apoio estatal na distribuição é tímido, em relação aos investimentos feitos na produção, no sentido de criar mecanismos que possibilitem maior visibilidade para os filmes brasileiros, como a nova medida da Ancine de evitar que um único blockbuster ocupe quase todas as salas do país. Os festivais e mostras são espaços de circulação que vêm crescendo, mas ainda não atingem um público mais amplo. Os filmes brasileiros que chegam aos cinemas comerciais, ficam, às vezes, sendo exibidos em pequenas salas e em horários de baixa frequentação, e não têm um esquema promocional que consiga torná-los mais vistos – exceção às produções da Globo Filmes ou a um ou outro filme que conte com uma major como distribuidora. Alguns realizadores estão buscando formas alternativas de difusão e divulgação de suas obras na internet. As mudanças de regras para os canais por assinatura

podem também ser uma saída, pois mais conteúdo brasileiro deverá ser disponibilizado. O espectador da TV aberta não tem muita opção: continua vendo “enlatados norte-americanos” e, vez ou outra, produções brasileiras da Globo Filmes. A TV Brasil abre espaço para a produção nacional, mas é um canal com audiência ainda muito pequena, embora tenha uma programação diferenciada. Nas TVs por assinatura, predomina nos canais de cinema a produção hollywoodiana, com exceção do Cinemax, que têm uma programação com diversas nacionalidades e que inclui filmes brasileiros, os que tiveram uma boa carreira no cinema, circularam em festivais internacionais e foram bemrecebidos pela crítica. Mesmo os documentários produzidos para a TV são majoritariamente estrangeiros. O Canal Brasil é a exceção. A expectativa é de que a situação melhore com as medidas de obrigar as TVs por assinatura a terem mais horas de programas brasileiros, o que tem levado canais como a HBO a produzir séries brasileiras. A internet e as possibilidades de se ver filmes on demand, tanto nas TVs por assinatura quanto no computador, vêm alterando os modos de recepção e criando novos hábitos de fruição de filmes, séries etc. Obviamente, essas novas possibilidades mexem com a cadeia de distribuição e criam formas de consumo do audiovisual, que levam em conta a comodidade de acesso. Contudo não acredito, por exemplo, que salas de cinema vão desaparecer, o hábito de ir ver um filme numa tela grande, desde que a projeção tenha ótima qualidade, continuará sendo uma atração. Porém, não resta dúvida de que, cada vez mais, essa hierarquização, com a sala de cinema vindo em primeiro lugar, seguida da distribuição em DVD e Blu-ray e, por último, TV e internet, está sendo rompida. As fronteiras entre os dispositivos estão cada vez mais borradas e, certamente, as novas gerações vão experimentar modos de fruição não vistos.

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CON COMPORTAMENTO TI NEN TE

Artigo

MARIA CAROLINA VASCONCELOS OLIVEIRA PRÁTICAS CULTURAIS DO BRASILEIRO: OBJETO EM TRANSFORMAÇÃO? As transformações na estrutura das

classes sociais do país, que começaram a ocorrer na década passada, principalmente o aumento da renda das classes mais pobres, abrem-nos a oportunidade para refletir sobre outras eventuais mudanças que possam estar em curso. A reflexão que apresento aqui é fruto de um convite para pensar sobre os possíveis impactos que essas transformações maiores podem ter no consumo cultural dos brasileiros. Poderíamos dizer que o “acesso à cultura” está maior?

Começo colocando que é tarefa bastante difícil analisar as mudanças de longo prazo no padrão de práticas culturais da população brasileira, já que não temos dados sistemáticos e regulares sobre esse tema. Apesar de existirem estudos específicos que são muito bemsucedidos, como O uso do tempo livre e as práticas culturais na Região Metropolitana de São Paulo (organizado por Isaura Botelho, no Centro de Estudos da Metrópole, em 2005) e a recente pesquisa Públicos de cultura, conduzida no ano passado pelo Sesc São Paulo, em parceria com a Fundação Perseu Abramo, ainda nos faltam levantamentos padronizados e regulares (no sentido de serem repetidos no tempo). Na França, por exemplo, onde o Estado conduz a pesquisa Pratiques culturelles des français desde o início dos anos 1970, com poucos momentos de interrupção, temos uma série histórica de informações que permite identificar mudanças e acompanhar a evolução das práticas culturais da população. A existência dessas informações nos possibilita também, por exemplo, tentar explicar as eventuais mudanças no comportamento cultural dos

indivíduos, a partir da evolução de dados socioeconômicos mais gerais, e mesmo de transformações ocorridas em outras pastas políticas (por exemplo, pode-se tentar entender os impactos de uma política de educação nas práticas culturais dos cidadãos). Não por coincidência, é na França que se desenvolve uma das mais sólidas correntes de estudos de práticas e públicos culturais no mundo, que tem como marco os trabalhos de Pierre Bourdieu e sua equipe, ainda nos anos 1960, e vem se diversificando até os dias atuais. No Brasil, felizmente, os temas dos públicos e das práticas culturais parecem estar na moda: há uma série de estudos e iniciativas voltados a entender essas questões. De qualquer maneira, a necessidade de produzir dados regulares e relativamente padronizados (de modo que possam ser comparados) sobre o assunto ainda é marcante. Hoje, infelizmente, ainda se pode dizer que a maioria das instituições culturais (inclusive as públicas) faz políticas para interlocutores imaginados, dos quais não conhecem as características reais. Desnecessário dizer que é muito mais difícil estabelecer comunicação

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REPRODUÇÃO

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FREQUÊNCIA O aumento de renda provavelmente impacta na ampliação do lazer e do consumo de cultura dos cidadãos

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e, mais ainda, gerar impacto sobre um interlocutor que não se conhece. Feita essa ponderação essencial, creio que alguns comentários podem ser tecidos em relação à pergunta inicial: o que pode ter mudado nos últimos 15 anos? Como a sociologia, a antropologia e outras áreas relacionadas a estudos culturais vêm mostrando, pelo menos desde a década de 1960: o consumo de cultura tem algumas especificidades. Os bens e serviços culturais enquadram-se na categoria de bens simbólicos, cujo consumo não é somente moldado por questões econômicas – e cujo valor também não se reduz ao de mercado. O perfil de consumo cultural de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos não é só moldado pelo seu nível de capital econômico (sua renda ou patrimônio financeiro), mas inclui uma série de outros capitais. Gostar ou não gostar de certas manifestações; aderir ou não aderir a certas práticas envolve preferências pessoais, mas também uma certa “bagagem” (de disposições, para usar um termo bourdieusiano), que é transmitida nos processos de formação pelos quais o indivíduo passa. Pesquisas, desde os anos 1960, vêm mostrando, por

exemplo, que atributos tão estruturais como o próprio nível de escolaridade dos pais interferem no perfil de práticas culturais de um indivíduo, já que o fato de ele ter frequentado ou consumido algumas manifestações ainda na infância colabora para que se torne um praticante das mesmas na vida adulta. É muito importante ponderar, no entanto, que tudo isso não significa que mudanças de curto prazo no acesso a certas manifestações culturais não sejam possíveis. Há uma pluralidade de abordagens que possibilita processos de formação na vida adulta e em contextos mais “leves” que o da família e o da escola formal. Uma série de iniciativas no âmbito da educação informal, ou

Pesquisas mostram que atributos, como o nível de escolaridade dos pais, interferem no perfil de hábitos culturais da pessoa conduzidas pelos próprios centros culturais, mostram que é possível ampliar e diversificar o repertório cultural dos indivíduos em diversos momentos de sua vida. É importante ponderar também que admitir a existência de uma correlação, no nível macro, entre o capital social da família e o nível de escolaridade do indivíduo e a adesão a práticas culturais, cujos códigos e linguagens não são tão amplamente disseminados (por exemplo, algumas formas mais contemporâneas de arte), não significa, de modo algum, assumir que todo e qualquer indivíduo mais escolarizado e oriundo de família mais escolarizada será grande consumidor de arte contemporânea, por exemplo. E, muito menos, significa assumir que é impossível encontrar um indivíduo com baixa escolaridade (ou de baixa qualidade de formação) e oriundo de uma família pouco escolarizada que goste de formas artísticas cujos códigos são menos disseminados. Trata-se simplesmente de uma indicação mais geral de que os processos de formação (e não só os vividos na escola formal) têm relação com as práticas culturais. De qualquer maneira, é por conta

dessa peculiaridade do consumo cultural – o fato de ele não depender só de capital econômico – que medidas como a gratuidade de ingressos, visando aumentar o acesso a determinadas manifestações artísticas, nem sempre se mostram eficazes: a gratuidade, por si só, não garante que o indivíduo tenha acesso aos códigos e linguagens envolvidos na fruição de algumas manifestações. No mesmo sentido, a meu ver, o simples aumento na renda dos cidadãos provavelmente impacta, no curto prazo, numa ampliação de suas práticas de cultura e lazer, mas não necessariamente implica numa diversificação dessas práticas – já que a possibilidade de fruição, por exemplo, de certas linguagens artísticas, não depende só do preço, mas da compreensão dos códigos envolvidos nessas manifestações.

“DEMOCRATIZAÇÃO”

De outro lado, acredito, sim, que as mudanças ocorridas no contexto educacional do país nos últimos 15 anos, provavelmente, reverberaram no perfil de práticas culturais da população. Difícil comprovar essas eventuais mudanças, quando não se tem muitos dados que permitam comparações no tempo. Mas é sabido que o aumento da escolaridade e, especialmente, do acesso ao ensino superior, geralmente impacta nas práticas culturais da geração que estuda e também da geração seguinte. Se observarmos os dados dos censos, veremos que o acesso à educação superior para jovens mais do que dobra no decorrer da primeira década dos anos 2000. Destacam-se, ainda, programas como o ProUni, que concede bolsas para estudantes de baixa renda e proporcionam que esses jovens sejam a primeira geração da família a cursar o ensino superior. As pesquisas realizadas no mundo todo vêm constatando, há décadas, que o consumo de determinadas manifestações culturais (especialmente as artes mais legitimadas) é altamente relacionado ao nível de escolaridade; então, é bastante provável que essas transformações tenham algum tipo de impacto no universo das práticas culturais. Outro ponto que é importante ser destacado neste debate é o seguinte: identificar uma desigualdade de acesso a determinadas produções (por

