Continente #173 - Como se constrói hoje?

Page 1

www.revistacontinente.com.br

# 173

Digitalização de documentos com qualidade e segurança A Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, reconhecida pela qualidade gráfica e editorial de seus produtos, oferece serviços de digitalização de documentos administrativos e históricos, de qualquer época, tipo e tamanho. A tecnologia utilizada no processo se baseia no conceito de Bibliotecas Virtuais Inteligentes. Ela permite a localização de palavraschaves no corpo do texto, além de possibilitar a inserção de informações relacionadas ao conteúdo, como classificação e descrição catalográfica. A digitalização da Cepe utiliza scanners de alta tecnologia, de modo a conferir a melhor qualidade às imagens capturadas.

#173 ano XV • mai/15 • R$ 10,00

CONTINENTE

ARQUITETURA EM TEMPOS DE HEGEMONIA DE MERCADO

LUIZ FELIPE PONDÉ “NÃO LARGUEI A MEDICINA PARA FICAR BRINCANDO COM FILOSOFIA” CONVERSA MÚSICOS DIZEM QUE SHOWS GRATUITOS DE RUA ACABAM COM AS CASAS DE ESPETÁCULOS

MAI 15

Solicite um orçamento pelos telefones (81) 3183.2828 / 3183.2788 / 3183.2709 ou pelo e-mail: cepedigital@cepe.com.br

COMO SE CONSTRÓI HOJE?

E MAIS FASSBINDER | ESTAMPARIA | RUBEM FONSECA | CHURRASCO Capa_estudo 1.indd 1

29/04/2015 17:32:25


POLO AUTOMOTIVO DE PERNAMBUCO

TODO JEEP FEITO EM PERNAMBUCO TEM MUITO DOS PERNAMBUCANOS. Com muito trabalho e planejamento, o nosso Estado mostrou que sabe fazer. E está

ANDRESSA ARANTES Analista de produção WCM

inaugurando, aqui, um polo automotivo. A fábrica da Jeep traz, junto com ela, uma rede de fornecedores com 16 empresas. Além disso, também, teremos um dos maiores centros de tecnologia automotiva do mundo, estimulando a vocação da nossa gente para a pesquisa e a inovação. O Polo Automotivo de Pernambuco está gerando novas oportunidades para os pernambucanos. Gente que com coragem, talento e força faz o nosso Estado seguir sempre em frente. Conheça a história de Andressa e de outros pernambucanos do Polo Automotivo: www.pe.gov.br

Capa_estudo 1.indd 2

JUNTOS, FAZEMOS MAIS.

29/04/2015 17:32:25


POLO AUTOMOTIVO DE PERNAMBUCO

ANDRESSA ARANTES Analista de produção WCM

JUNTOS, FAZEMOS MAIS.

1_anuncio_MAI.indd 1

27/04/2015 17:08:01


2_anuncio_MAI.indd 2

28/04/2015 14:32:27


MAIO 2015

MUSEU DE ARTE DE ASPEN, PROJETO DE SHIGERU BAN/ DIVULGAÇÃO

aos leitores

Parece que vivemos uma era de apagamentos. Tantas camadas de tudo – arquivos, informações, opiniões, apropriações, compartilhamentos – diluem a percepção, dispersam atenção e compreensão. Do ponto de vista da arte, dispersam-se também referências e centralidades, pontos de apoio que estavam aí há tempos. Se, por um lado, há uma saudável quebra de hegemonias e hierarquias – pela propalada horizontalidade dos meios –, por outro, ficamos por ali na boia, olhando a imensa superfície cambiante e instável. Embora não colocado como acima exposto, o sentimento que se depreende dos depoimentos dados por arquitetos à jornalista Luciana Veras para nossa matéria de capa desta edição é o da perda de centralidade da arquitetura no discurso urbano. E esse “apagamento” do trabalho do arquiteto é motivado, sobretudo, pelo embate desigual que ele trava com o mercado imobiliário, que define muito mais as regras do jogo que qualquer profissional do ramo. “O arquiteto fica preso a um comportamento industrial de produção e vai sendo minado nas suas aspirações plásticas. Fazemos um esforço brutal para inserir o projeto dentro de uma malha urbana e dar um ganho ao sítio onde está localizado e temos, nisso tudo, a dificuldade de fazer poesia, de escrever a

Editorial_MAI.indd 1

poética dentro da arquitetura. Na essência, a arquitetura é arte de uma complexidade brutal”, diz o veterano Carlos Fernando Pontual. De sua parte, afirma Guilherme Wisnik: “Em certo momento histórico, os arquitetos deixaram de ser importantes na construção das cidades brasileiras. Veja o paradoxo: o Brasil é o único país do mundo que construiu uma capital moderna, uma cidade inteira do zero, e naquele momento tinha arquitetura e urbanismo considerados exemplares”. Mas constatações como essas não significam desistência. Mesmo diante das pressões de mercado e da complexidade de projetar e construir em situações adversas, os arquitetos buscam alternativas, e pensam seu labor dentro de paradigmas contemporâneos, que desbloqueiem limitações e discutam o status quo. Nesse cenário, surgem práticas de diálogo com o ambiente e a sociedade, em projetos assinados tanto por arquitetos grife (que balizam a percepção pública sobre a estética arquitetural de hoje) quanto por escritórios de pequeno porte e profissionais independentes (que levam esses arejamentos para o cotidiano urbano). Foi justamente na busca de respostas para as questões prementes desses profissionais que lhes perguntamos: como se constrói hoje?

24/04/2015 13:46:05


sumário Portfólio

Daaniel Araújo 6

Cartas

7

Expediente + colaboradores

8

Entrevista

14

22

39

42

Luiz Felipe Pondé Polemista, o professor e colunista da Folha de S.Paulo conta como se tornou um filósofo pop

57

Palco

60

Entremez

62

Leitura

66

Matéria corrida

76

Sonoras

88

Criaturas

Conexão

BOMB Magazine Publicação disponibiliza vasto conteúdo online, incluindo conversas entre artistas de distintas áreas

Balaio

Rubem Fonseca O dono de uma literatura direta e urbana entra na casa dos 90

Perfil

Luciano Pontes Tudo começou nas brincadeiras domésticas, para esse escritor que desenha, pinta e encena

Balé Popular do Recife Espetáculo Nordeste: a dança do Brasil leva o grupo a circular pelo país

Numa relação de diálogo bem-humorado e sarcástico com a cidade, artista leva às ruas obra com discurso poético e social na forma de pinturas e grafites

16

Ronaldo Correia de Brito O dia do caçador

Autoras Memória e corpo é o binômio que une os romances de Lina Meruane e Inês Bortagaray

José Cláudio O pouco e o muito

Robertinho de Recife Após grave problema de saúde, guitarrista volta ao heavy metal

Rubem Fonseca Por Gentil

Pernambucanas

Nossa Senhora da Conceição dos Militares O barroco espetacular de uma pequena igreja que se esconde entre o casario da Rua Nova, no Recife

Claquete

Rainer Werner Fassbinder Cineasta alemão, que completaria 70 anos este mês, pode ser considerado o intérprete visual da Alemanha do século 20, da República de Weimar ao terrorismo

52 CAPA FOTO Vitra Haus, de Herzog & De Meuron, Weil am Rhein, Alemanha Latinstock/© Edmund Sumner/VIEW/Corbis/Terra by Corbis

CONTINENTE MAIO 2015 | 4

Sumario_MAI.indd 4

24/04/2015 13:56:29


Capa

Cardápio

Neste terceiro milênio, o pensamento arquitetônico busca o estabelecimento de um vínculo entre a construção, o uso que dela fazem seus ocupantes e a cidade

Escolha de nove entre 10 brasileiros, a carne na brasa ganha novos cortes, com o tapa de cuadril, o bife ancho e o chorizo, desbancando a tradicional picanha

Visuais

Conversa

Geração de pernambucanos se destaca na produção de design para superfícies, com produções inspiradas na tradição, na observação da natureza e no cotidiano

Profissionais da área destacam a especialização do setor, mas afirmam que a música deixou de ser um elemento central para as novas gerações

Arquitetura

24

Estamparia

68

Churrasco

46

Mai’ 15

Música

80

CONTINENTE MAIO 2015 | 5

Sumario_MAI.indd 5

24/04/2015 13:56:30


cartas REPRODUÇÃO

SEXUALIDADE Cumprimentamos a equipe da Continente por abordar e visibilizar, de maneira sensível e inteligente, a questão da diversidade de gênero e sexualidade (fevereiro, nº 170). Ao elevar o padrão do debate, a publicação do estado de Pernambuco presta valiosa contribuição à luta por liberdades fundamentais. Trata de como os vários campos da arte mexem com percepções e sensibilidades sobre a população LGBT, questionando o dogma da

heteronormatividade. As igrejas inclusivas, comunidades religiosas que acolhem as (os) LGBTs, não ficaram de fora. A revista cuidou dos desafios enfrentados e das violências sofridas pelas pessoas que não se encaixam em padrões hegemônicos de feminilidade e masculinidade. O rico trabalho feito pela Continente denuncia desde as opressões mais cotidianas, baseadas nos papéis de gênero, até as desigualdades no mundo do trabalho e as agressões físicas e psicológicas que vitimam um número preocupante de pessoas em virtude de homo-lesbotransfobia. Nessa seara, a revista trouxe importantes contribuições ao debate sobre a pertinência da criminalização da LGBTfobia. Por isso, parabenizamos e agradecemos à revista e à Cepe Editora.

debate recente sobre como a sexualidade é mostrada, hoje, no jornalismo. A edição de fevereiro da Continente foi apresentada pelos pesquisadores e pelos alunos como a melhor produção sobre o tema. PHELIPE RODRIGUES RECIFE – PE

Baixei as duas edições e, já na primeira olhada, achei tudo muito legal. A revista já é maravilhosa e agora ficou mais acessível. Forma e conteúdo excepcionais. Vida longa à Continente! LUCIANA CALHEIROS RECIFE – PE

Acabo de baixar as edições da Continente digital e o aplicativo – o arquivo da revista está excelente. Parabéns a todos pelo ótimo trabalho! CRISTHIANO AGUIAR SÃO PAULO – SP

CONTINENTE DIGITAL Parabéns a toda a equipe pela edição digital e pelo trabalho na revista impressa. Estive em um

O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

EDILSON SILVA – DEP. ESTADUAL RECIFE – PE

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE

Que excelente notícia! Adoro versões digitais e sentia falta de ter a Continente ao alcance de um toque, na telinha do meu tablet. ISABELLE COSTA LIMA

Fax

(81) 3183 2783

Email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

revistacontinente.com.br

RECIFE – PE

CONTINENTE MAIO 2015 | 6

Cartas_Colab_MAI.indd 6

24/04/2015 13:57:29


colaboradores

Geisa Agrício

Josias Teófilo

Marcelo Abreu

Marina Suassuna

Jornalista, trabalha com marketing e tecnologia. É autora do blog Jogo da Amarelinha

Jornalista, mestre em Filosofia pela UnB e autor do livro O cinema sonhado

Jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder

Jornalista, cursando especialização em Estudos Cinematográficos na Unicap

E MAIS Alcione Ferreira, fotógrafa. Clarissa Macau, jornalista. Eduardo Sena, jornalista. Germano Rabello, jornalista, desenhista e músico. Isabelle Câmara, jornalista. João Alberto Gentil, ilustrador, caricaturista, cartunista, artista gráfico e visual. Pedro Valadares, fotógrafo.

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO

CONTINENTE ONLINE

ATENDIMENTO AO ASSINANTE

GOVERNADOR

Adriana Dória Matos

Olivia de Souza (jornalista)

0800 081 1201

Paulo Henrique Saraiva Câmara

SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Luiz Arrais

Fone/fax: (81) 3183.2750 CONTATOS COM A REDAÇÃO

Antônio Carlos Figueira

assinaturas@revistacontinente.com.br

(81) 3183.2780 REDAÇÃO

Fax: (81) 3183.2783

EDIÇÃO ELETRÔNICA

COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE

Débora Nascimento e Mariana Oliveira

redacao@revistacontinente.com.br

www.revistacontinente.com.br

PRESIDENTE

(editoras-assistentes), Luciana Veras

Ricardo Leitão

(repórter especial)

PRODUÇÃO GRÁFICA

DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO

Maria Helena Pôrto (revisora)

Júlio Gonçalves

Ricardo Melo

Fernando Athayde, Laís Araújo e Priscilla

Eliseu Souza

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO

Campos (estagiários)

Sóstenes Fernandes

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE

Bráulio Mendonça Meneses

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

CONSELHO EDITORIAL:

PUBLICIDADE E MARKETING

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO

Everardo Norões (presidente)

ARTE

E CIRCULAÇÃO

E PARQUE GRÁFICO

Lourival Holanda

Janio Santos e Karina Freitas (paginação)

Daniela Brayner

Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro

Nelly Medeiros de Carvalho

Agelson Soares e Pedro Ferraz

Gilberto Silva

Recife/Pernambuco

Pedro Américo de Farias

(tratamento de imagem)

Rafael Lins

CEP: 50100-140

Tarcísio Pereira

Joselma Firmino de Souza

Rosana Galvão

Fone: 3183.2700

(supervisão de diagramação e ilustração)

Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

CONTINENTE MAIO 2015 | 7

Cartas_Colab_MAI.indd 7

24/04/2015 13:57:30


LUIZ FELIPE PONDÉ

“Eu sou um traidor de classe” Filósofo best-seller e professor da PUC fala sobre sua origem pernambucana, critica o meio acadêmico, a esquerda, os liberais e defende seu estilo provocador TEXTO Marcelo Abreu

CON TI NEN TE

Entrevista

É longa a lista de alvos preferenciais da metralhadora bemcalibrada do filósofo Luiz Felipe Pondé: a secularização do cotidiano, o consumismo, o pensamento marxista e suas variantes, o feminismo, os departamentos de ciências humanas das universidades, a busca da juventude, a crença no poder das redes sociais. Ele critica também o que chama de “infantilização compulsória”, “materialismo hedonista”, “narcisismo estéril”, “gente inteligentinha”, “individualismo histérico” e época da “tagarelice total”. Pondé não tem medo de desagradar e adora uma boa briga intelectual. Nos últimos 10 anos, seu estilo desafiador rompeu a barreira da academia e tem estado presente nos livros e na imprensa – sobretudo na coluna semanal publicada na Folha de S.Paulo e nas participações televisivas no Jornal da Cultura. Luiz Felipe Pondé nasceu no Recife, em 1959, passou a adolescência em Salvador e formouse em Filosofia em São Paulo. Fez

doutorado em Paris e pós-doutorado em Tel Aviv. Estudou com afinco o pensamento de Santo Agostinho e de Blaise Pascal. Com eles, desenvolveu sua visão sobre a falível natureza humana. Misturou tudo com a angústia de Dostoiévski e o ceticismo de Nietzsche e estava pronta sua visão pessimista do homem. Visão que ele expõe de forma provocadora, chamando os adversários para a briga em textos límpidos e divertidos. Pondé é autor de livros como o best-seller Guia politicamente incorreto da filosofia, um ensaio venenoso sobre a onda da correção política que tomou conta do mundo. O texto é uma sucessão de boutades – ao mesmo tempo ousadas, engraçadas e profundas – que têm como alvo o público bem-pensante e os intelectuais. O recente A era do ressentimento é uma coleção de aforismos nos quais ele desanca os costumes ligados às vaidades da sociedade contemporânea. Aos 55 anos, é professor da pósgraduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica

(PUC), e do curso de graduação em Comunicação da Faculdade Álvares Penteado (Faap), ambas em São Paulo. Nesta entrevista, concedida num final de tarde em uma sala de aula vazia na PUC, ele comenta as polêmicas que suas opiniões têm suscitado, critica os intelectuais e o meio acadêmico e fala pela primeira vez com mais detalhes sobre sua origem pernambucana. CONTINENTE Como foi a sua trajetória no Recife e como foi parar em São Paulo? LUIZ FELIPE PONDÉ A família de minha mãe é de São Paulo e a de meu pai é da Bahia. Minha trajetória em Pernambuco foi muito curta, apesar de marcante. Nasci na praia de Piedade e vivi no Recife até os cinco anos de idade. Meu pai era oficial da Aeronáutica, capitão-médico da base aérea. A gente morava em Boa Viagem. Veio o golpe de 64 e meu pai esteve três meses preso porque era comunista, meio ligado ao grupo de Miguel Arraes. Foi posto na reserva. Aí ele arranjou um emprego na Bahia. No tempo em que morei em

CONTINENTE MAIO 2015 | 8

Entrevista_MAI.indd 8

24/04/2015 13:59:43


FOLHA PRESS

CONTINENTE MAIO 2015 | 9

Entrevista_MAI.indd 9

24/04/2015 13:59:44


Salvador, sempre foi dito em casa que eu era pernambucano. E essa identidade era marcada pelo espírito combativo, por dizer o que pensa. Em Salvador, estudei no colégio jesuíta Antonio Vieira, fiz teatro um tempo, a faculdade de Medicina por cinco anos, na Federal da Bahia. Nesse ínterim, fui para Israel, conheci minha mulher em um kibutz, apesar de ela ser de São Paulo. Estava estudando psicanálise para ver se salvava a Medicina, mas aí a psicanálise me deu muita vontade de estudar Filosofia. Quando resolvemos vir para São Paulo, decidi fazer graduação de novo, em Filosofia.

CONTINENTE Entre muitos outros temas polêmicos, você escreveu contra o aborto, de forma bastante enfática e agressiva, num contexto intelectual em que é quase proibido ser contra a legalização. LUIZ FELIPE PONDÉ A primeira vez que escrevi sobre o tema foi no Estadão, um texto grande em que eu já afirmava que não é preciso ser religioso para ser contra. Eu dizia que acho difícil sustentar o aborto sem levar em conta a desumanização do feto e que não precisava ser religioso para defender isso. Falo isso porque

FOTOS: REPRODUÇÃO

CONTINENTE Em 2005, você ganhou uma notoriedade maior na imprensa ao escrever,

conservadora e que era crítico da tentativa de a Igreja assumir opções modernas. O que, depois, acabou levando-o à renúncia.

CON TI NEN TE

CONTINENTE Como encara as reações ao seu discurso expressadas pelas pessoas na rua e pelos colegas professores na universidade? LUIZ FELIPE PONDÉ Sou parado na rua, restaurante, cinema, normalmente por pessoas que me adoram, em 99,9% dos casos. Muita gente não entende o que eu falo, mas na mídia tem muito isso, a pessoa acha que sabe quem você é e o que você pensa. Mas tem gente, claro, que entende o que falo e sabe que não sou reacionário ou a favor da ditadura, essa mentirada que normalmente a esquerda usa para xingar e rebater todo mundo que ela não consegue rebater em repertório. Chegam muitos e-mails

“O que eu queria mostrar é que Ratzinger tinha uma posição bastante conservadora e que era crítico da tentativa da Igreja assumir opções modernas. O que, depois, acabou levando-o à renúncia”

Entrevista de forma aprofundada, sobre a sucessão do papa João Paulo II. Como foi aquela experiência de falar sobre um tema delicado e, em geral, mal-entendido por jornalistas? LUIZ FELIPE PONDÉ O tema é realmente muito mal-entendido por jornalistas, que sofrem de muitos preconceitos em relação a um monte de coisas, justamente pela formação. O que aconteceu em 2005 é que eu conhecia a obra do cardeal Joseph Ratzinger por ele ter sido muito influenciado por Santo Agostinho e ninguém o conhecia ainda no Brasil. Na época, o que eu queria mostrar é que Ratzinger não acreditava em soluções modernas para problemas modernos. Que ele tinha uma posição bastante

porque não consigo lidar com a ideia de que o feto não seja gente.

não sou religioso. Acho muito engraçado que um dos preconceitos típicos de baixo repertório é dividir o mundo de forma dicotômica: “Você fala isso, então você é religioso”. Esse artigo ao qual você se refere era um texto da Folha de S.Paulo em que eu começava dizendo: “Tenho phD, pós-doutorado, dou aula, falo várias línguas, sou contra o aborto. Vai encarar?”. Eu estava chamando para a briga a posição dicotômica. O fato de ser contra não significa que eu não ache que, em determinadas situações, alguém possa fazer o aborto, inclusive sendo ilegal, por alguma razão desesperada. Mas ainda não me convencem argumentos como saúde pública

a favor e contra. Agora, na academia, a situação é bastante difícil, porque a maior parte dos colegas é de esquerda e eu por natureza falo o que penso, não consigo dizer o que eu não penso. Essa é uma das causas principais do impacto que tive na mídia. Não larguei a Medicina para ficar brincando com Filosofia. Desde que estava no primeiro ano de Filosofia, pegava a Ilustrada e dizia: “Eu quero escrever aqui”. Tinha intenção de fazer filosofia não só na universidade. Agora, a universidade sofre muito com pouco dinheiro, pouco espaço, acaba sendo um monte de lobos se matando por causa de pouca carne. Uma das coisas principais é a inveja. Nós temos um sonho de que pensamos e

CONTINENTE MAIO 2015 | 10

Entrevista_MAI.indd 10

24/04/2015 13:59:44


discutimos coisas importantes com um grande número de pessoas, mas, na maior parte do tempo, acabamos simplesmente dando aula para alunos preocupados em cumprir tabela, garantir a carreira. O que acontece é que sou uma espécie de traidor de classe. Digo exatamente o que penso sobre qualquer coisa que me interessar. Não porque eu seja uma pessoa excepcionalmente corajosa. É assim que eu sou. Se não fosse assim, estaria sendo médico e seria muito mais rico (risos). CONTINENTE O seu estilo polêmico – desafiando o leitor para a briga, sarcástico, agressivo – é proposital, ou você é assim em outras situações?

CONTINENTE No livro Guia politicamente incorreto da filosofia há uns trechos bem duros com os colegas de academia. LUIZ FELIPE PONDÉ Isso é uma questão já muito antiga. Existem colegas com quem não tenho nenhum confronto, faço parte de grupos de trabalho de Filosofia da Religião, tenho amigos. Mas é importante dizer isso: comecei a ter confronto muito antes de ficar famoso na mídia, porque tinha muito aluno na aula e atraía muito orientando, e gostava de dar aula. Sempre fui um pouco negligente com demandas burocráticas, não tenho paciência com isso. Quando voltei do pós-doutorado em Tel Aviv, em 2001, comecei a ter

“Quando voltei do pós-doutorado em Tel Aviv, em 2001, comecei a ter problemas na academia com alguns colegas. E só fui assinar a coluna na Folha em 2008. Foi a partir daí que eu virei ‘filósofo pop’ ” LUIZ FELIPE PONDÉ Às vezes, uso outro tipo de linguagem. Não sou assim toda hora, mas sou assim profissionalmente, quase o tempo todo. Minha linguagem de confronto é quando sei que estou discutindo com o que chamo de “inteligentinhos”. Aquele grupo de pessoas que tem repertório médio, que tem um comportamento totalmente mercantilizado com seu trabalho, finge que não tem, e que leu dois livros e nunca mais leu nada que pusesse em dúvida o que leu nos dois livros. A pessoa que tem a favor dela o fato de que tem as opiniões “certas”. Ela tem um pacote de “opiniões certas”. Quando estou confrontando isso, o tom de minha discussão sobe.

problemas na academia com alguns colegas. E só fui assinar a coluna na Folha em 2008. Foi a partir daí que eu virei “filósofo pop”. CONTINENTE Gosta do rótulo? LUIZ FELIPE PONDÉ Não me importo. Em alguma dimensão sou um filósofo pop. Acho isso ótimo. E é uma das coisas que enchem o saco de alguns colegas meus porque eu, de fato, hoje em dia, não estou preocupado com que achem que sou isso ou aquilo. Sou muito fiel ao que sou em termos de pensamento (risos). CONTINENTE A partir de que ponto uma pessoa formada em Filosofia pode ser considerada um filósofo?

LUIZ FELIPE PONDÉ Acho que, primeiro, quando você começa a produzir conceitos que são mais ou menos originais. A gente nunca tem conceitos completamente originais em filosofia nem em coisa nenhuma. Estamos sempre aprendendo com a tradição anterior, com quem está do lado, com as leituras. Mas aí você começa a produzir algumas sínteses e conceitos que não têm em outro lugar. Por outro lado, quando você começa a falar alguma coisa que responde aos anseios de pessoas com quem vive. Daí minha preocupação em estar na mídia, falar com gente comum, ou seja, ser capaz de responder a questões que as pessoas têm no dia a dia. A filosofia também tem de fazer essa coisa. E quando você começa a servir de objeto de estudo para outras pessoas, isso é um indício de que começa a falar coisas, para além de ser unicamente um reprodutor daquilo que leu. CONTINENTE Dizer que alguém é de direita no Brasil soa como uma acusação. Ninguém assume o termo. Afinal, qual a sua relação com as ideias de direita? LUIZ FELIPE PONDÉ Uso a palavra no sentido de direita liberal, que não é o papo de ditadura militar. Só que, historicamente, a gente acabou associando, no Brasil, ditadura à direita, porque a ditadura, no cenário de Guerra Fria, representava os interesses americanos. Mas a ditadura brasileira foi desenvolvimentista, intervencionista, muito distante da ideia da direita liberal. Nada a ver com isso. Agora, minha relação com a direita liberal é um pouco controversa. Está claro que sou antissocialista, defensor da propriedade privada e da sociedade de mercado. É o único sistema que produz alguma riqueza. Mas, ao mesmo tempo, vai ficando mais claro para mim que existem certos estremecimentos no meu pensamento que são românticos, tecnicamente falando. Então, reconheço claramente efeitos colaterais desgraçados na sociedade de mercado. E isso me põe um pouco distante do liberalismo otimista, de que a direita normalmente gosta, de que se reduzir o Estado e soltar o mercado tudo fica ótimo. Muitos elementos da direita me olham com desconfiança porque

CONTINENTE MAIO 2015 | 11

Entrevista_MAI.indd 11

24/04/2015 13:59:44


LUIZ FELIPE PONDÉ Pelo menos no meu caso, não acho que o homem é ruim. No artigo A formação de um pessimista, vou mostrando os autores que marcaram a minha concepção de mundo. Entre eles, estão Pascal e Agostinho. Acho que o ser humano tem determinadas contradições e não acho que são as instituições que as causam, as instituições são frutos das contradições. O Estado, quando começa a querer legislar sobre o ser humano, pelo menos a história mostrou até hoje, ele só fez coisa ruim. O economista norte-americano Thomas Sowell usa a expressão “visão trágica”. Eu me identifico como trágico naquele artigo. Significa o seguinte: o ser humano tem contradições e ambivalências. E

FOTOS: REPRODUÇÃO

defendo a sociedade de mercado, mas, ao mesmo tempo, tiro sarro de um certo ressentimento mimado que o capitalismo produziu. Todo mundo acha que tem direito a isso, a aquilo. Penso, por exemplo, que a sociedade contemporânea vai levar a uma catástrofe, vai explodir os recursos, não porque eu seja um cara que abraça árvore, mas porque acho que o desejo humano é insustentável. A gente quer consumir como norte-americano e ter segurança como um sueco. O meu problema é que não acho que a esquerda é solução. Pelo contrário, ela atrapalha porque fica ali no caminho da roça de Marx e de Foucault, a ideia de oprimido e opressor. E, do ponto de vista institucional, ela é supercanalha,

CON TI NEN TE

CONTINENTE Uma coisa que intriga no chamado pensamento conservador, expresso, por exemplo, no seu artigo no livro Por que virei à direita, é a ideia de que o ser humano é ruim em essência e o Estado não deve fazer nada para tentar melhorar seu comportamento. Então, o que se pode fazer?

CONTINENTE Você não acha que o Estado tem um papel de coibir, por exemplo, propaganda de bebida alcoólica em programas infantis ou propaganda de cigarro? LUIZ FELIPE PONDÉ Acho que o Estado quer definir tudo na nossa vida e ele cresce na medida em que a família encolhe. Não é à toa que o Estado vai se agigantando à medida que as famílias vão sendo destroçadas. É interessante como fazemos, nas Ciências Humanas e na Filosofia, uma demolição da família, no mínimo há 40 anos. Arrebentamos teoricamente com a família dizendo que ela é patriarcal, autoritária, que os pais não sabem

“Tiro sarro de um certo ressentimento mimado que o capitalismo produziu. Todo mundo acha que tem direito a isso, a aquilo. A sociedade atual vai levar a uma catástrofe, vai explodir os recursos”

Entrevista domina a universidade, tem poder em redação de jornal. A esquerda perdeu em tudo, mas ganhou na cultura, na América Latina. Ela atrapalha porque oferece utopias. Não adianta dizer que vai criar igualdade no mundo. A igualdade só existe na pobreza. Se botar as pessoas para produzirem, elas vão se diferenciar. Agora, no cenário político atual, não há dúvida de que prefiro que surja um partido mais liberal no Brasil.

o comportamento do que a luta de classe, apesar de eu não ser religioso.

a gente conseguiu, a duras penas, ao longo de milênios, estabelecer algumas soluções para ele. Não acredito que um cara num gabinete, tipo Rousseau ou Marx, tenha resolvido toda a história da humanidade, determinando como o ser humano deve ser. Isso é só vaidade. Não tenho a mínima ideia do que fazer com o ser humano. Acho que qualquer um que diga que sabe é um mentiroso, pelo menos do ponto de vista intelectual. A gente tem que ir com mais calma com o ser humano, principalmente depois do século 20 e de toda a utopia de esquerda realizada. Pelo menos a história comprova que a gente é meio egoísta, meio mentiroso. Acredito que os sete pecados capitais são melhores para analisar

nada, que os filhos devem criticar os pais, filhos de 15, 16 anos. Penso que o Estado tem uma vontade danada de mandar em todo mundo. Não confio nele. Quem disse que tenho de confiar em alguém que fez uma tese de doutorado numa faculdade e virou secretário da Educação ou da Cultura e acha que tem de definir o que eu assisto na TV? É muito difícil discutir com a “teoria dos ungidos”, como diz Thomas Sowell, intelectuais e técnicos que, supostamente, sabem guiar nossa vida. No caso de bebida, é claro que tem de alertar para não guiar se vai para uma festa. Mas não vejo com bons olhos que o Estado comece a querer legislar a relação entre pais e filhos, como a lei da palmada e coisas assim. O fato é que

CONTINENTE MAIO 2015 | 12

Entrevista_MAI.indd 12

24/04/2015 13:59:45


quanto menos se tem família mais se precisa de Estado. Agora, o Estado tem de dar saúde básica, educação básica para todo mundo, fazer estradas etc. CONTINENTE Numa sociedade de massa, saturada pela enganação publicitária, o Estado não deveria ter um papel de defensor, por exemplo, do consumidor? LUIZ FELIPE PONDÉ Não acredito nesse papel, não existe defensor. A propaganda manda você comprar uma coisa, a outra manda você comprar outra coisa; se existe pai e mãe, um deles manda a criança desligar a TV naquele horário. Por que deixam na frente da televisão? Porque estão separados, pai e mãe querem ir para a balada e aí chamam o Estado. Não

LUIZ FELIPE PONDÉ Primeiro, porque as redes sociais dão visibilidade a intelectuais que não têm visibilidade. Isso é para todo mundo, inclusive intelectuais. Por isso, nas redes sociais funciona melhor o linchamento do que qualquer outra coisa, porque dá tesão linchar as pessoas. Depois, vem uma certa ideia de que todo mundo vai se reunir e fazer uma revolução e é o povo. Mas intelectual, normalmente, só gosta do povo que ele tem na cabeça. Quando o povo faz o que ele não gosta, ele diz que o povo é ignorante. Quando tem um grupinho que concorda com ele, diz que esse grupinho é o povo. Quanto à Primavera Árabe, ela foi um surto orgasmático do intelectual ocidental. O Oriente

as redes sociais. Não vejo diferença do fetiche com o iPhone e o fetiche com as redes sociais como motor transformador do mundo. Para mim, são fetiches do mesmo tipo. Não tenho dúvida de que certas estruturas econômicas impactam no modo de pensar do mundo. De tanto brigar com a esquerda para ela me deixar existir, para ela não destruir todos os alunos e deixá-los ler outras coisas, pode parecer, por exemplo, que eu ache que a teoria da mercadoria não seja verdadeira, que eu ache que a razão instrumental não seja verdadeira. Na verdade, grande parte da crítica e da análise da sociedade e do capital é superimportante. Mas a esquerda quer ser mais do que isso, quer dizer

“A Primavera Árabe foi um surto orgasmático do intelectual ocidental. O Oriente Médio é uma região supercomplexa, o Egito voltou a ser o que era, a Síria está destroçada. O ocidente intelectual só atrapalhou a discussão” confio no papel de defensor porque o Estado traz um aporte ideológico. Você se defende da McDonald’s não comprando. Mas como se defender do Estado? Quando ele resolve multar feito um louco, como em São Paulo, o que você faz? Nada, porque o Estado se oferece como um deus. Quanto à publicidade, pode-se desligar a TV. E o Estado? Você não desliga o Estado. Ele vigia você o tempo inteiro. CONTINENTE Por que existe tanto entusiasmo entre os intelectuais em torno das mobilizações por meios eletrônicos, mesmo tendo elas estimulado experiências desastrosas como a chamada Primavera Árabe, a atuação dos black blocks, o terrorismo e o crime em geral?

