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JOÃO LIN
aos leitores Quem fizer uma busca na sua timeline do Facebook por posts de momentos tristes, de dificuldades e problemas vividos por seus amigos, provavelmente encontrará poucas referências. Já se a procura for inversa, a lista será imensa. Mas estamos mesmo sempre felizes? E a tristeza e a melancolia? Foi a atual pressão social pela felicidade que provocou a matéria de capa desta edição. Nas primeiras conversas com o jornalista Fábio Lucas, um dos exemplos mencionados de como essa pressão se manifesta no marketing foi o jingle de uma cadeia de supermercados nacional, que provoca a infelicidade do cliente com a repetição ad nauseam via caixas de som da frase “O que você faz pra ser feliz?”, enquanto ele empurra seu carrinho de compras. No mundo contemporâneo, é preciso ser feliz e essa meta – que todos querem atingir – está ligada à aquisição de bens, seja uma roupa, um sapato, um carro ou um celular de última geração. É como se houvesse uma inversão de valores, e aspectos relacionados à qualidade de vida se confundissem com a necessidade de ter e acumular coisas. A publicidade e os meios de comunicação são grandes aliados nessa doutrinação, levando
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o indivíduo à eterna insatisfação, quando não, à depressão, por não conseguir ser feliz! Criamos nossos filhos tentando fazêlos acreditar que não há frustrações e que estamos sempre bem. Como coloca o doutor em Filosofia Felipe Campello: “A imposição do ‘ser feliz a qualquer custo’, que já em si mesma é contraditória, conduz a uma percepção – a meu ver, equivocada – de que a dor ou a imperfeição seriam estranhas à existência. O não estar feliz, portanto, é sinônimo de fracasso”. Ainda que projetemos sobre objetos e aquisições nosso quinhão de felicidade, podemos nos perguntar de vez em quando, como num lapso: o que é felicidade, afinal? Tem bula? Na reportagem, a psicanalista Bianca Coutinho Dias nos remete a Lacan: “A felicidade, a menos que seja definida de modo bastante triste, ou seja, ser como todo mundo (…) a felicidade, é preciso dizê-lo, ninguém sabe o que é”. Se ela é indefinível, pode ser medida? Com este fim, foi criado o índice da Felicidade Interna Bruta (FIB), em que se listam os países mais ou menos “felizes”. Há critérios objetivos que apontam quem é mais feliz. Mas os cientistas sociais estão longe de um consenso sobre se estes podem indicar os fatores que resultam neste tão almejado estado.
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sumário Portfólio
Yuri Firmeza 6
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Paulo Mendes da Rocha Arquiteto trabalha no centro de São Paulo, de onde reflete sobre os enfrentamentos do homem com a natureza
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Palco
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Matéria corrida
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Entremez
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Leitura
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Claquete
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Criaturas
Conexão
The Paris Review Revista literária transpõe para seu site o rigor na seleção de autores da versão impressa
Balaio
Dave Grohl Ex-Nirvana e líder do Foo Fighters fecha show de David Letterman
Viagem
Key West Ilha no extremo sul da Flórida recebe turistas interessados na casa do escritor Ernest Hemingway
Peça de Cláudia Barral será encenada pelo grupo O Poste em embarcação ancorada no Capibaribe
Fotos, vídeos, instalações e performances são meios para o artista cearense discutir memória e temporalidades, com ênfase na relação entre a arte e o seu lugar de exibição
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José Cláudio Recife retrato
Ronaldo Correia de Brito Eles estão chegando para ficar
Crítica Autores e especialistas discutem os desafios do texto analítico contemporâneo Sound design Peculiaridades da composição sonora para acompanhar a narrativa fílmica
Simião Martiniano Por Humberto Araújo
Cardápio
Dieta Novo Guia alimentar para a população brasileira orienta a preferência pelo alimento in natura
Especial Cuba
É filmado em Pernambuco longa baseado em romance de Edmundo Desnoes, que trata do reencontro de pai e filha, separados pela diáspora provocada pela Revolução Cubana
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Capa
Tradição
A sensação de pleno contentamento se depara, no cotidiano, com embates e desejos incitados pelo mercado de bens de consumo e pelas redes sociais
Cidade que abriga as homenagens à padroeira do Brasil, Aparecida do Norte, no interior paulista, também é palco para o maior encontro de congadas do país
Sonoras
Visuais
Geralmente colocada nos “bastidores” da composição erudita, percussão assume protagonismo nas criações a partir do século 20, sobretudo depois do Bolero de Ravel
Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira tem como proposta reunir 10 profissionais que contribuíram para a conformação do gênero documental no país
Felicidade
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Instrumental
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Festa de São Benedito
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Jun’ 15
Fotografia
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cartas REPRODUÇÃO
Olha aí! Continente Digital. Não testei ainda, mas a iniciativa merece aplausos. Eu, problema zero com revistas no formato digital. LEO ANTUNES OLINDA – PE
Edição digital também é sustentabilidade! ITAMAR MORGADO RECIFE – PE
ACERVO Massa, essas edições anteriores em flip! Fica difícil guardar papel demais em casa, infelizmente tive que me desfazer de vários números da Continente; agora, posso ter o digital para consulta. H.D. MABUSE RECIFE – PE (PELO FACEBOOK)
ACERVO 2 Aos órfãos da Bravo, da Entrelivros e de outras tantas publicações culturais que, infelizmente, sucumbiram à baixa demanda, fica a dica do acervo online da Continente!
É oportuna a possibilidade de conhecer (rever) os conteúdos anteriores! Recomendadíssima! JOANA MOTA
Finalmente, dei uma olhada na versão digital da @revcontinente e está maravilhosa! E de graça, para ficar ainda mais maravilhoso! GABRIELA ARAÚJOS RECIFE – PE (DO TWITTER)
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CONTINENTE DIGITAL Tenho muito carinho pela revista Continente, lugar em que trabalhei profissionalmente como fotógrafo pela primeira vez e pelos amigos que fiz e reencontrei na redação mais legal em linha reta da América Latina! Vibro com vocês por mais essa! RICARDO MOURA SÃO PAULO – SP
NOTA DA REDAÇÃO Aproveitamos o comentário de Gabriela Araújo (obrigada pelo elogio!) para esclarecer que as edições de março e abril da Continente Digital estão disponíveis para download gratuito, com o intuito de que os leitores possam degustar nosso novo formato. Desde maio, nossa revista digital está acessível para compra, tanto em vendas avulsas quanto em assinatura anual.
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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colaboradores
Fábio Lucas
João Lin
Márcio RM
Renata do Amaral
Jornalista, mestre em Filosofia, editorialista do Jornal do Commercio
Artista visual com produção de HQ, cartum, ilustração, videoarte e intervenção urbana
Fotógrafo, com projeto de mapeamento das festas populares
Jornalista, professora, doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural
E MAIS AD Luna, jornalista. Fred Navarro, jornalista e escritor, autor do Dicionário do Nordeste. Guilherme Novelli, jornalista. Humberto Araújo, ilustrador, chargista e caricaturista. Josias Teófilo, jornalista, mestre em Filosofia pela UnB e autor do livro Cinema sonhado.
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PAULO MENDES DA ROCHA
“O homem enfrenta a natureza para se abrigar” Único arquiteto brasileiro vivo laureado com um Pritzker defende que os profissionais do campo não devem enxergar o meio ambiente como paisagem, mas como um conjunto de fenômenos a serem contornados TEXTO Josias Teófilo
CON TI NEN TE
Entrevista
Paulo Mendes da Rocha, arquiteto, 87 anos, trabalha num ambiente bastante característico: seu escritório fica no quarto andar da sede paulista do Instituto dos Arquitetos do Brasil, com uma série de janelas em fita, maquetes, uma vasta biblioteca, mesa retangular e um quadro-negro esverdeado. Este cenário, frequente em fotografias e entrevistas filmadas desde muitos anos, já se incorporou à sua imagem pública. Ele conta que veio trabalhar no local há pelo menos 27 anos, seu antigo escritório funcionava no Conjunto Nacional, um lugar muito movimentado, que o obrigava a se identificar sempre que entrava no edifício. “Arquiteto vira duas, três noites sem dormir fazendo projeto. Eu não queria nem tinha tempo para passar por seguranças, apresentar-me, bater cartão”, afirmou. Foi quando surgiu a oportunidade de comprar a sala no IAB, em que podia entrar e sair quando quisesse. Ali perto, dominante na paisagem, fica uma obra exemplar da arquitetura moderna, o Edifício Copan, projetado por Oscar Niemeyer, edificação cara ao pensamento de Paulo
Mendes da Rocha. Para ele, o Copan “é a casa do homem, a casa contemporânea”, porque “não é feita para esse ou para aquele, mas é feita para qualquer um de nós”. Ali, num dos elegantes bares embaixo do Copan, é possível encontrar o arquiteto nascido em 1928 num fim de tarde, tomando uísque, provavelmente sem ser reconhecido. Paulo Mendes da Rocha compartilha com Oscar Niemeyer o maior prêmio da arquitetura mundial, o Pritzker, sendo o único brasileiro vivo com tal honraria. Niemeyer recebeu o prêmio em 1988, junto com o americano Gordon Bunshaft, na única edição do prêmio dada a dois arquitetos ao mesmo tempo; Rocha, em 2006, o que trouxe grande interesse internacional para a sua obra e para a arquitetura brasileira. Na cerimônia de entrega do prêmio – realizada no histórico Palácio Dolmabahçe, antigo centro administrativo do Império Otomano em Istambul –, interrompida logo no começo por um canto vindo de uma mesquita próxima ao palácio, ele falou do desastre que é a cidade do homem de hoje e da grande
questão da arquitetura de absorver a experiência humana continuamente. Para a Continente, Paulo Mendes da Rocha falou da sua vocação inconsciente para a arquitetura, nascida da observação dos trabalhos do porto na infância, da cidade como abrigo contra o inferno que é a natureza e outros temas. CONTINENTE Quantas obras o senhor projetou? PAULO MENDES DA ROCHA Não tenho ideia. Muitas. É uma questão interessante tanto para a arquitetura como para outras formas de discurso. As obras que os outros conhecem são as construídas. E mesmo cada uma delas é fruto de muitos projetos. Na minha opinião, a arquitetura é uma das linguagens fundamentais da nossa existência, porque aparece quando o homem aparece no planeta. Ele enfrenta a natureza para se abrigar. A grande questão, portanto, é a cidade na arquitetura, e não o edifício como fato isolado. É só remeter ao nosso querido Luís Nunes, para lembrar que a Caixa D’água de Olinda não tem nada a ver com um recipiente,
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JOSIAS TEÓFILO
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é uma cidade! Sem a água, não há cidade. E a água flui, ela precisa estar submetida a uma energia que é feita pela altura em que você põe uma certa reserva para alimentar uma cidade. Enfim, o tema, a convocação da arquitetura, é a habitabilidade do planeta. O arquiteto vê a natureza não como paisagem, mas como um conjunto de fenômenos.
cargueiro vermelho e preto, lá atrás, tem um castelinho todo branco. Mas, de qualquer maneira, a ideia de uma construção naval, um navio, é muito interessante, porque esse navio, se você põe no seco, ele se desmantela. Faz parte dele estar flutuando, estar submetido a um conjunto de forças internas, externas. O equilibro é uma questão interessante do ponto de vista da arquitetura, porque, vulgarmente, a arquitetura está associada ao aspecto externo – uma visão formalista que não é desprezível, mas não é fundamental.
DIVULGAÇÃO
CONTINENTE O senhor lembra o primeiro contato que teve com a arquitetura enquanto linguagem?
imagens que contam a história do êxito do homem frente à natureza para realizar aquilo que deseja. Episódios que são extraordinários do ponto de vista literário. Por exemplo, nada mais capaz de representar um tesouro, uma fortuna material, do que um navio. Não só ele mesmo, como a mercadoria que está ali dentro. E um porto recebe navios de todos os cantos. Ali em Vitória do Espírito Santo, apareciam navios italianos, russos, gregos. Como o canal de entrada do porto é estreito e caprichoso, sempre me impressionou
CON TI NEN TE
Entrevista PAULO MENDES DA ROCHA Existem muitas circunstâncias em que um jovem pode se interessar por arquitetura. Mas precisa primeiro saber que existe esse universo em que você é capaz de ser na sociedade um arquiteto. Eu tenho muita sorte na minha peculiar existência. Meu pai era um grande engenheiro numa área muito ampla da engenharia, tornou-se professor da Escola Politécnica, justamente na disciplina de navegação interior, portos, rios e canais. Formou-se nos anos 1920, nasceu no século 19. Sempre trabalhou muito, inclusive como consultor de uma empresa muito importante que tinha como especialidade fazer fundações no mar para portos. Meu pai me levava para ver aquilo tudo sem explicar nada. Eu nasci em Vitória, que é um porto de mar, e fui educado a prestar atenção nos trabalhos do mar: navios, flutuação, navegação. E, com isso, foram se formando no meu inconsciente
muito uma coisa: o navio parava lá fora, havia uma pequena lancha do prático – um homem do povo –, à sua espera, o comandante de todo aquele tesouro flutuante entregava o navio para o capixaba e ele punha o navio para dentro e o tirava. Essa ideia da confiança dos homens uns nos outros em relação a um peculiar saber é talvez o primeiro aprendizado que leva alguém em direção à engenharia, à arquitetura. Então, quando eu decidi o que faria na vida, acabei utilizando um saber que não conhecia, um saber inconsciente. CONTINENTE A figura do navio é muito paradigmática na arquitetura moderna, não é? Le Corbusier falou muito nisso. PAULO MENDES DA ROCHA Le Corbusier falou disso do ponto de vista da técnica e forma. Uma certa arquitetura naval. Principalmente aquilo que se chama “as obras mortas dos navios”, os alojamentos. Num
O fundamental da arquitetura é resolver problemas humanos e tornar a natureza habitável, porque por si ela não é. A natureza é um inferno. CONTINENTE Ter vindo morar em São Paulo influenciou na forma de ver a arquitetura? PAULO MENDES DA ROCHA Provavelmente. Você viu que eu falei das coisas do mar como fenômenos incríveis, a existência de um porto. Mas você avalia isso tudo melhor quando se distancia. Quem sai da beira-mar para São Paulo. Eu fui educado até cinco, seis anos de idade praticamente na praia, em Vitória, terra da família da minha mãe, onde eu nasci. Mas eu morei um tempo na casa do meu avô paterno, ainda com três anos de idade, na Ilha de Paquetá. Fui destinado à beira-mar, à canoa de pescador. Conviver com pesca, pescador, pipas, papagaios
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feitos de papel de seda. Aliás, todo menino de beira-mar é assim. E nós viemos por razões de família, a crise de 1929. Em 1932, ele se enfiou na revolução aqui em São Paulo e a família ficou em Vitória. Lá pelas tantas, ele mandou nos buscar e resolveu ficar em São Paulo, e, de fato, daqui não saiu mais. Mas eu sempre voltei para esse universo da beira-mar. Minha família ficou lá, meus primos. Isso tudo teve muita influência na minha formação.
PAULO MENDES DA ROCHA Não, ao contrário. Eu fui convidado por Artigas, entre outras coisas, porque os mais velhos se obrigaram a olhar para mim, sabe por quê? Aqui foi feito um concurso de arquitetura pelo IAB por um clube muito eminente, para o qual se inscreveram os maiores arquitetos da época. E eu, como não tinha muito o que fazer e estava formado há dois, três anos, resolvi fazer esse concurso com muita alegria, porque eu poderia publicar, uma vez que era o concurso público e eu tinha que entregar o
“O fundamental da arquitetura é resolver problemas humanos e tornar a natureza habitável, porque por si ela não é. A natureza é um inferno” CONTINENTE E qual foi a influência de Vilanova Artigas na sua formação? PAULO MENDES DA ROCHA Bem, eu já tinha terminado meus estudos. Nunca fui muito erudito, muito estudioso, mas fui convidado inesperadamente pelo Artigas para ser assistente dele na FAU-USP. Eu fiz um novo curso de arquitetura enquanto assistente dele. A Faculdade de Arquitetura da USP era um curso da Escola Politécnica. Num certo momento, tornou-se autônomo, como uma faculdade, tendo que se reestruturar, e Artigas foi fundamental nessa reestruturação. Ele saiu de dentro da Escola Politécnica para se tornar um tanto independente. Com isso, criou-se uma das melhores faculdades de Arquitetura do mundo, na minha opinião, e da América, sem dúvida alguma. CONTINENTE O senhor começou a lecionar primeiro ou a realizar arquitetura?
resultado, e o faria com toda liberdade. Fiz um projeto que simplesmente ganhou o concurso – tendo no júri Rino Levi e Plínio Croce, que eram alguns dos melhores arquitetos do Brasil. E ainda ganhei o Grande Prêmio Internacional Presidência da República. Bem, Artigas me convidou para assistente dele. Frequentando as aulas desse brilhante professor e arquiteto, João Batista Vilanova Artigas, meus horizontes se abriram ainda mais porque estavam para mim no âmbito da questão mesma da arquitetura, principalmente na dimensão de interesse da sociedade, uma arquitetura atual. Todo esse panegírico do que é e o que não é moderno para mim está completamente desmistificado. A arquitetura está condenada a ser moderna sempre, não é feita para se repetir. Mas para enfrentar os novos tempos. É como se disséssemos: até hoje, nós não
construímos a arquitetura atual, com luz elétrica, com a consciência do que seja uma rede de esgoto, de luz, o que seja o transporte público, efetivamente. Nós transformamos ruas para carroças em ruas para automóveis, o que é uma estupidez. Inclusive uma das coisas mais interessantes que já li, ainda na minha juventude, foi o famoso estudo de Josué de Castro, chamado A cidade do Recife: ensaios de geografia urbana. CONTINENTE Ele se tornou uma influência no seu pensamento? PAULO MENDES DA ROCHA Foi uma das primeiras coisas que eu li. Quando eu vi as palavras urbana e geografia na vitrine, comprei o livrinho, que é um ensaio sobre o Recife – um ensaio de geografia urbana. Portanto essa associação entre arquitetura e geografia, cidade e geografia, é muito importante na minha formação. A cidade existe antes que se construa. Você chega num lugar e diz: aqui vamos ficar, por isso e isso. Há um porto abrigado para os navios. A minha Vitória do Espírito Santo foi feita assim. Aqueles navios tinham que fundear, não havia cais de atracação, como na Bahia, Angra dos Reis, Guanabara. Há um discurso indignado de Padre Vieira porque da porta da igreja se via, na Bahia, 600 navios. Você imaginou o que é uma frota de 600 navios, que riqueza aquilo representava? CONTINENTE A dialética marxista foi muito importante na sua formação? PAULO MENDES DA ROCHA A questão é que o raciocínio só pode ser dialético. A questão fundamental na arquitetura, porque você nunca sabe o que fazer, mas pode saber com muita precisão o que não deve fazer. Portanto, nós podemos dizer que a arquitetura está aí para evitar o desastre. CONTINENTE Vi nas suas obras, principalmente na Capela de São Pedro Apóstolo, em Campos do Jordão, uma integração muito forte com a paisagem, e também na Praça do Patriarca, onde se faz uma espécie de moldura… Esse é objetivo do programa das suas obras? PAULO MENDES DA ROCHA Bem, no caso da Praça do Patriarca não é bem uma moldura. Havia de se cobrir a entrada para a passagem do Vale
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dentro de certos limites, quando ali embaixo é um inferno, porque tem as galerias de São Paulo, de telefonia, de energia, de água, você tinha que procurar o lugar para o pilar. E, fazendo aquele engenho mecânico, tudo pesaria 80 toneladas, ou seja, 40 toneladas em cada pata. Basta uma fundação muito simples, uma sapata horizontal. E daí por diante eu fiz uns modelos, e construímos. CONTINENTE Mas na capela de Campos de Jordão existe a abertura para a paisagem.