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CON COMPORTAMENTO TI NEN TE exemplo, a algumas formas artísticas) não necessariamente significa assumir um posicionamento político que defende que todos os cidadãos devem consumir essas formas artísticas porque elas são “superiores” a outras manifestações. Para entender essa questão, é necessário observar algumas mudanças nos paradigmas políticos relacionados ao acesso à cultura, ocorridas nas últimas décadas. Muitos formuladores de políticas e pesquisadores da área, dentre os quais me incluo, têm rejeitado o uso do termo democratização, que ficou bastante associado a um modelo de política cultural dirigista e ilustrada, mais típico dos anos 1960. A ideia de democratização está relacionada a um paradigma de política cultural em que se elegem algumas manifestações culturais consideradas “superiores” (basicamente as formas artísticas mais legitimadas) e se parte do princípio de que os cidadãos “precisam” consumilas (o acesso aqui é pensado quase na lógica da obrigação). Não se reflete, por exemplo, sobre as razões pelas quais essa cultura – que precisa ser universalizada – é a chamada “alta cultura” (e, nesse sentido, naturaliza-se a própria hierarquia estabelecida entre as diversas formas culturais). No discurso da democratização, normalmente está presente a ideia de “levar cultura” àqueles que “não têm” – uma visão bastante problemática. A partir dos anos 1970, e principalmente nos 1980, as próprias concepções de “cultura”, mobilizadas no debate sobre política cultural, se atualizam. A cultura que é objeto da política passa a ser vista como um conjunto diverso e não hierárquico de manifestações, não restrito às artes mais legitimadas. E se começa a partilhar o entendimento de que uma forma cultural não é hierarquicamente superior à outra (percepção que já estava presente nos debates da antropologia, por exemplo). Quando se entende a “cultura” como o conjunto de diversas práticas, processos, produções e modos de vida que um certo grupo cria e partilha na interação social, compreende-se que não faz sentido (além de expressar um posicionamento discriminatório) dizer que alguém “não tem cultura” ou “não

realiza práticas culturais”. Não se pode reduzir todo o universo da cultura às práticas ditas “superiores”, muito menos sem entender o processo de legitimação que faz com que essas práticas sejam nomeadas como tais. Na esfera da política cultural, começa-se então a nomear outro paradigma, que seria o da democracia cultural (em substituição ao da democratização). Nesse paradigma, como bem define a pesquisadora brasileira Isaura Botelho, espera-se que o cidadão tenha acesso ao maior número de formas culturais possível e possa escolher quais vai consumir. O acesso, então, passa a ser entendido como possibilidade, e não como obrigação. Uma ponderação muito importante, feita pelo sociólogo francês Olivier

Quando se entende “cultura” como diversas práticas, não faz sentido dizer que alguém “não tem cultura” Donnat, é que a simples mudança do paradigma da democratização para o da democracia não resolve a questão da desigualdade de acesso que os diferentes grupos sociais têm em relação a algumas formas culturais, especialmente a algumas formas mais institucionalizadas de arte. Quando se tem como objetivo reduzir essas desigualdades, não pela “obrigação”, mas para possibilitar que os indivíduos conheçam um conjunto maior e mais diverso de manifestações culturais, os processos de formação e educação continuam sendo centrais.

CIDADANIA CULTURAL

Os formatos que essas ações de formação podem assumir são os mais diversos. As observações e experiências que tenho realizado mostram que estratégias que possibilitam aos indivíduos experimentar os códigos e linguagens na prática, a partir de suas próprias questões, são mais efetivas em formar públicos específicos para certas manifestações artísticas. Mas, mais do que isso, são mais efetivas no sentido de garantir a

democracia cultural: a meu ver, é preciso parar de pensar no cidadão que não faz parte das classes artísticas institucionalizadas simplesmente como “público”, e garantir a ele o direito de participar, efetivamente, da vida cultural e artística. Afinal, ser “público” é apenas uma parte do que seria o pleno exercício da cidadania cultural. Penso, nesse sentido, que é preciso mudar o foco do “consumo” cultural para o da participação cultural. As próprias ações de “formação de público” podem ter objetivos mais ambiciosos: por que não pensar em garantir o exercício da cidadania cultural, em vez de somente em formar públicos? Penso que as possibilidades de associação entre cultura e processos de formação podem ser potencializadas nesse sentido. Para finalizar, é preciso dizer que as políticas públicas de cultura conduzidas no nível federal evoluíram muito no decorrer do início dos anos 2000. Presenciamos a construção de programas paradigmáticos, como o Cultura viva, que ilustra bem a ideia de uma política cultural comprometida não só com as classes artísticas mais institucionalizadas, mas com diversos grupos da população, e que se alinha plenamente às ideias de participação e cidadania cultural mencionadas acima. Presenciamos a implantação do Sistema Nacional de Cultura, que também prevê diversos mecanismos para ampliar a participação dos diferentes grupos sociais na formulação das políticas culturais. De fato, no quesito produção de informações sobre a cultura, ainda se pode evoluir muito, especialmente no que diz respeito a informações sobre práticas culturais da população. E, de fato, também poderia haver mais esforços relacionados especificamente ao tema da formação de públicos, principalmente para as artes – as políticas para as artes, no geral, são focadas exclusivamente no fomento à produção e ignoram essa questão. Além do esforço público, penso que as próprias instituições e centros culturais poderiam se dedicar mais a conhecer e a pensar ações destinadas a seus públicos e potenciais públicos – esse tipo de empenho, muito presente em instituições de outros países, ainda é pouco visto aqui.

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Nós somos pessoas cheias

de riqueza e insignificância. Somos qualquer um, anônimos, a despeito das nossas idiossincrasias e do desejo de diferenciação. Mesmo assim, fazemos pequenos gestos importantes, todos os dias. Nos portraits destas páginas, pessoas como nós, que a cada dia plantam suas histórias na balbúrdia dos dias. TEXTO E FOTOS Coletivo Luz de Janela

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Ednaldo Caboclo Bonifácio, 51 anos Ednaldo tem dois motivos bem peculiares de orgulho: um está na sua certidão de nascimento, no sobrenome Caboclo, herança direta da mãe. Também se orgulha de carregar no corpo o alforje de atleta, maturado durante anos de dedicação ao trabalho braçal, que lhe exigiu a construção civil. “Eu nunca fiz exercício físico, nunca fiz musculação, meu corpo é resultado do esforço do meu trabalho.” Hoje, ainda envolvido com trabalhos manuais, Ednaldo resolveu ser autônomo. Construiu uma oficina para concertos de bicicletas na Rua da Glória, centro do Recife. E se anima ao constatar que, apesar de modesta, sua oficina tende a crescer com o avanço das ciclovias na cidade. “Acho que isso aqui ainda vai mudar tanto, e eu vou junto, com minha oficina.”

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Iraci Quitéria da Conceição, 76 anos É como se fosse uma espécie de mistério. Aquela mulher acompanha, em silêncio, do velório ao enterro. Poderia ser uma carpideira, mas não é, não cobra nada pela atividade, não precisa ser chamada pela família do morto, nem precisa conhecê-los. Iraci Quitéria da Conceição tem nos cortejos fúnebres sua mais intrigante missão. A senhora costuma seguir, incansável, até mais de um enterro por dia, colhendo as flores que vão caindo pelo caminho. “Eu gosto de enterro”, declara a senhora, dona de um discurso tão eloquente quanto delirante. Costureira de mantas e colchas de fuxico na cidade de Sanharó, agreste pernambucano, a simpática Iraci justifica sua sina, dizendo que é essa sua forma de estar quite com Deus. “Não tem gente que dá esmola, que dá sopa pros pobres, né? Eu não, eu acompanho os enterros tudinho, faço isso por todos. Deus tá vendo.”

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Perseu Bastos, 24 anos Perseu Bastos aprendeu cedo, no próprio núcleo familiar, a importância da educação para a formação do cidadão. Mas não se tornou ele um educador. Foi por outros caminhos, até encontrar uma demanda que dialogasse com a área. Designer e empresário, Perseu desenvolveu um jogo eletrônico que auxilia na identificação de distúrbios e problemas de aprendizagem, voltado para crianças de seis a 10 anos. “Percebi que havia uma lacuna na área de saúde no mercado de jogos e pensei em algo voltado para educação. O jogo não é uma espécie de detector, mas sim uma ferramenta de auxílio no diagnóstico. Dura em média 30 segundos e possui narrativas educacionais em seu conteúdo.” O projeto, com três anos, é acompanhado por uma neurocirurgiã, que avalia cada resultado.

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Vera Lúcia de Lima, 52 anos O som reverberava longe, como um diapasão, e atraía os olhares para a fachada da casa da loira de cabelos escovados que arrumava a soleira, enquanto ouvia Carlos Alexandre no pequeno som de caixas potentes. Era Vera Lúcia Leal de Lima. Tão acolhedora ela é, que, para entrar em sua morada, a permissão vem do olhar sorridente, seguido de um “Pois bem, bom dia, entre!”. Já na sala, está seu universo: fotos-pinturas da família, plantas, o reincidente quadro do Sagrado Coração de Jesus e um gato preguiçoso. Vera celebra a vida simples que leva. Em pouco tempo de prosa, conta ter conhecido Brasília, São Paulo, Recife, João Pessoa e Campina Grande. Mas garante que não tem lugar melhor pra viver que o Sertão, no seu vilarejo de Pernambuquinho. Ao ser indagada sobre sua ocupação, a resposta vem tão brejeira quanto o seu sorriso: “Eu sou Vera hahaha… e cuido da minha casa”.

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Manoel Franklin, 65 anos Quem frequenta a abrasante Rua do Veiga, no Bairro de Santo Amaro, centro do Recife, tem o hábito de se perguntar: “Mas quem é aquele senhor tão elegante, que flana pela rua ao pino do meio-dia, sem se importar com esse calor vulcânico? É Manoel Franklin, sindicalista, doutrinador espírita e um dos poucos homens que conseguem usar suspensórios de forma tão natural quanto uma camisa de botão. Franklin era motorista rodoviário, da extinta linha dos ônibus elétricos. Há pelo menos 25 anos, dedica-se ao sindicalismo. No final da década de 1980, entrou na Ordem Vale do Amanhecer, no Córrego da Fortuna. É lá que exerce seu trabalho de Doutrinador ou Mestre Sol, cujo papel é conversar e orientar energias mais sutis de espíritos desencarnados. O gosto pelo estilo diferenciado de vestir vem da educação que recebeu de seu pai. “Eu gosto muito de suspensórios, desde menino que uso… meu pai que usava – e gravata – e queria que a gente usasse também”, explica o distinto cavalheiro reluzente.

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Irmã Débora Geovana Bezerra, 34 anos Uma real intercessão entre igreja e política é o maior sonho da assertiva Irmã Débora Geovana. Nascida e criada na cidade de Pesqueira, a moça de voz calma e ideias revolucionárias sempre teve em mente sua real vocação: atuar publicamente. Doar-se, a partir da igreja, para atingir sua maior meta: o poder ao povo. “Fazer políticas públicas é o meu caminho”, enfatiza, com um jeito de falar lento e firme. A mesma força que emprega nas orações e na fé em Deus coloca em seu corpo e mente na hora de se mobilizar em torno de causas sociais, como o pleito pelo fim da violência contra as mulheres e a reforma agrária. Ao responder sobre sua escolha pela vida religiosa, a freira arremata: “Eu queria dar mais da minha vida. Ser mais pelas pessoas. Não queria dar um pedaço só de mim. Queria me dar por completo. Amar. Amar. Amar. E servir”.

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Edicleia Santos, 57 anos Desde que Edicleia foi apresentada à luta feminista, ainda no final dos anos 1990, seu corpo se tornou uma espécie de árvore com galhos enormes e generosos, que passaram a abarcar outras causas que lhe foram apresentadas. Quinze anos depois, Cleia, como é conhecida no Bairro de Passarinho, dedica seus dias ao papel de mãe, trabalhadora, esposa, conselheira, militante e amiga. Dá conta de tudo e do mais que surgir. “Aqui, nossa porta está sempre aberta para a comunidade.” E a comunidade sabe disso, tanto que já esteve presente em pleitos que vão desde a questão do lixo do bairro, passando por discussões acerca das drogas, violência, adolescência e sexualidade, além do combate ao racismo. A mais recente bandeira encampada por ela foi a luta pela permanência de 25 mil famílias que seriam despejadas da Vila Esperança, ocupação com mais de 40 anos no bairro. Ao se articular com diversas entidades, conseguiu, junto com os moradores do lugar, manter a vila. Quando perguntada por que sempre respondia às perguntas usando a primeira pessoa do plural, Cleia foi enfática: “Não consigo me empoderar sozinha, só junto com o outro”.