Médio é uma região supercomplexa, o Egito voltou a ser o que era, a Síria está destroçada. O ocidente intelectual só atrapalhou a discussão da Primavera Árabe. O apoio se insere no frenesi de intelectuais que tomam vinho em Paris e acham que o mundo inteiro cabe lá na taça de vinho deles.

que sabe como resolver isso, o que é mentira. Quer que todo mundo leia o que ela acha que é verdade, o que é autoritário. Ela reduz a bibliografia dos alunos. É muito fácil fazer com que o aluno seja de esquerda, basta dizer que ele não precisa arrumar o quarto, precisa mudar o mundo.

CONTINENTE O culto da tecnologia é hoje uma nova forma de ideologia no sentido marxista da palavra? LUIZ FELIPE PONDÉ No sentido marxista da palavra, eu vou dizer que é uma das formas que a ideologia burguesa assume no seu período tardio. Aquilo que Adorno dizia que a ciência é o fetiche da burguesia, nesse sentido, sim. A mesma coisa com

CONTINENTE Você afirmou que o Facebook é “brega”. Por que usou esse termo exatamente? LUIZ FELIPE PONDÉ Porque ele é uma espécie de fetiche vagabundo. O que eu acho brega é porque o sujeito tira foto de pizza, posta a foto, fala um monte de mentira sobre si mesmo. E brega mesmo é quem acha que o Facebook é revolucionário (risos).

CONTINENTE MAIO 2015 | 13

Entrevista_MAI.indd 13

24/04/2015 13:59:47


O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

ARQUITETURA

CONVERSA

Escolhemos três extras para o site sobre o assunto da nossa capa desta edição. Pedimos ao arquiteto Guilherme Wisnik que liberasse um artigo do hoje esgotado Estado crítico: à deriva nas cidades, para que nossos leitores possam conhecer um pouco de sua escritura. E garimpamos online dois materiais relacionados ao nosso tema: um texto do arquiteto Zeca Brandão sobre o projeto da dupla Herzog & de Meuron para a Tate Modern, publicado no Vitruvius, e o vídeo de palestra do arquiteto holandês Rem Koolhaas na American University of Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, em março deste ano.

Assista no canal da revista no YouTube ao vídeo que registra o debate sobre questões atuais do mercado musical, realizado no Paço do Frevo.

Conexão

SONORAS Escute no site algumas das músicas de MetalMania Back for more, álbum que marca o retorno do produtor e músico Robertinho de Recife ao disco de estúdio.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

ARQUITETURA

POLÍTICA

NARRATIVAS

LEITURAS

Portal reúne artigos, projetos, entrevistas e imagens sobre o tema

Revista discute questões políticas e culturais do universo feminino

Sem fins lucrativos, site investe na divulgação da literatura da era digital

Jornalista espanhola comanda site de textos críticos sobre livros

archdaily.com

revistadr.com.br

electricliterature.com

lecturassumergidas.com

“O maior portal de arquitetura do mundo”, de acordo com o headline do site. Uma ideia fácil de ser comprada, visto que as opções de navegação parecem infinitas: notícias, projetos, entrevistas, artigos. Para os que são da área, um deleite: a seção Softwares, com dicas de vários sistemas operacionais e aplicativos. Destaque para as imagens, sempre convidativas e para a pluralidade de vertentes arquitetônicas apresentadas nos textos. De ideias sobre construções clássicas a sustentabilidade, o site abrange, aparentemente, todas as possibilidades temáticas arquitetônicas.

Publicação voltada para política e cultura feita por mulheres: jornalistas, antropólogas, professoras e fotógrafas. A ideia é não se ater a academicismos e discutir amplamente temáticas públicas. A revista ainda está no seu primeiro número e encontra-se disponível para leitura em formato flip. Na pauta, questões indígenas, tecnológicas, midiáticas e um pouco de filosofia. Um blog está em construção e promete bons debates. Na seção “Galeria”, alguns pôsteres estão acessíveis para download e compartilhamento.

O site foi criado para amplificar processos narrativos na era digital. “Nossa missão é assegurar que a literatura permaneça de maneira vibrante na cultura popular”, afirmam. Contos, resenhas, recomendações de livros e dicas de escrita são algumas opções oferecidas. O espaço possui uma atmosfera de “manifesto” colaborativo –leitores podem enviar doações. Itens personalizados (bolsas, compilações de alguns textos do site, cantis) também estão disponíveis para compra (em dólar).

Criada em fevereiro de 2013, a publicação associa jornalismo à literatura. O site possui um olhar autoral da jornalista espanhola Emma Rodríguez. A proposta é escrever a partir de livres critérios (sem regras ditadas pelo fluxo do mercado, por exemplo) sobre livros que despertem a atenção da editora e de sua equipe. Apesar de uma comunicação visual cansativa, o site vale a leitura – destaque para a seção Reportajes: matérias sobre hábitos de leituras e ensaios são predominantes neste espaço. Em Leyendo con, escritores (em sua maioria, espanhóis) comentam suas preferências literárias.

CONTINENTE MAIO 2015 | 14

Conexao_MAI.indd 14

24/04/2015 14:00:15


blogs CINEMA milosmorpha.com

Além de resenhas sobre filmes em cartaz – do circuito pop ao independente –, o blog traz reflexões que merecem destaque, como o texto sobre a redescoberta do clássico infantil A bela e a fera. Algumas listas temáticas (no estilo buzzfeed, porém, com comentários longos e boas observações do ponto de vista histórico, técnico) também são veiculadas no espaço.

CONTEÚDO DINÂMICO E ESPONTÂNEO

CRÍTICA

Além de ensaios e publicação de trechos de lançamentos, a BOMB Magazine publica conversas entre artistas de todas as áreas

Organizada pelos editores Angélica Freitas, Marília Garcia e Ricardo Domeneck, a Modo de Usar & Co tem como foco a poesia. Escritores – brasileiros, estrangeiros – que abraçaram o gênero e permanecem desconhecidos pelo público são pautas frequentes do blog. Um ótimo envolvimento com os leitores foi construído através da página do site no Facebook. Lá também são compartilhados vídeos e notícias sobre literatura.

revistamododeusar.blogspot.com.br

bombmagazine.org

Desde 1981, a revista BOMB Magazine, localizada em Nova York, conta com

um acervo online importante, além de continuar imprimindo suas edições. Com a ajuda da A.W. Mellon Foundation, cerca de 5 mil documentos foram digitalizados e estão disponíveis gratuitamente no site. Além das entrevistas, o espaço também oferece degustação de lançamentos literários, ensaios e uma série especial chamada BOMB’s Oral Histories Project, na qual o intuito é preservar conversas de artistas africanos que moram na metrópole. A newsletter do site, intitulada BOMB Daily, traz conteúdo exclusivo da edição impressa para seus assinantes. A revista publica conversas entre artistas de todas as áreas.Com um layout simples, convida os leitores para os universos particulares de cada entrevista. Apesar da diagramação manter-se de forma tradicional – com um dos artistas sempre assumindo o papel de “entrevistador” –, o conteúdo das questões é espontâneo e dinâmico. A BOMB oferece uma leitura daquelas que não nos permitem desviar o olhar para o relógio ou para as inúmeras abas abertas em nosso navegador; relação difícil de estabelecer no meio virtual contemporâneo. PRISCILLA CAMPOS

EXPERIMENTAL anarkoartlab.com

Formado por artistas visuais, músicos, dançarinos e poetas, coletivo promove em Nova York performances mensais. A ideia é criar um conceito e torná-lo colaborativo. Todo ano, acontece um festival com os happenings. No site, fotos, vídeos e pôsteres estão disponíveis.

sites sobre

Museus LATINO-AMERICANO

SURREALISMO

ESTADOS UNIDOS

malba.org.ar

daliparis.com

metmuseum.org

Além da programação e informações gerais, o site possui uma coleção online. O catálogo é organizado a partir dos nomes dos artistas em ordem alfabética.

Para fanáticos da obra de Salvador Dalí, o site é uma perdição. Com imagens em alta qualidade, pode-se ter uma ideia aproximada do espaço, em Montmartre, Paris.

O site do The Metropolitn Museum of Art está à altura de sua importância: apresenta seções de interação com os visitantes e uma série de vídeos com artistas veteranos.

CONTINENTE MAIO 2015 | 15

Conexao_MAI.indd 15

24/04/2015 14:00:15


DIVULGAÇÃO

1

Portfolio_MAI.indd 16

Port f 24/04/2015 14:01:31


t f贸lio Portfolio_MAI.indd 17

24/04/2015 14:01:32


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

2

3

CON TI NEN TE

Portfólio

Daaniel Araújo

PROVOCAÇÕES URBANAS, DENÚNCIA E ALEGORIA TEXTO Marina Suassuna

Em tempos de discussão sobre a ressignificação do espaço público e dos

valores que permeiam a convivência humana, trabalhos como os do artista visual pernambucano Daaniel Araújo funcionam como uma injeção de ânimo na construção de uma consciência coletiva. Utilizando superfícies como madeira, jornal, vidro, papelão e, principalmente, o concreto da arquitetura recifense, Daaniel cria, através de pinturas, gravuras, impressões e desenhos, um discurso crítico, quase sempre carregado de humor inteligente em torno de temas políticos e sociais. “Considero-me uma pessoa que vive ativamente a cidade. Ando bastante pelas ruas, gosto de me sentir parte do organismo. Isso me inspira para falar com propriedade sobre o que observo. Muitas vezes me vejo captando algum elemento do inconsciente coletivo e transformando-o em obra de arte”, explica. Quem nunca se deparou, ao transitar pelas ruas do Recife, com a expressão “Amor Livre”, estampada em preto pelos muros, como uma espécie de carimbo? Trata-se de uma série de estêncil – técnica popular de grafitti – desenvolvida por Daaniel Araújo, no início do movimento das ciclofaixas. A intervenção, capaz de provocar reflexões acerca da liberdade de escolha e das identidades sexuais, ganhou repercussão também no mundo virtual, com a frase sendo utilizada como hashtag.

Página anterior 1 AMOR LIVRE

A série de estêncil foi criada quando se iniciou o movimento das ciclofaixas na cidade

Nestas páginas 2-3 RECIFE

A cidade, suas questões políticas e seus problemas são temas frequentes em seus trabalhos

4-7 MATERIAIS Madeira, jornal, vidro, papelão e concreto são utilizados como suporte para as obras

CONTINENTE MAIO 2015 | 18

Portfolio_MAI.indd 18

24/04/2015 14:01:33


4

5

6

7

CONTINENTE MAIO 2015 | 19

Portfolio_MAI.indd 19

24/04/2015 14:01:36


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

8

CON TI NEN TE

Portfólio

Igualmente popular tornou-se a pintura Área sujeita a ataque de barão, arquitetada com o intuito de apoiar o movimento que surgia contra a ideia de grandes empreendimentos em espaços públicos do Recife. O trabalho, que faz um trocadilho com as placas de alerta aos tubarões nas praias da cidade, foi inicialmente pintado num pedaço de madeira encontrado na rua. Em seguida, foi reproduzido em lambe-lambes fixados nos muros do Recife Antigo e dos Cais José Estelita. “Vejo a arte urbana como uma maneira de me colocar à disposição das pessoas que normalmente não frequentam exposições em museus ou galerias”, reflete o artista, que tem participado de mostras coletivas em lugares como a MauMau, o Espaço Peligro e A Casa do Cachorro Preto. “Gosto da ideia de marcar as cidades por onde passo com pequenos fragmentos da minha obra. Isso me

faz lembrar o trabalho dos artistas rupestres, que gravavam ícones do seu tempo sem saber a importância que isso acarretaria para o entendimento das suas sociedades no futuro.” Criada inicialmente como metáfora para o fim de um longo relacionamento amoroso, a tela Foda-se, Recife, você tem fodido meu coração foi assimilada como bandeira de insatisfação com a política implantada na cidade, sendo bastante compartilhada nas redes sociais e também impressa em lambe-lambe. A ideia agregada à obra fez Daaniel perceber que seus estudos sobre design e propaganda, com os quais já andara insatisfeito em termos de mercado, poderiam surtir efeito na arte que produz. “O compromisso de me comunicar com a sociedade é o principal papel da minha arte. Como um grito ou como um sussurro no ouvido. Há uma mensagem ali, códigos que precisam

ser decifrados. Ou, se não, alegorias para enfeitar realidades muitas vezes duras demais”, diz o artista, formado em Design pelo Cefet-PE, em 2005, embora tenha criado afinidade com os ofícios manuais desde os anos 1990, quando morou na Inglaterra e teve a oportunidade de estudar carpintaria, design gráfico e artes. Em abril, Daaniel inaugurou a exposição Pequena reunião, composta por 19 pinturas, no Palafa Clube, no bairro do Espinheiro. Seu trabalho também ilustrou as páginas de publicações como a revista Outros Críticos. Em 2013, foi vencedor do concurso de cartazes do festival Pernambuco Nação Cultural edição Sertão do Moxotó. “Sinto-me livre o bastante para trabalhar estéticas variadas, bem como meios diferentes, por ainda acreditar que sou um artista em construção”, diz Daaniel, que, também em 2014, experimentou a direção de arte para cinema.

CONTINENTE MAIO 2015 | 20

Portfolio_MAI.indd 20

24/04/2015 14:01:37


8 PINTURA Algumas delas foram exibidas na mostra Hiato figurado, realizada em 2014, na Galeria Janete Costa 9 ARTE URBANA Daaniel Araújo acredita que, na rua, se coloca para o público que não frequenta museus

9

CONTINENTE MAIO 2015 | 21

Portfolio_MAI.indd 21

24/04/2015 14:01:39


FOTOS: DIVULGAÇÃO

EX-FUTUROS CLÁSSICOS Todo mundo sabe que perder um smartphone significa deixar uma parcela da vida íntima sujeita à ação do acaso, e que muitos já se deram mal por conta disso. Kirk Hammett, guitarrista da banda de heavy metal Metallica, foi a última vítima famosa a padecer de tal infortúnio. Poderia ter sido a viralização de uma sex tape ou coisa parecida, mas o que aconteceu com o músico norte-americano foi pior: o telefone perdido por Hammett em março continha 250 temas gravados para o próximo disco do Metallica! Sem qualquer backup do material, o guitarrista já resignado declarou que só aceitou o ocorrido após repetir para si várias vezes que aquilo só aconteceu porque a série de composições desaparecidas “não era para ser”. Agora, ele pode se dar conta de que o que “não era pra ser” há muito tempo é a própria Metallica. (Fernando Athayde)

O nonagenário Fonseca Rubem Fonseca também foi tragado pelo tempo. Este mês, faz 90 anos, com velinhas apagadas no dia 11. Você vai ler fácil na internet que Fonseca é “uma pessoa modesta, amável e bem-humorada”. Se ele é assim na vida, na arte, é um dos mais cruéis escritores, daqueles que arrastam o leitor para sórdidos ambientes, não apenas pelos universos que cria, mas pela linguagem dura, direta, que não amansa nada, ao contrário, nocauteia. Ainda bem, diria o leitor, porque é exatamente essa combinação de crueldade formal e temática que faz dele um dos grandes autores urbanos brasileiros, mesmo que conhecendo momentos de brilho e opacidade. Entre as obras-primas desse mineiro tornado carioca que despontou como escritor na década de 1960, está A grande arte (1983), também uma de suas obras mais conhecidas, adaptada para o cinema e traduzida para o inglês, espanhol, francês e também para o sueco, norueguês e holandês. Neste romance, há uma síntese de suas “obsessões” criativas, não apenas as referidas linguagem e temática, mas também a hábil união de diferentes gêneros, sobretudo quando agrega à ficção informações enciclopédicas, numa estratégia que permite pausas emocionais ao leitor, sempre excitado pelos seus lances narrativos. ADRIANA DÓRIA MATOS

CON TI NEN TE

A FRASE

Balaio COMO OS FARAÓS

“Eu estou sempre retornando, mas nunca ninguém me diz onde estive.”

Você (e aqui nos referimos às mulheres) visita a coleção egípcia do museu e fica imaginando que maravilha seria usar uma daquelas joias expostas. Isso, em várias seções, dependendo do pendor estético de cada uma, podendo ser a joalheria medieval, renascentista, celta… Quando você se dirige para a saída, um elemento concreto lhe absorve a atenção: a lojinha do museu. No caso do MET novaiorquino, há um departamento voltado especialmente à reprodução de peças do acervo. E você, menos endinheirada, mas mais exultante, sai dali se sentindo parte da realeza egípcia, ao portar o par de brincos que emula os do tempo de Tutmés III. (ADM)

Billie Holiday, cantora

CONTINENTE MAIO 2015 | 22

Balaio_MAI.indd 22

24/04/2015 14:08:43


ARQUIVO

SAUDADE DA FRATELLI VITA Ainda hoje, gerações de pernambucanos recordam, saudosamente, o sabor dos refrigerantes produzidos pela marca regional Fratelli Vita, cujas origens remontam à Bahia, mas que, em 1913, instalou filial no Recife. A sede, erguida na Rua da Soledade, também é sempre lembrada, em especial, pelo relógio que badalava a cada hora. Apegando-se nessas lembranças gustativas, o escritor e colecionador Gustavo Arruda empreendeu pesquisa detalhada sobre a fábrica, que deu origem ao livro A história da Fratelli Vita no Recife. A obra traça as origens da empresa e traz curiosidades. Uma delas é o encontro de Francesco Vita (um dos irmãos fundadores do grupo) com Padre Cícero, em maio de 1928, numa viagem a Juazeiro do Norte. O pároco lhe presenteou com uma fotografia com a seguinte dedicatória: “Não tenho escrúpulos em atestar os produtos da Fratelli Vita como os melhores, de sabor assaz agradável, aconselhando o seu uso”. (Mariana Oliveira)

EFEITO ARACY Algo que consegue irritar um músico tanto quanto cachês baixos, falta de pagamento ou equipamento de som ruim, é uma plateia barulhenta, que consiga atrapalhar o show. Dependendo do gênero musical do espetáculo, aumentar o volume das caixas não vai solucionar o problema. Cantoras como Zizi Possi, Nana Caymmi e Maria Bethânia já tiveram que botar espectadores mal-educados em seus devidos lugares. Mas nenhuma, até agora, superou Aracy de Almeida no quesito “esculacho”. Ao ouvir uma mulher dizer, “Nossa! Como a Aracy tá velha!”, a desbocada cantora mandou os músicos pararem, olhou para a comentarista e disparou: “Eu sou velha, mas sou a Aracy de Almeida. E você, quem é, sua filha...?” Onde quer que esteja, a criatura deve sentir tremores até hoje. Em 1992, quando começou a fazer apresentações com o repertório de Noel Rosa, que era um grande amigo de Aracy, o cavaquinista Henrique Cazes passou a contar esse episódio. Garante que, tal como fora comprovado no passado, surtia efeito na plateia, mesmo na mais regada a álcool. (Débora Nascimento)

O graaande Ascenso Pelo que se conta do poeta Ascenso Ferreira, nascido em Palmares em 1895, a sua vida era um eterno “pernas pro ar que ninguém é de ferro!”. Alto, corpulento, com uma lapa de chapéu de palha eternamente na cabeça, “cara de ladrão de cavalo, de bêbado, de revolucionário mexicano preso por engano”, segundo Rubem Braga. Ascenso ficou famoso pelas declamações em rádios do país e até no exterior, com seu vozeirão gutural e gestos grandiloquentes. Segundo o poeta Manuel Bandeira, “quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, arrotar os seus poemas, não pode fazer ideia das virtualidades verbais neles contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor”. A gravadora Rozenblit produziu um álbum duplo de seus poemas em que com sua voz tonitruante recita seus principais versos. Em 2001, o poeta Juhareiz Correya gravou-os em CD (coprodução Nordestal Editora/Fundação Joaquim Nabuco). Na foto acima, Ascenso sem o indefectível “sombrero”, posa ao lado de Bandeira, de chapéu, e de um delicadíssimo Mário de Andrade, na fazenda de Tarsila do Amaral em São Paulo, 1927. Morreu no Recife, há 50 anos. LUIZ ARRAIS

VAREI-TE! Quem frequenta os 50 anos e acha que já leu tudo sobre a vida meio tumultuada dos Beatles, não perde por esperar. É que está sendo lançada Tune in, a mais recente e completa biografia sobre a vida dos quatro cavaleiros do apóscalipso, assinada pelo pesquisador britânico Mark Levishon. No Brasil, será publicada a partir do próximo ano, pela Aleph Editora. O primeiro volume, em língua inglesa, já lançado no exterior, tem quase mil páginas. Os outros dois têm previsão de lançamento com intervalos de sete anos. Ou seja, o terceiro deve sair em 2027. Será que Ringo Starr (75 anos de carraspana em julho) ou Paul McCartney, hoje com 72 primaveras no lombo, estarão vivos para dar uma olhada nas suas páginas? (LA)

CONTINENTE MAIO 2015 | 23

Balaio_MAI.indd 23

24/04/2015 14:08:44


CON TI NEN TE

CAPA

Entre os conceitos atuais de construção, prevalece a concepção de projetos que tragam soluções e inovação à complexidade do tecido social e urbano TEXTO Luciana Veras

CONTINENTE MAIO 2015 | 24

Especial_Arquitetura_MAI.indd 24

28/04/2015 09:19:15


JACK LACEY/CORBIS/LATINSTOCK

ESPAÇO LIVRE

E MALEÁVEL

1

CONTINENTE MAIO 2015 | 25

Especial_Arquitetura_MAI.indd 25

28/04/2015 09:19:16


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: DIVULGAÇÃO

2

3

4

5

“A civilização de hoje conformase cada vez mais dificilmente à prisão espacial dos edifícios em alvenaria. Ela anseia, ao contrário, por espaços mais livres, maleáveis, ilimitados, como se estivéssemos todos à espera misteriosa de uma nova dimensão para além das três euclidianas”, raciocinava o crítico pernambucano Mário Pedrosa (19001981), no Jornal do Brasil de 4 de setembro de 1952. Ao lado de uma robusta produção jornalística e ensaística, essas palavras ressurgem agora coligidas no volume Mário Pedrosa – Arquitetura e ensaios críticos, lançado neste maio pela editora Cosac Naify em duo com Mário Pedrosa – Arte e ensaios. Com tais livros, ilumina-se o pensamento do pioneiro a analisar arte, política e arquitetura no Brasil no século 20 e amplia-se o escopo para reflexões acerca da seguinte indagação: como se pensa e se constrói hoje? É extraordinário perceber que as meditações de Pedrosa, formuladas

no momento em que o Modernismo ditava o desenho urbano no país, e em boa parte do mundo, seguem a reverberar. “A revolução arquitetônica não é, pois, puramente externa. Ao contrário. Ela se dirige para fora e para dentro do edifício”, anotava, no mesmo texto publicado no início dos anos 1950. De lá para cá, a arquitetura moderna esmaeceu, deixando a herança de Brasília e um patrimônio ainda não salvaguardado de maneira correta – Pernambuco que o diga; o Pós-Modernismo traduziu-se em uma entropia de estilos; a tecnologia propiciou o aparecimento de novidades construtivas; e os arquitetos passaram a domar as formas e subvertê-las como se estivessem, conforme preconizava Pedrosa ao falar de Oscar Niemeyer e seu “gênio plástico incoercível”, a esculpir em barro. Houve mudanças – imensas, importantes e inevitáveis – no cenário

arquitetônico. Contudo, a insurreição do contemporâneo se dá, de fato, para dentro e para fora da construção. Na arquitetura concebida e executada neste terceiro milênio, a relevância paira tanto no edifício em si, e no que ele carrega de plasticidade, inovação ou eficiência, quanto nas articulações que se operam entre aquele prédio e seu entorno. Uma das chaves reside, pois, no vínculo estabelecido entre aquela construção, o uso que dela fazem seus ocupantes e a cidade – nunca uma localidade estagnada, e, sim, mutante, como a Maurília inventada por Italo Calvino, em As cidades invisíveis: “…e que, de qualquer modo, a cidade tem este atrativo adicional – que mediante o que se tornou pode se recordar com saudades daquilo que foi”. A cidade surge como esteio e paradigma desse debate. “Não acho que seja fácil, nem muito possível, na verdade, dissociar as discussões

CONTINENTE MAIO 2015 | 26

Especial_Arquitetura_MAI.indd 26

28/04/2015 09:19:17


Página anterior 1 IMPERMANENTE

SHIGERU BAN ARCHITECTS /DIDIER BOY DE LA TOU/DIVULGAÇÃO

Pavilhão projetado por Toyo Ito e Cecil Balmond para as Serpentine Galleries, em 2002, já não existe mais

Página ao lado 2-5 HOMOGEINIZAÇÃO

A ideia atual de urbanização nivela os grandes centros

sobre pensar a arquitetura do pensar a sociedade. Acredito que o embate entre o interesse coletivo e o individual também norteia o rumo das cidades. Entre esses dois pensamentos, bem no meio do campo, está a maior parte de nós, cidadãos, caminhando sem saber exatamente sob qual espectro está e vivendo na informalidade de pensamentos. É sob esse guarda-chuva que enxergo a arquitetura, tanto do ponto de vista teórico quanto prático. Creio que a maneira que se pensa e constrói hoje ainda está intimamente ligada à lógica capitalista de controle dos meios de produção”, observa o arquiteto paulista Pedro Del Guerra, da MGDG Arquitetos. Para o pernambucano Carlos Fernando Pontual, da Pontual Arquitetos, com quase cinco décadas de profissão, é nítida a modificação no modo de se relacionar com a urbe, cada vez mais populosa e problemática. Porém, na sua opinião, o arquiteto vira “refém de uma racionalidade construtiva” que confere mais poder ao mercado: “O jeito de fazer arquitetura está muito igual, no nível técnico, porque o maior desafio é como resolver essa busca incessante pelos grandes aglomerados. Como lidar com as cidades cheias de carros? Como trazer o espírito criador para aquele projeto que é diminuído por uma padronização? O arquiteto fica preso a um comportamento industrial de produção e vai sendo minado nas suas aspirações plásticas. Fazemos um esforço brutal para inserir o projeto dentro de uma malha urbana e dar um ganho ao sítio onde está localizado e temos, nisso tudo, a dificuldade de fazer poesia, de escrever a poética dentro da arquitetura. Na essência, a arquitetura é arte de uma complexidade brutal”. No afã de aliar aspirações artísticas à praticidade para lidar com exiguidade espacial e imposições comerciais,

SHIGERU BAN “Ele é um arquiteto excepcional e com forte compromisso social”, aponta João Pedro Backheuser, da BAC Arquitetura (RJ), a respeito do vencedor do prêmio Pritzker em 2014. O japonês Shigeru Ban tanto surpreende ao idealizar construções sofisticadas, como o Centre Pompidou-Metz, na França, para o qual se inspirou na leveza de um chapéu chinês (foto acima), e ao aliar praticidade e beleza no uso de materiais, como papelão e bambu, para criar residências para vítimas de desastres. Todo o trabalho de Ban objetiva ajudar os desabrigados gratuitamente.

“O arquiteto fica preso a um comportamento industrial de produção e é minado nas suas aspirações plásticas” Carlos Fernando Pontual o arquiteto se engaja em batalhas. “Nossa luta cotidiana é conseguir, dentro do processo de racionalização e metodologia de trabalho das construtoras, fazer uma diferenciação e dar àquela obra o testemunho do ato criativo, um caráter singular, uma assinatura”, emenda Pontual. A palavra assinatura resume outro aspecto inegável da práxis arquitetônica contemporânea: a existência dos starchitects, neologismo em inglês que dá conta dos arquitetosestrelas, celebridades a transitar por vários países, desconhecendo fronteiras e sofisticando a paisagem urbana. São, além de talentos comprovados e pais de criações admiráveis, grifes. Na lista de todos os vencedores do prêmio Pritzker, criado em 1979 por uma

abastada família de Chicago, nos Estados Unidos, como o equivalente ao Pulitzer literário ou ao Oscar cinematográfico, constam vários exemplos: o italiano Renzo Piano, o britânico Norman Foster, a iraquiana Zaha Hadid, o holandês Rem Koolhaas, o francês Jean Nouvel, o português Eduardo Soto de Moura, o japonês Shigeru Ban e os suíços Herzog & de Meuron. Do Brasil, integram o seleto rol Oscar Niemeyer (1907-2002) e Paulo Mendes da Rocha. São os únicos arquitetos nacionais a reunir em sua obra, aos olhos da Fundação Hyatt, que concede o troféu, a tríade “solidez, funcionalidade e beleza”, cunhada pelo romano Marcus Vitrivius Pollio, em De archictectura libri decem, considerada a primeira obra sobre a disciplina, escrita no século 1 a.C. Professor do Departamento de Arquitetura do Centro Universitário de Brasília/Uniceub, o urbanista Francisco Leitão, cearense há muito radicado no Distrito Federal, considera que ainda estamos na “era da arquitetura do star system”. “O prédio do Museu Guggenheim de Bilbao, na Espanha, virou paradigmático dessa arquitetura

CONTINENTE MAIO 2015 | 27

Especial_Arquitetura_MAI.indd 27

28/04/2015 09:19:18


CON CAPA TI NEN TE DIVULGAÇÃO TOYO ITO & ASSOCIATES/DIVULGAÇÃO

TOYO ITO Projetos como a Midiateca de Sendai e o teatro público de Za Koenji, no Japão (na foto acima), ou o estádio de Kaohsiung, em Taiwan, evidenciam a capacidade deste arquiteto japonês (ganhador do Pritzker em 2013) de conferir plasticidade e organicidade às formas geométricas. “Toyo Ito tem uma variedade de projetos comparável a Zaha Hadid e Frank Gehry, mas o seu repertório de soluções é mais diverso e, nesse sentido, sua contribuição é mais relevante”, percebe José Luiz Lemos, do Aflalo/Gasperini (SP). ZAHA HADID ARCHTECTS/DIVULGAÇÃO

das estrelas”, diz, aludindo à obra do canadense naturalizado norteamericano Frank Gehry, cuja fachada exibe uma estrutura retorcida de titânio. Inaugurado em 1997, o museu é tido como uma das mais impactantes obras arquitetônicas recentes. “O problema é que essa arquitetura do espetáculo é feita por arquitetos que trabalham numa escala maior, projetando a imagem de uma cidade, como Bilbao, mais para atrair empresas e corporações e menos para dialogar com aquele espaço. É uma construção deslocalizada”, argumenta. Ele cita as intervenções de Norman Foster realizadas no Reichstag, o parlamento de Berlim, na Alemanha, ou as etapas de requalificação de zonas portuárias – em Nova York, Boston ou Buenos Aires – como sinais de uma uniformização advinda da globalização. “No panorama da arquitetura mundial, as obras que esses arquitetos projetam possuem uma dimensão global que ofusca os elementos locais. O resultado é que essas áreas de porto tendem a se descaracterizar, a ficar se copiando. Podiam ser em qualquer lugar”, comenta o professor. Há exceções, no

6

CONTINENTE MAIO 2015 | 28

Especial_Arquitetura_MAI.indd 28

28/04/2015 09:19:20


FOSTER + PARTNERS/DIVULGAÇÃO

7

entanto, entre os que habitam o panteão da genialidade. “O português Álvaro Siza fez um belo trabalho para a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, porque teve a sensibilidade de interagir com o local, confundindo-se com a paisagem. Aquele prédio só poderia existir naquele lugar”, acrescenta Leitão.