ARQUIVO PESSOAL PROF. ARTIGAS
do Anhangabaú, que faz parte do projeto inaugural do próprio viaduto. O Viaduto do Chá foi objeto de um concurso, inclusive quem ganhou o concurso do viaduto foi meu professor na faculdade. E fazia parte do projeto a passagem que descia ali no centro da Praça do Patriarca, coberta a escada – para você não sair assim desamparado no tempo – por uma breve marquise, uma coisa que foi mexida, deformada, com o passar do tempo. E resolveram me chamar – não foi concurso – para fazer outra cobertura. Portanto,
CON TI NEN TE
“Frequentando as aulas do brilhante João Batista Vilanova Artigas, meus horizontes se abriram ainda mais, porque estavam para mim no âmbito da questão mesma da arquitetura, no interesse da sociedade”
Entrevista cobertura, seja qual for, tem que ser amparada por um pilar. Você pode hoje, com os técnicos que estão aí, utilizar um só pilar central. Mas um pilar central ficaria exatamente no meio da escada. Portanto, aparecem os dois como mínimo. Aquela viga apoiada em dois pilares. A ideia de estrutura metálica me ocorreu logo, pela facilidade de montagem e por uma certa exibição. Era oportuna, na minha opinião, sendo São Paulo uma cidade industrial, daquilo que se via como a virtude da construção metálica, mas tinha passado para os dias de hoje como valor arquitetônico. A construção metálica. Por outro lado, as plataformas da Petrobras são feitas, por exemplo, com uma grande excelência técnica. E eu lembrei que poderia fazer aqui uma plataforma metálica leve como uma asa de avião. Principalmente porque você pode colocar onde quiser,
muito linda em arquitetura. Tanto que, quando eu fiz o Pavilhão do Brasil, em Osaka, fiz a parte que estava difícil de resolver do programa, porque era exigido um posto avançado do Banco do Brasil e outras instituições, a própria administração do pavilhão, e eu resolvi pôr num anexo que um vê o outro, subterrâneo, para não ofender aquela delicada figura que eu imaginei. Portanto, eu logo pensei que a capela deveria ser junto do palácio como anexo, mas a minha
PAULO MENDES DA ROCHA Você sabe como surgiu aquela ideia? Primeiro, estava previsto no projeto do Palácio (Boa Vista) uma capela, mas o projeto não dizia onde. Inclusive, eu tive a liberdade para escolher, naquele jardim, onde pôr a pequena capela. Mas a figura do anexo em arquitetura é muito forte, não seria uma coisa perdida naquele jardim. A Torre de Pizza é o batistério anexo da igreja. Talvez o anexo mais lindo e mais intrigante de que eu tenha notícia tenha sido feito por Niemeyer na sede da Mondadori, em Milão. Há um anexo lá adiante que é uma beleza, porque você vê refletido no espelho d’agua o outro lado prédio. A ideia do anexo é a seguinte: quando você constrói uma obra, de qualquer janela dessa construção você só vê os outros, não vê a si mesmo. Quando vê a si mesmo, é estabelecido um contraponto. A ideia do anexo é
sorte é que eu já conhecia aquele palácio e sabia que ele tem um subsolo. Ele é construído junto a uma falésia, junto a um muro de arrimo. Imediatamente, imaginei que podia ligar aquilo com uma sacristia dentro do muro e fazer a capela fora. E, ao mesmo tempo, imaginei essa capela – você sabe, na história dessas pequenas igrejinhas a importância do vitral – com a vista monumental do Vale do Paraíba. Então, achei que o vitral seria a própria paisagem e, se eu fizesse os vidros quebrados, essa própria paisagem produziria reflexão, refração e os fenômenos óticos que equivalem ao vitral. É o vitral como a própria paisagem, enquanto contemplação da dimensão monumental daquilo tudo. Aí, para você fazer isso só de cristal, no envoltório, e no artefato em si mesmo, como dimensão, basta um pilar. E fiz o batistério
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lá embaixo, porque associei a São Pedro, às águas. As coisas vão assim na nossa imaginação, não é? “Pedro, tu és pedra e sobre a tua pedra edificarei a minha igreja.” Apesar de eu não ser religioso, essas coisas estão na cultura popular.
CONTINENTE A atividade do arquiteto é enriquecida pela do professor e do conferencista internacional? PAULO MENDES DA ROCHA Eu acho que não, eu não gosto de fazer isso.
DIVULGAÇÃO
CONTINENTE Fazendo uma analogia, a obra de Niemeyer se caracteriza pela sua esculturalidade, ou seja, a obra dele é excessivamente destacada, de uma forma nítida, monumental e tudo mais. A sua tem essa maior integração com a paisagem, a sua
está no Copan, por exemplo – essa é a casa do homem. Não é feita para esse ou aquele, mas para qualquer um de nós. O caráter particular da sua casa você dá com os trens que leva lá para dentro, mas não é mais aquela feita especialmente para essa figura ou aquela.
CONTINENTE Como é que o senhor vê a importância da arquitetura moderna brasileira no contexto mundial? Esse momento da arquitetura moderna é o de formação de uma identidade nacional? PAULO MENDES DA ROCHA A questão da arquitetura não é nunca essa ou aquela arquitetura. A arquitetura moderna no Brasil chamou a atenção da cultura erudita mundial pelo emprego que fazia dos seus princípios para realizar a cidade atual, que não existia. Portanto, as obras de um (Affonso
“No caso da Praça do Patriarca, foi coberta a escada – para você não sair assim desamparado no tempo – por uma breve marquise, uma coisa que foi mexida, deformada, com o passar do tempo” obra é menos centrada em si mesma, e mais ligada à geografia. Concorda com essa visão? PAULO MENDES DA ROCHA Eu acho que esse tipo de coisa quem tem que falar são os outros, não tenho muita coragem de falar das coisas que eu faço. CONTINENTE É verdade que o senhor não gosta de projetar casas? PAULO MENDES DA ROCHA O problema é o seguinte: habitação, você só pode imaginar hoje em dia no âmbito de uma cidade. E, numa cidade, seja ela qual for, você não vai fazer uma casa como fato isolado posta num terreno, isso não dá mais. Portanto, eu acho um tanto anacrônica a ideia de você fazer uma casa num terreninho. É desagradável, não tem estímulo nenhum. A não ser numa dimensão de muita fantasia. Por outro lado, essa casa que se faz, que seria a casa contemporânea, que
Mas, naturalmente, você é muito convocado, e isso lhe obriga a uma certa consciência sobre o que está dizendo e fazendo, mas é muito absurda a ideia de conferência etc. CONTINENTE Como o senhor vê a questão da conservação da arquitetura moderna, o senhor acha que já existe a consciência da preservação na população em geral? PAULO MENDES DA ROCHA Eu não sei o que a população pensa hoje. A grande obra de arquitetura hoje em dia é o sistema de transporte público. De qualquer maneira, essa ideia de conservação cultural, como exemplo, você não pode evitar que se cultive. Você não pode imaginar destruir algumas das pirâmides do Cairo, ou o Taj Mahal. Porque são construções que, num certo momento, descreveram a formação da consciência sobre a cidade, sobre a importância do lugar.
Eduardo) Reidy, por exemplo, os aterros no Rio de Janeiro – você imaginar o desmonte do Morro do Castelo feito a jarro d’água, cuja lama era desembocada numa contenção de um certo recinto no mar, e lá se construir aquela grande esplanada que é o Aeroporto Santos Dumont dentro da cidade, com o capricho de manter Villegnon como ilha, porque era onde estava instalada a Escola Naval. Tudo isso mostra uma grande capacidade de transformação no Brasil, que revelou ao mundo novas dimensões do que se chama o poder da arquitetura, ou mesmo o destino da arquitetura. É nessa medida que ela é moderna, na verdade seria uma réplica contra a pura e simples política colonial. Você estava fundando, na verdade, um lugar para ficar – que é onde se desenvolve o discurso da civilização pelo discurso da cidade.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
MEMÓRIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO
PORTFÓLIO Assista a trecho do filme Nada é do artista cearense Yuri Firmeza, que participou da 31ª Bienal de São Paulo e está na seção Portfólio deste mês.
A cineasta Cecília Araújo acaba de rodar em Pernambuco o longa-metragem Te sigo, baseado no último capítulo do livro Memórias do desenvolvimento, do escritor cubano Edmundo Desnoes, assunto de reportagem especial desta edição. Antes disso, ela realizou um documentário em curta-metragem com Desnoes, que oferecemos como extra aos nossos leitores do site. Também como acréscimo, no online, uma entrevista com o ator cubano Eduardo Rodriguez (na foto), coprotagonista de Te sigo.
CON TI NEN TE
Conexão
TRADIÇÃO Veja galeria de imagens da Festa de São Benedito, o maior encontro de congadas do Brasil, que acontece anualmente em Nossa Senhora Aparecida, interior paulista.
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
COLABORATIVO
LITERATURA
FOTOGRAFIA
TURISMO
Através de clube de vantagens, site disponibiliza catálogo de imagens
Espaço para publicação, com curadoria, de obras de novos autores
Projeto reúne acervo fotográfico brasileiro dos séculos 19 e 20
Informações sobre lugares, programação cultural e notícias de Londres
fotografiadiaria.com.br
antessaladasletras.com.br
brasilianafotografica.bn.br
londonist.com
De acordo com os organizadores, o site apresenta “um catálogo de fotógrafos, obras, livros e ferramentas para incentivar a educação, produção e comercialização da fotografia”. O espaço possui um layout meio bagunçado, porém, são diversas as maneiras de participação entre público e conteúdo. Por meio de um “clube de vantagens”, os leitores ganham acesso a condições especiais em produtos e serviços voltados para a fotografia. A ideia é que, quanto mais você acesse e compartilhe os portfólios e notícias, mais pontos ganhe.
Autores que estão no começo de carreira – jovens ou não – encontram no Antessala das letras um espaço para publicar seus contos, crônicas, trechos de romance, poesia, roteiros de cinema etc. O site é aberto para todos os tipos de narrativa e a curadoria é feita sempre por um escritor consagrado. Nomes como Eucanaã Ferraz, Lourenço Mutarelli e Noemi Jaffe já recomendaram leituras. Outro elemento de interesse são as ilustrações, presentes em todos os textos e realizadas, também, por profissionais em começo de carreira.
O Brasiliana Fotográfica é o pontapé inicial de um amplo projeto voltado à reunião de acervos fotográficos brasileiros. A parceira entre o Instituto Moreira Salles (IMS) e a Fundação Biblioteca Nacional, com incentivo do Ministério da Cultura, resultou num site com 2.393 imagens, datadas do século 19 e do começo do século 20. Na consulta do acervo, o público pode salvar o resultado de sua pesquisa online e voltar para ela em outro momento. Outras instituições, privadas ou públicas, poderão, futuramente, incluir fotografias e participar da construção do projeto.
O Londonist oferece uma ótima opção informativa para quem vai para Londres ou gostaria de matar um pouco da saudade da terra da rainha. Além da parte voltada para a agenda, na qual toda semana os leitores têm acesso a várias opções da programação cultural londrina, o portal traz, na seção News, notícias sobre política, curiosidades e pesquisas acerca dos hábitos da população. Nos podcasts, o usuário tem contato com comentários direcionados para eventos e espaços urbanos desconhecidos para quem não está inserido no cotidiano da cidade.
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blogs LITERATURA rizzenhas.com
O Rizzenhas blog da jornalista gaúcha Taize Odelli surgiu em 2009 e oferece aos leitores resenhas que, de acordo com a autora, “são mais textos opinativos do que realmente críticas literárias”. Num meio como a literatura, em que, às vezes, a afetação intelectual soa falsa e oportunista, os textos de Taize exploram um aspecto dialógico que pode gerar uma aproximação entre o leitor e a obra em questão.
APENAS OS BONS AUTORES
MÚSICA
Site da revista literária The Paris Review acompanha o alto nível da publicação impressa, que está há 70 anos em atividade theparisreview.org
No seu editoral de abertura, a revista The Paris Review – formada pelo trio L. Humes, Peter Matthiessen e George Plimpton – traz uma afirmação um tanto quanto presunçosa: “Esperamos enfatizar neste espaço o trabalho criativo presente na ficção e na poesia; aqui receberemos apenas os bons escritores e poetas”. Décadas após o lançamento da publicação, datada de 1953, podemos confirmar que a premissa um tanto quanto arrogante foi milimetricamente cumprida. O site da revista se configura como a continuação dessa vontade reservada aos “melhores” da literatura, ideia que trouxe para as páginas francesas os primeiros escritos de nomes como Philip Roth, Mona Simpson e Edward P. Jones. Na seção Archives, o leitor pode encontrar textos desde os anos 1950 até hoje, além de visualizar as capas das edições anteriores. Para facilitar o acesso, o arquivo está dividido nos tópicos: ficção, poesia, entrevistas, cartas & ensaios, arte & fotografia e áudio. Porém, o destaque fica para a seção The Daily, espécie de portal com notas e notícias de diversas áreas culturais. O espaço possui uma característica interativa importante, utilizando vídeos, fotos e hiperlinks, algo que chama a atenção de um público mais jovem, que antes poderia não ter contato com a revista. The Paris Review online é um bom exemplo de veículo impresso que conseguiu adequar-se ao mundo pós-internet. PRISCILLA CAMPOS
miojoindie.com.br
Criado em novembro de 2010, o objetivo do blog é divulgar novos lançamentos através de análises de discos e clipes. O espaço possui seções bem-segmentadas: listas, melhores discos, resenhas, clipes e mixtapes – organização primordial.
CRÍTICA letrasinversoreverso.blogspot.com.br
O Letras in.verso re.verso passou por diversas adequações desde 2007, quando começou com a proposta de divulgar um evento da faculdade de seu criador, Pedro Fernandes. Hoje, conta com vários autores, entre eles o professor doutor em Teoria Literária pela USP, Alfredo Monte. As críticas de lançamentos literários no Brasil apresentam densa carga analítica.
sites sobre
podcasts JORNALISMO
LITERATURA
CINEMA
serialpodcast.org
tavernadofimdomundo.com
filmjunk.com
A prospota é contar, em formato de série, fatos de determinada história. Cada temporada apresenta uma narrativa a ser acompanhada em ordem cronológica.
Idelizado por Gabriela Ventura, o podcast surgiu pela necessidade da acadêmica de debater questões literárias num ambiente “ divertido e livre de grandes cobranças”.
The Film Junk Podcast é um programa de áudio semanal que pode ser baixado em MP3. Os comentários são focados em filmes que estão em cartaz nos Estados Unidos.
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MATEUS SÁ/DIVULGAÇÃO
Port f 1
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CASA TRIÂNGULO/DIVULGAÇÃO
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Portfólio
Yuri Firmeza
VIAGENS ENTRE AS CAMADAS TEMPORAIS TEXTO Luciana Veras
Batizado em tributo a um famoso cosmonauta soviético, o artista cearense Yuri Firmeza promove viagens entre passado, presente e futuro em sua obra. Fotografias, vídeos, instalações e performances evocam várias possibilidades de reflexão sobre temporalidades e memória. A respeito de Turvações estratigráficas, individual sua no Museu de Arte do Rio/MAR em 2013, por exemplo, ele diz: “A ideia era falar dos estratos temporais que escapam dessa seta unidirecional entre o que passou e o que virá, de um emaranhando de tempos sem a lógica de repartição cronológica, como se ontem, hoje e amanhã fizessem parte de um mesmo aqui e agora”. Naquela mostra em específico, o material arqueológico que veio à tona com as escavações na região portuária da capital carioca catalisou sua argumentação. “Cachimbos de escravos, moedas, escovas de dentes com as iniciais de D. Pedro II, utensílios domésticos e objetos de cunho pessoal estavam jogados ali por causa do desmanche dos morros do Castelo e do Senado. Casas destruídas pelo processo de gentrificação no arcabouço de uma região sobre a qual, tempos depois, o museu foi construído. A exposição foi pensada como uma plataforma de encontro com esse passado que está voltando”, comenta Firmeza. O embate entre as camadas do tempo se dá, também, em A fortaleza (2010), díptico fotográfico com imagens dele feitas na mesma varanda, com anos de intervalo. Na primeira delas, em pose de super-herói, está o menino que, antes da adolescência, já havia feito cursos de desenho, pintura, violão, flauta e guitarra e acalentado a vontade de desbravar o espaço sideral, em parte por ter herdado o nome de Yuri Gagarin. Na segunda, o artista CONTINENTE JUNHO 2015 | 18
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SIMONE BARRETO/DIVULGAÇÃO
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8 Páginas 16-17 1 AÇÃO 5
Um dos trabalhos em que o artista ratifica Foucault: "o corpo é a inscrição da história"
Nestas páginas 2 RUÍNA
Viagem de pesquisa à Ilha de Alcântara (MA) gerou imagens que se desdobraram em várias obras
3-10 AÇÃO 1 Série de fotografias repercute e amplia o ato performativo
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CLAUDIA FIRMEZA/DIVULGAÇÃO
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Portfólio
que, graduado e mestre em Artes Visuais, também abraçou o âmbito acadêmico, lecionando na Universidade Federal do Ceará. Atrás, uma metrópole e sua “verticalização vertiginosa, violenta e irrefreável”. A inserção do corpo nos trabalhos – como se percebe também na série Ação (2005-2006) e em Forte e grande é você (2011) – é uma de suas características. “Foucault sustenta que o corpo é a inscrição da história. Quando surgem as questões que me inquietam, é impossível não me movimentar, não dar corpo a isso, seja entrando naquela estrutura carcomida do casarão e me sentindo afetado pelos musgos na parede, seja encontrando uma árvore que parecia estar à espreita, à espera de mim”, pontua. Ao mesmo tempo, ele rechaça qualquer sugestão de um personalismo exacerbado. “Em A fortaleza, por exemplo, não falo de mim, do pequeno eu, mas de uma cidade que
perdeu o horizonte. Apesar de ser minha imagem, é um corpo indefinido”, observa Firmeza, cujo sobrenome, que não é um pseudônimo, vem do bisavô nascido no Crato, no interior do Ceará. Da família e suas relações, ele tirou combustível para Vida da minha vida (2011), na qual apresentava registros audiovisuais da avó, realizados ao longo de uma década, enquanto ela combatia a doença de Alzheimer. “Meu desejo não era acompanhar a evolução da doença, e, sim, ir atrás do lugar limítrofe entre memória e esquecimento”, assente o artista. Essa obra se desdobra em um filme em super-8, em três imagens (frames que ele recortou e aos quais, assim, auferiu o caráter de um trabalho independente) e numa videoinstalação. Essa superposição de linguagens e suportes tem a ver com a “convocação” que recebe de cada trabalho. Nada é, exposto na 31ª Bienal de São Paulo de 2014, nasceu como uma série de fotografias de Alcântara, no Maranhão. Metamorfoseou-se no que ele chama de filme – e que, como tal, já circula
por festivais, mas que poderia ser descrito como “videoarte”. Já as fotos passaram a integrar o Projeto Ruínas. “A escolha da linguagem não é um a priori. É muito mais um problema que me inquieta e que resolvo com uma pesquisa em vários sentidos. Escrevo, faço fotos, filmo. É como se o trabalho fosse uma questão que me atravessasse e, sem uma explicação muito racional ou um modus operandi, eu tentasse dar forma a ela”, revela. Assim, entre a inquietude e a serenidade, ele segue a imaginar e conceituar o desconhecido, sempre em deslocamento – nascido em São Paulo, mudou-se para Fortaleza com três meses e de lá já saiu para expor na Espanha, na África do Sul e nos Estados Unidos. “Hoje, consigo enxergar que todos os meus trabalhos possuem uma relação com a ideia de futuro. Quando se anuncia o futuro, é quase um ato performativo. Tornase cambiante o próprio presente, em nome de um progresso idílico, uma ideia de paraíso na Terra”, vislumbra Yuri Firmeza, tal qual o astronauta que um dia sonhou ser.