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José Ozivan Cordeiro da Silva (Palhaço Poquito), idade não revelada “Vieram umas quatro vezes, sem minha mãe querer deixar. Depois eu disse: - Eu vou, mãe, passar um mês ou dois, só. Passei foi 13 anos no circo.” Ozivan é o anão que costuma jogar dominó com concentração inabalável junto aos amigos de Sertânia. É sério, tem voz firme e rosto austero. Mas quando veste o uniforme e usa a maquiagem de palhaço, Ozivan é Poquito, de andar engraçado, de sorriso generoso e voz de criança. A vida no circo não foi fácil, mas Poquito tinha a palhaçada como vocação na vida. “Eu sofri. O que o cara mais sofre em circo é de não ter onde morar, eu morava no ônibus, mais o dono do circo.” E mesmo diante dos percalços que a vida mambembe lhe conferiu, só existe uma tarefa que o faz suar frio: “Fazer os outros rir é muito difícil…” Quando perguntado sobre o que significa ser palhaço, a resposta é curta e objetiva: “É tudo alegria.”

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Júlio Adeodato, 25 anos “Eu adorava futebol brasileiro, mas a cartolagem me decepcionou.” Júlio Adeodato é fã de futebol, mas é ainda mais de boas condutas éticas. Encontrou a união dessas duas vertentes ao realizar um intercâmbio, em 2004, então com 15 anos, nos EUA, mais precisamente no estado de Louisiana, onde a cultura do futebol americano é forte. Só via pela TV, mas não gostava não. “Só quando comecei a jogar senti que gostava.” Tanto gostou, que, hoje, aos 25, é presidente de um time da modalidade, o Recife Mariners. O trabalho que Júlio desenvolve para tornar o esporte popular em Pernambuco tem se tornado cada vez mais abrangente. A última empreitada foi uma final disputada na Arena Pernambuco para cerca de sete mil pagantes, recorde de público no Brasil. “Deixamos de ser uma novidade para sermos um time do Recife. Defendendo a cidade”, orgulha-se. Mas não descansa: “Ainda vamos conseguir construir um centro de treinamento para o time.”

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Mario Chien e Suna Cheng, 60 e 57 anos Desde a primeira vez que pisou em solo brasileiro, em 1978, Mario Chien teve o trabalho como meta. Primeiro em São Paulo, onde administrou restaurantes de comida chinesa. Em seguida veio para o Nordeste, para as cidades de Olinda, João Pessoa e Fortaleza. Em 1990, retornou para Taiwan. Um compromisso inadiável o esperava. Os familiares haviam encontrado uma moça com forte vocação para ser sua noiva. Era a doce Suna, uma habilidosa cozinheira, tão tímida quanto concentrada. E, como se existisse uma ponte imaginária ligando Taiwan ao Recife, imediatamente o casal veio para a cidade, onde vive desde 1992. Aqui eles mantêm um elogiado restaurante taiwanês. Aliás, o único do Nordeste. O casal garante sua união em tudo que faz: enquanto Mario prepara a massa dos pratos, Suna, com mãos hábeis, confecciona cada iguaria. A união do casal é o ingrediente que torna o simples restaurante Comaqui um dos lugares mais agradáveis do Recife.

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Urileide Maria da Silva, 46 anos “Tava querendo mesmo falar com vocês, é sobre minha filha.” Não fomos nós que encontramos Urileide Maria da Silva, foi ela quem nos escolheu para ser retratada. Leide, como é conhecida no Bairro da Cidade Universitária, reivindica um sonho: conhecer a filha que entregou assim que deu a luz, à época com 16 anos. Lembra com detalhes o parto, feito dentro de casa, pelas mãos de uma parteira no Engenho Galo, em Palmares, mata sul pernambucana. Da filha, sabe quase nada de concreto, apenas que estaria hoje com 25 anos, e que moraria em São Paulo. Mas, quando perguntada sobre como imagina um reencontro, vem de pronto um roteiro nada modesto: “Ah, eu penso que seria assim… ao vivo, todo mundo vendo na TV, eu a abraçaria e nós ficaríamos sorrindo”. Para Leide, o encontro com a filha é algo tão avassalador, que só mesmo um evento midiático pode dar conta.

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Cirleide Cristina da Silva, 45 anos À primeira vista, Cirleide é uma mulher comum. Poderia ser quase invisível no meio da multidão que vai e vem todos os dias no centro do Cabo de Santo Agostinho, onde ela mantém uma modesta banca para comercializar acessórios como relógios e pulseiras. Mas Cirleide não é uma anônima comum. Foi dela que partiu a primeira denúncia no Brasil, quando foi oficializada a Lei Maria da Penha. Desde que fez esse ato, sua vida mudou. E muito. A explicação não poderia ser mais assertiva, senão pelas palavras dela: “A Lei Maria da Penha, quando a conheci, pra mim era como um presente bem grande, bem embalado, com muitas caixinhas pequenas dentro. E cada uma que eu abria era uma surpresa. Era a liberdade, era alegria, felicidade. A vida. Cada caixinha daquela que eu abria tinha uma coisa boa pra mim”.

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José Plínio Varjão, 63 anos “Já falam em dividir as pedras daqui, as escrituras que eu li nenhum profeta previu. De um tempo desses pra cá, até o Tebas sumiu. Já estão de olhos também no canto do bem-te-vi”. Os versos vão ressoando na paisagem da cidade alta, em Olinda, enquanto um homem de macacão e cabelos crespos prateados dedilha carinhosamente seu violão. É Varjão, nome de artista, layout de artista, um autêntico anônimo célebre. Aos 63 anos, José Plínio Varjão, natural de Paulo Afonso, na Bahia, já trabalhou com quase tudo. É soldador de formação, mas já no ambiente de trabalho aproveitava para soltar sua verve artística para os colegas de obra. Tem dois CDs gravados e uma vida dedicada à música. “Desde sempre que sou músico, nunca fui famoso, mas tô aí.” Alguns minutos depois de proferir essa frase, um cidadão, conduzindo um Pálio Weekend vermelho, baixa o vidro e diz: “Ei, Varjão, olha!”, e exibe orgulhoso seu exemplar do último CD do artista.

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Charles Ferreira (Charles Welson), 37 anos “O divertido naquele tempo era que a gente não tinha dinheiro, não tinha nada, mas era herói dos pivetes.” Charles Welson (o Welson é sobrenome artístico presenteado por uma criança. Na certidão, consta Ferreira) é um artista do grafite. É jovem, mas já profere frases nostálgicas e é uma grande influência para os artistas que despontam em Camaragibe, onde nasceu e se criou. Começou a desenhar aos 23, em aulas de escola aberta. Não demorou muito para ensinar o que aprendera para os mais novos. As lembranças das primeiras tentativas no grafite são guardadas por ele como uma lição: “Não sabia o que pintar no primeiro grafite, não tinha experiência nenhuma com spray, lembro que ficou horrível. Horrível mesmo”. Hoje, Charles mantém intimidade com a arte de pintar em muros. “Eu curto pintar pra maloqueirada, pra rua mesmo.”

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Luiz Henrique Pinto Ramos, 21 anos Foi no balanço de uma rede, na companhia de sua avó, que Luiz Henrique teve seus primeiros contatos com a poesia. Era assim: Augusto dos Anjos, Casimiro de Abreu e de seu próprio avô, Jayme Dias, o Vovô Jayme. “Eu era uma criança e não entendia aquela poesia como entendo hoje. O que me atraía era a musicalidade que eu sentia que vinha dali.” A veia autoral despertou aos poucos, primeiro com a prosa. Mas foi na internet que Luiz começou a exercitar textos mais curtos. Quando se deu conta, estava arrebatado pela poesia. Já lançou seu primeiro livro, cujo título é Tenho uma página em branco. A obra é totalmente artesanal e Luiz participou de cada uma das 15 etapas de confecção sua. Tão leve quanto o seu livro, só mesmo a forma de ele pensar a poesia: “Gosto de me emocionar tanto quanto emocionar o outro.”

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A REVISTA Três momentos de mudanças

Ao longo desses 15 anos, a Continente passou por projetos editoriais e gráficos distintos, o que reflete, ao mesmo tempo, formas diferentes de pensar a publicação e o desejo de se ajustar às demandas de público

CON TI NEN TE

ANIVERSÁRIO

No seu lançamento, em dezembro de 2000, a Continente se apresentava como “despudorada, escancaradamente pernambucana. Sem ranços de regionalismo nem cosmopolitismos fáceis”. Apesar de ter-se mantido fiel a essa ideia, ao longo desses 15 anos, ela passou por diversas fases, mas três ficaram especialmente marcadas pelas mudanças gráficas que refletiam também modificações na linha editorial da publicação. O seu primeiro momento se deu em 1999, quando a Cepe planejava criar uma publicação similar à Leitura, revista da Imprensa Oficial de São Paulo. O editor do Suplemento Cultural (hoje Pernambuco), Mário Hélio, e o editor de arte Luiz Arrais foram convidados pela direção da empresa para tocar o projeto. Com uma equipe pequena, a revista foi gestada nos fins de semana. O grupo a batizou de Continente, pensando numa integração com toda

a América Latina (o que, na prática, pouco aconteceu), tendo sempre Pernambuco como ponto de partida para observar a cultura – “Mês a mês, o leitor acompanhará nessas páginas uma seleção de reportagens, ensaios e artigos que refletirão o que se faz e se pensa no continente de Pernambuco e em outras províncias do mundo”. Foi opção da diretoria da Cepe adicionar o termo “Multicultural” que, em maio de 2008, por um consenso da equipe, foi retirado e a publicação passou a se chamar Continente. A edição nº 0 foi lançada em dezembro de 2000 e, para a nº 1, a equipe foi reforçada pela contratação dos jornalistas Marco Polo e Homero Fonseca, que passaram a atuar como editores-executivos. Com um grupo fixo pequeno, a publicação trabalhava com uma maioria de colaboradores externos que, a cada edição, eram convidados a dar suas contribuições – modelo mantido até hoje.

A qualidade da publicação começou a conquistar leitores. Havia certo espanto que uma revista do seu nível fosse produzida fora do eixo Rio-São Paulo. Nos primeiros anos, os grandes ensaios dominavam a maior parte das páginas, com textos longos e reflexivos. A despeito do reconhecimento que angariava, a sua logística de produção, às vezes, tinha problemas, atrasando a sua chegada às bancas. Por volta da edição de nº 15, começou-se a pensar na reformulação de seu projeto gráfico e a designer Manoela Leão foi contratada para gerenciar essa mudança, que chegou a público na edição nº 24, em fevereiro de 2003. Após esse lançamento, o editor Mário Hélio deixou a Cepe para assumir a chefia da Editora Massangana. Os editores da revista passaram a ser Homero Fonseca e Marco Polo, tendo como diretor de redação o economista Carlos Fernandes.