HOMOGENEIZAÇÃO CULTURAL

Ou seja: o choque entre o consumismo globalizado e a busca por uma especificidade se imiscui, também, na urbanização. “Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’”, expõe o teórico jamaicano Stuart Hall (19322014) em A identidade cultural na pósmodernidade (2006). A arquitetura também padece do fenômeno da “homogeneização cultural” e sofre os efeitos da fricção global versus

local. Uma saída é olhar para o que há de intransferível. “A alma de uma cidade, bem como sua individualidade, permanece nos seus bairros populares e nas suas lutas”, situava o teórico, urbanista e professor norte-americano Mike Davis, em entrevista à Continente publicada em janeiro/2015. De volta à metrópole, portanto, e ao somatório de espaços públicos, edifícios privados e de sua utilização pela população, que dá sentido a toda e qualquer incursão arquitetônica atual, seja sob a chancela de um famoso escritório, de uma gigante imobiliária ou de profissionais que optam por valorizar a interseção com o tecido urbano. “O foco tem que ser a construção das cidades, em especial com aproveitamento de infraestrutura e condições já existentes. A arquitetura de hoje é do edifício compondo com o entorno. É preciso que a construção qualifique o bairro e tenha o entendimento da escassez dos recursos, tanto financeiros quanto naturais, seja no desenho, seja nos equipamentos e instalações que economizem. Se é caro para construir, vai ser caro para

8

6-8 ESTRELAS Arquitetos como Zaha Hadid, Frank Gehry e Norman Foster desconhecem fronteiras, e seus projetos cumprem a função de sofisticar a paisagem urbana

manter. Vivemos uma crise de energia e de água e devemos buscar um desenho de edifício para se chegar a um desenho de cidade com economia para todos os cidadãos. Afinal, não adianta fazer um prédio high tech, com o melhor vidro e eficiência energética, se não colaborar com o espaço urbano ao redor”, afirma o carioca João Pedro Backheuser, da BAC Arquitetura. Seu escritório se associou a arquitetos de Barcelona com o intuito de apresentar uma proposta para uma área de cinco hectares na região portuária do Rio de Janeiro. “Acredito que a arquitetura deve ocupar espaços urbanos vazios ou áreas que estejam degradadas, pois para isso já houve custo e esforço econômico, social, político e construtivo e dinheiro jogado

CONTINENTE MAIO 2015 | 29

Especial_Arquitetura_MAI.indd 29

28/04/2015 09:19:21


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: DIVULGAÇÃO

9

9-10 TATE MODERN A dupla Herzog & de Meuron ganhou, em 1995, o concurso para transformar a antiga fábrica em museu

GEHL ARCHITECTS/DIVULGAÇÃO

fora. Nesse caso específico do porto carioca, trata-se de uma área central, de fácil acesso a trem e metrô, mas que está subutilizada. Nossa proposta é uma série de edificações residenciais, de até 20 andares, e de uso misto, com hotéis também, para aproveitar a rede de transporte e tornar aquela área ainda mais compacta. O arquiteto necessita achar o equilíbrio entre densidade e qualidade no espaço urbano, para que as cidades não se espraiem a perder de vista”, completa Backheuser.

ARSENAL TECNOLÓGICO

JAH GEHL É impossível pensar as metrópoles hoje sem citar este arquiteto dinamarquês, que há décadas defende a expansão das ciclovias nas grandes cidades. “Na escala urbana, Jan Gehl merece destaque porque, de uma certa forma, foi inovador na grande discussão sobre o uso de bicicletas. Hoje pensamos em muitos conceitos que foram fomentados por ele”, diz Pedro Lira, da Idom (SP). Muito do que aplicou em Copenhague está descrito no livro Cidade para pessoas, em que Gehl defende uma mudança de cultura no modo de ver e construir as urbes.

Há quem enxergue munição adequada para enfrentar tal missão. Diretor de arquitetura e urbanismo para o Brasil da Idom/ACXT, empresa espanhola de arquitetura, engenharia e consultoria presente em 20 países, o pernambucano Pedro Lira enaltece o avanço dos mecanismos tecnológicos à disposição dos profissionais. “Existem ferramentas

CONTINENTE MAIO 2015 | 30

Especial_Arquitetura_MAI.indd 30

28/04/2015 09:19:22


DIVULGAÇÃO

REM KOOLHAAS Desde os anos 1970, quando fundou o OMA – Office for Metropolitan Architecture, o holandês Rem Koolhaas é tido como exemplo de arquiteto que combina arrojo e reflexão. O prédio da China Central Television, em Pequim, uma concreta reinvenção da noção de arranha-céu, traduz essa inquietude, presente também na produção crítica deste vencedor do Pritzker em 2000. “É inegável que ele se sobressai hoje ao colocar a mesma força em produzir e escrever”, observa Francisco Leitão, professor do Centro Universitário de Brasília/Uniceub. 10

que permitem uma maior integração entre a arquitetura e as disciplinas afins, como engenharia, mobilidade e meio ambiente, e possibilitam o desenvolvimento do projeto com muito menos chance de erro. Antes, o arquiteto fazia o conceito, que chegava à engenharia de instalações, que fazia suas intervenções, e depois as remetia para o arquiteto. Hoje, é possível construir o programa de uma forma multidisciplinar mais integrada, o que exige uma maior visão do arquiteto”, pontua. Foi com essa abordagem que a Idom/ ACXT projetou uma operação urbana numa área de 11 mil hectares em São Paulo. “É um espaço que corresponde a 10% da área total da capital, com 1,1 milhão de habitantes. Fizemos estudos urbanísticos e ambientais para planejar o desenvolvimento da região e colaboramos, com alguns critérios, com a revisão do plano diretor municipal”, revela Lira, que prefere ir além do que considera aspectos “passageiros e superficiais”, como correntes estéticas. “A partir do momento em que as cidades se tornam mais importantes

“É necessário otimizar os recursos e dar respostas a questões como o deslocamento, o descarte, a energia” Pedro Lira na vida das pessoas, é necessário que esses sistemas funcionem de maneira equilibrada. Otimizar os recursos e dar respostas a questões como o deslocamento das pessoas e mercadorias, o descarte dos dejetos, a qualidade dos espaços públicos, a economia de energia. Pensar e trabalhar a cidade exigem integração plena entre urbanismo e arquitetura”, alinhava. Qualquer prática arquitetônica que se negue a encarar as idiossincrasias do funcionamento de uma metrópole estará, pois, em dissonância com o espírito do tempo. “Temos que pensar hoje com relação a 10, 20 anos atrás. Houve uma mudança de escala no crescimento da cidade, com a valorização da economia e o

adensamento gerado por uma ocupação desornada, que gerou uma série de problemas que hoje nós estamos tentando resolver, como a falta de água, o racionamento de energia, o trânsito e a insegurança”, repercute o paulistano José Luiz Lemos, diretor associado do Aflalo/Gasperini, escritório com 53 anos de experiência. Ao discorrer sobre um projeto que vem sendo desenvolvido para uma área de 50 mil metros quadrados na capital paulista, e do que se prevê para reutilização da água da chuva e a devolução, por meio de biosarjetas, para o lençol freático, ele antecipa que não se trata de um mero conjunto de apartamentos: “Estamos falando de um bairro. Hoje, precisamos pensar o projeto muito mais globalmente e dotá-lo de uma sinergia com a cidade. Claro que não temos como resolver todos os problemas de São Paulo, mas é nosso papel pensar em saídas que, num projeto dessa escala, serão significativas”. Uma delas ecoa uma postulação do Modernismo – liberar o térreo de um edifício para um contínuo diálogo com os passantes – e

CONTINENTE MAIO 2015 | 31

Especial_Arquitetura_MAI.indd 31

28/04/2015 09:19:23


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: FRAN PARENTE/DIVULGAÇÃO

11

um dos pressupostos defendidos pela sociedade no combate à arquitetura do medo. “Os prédios terão uso misto, com atividades por 24h, para gerar fluxo de pessoas, sem muros. Quanto mais blindado, mais inseguro fica o entorno; quanto mais permeável e inserido no tecido urbano, mais seguros todos se sentem”, assente Lemos.

SEM MURO E PORTÃO

A residência do casal de arquitetos Clara Reynaldo e Lourenço Gimenes, na zona oeste de São Paulo, é um perfeito exemplo dessa permeabilidade. Não há muro ou portão a separá-la da rua, o que provoca constrangimentos, como veículos estacionados na garagem. “Moramos perto de um bairro com muito comércio, então, de vez em quando, tem carros parados aqui, porque as pessoas acham que é uma loja. É curioso sentirmos esse preconceito, como se a casa tivesse que, obrigatoriamente, ser de alvenaria, ter muro, portão e quarto de serviços. Mas a arquitetura não tem mais essa configuração. Pode-se construir dos mais variados

12

“A arquitetura contemporânea está mais no espírito, no que o arquiteto pensa, do que no material” Lula Marcondes jeitos, desde que não seja um desfile de moda, e, sim, usável, com um programa, uma demanda, um valor”, interpreta a pernambucana Clara. No terreno de 4 m x 30 m, numa via de casas geminadas, ela, o marido e os escritórios CR2 Arquitetura e FGMG Arquitetos foram criativos na “arquitetura habitável” que tomam como norte: optaram por uma estrutura metálica, sem concretagem (há tijolos em apenas uma parede) e com uma laje painel de aço. “Não seguimos o programa tradicional da família pequeno-burguesa, com quarto e banheiro de serviços. E fizemos uma construção seca, sem aquele canteiro de obras com muito resíduo, até porque nosso espaço era estreito. Usamos

estruturas de aço, que chegavam prontas. Como a iluminação natural vem apenas da frente e de trás, buscamos a ventilação cruzada, com muito vidro, não só por uma questão estética, mas para usarmos o máximo de luz natural possível. Na fachada da frente, optamos por uma malha metálica. Como há um painel, da rua, a pessoa vê a casa inteira. Queríamos mesmo uma casa aberta, transparente, sem portão, uma extensão da rua”, lembra a arquiteta. Em 1952, Mário Pedrosa vaticinava: “Até no Ocidente, a ideia de casa é mais do que um teto sustentado por paredes maciças. O concreto e o aço, flexíveis como é a madeira, transformaram a velha ideia, e esta agora pode ser melhor afinada aos sentimentos dinâmicos espaciais do homem moderno, pois pode ser concebida como um teto sustentado por postes, pilares situados para dentro do perímetro da construção, sem obrigação de regularidade externa ou simétrica”. A liberdade intrínseca à arquitetura contemporânea é uma realidade. É possível imaginar nuances de fachadas que vão se modificando a

CONTINENTE MAIO 2015 | 32

Especial_Arquitetura_MAI.indd 32

28/04/2015 09:19:24


11-13 CLARA REYNALDO Projeto da arquiteta e de seu marido, Lourenço Gimenes, para sua residência é exemplo de permeabilidade

cada pavimento de um prédio, graças a processos digitais de fabricação de impressão em 3D. É possível escolher um entre dezenas de tipos de vidro – laminados, temperados, insulados – para revestir um prédio e nele inserir até serigrafias. É possível prescindir do tijolo e adotar o concreto. E replicar, em patamares construtivos, a rima inteligência/ eficiência.

POSTURA CIDADÃ

13 IWAN BAAN/DIVULGAÇÃO

SOU FUJIMOTO Em 2013, o pavilhão temporário da Serpentine Gallery, no Hyde Park, em Londres, parecia nascer do solo, tamanha era a integração de sua estrutura, cubos em ferro concatenados em imensas grades, com a natureza. Essa é uma das chaves para olhar o trabalho do japonês Sou Fujimoto. “Ele é um arquiteto com a ideia de inovação, que foge muito do programado, que perverte os limites tradicionais. Fui visitar uma casa que ele projetou em Tóquio onde simplesmente não existem paredes”, comenta Clara Reynaldo, da CR2 Arquitetura (SP).

Se, por um lado, percebe-se uma crença na falibilidade da arquitetura como criadora e indutora de soluções – Carlos Fernando Pontual lamenta a irremediável “perda de força” do arquiteto para corrigir os traumas das metrópoles –, por outro, os recentes movimentos organizados pela sociedade civil a partir de áreas prestes a sofrer intervenções massivas, como o cais José Estelita, no Recife, e o Parque Augusta, em São Paulo, sugerem o fortalecimento de uma postura cidadã por parte do profissional. “A arquitetura contemporânea está mais no espírito, no que o arquiteto pensa, do que no material que ele vai escolher. Temos que ir pela imaterialidade”, pondera o pernambucano Lula Marcondes, professor do Departamento de Arquitetura da Universidade Católica de Pernambuco e sócio de O Norte – Oficina de Criação. Para ele, o dever é confrontar a legislação excludente e reinventar a relação com a urbe e com o outro: “Em Pernambuco, nossa legislação permitiu a negação da cidade, principalmente nos edifícios residenciais, que é a base onde tudo acontece, onde nos relacionamos. O arquiteto pode usar madeira, concreto, ferro, vidro ou plástico, mas a lei seguirá com o espírito de negação. Temos que lutar para que isso se transforme em doação, em generosidade, em prédios com uso misto no térreo que se abrem para a cidade. Esse é o caminho para uma arquitetura urbana e cidadã”. Ao arquiteto de hoje, cabe, também, a possibilidade de mudar o lugar onde se vive.

CONTINENTE MAIO 2015 | 33

Especial_Arquitetura_MAI.indd 33

28/04/2015 09:19:25


CON CAPA TI NEN TE

DIVULGAÇÃO

cidade. O que tento dizer é que não só a produção arquitetônica brasileira baixou de qualidade, mas também deixou de ser vanguarda e de ser reconhecida na sociedade brasileira. Sim, o país continua a ter bons arquitetos e bons projetos, mas isso não tem mais a relevância de antes, não aparece em meio à quantidade. A boa arquitetura é exceção.

Entrevista

GUILHERME WISNIK “NO FUNDO, O QUE ENTROU EM CRISE FOI A IDEIA DE PROJETO” Professor da FAU/USP, o crítico de

arte e arquitetura Guilherme Wisnik foi um dos três curadores da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo (2013), cujo tema foi Cidade: modos de fazer, modos de usar. Autor de vários livros – entre eles Estado crítico: à deriva nas cidades (Publifolha, 2009) – e coordenador da compilação de ensaios sobre arquitetura do pensador Mário Pedrosa, ele é uma das mais coerentes vozes na interpretação das relações

entre arquitetura, urbanismo e progresso na contemporaneidade. CONTINENTE Como se pensa a arquitetura hoje? Como se constrói na atualidade? GUILHERME WISNIK Basicamente, as cidades no Brasil não são feitas pelos arquitetos, e, sim, pelo mercado imobiliário, muito distante do que os arquitetos querem. Em certo momento histórico, os arquitetos deixaram de ser importantes na construção das cidades brasileiras. Veja o paradoxo: o Brasil é o único país do mundo que construiu uma capital moderna, uma cidade inteira do zero, e naquele momento tinha arquitetura e urbanismo considerados exemplares – e olhe que não faz tanto tempo assim, estamos falando de meio século. De lá para cá, o lugar social da arquitetura caiu muito; perdeu tanto a importância, que vivemos uma situação em que praticamente não é a arquitetura que dá valor a uma

CONTINENTE A que pode ser atribuído esse cenário? GUILHERME WISNIK Esse problema profundo é uma espécie de enigma que precisa ser decifrado. Penso que surge com o esforço de modernização na metade do século 20, no momento em que as cidades brasileiras ainda eram menores. A cultura moderna entrou como vanguardista, com artistas apoiados por políticos como Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, para impor a modernidade como linguagem no momento em que os problemas – sociais, urbanos, econômicos – não eram tão grandes. O modernismo brasileiro se afirmou internacionalmente; a arquitetura moderna brasileira teve relevância internacional muito forte, atingindo o ápice nos anos 1950. Eram os tempos da tríade Pelé, Oscar Niemeyer e Tom Jobim: o Brasil era futebol, arquitetura e bossa-nova. Chegaram os anos 1960, e o golpe militar atrapalhou muito o avanço social que dava suporte a essa vanguarda estética. Com isso, vieram também as cidades inchadas, a urbanização forte e descontrolada e a favelização, numa fase em que o Brasil não estava se preocupando em resolver socialmente essas questões. Nos anos 1970 e 1980, as cidades explodiram, com seus condomínios fechados e edifícios enormes, com o gradeamento das praças e fim dos espaços públicos. CONTINENTE Uma configuração que, de uma certa forma, estende-se até hoje. GUILHERME WISNIK E que é muito difícil de reverter. As grandes cidades brasileiras possuem problemas gigantescos de toda ordem, enfrentam questões sociais e de violência muito sérias, e isso tudo aconteceu em duas, três décadas. A arquitetura sumiu do cenário durante a ditadura. Passou a ser lida socialmente como um cosmético, uma frescura, uma decoração da qual as pessoas podem prescindir. No

CONTINENTE MAIO 2015 | 34

Especial_Arquitetura_MAI.indd 34

28/04/2015 09:19:26


fundo, o que entrou em crise foi a ideia de projeto, a ideia de que o projeto é capaz de melhorar o futuro das coisas. O que dizia a vanguarda moderna? É preciso projetar, é preciso prever, e você vê que tudo no Brasil é feito meio sem projeto. As Olimpíadas e as grandes obras são feitas na base da urgência, e a urgência sempre estimula a corrupção. A noção de projeto é o contrário disso: é preciso regrar de acordo com leis objetivas e racionais, e fazer o que se previu ao longo do tempo e de maneira orquestrada. CONTINENTE Nesse contexto, como se dá o cabo de guerra do cotidiano entre o arquiteto e os empreiteiros e incorporadores? GUILHERME WISNIK O arquiteto é uma voz isolada que tenta defender uma posição sozinho. É muito desigual lutar contra tudo isso. Há uma frase de Rem Koolhaas que gosto bastante de usar, por ser uma ótima definição para a profissão de arquiteto. Ele diz que é uma profissão muito estranha e muito invejada, pois traz extrema onipotência e igual impotência ao mesmo tempo. Em princípio, o arquiteto lida com uma dimensão grande. Há um certo momento do projeto em que está nas mãos dele decidir o futuro de muita gente, de atuar diante de muito dinheiro e de mudar parte da cidade. Mas aí nada acontece direito como se esperava, surgem problemas com o cliente, aparecem restrições econômicas, o operário não faz sua parte direito… É uma espécie de dicotomia e esquizofrenia, como bem colocou Koolhaas. CONTINENTE Será que existe uma possibilidade de mudança ou até mesmo de redenção da arquitetura? GUILHERME WISNIK Aposto nisso. Inclusive, foi algo que abordamos na Bienal de Arquitetura. Acho que apareceu uma novidade nos últimos tempos, um sinal de grande esperança, que é a sociedade organizada reivindicando espaço público, projetos e qualidade da cidade. O Recife está na vanguarda, por exemplo. O Ocupe Estelita é um dos movimentos mais importantes que surgiu no Brasil. Acredito muito nos movimentos que a sociedade civil está mobilizando, pois estão questionando o modus operandi, confrontando a especulação imobiliária. E é por aí,

acho, que vamos conseguir retomar a arquitetura do espaço público. CONTINENTE Como você avalia a procura por uma arquitetura sustentável em tempos de crise hídrica, por exemplo? Concorda com a existência do que alguns arquitetos rotulam de “sustentabilidade de butique”? GUILHERME WISNIK A crise hídrica é um ótimo exemplo para comprovar que precisamos retomar o projeto como valor. O fato de São Paulo ter crescido e se organizado sem projeto urbano só explicita a necessidade de aprofundar essa discussão. Quanto a essa “sustentabilidade de butique”, virou o assunto da vez e agora todo mundo quer fazer parecer que está respeitando o meio ambiente. É uma espécie de álibi ou salvo-conduto para a chamada arquitetura verde. Tenho muita implicância com isso. Acho que não adianta nada uma empresa erguer o edifício da sua sede seguindo os

“Apareceu uma novidade, que é a sociedade organizada reivindicando espaço público, projetos e qualidade da cidade” preceitos da eficiência energética, do reuso da água, e construir uma garagem de três subsolos. A resposta não está no selo verde que pode ter o edifício com um jardim na cobertura. O compromisso sustentável é o modelo de cidade, que cada vez mais estão sendo espraiadas, suburbanizadas e precarizadas para as pessoas passarem horas no trânsito para se deslocar. Uma empresa fazer algo para ganhar o selo verde não vale nada. É o urbanismo “sustentável” que deve ser o nosso desafio. CONTINENTE Qual seria a diferença entre a arquitetura utópica e a práxis do dia a dia? GUILHERME WISNIK A arquitetura pragmática do mercado é feita pela e para a especulação imobiliária, cujo objetivo é a obtenção de lucro. Nela, são sacrificados os valores coletivos em nome de uma visão mesquinha, praticada por grupos privados. A cidade construída assim é triste, cada

vez mais privatizada, fechada, feita para poucos, quando deveria ser um bem público coletivo. Com relação ao que seria uma utopia da arquitetura, o que estou pedindo não é algo tão difícil. Vejamos Nova York, o coração do capitalismo mundial, um sistema feito para a iniciativa privada. Como a cidade é? Toda feita para o bem coletivo. É ortogonalmente planejada, tem um parque imenso que ocupa mais de 30 quarteirões e que é um grande espaço público, possui prédios cujos térreos têm comércio. É uma cidade de pequenas escalas também, o que leva a rua a ficar mais animada. Também é uma cidade com metrô, táxi. Ou seja, não preciso dizer que é utópico o que quero. O que defendo como valor de cidade é concreto. Só preciso que a sociedade nas grandes cidades brasileiras se engaje nisso. Não imagino que as empresas nova-iorquinas deixaram de ter lucro, não é? CONTINENTE Nem em nenhuma outra cidade norte-americana, a exemplo de Los Angeles. GUILHERME WISNIK Essa dualidade entre Los Angeles e Nova York é interessante. Los Angeles é a cidade do automóvel, dos condomínios fechados, dos conflitos sociais, da baixa densidade e de Hollywood, a indústria do entretenimento. Nova York é a potência cultural, do big business planejado, do metrô que leva a todo e qualquer lugar. Ambas são metrópoles norte-americanas com visões urbanas bem opostas. Uma pena que as cidades brasileiras estejam, hoje, mais para Los Angeles do que para Nova York. A densidade é um valor muito importante a ser defendido, é oposto do espraiamento que leva todo mundo a depender do transporte motorizado para se deslocar. A cidade densa traz uma proximidade muito maior entre seus equipamentos, entre seus cidadãos, como a Paris do século 19, tão bem-analisada por Walter Benjamin. Aliás, Paris, assim como também Barcelona, são cidades baixas, porém densas. Em Pernambuco, com essa discussão toda a respeito do projeto Novo Recife levantada pelo Ocupe Estelita, e mesmo com aquelas duas outras chamadas de “torres gêmeas”, essa verticalização não chega a configurar densidade. A verticalização, por si só, não produz densidade urbana. No Recife, destruiu o skyline da cidade e seu patrimônio, além de segregar.

CONTINENTE MAIO 2015 | 35

Especial_Arquitetura_MAI.indd 35

28/04/2015 09:19:26


CON CAPA TI NEN TE

1

CONSTRUÇÃO Conforto espacial e qualidade ambiental

Princípios norteadores do bem-construir, como a observação do clima, da iluminação e de materiais locais, garantem sustentabilidade

“A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e tecto. O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por-

onde, jamais portas-contra; por onde, livres: ar luz razão certa.” Tais versos da estrofe inicial de Fábula do arquiteto, poema do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) presente em A educação pela pedra (1965), foram reapropriados pelo arquiteto pernambucano Armando de Holanda (1940-1979) como epígrafe

para Roteiro para construir no Nordeste. Publicado em 1976, pelo programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, seu livro é citado com recorrência por profissionais que se confrontam com a seguinte pergunta: o que seria uma arquitetura sustentável? Na verdade, os ensinamentos de Holanda tendem a ser louvados com o mesmo fervor com que o adjetivo “sustentável” é combatido. “A boa arquitetura, aquela que se apropria dos materiais e técnicas locais, que tenta entender o clima e as mais simples soluções para garantir o conforto de quem a habita, é a verdadeiramente sustentável. O livro de Armando de Holanda oferece sugestões que facilmente poderiam ser usadas, em qualquer escala de construção, para prover qualidade

CONTINENTE MAIO 2015 | 36

Especial_Arquitetura_MAI.indd 36

28/04/2015 09:19:28


MATEUS SÁ/DIVULGAÇÃO

1 CONSCIENTE Projeto de Bruno Lima para sua casa observa os ensinamentos do livro Roteiro para construir no Nordeste

espacial e conforto ambiental. Mas essa abordagem consciente do espaço e do objeto arquitetônico não consegue fazer frente aos apelos das grandes indústrias de materiais – vidro, alumínio, aço, cimento – e, sobretudo nos grandes edifícios e complexos comerciais, nem é levada em consideração”, constata Pedro Del Guerra, da MGDG Arquitetos, de São Paulo. Para ele, o que acaba se sobressaindo é, ainda, a fetichização de técnicas e materiais que apenas “parecem mais ecológicos”. “É muito comum encontrar clientes, ou mesmos arquitetos, que pregam o consumo de soluções sustentáveis, como telhados verdes e captação e reuso da água, mas não abrem mão de ter não só um, mas vários carros na garagem, e descartam o uso de transporte coletivo. A boa intenção de procurar conviver melhor e usar

menos os recursos naturais não sobrevive a um apelo pelo consumo de soluções vendidas como meros produtos. Isso vale para os materiais em si e também para a venda de conceitos mais mercadológicos, como as pontuações de um sistema de certificações como o LEED”, apregoa Del Guerra. Sigla de leadership in energy and environmental design (liderança em design ambiental e energético, em tradução livre), LEED é um certificado conferido pela ONG Green Building Council e perseguido por construções no mundo inteiro. Para ser outorgado, são observados critérios como eficiência energética, materiais e uso da água, entre outros. Há quem considere que se trata de um selo criado para regulamentar o que já se fazia. “Percebo o LEED como uma formalização para a preocupação com o tripé eficiência, inteligência e economia e o esforço para evitar desperdício. O certificado avalia isso com regras mais rígidas e referências de medição”, afirma o arquiteto José Luiz Lemos, do Aflalo/ Gasperini. “Todas as empresas têm buscado caminhar nesse sentido de otimizar os recursos. É dever do arquiteto calcular quanto o cliente vai gastar de energia e de água e também saber escolher os materiais para garantir durabilidade e qualidade. Assim, o LEED deixa de ser um selo e passa a ter sentido econômico”, compreende Pedro Lira, diretor de arquitetura e urbanismo no Brasil da empresa espanhola Idom/ACXT. Existem, contudo, os profissionais que recriminam uma submissão exagerada à certificação. “O certificado se desvirtuou. Era uma maneira de mensurar a performance de um edifício que, hoje, a indústria cooptou. É como se fosse só um selo para dar charme. Mais importante do que essa ideia falsa de sustentabilidade é sabermos, por exemplo, a origem dos nossos materiais. Tenho convivido com gente na Zona da Mata que trabalha por 12 horas, mas só recebe por oito, para fazer um tijolo, em um trabalho de alto risco. Alguém pega, bota na sua casa e diz que é sustentável para ganhar um certificado”,

pondera Lula Marcondes, de O Norte – Oficina de Criação. Professor do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco, o arquiteto Bruno Lima é sócio de Lula Marcondes e dono de uma residência erigida a partir de projeto desenvolvido no escritório. Localizada na região central do Recife, é citada como a materialização da “arquitetura consciente, urbana e cidadã” que eles defendem. “Foi uma casa que surgiu sem a intenção de ter ações deliberadas em sustentabilidade. De forma espontânea, buscamos possibilidades usando, justamente, os ensinamentos de mestres como Armando de Holanda. Como aplicar isso no contexto em que estamos vivendo? Não se trata de replicar em cima de uma mesma composição formal, e, sim, de reproduzir o que aquilo tem de essência em questões de iluminação e ventilação, por exemplo, e que é válido ainda hoje. E a casa foi construída como se fosse um laboratório, com baixo resíduo, pouca alvenaria e muita madeira. Intuitivamente, criamos algo que está no discurso dos que rotulam as coisas como sustentáveis”, detalha Lima. Esse aproveitamento de ideias preconizado lá atrás é, por vezes, mais benéfico do que muitas práticas contemporâneas. “Aqui no Nordeste, já fazíamos isso muito antes dessa palavra aparecer, pois sempre incorporamos os elementos relacionados ao clima compulsoriamente, e não como uma moda”, assegura Carlos Fernando Pontual, da Pontual Arquitetos. O desafio, de um modo geral, prossegue, menos na prospecção por uma sustentabilidade certificável e mais “no sentido de uma arquitetura livre e espontânea, que seja uma clara expressão da nossa cultura e revele uma sensível apropriação do nosso espaço; e no sentido de uma arquitetura sombreada, aberta, contínua, vigorosa, acolhedora e envolvente, que, ao nos colocar em harmonia com o ambiente tropical, nos incite a viver nele integralmente”, como uma vez escreveu Armando de Holanda. LUCIANA VERAS

CONTINENTE MAIO 2015 | 37

Especial_Arquitetura_MAI.indd 37

28/04/2015 09:19:28


CON CAPA TI NEN TE CMPBS /DIVULGAÇÃO

2 PLENITUDE ECO CITY Pliny Fisk III e Gail Vittori nomeiam assim a cidade ideal com “novos níveis de equilíbrio”

2

PROTAGONISMO ARQUITETURA REMODELANDO O MUNDO Fundado em 1975, em Austin, no estado norte-americano do Texas, o Center for Maximum Potential Building Systems – CMPBS é mais do que uma ONG. A instituição é pioneira na pesquisa e na implementação de técnicas construtivas que transcendem o significado atribuído corriqueiramente à sustentabilidade. O que eles exercem é um novo modo de encarar a arquitetura e seu papel fundamental na remodelação do mundo. “A nossa missão nasceu a partir de uma noção premonitória do quão essenciais os edifícios e a arquitetura são para a sustentabilidade ecológica”, escrevem, em entrevista por e-mail à Continente, os codiretores Pliny Fisk III e Gail Vittori. À luz de cidades inchadas/ favelizadas/compartimentadas pelo capitalismo, o que fazer? A pergunta é atacada com coerência e lucidez pelos gestores da ONG norte-americana: “A arquitetura precisa responder de imediato às realidades cambiantes. Os edifícios se beneficiam do uso de uma nova dinâmica de sistemas que

facilita suas evoluções, enquanto eles se modificam com o passar do tempo para se tornar mais vivos socialmente, economicamente e ambientalmente. Temos que pensar um caminho que reconheça esses edifícios como servidos por uma espinha dorsal flexível de infraestrutura, e avançando intrinsecamente rumo a um metabolismo urbano saudável. A arquitetura e o design urbano devem permitir padrões de uso para influenciar, de modo recíproco, a performance dessa espinha dorsal. É apenas por essa via que uma cidade pode evoluir verdadeiramente resiliente e saudável”. O que eles promovem é também uma recuperação do protagonismo do arquiteto. Advogam, por exemplo, que ele esteja presente na obra não apenas como um consultor, mas na labuta diária: da conceituação à execução, e ao longo de todas as etapas, o arquiteto é o responsável. Só dessa forma, concordam Pliny Fisk III e Gail Vittori, será capaz de praticar a arquitetura necessária ao mundo de hoje. “Nós precisamos de casas e prédios que conversem conosco, que se tornem uma extensão de quem somos, e assim nos conectem com as funções essenciais que suportam as atividades humanas, à medida que elas estão associadas com o

ambiente construído”, identificam os codiretores do CMPBS. Essa abordagem ressoa os princípios do Design+Build, movimento surgido nos Estados Unidos e que, embora propagado lá fora, ainda é pouco conhecido – e aplicado – no Brasil. “O princípio é quebrar a hierarquia social na qual o arquiteto é apenas o dono das ideias brilhantes. Ele participa da cadeia inteira”, ensina o professor da Unicap Lula Marcondes. “Numa escala vertical, ao chegar numa obra, o arquiteto vê que uma decisão foi tomada por outra pessoa. Nesse processo, não: diante das adversidades, o arquiteto tem poder de modificar o que inicialmente tinha sido pensado”, emenda Bruno Lima, sócio de O Norte – Oficina de Criação A convite desse escritório, o arquiteto australiano Michael Phillips passará o ano de 2015 difundindo o Design+Build em Pernambuco. “O papel de um arquiteto-padrão é só lidar com o design. Meu interesse é assumir mais responsabilidade com a construção e, com esse controle, levar adiante o compromisso com a sustentabilidade”, anota Phillips. Além das legislações – a exemplo da recém-aprovada lei municipal 18.112/15, que institui, no Recife, a obrigatoriedade dos “telhados verdes” nos edifícios –, para se chegar ao que Pliny Fisk III e Gail Vittori chamam de “plenitude” (uma cidade ideal com “novos níveis de equilíbrio”) é preciso, de fato, que o arquiteto se transforme “em um pensador de sistemas”. “Novos resultados econômicos e um novo modo de entender o papel do indivíduo com relação ao todo precisam funcionar juntos como um sistema dinâmico, orgânico e autossuficiente, no qual o indivíduo é um recurso tão importante quanto a cidade em si”, defendem os codiretores do Center for Maximum Potential Building Systems. (L.V.)