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IMAGENS: CASA TRIÂNGULO/DIVULGAÇÃO
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11-12 A FORTALEZA Intervalo entre as imagens deflagra a verticalização da capital cearense 13-16 NADA É Exibido na 31ª Bienal de SP (2014), vídeo trafega entre passado, presente e ideia de futuro 17 VIDA DA
MINHA VIDA
Frame extraído de um vídeo se tornou obra com outra possibilidade de apreensão e leitura
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
RETORNO IMPLACÁVEL
A sorte de Dave Grohl Com a anunciada aposentadoria de David Letterman, muitos se perguntaram qual seria a última atração musical do Late Show. Foi cogitado Bob Dylan. Mas o artista tocou no penúltimo dia. A derradeira performance do talk show ficou a cargo do Foo Fighters. E surgiu a dúvida: por quê? A escolha foi do próprio apresentador, que tem duas histórias ligadas à banda de Dave Grohl. Segundo Letterman, quando estava se recuperando de um ataque cardíaco, o hit Everlong o ajudou a voltar à ativa. Em outra ocasião, o FF fez, mais uma vez, parte de um momento significativo de sua vida: “Quando me tornei pai, reconheci que era mais velho do que a maioria dos pais, e meu filho percebeu. Eu disse: ‘Tenho de encontrar algo que possa fazer junto com ele’”. Decidiu, então, levar a criança para esquiar em Montana. No último dia da viagem, o instrutor de esqui filmou pai e filho descendo montanha abaixo. Depois, entregou um DVD, cujas imagens foram acompanhadas por duas músicas do Foo Fighters (In your honor e Miracle). O registro se tornou precioso para o apresentador e o grupo o predileto dele. Com episódios como este, Dave Grohl pode ser considerado, além de um monstro com as baquetas, um cara de sorte: tocou numa das maiores bandas da história (Nirvana), é o terceiro baterista mais rico do mundo; ensinou Bob Dylan a tocar Everlong, a pedido deste; compôs com Paul McCartney… e fechou o programa de Letterman. DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“A principal mentira é aquela que contamos a nós mesmos.”
Foram 13 anos de espera, até que o mundo tivesse alguma notícia do DJ norte-americano Richard D James, desaparecido desde 2002. Sob a peculiar alcunha de Aphex Twin, o músico rompeu recentemente seu período de reclusão com apenas… cinco lançamentos, só neste primeiro semestre de 2015. Depois de ganhar o Grammy de melhor álbum eletrônico com o disco Syro, e dar um jeito de não comparecer à cerimônia de entrega do prêmio, James ainda reservou uma porção de ironia para o que viria a seguir. Excêntrico até dizer basta, Aphex Twin resgatou o título de seu primeiro trabalho, Selected ambient works (85–92), de 1992, para lançar por meio da internet as obras Selected ambient works vol 3, 4, 5 e 6 de uma só vez. São quase cinco horas de pirações eletrônicas, ácidas e com muito, muito barulho. (Fernando Athayde)
Balaio FINDO ZÉ DO RÁDIO
O “torcedor mais chato do Brasil”, como ficou conhecido Zé do Rádio (ou Ivaldo Firmino dos Santos, para a família e para o Estado), foi provocar os adversários no outro mundo. Há mais de uma década conhecido do público brasileiro, o assíduo frequentador dos jogos do Sport Clube do Recife era (e sempre será) um símbolo não só do seu time do coração, mas também de um tempo em que o futebol cedia espaço para provocações e alegorias. Foi-se um totem de um tempo de competitividade saudável, diferente da violência que inunda os estádios. Zé do Rádio, que era hipertenso, diabético e tinha problemas renais, atingiu outro mérito na vida: em 2002, sofreu um transplante de coração e abraçou a causa com o mesmo fanatismo que o impulsionava a estar em todos os jogos na Ilha do Retiro. (FA)
Friedrich Nietzsche, filósofo alemão
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ARQUIVO
O KAFKA DE CUMBERBATCH Os 100 anos da publicação de A metamorfose, de Franz Kafka, ganharam uma homenagem distinta da British Broadcasting Corporation/ BBC, a maior rede de televisão britânica. A saga de Gregor Samsa, que, num dia qualquer, após uma noite de sonhos intranquilos, acorda para se ver transformado em um grande inseto, foi narrada pelo ator Benedict Cumberbatch. O audiobook saiu pelo programa 4Extra da BBC Radio (http://www.bbc.co.uk/programmes/ b007jwnt). Nele, a minuciosa trilha sonora incidental terminou ofuscada pelo magnífico trabalho de leitura de Cumberbatch (mais conhecido no Brasil pelo seriado Sherlock), que soube construir entonações diferentes para cada personagem e, sem perder o cuidado com os detalhes, condensar e repassar a tormenta e o bizarro drama criado pelo escritor tcheco. (Luciana Veras)
O olhar de Cameron
Quando, aos 48 anos, ganhou de presente de uma das filhas uma câmera fotográfica, a título de matar o tempo, Julia Margaret Cameron não fazia ideia de que viria a ser conhecida como uma das mais inovadoras fotógrafas da Era Vitoriana. Nascida em Calcutá, Índia, de pai inglês e mãe aristocrática francesa, depois de estudar na França, passou a residir na Inglaterra, onde se casou com o advogado Charles Hay Cameron. Em sua propriedade na Ilha de Wight, Julia tornou-se uma fotógrafa dedicada, meticulosa e prolífica, retratando crianças, familiares e amigos, entre eles, o naturalista Charles Darwin, em closes, planos médios e até em alegorias religiosas e literárias, nas quais usava foco suave, em meio a expressões dramáticas e tristonhas de seus modelos. Em apenas 16 anos, com recursos técnicos limitados, a artista criou mais de 1.200 imagens – um número impressionante para a época –, dados o cuidado e o trabalho em processar e imprimir fotografias na técnica do colódio úmido (em que a exposição deve ser realizada com o negativo ainda umedecido e a revelação efetuada logo após a tomada da fotografia). Cameron faleceu no Sri Lanka, em janeiro de 1879. LUIZ ARRAIS
ORGANIZACIONALIZAÇÃO A VOZ DAS REDES
Saiu no Diário Oficial da União (pescada do Observatório da Imprensa), a nomeação “de Marcos Barros para o cargo em comissão de Chefe de Divisão na Coordenação Geral de Planejamento e Ordenamento da Aquicultura Continental em Estabelecimentos Rurais, no Departamento de Planejamento e Ordenamento da Aquicultura em Estabelecimentos Rurais e Áreas Urbanas, na Secretaria de Planejamento e Ordenamento da Aquicultura do Ministério da Pesca e Aquicultura”. Só para retomar o fôlego, dava para pescar uns 10 quilos de peixe. Já pensou, o mancebo, em uma dessas reuniões corporativas em que cada funcionário cita o nome e o cargo, como se apresentaria? “Meu nome é Marcos, sou chefe…”. E se o cara, de repente, for gago? (LA)
Em uma rodada de entrevistas para a divulgação do filme Os vingadores: Era de Ultron, os atores Chris Evans e Jeremy Renner sentiram na pele o prejuízo de dar declarações polêmicas a troco de nada sobre a Viúva Negra, personagem vivido pela bela Scarlett Johansson (foto). Ao serem perguntados sobre a vida sexual da aracnídea humana, um a chamou de “vadia” e o outro tachou-a de “puta deslavada e aleijada”. Mostrando que a plebe ignara das redes sociais não está para brincadeira, mesmo em opiniões a respeito de um ser de mentirinha, as críticas foram tão pesadas em cima da dupla, que, no outro dia, os dois foram a público se retratar, pedindo mil desculpas. Bem-feito para os babacas. (Luiz Arrais)
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JOÃO LIN
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CAPA
COMPORTAMENTO Em busca da felicidade eterna A valorização de aspectos relacionados à qualidade de vida se confunde com a exacerbação de impulsos consumistas, massificando a sensação da obrigação de “ser feliz” a todo custo TEXTO Fábio Lucas
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Uma palavra que já foi mais
poupada, restrita a momentos de conquista ou deixada para o balanço da idade avançada, tornou-se o apelo comum repetido quase a todo instante pela civilização da imagem, conectada ansiosamente em tempo real. A felicidade se transformou no desejo de felicidade, multiplicado pela cultura global, cantado em refrões pegajosos – de Pharrell Williams a Clarice Falcão – e assumido pela publicidade como o melhor slogan para qualquer produto. Todo mundo quer ser feliz agora, perpetuamente, sem se dar conta de que há algo errado na avalanche de promessas e possibilidades dirigidas à multidão que quase nunca as realiza. “Claro que junto com a aquisição de produtos se conquista também o poder da felicidade, mas esta precisa ser necessariamente momentânea para que uma nova compra proporcione outro momento de felicidade. A
renovação de sonhos perecíveis é o maior poder da publicidade para perpetuar a lógica do consumo”, diz a publicitária e professora da Universidade Federal de Sergipe, doutora pela Universidade Nova de Lisboa, Raquel Marques Carriço. A satisfação kantiana de todas as vontades, como resultado do desenvolvimento do conjunto de possibilidades pessoais e consequência da prática da virtude, num conceito herdado dos filósofos gregos, é hoje perseguida sem esforço, com esperança na sorte ou no merecimento do destino – que deve abarcar todo mundo, evidentemente, sem distinção. Vê-se então uma corrida maluca por uma felicidade desprovida de identidade, vendida como pasta de dente em supermercado e comprada com água na boca por consumidores ávidos por substituir uma felicidade por outra. Não importa se representada por antigos
estereótipos de realização e sucesso, ou novíssimos lançamentos no mercado da conexão e do entretenimento instantâneo. Não por acaso, o alarde a respeito de ser feliz a todo custo e a toda hora traz decepções e angústias que levam as pessoas a se sentirem deslocadas, excluídas e doentes, caso não preencham os requisitos de um comercial de margarina. “Assistimos atualmente a uma busca crescente de modos de vida em que a preocupação com a felicidade assume especial relevância e se traduz por solicitações sociais ao bem viver, ao prazer e à qualidade de vida. Esse é um sinal de que a procura de felicidade se reveste de uma enorme importância social, tanto pelo seu papel enquanto modelo orientador de práticas e condutas, como pelas suas consequências sociais e individuais”, analisa a socióloga Ana Roque Dantas, pesquisadora da Faculdade de Ciências
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CON CAPA TI NEN TE Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, autora do livro A construção social da felicidade. Para Ana Roque, essa relevância amplificada reflete transformações sociais que, associadas a uma melhoria das condições sociais que se verificaram ao longo do século 20, nas sociedades ocidentais, contribuíram para uma maior valorização de aspectos relacionados ao prazer, bem-estar e à autorrealização. “Nesse contexto, a palavra felicidade encerra diferentes significados, podendo exprimir alegria, contentamento, conduta de vida, mas também servir como classificação social para distinguir os melhores”, explica a pesquisadora. E por aí percebe-se o quanto o apelo cultural interfere na vida de todos, solicitando vitórias e respostas imediatas às questões existenciais. “Apesar da experiência singular de cada um e dos seus desejos individuais de felicidade, estes revestemse de fortes condicionamentos sociais que influenciam as formas de sentir, de expressar e de procurar felicidade”, diz Roque. A socióloga concorda com a ideia de que a felicidade, hoje, no Ocidente, é cada vez mais orientada pelos media e pela publicidade. “Apesar disso, não são claras as suas fontes e sua natureza, e as pessoas apresentam dificuldades em explicitar o que desejam para a sua felicidade, quando confrontadas com a questão”. Ana Roque postula que a felicidade decorre de processos individuais de construção de sentido, mas é também regulada por constrangimentos sociais. “Apesar de o fato da felicidade ocupar pensamentos individuais e os nossos sentimentos constituírem-se em experiências privadas e singulares, a sua idealização é socialmente moldada, interpretada e partilhada, e traduz formas culturais de pensar, ser e agir que influenciam as formas de sentir. Mas essas influências não penetram o tecido social da mesma forma, nem sua interiorização é semelhante em todas as pessoas. Há uma diversa apropriação dos referenciais disponíveis que se traduzem em diferentes concretizações. Em entrevistas que fiz no âmbito do mestrado, deparei-me com posturas
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“A palavra felicidade pode exprimir alegria, mas também servir para classificar os melhores” Ana Roque antagônicas face à necessidade de concretização de ideais de felicidade. Para uns, felicidade seria um objetivo a atingir; para outros, a felicidade reside na sua concretização cotidiana.” De acordo com a pesquisadora, a abordagem sociológica pode contribuir para perceber as formas em que a felicidade se apresenta na percepção das pessoas acerca do que as faz felizes e dos contextos sociais em que se desenvolvem tais entendimentos. Na visão de Raquel Carriço, a orientação do ideal consumista não vem apenas dos meios de comunicação. “Por que a TV está sempre apresentando um brinquedo novo? Eu acredito que a raiz do problema não é a oferta do brinquedo,
mas a ausência da mãe que não ajuda a criança a interpretar o significado da posse dessas coisas tolas… E pior, faz com que o filho acredite que seu esforço em comprar tudo que ele quer é sinal de amor… E não é. Mas, no entendimento da criança, ela só é amada quando ganha um presente.” Segundo Raquel Carriço, a origem da questão é mais profunda. “Estamos desenvolvendo uma legião de consumistas insatisfeitos, não por causa da propaganda, mas pela ausência da família, da igreja, da escola na constituição de valores importantes para estes indivíduos na sociedade.”
“PARA SER FELIZ”
Para a psicanálise, a felicidade não se alcança ou, quando se alcança, muitas vezes perde o valor da busca que mantinha o interesse. A contradição presente em nosso tempo faz com que o direito à felicidade se torne uma obrigação em todas as fases da vida. Diante de tal pressão social, também expressa numa felicidade de aparência nas redes da internet, o que resta do ideal de ser feliz? “Penso que deixa
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cada vez mais de ser um ideal para ser um imperativo”, diz a professora Maria Eduarda da Mota Rocha, professora do Departamento de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. O confronto permanente com os apelos à felicidade, que são transmitidos por diferentes canais de comunicação, contribui para a difusão de códigos comuns, de entendimentos e de expectativas que guiam a ação individual, ressalta Ana Roque Dantas. “Ora, o ideal de felicidade socialmente valorizado se assenta, sobretudo, na responsabilidade individual e na capacidade de escolha, devendo a felicidade ser conquistada por iniciativa pessoal. Este modelo tem inerente a convicção de que as pessoas são autônomas e têm o poder de moldar as suas vidas, sendo a felicidade o resultado desse ‘trabalho’. A felicidade surge assim como responsabilidade de cada um, expressa pela ideia de que ser feliz é uma opção, culpando os infelizes pelo seu fracasso.” Fecha-se o círculo da felicidade idealizada não como linha de chegada, mas ponto de partida para uma vida
Os apelos à felicidade transmitidos pela mídia contribuem para a difusão de códigos e expectativas comuns plena: anulam-se virtualmente as adversidades. “O modelo dominante é o de que, mesmo perante condições adversas, alheias e impossíveis de controlar, sermos felizes só depende da vontade própria. E isso gera frustração e sentimentos de inadequação social”, diz Ana Roque. A psicanalista lacaniana Bianca Coutinho Dias reforça o teor ilusório da felicidade ideal. Ela recorda que, em 1970, em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan afirma que “a felicidade, a menos que seja definida de modo bastante triste, ou seja, ser como todo mundo (…) a felicidade, é preciso dizê-lo, ninguém sabe o que é”. Um desconhecimento básico que bate de frente com a certeza propagandeada
pela cultura contemporânea, dos festivais de música ao Facebook. Bianca Dias deixa claro: para a psicanálise, a ideia de felicidade como ideal é um equívoco. “Estar suficientemente feliz na vida, como enunciou Lacan nos EUA, em 1977 – além da óbvia e irônica referência ao american way of life – indica uma nova posição, na qual o possível seria estar feliz por estar vivo, por estar na vida, incluída aí a morte como elemento irredutível e o malestar daquilo que nos ultrapassa.” No afã da felicidade, a inevitável fronteira da morte, concebida negativamente pelo Ocidente, faz da sua certeza uma razão de melancolia. Essa felicidade que ninguém sabe o que é, de repente, surge em nós por contraste, com uma pancada existencial diante da morte de alguém próximo. Conflitos desnecessários se apequenam, preocupações vãs acham seu secundário lugar, e o que importa, nem que por um relance, se descortina. Continuaremos sem saber o que é, mas extraídos subitamente do cotidiano neurótico em que estamos mergulhados, somos capazes de enxergar o que não é a felicidade. “Ser feliz apenas por estar vivo, sem isso nem aquilo, sem adiar ou procrastinar, porque a morte existe e não espera, costuma ser difícil para o neurótico”, adverte Bianca Coutinho Dias. Para ela, o imortal neurótico, com todo o tempo do passado ou do futuro à sua disposição, anula o hoje. “Anula o encontro, a contingência e o possível. A análise deve levá-lo, no mínimo, a parar de temer a morte e atribuir maior valor ao dia a dia, no qual praticaria o bemdizer da felicidade possível. Assim, essa felicidade do final de análise tem algo de um saber sobre a morte com o qual nos deparamos no estar vivo e prontos para as diferentes circunstâncias.” Assim se consuma uma espécie de descoberta, de fascinação comum à vista do conhecimento que se abre, mesmo do indefinível. Bia Dias resume: “A felicidade é um lampejo: aquilo que não se adia, que está na dimensão do ato, por mais que seja difícil se sustentar. O sujeito feliz é aquele livre do aguilhão que o impele à busca de sentido, pode desfrutar da palavra: poesia, corpo, amor… Alegria que o ancora na vida com todas as suas vicissitudes”.