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Nesse segundo momento, a publicação alcançou um nível de organização que lhe garantiu a chegada pontual às bancas, sempre no dia 5 de cada mês. O foco no caráter ensaístico permaneceu, trazendo para a discussão assuntos do campo filosófico, porém resenhas e críticas tornaram-se gêneros frequentes, além da publicação de poemas e contos. Nos anos iniciais, a Continente também era marcada pela presença de muitos colunistas. A mudança de governo, após as eleições de 2006, alimentou a especulação de que a revista seria descontinuada. Porém, o governador eleito Eduardo Campos garantiu a manutenção do projeto iniciado no governo Jarbas Vasconcelos. Afinal, apesar de ser uma publicação governamental, a revista manteve independência editorial, desde o início, tendo-se firmado como uma publicação que expressa uma imagem consistente de Pernambuco, trabalhando

com valores intangíveis, ligados à identidade e ao orgulho dos cidadãos pernambucanos. Nessa mudança de governo, uma das novidades foi a contratação de Ricardo Melo para a direção de arte. Sua experiência em jornalismo gráfico foi fundamental à implantação de programas de editoração mais eficazes, resultando na profissionalização dos recursos da redação. A partir de mudanças administrativas na editora, no final de 2008, foi contratada a jornalista Adriana Dória Matos para assumir a edição da publicação e elaborar, junto com a diretoria da Cepe e a redação, o novo projeto editorial e gráfico, lançado em abril de 2009, na edição n° 100. O redesign da revista, que ganhou nova logo e diferentes seções, foi realizado pelo espanhol Guillermo Nagore, designer de revistas e jornais, que trabalhava como editor de arte do New York Times e já havia colaborado com outras publicações de destaque no mundo. O projeto gráfico

LAYOUTS

As páginas internas da revista marcam os projetos gráficos e editoriais da Continente

é bastante diferente dos anteriores e conferiu uma cara nova à publicação, que passou a ter uma diagramação mais padronizada e ágil. Para esse mais recente projeto – que o leitor tem em mãos até a atual edição –, a equipe da Continente reavaliou seções e colunas e pensou em conteúdos que pudessem representar o momento vivido pela revista. Ficou estabelecido que ela passaria a ter como eixo editorial as grandes reportagens. Por isso foi criada a função de repórter especial, lotada na redação. Em 2008 e 2011, foram realizadas pesquisas de opinião e, em ambas, o público apontou o interesse por temas ligados a Pernambuco, mais próximos, mais locais. Isso significava que o leitor gostava de “se ver” na revista, embora não professasse bairrismos. Ao mesmo tempo, houve um investimento no site da publicação, que passou a ter produções exclusivas e dinamismo, além da presença nas redes sociais. Nesses últimos seis anos, a Continente ganhou também uma rotina de produção mais efetiva e organizada, garantindo mais eficiência no seu modus operandi. Atualmente, a equipe da revista é composta por 13 funcionários, entre jornalistas, designers, revisores e estagiários, e segue com um elenco de colaboradores externos convidados. A cultura continua sendo seu foco, porém numa visão ampliada, que vai além das linguagens artísticas.

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NAS BANCAS As 15 capas que mais venderam CARNAVAL

N° 2, FEVEREIRO, 2001 Essa foi a primeira edição da Continente em um fevereiro e seria praticamente impossível fugir do clima carnavalesco. A matéria era composta por um ensaio fotográfico, captando a ambivalência dos foliões nos dias de Momo, acompanhado por um artigo do antropólogo Raul Lody.

PELAS RUAS DE TRIUNFO

N° 115, JULHO, 2010 A repórter Danielle Romani visitou a cidade, no sertão pernambucano, conheceu seu patrimônio histórico e ouviu moradores. A edição foi um sucesso. Especialmente em Triunfo. Houve uma grande procura dos triunfenses pela revista.

FRANCISCO BRENNAND

N° 6, JUNHO, 2001 A manchete da capa (“Brennand nu”) chamava a atenção. A reportagem abordava aspectos pouco explorados da sua obra, em especial sua produção como pintor e desenhista, à época ainda pouco conhecida. Publicamos, ainda, poemas e um conto erótico do artista.

ARIANO SUASSUNA

N° 20, AGOSTO, 2002 O fotógrafo Léo Caldas foi convidado pela equipe da revista a fazer um registro do escritor para ilustrar a capa, que internamente trazia uma longa entrevista realizada pelo jornalista Marco Polo. Posteriormente, outros fotógrafos apropriaram-se do ângulo usado.

CHAPLIN, O GRANDE VAGABUNDO

N° 36, DEZEMBRO, 2003 Uma bela capa com uma foto incomum do artista, em p&b. A matéria refletia sobre a mensagem humanista dos filmes de Chaplin, que permanecia atual após 90 anos (à época) da sua estreia no cinema.

PICASSO NO BRASIL

N° 38, FEVEREIRO, 2004 Acontecia, à época, uma grande exposição retrospectiva do espanhol, no Pavilhão da Oca, em São Paulo, e aproveitamos para rever o trabalho do mestre.

LENINE

N° 40, ABRIL, 2004 Uma conversa descontraída e longa entre os então editores da revista Marco Polo e Homero Fonseca e o cantor e compositor Lenine foi o ponto de partida para a matéria de capa da edição.

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ARTE & LOUCURA

N° 60, DEZEMBRO, 2005 Para a composição dessa matéria, partimos da relação entre arte e loucura e observamos como se dava essa intersecção na literatura, nas artes visuais, na música e no teatro. As vendas também foram impulsionadas pelo encarte do livro intitulado Pensata, que reunia os temas mais estimulantes e contemporâneos trabalhados pela revista, até então.

ANTONIO NÓBREGA

BAÚ DE MEMÓRIAS

N° 74, FEVEREIRO, 2007 Fevereiro, Carnaval, frevo. Em 2007, o gênero musical estava completando, simbolicamente, 100 anos. Naquele mês, foi publicada também pela Cepe uma revista Documento (publicação mensal temática da Cepe, extinta em 2008) sobre o gênero musical pernambucano.

N° 94, OUTUBRO, 2008 A matéria tratava do Recife com fotografias antigas do acervo do Museu da Cidade do Recife, em negativo de vidro. Na capa, uma imagem emblemática da Praça da Independência, nos anos 1930.

O PORTUGUÊS REVISTO

RIO CAPIBARIBE

N° 97, JANEIRO, 2009 Janeiro de 2009 foi o início de vigência das regras do Novo Acordo Ortográfico, válido para os oito países de língua portuguesa. Além de levantar questões sobre as polêmicas a e aplicabilidade do mesmo, a edição encartou a cartilha A última do português, com todas as mudanças implementadas na ocasião.

Nº 146, FEVEREIRO, 2013 A proposta de reportagem surgiu da relação forte entre os recifenses e o Rio Capibaribe, elemento central na paisagem da cidade. O repórter Paulo Carvalho foi em busca dessa história, e o fotógrafo Chico Ludermir fotografou o rio em diferentes ângulos e horários.

DOM HELDER

N° 98, FEVEREIRO, 2009 Dom Helder Câmara já havia sido capa de uma edição de uma revista Documento, mas era a primeira vez que ganhava a capa da Continente. O exarcebispo era homenageado em seu centenário pela divulgação de suas cartas, que seriam lançadas em diversos livros pela Cepe Editora.

NECRÓPOLES

N° 131, NOVEMBRO, 2011 Com o Dia de Finados como ponto de partida, a revista investigou sobre cemitérios e suas simbologias. A matéria de abertura historiava o maior campo-santo do Recife, Santo Amaro. O anjinho da capa é escultura de seu pórtico, fotografada por Chico Ludermir.

100 ANOS DE LUIZ GONZAGA

N° 138, JUNHO, 2012 No ano do seu centenário, Luiz Gonzaga foi tema de capa da edição do mês do São João. Foram 20 páginas dedicadas ao pernambucano de Exu, trazendo informações sobre sua história e análises de sua obra.

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DESIGN 15 belas capas, segundo a redação

ANTONIO CARLOS NÓBREGA

Nº 14, FEVEREIRO, 2002 Capa que causou certo estranhamento, até na própria Cepe. Achando-o feia, um diretor da gráfica (mais realista que o rei) enviou uma cópia ao artista, para sua avaliação. O artista discordou dele, e gostou da foto de Léo Caldas.

O EU VIRTUAL

Nº 31, JULHO, 2003 A revista começava a redefinir seu conteúdo, distanciando-se do perfil histórico/holandês que caracterizou suas primeiras edições, refletindo o rápido avanço tecnológico da época e das discussões em torno do filme Matrix.

DALÍ

Nº 41, MAIO, 2004 Foto do pintor catalão, em p&b, contrastava com a estética de sua obra, sempre carregada de cores fortes. A bengala ajudou a formar uma interessante composição de capa.

OCTÁVIO PAZ

Nº 39, MARÇO, 2004 Nos 90 anos do poeta e ensaísta mexicano, adquirimos uma bela foto da agência de imagens de Bill Gates, a Corbis. No rodapé, numa tarja, a imagem de uma baioneta recortada lembrava os 40 anos do golpe militar no Brasil.

SARTRE

Nº 54, JUNHO, 2005 Incrível caricatura de Léo Martins, desenhista que, para muitos, é mero imitador dos traços de Loredano, mas que, nesse caso, virou o jogo para o seu lado, superando o mestre.

DEUS

Nº 101, MAIO, 2009 Belo close-up de busto clicado por Roberta Guimarães para reportagem sobre a língua dos fulni-ôs. Já a referência a Deus, na manchete, relaciona-se à discussão sobre a crença na sua existência em conflito com o crescente ateísmo.

O DOGMA

Nº 55, JULHO, 2005 A revista discutia o tema com representantes da Igreja, filósofos e cientistas políticos. Porém, o detalhe da foto de capa mais comentado, à época, era o estado das unhas da devota canônica.

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QUEM LÊ TANTA NOTÍCIA?

Nº 100, ABRIL, 2009 Foto produzida por Eduardo Queiroga, inspirada no clima de uma bela foto dos anos 1960, do acervo do fotógrafo Gil Pinheiro, da extinta Manchete. A imagem em p&b inaugura o mais recente projeto gráfico da revista e expressa a algaravia de ofertas de uma banca de revistas.

ARMORIAL 40 ANOS

Nº 118, OUTUBRO, 2010 A ilustração de Ana Karina Freitas apropria-se das cores favoritas do mestre do Movimento, que completava 40 anos de atividade. A matéria discute sua influência nas áreas de cinema, música, teatro, literatura e artes visuais.

TATUAGEM

N° 119, NOVEMBRO, 2010 Uma capa com atitude. É o que parece mostrar a imagem desafiadora do tatuado, em foto de Jim Cornfield/Corbis.

A BELEZA DOS LIVROS INFANTIS

Nº 130, OUTUBRO, 2011 Tema destacado pelo traço certeiro de André Neves – hoje, um dos maiores ilustradores infantis do Brasil, com dezenas de prêmios também no exterior.