CONTINENTE MAIO 2015 | 38

Especial_Arquitetura_MAI.indd 38

28/04/2015 09:19:28


DIVULGAÇÃO

Quando o velho Washi

CON TI NEN TE

Perfil

LUCIANO PONTES Intenso desejo de se expressar O ator é um dos mais prolíficos e múltiplos artistas pernambucanos, atuando como palhaço, escritor, encenador, cenógrafo, figurinista, mamulengueiro, pintor e desenhista TEXTO Isabelle Câmara

diz a Belizbel – personagens do livro Belizbel (Paulinas, 2014), escrito e ilustrado por Luciano Pontes – que “no papel pode caber tudo, o mundo, até o céu!”, parece que é com o próprio Luciano que o velho fala. Autor e personagem da própria história, ele escreve sua vida não só no papel, mas no palco, na rua, nos hospitais, na oralidade. Nascido em Orobó (PE), por uma questão de segurança afetiva dos seus pais, em 18 de novembro de 1974, Luciano Pontes cresceu em Olinda, construindo os próprios brinquedos em meio a tecidos, bordados, crochês, colchas de retalhos, bonecas, tintas, brincadeiras populares, pastoris, cavalosmarinhos, autos religiosos e estradas. “Eu era muito dramático. Fantasiava que era órfão e seria adotado por uma família rica.” Mas a riqueza da sua família real era outra, fundamental para a sua formação: “Meu pai construía estradas e, sem saber, me ensinou a abrir trilhas, construir meus próprios caminhos. Eles são meus grandes referenciais”. A carreira profissional de Luciano no mundo das artes começou no Mamulengo Só Riso, de Fernando Augusto Gonçalves. Mas, longe da ideia glamorosa que alguns podem ter sobre a vida nos palcos, ele pontua: “Comecei como bilheteiro”. Depois, passou a esculpir, pintar e manipular bonecos, bordar figurinos, pintar e montar cenários, produzir, até chegar a atuar. “Não tinha glamour. Os bonecos eram pesados, a mão tremia, e eu era muito magro. Num curso que fui fazer, cheguei a ouvir que eu parecia um poeta inglês, prestes a morrer de tuberculose, e que, para

CONTINENTE MAIO 2015 | 39

Perfil_MAI.indd 39

24/04/2015 14:12:57


CON TI NEN TE

Perfil fazer teatro, precisava ‘ter corpo de homem’”, lembra, entre risos. E assim surgiu um operário da arte. Um artista – que não se quer multi, pois, para ele, tudo tem a mesma raiz, o desejo de contar histórias – que é ator, palhaço, doutor da alegria, escritor, diretor de teatro, desenhista, ilustrador, mamulengueiro, contador de histórias, cenógrafo, figurinista e estudante de Design Gráfico na Faculdade Aeso Barros Melo. “Para chegar aonde cheguei, demorou muito. Mas as coisas que fiz me colocaram em lugares muito felizes. Fui criando habilidades em meio às dificuldades, em razão da minha origem, que é pobre.” Luciano é um artista que tem na palavra o seu sacro ofício e que não se fecha em limites, nem está preocupado se é bom no que faz ou se os seus trabalhos são perfeitos. “Se eu sentir que quero me manifestar por meio da fotografia, por exemplo, vou lá e fotografo.” Um artista que honra a etimologia do seu nome: trazer a luz, iluminar, de Luciano; e ligar, criar elos, conexões, do Pontes. Um artista que aposta mais na ética do que na estética da sua arte. “Minha arte está além da vocação. Faço o que acredito. E acredito na inteireza do que faço; que com o que faço posso ajudar o outro, o mundo.” O trabalho com o Só Riso o levou a Charleville, na França, onde foi concorrer a uma vaga num curso do Centro Internacional da Marionete. Ele não foi selecionado, mas o Brasil o aguardava com boas surpresas. “Foi uma experiência muito forte, cresci muito, muitos aprendizados. Assim que voltei, entrei no Programa Doutores da Alegria e tive meu primeiro livro, Ouvindo as conchas do mar (Paulinas, 2002), aprovado. Foi quando tudo começou a acontecer: por meio dos Doutores, com dinheiro na conta e treinamento contínuo, comecei a lapidar muita coisa. Tive acesso a informações, pessoas, viagens, capacitações, trabalho de corpo, voz, do próprio palhaço.” “O palhaço é a melhor parte de mim”, revela. “Ele ajudou em

ROGÉRIO ALVES/DIVULGAÇÃO

1

"Se eu sentir que quero me manifestar por meio da fotografia, por exemplo, vou lá e fotografo", conta o ator

muitas coisas. Especialmente porque, no trabalho de palhaço em hospital, estabeleço relações de muita proximidade. O circo é grandiloquente, parece que está fora de você; o hospital, não. É o olhar, a sensibilidade e a delicadeza, tudo próximo. Traz muito da sua presença.” Há 11 anos no Doutores da Alegria, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que, desde 1991, atua junto a crianças hospitalizadas, seus pais e profissionais de saúde, o Dr. Lui, palhaço de Luciano, habita a memória de muitos. “Meu palhaço tem uma vida que existe na vida de outras pessoas, crianças, adultos, médicos e enfermeiros”. Ser palhaço ou sacerdote da besteira, das inutilidades, da bobeira, não é uma escolha fácil. Cláudio Thebas, em O livro do palhaço (Companhia das Letrinhas, 2005), explica: “Todo mundo tem medo de cair no ridículo. E sabe por quê?

Porque o ridículo é um abismo. (…) É por isso que muita gente se emociona com o palhaço: ele anda na corda bamba, sem medo de escorregar e cair. Corre, dança, rodopia, dá piruetas. Não percebe o perigo, ou não liga para ele. O que lhe interessa é agradar as pessoas e por elas ser amado, nem que para isso tenha que se expor às críticas dos outros, mergulhar no abismo”. E ser Doutor da Alegria, para Alice Viveiros de Castro, autora do livro O elogio da bobagem (Ed. Família Bastos, 2005), é um viés ainda mais delicado dessa escolha. “(…) os palhaços são doutores, doutores em besteirologia. Não são artistas apresentando-se para uma plateia de doentes; são médicos que visitam seus pacientes e ministram a eles um tratamento muito eficaz: o riso. Por trás da maquiagem e dos jalecos brancos estão artistas talentosos que passaram por um rigoroso processo de seleção e treinamento. Nem todo palhaço de palco e/ou picadeiro será um bom doutor e nem todo doutor será obrigatoriamente um excelente palhaço de cena. São universos diferentes. A relação doutor/paciente depende de um contato intenso, íntimo e pessoal; algo completamente diferente da relação estabelecida por um artista com seu público, seja ele pagante ou não.”

CONTINENTE MAIO 2015 | 40

Perfil_MAI.indd 40

24/04/2015 14:12:57


REPRODUÇÃO

1

NO PALCO

2

ILUTRAÇÃO

Ator em cena, interpretanto o personagem cômico Mané Gostoso

Luciano Pontes aprimorou, em cursos, sua habilidade para desenhar

2

E, sim, na vida de Luciano sempre tem palhaçada: “O palhaço, na forma que eu entendo, não tem sua construção muita inventada; ele parte de você, da sua própria história, é você pelo avesso. Ele é sua sombra, o que você esconde, tem medo de revelar. E quanto mais revelo aquilo de que não gosto, mais divertido é. Como palhaço, você pode dizer, reagir, inventar, subverter as coisas, pois tem uma máscara que o ‘protege’. O palhaço também me ajudou muito nos aspectos pessoais: rir de mim mesmo, me colocar no ridículo, me expor mais. E consigo percebê-lo nas outras coisas que faço e na forma de escrever”.

HISTÓRIAS COM PÉ E CABEÇA

Depois da publicação de Ouvindo as conchas do mar, Luciano já publicou seis livros: o citado Belizbel, Disse me disse (Ed. Paulinas, 2010), Deslembrar (Editora Lafonte, 2009), O carrossel do tempo (Ed. Paulinas, 2007), Uma história sem pé nem cabeça (Ed. Paulinas, 2006), e Em briga de irmão quem dá opinião? (Editora FTD, 2006). No prelo, ele ainda tem Seu rei mandou (primeira publicação independente com incentivo do Funcultura) e As travessuras de Mané Gostoso – que são extensões de peças teatrais escritas, dirigidas e encenadas por ele. Assim como Belizbel, Seu rei

"Como palhaço, você pode dizer, reagir, inventar, subverter as coisas, pois tem uma máscara que o 'protege'", diz mandou e As travessuras… são ilustrados pelo artista, mais uma maneira de expressão que ele encontrou. “Apesar de gostar bastante dos textos, eu me identifico muito com as imagens. O desenho é uma narrativa visual, tem uma história por trás. E a convivência com André (Neves, ilustrador de alguns livros dele) e outros amigos ilustradores me fez ter vontade de cuidar da totalidade do livro. Eu já tinha a habilidade de desenhar, só precisei investir mais, então, fiz aulas com Marcelo Bezerra e Badida.” E Luciano escreve, seja em textos ou desenhos, como um poeta. Faz prosa como quem faz versos. Mas também verseja. Seus livros, para crianças de todas as idades, cumprem a função social e pedagógica de despertar o gosto pelo livro, pela literatura e pela leitura, de ajudar na compreensão do mundo, promover reflexões sociais, desenvolver a

criticidade e libertar a imaginação. E as ilustrações são um complemento da narrativa, um estímulo a mais para a imaginação do leitor. Outra extensão desse desejo de se expressar é a contação de histórias. “Eu já gostava de contar e o mercado editorial exige que você fale sobre seus livros. Mas percebi que para fazer isso eu precisava de outra forma de narrar, que não era aquela que estava escrita. Eu tinha muita coisa guardada, não publicada, então contar foi uma forma de deixar isso vivo.” Ele recorda que as histórias chegaram à sua vida muito antes do desejo de escrever. “Minha mãe sempre contava histórias para a gente dormir, mas era ela que dormia, e a gente saía para brincar.” Para agregar conhecimento, e na tentativa de criar um canal único de comunicação, Luciano fundou a Cia. Meias Palavras, por meio da qual já escreveu, montou, dirigiu e encenou as peças Seu rei mandou e As travessuras de Mané Gostoso. “Logo quando saí do Mamulengo Só Riso, o texto de As travessuras… nasceu. Lá, tive uma experiência muito forte com o teatro de bonecos, em que pude atuar, cantar, dançar, improvisar, manipular, dialogar com a plateia. A Cia. nasceu da necessidade de executar minhas próprias ideias, defender a minha linguagem, juntar toda essa vivência, a oralidade, os contos populares e as linguagens teatrais.” Recentemente, a Cia. recebeu o Prêmio Myriam Muniz, da Funarte, através do qual vai circular por quatro estados do Nordeste. O projeto de circulação inclui o espetáculo Seu rei mandou e As travessuras de Mané Gostoso, um bate-papo, chamado Conversas da Ribalta, e o espaço itinerante de leitura, com um acervo de livros temáticos. Na sequência, Seu rei mandou volta a entrar em cartaz no Recife, no Teatro Marco Camarotti, e o livro homônimo será lançado. “Por mais que as pessoas digam ‘tu fazes tanta coisa’, tudo é natural. Existe algo de conexão entre mim e o universo da criação. E muitas pessoas na história da arte já fizeram isso, no Renascimento, na Idade Média, mas me vejo muito mais como um mestre brincante, tenho esse saber, não sei de onde ele vem, mas ele existe, e é quase primitivo, intuitivo.”

CONTINENTE MAIO 2015 | 41

Perfil_MAI.indd 41

24/04/2015 14:12:58


1

Pernambucanas CONTINENTE MAIO 2015 | 42

Pernambucanas_MAI.indd 42

24/04/2015 11:10:47


BARROCO A herança no interior da nave

1 PADROEIRA Imagem de Nossa Sra. da Conceição, no teto da igreja 2 TORRE Exterior da edificação foi concluído no século 19, agregando estilos construtivos

Situada no centro do Recife, a Igreja da Nossa Senhora da Conceição dos Militares sintetiza elementos fundamentais do estilo arquitetônico tão bem assimilado no Brasil TEXTO Josias Teófilo FOTOS Pedro Valadares

O traçado urbano do Bairro de Santo

Antônio, no centro do Recife, é marcado por igrejas históricas. Elas têm lugar privilegiado e se destacam na paisagem, não obstante a perda dos pátios do Carmo e do Livramento, destruídos para o alargamento das vias e o acolhimento das construções cuja altura tirou a primazia das torres de igrejas. No entanto, é ainda patente como os templos católicos definem o traçado do bairro e o seu caráter pictórico. Uma igreja, porém, parece se esconder dos olhares em vez de se mostrar. Localizada na Rua Nova – famosa pela lenda que inspirou o romance de Carneiro Vilela, A emparedada da Rua Nova –, ela está ladeada por dois prédios comerciais e segue o alinhamento da rua, construída posteriormente. O frontão e a torre da igreja, construídos no século 19, só podem ser apreciados se o pedestre se colocar em frente à construção. Nessa situação tão pouco privilegiada está “uma das obras mais líricas que a arte barroca produziu”, nas palavras do historiador da arte francês Germain Bazin, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares. Curador do Museu do Louvre entre 1951 e 1968, Bazin foi um dos autores que mais se dedicaram à arquitetura barroca brasileira e o grande divulgador da obra de Aleijadinho no mundo.

2

É sua, aliás, uma das mais esclarecedoras definições da arte barroca: “O barroco é uma miragem, ele procede essencialmente por acúmulo, isso acontece porque lhe é preciso criar uma cortina de formas e imagens que intercepte o mundo real. O amor às grandes criações da época barroca exige uma certa condescendência da imaginação, que o homem de então possuía, estando sempre pronto a responder às solicitações da história, da mitologia, da hagiografia ou da fábula”. Bazin, ao escrever essas palavras, se dirigia ao público francês, pouco familiarizado com o Barroco. O brasileiro, no entanto, tem mais intimidade com o estilo que é, segundo Afonso Romano de Sant’Anna, a alma do Brasil.

As obras barrocas – a Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares em especial – ilustram o que escreveu o filósofo pernambucano Evaldo Coutinho sobre a essência da arquitetura. Para o autor de A imagem autônoma, a essência da arquitetura não está no exterior, mas no interior: teto e paredes. Assim, o que se vê da rua pertence à arte da escultura – para ele, a mais numerosa das artes, pois incorpora todos os prédios e habitações – e a autonomia da arquitetura se manifesta nos vazios interiores. São as Esculturas vazias, título do texto em que Evaldo Coutinho expõe essas ideias, publicado na modesta revista do departamento de Filosofia da UFPE, em 1995. Diz ele no texto: “A esculturalidade do prédio é apenas o invólucro de algo que, este, sim, ostente a matéria legitimamente exclusiva da arquitetura, a que lhe imprime o caráter de gênero artístico”. Pensando assim, a localização desprivilegiada da Igreja da Conceição dos Militares não interfere em nada na sua essência arquitetônica. É no interior que está a talha barroca pintada de branco e dourado, com pinturas alegóricas da Imaculada Conceição de Maria, brilhantemente descrita por José Luiz Mota Menezes no seu livro Dois monumentos do Recife. Nele, o arquiteto demonstra a maestria – propriamente barroca – com que se equilibrou a talha,

CONTINENTE MAIO 2015 | 43

Pernambucanas_MAI.indd 43

24/04/2015 11:10:48


Pernambucanas

3

elemento real, e a pintura, elemento ilusionista ou irreal, na composição do interior da igreja. “Na Conceição dos Militares, nisto residindo a sua notável qualidade, o mestre da talha substitui o pintor, deixando a este apenas a tarefa da pintura das cenas, e realizando, em talha, balaustrada e molduras. Infelizmente se desconhece o autor do risco deste conjunto entalhado, tampouco se sabe quais os entalhadores o executaram; entretanto, posso assegurar, eram todos excepcionais mestres da sua profissão, haja vista o resultado obtido, talvez único no gênero.” Germain Bazin, por sua vez, referese à Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares como uma obra única, e acrescenta que Portugal não ofereceu nada que se aproxime. Mas o impressionante é a comparação que ele faz entre o teto do templo recifense e a obra de Michelangelo. “O teto da Conceição dos Militares é a Capela Sistina do rococó. (Ele) é a apoteose da talha, a expressão suprema desse estranho

Para o filósofo Evaldo Coutinho, a essência da arquitetura não está no exterior, mas no interior: teto e paredes gênio lusitano que de bom grado se entrega aos paroxismos da expressão para descobrir a arte de resolvê-los em harmonia”, escreve Bazin, no seu livro Arquitetura barroca no Brasil.

HISTÓRIA E RESTAURAÇÃO

Foram os militares que solicitaram a criação da Irmandade que leva seu nome e da igreja sob invocação de Nossa Senhora da Conceição, inclusive pedindo para isso ajuda ao rei de Portugal. As obras foram concluídas em 1771, mas o acabamento interior só ficou pronto 100 anos depois – várias gerações, então, contribuíram para a construção que vemos hoje e que parece tão harmonicamente concebida. A igreja possui uma só

nave e corredores laterais aos quais se pode ter acesso através de cinco portas. Logo na entrada, chama a atenção o forro pintado do coro que retrata a Primeira Batalha dos Montes dos Guararapes, realizada em 1781. No painel se lê o seguinte escrito (originalmente em caixa alta, com uma grafia que hoje nos causa estranhamento): “Victoria alcançada pelos portugueses na primeira batalha dos montes Guararapes em 19 de abril de 1648, contra os hollandezes, que contavam 10:500 homens, e nossos 2:500 com índios e henriques, entre as mais batalhas honrosas que tiveram 7 annos continuos, libertaram toda esta capitania da tirania dos bárbaros hollandezes, e a ofereceram como fies vassalos ao nosso augusto e soberano rei”. Não são as pinturas que mais chamam a atenção no interior do templo, mas a talha, os altares decorados com precisão, o brasão imperial. No livro supracitado, José Luiz Mota Menezes se pergunta: “Seria o ‘horror ao vazio’, legado mouro e caráter de sua decorativa, que teria marcado sensivelmente a nação lusa?”. Esse horror ao vazio pode ser claramente notado no interior da Conceição dos

CONTINENTE MAIO 2015 | 44

Pernambucanas_MAI.indd 44

24/04/2015 11:10:49


5

6

7

4

Militares, e não é completo pela falta de um elemento: o silhar de azulejos que existiu nas paredes laterais. No entanto, é a partir dos vazios que resultaram da composição arquitetônica da igreja que José Luiz Mota Menezes chega a uma constatação elevante, transcrita aqui do seu livro: “A luz, penetrando pelos corredores e antessalas, rasga violentamente esses locais, mas é filtrada suavemente pelas portas e tribunas, modelando com suavidade os ornatos da talha, sem sombras bruscas e dramáticas. O arquiteto da Igreja dos Militares domina a luz tropical e somente envia aos interiores da nave e capela-mor aquela luminosidade necessária à vida das formas”. Há cinco anos em reforma, a igreja foi fechada recentemente e deverá receber 11 milhões do PAC Cidades Históricas para um amplo restauro, incluindo bens móveis integrados, instalações elétricas e hidráulicas e implantação de acessibilidade nos banheiros. Tal apuro com a iluminação, referido por Mota menezes, não se deve somente a cuidados estéticos, mas à necessidade mágico-religiosa própria da liturgia. Nós,

indivíduos contemporâneos, estamos distantes do significado profundo da ritualística tradicional. Mesmo a Igreja Católica alterou significativamente a liturgia tradicional com o Concílio Vaticano II que, em 1969, sob o papado de Paulo VI, reviu o rito da missa, diminuindo o tempo da cerimônia e traduzindo para as línguas locais o que antes era inteiramente falado em latim. A nova missa substituiu a antiga – existente desde 1570 –, para descontentamento dos católicos tradicionalistas. Mas, em 2007, o Papa Bento XVI promulgou o Summorum Pontificum, com o qual libera o uso da missa tradicional, chamada de tridentina, bastando somente ser solicitada por um grupo estável de fiéis. No Recife, esse grupo estável e afeito ao rito tradicional tem a sua missa originalmente na Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, aos domingos, às 10h. Com a reforma da igreja, as missas estão acontecendo na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, também na Boa Vista. Com o fim das obras, a liturgia tridentina voltará a ser realizada na

3 MADEIRA É desconhecida a autoria do precioso trabalho de entalhe da igreja 4 BRASÃO IMPERIAL Elemento se destaca na parede que antecede o nicho do altar 5-7 DETALHES Toda a nave está repleta de itens do barroco nacional

Igreja da Conceição dos Militares. Os frequentadores são, em sua maioria, jovens e mulheres, que costumam usar um véu encobrindo os cabelos. Um grupo no Facebook, chamado Missa Tridentina no Recife, foi criado para responder a perguntas dos simpatizantes e informar eventuais mudanças de horário e outros detalhes. Na liturgia tridentina é possível sentir-se mais próximo da ritualística, que durante séculos foi realizada naquele espaço arquitetônico e, mais do que isso, pertence à sua essência originária. Pois, como diz o filósofo Evaldo Coutinho: “Na arquitetura, com o seio franqueado a muitas revelações, uma se sobressai em artisticidade: a de propiciar aos desfiles do tempo as oportunidades em que ele consente minorar ou interromper a marcha dos perdimentos”.

CONTINENTE MAIO 2015 | 45

Pernambucanas_MAI.indd 45

24/04/2015 11:10:50


DIVULGAÇÃO/ RESTAURANTE POBRE JUAN

Cardápio 1

CHURRASCO Desde que o homem descobriu o fogo

Ancestral hábito de chamuscar a carne passa por evoluções técnicas, como a queima da madeira, que leva os comensais a diferentes experiências gustativas TEXTO Eduardo Sena

CONTINENTE MAIO 2015 | 46

Cardapio_MAI.indd 46

28/04/2015 11:10:01


Não faz tanto tempo que a receita

1

BIFE ANCHO Atualmente, é um dos cortes que fazem mais sucesso nas churrascarias

de um churrasco de melancia exibido num programa culinário da TV fechada ganhou os holofotes e virou motivo de galhofa no país. Autora do preparo polêmico, que já rendeu mais de 199 mil buscas no Google (e milhares de piadas nas redes sociais – e também fora dela), a chef de cozinha e apresentadora Bela Gil mostrou para os seus convidados, naquele episódio, a sua versão do que seria um churrasco saudável. “Substituir a picanha por melancia, que é uma esponja de frutose. Como assim?”, questionou um usuário do Twitter. Antipático e desnecessário para boa parte dos telespectadores, o episódio chama a atenção para a evolução do churrasco. Afinal, como toda linguagem cultural, gastronomia também retrata o tempo em que está situada. Se, hoje, o discurso de saudabilidade por meio de alimentação nunca esteve tão forte (a ponto de programas de TV com esse foco já estarem naturalizados), não é de se estranhar que melancias grelhadas despontem como opção ao churrascão tradicional. Obviamente, nem sempre foi assim. Ainda no século 19, o naturalista Charles Darwin, autor da Teoria da Evolução, constatou que “o fogo é, provavelmente, a maior descoberta da humanidade depois da linguagem”. O fato é que foi só depois de dominar o elemento mais quente da natureza que o Homo sapiens deixou de viver como os outros animais, vagando atrás de alimentos crus. Impossível saber o que os nossos ancestrais manifestaram ao mastigar os primeiros nacos de carne chamuscada, mas dá para imaginar a surpresa agradável no rosto de cada um. “Imaginem, além de uma nova textura, mais agradável aos dentes – possibilitando o ato de mastigar a carne e não apenas rasgá-la –, havia, acima de tudo, um tal de ‘sabor’, resultado primeiro da transformação da carne oriunda da caça em algo com um toque defumado”, pontua o “papa” do churrasco no Brasil, Marcos Bassi, no livro Carnes e churrasco. A soma proteína + brasa obteve êxito irreversível, e atravessou os milênios seguintes. E se teve algo que

não mudou ao longo do tempo, entre as cavernas e os dias atuais, foi o ato de grelhar a carne no fogo. Aliás, de atávico mesmo só o prazer propiciado pelo churrasco, porque, no que tange às técnicas empregadas nele, houve uma evolução pautada na melhora – objetivo central das evoluções. Na trajetória do preparo de cortes animais sobre labaredas, as mudanças ocorreram principalmente no recipiente em que se coloca o carvão ou a madeira para queimar. Inclusive, dispensando os comburentes tradicionais – como as churrasqueiras elétricas e o char boiler (grelhas de alta potência que funcionam a gás). Um dos primeiros passos evolutivos foi anotado há 35 mil anos, com o homem de Cro-magnon, que fazia uma cavidade no chão para pôr as brasas – tradição ainda mantida no Brasil, sobretudo na Região Sul, para assar costelas bovinas ou animais inteiros, como um carneiro. No país, ainda no período colonial, os índios nativos usavam o fogo em um buraco na terra para assar aves e peixes, o moquém, do tupi moka´em,

Com a descoberta do fogo, foi possível levar a carne à brasa, obtendo um resultado irresistível, que atravessou milênios origem da expressão moquear. O que nada mais é do que deixar as carnes sobre grelhas de madeira até ficarem defumadas, como nos lembra o folclorista potiguar Câmara Cascudo, no livro História da alimentação do Brasil. Mas foi com os colonizadores portugueses e imigrantes europeus que o Novo Mundo aprendeu a fazer o churrasco da forma que é executado hoje. E, necessário registrar, aprimorando a técnica para obter resultados muito mais exitosos.

MELHOR CARNE

Apenas na América do Sul, Argentina, Brasil e Uruguai disputam o posto do melhor churrasco do mundo. Em comum, o uso do sal grosso como

CONTINENTE MAIO 2015 | 47

Cardapio_MAI.indd 47

28/04/2015 11:10:01


IMAGENS: REPRODUÇÃO

Cardápio 2

ANDRÉ NERY/DIVULGAÇAO

2-3 PARILLA Técnica argentina utiliza as grelhas inclinadas 4 BIFE DE TIRA Corte transversal da picanha garante maior maciez

4

único tempero admitido. Em relação à técnica, para começar, brasileiros preferem o carvão já processado e comprado em pacotes, enquanto os argentinos preferem o método da parrilla, com a madeira sendo queimada ao lado da grelha, e com a brasa resultante sendo puxada para a área onde estão as carnes. “Para muitos,

não faz grande diferença, já que, no final das contas, o que vai assar a carne é o calor do carvão. Mas os argentinos garantem que o trabalho a mais vale a pena, pela possibilidade de escolher a madeira a ser utilizada, que pode propiciar um sabor extra”, conta o mestre churrasqueiro da unidade recifense do Pobre Juan, Ariston Alves.

Outra diferença passa pela posição das grelhas: no Brasil, elas são assentadas horizontalmente nas churrasqueiras, já nos dois países vizinhos, ficam inclinadas, facilitando o escoamento da gordura. A parrillera, famosa grelha argentina, e amplamente usada no Brasil nos restaurantes especializados, é uma das mais eficazes na garantia de uma boa carne. “Tudo por conta de um design triangular nas grelhas feito sob medida, para não deixar os sucos da carne se perderem, permitindo um processo de condensação, que assa e cozinha, deixando a proteína macia e suculenta”, complementa Ariston. As mudanças também ocorreram no recipiente em que se colocam

CONTINENTE MAIO 2015 | 48

Cardapio_MAI.indd 48

28/04/2015 11:10:03


DANDO NOME AOS BOIS

3

os comburentes para queimar. Da mais moderna churrasqueira – algumas com controle eletrônico de temperatura, até a improvisada, construída com alguns tijolos lado a lado. “A chegada dos primeiros utensílios de metal modificou os hábitos de cozimento da humanidade, principalmente ao permitir as preparações culinárias dentro das habitações – o costume passou a vigorar sobretudo na Europa, onde imensas lareiras eram usadas como fogão e grelha”, sublinha Cascudo. Animais de caça e aves eram temperados com especiarias e colocados em espetos para assar. O olhar em perspectiva para um passado, ainda que recente, também chama a atenção para uma mudança no gosto à mesa.

PAIXÃO POR PICANHA

Herdeiro de uma das famílias pioneiras em trazer o conceito de rodízio de carne para o Nordeste, com o extinto Laçador, no final dos anos 1970, o mestre parrillero Paulo Brol Filho, hoje à frente da churrascaria Tapa de Cuadril, conta que foi nessa época que a picanha chegou por aqui. “Era um corte subaproveitado no mercado. Mas, por conta de sua facilidade no manuseio, associado a um sabor nunca antes experimentado, foi crescendo e virou paixão absoluta”, rememora. Segundo ele, não seria exagero dizer que foi essa carne que colocou o churrasco na preferência dos brasileiros. “A picanha foi a grande responsável por fazer as pessoas virarem adeptas de carne na brasa, ao ponto de

Empresários do ramo afirmam: se tivessem que eleger um novo corte para substituir a picanha como a nova “cara do churrasco brasileiro”, esse seria o bife ancho. Mas, afinal, do que estamos falando? Fizemos um glossário com os nomes dos principais cortes bovinos que, se ainda não estão nos cardápios, estarão em breve. No que diz respeito a raças, a angus tem, entre os atrativos de seus cortes, uma carne mais tenra, suculenta e saborosa. Um dos motivos é a camada de gordura contida nela, considerada perfeita, nem fina nem espessa. E ainda é marmorizada, ou seja, é entremeada na musculatura do animal, o que deixa a carne mais magra com o mesmo sabor da mais gorda. ASSADO DE TIRA Costela fina bovina com osso. BIFE ANCHO Corte traseiro do contrafilé, retirado entre a quinta e décima primeira costela. Caracterizase pelo seu elevado grau de marmoreio, maciez e sabor. BIFE DE CHORIZO Parte dianteira do contrafilé, desossada, com uma leve capa de gordura. BIFE DE TIRA Corte transversal da picanha, ganhando em maciez. ENTRECÔTE Ponta do contrafilé, com textura extremamente macia. KOOB BEEF Retirado do wagyu, gado de origem japonesa, que recebe uma alimentação especial, à base de cevada, e até mesmo

massagens. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cada bife deve ter 5% a 6% de gordura. A carne é conhecida pela extrema maciez (chega a ser cortada de colher), sabor proeminente e não tem músculo. O corte de 400 g chega a custar R$ 200 ao consumidor final. OJO DE BIFE Corte do centro do contrafilé. PRIME RIB Bife ancho com costela. T-BONE Corte do contrafilé e filé separados por osso. TAPA DE CUADRIL Picanha em corte tradicional. VACIO A conhecida fraldinha. Retirada da parte entre o traseiro e a costela do boi.