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Entrevista
FILIPE CAMPELLO “UM ESCRAVO PODE SER FELIZ?” De acordo com o doutor em Filosofia
pela Universidade de Frankfurt e professor adjunto da UFPE, Filipe Campello, é possível dizer sim à possibilidade de um escravo ser feliz, posto que a subjetividade inerente à questão suscita respostas relativas, mesmo diante de critérios de bem-estar. A reflexão sobre o estar no mundo do sujeito mostra-se mais adequada se baseada no conceito de liberdade, e não de felicidade, pondera ele, nesta entrevista à Continente.
CONTINENTE Se observarmos as diversas expressões da cultura atual, a felicidade é quase onipresente. Somos assim tão felizes? FILIPE CAMPELLO Uma das observações mais recorrentes e discutidas em relação à felicidade consiste na atribuição de um modelo imperativo, facilmente diagnosticado na sociedade contemporânea. A imposição do “ser feliz a qualquer custo”, que já em si mesma é contraditória, conduz a uma percepção – a meu ver, equivocada – de que a dor ou a imperfeição seriam estranhas à existência. CONTINENTE Como se vivêssemos dentro de uma virtualidade eterna, compartilhando e
curtindo sorrisos o tempo inteiro. FILIPE CAMPELLO Nas redes sociais, o imperativo é ainda mais pernicioso, passando a falsa impressão de que todos são ou estão felizes (são raros os posts sobre frustração, sobre estar triste). O não estar feliz, portanto, é sinônimo de fracasso – ou o sentido recorrente de looser dos norte-americanos – e, em alguns casos, conduz a sintomas mais sérios, como a depressão. Ao contrário disso, é preciso assumir que momentos de dor e tristeza ou a vulnerabilidade e fraqueza do ser humano são próprios à existência, às histórias de vida individual, de modo que é preciso lidar com isso não como sintomas de fracassos, mas como sentimento comum. Mas eu gostaria, aqui, de destacar outro problema em relação ao sentido de felicidade, a meu ver mais importante e filosoficamente mais denso. A dificuldade sobre este conceito pode ser resumida na questão provocativa: um escravo pode ser feliz? CONTINENTE A pergunta remete à subjetividade, quando se trata do tema felicidade, inclusive em sua versão publicitária? FILIPE CAMPELLO Sim, a questão já aponta para a dificuldade de um critério objetivo e da maleabilidade em lidar com um sentimento fundamentalmente subjetivo. A resposta, pelo que parece, pode ser sim e não. A resposta afirmativa deve-se a um sentimento que pode ser vivenciado pelo escravo e que, portanto, não pode ser negado por um interlocutor. É quando se pergunta ao escravo: você é feliz? E ele responde: sim. A possibilidade de uma resposta afirmativa já evidencia o significado relativo do conceito de felicidade. CONTINENTE Em que consiste essa relatividade? FILIPE CAMPELLO Ela pode ser considerada em dois sentidos. No primeiro, há estudos que mostram que a felicidade não é um sentimento meramente subjetivo, mas possui um alto grau comparativo: ela depende de uma sensação duradoura de bem-estar mediada por relações de reconhecimento recíproco, ou seja, a felicidade refere-se à medida que o indivíduo é estimado e respeitado pelos demais. Ela também é relativa porque há uma propensão em
tomar um padrão de felicidade intersubjetivamente compartilhado, em que este padrão é difícil de ser valorado objetivamente. Um exemplo disso são estudos sobre a felicidade em economia, que sugerem que ela pode depender do grau de bem-estar proporcionado pela renda (e esta depende do contexto), mas chega a um determinado ponto em que ela não mais depende da variável econômica. CONTINENTE O que isso aponta? FILIPE CAMPELLO Põe ainda mais em xeque o uso objetivo do conceito de felicidade. Em uma das diversas (e controversas) pesquisas sobre índice de felicidade, foi apontado recentemente que o terceiro país mais feliz do mundo é a Arábia Saudita! (veja em http://economia.uol.com.br/noticias/ infomoney/2014/01/14/brasil-e-o-10-paismais-feliz-do-mundo.htm). Este é mais um claro exemplo do conflito subjetivo/ objetivo expresso na situação hipotética do escravo feliz, em que um sentimento subjetivo pode ser articulado como felicidade (e até mesmo esta articulação subjetiva é bastante controversa), enquanto várias outras evidentes précondições não são preenchidas, tais como violação sistemática de direitos humanos, opressão da mulher, falta de liberdade de expressão etc. CONTINENTE O que resta para a felicidade – e para o escravo feliz? FILIPE CAMPELLO É por essas ambiguidades e dificuldades de se atrelar um sentido objetivo de felicidade que filósofos como Hegel chegam a mencionar este conceito, mas, em seguida, defendem que não o conceito de felicidade, mas o de “liberdade” é o mais adequado para estabelecer uma reflexão sobre o sujeito. Aqui, a pergunta central não é se o escravo é feliz (e pouco importa se a sua resposta seja sim – como também no anômalo caso dos sauditas), mas, antes, se estão asseguradas condições “objetivas” e socialmente mediadas de realização da liberdade individual. Não quer dizer que essa concepção de liberdade satisfaça todos os critérios de felicidade, senão que somente a partir dela faz sentido questionar, num segundo momento, se o sujeito é ou não feliz.
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MARKETING E tome (in)felicidade!
A publicidade alimenta de modo sistemático a sensação de insatisfação, pois o terror para o mercado é a ideia de um consumidor (realmente) satisfeito REPRODUÇÃO
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Nas telas da vida virtualizada, a
exacerbação da cena feliz transborda nas aparências e está em quase tudo o que se vende. Como se a felicidade fosse um objeto de consumo acessível, permanentemente. No anúncio do crédito parcelado do Banco HSBC, a pergunta estampada destaca a facilidade de qualquer conquista: “Por que você ainda não começou a fazer tudo aquilo que realmente quer fazer?” Na reportagem de capa da edição de maio da revista Vida Simples, a conclamação é direta: “Veja o lado bom da vida – Aprenda a reconhecer os momentos perfeitos do seu dia a dia e traga mais felicidade e satisfação para perto de você”. Sobram exemplos, para onde quer que se olhe, desse tipo de chamamento, parte indissociável de nossa cultura. Eis que, num passe de mágica, o consumo imediato vira a felicidade sonhada. Mas, no ato da aquisição comercial, a essência da troca simbólica
Somos incitados a entender a felicidade como um dever e, para obtê-la, mobilizamos expectativas ligadas a valores materiais continua sendo o consumo, a urgência do objeto vendido, e não a felicidade cambiante que pode ser tudo e, de fato, não chega a ser nada, trazendo no fim da transação um gosto de decepção. “Na verdade, o que a publicidade precisa tentar produzir de modo sistemático é a insatisfação. O terror para o mercado é a ideia de um consumidor satisfeito. Seria o fim das empresas”, diz a professora do Departamento de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, mestre e doutora em Sociologia da Cultura pela USP, Maria
Eduarda da Mota Rocha. Segundo ela, à publicidade cabe tentar alimentar as expectativas em relação ao bem e ao serviço que, de todo modo, nunca serão totalmente atendidas. “Nosso modelo de sociedade nos faz projetar nossas carências nas mercadorias, quando também precisamos de outras coisas, principalmente de afeto e segurança, o que somente outras pessoas podem nos ajudar a ter.” A menção ao modelo de sociedade remete à ideologia presente tanto nas formulações conceituais quanto nas práticas coletivas. Para a professora do Departamento de Letras Clássicas e Linguística da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), Caciane Medeiros, o conceito de felicidade a que temos acesso está embalado em uma ideologia do ter e não do ser. “Dessa forma, todos os dispositivos sociais, entre eles os informativos e publicitários, são constituídos de sentidos que
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1-2 PUBLICIDADE Ideal de felicidade é atrelado ao consumo de bens
trabalham para manter a condição de felicidade aliada a uma formação ideológica consumista e compulsória. O imaginário coletivo da felicidade tem na mídia uma das suas instâncias mais significativas de constituição de sentido. Somos incitados a compreender a felicidade como uma espécie de dever. E, para atingir este objetivo “maior”– ser feliz –, movimentamos uma série de ações que conjugam sentimentos, expectativas e sensações a valores materiais e ideais de consumo. O imperativo é o da satisfação!”, diz Caciane Medeiros. Para a jornalista com especialização em Propaganda e Marketing, Leide Franco, não devemos esquecer, contudo, que o sentido de felicidade é individual, daí o desencaixe, quase tão compulsório quanto o desejo vendido, entre a realização e as carências. “O que pode me fazer feliz pode não trazer felicidade para mais ninguém. Mas essa satisfação
encontrada no consumo compulsório e renovável vejo como a cura paliativa para vazios mais complexos. Um tipo de falta que o lançamento de tal smartphone não vai completar – ou melhor, completa, sim, pelo menos até o próximo novo modelo estar disponível no mercado.” De acordo com Leide Franco, além do falso preenchimento dos vazios existenciais de cada um, as pessoas têm se deixado levar pelo status social. “Ninguém mais quer aquele celular para fazer apenas ligação, por exemplo. Ele tem que, no mínimo, acessar o mensageiro top do momento (WhatsApp). Mas só isso não basta. O aparelho precisa ser grande o suficiente para que quem esteja ao redor possa ver e desejar, quer dizer, são valores agregados em um objeto que, no final das contas, existe para facilitar a vida e ser útil – o que não está ligado diretamente à felicidade.” Assim, a utilidade do aparelho comprado e exibido para os outros como um troféu de consumo se confunde com um instrumento indispensável para ser feliz, no manual não escrito da felicidade consumada. “Se pararmos para pensar que nem todo consumo é racional, e que a maioria dos produtos é bem não durável e ainda carrega toda a história da obsolescência programada, o que tem de felicidade concreta nisso? O tempo de garantia?”, ironiza a jornalista.
HEDONISMO LIBERTADOR
“Vivemos numa ditadura do gozo, transmitida pelas imagens que a publicidade nos vende como imperativos do consumo. É como se estivéssemos sempre em débito com nós mesmos, porque não podemos usufruir o suficiente, não podemos ser tudo o que queremos e estar onde queremos estar. E a nossa culpa não se relaciona mais com o que fizemos, mas com o que deixamos de fazer. Não nos consideramos bons o bastante para sermos hedonistas”, avalia o escritor Tiago Novaes. A professora Maria Eduarda Rocha também credita ao hedonismo um papel importante. “Se vivemos em uma sociedade na qual a infelicidade é proibida, é porque caminhamos na direção de um hedonismo que transforma a vida terrena na razão maior de nossa existência. Por um lado, isso é liberador, quando nos impele a buscar uma vida prazerosa, em vez
de apostar em uma existência depois da morte sobre a qual não podemos ter certeza. Mas, por outro lado, isso amplia a angústia em relação ao sentido desta vida mesma, porque, se tivermos uma trajetória considerada bem-sucedida segundo essa cultura, quanto mais acumulamos propriedades e reconhecimento, mais estamos próximos de deixar tudo isso para trás.” A vertigem da morte é maior por causa da antecipação da falta do que se acumulou, e até, quem sabe, do vício de consumir sempre mais. “Se o historiador britânico Erick Hobsbawn tiver razão, é mais difícil para um contemporâneo se despedir da vida do que uma pessoa da Idade Média, justamente porque vivemos em uma sociedade afluente, que aposta suas fichas neste plano da existência”, pondera Maria Eduarda. “O que se perde nessa visão é justamente a ideia de que a felicidade se realiza coletivamente. A felicidade ‘exclusiva’ é uma denegação. Toda felicidade genuína é inclusiva; é uma entrega e um desapego. Uma responsabilidade, e não um gesto leviano”, define Tiago Novaes. A responsabilidade em busca da felicidade genuína pode se deparar com o problema da elaboração de um projeto de vida desatrelado dos apelos consumistas que pregam o imediatismo de ser feliz. Um desafio e tanto, como aponta a professora do Departamento de Letras Clássicas e Linguística da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), Caciane Medeiros. “Vivemos em tempos em que conceitos como realidade e consumo se misturam e delimitam nossos projetos de vida em sociedade. Entre a realidade e o consumo, há um discurso hegemônico que nos impele na busca da felicidade como condição de plenitude, realização, como ideal de ser/estar no mundo. Uma espécie de ‘conspiração social’ que deflagra o sujeito como sendo refém da premissa de felicidade como constante ideal a ser perseguido.” Sequestrados pelo ideal imediatista do consumismo, a normalidade é o atendimento ao frenesi dos desejos à disposição na vitrine do mercado. Até a saúde de cada indivíduo é pautada pela premissa de um ser feliz de acordo com a plenitude jamais alcançada – e daí as doenças da infelicidade, causadas pelo
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3 TIAGO NOVAES No romance Documentário, psicanlista e escritor explora o sofrimento na era da superexposição
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choque de realidade da vida longe do ideal. Para Caciane Medeiros, só somos “normais” e saudáveis se sonhamos com esse ideal de felicidade. “O caminho para alcançar tal intento é…? O consumo. Somos defrontados com a permanente criação de necessidades. Precisamos de muitas, literalmente, muitas coisas para termos felicidade e proporcionarmos a felicidade de outrem. Na ótica social do século 21 e suas contradições, o consumo se apresenta para além dos aparatos materiais. Consumimos ideias e, por nos sujeitarmos a elas, agregamos outras necessidades materiais ao nosso cotidiano, e o círculo realidadeconsumo-felicidade não se encerra”, afirma a professora da UFSM.
UMA ABSTRAÇÃO
O resultado decepcionante da ilusão desfeita – ou remontada a todo instante pela voracidade consumista e pela cultura midiática – não deve afastar a noção de que a felicidade é uma abstração, sim, mas pode ser uma vivência verdadeira. “Creio que a felicidade seja um horizonte: um pressentimento impalpável e de definições cambiantes. Claro, com sorte teremos a oportunidade de viver alguns momentos sublimes ao longo de nossa história. Um encontro
“Com sorte teremos a oportunidade de viver alguns momentos sublimes ao longo de nossa história” Tiago Novaes amoroso, a experiência de ter filhos, uma realização política ou profissional, o contato com uma obra de arte, a beleza, um meio natural exuberante”, afirma Tiago Novaes. “Mas a vida é feita de perda e impermanência. E um homem poderá desgraçar-se querendo atingir esse horizonte. O fato é que, se o horizonte serve para caminhar, ele também existe para oferecer-nos um vago contorno, uma paisagem do possível, uma contemplação. A felicidade sem esperanças, a felicidade do hábito, e, inclusive, a felicidade de enfrentar as misérias pessoais com um certo grau de sabedoria.” Então é preciso mudar o horizonte dominante. Caciane Medeiros recorda que o discurso do consumismo se assenta no ideal de que a principal finalidade da vida dos sujeitos é comprar. “Nas sociedades contemporâneas, esse comportamento foi naturalizado e tornou-se a ideologia
predominante. A contradição é constitutiva dos sujeitos e da sociedade como um todo. Nosso ideal de felicidade precisa ser revisto, na medida em que estamos presos a uma ordenação perversa, que nos incita a desejar o que não precisamos, mercantilizar trocas afetivas e condicionar nossas ações cotidianas a um estado permanente de insatisfação e de incompletude. O vazio existencial de nosso tempo não se esgota, não pode ser preenchido e tampouco compreendido. Não podemos sequer refletir sobre ele… Mas podemos camuflar sua existência sob aparente efeito de prosperidade e contentamento nas redes sociais, mesmo que na brevidade de um like. Nosso vazio não dá lugar ao sofrimento, ao desgosto, à melancolia. Mas estamos quase lá, rumo à felicidade que logo vamos ‘comprar’, digo, conquistar!” Como a felicidade consumida, de fato, não se consuma, a lógica da felicidade neurótica se alimenta de uma ilusão infinda. Para sair dela, talvez necessitemos mudar o foco da vida, como sugere o professor Marcelo Pelizzoli (leia artigo dele a seguir), ou tirar a felicidade do foco social, em favor de um conceito como a liberdade, de acordo com o que expõe Filipe Campello, na entrevista que deu à Continente. FÁBIO LUCAS
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HANA LUZIA/FONTE: SDSN/ONU
ESTATÍSTICAS SEU PAÍS É FELIZ? Até um indicador de povos felizes foi criado, há poucos anos, para conferir significado à sofreguidão coletiva pela felicidade. No âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN, sigla em inglês) possui, desde 2012, um ranking de felicidade que classifica 158 países. A inspiração veio do Butão, que criou a Felicidade Interna Bruta (FIB). Na mais recente divulgação, no começo de maio deste ano, o país mais feliz é a Suíça, seguido pela Islândia, Noruega, Dinamarca e Canadá. O grupo dos 10 mais tristes é composto de oito africanos, e mais Afeganistão e Síria. O Brasil não está mal na fita, ocupando a 16ª posição. O relatório da felicidade global da ONU associa insumos objetivos, como o Produto Interno Bruto (PIB) per capita e a expectativa de vida, a critérios subjetivos, baseados em perguntas a respeito de emoções positivas e negativas no dia anterior, e a percepção do entrevistado sobre a felicidade na vida em geral. A liberdade para se tomar as próprias decisões e o grau de apoio de pessoas próximas em momentos difíceis também entram no questionário. Segundo os organizadores do relatório, a felicidade é uma medida adequada de progresso social
e um objetivo das políticas públicas. A elaboração motiva comparações entre países com realidades e povos distintos. “Esses rankings seriam interessantes, se apontassem para outras formas de viver que nos ajudassem a sair dos impasses de uma sociedade de mercado prisioneira da visão de que a acumulação capitalista pode ser a resposta para as nossas carências”, avalia Maria Eduarda da Mota Rocha, professora do Departamento de Ciências Sociais e da Pós-Graduação em Sociologia da UFPE, mestre e doutora em Sociologia da Cultura pela USP. Para Caciane Medeiros, da UFSM, “este tipo de ‘pesquisa’ representa mais uma maquinaria que (re)produz dados mercadologicamente pensados para mobilizar sentidos no âmbito coletivo e midiático, que colaboram para uma padronização de valores afinados a um projeto de felicidade falso, uma fábula, como diz Baudrillard, que não condiz com nossa realidade social e cultural”. Enquanto para Raquel Carriço, publicitária e professora da Universidade Federal de Sergipe, doutora pela Universidade Nova de Lisboa, a coincidência da ocupação no topo da lista dos países mais felizes por aqueles de maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e maior renda per capita deve ser vista com cuidado. “Isso não quer dizer que essas pessoas são mais felizes porque consomem mais. Só quer dizer que pessoas com o mínimo de qualidade de vida são felizes.”