O FASCÍNIO PELO HORROR

N° 137, MAIO, 2012 Ilustração de Indio San nos remete aos cartazes de filmes de Bela Lugosi, Christopher Lee e Peter Cushing, das décadas de 1950 e 1960, além de pocket-books com a mesma temática do sobrenatural.

CORPO

Nº 142, OUTUBRO, 2012 A imagem foi pinçada de um ensaio fotográfico com a modelo pernambucana de 70 anos, feito para um caderno de profissões da Folha de S.Paulo. De bela iluminação, mostra o uso do nu com elegância.

CIDADE VERDE

N° 153, SETEMBRO, 2013 O fotógrafo Hélder Tavares passeou pelas ruas do Recife para registrar as áreas verdes que compõem a paisagem urbana, assunto da matéria de capa. Na imagem gráfica, a vegetação frondosa do mangue recobre parte do edifício, apontando um diálogo possível.

O ATO DE CRIAR

N° 163, JULHO, 2014 Já na reunião de pauta, quando se discutiu o tema processos criativos, despontou a necessidade de ilustrações que dessem conta de debate tão abstrato. Convidamos Maurício Planel, pensando no seu interessante trabalho com colagem. Ele assina as ilustrações para a matéria de Luciana Veras.

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PAUTAS 15 temas que se destacaram 1. TV E TELEDRAMATURGIA

A produção televisiva circulou pelas páginas da revista em análises sobre os reality shows – verdadeira febre no início dos anos 2000, que gerou muita discussão, relembrando obras como 1984, de George Orwell –, ou no boom dos seriados televisivos, que têm conquistado cada vez mais público, devido às novas plataformas de consumo, como a Netflix. O papel seminal da telenovela na cultura brasileira não foi esquecido. Em setembro de 2005, a capa foi dedicada à teledramaturgia, analisada e discutida sob diversos olhares, com viés também histórico. Em junho de 2011, a temática voltou às páginas da Continente, dessa vez, com foco sobre como o Nordeste é retratado nos folhetins e os artifícios do gênero para seguir na preferência nacional.

2. O ROSTO DA CAPA

Em abril de 2007, a atriz pernambucana Hermila Guedes – que estava em

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evidência, após o lançamento do filme O céu de Suely. Um perfil dela, feito pelo crítico Alexandre Figueirôa, abria a matéria, que tratava do momento positivo vivido pelo cinema pernambucano. Em fevereiro de 2012, a atriz voltou à revista, numa matéria de Cleodon Coelho, sobre a trajetória de luta e o sucesso dos atores pernambucanos na TV. A atriz rivalizou com Ariano Suassuna e Antonio Nóbrega, as figuras que mais apareceram na nossa capa.

3. ATOS DE TERRORISMO

O ano do surgimento da Continente foi marcado pelo ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. A edição de outubro daquele ano trouxe a discussão sobre as causas de guerras. Naquele momento, o atentado em si não foi discutido. Afinal, seus desdobramentos ainda estavam em curso. Porém, em novembro de 2003, a revista tratou diretamente do terrorismo, a partir do ocorrido, mas lançando um olhar para as

manifestações do terror ao longo da história. O debate não se encerrou por aí. Em setembro de 2006, aproveitamos o marco dos cinco anos do atentado para rediscutir o assunto.

4. GÊNEROS MUSICAIS

Algumas entrevistas realizadas ao longo desses 15 anos se destacaram. Dentre elas, as de Caetano Veloso (nº 2, 2001), Chico Buarque (nº 7, 2001), Gilberto Gil (nº 11, 2001) Lenine ( nº 40, 2004), Hermeto Pascoal (nº 44, 2004), que se transformaram em capas icônicas. Alguns gêneros foram temas reincidentes, como o tropicalismo, a bossa nova, o frevo e o manguebeat. Dos artistas pernambucanos, Luiz Gonzaga foi o nome mais frequente, seja em citações, reportagens, especiais ou brindes. A música pernambucana se fez presente em diversas matérias sobre lançamentos de discos de artistas, como Geraldo Maia e Quinteto Violado.

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6 5. FUTEBOL É CULTURA

Desde 2001, foram quatro Copas. Em maio de 2002, mês que antecedia o início do torneio, a revista publicou material que lançava um olhar sobre o esporte bretão, destacando como ele aparecia na literatura, no cinema, na televisão. Nos meses de junho dos anos de Copa, o futebol se fez presente: em 2006, em matéria sobre a sociologia do torcedor; em 2010, numa edição temática, com crônicas, reportagens, artigos e ensaios fotográficos voltados exclusivamente ao tema; em 2014, ano da Copa no Brasil, numa reportagem sobre essa “paixão nacional”.

6. TUDO PELA ARTE

A edição de número zero da Continente saiu do forno em dezembro de 2000. Na capa, uma ampla matéria com o artista pernambucano João Câmara. Nesses últimos 15 anos, diversos artistas figuraram nas páginas da revista, fossem eles clássicos internacionais, a exemplo de Van Gogh,

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Rembrant, Goya, ou nomes importantes das artes brasileiras, como Francisco Brennand, Cícero Dias e Portinari. Ao longo desse período, a revista pôde acompanhar o avanço da arte contemporânea em Pernambuco, a descoberta de artistas, como Paulo Bruscky, que trabalhou durante muitos anos no quase anonimato, só recebendo neste século o reconhecimento merecido. Uma nova geração de artistas, cuja trajetória se iniciou também nos 2000, teve seus trabalhos e carreiras registrados pela Continente, a exemplo de Rodrigo Braga, que apareceu, inicialmente, em reportagens sobre ações coletivas e, nos anos seguintes, protagonizou matérias específicas sobre o seu trabalho.

7. FAZER JORNALÍSTICO

A prática jornalística também tem sido discutida pela revista. Norman Mailer, figura emblemática do novo jornalismo norte-americano, e o professor José Marques de Melo, umas das maiores referências nacionais na área, foram nossos

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entrevistados. Os 50 anos do rádio no Brasil e a polêmica envolvendo a obrigatoriedade do diploma tornaram-se assuntos de capa. Na edição número 100 – que marcou o mais recente projeto gráfico e editorial da revista –, há uma abrangente reflexão sobre a prática do jornalismo cultural hoje – um processo de metalinguagem. Pesquisadores e jornalistas culturais dos mais variados veículos foram ouvidos pela jornalista Danielle Romani, na busca de um panorama sobre a prática no Brasil, destacando as publicações que fizeram história e seus grandes personagens.

8. O BOM HUMOR

A graça e o riso sempre estiveram presentes na Continente. Nas primeiras edições, a revista publicou charges e cartuns, convidando nomes da cena local, como Sávio Araújo e Lailson. Hoje, a última página da revista é ocupada por uma Criatura, caricatura de um personagem do universo cultural. Mas o humor também foi tema de matérias aprofundadas, a primeira em

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março de 2007, que traçava um panorama histórico do humor impresso e gráfico no Brasil, trazendo também um olhar sobre a produção pernambucana. Em julho de 2011, a discussão foi sobre a relação da sociedade com o riso, já que ele chegou a ser associado ao “pecado original”. Em dezembro passado, Débora Nascimento fez reportagem sobre como o humor tem se manifestado na internet, em especial nas redes sociais.

9. QUESTÕES DA CIDADE

A opinião pública está hoje mobilizada em torno das cidades e de seus impasses. Esse interesse tem feito a temática ganhar espaço nas publicações culturais. Nos últimos dois anos, a Continente trouxe discussões como: a convivência entre espaços hiperdesenvolvidos e arcaicos no mesmo tecido urbano (abril 2012); a babel sonora dos espaços públicos (janeiro 2013); o cicloativismo (abril 2013); a importância do verde (setembro 2013); o legado da

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arquitetura moderna (maio 2014); e, mais recentemente, a relação do design com a cidade (novembro 2014).

10. CINEMA FEITO AQUI

O cinema nacional começou sua retomada na década de 1990. Nos anos 2000, a produção galgou mais espaço, não só no país, como fora dele, com a indicação de Cidade de Deus (2002), de Fernando Meireles, ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A revista discutiu algumas de suas características, com atenção na produção pernambucana, que vive uma fase profícua, desde O baile perfumado. A cada conquista da cinematografia local, a Continente dedicou matéria. Em abril de 2001 (nº 4), a capa trazia a chamada: “Luzes e câmeras no Nordeste”, destacando que a região era o cenário das melhores produções da época. Oito anos depois: “Fábrica de cinema – nunca se produziu tanto filme em Pernambuco”, dizia a manchete da edição 106, em outubro de

2009. Mais recentemente, com nova safra de realizadores, foi assunto de destaque, com alguns filmes: Amor, plástico e barulho, de Renata Pinheiro, A história da eternidade, de Camilo Cavalcante, Tatuagem, de Hilton Lacerda, e O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho.

11. SALTOS TECNOLÓGICOS

A Continente surgiu no início da popularização da internet e de tecnologias que hoje fazem parte de nosso dia a dia. Desde então, a publicação debate esses avanços, buscando entender seus impactos na sociedade, em especial no campo da cultura. As temáticas ligadas à tecnologia surgiam muitas vezes a partir de obras, como a trilogia Matrix. A matéria de capa de julho de 2003, questionava: “A realidade existe?”. Para responder à pergunta tão complexa, foram ouvidos Jean Baudrillard e Edgar Morin. Em março de 2008, a reflexão foi sobre o direito ao conhecimento e à propriedade intelectual,

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IMAGENS: ARQUIVO CONTINENTE

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em tempos de revolução tecnológica. Em junho de 2010, o debate foi sobre o livro digital e a possibilidade de os impressos deixarem de existir. Em 2012, foi a vez dos nerds, que viraram assunto de capa por conta de seu atual prestígio no mercado da Era da Informação.

12. DESTAQUE ÀS TRADIÇÕES Nos últimos 15 anos, a cultura popular passou a ser mais valorizada e reconhecida. Foi durante esse período, por exemplo, que a Fenearte – Feira Nacional de Negócios do Artesanato surgiu e se consolidou no calendário cultural do Estado. Também nesse período, artistas populares foram consagrados Patrimônios Vivos. A Continente sempre se interessou por essas manifestações. Em agosto de 2007, o repórter Samarone Lima perfilava Mestre Salú. Em julho de 2008, o artesão Manuel Eudócio foi lembrado como herdeiro de Vitalino, que, por sua vez, foi tema da capa de junho de 2009, quando

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da comemoração do seu centenário. Vale mencionar, ainda, a bela capa sobre as rendas, numa reportagem minuciosa de Danielle Romani, em agosto de 2011.

13. DRAMATURGIAS

A história das artes cênicas em Pernambuco tem-se feito presente nas páginas da Continente, que se manteve atenta também à produção de grupos contemporâneos, a exemplo do Angu de Teatro e do Magiluth. Dramaturgos e encenadores fundamentais como Antunes Filho (nº 51, 2005) e José Celso Martinez (nº 74, 2007) tiveram seus trabalhos discutidos pela revista. Temas como o teatro infantil (nº 104, 2009) e a ópera nacional (nº 113, 2010) foram abordados com destaque pela revista.