CONTINENTE MAIO 2015 | 49

Cardapio_MAI.indd 49

28/04/2015 11:10:04


DIVULGAÇÃO

Cardápio 5

5 TRADIÇÃO O típico churrasco brasileiro é feito com carvão e grelha na horizontal

eleger o churrasco como um dos pratos nacionais. Era a rainha do fim de semana”, defende. Os fatores econômico e alfandegário também sublinharam a força do corte, uma vez que, na Argentina, um dos principais países exportadores, a picanha não tem valor comercial, resultando em um grande montante de exportação para o Brasil. Mas, como o gosto do consumidor vem se transformando, embalado, muitas vezes, por tendências que dão contorno ao universo gastronômico, a peça vem perdendo espaço. “Por conta da introdução de novos cortes nobres, ela já não é a mais pedida, e, mês a mês, registra quedas de consumo”, aponta Jair Konrad, gerente-geral do Spettus, churrascaria que funciona no sistema de rodízio. Segundo o gestor, o bife de chorizo, o bife ancho e a paleta de cordeiro são as

principais rivais. Para se ter uma ideia, atualmente são consumidas cerca de quatro toneladas de picanha por mês – há dois anos, essa demanda era 40% maior. A rede Pobre Juan, instalada no shopping RioMar, tem números mais contundentes, que reforçam essa perda de prestígio – pelo menos no que se refere ao mercado paulista. Segundo Luiz Marsaioli, um dos sócios do empreendimento, 50% das vendas da casa são de bife ancho e apenas 20% são referentes à picanha em seus dois cortes, o tapa de cuadril e o bife de tira. “Esse ‘sair de cena’ é uma evolução natural. Há 30 anos, fazia-se churrasco com linguiça, lombo, frango, alcatra. Depois, passamos para o filé, a picanha. Atualmente, cortes do contrafilé são o hype, não vai demorar para as carnes de bois japoneses (kob beef) se tornarem populares também”, prognostica. Para Paulo Brol, essa evolução passa ainda pela mudança na perspectiva alimentar, pela relação entre qualidade e quantidade, e

pela necessidade de experimentar preparos. “As pessoas não querem mais se satisfazer apenas nutricionalmente e, sim, comer menos, investindo em qualidade e se permitindo novas experiências”, diagnostica. Quando abriu o Tapa de Cuadril, em 2012, o empresário assistiu ao grande assédio dos clientes aos cortes tapa de cuadril e bife de tira, ambos retirados da picanha. “Muitas vezes, só uma nomenclatura nova já desperta o desejo. Mas o tapa de cuadril nada mais é do que a picanha, só que sem aquele formato de bola presa no espeto, tem um corte que prende mais os sucos. Já o bife de tira é uma modalidade transversal da mesma proteína, ganhando em textura, mais macia”, explica. Hoje, entretanto, os dois já perderam a preferência para o bife ancho, seguido pelo prime rib de angus e o bife de chorizo. “Estamos falando de uma média. Mas, quando recebemos novos cortes, de forma pontual, e sugerimos ao cliente, são sempre a primeira opção. O novo seduz”, destaca.

CONTINENTE MAIO 2015 | 50

Cardapio_MAI.indd 50

28/04/2015 11:10:05


Cardapio_MAI.indd 51

28/04/2015 11:10:06


IMAGENS: REPRODUÇÃO

Claquete 1

FASSBINDER “Não lanço bombas, eu faço filmes”

Cineasta, que completaria 70 anos neste mês, condensa em sua obra o horror ao nazismo e as impossibilidades das relações interpessoais TEXTO Clarissa Macau

O cineasta alemão Rainer Werner

Fassbinder possuía um desejo insuspeito: por se achar feio, queria aparecer na capa da revista americana Time. “Quando a feiura tiver subjugado a beleza, nisso consiste o luxo”, dizia. Sua filosofia era a contradição. RWF emergiu do grupo teatral Antiteatro, dirigiu clássicos contemporâneos, como a crônica feminina O casamento de Maria Braun (1978) e a adaptação do livro de Jean Genet Querelle de Brest (1982). “Não lanço bombas, eu faço filmes.” Essa foi a frase de efeito

estampada no cartaz de A terceira geração, dirigido por ele três anos antes da sua morte. Rainer refletia, então, sobre a possibilidade do terrorismo ser um fenômeno encomendado para manter a supremacia da política capitalista sobre as pessoas, enquanto líderes se fingiam de defensores do povo. Anarquista, sadomasoquista e passional, uniu razão e emoção em ficções de caráter irônico e voltadas à História. Do final da década de 1960 ao início de 1980, abordou as sequelas de um país marcado pela doutrina

nazista, além de temas universais como preconceito, medo e amor. Sua trajetória se tornou uma das principais da Nova Onda Alemã, ao longo de produtivos 16 anos – com mais de 40 filmes – e acabou prematuramente aos 37 anos, com uma overdose de cocaína. Filho de pais separados, Fassbinder dispensou a escola, preferindo se educar com os notívagos – prostitutas e cafetões – e nas sessões de cinema, sendo seminal também em sua formação o livro Berlim Alexanderplatz, de Alfred Doblin, cujo protagonista, Franz Biberkopf, foi inspiração para numerosas figuras do universo do diretor. A obra inspirou, inclusive, uma de suas obras mais aclamadas, a série de TV homônima, composta por 14 episódios. Autor do blog Cinema Europeu, o jornalista Roberto de Acioli Oliveira analisa os filmes de RWF. “Ele construiu um catálogo gigante de personagens e temperamentos que caracterizam a sociedade alemã. As figuras masculinas e femininas de Fassbinder internalizam a opressão em vez de lutar.” De sua parte, o crítico de cinema e historiador da arte Luiz Soares Júnior

CONTINENTE MAIO 2015 | 52

Claquete_MAI.indd 52

24/04/2015 11:07:43


observa que tanto Fassbinder quanto o seu colega do Cinema Novo, Wim Wenders, “são diretores tardios, que sabiam que deviam muito à história pregressa do seu país e do cinema”. Através de espelhos, luzes e sombras expressionistas, Fassbinder contava suas histórias repletas de duplos vínculos. Em O direito do mais forte (1975), por exemplo, quando Franz, interpretado pelo próprio Fassbinder, apaixona-se e se submete a um homem que intenciona apenas usá-lo financeiramente, os personagens se envolvem num relacionamento de dominação, e um deles somatiza a experiência. “Rainer trata o homossexual como qualquer indivíduo, sem idealização. Tanto capaz de amar quanto de manipular os sentimentos alheios”, observa Soares Júnior. Nas obras setentistas As lágrimas amargas de Petra Von Kant, Martha e Medo do medo, as protagonistas são levadas ao desespero e à perda de identidade, em decorrência da opressão do casamento e do sistema hierárquico de poder. Na pesquisa O cinema-teatro de Fassbinder, Samuel Paiva reflete: “As mulheres de Fassbinder são reais,

“Ele foi o intérprete visual da Alemanha do século 20, da República de Weimar ao terrorismo ” Christian Braad Thomsen elas vivem numa sociedade em que os princípios que valem são os do patriarcado e expressam suas dores”. Para o amigo de RWF e historiador de cinema Christian Braad Thomsem, “ele foi o intérprete visual da Alemanha do século 20, da República de Weimar ao terrorismo. Mas nunca descreveu a situação política teoricamente. Ele expressa como as condições influenciam a vida afetiva dos indivíduos”. Obcecado por trabalho, Fassbinder proferia frases como “posso dormir quando estiver morto”, já que descansava menos de três horas por dia, gastando milhares de marcos por mês em cocaína. “Ele costumava usar pó como motivador profissional. Isolavase enquanto escrevia roteiros e ditava

1

FASSBINDER O alemão produziu mais de 40 filmes, em 16 anos, e morreu jovem, aos 37, de uma overdose de cocaína

2

BERLIM ALEXANDERPLATZ A série de TV com 14 episódios foi inspirada no livro homônimo de Alfred Doblin

2

ao gravador. Muitas pessoas não sabem o que estão fazendo drogadas, mas ele sabia”, observa Thomsem. Parceiros fiéis seguiram o diretor por toda vida, como os atores da companhia Antiteatro, Hanna Schygulla, Harry Baer e Kurt Raab, os namorados e namoradas – frequentemente encaixados em papéis nos filmes –, a exemplo de Gunther Kaufmann, Armin Meier, Ingrid Caven e Juliane Lorenz. Thomsen descreve o ambiente de trabalho de Fassbinder como “uma atmosfera carregada, mas, ao mesmo tempo, tranquila”. “Ele nunca fingia seus humores. É possível dizer uma coisa sobre Fassbinder e ao mesmo tempo dizer o oposto”, definiu. Thomsen dirigiu o documentário Amar sem pedir nada em troca, lançado no Festival de Berlim, este ano. No longa, uma entrevista inédita – filmada em 1978 – mostra um Fassbinder vulnerável, e artistas que estiveram presentes em sua obra discutem sua vida. No documentário, Margit Carstensen, estrela de Petra Von Kant, longa no qual interpreta a estilista rica que é usada pela amante, afirma: “Muitos o consideravam perigoso, simplesmente

CONTINENTE MAIO 2015 | 53

Claquete_MAI.indd 53

24/04/2015 11:07:44


IMAGENS: REPRODUÇÃO

3

Claquete 4

porque Fassbinder tinha coragem de ser verdadeiro, como poucos. A maioria das pessoas possui o eu interno incompatível com o externo. Eu poderia honestamente mentir enquanto estivesse interpretando as personagens criadas por Fassbinder, com fins de criticar a sociedade, pois precisava atuar com a dualidade a fim de produzir um personagem como os existentes na vida real”.

VAIADO NA ESTREIA

Os primeiros trabalhos de Fassbinder foram contemporâneos ao declínio do studio system americano e à chegada de diretores daquela que ficou conhecida como a New Hollywood, ou pósHollywood clássica, período entre 1964 e 1982, em que surgiram nomes como Woody Allen, Stanley Kubrick, Francis Ford Copolla e Robert Altman. Fassbinder era um rapaz de 20 anos assistindo ao crescimento da Alemanha como potência econômica mundial.

Os primeiros trabalhos de Fassbinder coincidem com o surgimento, nos EUA, de diretores como Allen e Kubrick Na série de debates La rage de Fassbinder, promovida em 2005, pelo Centro Georges Pompidou, em Paris, a atriz Hannah Schygulla afirmou que o diretor buscava um mundo mais anárquico, menos hierárquico. “Mas, nascer nessa geração pós-guerra era como se a herança familiar fosse uma agressão”, disse, “por isso ninguém gostava de tocar no assunto”. RWF contrariou o senso comum, mostrando que os jovens e espectadores queriam voz própria. Os primeiros personagens do diretor alemão eram indiferentes e frios. Como

3

AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT A estilista rica é usada pela amante

4

O MEDO DEVORA A ALMA Filme de 1974 foi livremente baseado no clássicoTudo o que o céu permite (1956)

5

O MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES Obra conta a história de um vendedor de frutas que sofre por ser considerado um perdedor

assinala o jornalista Roberto de Acioli Oliveira (Fassbinder e Hollywood, 2009), as suas obras iniciais traziam figuras monossilábicas, em que os sentimentos não passavam de suspeita de emoção. O historiador Christian Braad Thomsem conta que se impressionou ao ver, em 1969, o estático O amor é mais frio que a morte, estreia de Fassbinder na Berlinale. “Achei o máximo. Os cortes fílmicos se faziam sentir, mas o filme foi vaiado pelo público. Vi Fassbinder sentado num bar, senti que aquele garoto de 24 anos precisava de palavras de conforto. Ele apenas agradeceu, não podia se importar menos com as vaias ou minha atitude. Muitos em seu lugar desistiriam da carreira. Mas ele sabia que nos próximos 13 anos criaria muitos filmes.” O amor é mais frio que a morte é uma paródia do filme noir americano. O longa retrata um criminoso chamado Franz Walsh, que, junto à namorada e ao recém-conhecido Bruno, envolve-se com assassinatos, roubos e prostituição. São como alemães presos dentro de filmes americanos. Remetenos ao Acossado (1960) de Jean-Luc Godard, em que Jean-Paul Belmondo interpreta um fora da lei nômade, porém, mais falante que Franz. Tal semelhança, segundo o crítico Luiz Soares Júnior, deve-se ao ponto de vista. “O pastiche é o elo mais definidor entre eles. Para modernistas como Fassbinder e Godard, é indispensável estar acima do bem e do mal. Antes, os filmes clássicos, e isso inclui o noir, repousavam sobre o ideal do bom, belo e justo. Havia uma ideia clara sobre quem era o vilão. Os modernos preferem pontos de vista cínicos, niilistas.” Fassbinder voltou-se ao gênero dos mocinhos e mocinhas dramáticos guiado pelas críticas sociais sutis do mestre do melodrama Douglas Sirk. Mas, ao contrário dos hollywoodianos, ele não carimbava finais felizes, ganhando coragem para conquistar o público com

CONTINENTE MAIO 2015 | 54

Claquete_MAI.indd 54

24/04/2015 11:07:44


Intertextualidades

O TEATRO E A LITERATURA NO CINEMA DE FASSBINDER

5

sua visão controversa de mundo. Seu primeiro sucesso internacional foi O mercador das quatro estações, de 1972, filme sobre um vendedor de frutas que sofre por ser considerado um perdedor. Mais aclamado pela crítica, entretanto é O medo devora a alma (1974), livremente baseado no clássico dirigido por Sirk, Tudo o que o céu permite (1956). A versão alemã trata de um relacionamento inusitadamente lúdico entre uma mulher de classe média baixa, beirando os 70 anos, e um jovem marroquino. O encontro de, respectivamente, Emmi e Ali, acordará a xenofobia dos vizinhos, além do estranhamento ao casal de grande diferença de idade. O medo devora a alma evidencia que não há mais lugar para a visão clássica do cinema, ao mostrar, de maneira seca e direta, as dominações sociais, antes camufladas. Emmi age como quem viveu o nazismo, Ali, a submissão treinada. A fim de celebrar o recém-noivado, ela

leva o noivo marroquino para um restaurante, anunciando o lugar – alegremente – como o preferido de Adolf Hitler. O diretor pernambucano Daniel Aragão (autor dos longas Boa sorte, meu amor e Prometo um dia deixar essa cidade), afirma Fassbinder como uma de suas maiores influências. “Em O medo devora a alma, a questão do imigrante, que está entre seus filmes mais fortes, chega ao ápice. Há frieza na construção de situações bastante dramáticas, emocionais. Fassbinder me ensinou que é possível deixar uma marca na direção, mesmo quando se trata de uma história clichê e desprezível.”

REFLEXOS NO ESPELHO

A fim de dar materialidade aos pensamentos, Fassbinder lançava mão de um artefato também muito presente em Sirk: o espelho. O crítico Luiz Soares conta que “os espelhos de RWF revelam que todo narcisismo é devedor de um jogo social. Não há ‘natureza’, podemos

Fassbinder foi recusado duas vezes na Faculdade de Cinema de Berlim. Achou no teatro uma forma de estudar suas aspirações cinematográficas. Faria cinema nos palcos. As musas do seu coletivo Antiteatro, Hanna Schygulla e Margit Carstensen, seguiriam-no na trajetória fílmica de pouco mais de uma década. Segundo Samuel Paiva, autor de O cinema-teatro de Fassbinder, “Ele é possivelmente o diretor do cinema novo que mais mergulhou na tradição teatral alemã. A referência é o expressionismo dos palcos dos anos 1920”. No tablado, Fassbinder aprendeu a lidar com textos de qualquer espécie. A série para TV Berlim Alexanderplatz é um programa que possui traços teatrais e concepção única de adaptação. Observando os métodos do diretor, o jornalista especializado em literatura e cinema César Zamberlan fala de um “duelo artístico”. “Ele vai ao encontro do autor e de sua época, aclimatando-os ao universo fílmico. Há um enfrentamento”, coloca. A força literária não é engolida pela performance dos atores, porque a atuação não é emocional. Ele fez isso também com Effi Briest, de Theodor Fontaine, e Querelle, de Jean Genet. “Sua postura nunca foi preguiçosa com o texto. O teatro talvez seja o responsável. Atividade na qual o processo de criação artística e sua relação de exploração do texto garantem um corpo a corpo com a obra literária muito mais intenso do que no cinema, atividade cara e acelerada”, diz Zamberlan. A crítica aponta que as principais influências de RWF foram os dramaturgos Bertolt Brecht, Antonin Artaud e Jean-Marie Straub. O último, amigo com o qual colaborou e aprendeu a funcionalidade de uma câmera estática. De Brecht, apreendeu a maestria do distanciamento épico. “Hanna Schygulla (na foto acima) é uma grande atriz brechtiana, vemos como chama a atenção para o fato de interpretar”, assinala Luiz Soares, sobre o artificialismo que possibilita o pensamento do espectador na filmografia de Fassbinder. Já a partir da concepção de Artaud, contradizendo Brecht, produziu uma indistinção entre encenação e realidade, na intensidade com a qual misturava vida e trabalho. “É praticamente impossível distinguir Fassbinder de sua obra, assim como Artaud, as duas coisas acontecem simultaneamente. É como se ele fosse a principal peça da sua pesquisa artística”, opina Paiva. Processo explicitado no curta Alemanha do outono, no qual ele aparece discutindo enfaticamente com a mãe e o namorado sobre o terrorismo na Alemanha de 1977. “Fassbinder morre justamente nessa perspectiva de uma entrega absoluta, uma autoexposição sem limite”, completa o pesquisador. (CLARISSA MACAU)

CONTINENTE MAIO 2015 | 55

Claquete_MAI.indd 55

24/04/2015 11:07:45


INDICAÇÕES

Claquete dizer, pois tudo o que nos aparece é intricado na teia da coerção social, guiado por valores de certa cultura”. Quando, pela primeira vez, Emmi observa Ali como uma pessoa bonita, ela o vê através do espelho. Quando Ali se sente culpado por suas atitudes em relação à Emmi, encara-se no reflexo próprio e agride o rosto num ato de ofender a figura pela qual a mulher se apaixonou. O jogo das reflexões aparecerá em vários de seus filmes. “O reflexo não é subjetivo. Fissura a ideia herdada pela percepção clássica de que o cinema é o plano da verdade. Não, o cinema é uma arte do engodo”, ressalta Luiz Soares. O casamento de Maria Braun, primeiro exemplar da trilogia BRD (sigla para Bundesrepublik Deutschland, República Federal da Alemanha), seguido por O desespero de Veronika Voss e Lola, tornou-se o maior sucesso comercial de Fassbinder, firmando-o como cineasta popular e crítico. Nos anos 1940, Maria Braun é a representante do futuro de uma grande Alemanha, enquanto o marido desaparecido na guerra é o símbolo do passado nazista que quer ser esquecido. Luiz Soares aponta que, “quando Braun sabe da morte de seu marido no front, não chora, ela abre uma torneira deixando a água escorrer pelo braço. A ideia é opor uma fonte reprimida, os sentimentos, à outra que jorra materialmente: essa fonte reprimida sai ‘incorporada’ pela água da torneira”. O alemão mostra seus objetos de cena como metáforas. Manequins estão

espalhados no cenário da estilista Petra Von Kant. Marlene, sua empregada muda, é sempre ordenada aos gritos pela patroa, enquanto assiste ao seu definhamento por conta da modelo Karin. Na verdade, quem manipula o jogo de cena é Marlene, quando troca os móveis e bonecas de lugar, complicando a psicanálise das relações no filme. Luiz Soares raciocina: “Ela não fala, sua única forma de expressão é a orquestração do cenário, nisso ela é representação do diretor na cena. O ponto de vista sobre a relação entre Petra e Karin é dado por ela, símbolo do voyeur”. “O cinema sem Fassbinder seria infinitamente mais sem graça”, opina Ricardo Pretti, um dos cineastas do coletivo cearense Alumbramento. Filmes do grupo, como Cartaz, Doce amianto e No lugar errado, remetem à relação com o teatro, à câmera, às cores e aos artifícios usados na linguagem cinematográfica do diretor alemão. “Ele tinha um conjunto de pessoas que o ajudava em quase todos os filmes. Isso certamente colaborou na consistência de seu estilo. A Alumbramento, de certa forma, busca dar continuidada a essa tradição de trupe.” Para Luiz Soares Júnior, coletivos como o pernambucano Surto e Deslumbramento e o paulista Cinefusão também dialogam com o espírito criativo do diretor, em que as narrativas cinematográficas se distanciam da vida real para denunciar a artificialidade intrínseca à hipocrisia humana. Com personagens lacônicos ou melodramáticos, Fassbinder nos oferece interpretações do que são as carcaças humanas e do que elas guardam por dentro.

SCI-FI/DOCUMENTÁRIO

DRAMA

Dirigido por Adirley Queirós Com Marquim do Tropa, Shockito, Dilmar Durães Vitrine Filmes

Dirigido por Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne Com Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée Imovision

Um baile black na Ceilândia é invadido pela polícia. De forma racista, ela agride pessoas ali presentes: entre as vítimas, estão Marquim e Shockito. Ambos vivem num Distrito Federal futurista e totalitário, no qual é necessário ter um passaporte para chegar até Brasília. Em paralelo, um homem viaja pelo tempo para coletar provas sobre a violência do Estado brasileiro às populações negras. Forte e político, o longa é um dos melhores nacionais recentes.

Recuperando-se de uma depressão, Sandra descobre que vai perder o emprego, pois seus colegas preferiram ganhar um bônus no final do ano a mantê-la na empresa. Num filme que expõe as diferenças entre solidariedade, compaixão e amor, ela decide ir à casa de cada colega, para tentar convencêlos a mudar de ideia. O filme se engradece e se torna emocionante pela narrativa simples, mas incisiva, além das atuações sem defeitos.

COMÉDIA/DRAMA

DOCUMENTÁRIO

Dirigido por Jason Reitman Com Ansel Elgort, Jennifer Garner, Adam Sandler Paramount Pictures

Dirigido por Brian Knappenberger Com Aaron Swartz Participant Media/FilmBuff

BRANCO SAI, PRETO FICA

HOMENS, MULHERES E FILHOS

Com diferentes universos que se cruzam no corredor de uma escola, o longa trata sobre como as tecnologias recentes afetam as relações humanas. Baseado no livro homônimo de Chad Kultgen, o filme traz um casal em crise sexual, uma menina bulímica apaixonada por um garoto mais velho, e diversos problemas maternos. Homens, mulheres e filhos vale pelo enredo que aborda, mesmo de forma ambiciosa e um tanto superficial.

DOIS DIAS, UMA NOITE

O MENINO DA INTERNET: A HISTÓRIA DE AARON SWARTZ

Aaron Swartz foi um programador, escritor e ativista pela liberdade na internet. Inovou e facilitou o uso da rede e fez ações políticas para disseminar conhecimento. Foi preso pela polícia norteamericana, após liberar artigos científicos gratuitamente em 2011, e encontrado morto, por suicídio, dois anos depois, aos 26. O filme é um retrato inspirador de Aaron, que promove um debate sobre mídia virtual e acesso à informação.

CONTINENTE MAIO 2015 | 56

Claquete_MAI.indd 56

24/04/2015 11:07:46


DIVULGAÇÃO

Palco POPULAR Uma turnê para mostrar o Nordeste

Homenageado do Palco Giratório 2015, o Balé Popular do Recife circula por 22 cidades com espetáculo baseado nas danças da região TEXTO Marina Suassuna

1

Três ensaios por semana com duas horas e meia de duração. Essa foi a rotina do Balé Popular do Recife durante três meses, enquanto se preparava para uma nova turnê do espetáculo Nordeste: a dança do Brasil. Acostumado a circular com o projeto há quase 30 anos, o grupo vem apresentando-o, desde março, num contexto diferente. A turnê, que termina em outubro, tem o compromisso de levar a companhia pernambucana a 22 cidades brasileiras através do Circuito Especial do Palco Giratório, vertente do festival promovido pelo Sesc, que homenageia, a cada edição, um grupo ou artista que tenha contribuído para as artes cênicas no Brasil. A homenagem traz consigo o reconhecimento do papel do Balé no resgate e valorização das manifestações populares, discurso presente em todos os seus trabalhos. Tido como um marco na história das produções cênicas do Estado, o espetáculo Nordeste: uma dança do Brasil traz um panorama dos folguedos e danças típicas nordestinas, com foco nos ciclos festivos da cultura local: Carnaval, São João, Natal e expressões de origem afro-ameríndia. No Recife, a apresentação acontece no dia 15 deste mês, no Teatro de Santa Isabel. “Das 27 pessoas que compõem o elenco atualmente, estamos circulando com apenas 14. É uma adaptação, um recorte de um espetáculo que ainda está em evidência. Essa homenagem veio como um prêmio para o Balé, que já está caminhando para os seus 40 anos de existência”, pontuou, em entrevista à Continente, André Madureira, cofundador, coreógrafo e diretor artístico do grupo. Afora o elenco reduzido, o figurino e a coreografia, segundo ele, foram atualizados para a turnê do Palco Giratório. “No entanto, as características permanecem iguais desde os anos 1980. Mantemos a mesma garra, energia e espontaneidade, além da alegria e fé em cena.” Criado em 1987, para comemorar o aniversário de 10 anos do Balé, Nordeste: uma dança do Brasil surgiu quando a companhia vivia seu auge, “quebrando os próprios recordes e ultrapassando os próprios limites”, como disse a jornalista e pesquisadora Christianne Galdino. Eram necessários três elencos diferentes para dar conta da agenda lotada de compromissos, que chegou a incluir 250

CONTINENTE MAIO 2015 | 57

Palco_MAI.indd 57

24/04/2015 13:43:41


DIVULGAÇÃO

apresentações em um ano, sete num único dia; além de viajar todos os anos para apresentações no Rio de Janeiro e em São Paulo. Com o espetáculo, a companhia passou três meses na França, onde se apresentou em mais de 80 escolas de Ensino Fundamental e Médio da região metropolitana de Paris. Foi nesse período que o Balé consolidou sua linguagem, conhecida como Método Brasílica de Expressão Artística. O esteio para tudo isso veio da residência artística realizada no Centro de Convenções, de 1982 a 1999, período que também originou espetáculos importantes como Oh! Linda, Olinda! (1984) e Brasílica: o romance da Nau Catarineta (1992).

MÉTODO BRASÍLICA

“Brasílico é um adjetivo que designa tudo que tem origem indígena-brasileira e, neste caso específico, a ideia surgiu a partir das guerras brasílicas, que era como se chamavam as guerras dos nativos (índios, em sua maioria) contra os invasores estrangeiros em terras brasileiras. Nesse aspecto, podemos concluir que a linha de separação entre o conceito de dança armorial e de dança brasílica é bastante tênue”, explica Galdino, no livro Balé Popular do Recife: a escrita de uma dança. Assim, o Método Brasílica de Expressão Artística se firma como um sistema pedagógico criado pelo próprio Balé Popular do Recife para mostrar os resultados artísticos e sociais de seu trabalho, e sua forma de se apropriar dos elementos das danças populares, que culminou num modelo praticamente universalizado em Pernambuco. “Não seria totalmente correto denominar de parafolclórico todo o trabalho desenvolvido pelo Balé Popular do Recife, porque, durante o processo, a proposta ultrapassa a mera recriação e cenificação do folclórico, para enveredar na sistematização de um método, no desenho de um novo dançar que, desde o início, experimenta misturas de ritmos, passos e outros signos do manancial folclórico nordestino, produzindo um elemento híbrido proveniente de fontes diversas, mas pertinente ao mesmo estuário da cultura popular”, conclui a pesquisadora em sua obra.

Palco

Segundo André Madureira, o objetivo da dança brasílica sempre foi a criação de um balé nacional, e não do balé nacional. “Um balé que seja capaz de valorizar as características primordiais da dança popular, nativa, primitiva, sem perder a essência, mas numa linguagem atual, moderna, contemporânea, futurista. Entender a ligação de brincante com o transcendente, nesses estados alterados de consciência que eles atingem, esse mistério, o que está oculto nisso é que é a essência do que a gente faz.” Diante da necessidade de divulgar a metodologia, foi fundada, em 1983, a Escola Brasílica, que funcionou, nos primeiros anos, na Sala Ascenso Ferreira, na Casa da Cultura. Posteriormente, foi transferida para o sobrado alugado de número 52 da Rua do Sossego, no Bairro da Boa Vista, no qual permanece até os dias atuais. A criação da escola deu projeção

O método Brasílica é um sistema pedagógigo criado pelo grupo, que se tornou referência em Pernambuco ao repertório do Balé, e serviu de base para o trabalho coreográfico de diversas companhias e núcleos de dança. Pode-se dizer que o trabalho desenvolvido pelo Balé foi “o mais intenso movimento de dança de Pernambuco, que marcou para sempre a história da dança cênica brasileira”, nas palavras de Christianne Galdino.

DANÇA ARMORIAL

Inicialmente batizado de Grupo Circense de Dança Popular, o Balé Popular do Recife foi a terceira tentativa de Ariano Suassuna, então secretário municipal de Cultura da Prefeitura do Recife, de implantar, na cidade, uma dança armorial. Era 1976 quando o escritor resolveu investir no grupo de teatro amador Gente da Gente, formado por cinco irmãos Madureira: André, Ana Tereza, Anselmo, Antero e Antúlio Madureira, que ainda contavam com o apoio de

2

vários familiares, vizinhos e amigos próximos. A ausência de formação em dança foi logo driblada pelo grupo, que teve a oportunidade de realizar seus primeiros exercícios coreográficos na revista musical A rua, que o pai, Paulo Ferreira, produzia na época. “Ariano buscou um grupo que já tivesse alguma experiência cênica, que não fosse manifestação folclórica, para trabalhar juntamente com os bailarinos de Flávia Barros na pesquisa e na concepção de uma dança armorial”, explica Christianne Galdino. “Na época, os jovens bailarinos tiveram que enfrentar também um problema social. Tudo que era manifestação de cultura popular era habitualmente associada à marginalidade. Havia estranhamento por parte da sociedade e, na maioria das vezes, receio mesmo.” A quebra dos preconceitos e a valorização do artista popular são, para André Madureira, contribuições

CONTINENTE MAIO 2015 | 58

Palco_MAI.indd 58

24/04/2015 13:43:42


1-2 PANORAMA O espetáculo traz elementos de danças dos ciclos festivos da região: Carnaval, São João, Natal e expressões de origem afroameríndia

inegáveis do Balé no sentido de aproximar a comunidade da sua própria cultura. “O preconceito vigente chegou a afastar até membros do elenco inicial, que fazia as pesquisas. Mas, com o passar do tempo, o pessoal foi se hipnotizando com aquilo, se apaixonando. Vendo a riqueza daquela tradição, daquela dança. Aquela brincadeira tocava fundo na gente”, declarou, certa vez, o mentor, que fazia os desenhos das coreografias, sistematizava tudo e dirigia o grupo. No dia 20 de maio de 1977, o Balé Popular do Recife fez sua estreia no palco do Teatro do Parque, onde iniciou uma temporada do espetáculo Circo da onça malhada, acompanhado da trilha ao vivo da Orquestra Popular do Recife, sob a batuta do maestro Ademir Araújo. De lá para cá, o trabalho desenvolvido pela companhia não só transformou a realidade da dança cênica pernambucana, como foi

responsável por abrir caminhos para a formação de artistas dos mais variados segmentos. Para o produtor cultural Roger de Renor, que integrou o grupo durante dois anos, na década de 1980, como bailarino e professor de capoeira na Escola Brasílica, a contribuição prática do Balé está em trabalhar a questão do pertencimento, sobretudo “numa época em que não existia coisa mais cafona do que cultura popular”.

AUTOESTIMA

“Tudo que era americano, que vinha de fora, era mais legal. E, nessa época, o Balé foi o primeiro lugar de difusão prática da nossa cultura. Mostrava o quanto de coisa que pertence à gente e que não se via a olhos nus. Não era simplesmente aprender uma coreografia, mas, sim, uma construção cidadã. Fazia-nos entender a cultura do brincante, que faz parte do espírito brasileiro dos terreiros

aos folguedos. Eu questionava: onde isso estava esse tempo inteiro? Na prática, aprendíamos o que não se via no ensino formal. Eu, que achava que não gostava de estudar, me surpreendi com a possibilidade do aprendizado ser algo prazeroso”, recorda Roger. Quem bebeu da mesma fonte foi Chico Science, que, segundo André Madureira, não perdia uma apresentação do Balé Popular do Recife na Feira do Frevo, espécie de aula-espetáculo realizada semanalmente na Casa da Cultura, no ano de 1982. Chico também frequentava os ensaios do grupo no Centro de Educação e Cultura Daruê Malungo, no Bairro de Peixinhos, onde conheceu o bloco de percussão afro Lamento Negro, tido como o embrião do que viria a ser a Nação Zumbi. Toda aquela vivência contribuiu para a configuração, anos mais tarde, da identidade mangue que, assim como o Balé Popular do Recife, despertou a autoestima dos grupos tradicionais, ao valorizar as manifestações artísticas locais. “Eu tinha acabado uma formação em improvisação, vinha sem estilo específico e com muita vontade de dançar profissionalmente. E o Balé Popular era o único grupo a realizar turnês e fazer grandes temporadas no Recife. Nele, aprendi algo muito caro à minha maneira de pensar a dança hoje em dia: a presença cênica vem da absoluta compreensão da tríade tempo/ corpo/espaço. Eu aprendia como todo brincante, na vivência da cena. E tinha todos aqueles grandes bailarinos para me nutrir, os quais observava sem cansar”, revela a dançarina e coreógrafa do Grupo Grial, Maria Paula Costa Rêgo, que integrou o Balé Popular do Recife de 1981 a 1988. “Vivíamos a dança de forma apaixonada e inteira. Sempre havia diálogo. O compromisso de André (Madureira) com cada um que compunha o grupo era com a nossa capacidade de fazer acontecer em cena. A cena era uma explosão de garra, alegria e competência.”