A socióloga Ana Roque Dantas, por sua vez, afirma que a preocupação com a medição da felicidade acompanha uma necessidade social e política de avaliar o funcionamento das sociedades e o bem-estar das populações. “Esta abordagem pretende superar as limitações que os indicadores meramente econômicos apresentam quanto às possibilidades de avaliar o bem-estar social, propondo indicadores não materiais complementares”, justifica. Segundo a pesquisadora portuguesa, com o desenvolvimento desse tipo de indicadores assistiu-se a um aumento considerável de estudos que apresentam resultados coerentes, ao longo do tempo, em diferentes circunstâncias e populações, permitindo aferir valores médios e conhecer os principais fatores que influenciam positiva ou negativamente as percepções de felicidade, bem como as suas variações. Mesmo assim, a felicidade posta em tabela não deve ser tomada como único parâmetro das realidades nacionais. “Ainda que as pessoas saibam se são ou não felizes, os rankings não nos permitem saber o que contribui para a sua felicidade, nem conhecer os seus significados. São, por isso, insuficientes para captar as diferenças contextuais e culturais, nomeadamente para conhecer as experiências e a avaliação das circunstâncias (na sua relação com a felicidade) das populações analisadas”, diz Ana Roque. (FL)
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LEITURAS Nos livros, o enredo é outro
1 CAROLA SAAVEDRA Em Paisagem com dromedário, escritora chilena questiona se a felicidade tem uma tonalidade artificial
Ao longo da história da literatura, infortúnios vêm fornecendo inspiração para escritores
ARTE SOBRE FOTO DIVULGAÇÃO/POEMA “MINHA MÃE”, DE VINICIUS DE MORAES
O desencontro de amantes proibidos, a impossibilidade de paixões fora dos padrões de uma época, o tormento da distância forçada da terra natal, as desventuras de vidas marcadas pela dor ou pela miséria. A felicidade que se retira, e se desloca para outro lugar, outro corpo ou outro tempo, tem sido fartamente explorada pela literatura. É nessa fuga que mora a motivação literária, mais do que na aposta de personagens, como se diz, bem-resolvidos.
“A felicidade é um desses temas muito difíceis de tratar na literatura… quem se interessa por um personagem feliz?”, questiona a escritora Carola Saavedra. “Fulano acordou com um sorriso no rosto, deu um beijo na esposa amada e nos filhos perfeitos e foi trabalhar no escritório em que é admirado por todos; durante oito horas dedicou-se a tarefas estimulantes, e, no final da tarde, dirigiu cantarolando de volta para a sua família perfeita. Tirando os exageros do exemplo acima, um personagem feliz seria alguém
sem grandes conflitos, sem grandes problemas, ou seja, alguém de pouco interesse para o autor. O que resta é retratar momentos de felicidade, que, a meu ver, só se tornam instigantes porque, junto com as grandes alegrias, vem sempre a sombra da tragédia”, diz a autora de Paisagem com dromedário. Nesse romance, a propósito, Carola Saavedra tem uma passagem que ilustra o aproveitamento literário da felicidade: “Quando eu saí da tua casa aquela tarde, o sol estava se pondo e o céu adquirira uma tonalidade
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avermelhada. Soprava uma brisa fresca de primavera. E eu me sentia bem, leve. Tudo parecia perfeito. Agora, penso, já percebeu que são justamente esses momentos, quando tudo parece perfeito, que antecedem os acontecimentos mais assustadores, as piores tragédias? Talvez toda felicidade tenha um fundo falso, uma tonalidade artificial, e esteja ali apenas para contrastar com o que está por vir”. Por ser aquilo que se queira, tudo pode trazer uma sensação de felicidade. Mesmo fugaz, indefinida, tola… Como um novo par de botas para alguém que vai feliz pela rua, talvez sem ter almoçado, nem levar um centavo no bolso: “Esse homem, tão esbofeteado pela vida, achou finalmente um riso da fortuna. Nada vale nada. Nenhuma preocupação deste século, nenhum problema social ou moral, nem as alegrias da geração que começa, nem as tristezas da que termina, miséria ou guerra de classes; crises da arte e da política, nada vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as, ele reluz com elas, ele calça com elas o chão de um globo que lhe pertence. Daí o orgulho das atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranquilidade olímpica… Sim, a felicidade é um par de botas”, escreveu Machado de Assis, no conto Último capítulo. Quem sabe, uma coisa há muito desejada, finalmente possuída, forçosamente esquecida, somente para se reproduzir a surpresa e o susto de tê-la, prolongando o encantamento da descoberta. É assim no conto Felicidade clandestina, de Clarice Lispector, no qual esse algo apaixonadamente buscado é um livro. Claro, a busca não é sempre tão prosaica. Na obra Olhai os lírios do campo, Érico Veríssimo narra a trajetória de Eugênio, personagem que abomina a origem humilde e se põe e refletir sobre a felicidade depois de trocar o amor verdadeiro por um casamento de conveniência. Na poesia de Manuel Bandeira, a referência mais famosa remete ao desejo de estar noutro lugar – “Voume embora pra Pasárgada/ Aqui eu não sou feliz”. Mas há outras imagens. Como no poema A estrela: “Vi uma estrela tão alta,/ Vi uma estrela tão fria!/ Vi uma estrela luzindo/ Na
“A felicidade é um tema difícil de tratar na literatura... quem se interessa por um personagem feliz?” Carola Saavedra minha vida vazia (…) Por que tão alta luzia?/ E ouvi-a na sombra funda/ Responder que assim fazia/ Para dar uma esperança/ Mais triste ao fim do meu dia”. Talvez o mais elaborado mergulho literário no tema da felicidade idealizada – assim como do aprisionamento da fruição de um momento que escapa – venha do clássico romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Nele, o autor assinala, entre outras passagens, que a perseguição da felicidade é tão ingênua quanto o projeto de alcançar o horizonte caminhando para frente. O escritor e psicanalista Tiago Novaes, autor do romance Documentário, em que discute o sofrimento humano em tempos de superexposição na web, lembra que, segundo a escritora francesa Simone Weil, a felicidade não é outra coisa senão um sentimento
da realidade. “Em contraposição, a infelicidade consiste na debilidade dessa sensação. E, de fato, os discursos dos depressivos estão impregnados desse embotamento da consciência e da perda das cores do real. Ser feliz é poder situar um presente numa história. Saber observar as coisas e se relacionar com as pessoas em suas fragilidades e contradições, na consciência de tudo o que nos ultrapassa”, diz o autor de Os amantes da fronteira. Os leitores podem achar nos romances, nos contos e nos poemas algum alento. Porque a felicidade não é impositiva, e muito menos fácil. E o que se lê ajuda a compreender isso, ampliando o espectro das próprias limitações e possibilidades. “A literatura nos torna mais felizes no sentido em que nos ajuda a enxergar melhor. A literatura nos concilia com a dimensão trágica da vida. É uma suspensão que nos aproxima do presente e da realidade. Observamos, pensamos, saímos de nós mesmos”, pontua Tiago Novaes. E a leitura enquanto exercício espiritual, na expressão do sociólogo francês Marcel Granet, oferece, se não um antídoto, pelo menos um contraponto à ilusão estabelecida da felicidade compulsiva. FÁBIO LUCAS
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Artigo
MARCELO PELIZZOLI UM BREVE ASPECTO DA FELICIDADE Dos muitos aspectos para entender
e falar em felicidade para um ser humano, vou tomar um deles, sua conexão básica com a vida enquanto um animal que deve seguir ritmos e fluxos da natureza, que busca encontrar o prazer, o crescimento, como expansão da vida, seu sentido maior. Há uma imensa sabedoria adaptativa do animal, construída durante milhões de anos no meio biótico, e que permitiu
e permite que vivamos ainda hoje. A cultura ocidental tem uma história imensa e rica e, nos últimos tempos, criou coisas muito avançadas, de que a gente acaba gostando muito, e até se viciando nelas; ao mesmo tempo, acabamos perdendo em conexão com a vitalidade básica e, assim, o que se chama de “sanidade básica”. Uma ótica e uma estética saudável devem propor, agora e desde pelo menos a década de 1960, a inversão dessa cultura esquizoide, e instituir um mundo alternativo, ecológico, sustentável, roots, bicho, comunidades alternativas e subjetividades alternativas, místicas, naturalistas. Essa radicalização – a contragosto dos normóticos, do mundo das gravatas
fake e dos sapatos engraxados – é talvez a única forma de saber viver em profundidade, com sanidade. Não há saída para o modelo de desenvolvimento atrelado ao tipo de mercado e sociedade de consumo atual – ao american way of life. Ou praticamos uma maior simbiose, voltando a ser mais biocentrados, voltando à natureza, ou continuaremos afundando na destruição e psicose coletiva, com dados alarmantes: aumento de doenças, suicídios, neurose, estresse, poluição, ansiedade, pânico, medo, assassinatos, corrupção, ganância, corporações, cartéis, drogadição/ adicção de todo tipo. Não se trata de reinventar a roda. Nós sabemos bem o quanto nos curamos
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JOÃO LIN
numa visão masculina, branca e autoritária de Deus. Freud alerta contra o mesmo processo, quando busca resgatar a libido, a sexualidade como centro da vida psíquica, capacidade de relacionamento e contato real com a vida, aspectos essenciais da felicidade perdida na civilização – pois perdeu o corpo, o animal humano. Em meio a uma grande e silenciosa loucura que perdeu a sabedoria, a alegria e a coragem de viver no mundo atual – pois vive do medo da perda, fracasso, insucesso, competição, medo do inconsciente, medo de si, medo da morte/vida –, em meio a isso surgem os mestres, os sábios, terapeutas, vanguardas, poetas, místicos, ecologistas, os homens simples e terrenos oferecendo afetivamente modelos de vida, exemplos, braços, além de ideias. Loucos em meio à loucura do tempo, em meio à normose. Não são santos, são pessoas. Mas algo começa a acontecer nelas, algo desperta, algo toca; talvez um zeitgeist toque a todos, alguns sentem mais. Freud escreve, na década de 1920, uma obra sintomática: O mal-estar da
Para Reich, nossa desgraça começou no neolítico, quando nos desgarramos da conexão com a vitalidade natural e somos harmonizados, quando voltamos à terra, ao campo, à água, aos elementos, às florestas, às pedras, ao barro, à comunidade, aos bichos, ao ar, à Lua e ao Sol, enfim, à vida. Para W. Reich, a nossa desgraça começou em torno de 6 mil anos, na era do neolítico, quando começamos a nos desgarrar do instinto e da conexão básica e energética com a vitalidade natural. Logo em seguida, ocorre a criação de algumas visões religiosas monoteístas, que são outro passo nessa desconexão com o paganismo – religiões dos pagos, natureza, sagrado. O sagrado – que antes habitava a natureza, o sexo, a terra-mãe, o xamanismo, o curandeiro, o Sol, a floresta etc. – passa a ser monopolizado
civilização. Quem, no íntimo de seu ser, não sente o incômodo do tempo? Quando paramos para pensar e contemplar, vemos a maravilha e a contradição das situações em que nos metemos. Por exemplo: somos todos macacos “evoluídos”. Enquanto macacos ou hominídeos, éramos até bastante felizes, comendo e dormindo, fazendo sexo livre sem doenças, cuidando uns dos outros, tendo lutas com outros dentro de um contexto de territórios, regras e sentido, respeitando os líderes reconhecidos pelo grupo, brincando, catando pulgas uns dos outros, andando em bandos, e morrendo (sem suicídio) quando tem que morrer… Hoje, alguns sonham em ser meio robóticos. Outros sonham em
ser anjos, dos quais não sabemos nem o sexo nem onde moram. Não obstante, voltar a ser macaco, símio, seria talvez o maior e mais belo feito humano. Já que não podemos sê-lo, e que é frustrada a tentativa de fazer com que os macacos imitem os homens, é hora de os homens pelo menos imitarem os macacos, e fazer talvez um planeta de macacos-humanos, e/ou humanosmacacos. Hoje, somos “fantásticos”, civilizados, ex-macacos e hominídeos que dirigem automóveis, e atropelam uns aos outros aos milhões, estão dentro de escritórios, respirando mal, defendem os outros, mesmo que eles sejam corruptos e culpados, dependem muito de religião, mais ainda de dinheiro, ou então de poder, jogam agrotóxicos nas plantas e as comem (ou apenas as vendem), precisam de seguro para o carro, necessitam ser estressados e correr muito, dependem de televisão, senão ficam raivosos e frustrados, demandam roupas – não qualquer uma, mas as mais midiáticas possíveis, precisam de uma série de documentos para existir; compram para comer, e trabalham (em coisas que em geral não sabem bem se gostam de fazer) para comprar; e mantêm a saúde em meio a uma perda generalizada de saúde, justamente porque têm que fazer tudo isso que foi citado – e mil coisas mais. Normal (?). Felicidade, no aspecto que escolhemos agora, tem a ver com o resgate do fluxo natural da corporeidade e, portanto, da vida ambiental, o que tem a ver com viver uma vida mais próxima do modelo natural, ou seja, uma cultura mais naturalista e que resgate a vida simples, as relações de amizade, a alimentação natural, o encontro e o contato humano. Portanto, a sexualidade saudável, a superação da neurose, o cultivo do tempo como ócio saudável, contemplativo e meditativo. Também a relação propriamente dita com o que chamamos de natureza, os animais, as plantas, a terra. Para isso é necessária uma cultura mais livre, com mais tempo para as coisas boas da vida, com mais justiça, respeito, solidariedade, direitos humanos, superando o modelo econômico doentio e dilapidante em que vivemos, entre outras coisas.
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CONGADAS Uma celebração a São Benedito
O município de Aparecida, no interior de São Paulo, famoso pela romaria dedicada à padroeira do Brasil, realiza também festa dedicada ao santo negro TEXTO E FOTOS Márcio RM
A cidade de Aparecida, em São
Paulo, é conhecida nacionalmente pela festa da padroeira do Brasil, que acontece em outubro na Basílica de Nossa Senhora Aparecida (também conhecida como o Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, segundo maior templo católico do mundo). Maior centro de peregrinação religiosa da América Latina e tida como a Capital Mariana da Fé, recebe anualmente mais de 11 milhões de visitantes. Ela é popularmente conhecida como Aparecida do Norte, por causa da construção da Estrada de Ferro do Norte (depois Estrada de Ferro Central do Brasil), na segunda metade do século 19, quando os passageiros iam de São Paulo para lá e falavam: “Estou indo para o norte, para Aparecida”. A cidade também é palco da Festa de São Benedito, que é o maior encontro de congadas no Brasil e uma das mais tradicionais festas populares do estado de São Paulo, que acontece anualmente no período pascal. A celebração faz 105 anos neste 2015, já que foi realizada pela primeira vez em 1910, após a fundação da Irmandade de São Benedito em Aparecida. Durante os três últimos dias da festa, a cidade acolhe em média entre 100 e 120 mil visitantes, recebendo em torno de 100 congadas de diferentes estados do país (90% delas de Minas Gerais, mas também de outros estados, como São Paulo, Espírito Santo e Goiás). A congada é uma manifestação cultural e religiosa afro-brasileira, um cortejo com danças e músicas.
Reúne elementos das tradições tribais de Angola e do Congo, com inspiração ibérica na parte religiosa, e recria a coroação de um rei congolês. Elas encantam com as suas cores e cantorias, sendo que a sua pluralidade cultural representa perfeitamente a rica diversidade brasileira. A cada ano, 30 congadas são trazidas com despesas custeadas pela festa, mas dezenas delas vêm por conta própria ou com apoios locais. A comida é doada pelos hoteleiros, sendo preparada na cozinha da prefeitura com um cardápio elaborado especialmente por uma nutricionista, pensando no desgaste físico que os congadeiros terão. A festa é, junto com a de Nossa Senhora, responsável pelo maior fluxo de visitantes a Aparecida, lotando não só os hotéis locais, como também de municípios vizinhos, como Cunha e Roseira. A celebração é um ponto de encontro para muitos fiéis e também de reencontro de familiares e amigos, já que muitos aparecidenses que não moram mais na cidade a visitam nos dias da festa. Na região, Aparecida é o único lugar que manteve todas as tradições dessa festa. A sua preservação se deve ao fato de a essência ser a mesma: o doce, a cavalaria, o leilão de gado e a procissão. Outras atividades, como a Missa dos Idosos e a Gincana Escolar, por exemplo, também possibilitaram agregar a sociedade ao longo das celebrações. O professor José Luiz Pasin, que foi um importante historiador do Vale do Paraíba, escreveu: “A Festa de São
Benedito é mais tradicional das heranças da cultura e do sincretismo afrobrasileiro nas cidades vale-paraibanas, desde o século 18, com suas congadas e moçambiques, cavalaria, mastro, bandeirinhas, distribuição de doces, corte do rei e da rainha e dos ‘irmãos’, com suas opas e caixas pelas ruas da cidade pedindo esmolas para o santo, e convocando o povo para as cerimônias religiosas, relembrando dias e tempos do cativeiro e arrastando um pedaço de África, Angola e Moçambique, na maior manifestação de fé e religiosidade da gente aparecidense e vale-paraibana”.
ORIGENS
Influenciados pelos portugueses, os negros africanos começaram a cultuar Nossa Senhora do Rosário, conhecida como Nossa Senhora dos Homens Negros (devido à semelhança entre o rosário e o fio de contas usado nas religiões de matriz africana). A devoção a ela foi trazida para o Brasil e, posteriormente, associada a São Benedito (santo negro e descendente de escravos). Por isso as congadas trazem as suas bandeiras (estandartes) com referência aos dois santos. Benedito é um dos santos mais populares no país. Adorado primeiramente pelos portugueses e depois pelos escravos, que se identificavam com a cor da sua pele e sua origem africana. Passou a ser amado por boa parte do povo brasileiro por conta da sua humildade e caridade, tendo sido escolhido como padroeiro
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por várias paróquias e capelas. Benedito, que significa bendito ou abençoado, seguiu a profissão de seus pais lavradores descendentes de escravos, tendo uma inabalável fé na dedicação aos pobres. A criança nos seus braços é um menino que estava numa carroça, tombou e faleceu. O santo ressuscitou-o, sendo este um dos seus milagres. Também se relata a multiplicação de alimentos por ele realizada. “São Benedito tem os mesmos tipos de milagres que Jesus Cristo. Ele era pouco cultuado na Itália, mas, aqui no Brasil, precisava-se de um santo negro para trabalhar a identidade da sua gente. O povo olha para um santo negro no altar e pensa ‘se ele é negro, pobre, analfabeto e pode ser santo, eu também posso’. Aproxima a santidade do povo”, declara Felício Murade, pesquisador da cultura imaterial e professor da Unitau, na vizinha Taubaté. Apaixonado por essa celebração (foi rei em 1989) e estudioso de São Benedito, Murade é uma das pessoas na linha de frente na procissão do mastro. Décadas atrás, acompanhava o tio nos leilões da festa, e há 30 anos carrega o mastro. Ele prepara um projeto de registro da festa como patrimônio cultural brasileiro junto ao Iphan, e está finalizando um filme, uma das exigências para o tombamento dela. Desde o início, a festa era um grande encontro social, com vários moradores envolvidos, e se tornou mais que um ponto de reunião, sendo um momento de diversão e religiosidade. As comunidades de todos os bairros dela participam, o único evento da cidade que une as três paróquias locais (Nossa Senhora, Santo Afonso e São Roque). A preparação começa ao término da festa no ano anterior. Existem 39 comissões de organização, trabalhando cada uma com vários voluntários (quase mil, no total, contabilizam). O coordenador de cada comissão geralmente é um morador que atua no comércio local, e acaba envolvendo os seus familiares e funcionários nos preparativos. “O importante é não perder o elo, valorizar tanto a fé quanto a cultura. Trabalho com a minha equipe há 15 anos, e ela é a que tem mais jovens. Conheci crianças que começaram com 9 anos e já se casaram, ajudei no casamento delas e elas permanecem como voluntárias.