14. CULTURA EM MACRO

Como sabemos, “cultura” não se resume às manifestações artísticas, mas diz respeito, mesmo, ao ser no mundo. Assim é que a Continente se propõe a refletir sobre

temas da contemporaneidade intrínsecos à cultura. Questões-chave como democracia (nº 47, 2004), dogma (nº 55, 2005), corrupção (nº 59, 2005), identidades (nº 70, 2006) e Deus (nº 102, 2009) estão nesse contexto, assim como a abordagem das ideias de filósofos como Jean-Paul Sartre (nº 54, 2005) e Octavio Paz (nº 39, 2004).

15. MUNDO DAS LETRAS

Joyce, Cervantes, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues e muitos nomes de destaque da literatura nacional e internacional foram vistos e revistos nas páginas da Continente. Mais que trabalhar os autores e suas obras, a revista também deteve-se sobre temáticas como as angústias de quem faz literatura no Brasil (nº 5, 2001), os escritores-artistas (nº 53, 2005), literatura infantojuvenil ( nº 111, 2010) e a representatividade literária das correspondências de um artista (nº 124, 2011).

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CON ANIVERSÁRIO TI NEN TE

PERSONAGENS 15 frases que marcaram

“Parece que a crítica, mesmo nos Estados Unidos, escolheu fazer vista grossa com os meus erros e limitações, destacando sempre as coisas boas que eu fiz. Não que tenha sido assim sempre, mas percebo uma enorme generosidade.” Woody Allen, junho, 2003

“EU ME DEFINO COMO FEUDAL, SUPERSTICIOSO E PORNOGRÁFICO. E DIGO MAIS: QUANDO NÃO EXISTEM SUPERSTIÇÕES CATALOGADAS, EU INVENTO.” Francisco Brennand, junho, 2001

“Já naquela época, nas discussões com os colegas, eu dizia: ‘Não sei se essa utopia socialista é realizável; não sei se a realidade da vida humana permite que ela se instale’. Os colegas brigavam comigo: ‘Você é um fracote’. Sempre discuti com as esquerdas em relação a esse dado utópico: eu já desconfiava que não dava.” Gilberto Gil, novembro, 2001

“A melhor música do mundo é a música do Brasil, feita por mim. Boto banca mesmo. Tenho que falar isso, porque não dá para ouvir uma besteira dessas de um cara como CAETANO QUE, COMO POETA É MUITO BOM, MAS MUSICALMENTE É UM MUSIQUINHO. (…) Caetano é um músico medíocre, ele não toca bem os instrumentos que toca, ele não toca nada, quase nada.” Hermeto Pascoal, agosto, 2004

“Metade da população mundial se enquadra na vida familiar. Se você não se enquadra, não ridicularize. Porque família é, sob vários aspectos, uma forma de arte.” Norman Mailer, julho, 2006

“A literatura foi substituída pelo que essas pessoas chamam de ‘estudos culturais’. Mesmo que ainda seja chamada algumas vezes de Literatura Inglesa, Literatura Comparada, ou o que seja, não é mais o estudo da literatura enquanto literatura.” Harold Bloom, maio, 2002

“Ser excepcional não é fácil, requer trabalho. A cultura exige audácia, e nós temos esse ‘algo mais’ a oferecer ao público. Eu sou um anjo, mas não sou castrado.” José Celso Martinez, fevereiro, 2007

“Outro assunto que me cansa! Homocultura, preconceito, parada da diversidade. Porque o assunto é primitivo, é óbvio. Em 2008, a gente ainda discute o respeito ao próximo, o respeito às diferenças. Reconheço a importância da mobilização, da causa coletiva, mas me dá preguiça. EU SOU UM HOMOSSEXUAL NÃO PRATICANTE.” Marcelino Freire, novembro, 2008 CO N T I N E N T E JA N E I R O 2 0 1 5 | 7 8

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“Continuo sem entender nada de política. O que mudou é que perdi a ingenuidade. Desde 1976, quando completei 18 anos, votava com muita esperança em mudanças sociais para o país. Seguidamente, tive decepções, e, seguidamente, renovei as esperanças. ATÉ COMPREENDER QUE A POLÍTICA É UM ÓTIMO NEGÓCIO QUE FAZ MILIONÁRIOS COM O DINHEIRO PÚBLICO.” Gil Vicente, outubro, 2013

“É preciso que seja dito, de uma vez por todas, que o criador, seja compositor, escritor, artista plástico, ator, vive (ou deveria viver) daquele único trabalho que sabe fazer: sua arte.”

“Acho que o humor tem que destruir. Ele não constrói nada, quer dizer, pode até construir, mas, no meu modo de ver, ele precisa bater em alguém. NÃO EXISTE ‘HUMOR A FAVOR’ – BEM, ATÉ EXISTE, MAS É HORROROSO.”

Marlos Nobre, fevereiro, 2009

Allan Siber, fevereiro, 2012

“Um dos erros espetaculares do marxismo, com sua ênfase no confronto antagônico entre burguesia e proletariado, foi, exatamente, o de achar que o destino da humanidade estava inteiramente nas mãos do proletariado e de atacar e afastar a classe média do campo progressista, empurrando-a para os braços do conservadorismo de direita.” Antonio Risério, setembro, 2012

“O download gratuito é algo lastimável, porque penso que um artista que investe sua vida nesse processo criativo tem direito a recuperar um pouco do tempo investido. ISSO É A MORTE DA CRIAÇÃO. Isso é como se eu pudesse comprar um carro sem pagar nada, as fábricas de carro não poderiam existir.” Jordi Savall, setembro, 2014

“O Ministério da Cultura, já que existe, deveria cuidar do patrimônio histórico, investir pesado na conservação de cidades que merecem ser protegidas, na criação de bibliotecas e em formas de criação que não rendem muito dinheiro, balé, dança e orquestra sinfônica, e estimular a presença dessas orquestras em praças públicas, espetáculos gratuitos. É para isso que deveria existir, e não para bancar show de rock na praia ou então CD de cantor baiano, que é o que mais tem.”

“Quando surge algum tipo de problema, perguntamos: de onde vem? É minha culpa ou a culpa é do sistema? Vivemos sob uma espécie de dominação dos modos liberais de pensar em que tudo é culpa nossa, o sistema é perfeito, então, se há algo errado, é uma culpa individual. Acho isso completamente inverídico.”

Ruy Castro, janeiro, 2013

David Harvey, dezembro, 2014 CO N T I N E N T E JA N E I R O 2 0 1 5 | 7 9

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CON TI NEN TE

Conversa

CINEMA

Entre as ações editoriais planejadas

“Nosso trunfo é a liberdade”

Profissionais ligados à cadeia produtiva cinematográfica participam de encontro para discutir questões relevantes da produção atual FOTOS Maria Chaves

Agradecemos ao Espaço Fonte por ter se disponibilizado a receber o grupo desta Conversa.

para este ano, como marco dos 15 anos da revista Continente, está a realização de uma série de encontros com realizadores dos segmentos culturais, para que discutam situações que consideram relevantes. Neste primeiro momento, cinco profissionais – três realizadores, um produtor e uma professora e crítica, mediados por duas jornalistas – falam sobre o cinema pernambucano contemporâneo. Parte dessa Conversa está nas páginas que se seguem, e disponibilizada no site da revista e no YouTube, para que a discussão se replique e gere novos debates. A intenção é que tal polifonia possa repercutir pontos de vistas convergentes e divergentes, enriquecendo nossa maneira de enxergar o fazer cinematográfico em Pernambuco. Essa experiência será repetida a cada dois meses. Portanto, em março teremos uma nova Conversa.

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Convidados ANGELA PRYSTHON Professora do curso de Cinema e da pósgraduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, com foco na convergência entre cinema e estudos culturais.

CAMILO CAVALCANTE Roteirista, produtor e realizador, entre outros, dos curtas O velho, o mar e o lago (2000), Rapsódia para um homem comum (2005), Ave-Maria ou a mãe dos sertanejos (2009) e do longa A história da eternidade (2014).

JOÃO VIEIRA JR. Sócio da REC Produtores Associados, membro do Conselho Consultivo do Audiovisual/PE e produtor de O homem das multidões (2013), Tatuagem (2013), Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) e Cinema, aspirinas e urubus (2005).

MARCELO PEDROSO Cofundador da Símio Filmes, roteirista, montador e diretor, entre outros, dos curtas Aeroporto (2010) e Câmara escura (2012) e dos longas KFZ-1348 (2008), Pacific (2009) e Brasil S/A (2014).

LUCIANA VERAS A gente pode falar numa identidade do cinema pernambucano? Se é algo que pode ser demarcado pela geografia ou se há afinidades geracionais… ANGELA PRYSTHON Tem uma questão vinculada à cidade do Recife, a uma certa vontade de urbanidade, a uma certa atração cosmopolita da cidade, que não envolve só o cinema, se a gente for pensar. Inclusive, na história do cinema está muito marcado esse desejo de adesão ao imaginário mundial, que é ao mesmo tempo cosmopolita e provinciano, e também uma afirmação meio localista da cidade. Mas acho que, de fato, não tem uma unidade. Basta a gente pensar nos três realizadores

que estão aqui, que têm perspectivas muito distintas em relação ao audiovisual, e que não é uma questão só geracional, até porque existe uma proximidade de idade. Acho que tem uma identidade relacionada com a cidade, mas também uma diversidade muito grande.

RENATA PINHEIRO Diretora de arte de Feliz natal (2008), de Selton Mello, e Baixio das bestas (2006), de Claudio Assis, e realizadora, entre outros, do curta Superbarroco (2009) e do longa Amor, plástico e barulho (2013).

Mediação

ADRIANA DÓRIA MATOS O que acontece também, talvez, com o cinema, é que quem está fazendo não está preocupado com essa questão de localidade, e, sim, com suas angústias e ansiedades. Mas o espectador tenta olhar no conjunto uma identidade, fica tentando catalogar, porque tem essa necessidade de classificação, que é arbitrária. A impressão que eu tenho é de que lá fora as pessoas estão vendo uma cidade

ADRIANA DÓRIA MATOS Editora-chefe da revista Continente, professora do curso de Jornalismo da Unicap, mestre em Teoria da Literatura (UFPE), com estudo comparativo entre as crônicas de João do Rio e Fernando Bonassi.

LUCIANA VERAS Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco, com especialização em Estudos Cinematográficos pela Universidade Católica de Pernambuco, e repórter especial da revista Continente.

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que não é vista, ouvindo uma voz que não é muito ouvida, cenário, situações que não são colocadas por cinematografias de outras regiões. Tem esse desejo do público de se ver. Camilo, aquele seu filme, o Ave Maria ou a Mãe dos Oprimidos, é todo feito nas ruas centrais do Recife. Pedroso, no Pacific, que você juntou o que as pessoas foram lhe oferecendo… também tem essa coisa da identificação com aquelas personagens. E, Renata, o seu Superbarroco tem uma coisa de memória vinculada com seu trabalho como artista plástica. RENATA PINHEIRO Mas, aí, logo depois eu faço, junto com Sérgio Oliveira, o Praça Walt Disney, em que a gente usa uma praça que fica no terceiro jardim de Boa Viagem, como um pino localizador de uma questão maior, que seriam as influências culturais, o que somos nós, que traçado urbanístico é esse. Acho que, inclusive, tem vários filmes com isso, que esse movimento do cinema pernambucano passou por uma fase de reconhecimento de área mesmo. Várias pessoas querendo entender que

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do seu realizador, o cheiro, o jeito do seu realizador. Isso é muito evidente. E o nosso grande trunfo é esse. Essa liberdade que a gente tem. Ninguém quer imitar o outro. Ninguém quer imitar a produção televisiva. Ninguém quer fazer filme que seja cartão-postal para trabalhar depois na teledramaturgia. Cada um, cada projeto, é particular e muito íntimo. Essa é nossa grande riqueza, é o que faz o nosso cinema ser tão pulsante. Porque ele é honesto no fazer, no sentir, no pensar, no criar. Cada um com a sua honestidade pessoal, com seu olhar, com sua meta, com seu foco, com sua persistência. Tem essa marca da persistência, que também é uma grande marca dos realizadores que habitam Pernambuco.