CONTINENTE MAIO 2015 | 59

Palco_MAI.indd 59

24/04/2015 13:43:42


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

O DIA DO CAÇADOR

Um sol tímido mostrou a cara no

penúltimo domingo de março, em Paris. Há dois dias a cidade ficara tão poluída que o metrô e os ônibus circulavam de graça e os carros particulares em sistema de rodízio. Estimulados a usar o transporte público, os parisienses evitavam o agravamento da poluição. Um brasileiro se impressiona com a agilidade e eficiência do governo francês em buscar saídas para as calamidades e mais ainda com a colaboração das pessoas. Tudo muito democrático e civilizado. Mas, não pensem que as autoridades cochilam, a polícia ocupa as ruas de olho nos carros infratores. No único dia de folga durante o Salão do Livro, em que o Brasil era o país homenageado e compareceu com 50 escritores, decidimos passear pelo Marais, bairro da comunidade gay parisiense. Nada se parece ao Castro, em San Francisco, Califórnia, local famoso desde o tempo da contracultura e do movimento hippie. No Castro, ainda é possível esbarrar num casal masculino nu, abraçado,

andando pelas calçadas. Mas agora, as ruas também se tornaram vitrines do comércio de pornografia gay, com sex shoppings iguais aos de todas as cidades. Puro consumo, um retrato do capitalismo americano. Ninguém lembra a rebeldia dos anos sessenta, os enfrentamentos à repressão, a liberdade conquistada a pulso. A não ser quando assiste ao filme de Gus Van Sant sobre o político e ativista Harvey Milk, o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público na Califórnia, e que foi assassinado em 1978. A rapaziada alegre do Marais – não identifiquei casais femininos – é discreta. Vi poucos homens abraçados, alguns com a mão no bolso do sobretudo de seu companheiro, outros com os dedos entrelaçados. Fazia frio, as lojas abriram mesmo sendo domingo e, enquanto minha mulher entrava em perfumarias, eu ficava do lado de fora curtindo músicos de rua e olhando o formigueiro em movimento, o que me diverte mais do que ver exposições em ambientes fechados. Contenho-me para não ser

invasivo com o meu olhar indiscreto. A fauna do Marais me pareceu bem comportada, mas não entrei em nenhum espaço reservado, nem mesmo nos cafés que chamavam atenção pelos rapazes musculosos e de cabeça raspada. Depois de uma hora de frio e tédio, concluo que não gosto de guetos e prefiro que os homossexuais ganhem todos os bairros de Paris, exprimindo sem temor nem escândalo os seus afetos, igualzinho fazem os heterossexuais. A convite de uma amiga francesa, que nos acompanhava no passeio, fomos visitar o Museu da Caça e da Natureza, no centro do Marais. Sem prestígio, pouco frequentado, haviam liberado convites para as escolas e famílias de alunos e, nessa tarde, ele ficara cheio igual a todos os museus de Paris. Sempre estou à procura de exemplos do que seja o kitsch. A instalação sobre caça e natureza me pareceu o protótipo do “mal no sistema valorativo da arte”, o resultado da ação de pessoas dispostas a sacrificar tudo em nome de uma “bela” coerência: caça é caça.

CONTINENTE MAIO 2015 | 60

Coluna Entremez_MAI.indd 60

24/04/2015 13:44:35


ARTE SOBRE FOTO DIVULGAÇÃO/ MUSÉE DE LA CHASSE ET DE LA NATURE, MARAIS, PARIS

da caça, alces, veados, búfalos, ursos, panteras, tigres, leões, raposas, lobos, corujas, águias e faisões nos contemplam com seus olhos vivos mortos, fantasmagóricos, nos perguntando o que significa o poder de exterminação concedido ao homem. Um gay pede ao seu par que o fotografe com o rosto entre os chifres de um veado. Crianças recebem aulas dos pais sobre o manuseio de armas, expostas ao lado dos seres abatidos. O caçador lembra o colonizador, que se acha no direito de se apropriar, matar e escravizar. Toda caça é predatória, mesmo que Joseph Campbell a considere sagrada, quando se trata da sobrevivência. Em cinquenta anos, os desbravadores de fronteiras nos Estados Unidos dizimaram manadas inteiras, tomando só as peles para vender, e abandonando os corpos, apodrecendo. Isso foi um sacrilégio, transformou o búfalo de “alguém” em “coisa”, diz Campbell. E refere algo assim: numa terra devastada as pessoas perseguem propósitos que não são propriamente delas, mas que lhes foram impostos

A convite de uma amiga francesa, fomos visitar o Museu da Caça e da Natureza, no centro do Marais. Sem prestígio, pouco frequentado

Depois de caçarem em várias regiões do planeta, enfastiados da atividade François Sommer e Jaqueline Sommer resolveram “promover uma caça que fosse respeitosa com o equilíbrio natural” e se dedicaram a organizar o museu. Expor a caça? Os dois se perguntam e explicam que se trata de uma atividade ancestral, que pode ser evocada de um ponto de vista etnológico, praticada por necessidade (para se defender ou se nutrir) ou por laser. Dizem que a coleção testemunha o quanto a prática

contribuiu à arte de viver, servindo de inspiração aos artistas, de experiência e conhecimento da natureza. O prólogo mitológico do casal que assassinou durante anos por divertimento – como era costume no século XIX e primeira metade do século XX entre os europeus colonizadores e os norte-americanos – abre as salas do palácio de horrores, cheio até o teto de dezenas de animais e aves empalhados. Em meio aos excessos rococós, aos móveis, às pinturas e fotografias sobre os temas

como leis inescapáveis. Isto é morticínio. E também colonialismo. A visita aos museus da Europa me revela séculos de rapina e destruição. Por esse motivo prefiro as galerias de arte em que se expõem criadores como Picasso, Monet, Chagal ou Gauguin. Não sofro nenhum choque além do estupor diante do gênio. Em casos como o de Van Gogh, sinto pena do artista enlouquecido em meio à miséria, criando e não usufruindo o ganho financeiro do seu legado.Os jogos de sedução entre os gays do Marais me divertem. Eles também saem à caça, uma caça nada predatória, engraçada se reparamos nas chispas acesas dos seus fuzis. Os olhos atiram para vários lados e quando acertam não há sangue, apenas a conquista amorosa.

CONTINENTE MAIO 2015 | 61

Coluna Entremez_MAI.indd 61

24/04/2015 13:44:40


DANIEL MORDZINSKI/DIVULGAÇÃO

Leitura NARRADORAS A classe média como elemento subjacente

Sangue no olho, da chilena Lina Meruane, e Um, dois e já, da uruguaia Inés Bortagaray, trazem personagens femininas em situações de desconforto e memoração TEXTO Priscilla Campos

No ensaio Questão de ênfase, Susan Sontag disserta sobre o que chama de “grande romance curto americano”. O livro em pauta é O falcão-peregrino, de Glenway Wescott. De acordo com a escritora e crítica de arte, o romance “começa com a voz da recordação; ou seja, a voz da incerteza”. Nessa linhagem memorativa e imprecisa também estão dois romances contemporâneos latinoamericanos, lançados há pouco no Brasil pela editora Cosac Naify: Sangue no olho, da chilena Lina Meruane, e Um, dois e já, da uruguaia Inés Bortagaray.

No campo das semelhanças, temos alguns outros pontos em destaque: ambos dedicam cuidado linguístico a descrições corpóreas e apresentam um recorte sutilmente inquietante da classe média. Mesmo com a diferença de idade – Sangue no olho traz uma narradora adulta, debilitada; em Um, dois e já, criamos fácil empatia com a menina observadora que viaja com sua família por terras uruguaias – existe uma atmosfera de desassossego ao redor das personagens, que se inicia no núcleo familiar e avança

para certa sensação coletiva. Assim como no longa-metragem argentino O pântano, de Lucrecia Martel, a figura feminina torna-se o centro de questões incômodas e desconhecidas pela classe média latino-americana, possivelmente provindas dos resquícios opressores das ditaduras. Para Lina Meruane, escrever acerca dessa camada social é explorar, na narrativa, uma ideia de aceitação que envolve também tais questões políticas. “Escrevo sobre essa classe porque me parece um conjunto social muito oportunista. No Chile, e acredito que em outros lugares, a classe média despreza o que é tido como popular porque teme ‘converter-se’ aos hábitos desse cotidiano, ou porque, em determinado momento, saiu da classe popular e teme voltar. Ou, ainda, porque acredita que a classe alta não é capaz de distinguir entre quem é classe média e quem é pobre. A classe média quer ser aceita pelos mais ricos, que, por sua vez, os desprezam”, observa. “Na política, esse desprezo pela classe trabalhadora impediu muitas reformas sociais que poderiam melhorar a situação histórica de exploração das massas. E isso formou, em muitos casos, um terreno propício

CONTINENTE MAIO 2015 | 62

Leitura_MAI.indd 62

24/04/2015 13:53:24


NICOLAS PEREYRA/DIVULGAÇÃO

1 LINA MERUANE A chilena faz uso de múltiplos sentidos na sua escrita, apostando na possibilidade de escrever com todo o corpo 2 INÉS BORTAGARAY Em Um, dois e já, a uruguaia trabalha o corpo conectado à ideia de descoberta e investigação

para as ditaduras que prometiam impor a ordem, ou seja, proteger os privilégios das classes média e alta. No meu romance, esse assunto está posto como pano de fundo, porém tem sua importância: para Lucina, é uma espécie de doença crônica, um mal incurável, uma ferida aberta”, diz a chilena. Já no livro de Bortagaray, o processo ditatorial é vigente, mas não amplamente discutido. Em alguns trechos, o leitor pode esquecer – e isso é um aspecto positivo, no que diz respeito à linguagem delicada empreendida pela uruguaia – em qual tempo a narrativa está inserida. Somos desviados para uma brisa marítima que envolve anéis de coco, músicas de José Luis Perales e cochilos. Sobre a presença da classe média em seu romance, Inés expõe uma perspectiva mais particular, voltada para uma análise do desenvolvimento uruguaio contemporâneo. “Na primeira metade do século 20, o país produziu um culto à classe média plenamente alfabetizada, com acesso antecipado a uma grande plataforma de direitos trabalhistas. Aos olhos de um importante ensaísta como Carlos Real de Azua, o Uruguai se explica através de sua mesocracia – forma de governo na qual predominam os interesses de

uma classe média que ama o estado intermediário das coisas, odeia as estridências e qualquer noção de extremo; orgulhosa de sua moderação e charme despretensioso”, analisa. Para a uruguaia, esse conceito vem permeando o imaginário coletivo do país por muito tempo, e falar dessa classe “burguesa” é uma maneira de demonstrar desacordo com a mediocridade que ronda a população, ora como paraíso, ora como inferno. “O carro mais ou menos econômico, a família apertada lá dentro, sem protestar, pois não imagina outra forma de viajar que não seja sofrida. Esses são os poucos rasgos de uma classe média que me parece totalmente familiar”, arremata.

DOENÇA E MEMÓRIA

O corpo enfermo já foi propósito literário de alguns escritores como Tolstoi (A morte de Ivan Ilitch) e Camus (A peste). Virginia Woolf também escreve a respeito das mazelas físicas em On being III: “Considerando quão comum é a doença, quão tremenda a transformação, quão assombrosos, quando as luzes da saúde baixam, os países ignotos que são então expostos (…)”. Em A doença como metáfora, Sontag cria paralelos artísticos entre o câncer e a tuberculose.

Nas páginas de Sangue no olho, que na edição brasileira vão escurecendo gradativamente, Meruane associa os contratempos de um órgão doente à reminiscência. “É uma novela escrita no tempo presente, mas, você tem razão, existe nela muito de memória porque, para uma pessoa enferma, há sempre uma pressão muito grande a fim de que se encontre a origem de seu mal. Descobrir o motivo da doença entrega ao indivíduo a narrativa de seu presente. Assimilar o que aconteceu não significa consolo, é simplesmente porque uma enfermidade ou uma perda constituem ruptura, quebra, crise, um encontrar-se em estado de suspensão. A memória e a compreensão do passado são um apoio para não cair no vazio”, diz a chilena. O resultado textual desse entrelaçamento é uma das bases que edificam o romance. Em diversos trechos, Meruane utiliza um recurso descritivo notável, como na passagem em que a protagonista vai ao banheiro durante um voo: “Então me desloquei pelo corredor, enumerando os assentos em busca do banheiro. Vinte e quatro. Tudo sob controle, pensei, me equilibrando no vaso do banheiro químico. Quando voltei, a turbulência começou e minha mão virou uma garra que

CONTINENTE MAIO 2015 | 63

Leitura_MAI.indd 63

24/04/2015 13:53:25


IMAGENS: REPRODUÇÃO

Leitura procurava desajeitadamente, no vazio, se apoiar em um encosto, mas que em vez disso aterrissou sobre algo morno, mole carnudo. Meus dedos de abutre com unhas malcortadas tinham ido parar sobre um ombro”. De acordo com a escritora, a possibilidade de substituir o sentido da visão pelos demais (principalmente tato e audição) foi um assunto deliberado durante as versões prévias do livro. O uso de múltiplos sentidos na escrita, a possibilidade de escrever com todo o corpo, é algo que está presente nas novelas anteriores de Meruane, mas que em Sangue no olho foi enfatizado. Para a chilena, o momento mais surpreendente foi quando, após as suas pesquisas e leituras sobre sinestesia, começou a escrever o livro e compreendeu que não iria ser um romance “negro”, “às escuras”, guiado pelos outros sentidos. “A protagonista Lucina (assim como eu, durante o breve período em que estive cega) tem recordações muito imagéticas, mesmo de coisas que ela não viu. E ela recorda dessa maneira, porque a memória de quem antes enxergava continua sendo visual durante muito tempo depois da perda. O que não se viu se recupera a partir do que foi visto antes. Isso não é muito diferente de como lemos. Lê-se um livro e imaginam-se suas personagens, as paisagens, nós os enxergamos. Porém, escreve-se um livro sem se ver nada, apenas

Enquanto Sangue no olho tem uma narradora adulta, Um, dois e já é narrado a partir da visão de uma menina recordando, reconstruindo e imaginando o que vai entrar naquela cena. E, mesmo se a origem daquilo vem da realidade, o escritor reinventa. A memória faz o mesmo.”

CORPO DE DESCOBERTA

Em Um, dois e já, as concepções de memória e corpo são detalhistas e estão associadas à descrição da paisagem imaginativa. Se, em Sangue no olho, existe uma procura pelo começo daquela doença maldita, no livro de Bortagaray, o passado é lento, acompanha o ritmo de maré calma e está ali para ser contado pelo simples prazer narrativo. Viajamos com a narradora e, acima de tudo, com os componentes que estão ao seu redor: a relação com os irmãos, pormenores de amizades queridas, o cemitério de animais no quintal da sua casa, piadas sem graça. Inés acerta na delicadeza com que se ocupa das lembranças durante todo o romance. Também na construção linguística de Um, dois e já está o corpo, mas aqui conectado a ideia de descoberta e investigação. “Os joelhos das

minhas irmãs são muito mais bonitos que os meus. A mais nova está de bermuda xadrez. O tecido se chama cloquê. A mais velha está com um conjunto de moletom lilás. Elas têm pernas bem-definidas e joelhos ossudos, e as pernas afinam quando chegam nos joelhos.” Para a uruguaia, o exercício da memória é estimulado pela experiência física. “No decorrer de uma noite de verão, a percepção do frio mórbido ao pisar, sem querer e com os pés descalços, num sapo; o contato das mãos com a massa de pão caseiro; a música rítmica da água do rio batendo nas margens… Todas essas experimentações de tocar, ver, ouvir e olhar parecemme um atalho bem eficaz para ingressar no território da memória.” Além do corpóreo, Inés conecta a memória diretamente à imaginação. “Creio que as duas são, essencialmente, a mesma coisa. Gosto quando, como leitora, posso acompanhar um texto com a inventividade. Quando as coisas que povoam o planeta tomam forma e tornam-se verdadeiras. E eu sinto que isso ocorre por meio de uma cumplicidade, um pacto que se aceita ao longo da leitura, e que nos acompanha nessa viagem, como se fosse uma casa imaginária que tomamos como própria”, reflete. Se os “finais dos romances têm menos probabilidade de erguer a voz” e “transmitem a permissão para que as tensões se aquietem; são antes um efeito do que afirmação”, como estabelece Sontag, em Questão de ênfase, os livros de Lina Meruane e Inés Bortagaray terminam num propósito de completude desse efeito: a sensibilidade dos que se apaziguam após alcançar um cume qualquer. “Sob que circunstâncias nós consideramos as coisas sendo como reais?”, pergunta-se o filósofo norte-americano William James. Na literatura, segundo Meruane, tudo é real e tudo é inventado. Vestígios de realidade dos quais não podemos duvidar: estão todos presentes no relato difuso de Lucina e no colóquio simples empreendido pela garota que viaja no banco traseiro de um Renault 12.

CONTINENTE MAIO 2015 | 64

Leitura_MAI.indd 64

24/04/2015 13:53:25


INDICAÇÕES ESTUDO

MARCUS VINICIUS NOGUEIRA SOARES A crônica brasileira do século XIX – Uma breve história

FILOSOFIA

IZILDA JOHANSON Bergson: pensamento e invenção FAP-Unifesp

Jornalismo? Literatura? Afeita à liberdade, a crônica é um texto difícil de enquadrar porque, estando na imprensa, ela se faz esquisita aos padrões do noticiário. No livro, ela vira literatura? O autor se propõe a entrar nessa seara, afirmando que a crônica é um gênero jornalístico.

“Em que medida a arte interessa à filosofia?” essa é a questão que mobiliza esse trabalho, tendo como suporte a obra bergsoniana. Uma investigação estética, que parte também para considerações de ordem intelectual, moral e social. A autora “oferece uma nova perspectiva que examine a potência criadora, suas ações e suas obras”.

CONTEMPORÂNEO

ROMANCE

É Realizações

Coletânea

CONVERSAS SOBRE LITERATURA E IDEIAS Há 13 anos, os ouvintes da Rádio Universitária tem à disposição, aos domingos, o programa Café Colombo. A cada edição, seus produtores trazem um convidado para uma conversa franca, densa, fugindo da superficialidade do jornalismo cultural apressado. De lá para cá, foram realizadas 600 entrevistas. Agora, uma seleção pode ser conferida no Conversas no Café Vol.2. O livro, lançado em março, reúne 21 entrevistas que marcaram a trajetória do Café Colombo. Como o primeiro volume, publicado em 2007, trazia as melhores conversas dos primeiros anos, o segundo lançou seu olhar sobre o material produzido de 2008 a 2014. Segundo Eduardo César Maia – um dos produtores do programa –, o grupo estabeleceu como critério reservar um maior espaço para entrevistas sobre temas literários (60% ); cerca de 30% para questões ligada à política, economia e sociedade e, por fim, 10% dedicados à filosofia. “Na hora de escolher, os organizadores foram apontando suas preferências pessoais, numa espécie de votação. Ao final, discutimos tudo e chegamos aos nomes que ficaram no livro.” A primeira parte, Literatura & Cultura, traz conversas com escritores, professores, pesquisadores do campo da literatura. O livreiro Tarcísio Pereira fala da extinta Livro 7. Já o poeta Everardo Norões destrincha a obra de Joaquim Cardozo, cujas Obras completas, publicadas em 2010, foram organizadas por ele. Há ainda um batepapo com Raimundo Carrero, que discute o lançamento do livro Tangolomango, e a repercussão de uma crítica que recebeu nas redes sociais. Norões e Carrero, a propósito, são os únicos nomes que também estão no primeiro volume do livro. Na sequência, na seção batizada de Intermezzo, entrevistas com os filósofos Eduardo Gianneti e Alfredo Marcos, que comprovam a versatilidade da equipe do programa. No último bloco, Política, Economia & Sociedade, são oferecidas entrevistas com temas mais distantes da literatura, mas não menos relevantes para um programa que deseja ser “de livros e ideias”. Estão lá as opiniões de Sílvio Meira e sua forma de gerenciar e empreender a inovação tecnológica; e também a entrevista com o ex-prefeito e ex-governador Roberto Magalhães, na qual relata o famoso episódio envolvendo um jornalista, que, como se comenta, pode ter lhe custado a perda da reeleição para a prefeitura da cidade. (MARIANA OLIVEIRA)

VÁRIOS AUTORES Coleção Gazeta do Povo – Literatura paranaense Inventa

Com uma tiragem de 420 mil exemplares, essa coleção pretende atingir 2,5 mil pessoas e servir de material didático. São seis livros de escritores paranaenses, como Miguel Sanches Neto, Domingos Pellegrini e Paulo Leminski. A distribuição, gratuita, foi feita como encarte do jornal de maior circulação do Paraná, o Gazeta do Povo.

JOHN WILLIAMS Stoner Rádio Londres

Stoner encaixa-se na definição de romance feita por Georg Lukács: “são mundos abandonados por Deus”. Williams escolhe o universo acadêmico como cenário de uma narrativa contida, silenciosa, porém aguda, certeira do ponto de vista da linguagem. A construção do personagem principal, professor provindo do campo e das atividades agrícolas, é belíssima.

CONTINENTE MAIO 2015 | 65

Leitura_MAI.indd 65

24/04/2015 13:53:27


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

O POUCO E O MUITO

Tinha um velho no Engenho

Aratanji, onde meu tio Agostinho era barraqueiro, perto de Camela, Ipojuca, que só conseguia dormir se esfregasse os pés na cinza. Eu só estou feliz com as mãos meladas de tinta. Às vezes até saio para a rua com as mãos meladas de tinta. Não me chamem para outra coisa, nem para ir para o céu, que vou a contragosto. Não me tirem dali, do pé do cavalete. Quando tento explicar isso, pensam que estou escondendo algum outro motivo, que não gosto da pessoa, que estou me dando ares. E pode ser qualquer dia, sábado, domingo, feriado, casamento, batizado, chegada no aeroporto, aniversário. Detesto o tal do aniversário. Em Ipojuca só quem fazia aniversário era o padre, isto é, o vigário; na minha época, Frei Venâncio. As pessoas não entendem. Eu digo que é pelo dinheiro, que quando não estou pintando estou perdendo dinheiro e que vivo disso, não tenho outra fonte de renda, esperando que assim acreditem, embora argumento um tanto grosseiro. Mas não é nada disso. Mesmo quando não se ganhe nada, cada um com sua sina: a ideia

de lucro ou perda não se aplica ao caso. É a síndrome da profissão, ou melhor, o instinto de conservação. Podem lhe oferecer mundos e fundos que você recusa. E ai de você se aceitar, se cair no logro. Tem uma história de um chinês que vivia num casebre perto de um riacho. O imperador mandou chamá-lo para ocupar um alto cargo, ministro, uma coisa dessa. Os emissários foram encontrá-lo sentado na beira do riacho pescando e transmitiram o convite imperial. Ele mostrou uma tartaruguinha balançando o rabinho na lama e perguntou: “Vocês acham que ela vai querer sair daqui para ficar embalsamada pregada na parede de um palácio?” Cada qual com sua estrela que já vem impressa na moleira. Não há mérito em segui-la. Mérito, se existe, estará na sensibilidade de descobrila o quanto antes, o que põe a prova a estrutura toda do indivíduo. Muitos fraquejam, desistem, por não encontrar apoio em canto nenhum, ou se contentam com o pouco – ou muito, dependendo da maneira de ver – com

medo de quebrar a cara, quando você, fazendo o que não nasceu para fazer, já está quebrando não somente a cara, mas a espinha dorsal, se anulando todo, candidato a monstro, transformandose num ser rancoroso porque frustrado, vingando-se nos outros dos talentos reprimidos, da infelicidade enfim. Falta de apoio, falta de companhia, até não raro disfarçada em “más companhias”, falta de sorte (por isso que o verso considerado mais importante de Homero é “nenhum mortal pode prescindir da ajuda dos deuses”), por desconhecer que tais companhias existam. Eu, por exemplo, não sabia, ou não me ocorrera, apesar de ter lido nos livros ou ter ouvido falar de Rafael, Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, Victor Meirelles e outros pintores (em Ipojuca, Seu Virgílio do hotel, como emporcalhava os papéis de embrulho da loja de meu pai com minhas garatujas, me chamava de “Zélis Telles de Meirelles”, alusão a Telles Júnior e Victor Meirelles, como muitos anos depois vim a saber), não concebia a possibilidade da irrupção entre nós de tal fenômeno, um pintor, coisa da

CONTINENTE MAIO 2015 | 66

Coluna Materia Corrida_MAI.indd 66

24/04/2015 13:54:38


REPRODUÇÃO

1

1

Europa, outras eras, outras civilizações, Rio de Janeiro, lugar de que até nos orgulhávamos como capital do País mas onde ninguém nunca tinha ido, alguma coisa totalmente fora de cogitação, cujo Pão de Açúcar era como as pirâmides do Egito e outras maravilhas que saíam nas estampas do sabonete Eucalol mas igualmente a gente não sabia para que serviam e se faziam parte deste mundo, o Coliseu, a Torre Eiffel. As pirâmides, eu nunca vi, mas o Pão de Açúcar, que durante algum tempo eu via todo dia, assim como o Coliseu e a torre Eiffel, por ter morado nos lugares, continuam na minha memória não como os vi na realidade mas nas mil ilustrações impressas em mil lugares de todos os ângulos. Me pergunte qual é a cor do Pão de Açúcar que não sei, apesar de vê-lo todo dia na mídia. (Sobre a Torre Eiffel, alguém disse que o escritor Émile Zola detestava-a mas almoçava lá todo dia no restaurante que há num dos andares. “É o único jeito de não vê-la”, explicou.) Eu ia dizer que sou de Oxóssi. É que, sobre companhias, boas ou más, pelo prisma da caretice do catolicismo

Eu só estou feliz com as mãos meladas de tinta. Não me chamem para outra coisa, nem para ir para o céu, que vou a contragosto em que me criei, ou melhor, as limitações eram minhas, é o mais certo, comparativamente à religião africana, xangô, candomblé, é esta muito mais abrangente, baseando-se em tipos psicológicos mais de que em dogmas impessoais; aceitando, como qualidades, imperfeições, digamos, quando não coisa pior, pecados, interdições, aí aliando-se religião a preconceitos sociais, a impedirem de germinar uma vocação, uma vida, jogada esta no lixo das convenções mais absurdas. Sei que “a casa do Senhor tem muitas moradas”, hoje sei, mas foi no xangô que percebi que a lei não é uma só, depende da pessoa a quem se aplica, justamente de acordo com as tendências de cada um.

MEU TIO

Carteira de identidade de Agostinho Hermes Pinto (Sirinhaém, 28/08/1906 – Camela, Ipojuca, 16/04/1998). Única foto que tirou na vida. Gentileza de Nelma Pinto

Agora me lembrei do que me contou China, garçom do Gregório, no Beco do Veado Branco, onde se comia sarapatel e buchada. Uma vez encomendei a Gregório uma buchada especial para o cearense Aldemir Martins. Mas voltando à história de China, garçom consumado que nasceu para ser garçom, dava para ver até por quem nada entende de hotel. A história é que um rapaz, filho de família rica, bem criado, boa escolaridade, tinha um desejo na vida que era o de ser garçom. A família fez tudo para ele largar essa ideia. Ele estudou em faculdade, formou-se em outra coisa que a família queria, médico, engenheiro, advogado, mas disse ao pai, depois de receber o diploma, que queria ser garçom. Vendo o pai que não podia desgrudálo dessa ambição e sendo um senhor de posses, convenceu-o de pelo menos ser dono de restaurante, o que o rapaz aceitou. Passada a novidade, viu que não dava para dono de restaurante. Apesar do aparente êxito da casa, continuava desgostoso. Até que largou tudo e foi ser garçom.

CONTINENTE MAIO 2015 | 67

Coluna Materia Corrida_MAI.indd 67

24/04/2015 13:54:39


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Visuais

1

CONTINENTE MAIO 2015 | 68

Visuais_MAI.indd 68

24/04/2015 11:00:47


ESTAMPARIA Valor simbólico aos utilitários

Nova geração de pernambucanos, que flerta com as ferramentas digitais, tem se destacado na produção de design de superfícies TEXTO Geisa Agrício

1-2 LIN DINIZ

O olhar autoral e a expressividade

técnica na estamparia vêm proporcionando a designers pernambucanos um espaço de destaque no Brasil. Num momento profícuo, surgem coleções com design de superfície exclusivo, assinado por artistas como Joana Lira, Guilherme Luigi, Gabriel Azevedo, Lin Diniz, Adriano Marcusso e a marca D.uas Design. Essa geração, que flerta com as ferramentas digitais, consegue imprimir na ousadia de um desenho próprio a conjugação harmônica entre a criação artística e a padronização em larga escala para se destacar no mercado de moda e decoração. A necessidade de colorir, adornar o corpo e o meio onde vivia, foi uma das principais causas para o homem criar as estampas. As primeiras experiências de padronagem surgiram na Índia e Indonésia, por volta dos séculos 4 e 5 a.C., quando os egípcios já dominavam técnicas de impressão. Na arquitetura e na decoração, houve um grande impacto na produção de estamparia a partir da segunda metade do século 19, com o movimento Arts and Crafts, na Inglaterra. Em defesa do artesanato criativo, foi um contraponto à mecanização e produção em massa da industrialização. Propondo não distinguir o artesão e o artista, teve como principal expoente a figura de Willian Morris. Padrões decorativos da art nouveau, como o whiplash, formado por linhas dinâmicas e fluidas influenciam a arquitetura, pintura, escultura e outras formas de design até hoje. De lá para cá, clássicas padronagens comerciais

Atuando em São Paulo, ela desenvolve estamparias para moda e decoração

2

de várias épocas e origens ganharam o mundo, como o pied poule, o vichy, e referências sempre exploradas como as estampas africanas, étnicas, animais, florais e geométricas. “O termo design de superfície (DS) incorpora a estamparia, por configurar uma visão macro dessa técnica. Afinal, estampar nada mais é que a inserção de formas, texturas e cores em uma superfície plana (tecidos, papéis de parede, azulejos) e tridimensional (porcelanas, garrafas). Com relação à moda, o design de superfície pode ser feito a partir de técnicas do DS, capaz de ser impresso em meio digital ou ser confeccionado a partir das tramas com os fios do próprio tecido, como o tweed, clássico lançado pela Chanel”, explica

a professora de Design de Superfície da UFPE Andrea Camargo. A estampa, portanto, estende-se atualmente para outras estratégias de valoração simbólica de utilitários. Além de roupas, móveis, vidros e paredes, pode ser recriada com o uso de tecnologias para customização e diferenciação, o que é um estímulo à produção criativa. Mesmo sendo suscetível às tendências de mercado, a padronagem que vem se propondo relevante parte de coleções em projetos voltados à exclusividade, que saltam um tanto fora da curva das cópias e recópias em profusão como modismo. A estamparia dessa geração de designers pernambucanos transparece, em seus traços autênticos, as perspectivas desse momento, em que o valor da

CONTINENTE MAIO 2015 | 69

Visuais_MAI.indd 69

24/04/2015 11:00:49


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

3

4

“O designer agrega sua vivência da realidade e é capaz de ler símbolos culturais específicos”

Visuais

Flávia Zimmerle

5

3-5 JOANA LIRA

Para ela, nas encomendas, há sempre a necessidade de equilibrar arte e produto

6-8 GUILHERME LUIGI

Designer desenvolveu estampas digitais baseadas na obra de Luiz Gonzaga

estampa parte do repertório e do olhar diferenciado como uma marca, seja na brasilidade lúdica e figurativa dos desenhos de Joana Lira, no jogo da urbanidade de Gabriel Azevedo ou na pesquisa memorial de Guilherme Luigi. “Há sempre uma busca do equilíbrio entre a arte e o produto. Para mim, é sempre essa balança entre a satisfação de democratizar meu trabalho e a angústia da banalização, do receio que se torne corriqueiro, repetitivo, que atinja o sucesso, mas depois acabe se desvalorizando”, diz Joana Lira, sobre assinar produtos em larga escala. “Mais do que o direcionamento de cor e forma, as tendências de moda apontam comportamentos, conceitos

e sentimentos. O design agrega sua vivência da realidade e é capaz de ler esses símbolos culturais específicos em cada contexto ou grupo. Mesmo que exista uma leitura de baixo para cima ou de fora para dentro de grupos étnicos, por exemplo, o designer compreende a atmosfera com a qual se relaciona e é capaz de refletir, traduzir e exportar de forma autêntica elementos da sua própria realidade”, diz Flávia Zimmerle, professora de Design da UFPE.