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Página 38 1 REVERÊNCIA
Tendo ao centro o rei e a rainha, o cortejo segue em direção ao Santuário Nacional
Nestas páginas 2 CONGADA
Folguedo se apresenta nas proximidades da Igreja de São Benedito
3 APARECIDA Membro da congada pede bênção à Nossa Senhora 4 MISSA SOLENE Participantes concentram-se no último dia da festa
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5 TRADIÇÃO Integrante de cavalaria passa em frente ao templo de São Benedito 6 RAINHA A cada ano, são escolhidos os regentes da festa
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Muitas pessoas iniciaram com uma promessa e, ano após ano, continuaram, envolvendo os seus parentes. É um momento de união da família que se mobiliza”, conta Maria Rita Sampaio, aparecidense e coordenadora de uma das comissões de Liturgia. Anualmente, são escolhidos os novos festeiros, que serão o rei e a rainha da festa (não necessariamente um casal). Eles serão responsáveis pela organização geral e mobilização da comunidade, sendo a venda de 2 mil rifas o primeiro compromisso deles. Para cobrir os gastos da realização da festa, são feitos vários eventos ao longo do ano. O primeiro, que acontece em agosto do ano anterior, é o Jantar de Massas. Também conhecido como Noite Italiana, já se tornou uma tradição local. Neste ano, foi feito um baile beneficente antes do Carnaval, com marchinhas antigas. Com o dinheiro arrecadado e a renda do aluguel das barracas é possível cobrir
Na manhã do sábado seguinte à Páscoa, com o Acolhimento das Congadas no Santuário, têm início as principais atividades da festa os custos gerais da festa, que ultrapassam meio milhão de reais. Todos os bairros trabalham para acolher as congadas, e várias famílias as recebem em suas casas, ficando responsáveis também pela sua alimentação. Uma dessas famílias é a de Dona Zizi Macedo (a mais antiga rainha viva do evento), que recebe pelo menos 10 grupos a cada edição. Bela com a sua decoração de milhares de bandeirinhas, a pequena igreja de São Benedito se torna alvo da atenção e do olhar de vários fotógrafos (profissionais ou não), recebendo a maior parte das
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celebrações. A festa inicia oficialmente no domingo de Páscoa com a abertura da Novena. Ao longo da semana acontecem as primeiras atividades, como as gincanas escolares e o leilão de gado, além da novena diária. Na manhã do sábado seguinte à Páscoa, com o Acolhimento das Congadas no Santuário, têm início as principais atividades da festa. Na tarde desse mesmo dia, é celebrada a Consagração das Congadas na frente da Basílica Velha, um momento de grande emoção para todos que participam e a assistem. Após a celebração externa, elas entram na basílica, uma de cada vez, para receber a bênção de Nossa Senhora. O domingo começa com a Missa Conga, um grande ritual a céu aberto na frente da Igreja de São Benedito. De tarde, acontece a procissão do mastro, que começa na casa do Capitão do Mastro, responsável por sua preparação, com uma nova pintura
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7 RITUAL Após procissão, mastro é fincado em frente à Igreja de São Benedito
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a cada ano. O capitão acompanha os reis e a Irmandade de São Benedito à frente do desfile, seguidos por dezenas de congadas. Este cortejo é uma demonstração de fé e agradecimento pelas conquistas atingidas no ano. Carregado pelas mãos e nos ombros de pelo menos 50 devotos (além de milhares de pessoas que caminham junto), o mastro é levado até a frente da igreja de São Benedito, onde será depositado. Esse é o ponto alto da festa, que simboliza a ligação da terra com o céu, quando ele é fincado ao chão. A sua importância pode ser medida pelas congadas que ficam esperando para benzê-lo. Todas o fazem, além das pessoas que escrevem nele e ficam ali, rezando.
“A cada ano vem aumentando a quantidade de bilhetes e sacos de sementes que são depositados no local que recebe o mastro. Só uma das escolas locais envia uma caixa cheia de bilhetes”, destaca Ernesto Elache, presidente do sindicato de hospedagem e alimentação, e voluntário há quase três décadas no levantamento do mastro. Após o levantamento do mastro, a cavalaria sobe pela rua lateral da igreja até a Basílica Velha e, na descida, passa na frente da Igreja de São Benedito, homenageando-o. Um dos destaques da festa, principalmente para as crianças, são os bonecos Maria Angu e João Paulino. Semelhantes aos bonecos de Olinda, foram trazidos de São
Luiz do Paraitinga para Aparecida no ano de 1974, sendo uma presença marcante nas congadas, desde então. São representações tradicionais das figuras masculina e feminina, sendo Maria Angu o símbolo da mulher bem-vestida, contente e festiva e o João Paulino, o homem que escolhe sua melhor roupa para a festa. Surgiram outros bonecos, como a Miota (a loira fofoqueira) e a Bruxa, sempre horrível e assustadora, que vem lembrar as pessoas tristes, que não gostam de festas e, por isso, sai espantando as crianças na volta para casa. Para marcar a presença dos animais, foi criada a Vaca Louca, que mais parece um boi-bumbá de São João. Chamada de Dia da Grandiosa Festa, a segunda-feira é feriado municipal. Às 5 horas, acontece a Alvorada na frente da Igreja de São Benedito, e o mastro é reverenciado pelas congadas e moçambiques. Na porta da casa dos reis da festa, prepara-se uma grande e larga mesa, na qual é servido o café da manhã para as congadas. Após o desjejum, os reis saem em direção ao palco montado na frente da igreja para a Missa Solene, que é sucedida pela Benção dos Doces e a sua distribuição (mais de 10 toneladas no total). Antes, as cerca de 10 mil toneladas de doces distribuídas eram produzidas em Aparecida, mas desde o início deste século são fornecidas por fábricas, que entregam os três sabores (abóbora, mamão e batata). Uma equipe com mais de 100 pessoas organiza as porções em embalagens. Junto com os doces, são entregues 10 mil imagens do santo e 10 mil pães. A fila dá voltas em quarteirões, já que a maioria dos devotos acredita que o Doce de São Benedito pode curar doenças e melhorar a saúde. A procissão final acontece no meio da tarde, em louvor ao santo. Trata-se de um grande desfile, com a corte dos reis e andores, além das congadas e diversas alas de moradores. De noite, para fechar a festa, o público aproveita para comer um saboroso sanduíche de linguiça, numa das várias barracas na praça da Igreja de São Benedito. Momento de descanso das atividades do dia, no qual se relembram os momentos vivenciados ao longo das celebrações.
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KEY WEST Um caso de amor com Hemingway
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WHITEHEAD STREET
O casarão estava abandonado, quando Hemingway o adquiriu
Última ilha do extremo sul da Flórida recebe mais de seis milhões de turistas por ano, tendo como atrativos as praias e a casa-museu do autor norte-americano TEXTO Fred Navarro
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O poeta Wallace Stevens, nascido na Pennsylvania, descreveu Key West como “um verão sem fim”. Tradicional reduto de artistas e intelectuais, além de Wallace e do mais famoso deles, Ernest Hemingway, abrigou escritores do porte de John Dos Passos, Elisabeth Bishop, Tennessee Williams, Truman Capote, Gore Vidal e Lillian Hellmann, além de Hunter Thompson, criador do jornalismo gonzo e autor de Medo e delírio em Las Vegas. Mas ninguém discute: ‘Papa’ Hemingway foi o morador mais ilustre da ilha. Com apenas 6,7 km de extensão, Key West tem entre suas atrações de destaque a casa-museu de Hemingway, localizada no número 907 da Whitehead Street, e a movimentada Duval Street, onde ficam os restaurantes da moda, incontáveis galerias de arte e lojas de compras, e os bares do tipo Hard
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A casa do escritor localiza-se em trecho badalado de Key West, com restaurantes, bares e galerias de arte Rock Café. O bar mais famoso e concorrido da ilha, o Sloppy Joe’s, também fica na Duval. É praxe que, de cada 10 frequentadores, nove peçam o drinque preferido de Hemingway, o mojito (rum branco de Cuba, xarope de açúcar, hortelã, limão e club soda), servido em copo alto, decorado com folhas de hortelã. A presença do escritor na ilha é tão marcante, que lá se celebram, entre 21 e 26 de julho, os Hemingway Days, quando centenas de homens com barbas brancas e charutos invadem a
ilha na tentativa de ganhar o título de sósia mais fiel ao original. É lugar-comum dizer que entre a Flórida e Cuba, entre Key West e Havana, o espectro de Ernest Hemingway ainda ronda o mar do Caribe. Nascido em 21 de julho de 1899, em Oak Park, Illinois, depois do ensino médio mudouse para Chicago e lá casou-se com Hadley Richardson, com quem foi morar em Paris em 1918, onde começou a batalhar a vida como jornalista e escritor. Seis anos de casamento e um filho depois, publicou o primeiro romance, Nosso tempo, que passou despercebido. Em 1926, ao lançar O sol também se levanta, que obteria um sucesso surpreendente, Hemingway ficou famoso da noite para o dia. Menos de um ano depois, divorcia-se de Hadley e volta para a América, onde se casa com a jornalista de moda
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Depoimento
TUDO POR CAUSA DE UM CONTO Leia trechos do depoimento*
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HEMINGWAY
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GATOS
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É considerado pacato o período que o escritor viveu na Flórida
Até hoje, os felinos são parte constitutiva da residência CASAL
Hemingway com a esposa, jornalista Pauline Pfeiffer
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INTERIOR
Móveis do século 17, livros e obras de arte trazidas de viagem são itens do acervo
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PESCADOR
Escritor faz pose junto com a esposa Pauline e os filhos Bumby, Patrick e Gregory depois da pesca de marlins, em Bahamas, 1935
Pauline Pfeiffer. Em 1928, aceita o conselho de um amigo, o escritor John Dos Passos, que conheceu as Keys no início dos anos 1920 e lhe garantiu que viajar através da ferrovia construída pelo magnata Henry Flagler era como “flutuar num sonho”. Depois da primeira visita, ele e Pauline decidiram se mudar para lá. Ao chegarem à ilha, compraram uma casa abandonada na Whitehead Street, pela qual pagaram 8 mil dólares em impostos atrasados. O folheto do museu em que se transformou em 1964, e cuja visita custa hoje US$ 13 para adultos e US$ 6 para crianças até 12 anos, informa que a casa foi construída por escravos, em 1851, com dois pisos feitos de pedras retiradas do próprio terreno. Bem localizada, fica no miolo da pequena cidade, perto da Duval Street e a poucas quadras do Capitain Tony’s Saloon e principalmente do Sloppy’s
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Joe, o bar predileto do escritor, no qual “batia ponto” diariamente. O dono, Joe Russel, tornou-se seu amigo fiel e companheiro frequente de pescarias.
ALTA PRODUTIVIDADE
No estilo colonial espanhol, a casa fica a 100 metros do mar e é cercada de jardins tropicais. No interior, móveis do século 17, azulejos espanhóis, jogos de pratos finlandeses e quadros trazidos de sua primeira temporada em Paris. A vasta biblioteca, a cadeira de artesão de charutaria trazida de Cuba, a máquina de escrever Royal (que ele não usava, pois só escrevia à mão), está tudo como ele deixou. Nessa casa branca de dois andares e janelas amarelas, que atualmente abriga o The Ernest Hewingway Home & Museum, o escritor viveu com Pauline e os dois filhos de 1931 a 1940, exceção feita aos períodos em que viajou para fazer a cobertura da Guerra Civil Espanhola (19361939). Foi um período produtivo. Lá, escreveu Uma aventura na Martinica, As neves do Kilimanjaro, Por quem os sinos dobram e Adeus às armas. Ele mandou construir um ringue de boxe no jardim e Pauline, uma piscina (a primeira da ilha), que o escritor depois aterrou. Tinha dezenas de gatos com polidactilia (um dedinho a mais
do candidato a escritor Arnold Samuelson sobre a viagem que empreendeu em 1934, indo de trem de Minneapolis a Key West para encontrar Hemingway: “Nos anos 1930, o tempo estava bem difícil por lá. A maioria das fábricas de charutos decretara falência e fechara, e a pesca estava improdutiva. (…) Quando bati à porta da frente da casa de Hemingway, em Key West, ele saiu e ficou parado, vesgo e com ar aborrecido, esperando que eu falasse. Embatuquei. Não conseguia lembrar de uma só palavra do discurso que tinha preparado. Ernest era um cara grandão, alto, magro, de ombros largos, e ficou lá parado, com os pés afastados, os braços encostados no corpo. Estava um pouco inclinado para a frente, com o peso do corpo nos dedos dos pés, na atitude instintiva de um lutador pronto para atacar. ‘O que você quer?’ Eu disse: ‘Eu li o seu conto On trip across no Cosmopolitan. Gostei tanto, que vim ter uma conversa com você.’ Ele relaxou: ‘Por que diabo não disse logo que só queria ‘mastigar gordura’? Pensei que era mais uma visita.’ (…) Seu escritório ficava por trás da casa, depois da garagem. Eu o segui até uma escada externa, por onde se chegava ao escritório, um quarto quadrado com piso de azulejos, três janelas fechadas e prateleiras compridas cheias de livros, das janelas até o chão. Num dos cantos, ficava uma grande mesa antiga e uma cadeira antiga, com encosto alto. Sentei-me de frente para ele, do outro lado da mesa”. * Extraído de With Hemingway: a year in Key West and Cuba
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nas patas). Segundo a tradição dos marinheiros, os gatos com dedinhos a mais trazem boa sorte. Um dos locais curiosos da casa-museu é o cemitério onde estão enterradas gerações de gatos que lá viveram. Hoje, uns 60 descendentes do felino original vivem espalhados pela casa, têm suas próprias casinhas nos fundos, comem bem e dormem a maior parte do dia enquanto são observados pelos turistas. Parte do dinheiro arrecadado pelo museu garante a vida boa dos bichanos.
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Apesar da violenta crise da bolsa de 1929, Hemingway viveu sem problemas financeiros em Key West, graças ao sucesso de vendas de Adeus às armas, escrito durante uma época turbulenta, na qual teve seu segundo filho com a jornalista, e sofreu o impacto do suicídio do pai. Além disso, era jovem, estava no auge dos 30 anos, e sentia falta da vida de jornalista e correspondente estrangeiro. O casamento com Pauline, os filhos, a vida em família, tudo era previsível para alguém afeito
à caça, à pesca, à cobertura de guerras, aos amigos artistas e boêmios de Paris. Refugiava-se na amizade com Joe Russel e nas pescarias. Na primeira vez em que saiu com ele, depois de dois dias em alto-mar, foram bater em Havana, pela qual Hemingway se apaixonou. A partir de então, todo ano instalava-se lá, entre maio e julho, na temporada da pesca ao marlim. Costumava ficar no Hotel Ambos Mundos, em Habana Vieja, o bairro mais antigo daquela cidade que aos poucos se tornava o seu lar e cujos cenários, pelos próximos 23 anos, seriam inseparáveis da sua história e a da própria ilha. O casamento com Pauline começou a acabar quando Hemingway conheceu Martha Gellhorn, em 1936, confirmando a previsão feita pelo amigo Scott Fitzgerald, quando se conheceram em Paris: “Você vai precisar de uma mulher a cada livro”. Martha, escritora e jornalista que conhecera Hemingway em Key West, voltou a encontrá-lo na Espanha, durante a Guerra Civil. Ao voltar da Europa, sem a casa de Key West, que
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MUSEU
Hoje, a casa da Florida reúne mobiliário e objetos originais
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8-10 TÍTULOS Livros que foram escritos na fase produtiva de residência em Key West
ficou com Pauline e os filhos, optou por um velho sonho: morar em Finca Vigia, nos arredores de Havana. Um pouco antes, em Key West, o escritor conhecera e se apaixonara por Jane Mason, casada com o diretor de operações da Pan-Am, cujo escritório ficava a poucas quadras de sua casa e com quem costumava beber hectolitros de gim no Sloppy’s Joe. Dessa época, além dos casamentos conturbados e viagens incessantes, é inegável que seu interesse pela caça, pesca e touradas se refletissem no seu trabalho. Foi entre Key West e Havana que ele descobriu a paixão pela pesca desportiva, que iria se transformar em temática para o resto da vida, como jornalista, e que está no ponto de partida do romance O velho e o mar (1951). E foram essas histórias que renderam a ele os cobiçados prêmios Pulitzer de Jornalismo, em 1953, e o Nobel de Literatura, em 1954. Em Key West, Pauline viveu com os dois filhos que teve com ele até sua morte, em meados da década de 1950. Para Hemingway, a casa de janelas amarelas era tão importante que, mesmo depois de se mudar para Havana, continuou a usá-la para veranear até 1961, pouco antes de morrer. Em 1960, a Revolução Cubana o forçou a sair da Habana Vieja. Voltou para os Estados Unidos com a jornalista Mary Welsh, com quem se casara em 1946 e que permaneceu com ele até sua morte. Foram viver numa ampla casa de fazenda em Ketchum, Idaho, onde, vencido pela depressão decorrente de seus problemas de saúde (hipertensão, diabetes e perda de memória), suicidou-se com um tiro de fuzil de caça, em 2 de julho de 1961.
FLÓRIDA UM COLAR DE ILHAS Na ponta da península da Flórida, entre o Atlântico, a leste, e o Golfo de México, a oeste, as Keys, vistas de cima, lembram um pedaço de colar formado de pequenas ilhas, protegidas pelo único arrecife de coral da América do Norte, e que se estende na direção do mar do Caribe e de Cuba. Assim como toda a Flórida, as Keys – antigo refúgio de piratas que os primitivos habitantes chamavam de Cayo Hueso (ilhota dos ossos) – foram colonizadas e exploradas inicialmente pelos espanhóis, que as controlaram até 1819, quando foram compradas e anexadas pelos Estados Unidos. Uns dizem que as ilhotas não são um acidente geográfico, e, sim, uma dádiva da natureza. As “contas do colar”, cercadas por um ecossistema de vegetação autóctone em que os mangues predominam, terminam em Key West, a 260 quilômetros do centro de Miami através da Overseas Highway (US-1) e suas dezenas de pontes e ilhas, numa viagem de carro que dura cerca de três horas. As Keys começam 24 quilômetros a partir da saída sul de Miami. Entre as principais, estão Key Largo (um dos melhores mergulhos da região), Islamorada (centro pesqueiro), Long Key, Marathon (homenagem aos trabalhadores da estrada de ferro, que diziam ter sido uma maratona a construção e conclusão da mesma), Big Pine Key, Sugarloaf Key,
Big Copitt Key (ideais para snorkeling e mergulho) e, enfim, Key West, além da Dry Tortugas (desabitada, com um velho forte, área privilegiada para mergulho). Entre Marathon e Big Pine, uma ponte de quase 12 quilômetros sobre o mar, a 7 Mile Bridge, descortina cenários de tirar o fôlego. A Flórida tornou-se o 27º estado americano em março de 1845. No ano seguinte, Key West já ostentava seu farol e, em 1885, contava com bondes puxados a burro. Mas só foi ganhar ares de cidade moderna em 1912, com a chegada de uma estrada de ferro financiada pelo fundador da Standard Oil, o magnata Henry Flagler. Em alguns trechos, ela ainda corre paralela à US-1, com sua estrutura danificada e enferrujada, mas ainda imponente. A ilha tem hoje apenas 25 mil habitantes, mas recebe anualmente mais de seis milhões de turistas. Para os interessados em visitá-las, é bom saber que as Keys estão entre as áreas do mundo mais atingidas por furacões, pois ficam no centro da rota das tempestades que atingem com frequência o Caribe e o sul dos Estados Unidos, principalmente entre os meses de agosto e novembro. Outra coisa: Key West é considerado um dos principais destinos turísticos do público gay na América e conta com inúmeras pousadas “GLS friendly”, que não aceitam crianças como hóspedes.