“Acho que existe uma identidade relacionada ao Recife, mas também uma diversidade muito grande” Angela Prysthon

cidade é essa, porque, de fato, houve uma transformação muito abrupta e rápida e incomodou a todos. E engraçado que, talvez nesse momento, haja uma semelhança, pelo menos temática, entre algumas obras, mas, de ninguém combinou com ninguém, né? CAMILO CAVALCANTE Eu prefiro pensar – assim como Jomard Muniz de Britto se referiu, nos anos 1970/ 1980, ao super-8, como está no livro de Alexandre Figueirôa – não como um movimento, mas como uma movimentação. Acho que hoje existem movimentações de pessoas, de grupos que se flertam ou não, mas que está todo mundo dentro de uma mesma rede, uma mesma malha, uma malha fina, que se entrecruza mais cedo ou mais tarde, ou que, se não se entrecruzou, vai se entrecruzar. E o nosso grande trunfo é justamente isso, essa pluralidade de ideias, mesmo, que correm livres e soltas. O que temos em comum é uma questão de persistência, de uma crença no que você, o autor, cada diretor, quer expressar. Existe uma fé muito grande no que você quer dizer. E isso está refletido nos filmes. Cada um tem a cara

“Ninguém quer fazer filme que seja cartão-postal para trabalhar depois na teledramaturgia” Camilo Cavalcanti

ANGELA PRYSTHON É, concordo que tem uma individualidade, mas dá para encontrar uma recorrência. E acho que também tem influências naturais: cada realizador vai ter seu grupo de influências, seu repertório, e, aí, tem uma coisa geracional que dá para identificar. Se você pensar, por exemplo, que a geração dos veteranos – Lírio Ferreira, Claudio Assis, Paulo Caldas, Marcelo Gomes – tem um enfoque talvez mais folclórico, regionalista; Marcelo um pouco menos, no sentido até de marcar esse lugar de Pernambuco. Aí, você pega uma geração intermediária, com Camilo e Kleber (Mendonça Filho), e depois essa geração da Símio e da Trincheira, que tem uma pegada mais realista, um realismo mais internacional, que traz influências de um minimalismo expressivo. Fico pensando em filmes como Eles voltam, de Marcelo Lordello, por exemplo, que possui algo de várias coisas, tem algo desses ventos orientais. E Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro. JOÃO VIEIRA JR. Sempre falei que não é um movimento, mas que existe uma identificação, porque todos esses são filmes autorais. Existe um diretor que pensou e quis se expressar artisticamente, de algum jeito, alguns mais existenciais, outros mais sociais.O Recife é até uma cidade muito aberta. Que outra cidade teria um baile cubano há 30 anos? Aqui, tem uma abertura à música e ao cinema. CAMILO CAVALCANTE Os filmes eram uma força que reunia toda a cidade. O

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Baile perfumado foi uma coisa épica, de desbravadores naquele tempo. JOÃO VIEIRA JR. Naquele momento, você não tinha uma coisa que a gente tem hoje: um calendário. Todo ano tem o Funcultura, tem também o Fundo Setorial. Antes se levava um tempo muito grande, você gastava a maior parte do dinheiro com fretes, com equipamentos, com profissionais que sabiam operar e não sabiam quanto tempo levaria aquela empreitada. CAMILO CAVALCANTE E, hoje em dia, dá para você filmar e finalizar o filme todo aqui sem sair do Recife. Tecnicamente, é possível. RENATA PINHEIRO Já que a gente está tentando descobrir o que é esse movimento, eu acho que tem muito a ver com fazer filmes baratos. Porque o que é que acontece: você tem um projeto muito grande, muito dispendioso, ele vai ter que se enquadrar a um certo padrão, para que os possíveis fornecedores dessa verba, que seriam empresas e grandes

grupos de comunicação, achem aquilo interessante e coloquem dinheiro. E dinheiro é uma coisa difícil. Acho que a gente não se enquadrar num gosto assim, mais empresário, vamos dizer, nos dá muita liberdade. Talvez seja isso. A forma seria fazer com pouco. A gente vê no orçamento. Outro dia, vi a lista dos filmes mais caros do Brasil. São filmes de R$ 9 milhões. Meu Deus do céu, dá para fazer um filme de duas horas com esse dinheiro? LUCIANA VERAS Quanto custou Amor, plástico e barulho? RENATA PINHEIRO R$ 600 mil para filmar, R$ 1,2 milhão com o lançamento. Mas eu queria um pouco mais. Um filme com um elenco grande, praticamente um musical… O que quero dizer é que é incrível. Tive uma conversa informal, há pouco tempo, com a dona de uma produtora comercial. Ela disse: “Eu quero conteúdo, Renata. Pensa nos conteúdos para criar um programa de TV, mas tem que estar sempre vinculado a algum possível patrocinador”. Então, é para eu falar de biscoito para ter o biscoito Treloso? Não é isso que acontece

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A HISTÓRIA DA ETERNIDADE Filme de Camilo Cavancanti foi premiado em diversos festivais, entre eles o de Paulínia e na Mostra Internacional de São Paulo

com o nosso cinema. Na verdade, a gente é muito corajosa. Banca, mesmo, o que acredita e pode. E não estou com discurso de “eu não preciso de dinheiro”. Não, preciso de dinheiro. Mas eu sei também que o dinheiro muitas vezes escraviza. É maravilhoso o Funcultura porque a gente consegue viabilizar nossos filmes. ADRIANA DÓRIA MATOS: João, o último filme que Marcelo fez com Cao Guimarães, O homem das multidões, é muito lindo, ousado e silencioso. Não é um filme comercial. Vocês tiveram alguma dificuldade para viabilizar, porque vocês fizeram em coprodução, não é? JOÃO VIEIRA JR. Todos os filmes que a REC produziu ou coproduziu são de baixo orçamento. Talvez Tatuagem tenha sido o mais caro deles, tem 40 atores com fala. Com a comercialização, pode ter chegado a R$ 2,4 milhões, mas O homem das multidões foi R$ 1,8 milhão. Então, todos eles são muito dependentes de editais, não tem

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BRASIL S/A Na obra, Marcelo Pedroso propõe um debate sobre o projeto desenvolvimentista do país

como pensar antecipadamente qual é o perfil de patrocinador, até porque a gente quase não fez esse tipo de captação. Você consegue o edital hoje, faz o plano financeiro, junta com outro, espera o fundo setorial. Com raríssimas exceções – o Era uma vez eu, Verônica e o Cinema, aspirinas e urubus –, uns 20% do orçamento é que a gente conseguiu através da Lei do Audiovisual. Nesses dois, tivemos patrocinadores como a Neoenergia e Brasil Telecom. Orçamento é uma coisa da hipótese. Nunca consegui fazer um filme em que a gente captasse todo o orçamento inscrito na Ancine, eles sempre foram menores porque chega um momento que têm que sair. Então, até o orçamento é um processo dinâmico, você remodela aquilo tudo, e ajuda se você tiver um quadro de diretores parceiros, que contribuam para isso. LUCIANA VERAS Queria que Marcelo falasse um pouco da carreira como realizador, partindo

“Não é o Brasil falando do Nordeste como um lugar separado, a gente está invertendo isso” Marcelo Pedroso

de um filme que fala da trajetória de um fusca, que, durante décadas, foi um símbolo do Brasil, do consumo, até chegar ao Brasil S/A. Nesse filme você também fala um pouco desse boom, desse crescimento que o país experimentou nos últimos anos, e que, claro, desemboca no consumo, vêm à tona nas classes C, D e E, mas para dar uma redefinida nesses padrões de consumo, inclusive de consumo de cultura. MARCELO PEDROSO Sempre fui muito preocupado com a noção de Brasil mesmo, sabe? De entender mais o Brasil, implicado por esse debate. O que aconteceu no Brasil S/A, para mim, é símbolo e tem a ver com essa ideia de cinema pernambucano. Tem uma cena do filme em que uma bandeira é hasteada em uma grua de prédio. E, durante o roteiro, eu ficava muito em dúvida, se ia colocar uma bandeira de Pernambuco, uma bandeira do Brasil ou uma bandeira que não fosse de lugar nenhum. Durante algum tempo, eu estava mais inclinado a colocar a bandeira de Pernambuco, e acho que isso dá muito sentido ao filme, àquela imagem. Na reta final, mudei de ideia e decidi colocar uma bandeira do Brasil com uma intervenção nela. Mas eu fiquei pensando depois sobre o que representava esse gesto, e que eu acho que tem muito a ver com a ideia de cinema pernambucano. Nosso território, geograficamente delimitado, o Nordeste, sempre foi um lugar de produção de imagens por pessoas que vinham de fora para fazer aquelas imagens. A gente sempre foi esse Nordeste, certamente estigmatizado por pobreza, certa miserabilidade, região periférica, lugar de atraso, uma coisa mais arcaica e tal. O fato de ter escolhido botar uma bandeira do Brasil nessa grua, como se fosse um ponto culminante da cidade, um lugar de “chegamos e fincamos a bandeira”, como se fosse uma conquista espacial, significava para mim que esse lugar, que sempre foi um lugar periférico, estigmatizado por essas narrativas de pessoas que vinham de fora para falar daquele lugar como se ele fosse um apêndice do Brasil, poderia passar a figurar não mais como esse espaço necessariamente periférico. E é isso que o cinema pernambucano tem feito ao longo desses 10 ou 15 anos a que você se referiu: não é o Brasil falando do Nordeste como um lugar separado, a gente já está invertendo um