RELAÇÃO COM AS MARCAS

Na década de 1990, quando cursava Design e fazia suas primeiras experimentações em estamparia no ateliê de sua mãe, Bete Paes, Joana Lira percebeu que, apesar da padronização, o processo artesanal gerava trabalhos únicos. Em serigrafia e à mão livre, desenvolvia técnicas de reprodução para superfícies de tecidos, toalhas

de mesa, mobiliário. Foi nessa época que começou a fazer desenhos em porcelana. Em 1997, para a elaboração da exposição Bichos aloprados, compunha sua estética figurativa com corpos estampados num padrão de referência à arte rupestre. A partir de 2001, Joana passou a assinar a cenografia da decoração do Carnaval do Recife, num trabalho contínuo até 2011 (interrompido apenas em 2004). As ilustrações e o jogo de estamparia dos personagens em proporções monumentais fizeram seu trabalho conhecido em todo o país. Desde o começo dos anos 2000, em seu ateliê em São Paulo, ela elabora padronagens em cerâmica com película. A brasilidade no traço da artista chamou a atenção do mercado. Em 2011, Joana Lira fechou seu primeiro contrato com a Tok&Stok, assinando a linha infantil Reino das Águas. No ano passado, lançou cinco linhas exclusivas pela rede, em produtos como roupas de cama, louças, copos, vasos, esculturas, papel de parede e cúpulas para abajur. Além das coleções, também criou vasos-esculturas. “Tenho uma relação de liberdade com as marcas que assino, tanto na Tok&Stok, como na L’Occitane e Bobinex, em que tive a oportunidade de

CONTINENTE MAIO 2015 | 70

Visuais_MAI.indd 70

24/04/2015 11:00:53


IMAGENS: VICTOR MUZZI/DIVULGAÇÃO

6

8

acompanhar a produção na linha das fábricas, de revisar todos os detalhes, e me certificar de que cada superfície tinha a mesma qualidade que eu havia imaginado no desenho. Mesmo numa produção em larga escala, tenho a preocupação de que a elaboração de cada arte seja tão delicada como no meu ateliê”, coloca Joana. Para a L’Occitane au Brésil, ela assina a identidade visual da linha Vitória Régia, que representa a Amazônia; para a Bobinex, criou estampas de papéis de parede.

PATRIMÔNIO CULTURAL

Enquanto Joana investiga personagens, fauna, flora e comportamento, a inspiração para Guilherme Luigi vem da observação do repertório cultural do patrimônio brasileiro. Luigi se interessa pela memória de um capital simbólico iconográfico que pode se perder nas transformações pós-modernas.

“Minha carreira sempre caminhou tangenciando a arte. Tive uma rápida (e traumática) passagem pela publicidade”, diz o designer. “A base vem do projeto Imaginário Pernambucano, desenvolvido na UFPE. No período, conheci pessoas importantes para a minha vida, como Paula Valadares e Luciano Arraes (hoje seu sócio no espaço Orbe Coworking). Foi a partir daí que começou minha relação com o artesanato e a maneira de transcrevê-lo em design”, conta. Dentro do Imaginário Pernambucano, os primeiros ensejos de estamparia digital feitos para a Companhia Industrial do Vidro – CIV acabaram se transformando em seu projeto de conclusão da graduação em Design. Formado, foi para São Paulo interessado em estudar fotografia e estamparia na Escola Panamericana. Depois, seguiu a pesquisa em design de superfície, elaborando uma pérgola para vinhedos, na escola de

7

O profissional pode tomar como referências quaisquer elementos que lhe sugiram conceitos compositivos

Escola Superior de Disseny i Enginyeria de Barcelona. O projeto, indicado como finalista ao Prêmio Design 2011 na Espanha, trazia elementos têxteis e customizáveis que interessavam à estamparia de Luigi. De volta ao Brasil, estendeu a relação à pesquisa cultural ao elaborar, junto com Felipe Soares, padrões de estampa para identidade visual do Centro do Artesanato de Pernambuco, cujo projeto rendeu destaque na décima edição da Bienal Brasileira de Design Gráfico. “Interesso-me pela paisagem urbana, por essa relação com o patrimônio e como o design pode se apropriar da memória para não deixá-la morrer. Esse movimento de perceber, resgatar e devolver em interferência na cidade, transformando aquela referência numa outra experiência. A ideia é poder dar visibilidade e democratizar essa memória no cenário contemporâneo”, coloca Luigi. Numa trajetória semelhante à de Guilherme Luigi, que se desenvolveu pelo viés artístico, a designer Lin Diniz atuou no mercado antes da experiência autoral. Após quase 10 anos trabalhando em estampas industriais, principalmente para clientes de moda como Iódice, Tufi Duek, Denim Junkies e Skin Bikini,

CONTINENTE MAIO 2015 | 71

Visuais_MAI.indd 71

24/04/2015 11:00:55


DIVULGAÇÃO

Visuais

9

foi no contexto da decoração que surgiu a oportunidade de colocar seu nome no trabalho que geralmente terceirizava, sendo a responsável pela linha Lin Diniz para a Oppa Design, na qual elaborou estampas geométricas para almofadas. “O convite surgiu depois de fazer para a loja física da marca de móveis e decoração desenhos à mão que ilustravam banquinhos do espaço. É muito legal o reconhecimento, ver que no site da rede está lá exposto um breve currículo e uma foto, que dá cara a quem faz a estampa, personifica o profissional. Raras são as marcas que fazem isso. O mercado se apropria apenas do produto”, afirma Lin Diniz, que também fez, em parceria com o arquiteto Marcelo Rosebaum, estampas para decoração. A arquitetura é o berço do trabalho gráfico do designer e ilustrador Adriano Marcusso, sócio do Estúdio Mola. Seu estilo concreto e harmonioso se faz presente nas três séries de cinco peças que criou para a Lilou, um novo material de revestimento semelhante ao porcelanato. No processo, brincou

A presença de pernambucanos na estamparia brasileira aponta para a universalização das referências locais com a escala das formas, para que, mesmo em padrões repetíveis, permitisse uma variação inspirada na proporcionalidade dos ambientes – para espaços pequenos, usa formas menores, e, para um grande painel, uma estampa mais monumental. “Esse trabalho é o fruto da minha vivência, por ter uma base em arquitetura, desenvolver móveis, ilustrar. As referências arquitetônicas transparecem na geometria das estampas”, conta o designer e ilustrador, que também assina o projeto artístico 100 Art Cans, em que pinta garrafas de cervejas com desenhos exclusivos em cada obra. O material deve ser exposto neste primeiro semestre, na Nuvem Art, na Galeria Joana D’Arc, no Recife.

NAMORO COM A MODA

As sócias da D.uas Design começaram a destacar-se no mercado de decoração, criando estampas exclusivas para azulejos. A demanda de decoração se estendeu para o tecido para revestimento de móveis, artigos de mesa e almofadas. “Percebemos que existia, em Pernambuco, uma carência de estampas exclusivas, de um frescor nesse setor, com estilo próprio e característico com o qual a clientela se sentisse contemplada. Cada vez mais, a estampa era nosso produto, independentemente da plataforma. Algumas pessoas começaram a comprar nossos tecidos de decoração a metro (mesmo pesados e impermeáveis) para fazer roupas. Foi quando atentamos para o nicho de moda”, conta Lia Tavares, que, ao lado de Marina Viturino, comanda a marca. Nesse nicho descoberto, as criadoras da D.uas passaram a produzir acessórios (bolsas, necessaire, capas para tablets e smartphones) e, desde o ano passado, iniciaram uma parceria de coleções conjuntas com a marca de bijuterias Trocando em Miúdos. De lá para cá, foram lançadas três coleções de roupas com estampas exclusivas, relacionadas

CONTINENTE MAIO 2015 | 72

Visuais_MAI.indd 72

24/04/2015 11:00:55


BRUNA VALENÇA/DIVULGAÇÃO

9

ADRIANO MARCUSSO Com base na sua formação em Arquitetura, ele desenvolve formas geométricas para revestimentos

10

D.UAS DESIGN Sócias da marca começaram criando propostas para decoração e agora também atuam na estamparia de moda

ao tema criativo das bijuterias. “Ainda terceirizamos a modelagem e a produção das peças, mas estamos tomando mais pé do setor de moda, para nos apropriarmos de nossas coleções”, aponta Lia Tavares. Para Lin Diniz, a vivência com a estamparia da moda se deu na dificuldade dos bastidores de grandes marcas como Iódice e Tufi Duek. Nesse mercado, design de estampas é bastante condicionado pelo briefing das tendências, e gigantes de confecções não costumam colocar o designer a par da produção final. “Várias vezes, eu só vi a peça pronta depois da coleção lançada; é complicado interferir artisticamente, quando muitas vezes somos uma peça solta da cadeia”, pondera a pernambucana, radicada há 10 anos em São Paulo, que pensa em assinar produtos próprios em projetos pernambucanos para garantir que as estampas saiam exatamente com as referências estéticas que deseja. O jovem Gabriel Azevedo, que também atende à poderosa grife Adriana Barra, diz que o mercado de moda para o designer é difícil, pois a área de estamparia muitas vezes não é reconhecida como criação, são poucos os estilistas que permitem liberdade. “Mas há espaço para o empreendedorismo, com inovação e projeto criativo”, avalia o designer. Em 2014, ele se uniu ao publicitário Rafael Nascimento e à especialista em marketing Maira Vidal para criar a marca autoral de estampas de camisetas e de bolsas Born Art Studio. Na marca dedicada ao estilo urbano, Gabriel desenha elementos minimalistas e pop em cores básicas. A estamparia está presente na sua arte gráfica. O flerte com a moda se iniciou em seu projeto de conclusão de curso: uma estamparia digital inspirada em personagens da cena mangue contemporânea (Jr. Black, Catarina Dee Jah e Chambaril). A expressividade e o colorido dos seus traços ressaltaram sua veia artística. Em 2013, os trabalhos de Gabriel estamparam a exposição Caos navalha, na Casa do Cachorro Preto. Com a boa repercussão, foi

10

convidado para expor em Buenos Aires, na Casa Cultural El Quetzal. Expor sem a obrigatoriedade de uma práxis de mercado é o que motiva o trabalho de Guilherme Luigi em moda. “É bom fazer parte de projetos independentes e poder materializar ideias sem ser acuado pela pressão da repercussão. O sucesso é o alcance às pessoas de identidades culturais diferentes num novo contexto”, defende o autor das Estampas Gonzaguianas. Nesse projeto, ele criou três linhas de estampas inspiradas em Luiz Gonzaga: Sertão, vinculada à referência geográfica de paisagens, fauna e flora locais; Traje, que trata da indumentária de couro e acessórios diretamente ligados à estética do cangaço e do vaqueiro; e Música, em

que explorou com liberdade o universo poético, a partir de sentimentos, emoções, sensações. A estamparia digital produzida foi utilizada para a criação de roupas feitas pelos concluintes do curso de Design de Moda da Faculdade Senac– PE, em desfile realizado no Museu Cais do Sertão, em dezembro passado. “A presença de nomes pernambucanos nesse momento da estamparia brasileira revela que nossas referências locais podem abranger um design universal, apreendido em outras partes do Brasil. Aliás, do mundo, o Brasil está em alta, depois da crise de 2008. Internacionalmente, existe, há vários anos, um olhar de curiosidade sobre o Brasil e isso nos coloca no patamar de tendência”, avalia Luigi.

CONTINENTE MAIO 2015 | 73

Visuais_MAI.indd 73

24/04/2015 11:00:57


ZOE TEMPEST/DIVULGAÇÃO

Made in Brasil Casa Daros – Rio de Janeiro

Visuais

Até 21 de agosto Mais informações: (21) 2138.0850

1

COLEÇÃO Um magnífico ambiente artístico

Casa Daros inaugura mostra que reúne o que o curador considera a excelência da produção nacional, condensada em oito artistas consagrados TEXTO Mariana Oliveira*

Quando inaugurou, em março de

2013, no Rio de Janeiro, a Casa Daros apresentou a exposição Cantos cuentos colombianos, uma seleção de 75 obras de 10 artistas da Colômbia presentes na Coleção Daros Latinamerica. Desde então, o espaço recebeu mais três mostras e outros tantos eventos, mas nunca havia sediado uma exposição

cujo foco fosse a produção brasileira contemporânea dentro de sua coleção – que reúne 1.200 trabalhos representativos de 120 artistas nascidos ou residentes na América Latina. Esse olhar sobre a arte brasileira foi feito agora, quando o espaço inaugurou, no fim de março, a exposição Made in Brasil, que fica em cartaz até agosto próximo.

A mostra traz 60 obras de artistas brasileiros com projeção internacional (Antonio Dias, Cildo Meireles, Ernesto Neto, José Damasceno, Miguel Rio Branco, Milton Machado, Vik Muniz e Waltercio Caldas). O curador, também responsável pela curadoria da coleção, Hans-Michael Herzog, afirma que a mostra seria uma homenagem ao “magnífico ambiente artístico brasileiro”. A escolha específica desses oito artistas – dentre os 19 brasileiros que fazem parte da Daros Latinamerica – parece ter se dado de maneira mais intuitiva, sem um fio condutor claro, uma estética preponderante, uma abordagem geracional, ou mesmo uma temática especial. Segundo Herzog, são artistas com perfis e produções muito distintas, com qualidades singulares, o que impede uma visão homogênea do todo, mas

C O N T I N E N T E M A I O 2 0 1 5 | 74

Visuais_MAI.indd 74

24/04/2015 11:00:57


IMAGENS: PETER SCHÄLCHLI/DIVULGAÇÃO

1

CILDO MEIRELES Missão/Missões (Como construir catedrais) foi um dos destaques da retrospectiva do artista na Tate Modern, em Londres

2

MAIO DE 1968 Antonio Dias aproveitou pedaços de pedras utilizadas nas manifestações em Paris para compor a obra To the Police

3

LIVRO CARBONO Exposição reúne, pela primeira vez, 22 livrosobjetos de Waltercio Caldas, produzidos entre 1967 e 2004

2

3

que têm em comum a produção de trabalhos marcantes e consistentes. “Buscamos criar diálogos entre eles. Não sei se esse diálogo de fato está acontecendo, só o público poderá dizer”, comentou o curador. Como fica claro no título, Made in Brasil, o que une esses artistas é o fato de serem todos brasileiros. Por isso, cada um deles ocupa espaço singular na exposição, sem sugestões específicas para uma conexão ou lógica expositiva. O percurso sugerido se inicia pela vídeoinstalação Entre os olhos, o deserto, de Miguel Rio Branco. Em 40 minutos, com trilha sonora de Ronaldo Tapajós, o artista apresenta imagens de paisagens do deserto, objetos e olhos em três grandes telas dispostas lado a lado, numa das amplas salas da Casa Daros. As fotografias foram feitas no Novo México e em estados vizinhos, e refletem um pouco da “cultura

de deserto” americana. Em livro homônimo, publicado pela Cosac Naify, Miguel Rio Branco destrincha seu encanto pela palavra e por esse ambiente em que se sente a ausência de quase tudo: “No que diz respeito à palavra deserto, o que me fascina é ver o quanto a metáfora do vazio, de tanto ser usada, permeia a palavra inteira. A palavra tornouse, ela mesma, uma metáfora. Logo, para restituir-lhe a força original é preciso voltar ao deserto real, que, na verdade, é o vazio exemplar – mas um vazio com seu próprio e real pó”. Na segunda sala da mostra, são apresentados 22 livros-objetos de Waltercio Caldas, produzidos entre 1967 a 2004. Trata-se de uma amostragem de força e leveza poética. Segundo o artista, ele tem prazer especial em trabalhar com objetos tridimensionais e estabeleceu com os livros uma

relação de liberdade. “Eles contêm uma possibilidade de trabalho com o tempo, são objetos maiores por dentro do que por fora”, pontua. Talvez a obra mais badalada da mostra seja Missão/Missões (Como construir catedrais), de Cildo Meireles, produzida em 1987 para uma exposição itinerante com curadoria de Frederico Morais, e que desde 1998 não é vista no Brasil. A instalação trata das sete missões fundadas pelos jesuítas no Paraguai, Argentina, e no sul do Brasil, entre 1610 e 1767, sendo composta por 600 mil moedas, 500 hóstias e dois mil ossos de boi. O artista dispôs as moedas no chão e as conectou com os ossos colocados no “céu” por uma corrente de hóstias. A instalação, que tem forte impacto visual e emocional, foi um dos destaques da retrospectiva do artista em 2008, no Tate Modern (Londres). Ainda há cinco salas dedicadas a Antonio Dias, com 13 trabalhos, entre instalações, objetos e pinturas, realizados a partir de 1968, quando o artista se mudou para a Europa. Depois dessas salas, são apresentados os desenhos de Milton Machado, as instalações de José Damasceno, as fotografias de Vik Muniz, e, por fim, os Humanoides de Ernesto Neto, que convidam o espectador a se vestir com as esculturas. Ainda, no Espaço de Documentação da Casa Daros, é possível assistir a depoimentos dos artistas exclusivamente realizados para esta coletiva. Made in Brasil é uma oportunidade de conhecer um pouco da produção dessas artistas, selecionados de forma criteriosa, quando de sua aquisição para a Coleção Daros Latinamerica. Ficaram de fora dessa mostra artistas do acervo que já haviam participado de exibições anteriores, como Leonora de Barros, Iole de Freitas, Rosângella Rennó e Eduardo Berliner. A proposta da instituição é que os brasileiros do acervo ainda não exibidos (Mario Cravo Neto, Nelson Leirner, Cinthia Marcelle, Valeska Soares, Hélio Oiticica, Mira Schendel e Lygia Clark) façam parte de uma próxima exposição. *A jornalista viajou a convite da mostra Made in Brasil.

CONTINENTE MAIO 2015 | 75

Visuais_MAI.indd 75

24/04/2015 11:00:58


DIVULGAÇÃO

Sonoras

GUITARRA A volta do menino-prodígio

Depois de duas décadas, instrumentista e produtor musical Robertinho de Recife volta a lançar um disco de estúdio, MetalMania – Back for more TEXTO Germano Rabello

Carlos Roberto Cavalcanti de

Albuquerque, 5 de novembro de 1953, maternidade do Derby. Ali nascia um músico que se faria multiplicado em incontáveis gravações brasileiras. Robertinho de Recife é mais que guitarrista, é um guitar hero. A história de sua vida é rocambolesca, cheia de fatos inesperados, atitudes impulsivas. O espantoso é que o compositor gravou com muita regularidade entre 1977 e 1990, antes de entrar num longo período sabático. Talvez pela facilidade de trabalhar com gente de talento, sua veia autoral terminou ficando em segundo plano, substituída por seu trabalho como instrumentista e produtor musical. Agora, o álbum MetalMania – Back for more quebra o

CONTINENTE MAIO 2015 | 76

Sonoras_MAI.indd 76

24/04/2015 13:57:29


está relegada ao ostracismo, carecendo de novas edições em CD, vinil ou qualquer outro formato. Os registros dele foram bem diversos entre si, indo do merengue ao frevo, da new wave ao flamenco, com muita desenvoltura, e tendo um espaço reservado também para o rock pesado. O heavy metal é um dos desdobramentos do rock, de uma época de intensa criatividade e novas sonoridades elétricas, fins dos anos 1960. Dos precursores que tocavam blues pesado, como o Led Zeppelin, o gênero chega ao primeiro marco que é o disco do Black Sabbath, de 1970. Neste e nos seguintes, o Sabbath influenciou a criação de quase todos os subgêneros do metal. No comportamento, a antítese do peace and love: um interesse pelo obscuro, pelo sobrenatural. As novidades chegaram ao Brasil com o habitual delay. Havia experiências anteriores ao MetalMania, entre eles o vinil Stress, de 1982, da banda homônima de Belém do Pará, tendo sido ele o pioneiro do gênero no país. Subgêneros mais pesados, como o death metal do Sepultura, já estavam

1

período de mais de duas décadas fora dos holofotes. Um encontro adiado com a morte é a explicação mais evidente desse retorno, pois Robertinho passou bem perto dela, com o infarto que teve em março de 2014. Depois de uma complicada cirurgia cardíaca, que deixou família e fãs apreensivos, ressurgiu cheio de ideias. “Morri e nasci de novo. E, quando voltei, disse pra mim mesmo: quero tocar minha guitarra. E quero tocar com o MetalMania”. Muita gente pode não saber que ele aderiu ao heavy metal em tempos inaugurais, no primeiro disco MetalMania, de 1985. Mas esse desconhecimento é compreensível, já que, infelizmente, sua discografia

O compositor gravou com muita regularidade entre 1977 e 1990, antes de entrar num longo período sabático presentes na cena. Ainda assim, o MetalMania, apesar de híbrido entre o heavy e o hard rock, que não soa como o heavy metal que conhecemos hoje, teve importância pela qualidade e pela energia catalizada em shows de grandes arenas. Por ser um músico já conhecido, o disco de Robertinho ajudou a dar visibilidade ao que estava ainda circulando no underground. Sobre esse trabalho de 1985, Helder Aragão, o DJ Dolores, que colaborou com Robertinho nos palcos em 2012, diz que “foi o único disco brasileiro da época que tinha um som poderoso, roqueiro, muito superior ao que se fazia”. DJ Dolores ressalta que o pop rock brasileiro da época era malproduzido, e os discos tinham mixagem de MPB,

sem peso na guitarra, e lembra que Robertinho “sempre flertou com gêneros diferentes, com uma incrível capacidade de adaptação”. Já o mais recente MetalMania – Back for more traz outro sentimento. Em parte, porque é fruto de outra época mesmo, e – sinal disso – foi lançado em dezembro passado via iTunes (no Brasil e no Japão) antes da edição física. Tem uma produção mais moderna, com voz sintetizada, meio robótica, e efeitos eletrônicos sob a responsabilidade do filho de Robertinho, Fhorggio. Também traz ressonâncias do disco anterior, Rapsódia rock, de 1990, em que havia uma combinação de guitarra e orquestra sinfônica, música clássica e rock. Aqui estão de volta essas referências, sobretudo porque várias de suas músicas foram escritas durante a turnê do Rapsódia. O álbum tem uma identidade mais misteriosa, soturna, que remete ao sagrado nos temas (The glorius, The third angel). “Eu conheço a fonte”, diz Robertinho. “Conheço as coisas mais antigas que deram vida ao estilo. Led Zeppelin, Black Sabbath, Blue Cheer. Eu vim dessa geração. E gosto muito de Bach, Mozart, Beethoven, mas não sei tocar tudo deles. Não sou músico clássico. Sou um guitarrista doido e minha guitarra me leva a essas coisas.”

FEITIÇO DA GUITARRA

A vida de Robertinho de Recife ensina algo sobre imprevisibilidade e fluidez. O encontro dele com a guitarra, por exemplo, se deu por vias tortas. Quando tinha 10 anos, a caminho de uma quadrilha junina, foi atropelado por um carro. Passou dois dias em coma, colocou platina na perna. Ficou quase um ano deitado, sem poder andar. E aí acontece “o pulo do gato”, quando descobre os Beatles através de programa de TV. A guitarra o enfeitiçou. Na época, meados dos anos 1960, o instrumento era pouco conhecido, chegaram a achar que era só uma viola amplificada. A família, que sempre morou na zona norte do Recife, contava muitos músicos, incluindo tios, primos e sua mãe, Ana Clea, que havia sido cantora antes de casar. “Considero que foi ela quem me ensinou a tocar. Ela cantava para que eu pudesse encontrar as

CONTINENTE MAIO 2015 | 77

Sonoras_MAI.indd 77

24/04/2015 13:57:29


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

2

3 Página anterior 1 COM A BANDA Músico fez show de abertura para o Judas Priest, no Rio Nestas páginas 2 DISCOS Com Emilinha, Robertinho lançou alguns hits, como O Elefante

3

FAGNER Compositor convidou guitarrista para tocar em vários projetos musicais

4

METALMANIA Disco de 1985 faz um híbrido entre heavy metal e hard rock

Sonoras 4

notas certas”, lembra. E ele aprendeu direitinho: foi convidado a entrar em bandas, fazer show em boates em que não era permitida a entrada de menores (havia até um “reserva” para ele, caso a polícia chegasse), em conjuntos como Os Moderatos, banda de baile, e Os Bambinos, que tocavam em festas tropicalistas do Recife e também na TV Jornal. Um desses shows, gravado em fita de rolo por uns americanos de passagem por aqui, circulou e terminou rendendo ao garoto do Recife um convite para tocar nos EUA, com a Watchpocket, banda grande na época. Tinha apenas 17 anos, e já estava no circuito profissional da música norte-americana. Mal podia acreditar. Por mais que a experiência tenha sido positiva, houve outro acidente grave de carro, que o deixou em coma, depois da paralisia temporária na face, numa fase de dependência das drogas.

Com menos de 17 anos, Robertinho já havia ingressado no circuito profissional da música norteamericana Voltou para o Recife acabado e, para se recuperar, buscou um retiro espiritual, estudando no Seminário Teológico do Norte. Tocava em igrejas e foi numa delas que Fagner o viu tocar pela primeira vez, o que resultou numa longa parceria. Formou uma banda chamada Ala D’Eli, com Zé da Flauta e outros músicos. A movimentação, então, era muito maior, uma cena não só pernambucana, mas do Nordeste inteiro. A estreia em disco solo, Jardim da infância, de 1977, acontece numa fase de afirmação dos artistas através do

trabalho de cada um, de formação de público. E vários elementos do LP evidenciam isso: na capa deslumbrante de Fausto Nilo, também parceiro em várias letras do disco; nos vocais de Elba Ramalho, Amelinha e Fagner, que assina a coprodução; na sanfona de Sivuca, no trompete de Márcio Montarroyos; no baixo de Itiberê. Jazz e rock, música nordestina, indiana, flamenca. Fagner, então responsável por trazer a “música jovem” daquela época para a CBS, participou nos vocais e fez a coprodução do disco com Robertinho, que gravou, no ano seguinte, a guitarra de um dos maiores sucessos do cantor. Numa das suas inúmeras crises, Roberto queria desistir da música, mas Fagner o convenceu a tocar em seu disco. A guitarra angustiada de Revelação parece traduzir tudo que ele estava passando: “Sentimento ilhado/ louco, amordaçado/ volta a incomodar”. Composta pelos irmãos piauienses Clésio e Clodo e lançada em 1978, vira um grande sucesso. Ele lava a alma, repensa, segue em frente. Nessa época, sua guitarra era onipresente nos discos de seus colegas de geração, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Lula Côrtes, entre outros. A aceitação de Frevo dos palhaços, música do primeiro álbum, levou a Robertinho no Passo, o segundo disco, dedicado ao frevo a pedido da gravadora. O que ninguém esperava era o experimentalismo com que ele desconstruiria o ritmo junto a Hermeto Pascoal (nos arranjos e nas composições). “Na época, a crítica pegou pesado. Dez anos depois, já era a coisa mais genial do mundo. Sou macaco velho, estou acostumado com isso”, comenta. Sua discografia é marcada por mudanças radicais, construídas junto com parceiros sempre presentes. Da turnê Tropical, como músico de Gal Costa, veio inspiração para o terceiro álbum, E agora pra vocês… Swingues tropicais. Ritmos latinos em destaque, participação de Gal em Merengue e o duelo entre guitarra e vocoder, em Papo de guitarrista. Do casamento com Emilinha, vieram Satisfação, de 1981, e Robertinho de Recife e Emilinha, de 1982, ambos deliciosamente new wave. Representam concisão, menos participações, mais segurança ao assumir os vocais, em parceria com a

CONTINENTE MAIO 2015 | 78

Sonoras_MAI.indd 78

24/04/2015 13:57:30


INDICAÇÕES esposa Emilinha. É dessa época Seja o meu céu, depois regravada por Nara Leão, até hoje uma de suas mais conhecidas, com letra de José Carlos Capinan. Cantam o amor correspondido Feliz com você, Bombom, Mina de ouro. “Emilinha adorava new wave. Foi a fase da minha fascinação por ela, as músicas falavam do nosso relacionamento. As músicas são sempre a respeito do que estou vivendo no momento”, explica.

BABY DOLL DE NYLON

O elefante, com a surreal letra de Fausto Nilo, e gravada com um coro infantil, foi um sucesso enorme, que levou o mercado fonográfico a modernizar a música para crianças. A gravadora descobriu um filão e queria mais criações no estilo, como era de se esperar. Para desgosto de Robertinho, levaram-no a gravar É de chocolate junto com o Trem da Alegria, em 1984, outro sucesso. No dia em que recebeu o disco de platina, chegou da cerimônia de entrega e o jogou do 12º andar. “Acho que nenhum artista fez os absurdos que eu já fiz. Ia para a TV sem tomar banho, com guitarra sem corda, tocando como se fosse canhoto. Não estava mais a fim dessas armações.” A música que as novas gerações podem associar mais facilmente a Robertinho é o hit mais inesperado para ele, Baby doll de nylon. Até hoje uma das músicas mais procuradas no YouTube, é um fenômeno, com mais de 600 mil acessos, incluindo aí uma montagem hilária com Mick Jagger e David Bowie. A história é engraçada. Ele e Caetano Veloso estavam numa festa, quando Júlio Barroso (falecido vocalista da Gang 90)

sugeriu uma parceria entre os dois. Robertinho solfeja uma melodia, Caetano promete botar uma letra. Tempos depois, Caetano liga. Começa a cantarolar: “Baby doll de nylon/ combina com você/ Pode até ir pro baile, aparecer na TV” e, do outro lado da linha, havia um Robertinho incrédulo. “Ele começou a cantar e eu achei horrível. Como é que é? E ele ‘você não quer anotar?’ e eu fui pegar a caneta com muita má-vontade”, relembra. Em 1983, quando estava gravando Robertinho do mundo e faltava uma música para completar a tracklist, Emilinha lembrou a parceria com Caetano, que, de outro modo, talvez ficasse na obscuridade. Depois de seis meses de fracasso de vendas, a música começa a estourar em Salvador, depois no Nordeste inteiro. O disco tinha ainda pérolas como Crioulos de Trinidad, Capitão Copacabana e a instrumental Astúcia, que já era um prenúncio do rock pesado que viria a seguir. E assim o círculo se completa. Perguntado sobre a possibilidade de voltar a tocar também em outros estilos, ele nega. Mas, com uma biografia assim, quem pode adivinhar? Vale lembrar as palavras de Fagner, no Jornal da Música, em setembro de 1977: “Pouca gente, que eu saiba, reúne uma formação tão rica de experiência diária e tão perto da música quanto Roberto. Não uma coisa cerebral, estudada, mas uma coisa viva, seguida, sofrida”. Talvez a sua trajetória artística simplesmente siga o fluxo dessa vida intensa, de workaholic dionisíaco, e, com um pouco de sorte, a gente ainda vai ter novos discos dele para ouvir.

SURF ROCK

ROCK

Independente

Independente

THE RAULIS The Raulis

NEIL ARNOLD Solide n’ Roll

Entre a guitarrada e a surf music, o The Raulis lança seu EP de estreia permeado por uma inovação sonora que vai além dos consagrados ritmos a que a banda se propõe tocar. Tecnicamente, o disco é tomado por uma produção invejável, atenta aos timbres e as texturas de cada uma das suas cinco músicas. O grande destaque do álbum, porém, é o baterista Antônio Marques, cujo mérito se deve a forma como seus arranjos, ora frenéticos, ora minimalistas, dão vida à banda.

Disco do compositor inglês radicado no Recife, Neil Arnold. Objetivo, o álbum leva o ouvinte a um passeio sonoro por 10 canções, que sintetizam com perfeição todas as idiossincrasias de ritmos tão característicos da língua inglesa, como o rock’n’roll e o country. Atento ao detalhes, Arnold compõe, toca guitarra e canta com a fluência de quem nasceu para encantar os ouvintes. Tecnicamente, o registro ainda é competente à medida que consegue equilibrar arranjos econômicos e melodias marcantes.