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REPRODUÇÃO
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ESPECIAL
FILMAGENS De volta a Cuba 1
1 1968 Memórias do subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea, é hoje um clássico sobre a Revolução Cubana
Num terceiro movimento, desta vez com um longa de Cecília Araújo, baseado no último capítulo do livro Memórias do desenvolvimento, de Eduardo Desnoes, o cinema aborda a história recente da “Ilha de Fidel” TEXTO Samarone Lima
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CENA 1. EXTERNA. CUBA, 1968 Em 1968, Memórias do subdesenvolvimento, um inovador filme dirigido pelo cubano Tomás Gutiérrez Alea surgiu no cenário mundial, tornando-se uma espécie de “divisor de águas no cinema latino-americano”. Inspirado no livro homônimo de Eduardo Desnoes, publicado três anos antes, o filme mostra a vida, sentimentos, reflexões existenciais e impasses de Sérgio, um acomodado locador de imóveis, em plena Havana, que especula sobre o conformismo e o subdesenvolvimento cultural. “Todo o talento do cubano se gasta em adaptar-se ao momento”, diz. O personagem escrevia nas horas livres e vagava pelas ruas de Havana, quase impassível à vertiginosa realidade, num mundo à parte. Parecia que a vitória ou fracasso da Revolução não alterariam sua vida. Não entende o sentido dela e, ao mesmo tempo,
resolve ficar. Sua família segue a grande diáspora dos cubanos rumo aos Estados Unidos. No aeroporto de Havana, em meio aos acenos e lágrimas de dezenas de famílias que se separavam, ele parece sentir um alívio indiferente. Em 2007, exilado nos Estados Unidos, Desnoes retoma sua narrativa, com a publicação de Memórias do desenvolvimento. O escritor Sérgio agora é professor, em Manhattan, e vive uma angústia mais intensa, tendo na figura de Fidel Castro parte de suas atenções. Numa de suas aulas, é questionado por alunos sobre o motivo de ter saído de Cuba. “A razão foi porque estavam me dizendo o que fazer, o que escrever e quando fazê-lo. Não posso funcionar assim.” Como já está mais velho e continua remoendo seus conflitos, Sérgio completa: “Aqui estou. Tenho liberdade total para escrever o que quero, mas não importa a ninguém”. O também cubano Miguel Coyula transformou seu romance em um filme, em 2009. Dessa vez, porém, o autor não ficou muito satisfeito com o resultado. O detalhe é que o epílogo do livro, intitulado Agora é minha vez, não foi incluído no roteiro, deixando no ar uma espécie de memória interminável. A narradora é Natália, uma jovem cubana de 25 anos, que vai em busca de Edmundo, pai que nunca conheceu. O encontro de duas gerações vai expor os conflitos que começaram na década de 1960. “O diário de Natália, filha de Edmundo, encarna a vida de um homem que viveu e desfrutou da intensidade intelectual e emocional de uma revolução no poder, e de uma mulher que sofreu o fracasso do projeto socialista de Cuba”, escreveu Desnoes, de Nova York, em 2009, na introdução da edição brasileira. Já tinham se passado 44 anos, desde a publicação do primeiro livro. “O mais grotesco e absurdo é propor às novas gerações um modelo impossível de se alcançar: ser como Che – uma frase que repetem grotescamente os meninos e as meninas em todas as escolas da ilha”, completa.
CENA 2: 15 DE ABRIL DE 2015
EXTERNA – ESTRADA, PERTO DE UM MATAGAL.
O sol está forte, o calor é intenso e há muita umidade. Estamos em um sítio a oito quilômetros do Recife. Uma equipe compacta e diligente se movimenta para a primeira gravação do dia, sob o olhar calmo e silencioso de Cecília Araújo, que dirige Te sigo, seu primeiro longa-metragem, uma adaptação de Agora é minha vez, com a participação de dois atores cubanos. São produtores, figurinista, continuísta, assistentes, maquiador, que preparam todo o aparato técnico para levar a atriz cubana Claudia Buenaventura a um lugar ermo, de difícil acesso, onde tentará encontrar seu pai. No roteiro “abrasileirado”, Sérgio, de 70 anos, desistiu dos Estados Unidos e resolveu viver seus últimos dias no interior do Brasil. O ator escolhido foi o cubano Eduardo Rodriguez. As gravações, com o apoio do Funcultura, duraram exatos 21 dias.
CENA 3 – INTERNA – CASA DE CECÍLIA. TARDE
Num dos raros dias livres, durante as três semanas de filmagem, Cecília Araújo, de 40 anos, encontra tempo e fôlego para me contar sobre os caminhos que a levaram a ser a responsável pelo último capítulo de uma trilogia de memórias que praticamente atravessa a história da Revolução Cubana. É também uma história do envolvimento de profissionais do cinema pernambucano com a Escola Internacional de Cinema e TV (AICTV), que Gutiérrez Alea ajudou a fundar, em Santo Antonio de Los Baños (leia na matéria a seguir). Cecília fez o curso regular, de 1999 a 2001, e especializou-se em produção. Foi lá que conheceu e estudou, com detalhes, o já clássico Memorias del subdesarrollo, que é usado na formação de novos profissionais de várias partes do mundo. Não imaginaria que, anos depois, se tornaria amiga do autor do livro, nem que faria um documentário sobre ele – muito menos que seria a responsável pelo encerramento de uma trilogia envolvendo literatura/cinema/Cuba. Após retornar ao Recife, sedenta
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por “replicar” tudo o que aprendera, Cecília esbarrou em um cenário ainda difícil para a produção de cinema no estado. Tentou, sem sucesso, aprovar projetos nas leis de incentivo à cultura. Resolveu “dar um tempo”. Arrumou as malas e foi para São Paulo, onde trabalhou como continuísta para séries de TV. Depois, passou para a coordenação de produção da série Os latino-americanos, da Televisión América Latina (TAL). Em 2008, soube que Edmundo Desnoes viria pela primeira vez ao
Brasil. Seria homenageado em São Paulo, pelos 40 anos de Memórias do subdesenvolvimento. Sentiu que não poderia perder a oportunidade. Decidiu que faria um documentário sobre ele. Mandou e-mail informando sobre o projeto, e pediu para acompanhá-lo, desde a chegada ao aeroporto até seu retorno a Nova York. Ele, sem mais delongas, concordou. Ela contou com a ajuda do amigo roteirista Hilton Lacerda e de Juan Lopes. Foi uma semana de filmagens. O resultado é o curta-metragem
Autor de Memórias do subdesenvolvimento, Edmundo Desnoes conta que Memórias póstumas de Brás Cubas o influenciou Bocanadas de memoria (Baforadas de memória), no qual o escritor faz reflexões sobre a diáspora cubana, a realização do filme, com Gutiérrez Alea, o ato de escrever, e a antiga paixão literária por Machado de Assis. “Quando eu era adolescente, o único escritor que me interessava era Machado de Assis, com Memórias póstumas de Brás Cubas. Gosto muito da ironia do personagem principal de Machado”, diz. “Não é por acaso que meu livro se chama Memórias do subdesenvolvimento. Tem a palavra memória e o personagem que conta a sua vida em primeira pessoa. Fragmentos da realidade que são recolhidos através das lembranças e da opinião que as lembranças têm”, completa. Edmundo gostou muito do documentário de Cecília, e ficaram amigos. Ele mesmo fez uma proposta à brasileira – adaptar o epílogo do seu último livro.
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2 SET As filmagens de Te sigo duraram 21 dias, em Camaragibe
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3 CECÍLIA ARAÚJO A diretora realizou documentário sobre Edmundo Desnoes
ENCERRAMENTO
Cecília convidou o amigo Hilton Lacerda, que já estava em outro projeto. Ele indicou Anna Carolina Francisco, que aceitou o desafio e fez o primeiro tratamento, bem fiel ao original. Depois, as duas viajaram para Nova York, onde se encontraram com Edmundo para ler e debater sobre o roteiro. “Havia uma preocupação grande que Edmundo não se sentisse traindo sua obra. Essa etapa foi muito importante para entender esse personagem e fazer algumas adaptações referentes à realidade de Cuba na época”, conta Anna Carolina. Outra preocupação era com a mudança de locação, já que o livro tem como cenário um chalé meio abandonado, nos Estados Unidos. O novo roteiro coloca pai e filha no interior do Brasil. Até o início das filmagens, as duas estavam em contato direto com o autor, dividindo as mudanças no roteiro e recebendo sugestões. A interlocução com ele ajudou também a processar a ambiguidade do personagem desse burguês que, por um tempo, acreditou que a Revolução poderia ser um caminho, mas depois se decepcionou com os dois modelos: o socialismo e o capitalismo.
DVD UM FILME DEBATIDO POR TRÊS CRAQUES DO CINEMA Nada mais oportuno. O Instituto Moreira Salles (IMS) lançou, no início deste ano, um DVD duplo de Memórias do subdesenvolvimento (R$ 49,90). Além de proporcionar aos cinéfilos um filme já considerado clássico (houve uma edição nacional anterior, pela Videofilmes, hoje fora de catálogo), o produto veio com alguns extras que ajudam a compreender a conjuntura de Cuba, em pleno fervor revolucionário dos anos 1960. Um deles é o Cine-Revista, que era exibido como atração principal nas sessões de cinema em Cuba, a partir de 1956, até a Revolução, em 1959. O público assistia a esquetes de humor, notas informativas, reportagens sobre algum tema, intercalados por propagandas de produtos como Leite
“O encontro dele com a filha, de certa forma, é também uma metáfora da relação de Edmundo com seu passado, com o resultado de suas utopias”, diz Carolina. Te sigo nasce envolto em um certo fascínio. Inspirado em uma novela escrita por um cubano, com apenas dois atores (também cubanos), todo falado em espanhol, encerrando um ciclo histórico da ilha, e de memórias que seguem sendo reencenadas. Como a história parece serpentear à procura de novas metáforas, uma
Moça ou Molho de Tomate Libby’s. Tomás Gutiérrez Alea foi diretor-técnico do Cine e chegou a realizar alguns números. Mas o prato principal (além do filme original de 1968, claro) é uma edição completa do Memórias, comentada em off pelos cineastas Walter Salles, Nelson Pereira dos Santos e Eduardo Coutinho. As primeiras cenas surgem, e uma a voz grossa avisa: “Eu sou Nelson Pereira dos Santos e vim, junto com Walter Salles e Eduardo Coutinho, assistir ao filme e bater um papo com vocês”. É como uma mesa-redonda envolvendo três craques do cinema, para comentar uma obra-prima que eles admiram profundamente. Os diálogos são imperdíveis. É comum um cineasta perguntar ao outro o que acha de tal cena, que recurso deve ter sido utilizado, se aquilo estava no roteiro original, qual a lente que está sendo usada. “As cenas iniciais parecem com a de um documentário, não é, Coutinho?”, comenta Walter Salles. “É, mas é tudo encenado.” “A força do filme vem de uma relação constante entre ficção e realidade, não é? Entre o documentário e aquilo que é criado pelo Alea”, prossegue Salles. Ao ser instigado a comentar sobre a cena do embarque de cubanos para o exílio, no Aeroporto José Martí, Nelson Pereira resume com uma explicação bem objetiva: “Eu acho que é um bom trabalho de assistente de direção”. Algumas reflexões ajudam a entender melhor o contexto e enriquecem o arsenal cultural em torno da empatia que existiu entre Edmundo Desnoes e Gutiérrez Alea. “O filme é baseado no livro do Edmundo Desnoes, e não era esse o título. Chamavase Memórias inconsoláveis. Tinha vindo de uma frase do filme, Hiroshima, meu amor, de Alain Resnais, que dizia: ‘Eu sempre desejei ter uma memória inconsolável’”, diz Walter Salles. Uma obra-prima que eles admiram profundamente.
doce ironia atravessou as filmagens. No dia 11 de abril, enquanto toda a equipe estava praticamente incomunicável, nas filmagens, houve o primeiro encontro entre os presidentes dos Estados Unidos e de Cuba, em mais de 50 anos. Na Cúpula das Américas, realizada na Cidade do Panamá, Barack Obama e Raúl Castro conversaram e deram as mãos. “A guerra fria acabou”, disse Obama. Mas a história mostra, também, que guerras nem sempre acabam com decretos.
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4 ADELINA PONTUAL Continuísta de Te sigo, ela foi a primeira dos cineastas locais a buscar formação em Cuba
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INTERCÂMBIO A “escola dos pernambucanos”
Desde os anos 1980, com a redemocratização, profissionais do estado buscam especialização na Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba
Profissionais que fazem parte
da cadeia produtiva do cinema pernambucano buscam, desde a década de 1980, intercâmbio com a Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba, para fazer cursos e oficinas. Alguns já voltaram à ilha para dar aulas. Só na equipe de filmagem de Te sigo, eram quatro profissionais de áreas diferentes, todos com formação em Cuba: Cecília Araújo (diretora), Adelina Pontual (continuísta), João Malaquias (diretor de fotografia) e Moab Filho (técnico de som).
Uma das precursoras desse intercâmbio é a diretora e continuísta Adelina Pontual, de 49 anos. No final de 1987, formada em Comunicação Social, tinha trabalhado no primeiro curta do cineasta Cláudio Assis, o doc-ficção Henrique. Sem muita opção no mercado local, resolveu tentar um mestrado em um dos únicos cursos de Cinema que o Brasil oferecia na época, na Universidade de Brasília. Pediu a um amigo dessa cidade para ver se tinham aberto o processo de seleção, mas a notícia que
ele lhe deu foi surpreendente – a Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba estava oferecendo sua segunda turma, e as inscrições estavam abertas no Brasil. O amigo a inscreveu. Adelina conta que foi com a cara e a coragem. Provas de conhecimentos gerais, sobre cinema e, se passasse, uma entrevista final. Foi a única pernambucana aprovada para o curso regular, que dura três anos, junto a outros dois brasileiros. Na volta da seleção, a difícil missão de avisar ao pai, um “direita juramentado”, que iria para Cuba. “Vai para a Ilha de Fidel? Cuidado”, foi a resposta dele. Em janeiro de 1988, ela chegou à instituição, em San Antonio de Los Banõs, onde passaria seis meses de experiência, “para ver se dava para a coisa”. Logo descobriu sua ignorância sobre a América Latina, sua cultura, literatura. Mas deu sorte. Na formação, fez um seminário com toda a obra do diretor Tomás Gutiérrez Aléa – com ele presente. Ficou três anos e meio, voltando ao Brasil uma vez por ano, para as férias. Especializou-se em montagem, mas sempre teve fascínio pelo trabalho de continuísta. “Isso foi graças à Escola”, diz, fazendo referência à professora da cátedra de Edição, uma francesa, que tinha uma máxima – “quem vai montar tem que ir para o set, fazer continuidade, para aprender o que deve e não deve ser feito”. Desde que voltou ao Brasil, trabalhou em 25 filmes como continuísta, dirigiu outros 12 e fez sete séries para TV. Em 2005 e 2006 voltou à instituição cubana, então como professora das disciplinas Assistente de Direção e Continuidade e Assessoria de Exercícios Práticos. Vários outros profissionais seguiram para estudos na Escola Internacional de Cinema e TV, já se constituindo aí uma “escola cubana” de Pernambuco. Entre os diretores, Andréa Ferraz, Tuca Siqueira, Camilo Cavalcante, além de diretores de fotografia, como Jane Malaquias e profissionais de várias áreas do cinema, como Moabe Filho, Catarina Apolônio e Rafa Travassos (som) (SL)
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DIÁSPORAS Os enraizados e os que partiram
Reencontro de pai e filha em Te sigo sintetiza a realidade para muitos cubanos na deflagração da Revolução, em que famílias foram separadas
“Minha mulher, Lucía, começou a chorar com a notícia. Lucía nasceu em dezembro de 1959. Seu pai emigrou para os EUA quando ela era jovem demais para guardar uma lembrança dele. E Lucía não voltou a vê-lo.” Assim, num parágrafo curto, que circulou pelo mundo, o jornalista e escritor cubano Leonardo Padura descreveu o dia 17 de dezembro de 2014, quando, pela primeira vez, em 53 anos de hostilidades, os governos dos EUA e de Cuba retomaram relações diplomáticas.
O drama de Lucía é semelhante ao de milhões de cubanos que vivem uma diáspora perpétua, que atravessa gerações. Há aproximadamente dois milhões de cubanos só nos Estados Unidos. Lucía não lembra seu pai porque ele nunca retornou a Cuba, naqueles anos 1960 e 1970, de plena Guerra Fria. Quando ela conseguiu viajar aos Estados Unidos, somente nos anos 1990, ele tinha morrido. “Lucía chorou hoje por seu pai perdido, por ela e seu amor encerrado
em si mesmo, por tantas histórias tristes que vivemos. Mas chorou também pela ilusão de que, a partir de hoje, essas histórias nunca voltem a se repetir.” Talvez seja por isso que o filme Te sigo, recentemente gravado em Pernambuco, com direção de Cecília Araújo, tenha se tornado uma espécie de sismógrafo do que vem acontecendo em Cuba. O cinema, ao longo de décadas, vai transformando em arte o que uma sociedade vive, sofre, projeta e sonha. No longa, inspirado no último capítulo de Memórias do desenvolvimento, Sérgio, o personagem principal, já está velho, decadente, e veio terminar seus dias no Brasil. Deixou em Cuba uma mulher grávida (Caridad), que, a exemplo de Lucía, nasceu e cresceu sem a presença paterna. O encontro de pai e filha, no começo, é difícil, quase hostil. O pai reluta em aceitá-la, até que ela diz o motivo de ter saído de tão longe para uma busca da própria alma: “Vim porque necessitava de algo meu, algo que de todo modo considerava impossível. Necessito de um pai”. Eles vivem apenas 35 dias juntos, mas
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o suficiente para que todos os remendos fossem feitos, para que o amor fosse finalmente incorporado como algo real. Pai e filha se encontram, em outro país, e refazem os caminhos. Nos diálogos, muitas vezes atravessados de silêncios, o pai explica à filha o motivo de nunca ter dito nada sobre seu plano de fuga. Tinha medo de que a mãe, ligada ao aparato repressivo cubano, o denunciasse. Seu plano era aproveitar uma viagem à Bienal de Veneza e não voltar. Fez tudo em sigilo. Deixou tudo para trás. Conseguiu, mas arrastou uma espécie de “solidão cubana” por toda a vida, como se tivesse perdido o calor, a temperatura e os vínculos com sua terra. Numa história paralela (que aparece com eloquência em Memórias do desenvolvimento), Sérgio precisa explicar à filha o que tem dentro de uma urna que está em sua casa. São as cinzas do irmão que morreu, também no exílio. A resposta à pergunta da filha é curta, ao contrário das grandes dores: “Pablo. Meu irmão”. A única paixão de Pablo era o cinema. Seu primeiro documentário, intitulado A praia, enfocava as atividades de um dia, desde o amanhecer, até o pôr do sol. Foi denunciado como “contrarrevolucionário” e “escapista”, num momento em que a realidade social
“exigia o compromisso consciente”. Além disso, era homossexual, um defeito grave para a Revolução, que criou inúmeras “granjas de reabilitação”. Além de ter se negado a pedir desculpas ao Estado pelo “escapismo”, seu relacionamento com um homem casado também foi descoberto. “Pablo não podia suportar um regime que não tolerava os homossexuais, dizia que isso invalidava por completo a revolução”, conta Sérgio à filha. “Ele se foi por medo, eu fiquei por ambição.” Os irmãos só se encontrariam 20 anos depois, em Veneza.