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pouco o lugar, por conseguir inscrever nacionalmente narrativas que dão conta do Nordeste, de Pernambuco, sempre um espaço subalterno, mas ocupando um lugar de protagonismo, sabe? Então, acho que o cinema pernambucano está operando essa virada. Tem também um arranjo produtivo que é algo muito próprio daqui – que tem em outros lugares também, mas que aqui a gente vivencia com muita intensidade. Quando faltava grana, e realmente houve uma época em que faltava, era preciso tirar leite de pedra para viabilizar um filme, as pessoas se engajavam de forma muito passional. Quer dizer, o que lhe movia a fazer o filme não era a grana que você ia ganhar para fazê-lo, porque muitas vezes era muito pequena, até hoje ainda é muito pequena, mas era um desejo de fazer o filme, um desejo de partilha e tal. Isso também é uma coisa muito forte, ainda hoje, no cinema pernambucano, quando está passando por um momento de profissionalização. LUCIANA VERAS O cinema pernambucano recorrente, mesmo o mais veterano, é reverenciado nos festivais, sempre premiado, aclamado pelo público e pela crítica. No entanto, os filmes sempre chegam aqui com atraso. O filme de Renata vai estrear em janeiro (este mês), mas passou aqui em outubro de 2013. Ou seja, festivais versus exibição. ANGELA PRYSTHON Eu penso justamente na necessidade de a gente fazer um outro caminho para a classe cinematográfica, de tentar investir em projetos de distribuição e exibição. Fiquei pensando no projeto do filme Rio Doce/CDU, da Adelina Pontual, que foi muito interessante. Ela foi construindo um circuito do próprio trajeto do ônibus com exibições de filme. Então acho que a gente precisa pensar nisso, que a ideia de público não é só o público pagante, e investir em projetos que incentivem mais isso. Porque parece que acaba aí. Você consegue o dinheiro para financiar a produção do filme, e não é só isso. CAMILO CAVALCANTE Eu tenho um programa chamado Cinema voltante, lá do Sertão. A gente vai para a quarta edição agora, passando nos pequenos municípios com projetor, caixa, instalações e com curtas-metragens bacanas, como Muro. O projeto é

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“Nessa segregação social cada vez mais forte, a grande população acha caro ir a um cinema” Renata Pinheiro

AMOR, PLÁSTICO E BARULHO O filme de Renata Pinheiro teve um orçamento enxuto. Foram gastos 600 mil para filmar, totalizando R$ 1,2 milhão com o lançamento

financiado pelo Funcultura, então a gente chega lá com a divulgação, programação, a exibição e só quer o apoio da prefeitura para divulgar. Levamos até o texto para o carro de som, cartaz e tudo, e pedimos para que eles liberem seus alunos e cedam um espaço para nós montarmos nosso equipamento. E o que é que acontece? O resultado depende muito do envolvimento da prefeitura, obviamente, mas a gente já teve sessões com 900 pessoas, 600 pessoas, então há, sim, um interesse. E por mais que as pessoas estranhem, a gente sempre faz debate depois das sessões, discutindo os temas, os filmes. Aos poucos, para as pessoas que não estão acostumadas com aquela estética de documentário, ficção, animação, pode fazer o cara que nunca viu um filme com aquele tipo de narrativa descobrir um novo mundo, uma nova possibilidade de televisão. Pode até torná-lo crítico em relação ao que ele assiste na televisão. E tem muitos

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projetos, nesse sentido, circulando os interiores por aí. ANGELA PRYSTHON Mas eu acho também que a gente precisa de uma educação audiovisual, que valorize o cinema brasileiro, que valorize o cinema americano etc. Uma das coisas que faltam nessa cadeia produtiva é esse momento de como divulgar esses filmes. E é uma briga muito feia, muito difícil com publicidade, com as distribuidoras. Por exemplo, podia-se pensar em projetos de ter uma disciplina sobre audiovisual, que envolva o cinema brasileiro. RENATA PINHEIRO A gente pode colaborar com essas mudanças, mas é uma coisa que tem que vir de cima, do governo. O que eu quero dizer é o seguinte: isso também reflete o que somos e que tipo de sociedade nós somos. A gente vive num capitalismo selvagem no Brasil. Tem uma diferença de classes sociais muito grande. Nessa coisa do consumo e dessa segregação cada vez mais forte, a grande população acha

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Conversa caro ir a um cinema ou se intimida demais de ir a um shopping. CAMILO CAVALCANTE Ia ser uma ideia muito boa – como meu produtor estava conversando – de fazer cinemas universitários, porque o universitário é o público que vai ver o cinema brasileiro. Fazer sessões baratas, a preços acessíveis, dentro das universidades. Outra coisa são os próprios cineclubes, mesmo, que ganharam uma força de uns anos pra cá. Praticamente, toda região do país tem cineclubes e é uma forma muito interessante para difundir os filmes. Existe um problema do público de cinema, que vai às salas dos shoppings assistir à televisão no cinema. Basta olhar as bilheterias dos filmes nacionais e internacionais e ver quem está dando dinheiro. MARCELO PEDROSO Eu acho que a gente já resolveu o problema em

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termos de produção com as políticas que foram desenvolvidas nos últimos 10 anos para viabilizar a produção. A grande questão é como a gente vai se unir, da mesma forma como a gente se uniu para pressionar pela produção, em favor de um projeto para viabilizar essa distribuição. Essa ideia das escolas é sensacional. Existem algumas iniciativas. Por exemplo, Cristovam Buarque tem um projeto aprovado, já, que institui a obrigatoriedade de passar filmes brasileiros nas escolas uma vez por mês ou uma vez a cada 15 dias, não sei exatamente, mas os filmes têm que ser exibidos. Então, isso é uma coisa que abre um debate muito amplo. Primeiro, a gente tem que ter cuidado para não transformar o cinema no que são os livros, que são uma coisa que você é obrigado a ler. ADRIANA DÓRIA MATOS Mas sabe o que é? Isso fez com que muitos pernambucanos lessem Raimundo Carreiro, João Cabral de Melo Neto, Gilvan Lemos, Ariano Suassuna… MARCELO PEDROSO Mas eu não falo só de filme ou de literatura. Acho que a pedagogia tem que levar em

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O HOMEM DAS MULTIDÕES Rodada com R$ 1,8 milhão, produção da REC, codirigida por Marcelo Gomes e Cao Guimarães, foi lançada em 2014

conta o prazer. Se a pedagogia levar e empurrar, vai traumatizar e aí nunca mais. Eu acho que o mais legal era que, mais que uma disciplina, um filme que você tem que ver, você tivesse cineclubes operantes nas escolas. Porque o cineclube é um catalisador de acontecimentos, muito mais que um professor que vai lá e bota o filme. O cineclube envolve uma mobilização… A gente não pode pensar numa educação estética através de filmes apenas em função da necessidade de escoar os filmes lá, porque a gente não tem público etc. Essa formação está ligada a uma formação na sociedade contemporânea, a uma educação audiovisual presente em tudo, porque o audiovisual está em tudo: na televisão, no seu celular, no computador. Você está bombardeado por imagem e precisa ter alguma ferramenta para decodificar essas imagens. E quanto a isso do vir de cima, tem que passar pela requalificação da televisão.

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vêm da classe média, são pessoas com nível universitário… fico tentando especificar qual seria o nosso lugar. E, por último, é um grupo formado majoritariamente por homens. E você é mulher e coloca o feminino em pauta. ANGELA PRYSTHON Eu queria dizer que essa origem da classe média não é só do cinema pernambucano, é do cinema brasileiro, Marcelo. Fiquei lembrando um texto de Paulo Emílio Salles Gomes, da década de 1970, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, que ainda é muito preciso com relação a essa ideia de falar do cinema como um cinema que é feito sobre o povo.

“A próxima batalha é a do conteúdo qualificado, que foi uma conquista para a TV por assinatura” João Vieira Júnior Enquanto a Rede Globo continuar… Enquanto a referência de dramaturgia do povo brasileiro for a telenovela, ele vai continuar indo ao cinema querendo ver telenovela. Se ele não tiver uma possibilidade de fruir uma dimensão estética diferente daquilo, então só vai, claro, gostar daquilo. JOÃO VIEIRA JR. Eu acho que a próxima batalha, muito necessária aos cineastas e aos produtores de conteúdos para televisão, é a do conteúdo qualificado, que foi uma conquista para a TV por assinatura. Que agora seja direcionada à TV aberta. Porque, no caso da Globo, ela transmite e ela produz. Tem controle total sobre o conteúdo. MARCELO PEDROSO Renata, uma coisa que você falou no começo, que me chama também a atenção, quando se começa a refletir sobre cinema pernambucano, é que a gente observa as questões estéticas, as singularidades, a diversidade e tal, mas eu acho que tem uma coisa que é comum, que une até as gerações, que é uma origem da classe média. Todos os realizadores

ADRIANA DÓRIA MATOS Com relação a essa história de classe, na verdade, quem produz cultura maciçamente no Brasil são pessoas oriundas da classe média. Se você vir o próprio jornalismo… Quem faz jornalismo? Cinema? Literatura? JOÃO VIEIRA JR. Tem a ver com o acesso aos bens culturais. CAMILO CAVALCANTE Na música nem tanto, talvez. ANGELA PRYSTHON Acho que é uma coisa tradicional da própria história da música, mas acho que tem mudado um pouco. Mas, no cinema, ainda não mudou. MARCELO PEDROSO Eu fiquei pensando o seguinte: além de se perguntar sobre a natureza do cinema pernambucano, a gente tem que se perguntar porque a gente insiste tanto em se perguntar sobre o cinema pernambucano. E acho que aí tem uma coisa, que é toda uma tradição discursiva de construção simbólica de Pernambuco, do Nordeste, desse lugar tal que a gente precisa reiterar e isso chegou ao cinema pernambucano também, que a gente vem daqui. LUCIANA VERAS Então tem a ver com a nossa megalomania? MARCELO PEDROSO Não, é o contrário, tem a ver com uma certa síndrome de marginalidade. RENATA PINHEIRO E o Recife foi, durante muito tempo, a capital do Nordeste, a mais cosmopolita.

ANGELA PRYSTHON Por isso que, de certo modo, pode não ser tão produtivo ficar falando nisso. Acho que o próprio fato de haver um boom nacional em relação ao cinema pernambucano, sobretudo no que diz respeito aos festivais e à crítica, na verdade, traz uma responsabilidade muito maior para vocês e para nós também. Porque a discussão, toda a polêmica que surgiu em relação ao curso de cinema, em outubro, diz respeito a isso, a uma maior responsabilidade na formação de profissionais. Há uma cobrança maior. Vocês vão ser muito mais cobrados. CAMILO CAVALCANTE Começar a encaixotar as coisas é muito complicado. O que está acontecendo agora são pessoas fazendo filmes, com estrutura para fazê-los. Que pensam diferente, que vivem na mesma cidade, sob a mesma luz, sob o mesmo sol, sob os mesmos problemas e sob a mesma alegria, também, que o pernambucano também é um povo muito interessante, que é capaz de rir da sua própria tragédia. São poucos os povos que têm essa capacidade de ver o mundo se acabando, o sangue escorrendo, e as pessoas bebendo e rindo. Acho que a definição que Marcelo Gomes dá, que é um pernambucano que faz cinema, é isso. Daqui a pouco, um pernambucano pode estar fazendo um filme no Irã, na Alemanha, no quinto dos infernos. JOÃO VIEIRA JR. Está certíssimo. Agora veja que coisa linda. São três diretores aqui: Renata, com Amor, plástico e barulho, saindo dos festivais para ser lançado em janeiro; Camilo, com o premiado A história da eternidade, que é um belo filme; e tem o Brasil S/A, de Pedroso, também para ser lançado. O que eu acho bacana é observar a construção das suas trajetórias. Somente nessa mesa, há três diretores com filmes para serem lançados, fortes, potentes, muito diferentes entre si, e todos propõem reflexões que são importantes para nossa contemporaneidade e para nosso modelo de produção. MARCELO PEDROSO E tem uma galera nova que está começando a fazer os filmes na faculdade, ou fora dela... Quer dizer, o que eles vão fazer? Qual desejo que os move?

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