ALTERNATIVO

MPB

Independente

Independente

CIDADÃO INSTIGADO Fortaleza O quinto disco do Cidadão Instigado prova que a banda é um marco na produção musical brasileira. Há quem consiga relacionar as escolhas harmônicas e melódicas do grupo às sonoridades dos grandes nomes do rock das décadas de 1960 e 1970. Apesar disso, essa semelhança é meramente estética, um traço sonoro destinado a envolver as canções e a voz do compositor Fernando Catatau. A faixa-título do álbum é uma bela crônica sobre a vida e o tempo na capital cearense.

LUIZA SALES Aventureira O disco da cantora Luiza Sales é o final de um longo processo em que se misturam influências musicais e reflexões pessoais. Entre a bossa-nova, o samba e ritmos brasileiros, a cantora brinda o ouvinte com letras e vocalizações que acompanham de perto os vários arranjos de seu álbum. Além disso, é perceptível a preocupação da artista com o acabamento do trabalho, gravado e produzido de forma coesa, a fim de preservar a identidade sonora de instrumentos delicados, como violão de nylon e o xilofone.

CONTINENTE MAIO 2015 | 79

Sonoras_MAI.indd 79

24/04/2015 13:57:30


FOTOS: ALCIONE FERREIRA

CON TI NEN TE

Conversa

MÚSICA

A perda da centralidade

Músicos reunidos nesta Conversa apontam a retração do interesse das novas gerações pela música, que deixa de ser o elemento principal da criação de identidade de grupos Agradecemos ao Paço do Frevo por receber o grupo desta Conversa.

Pela terceira vez este ano, trazemos a Conversa, série de encontros que a Continente promove em comemoração aos seus 15 anos. Na proposta, convidamos realizadores de seis setores culturais para discutirem temas que consideram prementes nas suas áreas de atuação. Nesta edição, entre profissionais da cadeia da música se evidenciou a discussão sobre o mercado. Um das questões abordadas foi a concentração de shows nos ciclos festivos do calendário anual – o Carnaval, sobretudo –, enquanto, no restante do ano, são poucas as opções de apresentações. Parte desta Conversa, realizada no Paço do Frevo, está nas páginas que se seguem, com versões para o site da revista e para o canal da Continente no YouTube.

CONTINENTE MAIO 2015 | 80

Conversa_MAI.indd 80

27/04/2015 15:58:36


DÉBORA NASCIMENTO O mercado para a música melhorou ou foram as dificuldades que mudaram? ISAAR FRANÇA A gente melhorou a cadeia. Lembro que quando comecei, às vezes, vinha som de fora, não tinha técnico, não tinha roadie, não tinha um monte de profissionais. A questão se profissionalizou, realmente, mas muita coisa ainda é atrelada ao poder público. Isso é complicado, porque fica todo mundo refém, inclusive o poder público fica refém dos artistas. Isso eu falo em relação às grandes festas, aos shows. Hoje melhorou por quê? Porque eu vim de uma banda que surgiu de um movimento, que na época muita gente de fora vinha pra ver, e que hoje se mantém na música. Claro que todo mundo tem suas dificuldades, tem um momento que precisa fazer um bico ali. Mas, mesmo com tudo isso que aconteceu nesses 20 anos na cidade, a gente não conseguiu que as pessoas conhecessem os seus artistas, nem fazer cultura para pessoas e não somente para artistas. Esse é um diálogo que ainda não bateu nos meios de comunicação, principalmente rádio e TV. DÉBORA NASCIMENTO Então, você acha que o entrave está na divulgação nos meios de comunicação? ISAAR FRANÇA É. Eu acho que se tivesse mais acesso… Você vê, hoje estávamos falando de uma classe média que lota shows da Nação Zumbi, de Otto, Eddie, mas não é um público que está mais experimentando. Ele fica ali no que já sabe, que já está na mídia nacional. Ir para um show de Nação Zumbi é a mesma coisa de ir para

um de Pitty ou Tulipa Ruiz. É um pessoal que está na crista da onda. Falta um público mais curioso, de pagar para experimentar outra banda.

Convidados ANDRÉ FREITAS Compositor formado em Música pela UFPE. Exprofessor do Conservatório Pernambucano de Música, tocou e gravou com diversos artistas. Foi produtor e diretor musical de projetos ligados ao teatro, cinema e às artes plásticas. É coordenador de música do Paço do Frevo.

JEDER JANOTTI Falta equipamento cultural também. Acho que, no Recife, falta espaço de pequeno porte. A gente não tem infraestrutura para isso, não tem uma cultura. Me chama muito a atenção não ter uma cultura de casas de pequeno porte, com público fixo, independentemente de quem está tocando. Isso dificulta muito. JARMESON DE LIMA O Recife sempre sofreu muito com essa coisa de lugar pra tocar, porque sempre foi oito ou oitenta. Ou é o Pavilhão do Centro de Convenções ou é uma casa que é improvisada, que não tem palco, com tudo no chão, para 50 ou 100 pessoas. Você vai a cidades como São Paulo, onde até mesmo esses pequenos lugares, que são para 50 ou 100 pessoas, têm um palco mínimo, têm um som que é da casa, que a pessoa toca lá normalmente, sem gastar mais e esperar a bilheteria. Hoje em dia, todo mundo aqui na cidade corre atrás do prejuízo literalmente, porque já começa a fazer show perdendo de 2 x 0, porque tem o som pra alugar e montar e ainda tem que pagar os custos da casa, porque nem todas têm a boa disposição ou a predisposição de dizer “Tudo bem, a gente vai fazer uma programação autoral aqui, regular”.

ISAAR FRANÇA Cantora, compositora e instrumentista, começou a carreira em 1995. De 1997 a 2004, integrou a banda Comadre Fulozinha. Gravou com DJ Dolores, Siba, Mundo Livre S/A, Eddie e Cidadão Instigado. Em 2014, lançou seu terceiro álbum solo,Todo calor.

JARMESON DE LIMA É jornalista e produtor cultural. Desde 2004, produz o programa Coquetel Molotov na Rádio Universitária FM - 99,9 e organiza o festival No Ar Coquetel Molotov. Participou, como convidado, de eventos internacionais como a Berlin Music Week 2013 e TalkFest, em 2015.

JEDER JANOTTI JR. Doutor em Comunicação, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Departamento de Comunicação da UFPE, em que coordena o Laboratório de Análise de Música. É autor e organizador de três livros sobre música.

MATEUS ALVES Músico formado em Música pela UFPE, tem mestrado em Composição pela Royal College of Music (RCM) de Londres, onde também estudou Música para Cinema. Transita entre a música erudita e a popular. É compositor premiado de trilhas sonoras de filmes.

Mediação

ANDRÉ FREITAS Isso é um problema que foi construído nos últimos 15 anos, na minha análise. Já vou com 28 anos de carreira, quase 30. Nos anos 1990, a gente tocava de quarta a domingo,

AD LUNA É baterista da ZMusique, tocou na Querosene Jacaré, Monjolo e Cruor. Formado em Jornalismo pela UFPE, foi gerente de conteúdo do Showlivre; repórter dos cadernos de cultura do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco. É roteirista do Som na Rural. Mantém o blog Interdependente.

DÉBORA NASCIMENTO Trabalhou no Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco. Entre 2001 e 2002, apresentou programa musical na Rádio Universitária. Entre 2007 e 2009, foi gerente de música da Fundação de Cultura Cidade do Recife. É editora-assistente da Continente.

CONTINENTE MAIO 2015 | 81

Conversa_MAI.indd 81

24/04/2015 14:00:36


DIVULGAÇÃO

ALCIONE FERREIRA

Conversa

CON TI NEN TE

“A gente está obrigado à dependência das leis de incentivo ou a entrar nos calendários municipal e estadual” André Freitas

1

1

CARNAVAL

Festa em Pernambuco reúne artistas de diversos estilos musicais

e tinha mercado. Nessa equação de que se fala, está faltando público. No começo dos anos 2000, com o processo de descentralização do Carnaval, o que melhorou o mercado é que toda essa cadeia produtiva foi estruturada. As companhias de som, de iluminação, que trabalhavam na informalidade, se registraram na junta comercial, assinaram carteira, garantiram direitos trabalhistas e, hoje, o resultado prático disso é que a gente tem excelência no atendimento de uma área que era muito carente. Como Isaar falou, vinha de fora até a sonorização. O efeito perverso disso, depois de 15 anos, é que virou tão grande esse calendário gratuito de festas na rua, que o nosso produto teve o valor diluído. Fora a falta dos equipamentos, porque os teatros estão fechados – principalmente os públicos, e até o particular, porque o Valdemar de Oliveira está interditado. Então, a gente está obrigado a uma dependência exclusiva das

leis de incentivo, ou a entrar nos calendários municipal e estadual. JARMESON DE LIMA Agora, há uma certa formação de público, justamente por causa desses equipamentos culturais que, pela falta de manutenção, deixam de ser frequentados. Por exemplo, quando o Teatro do Parque estava aberto e havia shows lá, existia o público do centro da cidade que, mesmo não conhecendo os artistas, ia assistir ao que estava passando. Tinha o projeto Seis e meia ou outro show, de um artista novo lançando disco, e o pessoal aparecia pelo costume de ir lá. O Teatro do Parque era um equipamento aberto, municipal, com ingressos acessíveis e que tinha algo mais ou menos de qualidade para que se pudesse ver. Há iniciativas, rolando, como no próprio Paço do Frevo, quando acontecem esses eventos e shows na sexta-feira, no horário em que já é final de expediente. Mas cadê o público em outros lugares da cidade, que poderiam fomentar experiências de bandas e artistas novos, que aproveitariam esses pequenos espaços para mostrar trabalho?

ISAAR FRANÇA E a descentralização que se faz no Carnaval poderia se estender para o ano todo, se existissem espaços nos subúrbios. Precisa haver espaços como o Teatro do Parque, centrais, por onde passam pessoas do subúrbio, porque não é todo mundo que chega ao Recife Antigo. DÉBORA NASCIMENTO A partir do que André falou, o público está, de certa forma, viciado em show gratuito, a ter tudo de graça, não é? JEDER JANOTTI A lei de incentivo tem que ser repensada. Ela foi muito importante, por exemplo, em Pernambuco, no momento em que esteve voltada para esses shows. Mas acho que ela tem que ser voltada para equipamento cultural, para a formação de público. Concordo com o Jarmeson, o Recife tem uma característica que considero negativa, que é a ausência de circuito de pequeno porte. É bom lembrar que o mercado da música, voltando à sua primeira questão, mudou muito. Ele se voltou para a música ao vivo. Foi uma mudança que a gente observou nesse tempo. Muitos deixaram

CONTINENTE MAIO 2015 | 82

Conversa_MAI.indd 82

24/04/2015 14:00:36


BRENO CÉSAR/DIVULGAÇÃO

pra trás a ideia “Eu vou viver só de música”. Tocar virou uma atividade que envolve outras. ANDRÉ FREITAS No Carnaval deste ano, pelo menos o municipal, foram 66 palcos com quase 2.600 shows. Não dá. Essa equação não fecha em quatro dias, talvez um pouco mais, contando a semana pré-carnavalesca. Esse formato, se teve sua importância 15 anos atrás, nesse processo estruturador da cadeia produtiva, hoje em dia não se sustenta mais, porque o nosso produto passa a não ter valor. Você falou em vício, eu nem sei se é isso mesmo, mas ele está condicionado a assistir de graça o ano inteiro. E isso não se restringe à música, porque, quando começam os festivais de dança, teatro e tudo que engloba as artes cênicas, o problema se repete e, hoje, ganhou uma proporção absurda. Pelo menos, pelo que eu acompanho na imprensa, as casas de espetáculo cobram, em média, R$ 20 pela entrada inteira, para servir como meia-entrada pra todo mundo. No final das contas, é R$ 10 uma bilheteria. Isso não paga nada, nem vai fomentar o surgimento de casas particulares, como havia nos anos 1990. Hoje em dia, não existe casa de espetáculo no Recife porque não há bilheteria. Bilheteria virou um problema.

2

ALCIONE FERREIRA

2

DÉBORA NASCIMENTO Temos que saber que shows são esses.

Isaar França em aula-espetáculo de Ariano Suassuna

JEDER JANOTTI Aí está a questão. Por exemplo, uma coisa que aconteceu no Recife: nós estamos recebendo regularmente shows internacionais. Será que têm prejuízo sempre? Acho que não…

JARMESON DE LIMA Nos últimos cinco anos, o que a gente viu foi isso: reduziuse vertiginosamente a quantidade de shows abertos no Recife, só que, ao mesmo tempo, ninguém está saindo de casa para ir aos lugares pagos. Então, está faltando um elo, nós não estamos conseguindo atrair o público. Está acontecendo alguma coisa, seja na divulgação, seja pelo que é a banda, o que é o show, o que é essa experiência de ver o show, de assistir ao vivo. JEDER JANOTTI Nós vivemos uma época de festivais também. Saindo do Recife, a música ao vivo mobiliza muita gente. Precisamos tomar cuidado com essas conclusões. Não é que as pessoas não vão a shows, elas vão. Show é o que mobiliza, hoje, a indústria da música. É a música ao vivo.

TRAJETÓRIA

AD LUNA Pois é, se fosse assim, não haveria esses shows. Mas gostaria de fazer uma observação. Estamos falando que parece haver uma crise de público, que não frequenta shows de bandas locais. Mas o brega funk está fervilhando, por exemplo. Andamos pela cidade e vemos os lambe-lambes de shows de MC e tal.

“Quando comecei, não tinha técnico, não tinha roadie, não tinha um monte de profissionais” Isaar França

ISAAR FRANÇA Em Jardim São Paulo são três casas para esse tipo de show. Três. AD LUNA É um pessoal que tem um público. Cada clipe deles no YouTube tem milhões de visualizações. ANDRÉ FREITAS Eles não concorrem em leis de incentivo, gravam discos, lançam…

CONTINENTE MAIO 2015 | 83

Conversa_MAI.indd 83

24/04/2015 14:00:37


DIVULGAÇÃO

de Ocupaço, do qual participava Roger de Renor, com o Som na Rural, e chamávamos as pessoas para se apresentar – a Isaar foi lá. As condições eram totalmente precárias, estávamos num terreno, numa ocupação. Mas planejamos, desde o princípio, envolver bandas de comunidades próximas que não teriam oportunidade de tocar num evento de classe média como se tornou, em boa parte, o Ocupe. Chamamos a Banda Palafita, com um pessoal de Afogados e do Coque. Eles chegaram lá e a gente sentia que havia uma barreira. Tem um grande muro dividindo a gente. Lá, eles abriram para a banda Eddie.

Conversa

CON TI NEN TE

JARMESON DE LIMA Sabe o que isso me lembra? Tem certas coisas que você precisa também ir com cuidado e fazer essa capilaridade, como a Nação Zumbi fez naquela época do Acorda Povo, que levava um trio elétrico com a banda e chamava grupos locais da cidade, de cada bairro, pra abrir o show deles. Aquilo ali, se brincar, foi o que tornou a Nação Zumbi bem-relacionada tanto na periferia quanto na classe média. 3

3

ANDRÉ FREITAS A iniciativa privada e o fomento público precisam se compor. A função do poder público se dá onde o mercado não entra. Só que, do jeito que está montado hoje, ele praticamente aniquila a iniciativa privada, porque é muito fácil você produzir sem bilheteria. Não tenho como sobreviver indo para uma casa noturna, até porque são pouquíssimas e a gente conta nos dedos de uma mão os abnegados que estão colocando isso pra frente, num cenário completamente diferente dos anos 1990 para uma banda de música instrumental… Nas quartas-feiras eu tocava em duas casas: Sanatório Geral e, depois, Overpoint. No Sanatório Geral, éramos uma banda de jazz e blues e, na Overpoint, cover dos Beatles.

ALCIONE FERREIRA

SHOW DOS RAMONES

Bandas, como a de punk rock nova-iorquino, costumavam reunir público fiel que criavam fãs-clubes

JEDER JANOTTI Todo final de semana fazem shows… AD LUNA Não falta algum tipo de diálogo, uma ponte? Por que, numa situação hipotética, não poderia existir um show da banda Kitara com Isaar? DJ Dolores com MC Sheldon? Qual seria o problema? Um público poderia encontrar o outro. ISAAR FRANÇA É, eu já fiz um show bem difícil em Chão de Estrelas. No Carnaval deste ano, entrei depois da Trombonada, que tocou frevo, e, depois de mim, vinha J. Miquiles, também fazendo frevo. Fiquei naquele som estranho, no meio do frevo. E o pessoal dizia “Cadê o frevo?”, e eu, “Tá vindo aí!”. Foi difícil. MATEUS ALVES É curioso você ter levantado isso. Há pouco, aconteceu uma experiência que envolveu não somente a cultura, mas toda a questão da luta pela cidade, que foi o Ocupe Estelita. Lá, eu participei da organização dos grandes Ocupes, que chamamos

“A música não é mais central na questão da identidade. Um seriado é mais importante para esta geração” Jeder Janotti

DÉBORA NASCIMENTO Mas, hoje em dia, uma banda cover pode tocar em qualquer lugar. A gente está falando de música autoral… ANDRÉ FREITAS Mas eu falo de mercado, de viver de música. DÉBORA NASCIMENTO Gostaria de divulgar o seu trabalho autoral? Hoje, as bandas que tocam cover têm lugar garantido em alguns espaços.

CONTINENTE MAIO 2015 | 84

Conversa_MAI.indd 84

24/04/2015 14:00:37


JEDER JANOTTI Tem lugar que só toca cover. ANDRÉ FREITAS Então, no primeiro turno, no Sanatório Geral, eu fazia um trabalho autoral e, no segundo, ia fazer dinheiro. JEDER JANOTTI Tenho a impressão, às vezes, de que para essa geração mais nova a música não tem mais tanta importância, não é mais o consumo cultural central. JARMESON DE LIMA A música deixou de ser elemento principal para ser acessório. JEDER JANOTTI Exatamente. Não é que eles deixaram de consumir… mas não é mais aquela coisa. A dedicação que às vezes que se tinha, por exemplo, a uma banda de rock, migrou para outros tipos de consumo.

NAÇÃO ZUMBI

Banda é uma das atrações mais assíduas dos eventos públicos de Pernambuco

JEDER JANOTTI Consome-se música, mas ela não é mais central na questão da identidade. Um seriado tem muito mais importância para esta geração, por exemplo, se eu chegar pra conversar sobre Game of Thrones, do que encontrar uma banda de referência em comum entre eles. JARMESON DE LIMA Isso tem a ver com a produção musical. Ela se espalhou tanto, que você consegue ouvir bandas de qualquer lugar no celular, na televisão, no rádio também, por incrível que pareça. Assim, você não tem mais aqueles pontos em comum, aqueles medalhões, artistas que criam fã-clubes, como há 20 ou 30 anos, quando seu acesso à música e ao seu artista era restrito. Você conhecia mais gente que tinha em comum o gosto por determinada banda ou artista, porque esses eram poucos. Agora, se tem milhões de artistas ao mesmo

tempo e os antigos não deixaram de produzir, convivem o background de artistas antigos, contemporâneos e outros, que você não conhece, porque também estão espalhados. AD LUNA Em 2014, foram lançados cerca de 200 discos de artistas pernambucanos. A distribuição desse material parece uma questão fundamental. Fala-se muito, desde os anos 1990, que a música pernambucana não toca na TV, nem em rádio. Geralmente, quem reclama disso são os integrantes do manguebeat e da Cena Beto (movimento de novos músicos pernambucanos, tais como Graxa, Aninha Martins e Juvenil Silva). Porque o pessoal do brega atende a um nicho de rádio, de TV, e tem as carrocinhas. A minha pergunta é a seguinte: é preciso haver programa de TV sobre música de Pernambuco, programação de rádio, a Rádio Frei Caneca? Vale a pena lutar por isso, ou buscar outras alternativas? JEDER JANOTTI Acho que existe uma idealização em relação a isso. Falam assim: “Eu queria tocar no rádio”. Não sei que rádio é esse. É uma ideia de rádio, pra mim, da década de 1990, de 1980, que não se sustenta mais. DIVULGAÇÃO

ALCIONE FERREIRA

4

DÉBORA NASCIMENTO Você acha que isso é um comportamento que faz parte dessa geração que está plugada a muitos itens ao mesmo tempo?

“O Acorda Povo pode ter contribuído para tornar a Nação Zumbi bem-relacionada na periferia” Jarmeson de Lima

4

CONTINENTE MAIO 2015 | 85

Conversa_MAI.indd 85

24/04/2015 14:00:38


DIVULGAÇÃO

DÉBORA NASCIMENTO Por que a gente não conseguiu ainda fazer a interiorização dos shows? Porque ainda ficamos muito focados nos shows no Recife e em Olinda. Em São Paulo, tem esse circuito em cidades do interior. ANDRÉ FREITAS Eu não sei se continua tão ruim ainda. Eu tive a felicidade agora em novembro de estar na grade do Festival de Jazz da Macuca, em Garanhuns. Há três anos eu não ia lá... DÉBORA NASCIMENTO Mas são ações isoladas. Falo de um circuito permanente. ANDRÉ FREITAS Mas é um circuito anual. Eu estou dizendo porque esse festival está acontecendo todo ano. Hermeto já esteve lá. Ano passado, o Duofel foi o headliner. Isso é muito significativo.

CON TI NEN TE

Conversa ISAAR FRANÇA O que aconteceu nos últimos anos foi uma ideia de que nós levávamos cultura ao interior, como se lá não tivesse cultura. O poder público deveria fomentar a cultura dessas cidades. Porque chega um monte de gente do Recife pra produzir um evento numa cidade em que a realidade e gosto local não são conhecidos. DÉBORA NASCIMENTO Mas o que estou falando é de uma banda ou artista poder fazer uma turnê no interior de Pernambuco. AD LUNA Isso. É o que a gente vê, por exemplo, em São Paulo. Você toca quinta-feira em São Paulo, sexta em Campinas, sábado em São José dos Campos. Aqui, você não vê a Eddie tocando em Olinda, daqui a dois dias, em Caruaru, depois em Garanhuns. JARMESON DE LIMA Só as bandas bregas conseguem. AD LUNA Às vezes, quem faz isso é o pessoal do metal. DÉBORA NASCIMENTO André, e na sistematização do ensino do frevo, que deve colaborar na multiplicação desse gênero musical, o Paço do Frevo terá alguma contribuição?

5

ANDRÉ FREITAS Se a gente for comparar com o jazz, o que ajudou muito na divulgação do gênero norte-americano – além do ensino da estrutura musical, basicamente formado por melodia e harmonia, que é algo muito mais simples – foi a existência de um suporte da cultura de massa, como o cinema, a indústria fonográfica que ainda fazia muita diferença naquela época. No nosso caso, não, porque é uma música orquestrada, então, só nisso já há uma diferença substancial. Conversando com o comitê de salvaguarda do frevo e com todos os maestros com quem eu tive oportunidade, soube que já existem algumas iniciativas de sistematização do ensino musical. Eu achava que o cenário era até muito mais difícil, e não é. Existe, por exemplo, o songbook da obra do maestro José Menezes, de Capiba, de Edgard Moraes. O que falta é uma unidade, um conceito, um princípio pedagógico que dê liga a isso tudo. Há uma meta de, em até dois anos, isso ser publicado. Porque hoje a forma de transmissão musical do que é o frevo ainda é uma experiência cultural. Primeiro, a gente precisa

5

MP3

Para especialistas, compressão digital afeta a qualidade do som e o ouvido

construir um novo paradigma, um novo consenso. Hoje, o frevo ainda fica encaixado naquela “prateleira” do folclore. A gente tem que ter esse consenso de que o frevo é um gênero requintado da música popular brasileira. AD LUNA E quando a gente fala em sistematização e você fala por exemplo do jazz, é bom dizer que a sistematização da música nos Estados Unidos ocorre em diversos estilos. O músico quer aprender heavy metal, rock, cada um tem um método. ANDRÉ FREITAS Essa questão do frevo a gente tem que começar a entender também dentro de um aspecto cronológico. Toda grande arte, essa música ocidental europeia, tem entre 700 e 800 anos. Já foi traçada uma linha do tempo bem-dividida em períodos, em estilos etc. Quando a gente fala do frevo, são apenas 100 anos. Quando converso com o maestro

CONTINENTE MAIO 2015 | 86

Conversa_MAI.indd 86

24/04/2015 14:00:38


ALCIONE FERREIRA

técnica muito elevado. O músico precisa ler, escrever e tocar partituras. Não é algo que a transmissão oral consiga contemplar. A gente está falando de uma música orquestral, dividida em naipes. E é cara a aquisição de equipamentos. Por exemplo, um problema que a gente já identificou, o nosso micoleão-dourado é a tuba. Com quem conversei, sobretudo tubistas – que fazem essa análise –, acham que, em até 10 anos, a tuba some. Porque hoje já não há compositores e o preço de um instrumento de qualidade mediana fica entre R$ 10 a 12 mil reais. E, no que diz respeito aos músicos que tocam frevo, o perfil é de homens entre 24 e 29 anos, com ensino médio incompleto, renda familiar de até três salários-mínimos.

“O ouvido da gente vem se deteriorando. A tecnologia vai avançando e o ouvido vai involuindo” Mateus Alves Clóvis Pereira, converso com a história viva. Porque ele tem 82. Então, a gente ainda tem todo um caminho a percorrer, fundações a estruturar. JARMESON DE LIMA O samba também, o forró. Essas histórias ainda vão se desenvolver. JEDER JANOTTI Mas é um desafio. O frevo ficou muito marcado como a música do carnaval pernambucano e isso dificultou fazer o voo que, por exemplo, o forró fez, ao se descolar do São João. Uma dificuldade é como tirar o frevo do Carnaval… ANDRÉ FREITAS A gente está pensando não por gênero, mas por viabilidade econômica. Com um trio, me resolvo profissionalmente. Agora, uma orquestra… E hoje, quando a gente pensa nas turnês, o mercado atual está comprando, no máximo, um quinteto. Nesse contexto, é difícil viabilizar uma orquestra, em termos de circulação nacional e internacional, com 22 pessoas. Frevo é uma brincadeira cara e precisa de um grau de formação

DÉBORA NASCIMENTO Quais outras ações estão sendo realizadas no sentido de propagar o frevo? ANDRÉ FREITAS Hoje, está sendo digitalizado o acervo da fonoteca da Fundação Joaquim Nabuco, o acervo da Rádio Universitária e você pode ter certeza que, quando isso estiver pronto, vai começar esse diálogo com outros estilos musicais. MATEUS ALVES O próprio Spok é um exemplo de um cara que está botando o frevo no mundo, mesmo. ANDRÉ FREITAS Existe uma tendência, que avalio neste pouco mais de um ano em que estou me integrando com os que trabalham nessa área: os que não se atualizaram em ferramentas de trabalho, em ferramentas digitais de produção, de distribuição e tudo, tentam sacralizar, colocar num pedestal e dizer que não podem mexer no gênero, muito mais como reserva de mercado do que necessariamente como algo a preservar. MATEUS ALVES Eu acho que esse processo, inclusive, vai ser um catalisador para o que é mais importante: os compositores atuais terem espaço, porque o repertório de certa forma ficou estagnado nos grandes clássicos. ANDRÉ FREITAS Mas também porque não tem grupo de pesquisa regular. Não existe isso. Só quem tem isso aqui, hoje, são Spok e Forró.

JEDER JANOTTI Vou falar aqui como não pernambucano. Aquela lista de cerca de 15 frevos que fica lá tocando o Carnaval todo, repetindo, é difícil. DÉBORA NASCIMENTO É porque as orquestras têm praticamente os mesmos músicos… Queria saber se vocês acham que a forma como escutamos música hoje, com essa compressão digital, se isso vai ter um impacto negativo na própria criação da música no futuro? MATEUS ALVES Isso já acontece. O ouvido da gente, se formos pensar historicamente, vem se deteriorando junto com a tecnologia. A tecnologia vai avançando e o ouvido vai involuindo. Porque esse tipo de compressão do MP3, que quando você compara com o wave, que é um arquivo com mais fidelidade, é como se você estivesse vendo um quadro com cinco cores e de repente ele está com duas. São coisas absurdas e o ouvido da gente é muito sensível, mas, às vezes não percebe essa perda. Sou músico, trabalho com isso e muitas vezes me pego não sabendo diferenciar e me sinto mal. É algo que faz mal à saúde auditiva da gente. E a audição, se for analisar em termos fisiológicos, é um dos nossos sentidos mais aguçados. Tudo a gente percebe, mas está perdendo. AD LUNA E a própria criação do músico. Quando está no estúdio e vai gravar um disco, o músico é como se fosse um cientista, ele quer provocar certas reações. Se no produto final que vai ser ouvido é tudo igual, para que eu vou me preocupar? Por exemplo, a gente vai gravar a bateria. Você quer que cada música tenha um som diferente de bateria, então pega não sei quantos caixas. O Led Zeppelin, por exemplo, tem uma das baterias mais sampleadas do mundo, que é a de John Bonham. O músico de agora pensa:“Pra que eu vou fazer tudo isso se o cara vai ouvir no MP3?” Outra coisa: já existem produtores – o responsável por uma noite num barzinho; isso já aconteceu comigo como músico – que não pedem mais pra ouvir o disco, perguntam se você tem vídeo no YouTube. Ele quer saber como é a sua performance, porque agora, no disco, todo mundo pode soar bem. MATEUS ALVES É curioso porque é uma volta mesmo ao passado da música, porque música sempre foi isso, desde os gregos: os músicos tocando ao vivo e o público indo lá ver.

CONTINENTE MAIO 2015 | 87

Conversa_MAI.indd 87

24/04/2015 14:00:38


CON TI NEN TE

Criaturas

Rubem Fonseca por Gentil

José Rubem Fonseca (1925) pode ter recebido muita história de crime e violência da prática como comissário de polícia em São Cristóvão, subúrbio carioca, nos anos 1950. A gente quase sente o cheiro das suas histórias sórdidas. Mas, sem dúvida, maior foi a influência dele sobre uma geração de escritores que surgiu nos anos 1980/90, quando já era autor de livraços. Coloca na conta: Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Patrícia Melo... filiação total!

CONTINENTE MAIO 2015 | 88

CriaturasMAI.indd 88

24/04/2015 14:01:25


POLO AUTOMOTIVO DE PERNAMBUCO

TODO JEEP FEITO EM PERNAMBUCO TEM MUITO DOS PERNAMBUCANOS. Com muito trabalho e planejamento, o nosso Estado mostrou que sabe fazer. E está

ANDRESSA ARANTES Analista de produção WCM

inaugurando, aqui, um polo automotivo. A fábrica da Jeep traz, junto com ela, uma rede de fornecedores com 16 empresas. Além disso, também, teremos um dos maiores centros de tecnologia automotiva do mundo, estimulando a vocação da nossa gente para a pesquisa e a inovação. O Polo Automotivo de Pernambuco está gerando novas oportunidades para os pernambucanos. Gente que com coragem, talento e força faz o nosso Estado seguir sempre em frente. Conheça a história de Andressa e de outros pernambucanos do Polo Automotivo: www.pe.gov.br

Capa_estudo 1.indd 2

JUNTOS, FAZEMOS MAIS.

29/04/2015 17:32:25


www.revistacontinente.com.br

# 173

Digitalização de documentos com qualidade e segurança A Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, reconhecida pela qualidade gráfica e editorial de seus produtos, oferece serviços de digitalização de documentos administrativos e históricos, de qualquer época, tipo e tamanho. A tecnologia utilizada no processo se baseia no conceito de Bibliotecas Virtuais Inteligentes. Ela permite a localização de palavraschaves no corpo do texto, além de possibilitar a inserção de informações relacionadas ao conteúdo, como classificação e descrição catalográfica. A digitalização da Cepe utiliza scanners de alta tecnologia, de modo a conferir a melhor qualidade às imagens capturadas.

#173 ano XV • mai/15 • R$ 10,00

CONTINENTE

ARQUITETURA EM TEMPOS DE HEGEMONIA DE MERCADO

LUIZ FELIPE PONDÉ “NÃO LARGUEI A MEDICINA PARA FICAR BRINCANDO COM FILOSOFIA” CONVERSA MÚSICOS DIZEM QUE SHOWS GRATUITOS DE RUA ACABAM COM AS CASAS DE ESPETÁCULOS

MAI 15

Solicite um orçamento pelos telefones (81) 3183.2828 / 3183.2788 / 3183.2709 ou pelo e-mail: cepedigital@cepe.com.br

COMO SE CONSTRÓI HOJE?

E MAIS FASSBINDER | ESTAMPARIA | RUBEM FONSECA | CHURRASCO Capa_estudo 1.indd 1

29/04/2015 17:32:25


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.