UMA SÓ ÁRVORE
No documentário sobre Edmundo Desnoes, de Cecília Araújo, uma das primeiras cenas enquadra o autor de Memórias do subdesenvolvimento falando sobre as qualidades de um charuto. Em seguida, passa a explicar a existência de “dois tipos de cubanos” – os que se foram para o exílio e os que ficaram. “Os que ficaram estão enraizados. Os que se foram são os ramos e as folhas, que estão sujeitos às chuvas, às intempéries. O cubano é como a diáspora. Metade vive no país, metade vive no exterior”, diz. Ele se define como a parte dos ramos e das folhas que, quando volta a Cuba, está novamente tocando as raízes. Por
isso, ele acredita que deveria haver menos hostilidade entre os que ficaram e os que se foram – todos fazem parte da mesma árvore. Mas ele é um dos casos incomuns de cubanos que podem, por sua relevância cultural, entrar no país e sair dele, quando querem. Desnoes pode até exagerar nos números (em Cuba, vivem 11,2 milhões de pessoas e, no exterior, estão dois milhões), mas a divisão que isso provoca, é brutal. E os desafios para o futuro serão imensos. Os que se foram têm muita raiva do que perderam (vínculos familiares, propriedades, parte de suas vidas em outro país). Os que ficaram, de certa forma, enfrentaram tempos duros, viveram grandes crises na economia, de abastecimento. A árvore passou por muitas podas. Um exemplo desse confronto aconteceu na Cúpula das Américas, realizada no começo de abril. De um lado, o ministro de Comércio Exterior de Cuba, Rodrigo Malmierca Díaz, circulava com uma brochura colorida de 180 páginas, mostrando aos empresários as vantagens de investir em Cuba. Uma sinalização de que a árvore quer se desenraizar um pouco do socialismo e avançar no capitalismo. Paralelo ao evento com as
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
Página 53 5 TE SIGO
Filme trata do reencontro de pai e filha, tendo atores cubanos no elenco
Nestas páginas 6 LEONARDO PADURA
Jornalista e escritor tem abordado a reaproximação entre Cuba e os EUA
7 CÚPULA DAS AMÉRICAS Raúl Castro e Barak Obama em momento histórico
7
cúpulas dos governos, era realizado o Fórum da Sociedade Civil. Neste, dava para perceber o tamanho do desafio cubano para integrar as raízes e as folhas. Quatro oficinas foram suspensas por bate-bocas, gritos, socos, tapas, envolvendo apoiadores do regime e opositores, em pleno Parque Porras, na Cidade do Panamá. De um lado, os opositores ao regime gritavam “assassinos” contra os apoiadores do regime. De outro, uma palavra que ficou conhecida, em Cuba, para se referir aos que deixaram a ilha: gusanos. Tradução? Vermes. Os dissidentes acusavam a Cúpula de ser “ambígua e complacente”, ao colocar Cuba no centro das atenções, enquanto as perseguições internas continuavam firmes. Um dos pontos do acordo inicial entre Obama e Raúl Castro previa a libertação de 53 presos políticos, que já foram soltos.
“TIO MIN”
Pouco tempo depois do histórico acordo entre os dois países, o escritor Leonardo Padura resgatou mais de sua história familiar. Lembrou do “Tio Min”, que se despediu da família, em Havana, numa tarde de 1968. Foi para o exterior, alimentar a diáspora. “As pessoas que deixavam Cuba para viver nos Estados Unidos não
Em Cuba, há palavras ambíguas para definir o novo status das relações pós-embargo, como investidores, para os querem voltar poderiam voltar, pois perderiam tudo: seus bens, sua cidadania, sua pátria. Elas retornariam apátridas naquele momento, e o tio Min nunca voltou ao país”, diz o escritor, em um texto publicado no jornal Folha de S.Paulo. No auge da Guerra Fria, na década de 1960, sair do país era uma ofensa. Ninguém deveria ter qualquer tipo de relacionamento com pai, mãe, irmão ou parentes de quem “ousava” partir. “O filho exilado era uma atitude contrária aos princípios revolucionários e, portanto, inadmissível.” Ou seja – a decisão de partir implicava uma ruptura irreversível na família. Ela seria definitiva, até que o regime caísse. O regime seguiu firme e o tio Min nunca mais retornou. Até hoje, quem permanece dois anos fora de Cuba é classificado como “imigrante” e condenado a perder os direitos de cidadania e nacionalidade.
Muitos processos da Revolução Cubana têm palavras ambíguas para explicar situações confusas. Os que foram embora, ao longo dessas décadas, os gusanos, agora podem voltar. Desde que tenham dinheiro para investir no país. Há um nome para isso: investidores. Graças à “Lei de Investimento Estrangeiro”, aprovada pelo legislativo cubano, qualquer cidadão de origem cubana que vive no exterior pode retornar ao país para “investir, fazer negócios e obter lucros”. “A condição fundamental para fazê-lo é que tenham triunfado em alguma parte do mundo e disponham de capital suficiente”, informa Padura. A contradição essencial, e essencialmente cubana, é que os que foram embora, batizados ferozmente de gusanos, agora têm um tratamento especial. Só podem se tornar “investidores” os cubanos que deixaram o país. Padura toca num ponto crucial: a lei não dá espaço aos cubanos que permaneceram, apegados à sua terra e que resistiram a todas as adversidades de seu país. “O máximo a que podem aspirar os cubanos de Cuba é ter um restaurante, um táxi ou uma oficina para conserto de celulares”, completa. A própria denominação – os cubanos de Cuba – mostra que refazer os laços destruídos pela diáspora vai ser uma tarefa de muitos anos, num país em que a passagem do tempo parece andar por outro relógio, outro calendário. Os 90 quilômetros que separam Havana de Miami, na Flórida, onde se concentra a maior parte dos dois milhões de cubanos migrantes, se feitos de avião, duram 18 minutos. Quantos beijos, abraços e lágrimas estão à espera, há décadas, por esses poucos minutos? SAMARONE LIMA
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MULHER COMENDO BANANA, DE FERNANDO BOTERO/REPRODUÇÃO
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DIETA Produtos naturais à frente, sempre
Diante da obesidade crescente no país, que atinge metade dos adultos e um terço das crianças, guia alimentar brasileiro sugere alimentos in natura e contraindica industrializados TEXTO Renata do Amaral
Carboidratos na base , gorduras no topo. A velha pirâmide de orientação nutricional está com os dias contados, no que depender da nova versão do Guia alimentar para a população brasileira. A cartilha elaborada pelo Ministério da Saúde vem sendo elogiada, inclusive internacionalmente, por defender escolhas baseadas não em nutrientes, mas, sim, na quantidade de processamento dos alimentos: a recomendação é priorizar alimentos in natura ou minimamente processados e passar o mais longe possível dos alimentos ultraprocessados. A mudança é mais significativa do que pode parecer à primeira vista. No documentário brasileiro Muito além do peso, digirido por Estela Renner, é possível ver crianças que não sabem diferenciar uma batata de uma berinjela, mas conhecem todas as marcas de salgadinhos disponíveis no mercado. Levar uma banana para lanchar na escola? Nem pensar. O filme sugere que os alimentos ultraprocessados tragam imagens explicativas sobre seus riscos, da mesma forma como já acontece com as embalagens de cigarros. Distribuído gratuitamente e disponível na internet, o guia criado pela Secretaria de Atenção à Saúde busca atender a uma nova demanda, causada por mudanças no padrão alimentar da população brasileira. Segundo a cartilha, metade dos adultos e um terço das crianças está com excesso de peso no país,
o que pode aumentar o risco de doenças crônicas como hipertensão, cardiopatias e câncer. A desnutrição já não é uma ameaça tão grande, mas surge o desafio de ajudar as pessoas a fazerem boas escolhas alimentares – o que não quer dizer “fazer dieta”. A cartilha parte do princípio de que a alimentação é mais que ingestão de nutrientes, buscando levar em conta as dimensões culturais e sociais das práticas alimentares. Também considera a importância de um sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável, além de respeitar padrões tradicionais de alimentação transmitidos ao longo de gerações. A ideia é levar conhecimento para que os leitores tenham autonomia na hora de escolher. O material ficou em consulta pública e teve 3.125 contribuições de 436 indivíduos e instituições.
TIPOS DE ALIMENTOS
São quatro as categorias propostas pelo guia. A primeira delas, os alimentos in natura ou minimamente processados, aqueles obtidos da natureza sem passar por alteração posterior ou passando por alteração mínima. É o caso, por exemplo, de cortes de carne resfriados ou leite pasteurizado. Como tendem a se estragar rapidamente, sofrem essas pequenas alterações, para que tenham seu consumo prolongado. Esse tipo de alimento deve ser a base da alimentação, levando
em conta razões biológicas, culturais, sociais e ambientais. Os produtos extraídos de alimentos in natura ou diretamente da natureza, que são usados para temperar ou cozinhar, são a segunda categoria, da qual fazem parte produtos como óleos, gorduras, açúcar e sal. Eles devem ser usados em pequenas quantidades. Quando seu consumo é exagerado, podem ocasionar diversos problemas de saúde, tais como colesterol alto, diabetes, hipertensão e obesidade. “Seu impacto sobre a qualidade nutricional da alimentação dependerá essencialmente da quantidade utilizada nas preparações culinárias”, afirma o guia. A terceira categoria dos alimentos processados inclui produtos fabricados com a adição de sal ou açúcar a um alimento in natura ou minimamente processado, como legumes em conserva, frutas em calda, queijos e pães. Nesse processo, sua composição nutricional é prejudicada. O consumo dessa terceira categoria deve ser limitado. O ideal é usá-la em pequenas quantidades, seja como ingrediente de preparações (como é o caso das carnes salgadas adicionadas ao feijão), seja como parte de uma refeição baseada em alimentos da primeira categoria. Por fim, a quarta categoria engloba alimentos ultraprocessados, cujos rótulos costumam incluir ingredientes de uso exclusivamente industrial. São refrigerantes, biscoitos recheados, salgadinhos de pacote e macarrão instantâneo, entre outros
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ALLA MALLEY/DIVULGAÇÃO
1 MICHAEL POLLAN Guia faz referências ao livro Regras da comida, do jornalista norte-americano 2-3 MUITO ALÉM DO PESO Documentário demonstra a relação entre publicidade e máalimentação
Cardápio
para que sejam extremamente saborosos, quando não para induzir hábito ou mesmo para criar dependência. A publicidade desses produtos comumente chama a atenção, com razão, para o fato de que eles são ‘irresistíveis’”. No documentário citado, uma garota afirma que não dá para comparar uma fruta a um salgadinho.
HÁBITOS
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itens que devem ser evitados. “As formas de produção, distribuição, comercialização e consumo afetam de modo desfavorável a cultura, a vida social e o meio ambiente”, denuncia o documento. E não vale ser light ou diet: mesmo bebidas com adoçantes artificiais levam esse rótulo. Não é difícil identificar os ultraprocessados: têm um grande número de ingredientes em sua composição (cinco ou mais) e muitos deles levam nomes estranhos como óleos interesterificados, xarope de frutose, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes ou realçadores de sabor. Além disso, muitas vezes são comidos ao longo do dia e deixam a pessoa de barriga cheia na hora das
Como não busca prescrever, mas orientar, a cartilha apresenta algumas opções de refeições saudáveis refeições de verdade. Sua composição nutricional é desbalanceada, as porções são grandes e são propícios a serem comidos em frente da TV. Outra característica dos ultraprocessados é o hipersabor: “Com a ‘ajuda’ de açúcares, gorduras, sal e vários aditivos, alimentos ultraprocessados são formulados
Apesar de haver uma tendência de aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, arroz e feijão ainda correspondem a quase um quarto da alimentação no país, segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre maio de 2008 e maio de 2009. Feita especialmente para a elaboração do guia, a POF reuniu informações sobre hábitos alimentares dos brasileiros, perguntando sobre o que haviam comido na véspera e no dia da enquete. Como não busca prescrever, mas orientar, a cartilha mostra algumas refeições exemplares citadas. O café da manhã pode conter tapioca, café com leite e banana. O almoço vem com alface, tomate, feijão, farinha de mandioca, peixe e cocada. O jantar inclui salada de folhas, macarrão e galeto. Há dicas de como preparar os ingredientes por grupo, sem ênfase alguma nas calorias. “O controle do peso corporal (não a contagem de calorias) é uma forma simples e eficiente para saber se a quantidade de alimentos consumida está adequada”, explica o documento. Tão importantes quanto as categorias propostas são as ações ligadas ao ato de comer defendidas pela cartilha: comer com regularidade e atenção
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(não desviar o olho da tela do celular é um passo para comer mais do que se deve), em ambientes apropriados e em companhia. “Seres humanos são seres sociais e o hábito de comer em companhia está impregnado em nossa história, assim como a divisão da responsabilidade por encontrar ou adquirir, preparar e cozinhar alimentos”, afirma. “Dessa forma, comer é parte natural da vida social.” As orientações são válidas, mas colocá-las em prática pode ser um desafio. As dificuldades também são listadas no guia: informações desencontradas na mídia, ampla oferta de ultraprocessados, custo alto de alguns alimentos frescos, falta de habilidades culinárias, escassez de tempo e influência da publicidade, principalmente sobre as crianças. Para combater esses perrengues, a cartilha sugere ao leitor comprar produtos dentro da safra e se organizar para congelar alimentos para a semana inteira, dentre muitas outras sugestões. O desafio mais importante, porém, talvez seja fazer as pessoas encararem a cozinha. “O processo de transmissão de habilidades culinárias entre gerações vem perdendo força e as pessoas mais jovens possuem cada vez menos confiança e autonomia para preparar alimentos”, lamenta o guia.
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Aqui, vale a máxima da apresentadora Rita Lobo, em episódio do programa Cozinha Prática, do canal GNT: “Cozinhar é como ler e escrever: todo mundo tem que saber”. Sem ter ideia do que vai nas panelas, fica difícil assumir as rédeas da própria alimentação.
ORIENTAÇÕES
O guia alimentar tece um estreito diálogo com a obra do jornalista norte-americano Michael Pollan, cujo livro Regras da comida: um manual da sabedoria alimentar virou um dos
mais vendidos nos Estados Unidos. “Apesar de chamá-las de regras, penso nelas menos como leis fixas que como políticas pessoais. Políticas são instrumentos úteis. Em vez de receitar comportamentos altamente específicos, elas nos dão diretrizes amplas que deveriam facilitar e agilizar nossas tomadas de decisão no dia a dia”, escreve. São 64 regras distribuídas nas três seguintes seções: “coma comida”, “principalmente vegetais” e “não em excesso”. Apesar da
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SALA DE JANTAR, DE FERNANDO BOTERO/REPRODUÇÃO
Cardápio aparente tautologia, pedir aos leitores que comam comida faz sentido, quando surgem 17 mil produtos nos supermercados a cada ano, muitos deles contendo “substâncias comestíveis com aparência de comida”, nas palavras do autor. Como o ser humano tem preferências por açúcar, gordura e sal, essas substâncias valorizam tais ingredientes para causar algo bastante próximo de um vício. “Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida” é uma das regras que resume essa ideia. “Se a sua bisavó foi péssima cozinheira ou péssima para comer, você pode substituí-la pela avó de alguém – uma siciliana ou francesa funcionam particularmente bem”, sugere. Outra das recomendações é não ingerir nada que contenha ingredientes cujo nome uma criança em idade escolar não consiga pronunciar. Como são listados em ordem de quantidade, produtos com açúcar ou adoçante, entre os três primeiros ingredientes devem ser evitados. Os melhores alimentos são aqueles que apodrecem – os altamente processados têm vida útil bem maior, mas fazem mal. Adjetivos como light, com baixo teor de gordura ou sem gordura também
O que se propõe é um retorno a um saber empírico sobre o comer, distante da indústria alimentar são indesejáveis, pois compensam essa falta com outros elementos tão ruins quanto. Desconfiar de produtos que fazem propaganda de comida saudável é outra dica, assim como evitar alimentos que fingem ser o que não são. “Não interprete o silêncio dos inhames como um sinal de que eles não têm nada de importante a dizer sobre sua saúde”, brinca. Independentemente da adesão ou não a uma dieta vegetariana, Pollan cita pesquisas que indicam que os vegetais devem ser prioridade na alimentação. A carne deve funcionar como um ingrediente extra ou ser usada em ocasiões especiais. E ser bem-selecionada: melhor optar por peixes pequenos e repletos de gorduras boas, como a sardinha, do que por grandes atuns cheios de mercúrio. A quantidade também é ressaltada: uma das recomendações para equilibrar o bolso é pagar mais
por ingredientes de boa qualidade, mas comer porções menores. A convivência à mesa é ressaltada: é preciso passar o mesmo tempo curtindo uma refeição que o investido em prepará-la, não comprar seu combustível no lugar em que compra o de seu carro, só comer à mesa (não vale escrivaninha) e tentar não comer sozinho. Cozinhar é indispensável: “Cozinhar para si mesmo é a única maneira segura de retomar o controle da sua dieta – hoje, em poder dos cientistas e dos processadores de alimentos – e garantir que está comendo comida de verdade, e não substâncias comestíveis com aparência de comida”. Na prática, o que se propõe, aqui ou lá, é um retorno a um saber empírico sobre o comer, distante da indústria alimentar. “Quem come de acordo com as regras de uma cultura alimentar tradicional geralmente é mais saudável que os que comem uma dieta ocidental moderna de alimentos processados.” Embora todas as regras também precisem ser quebradas de vez em quando. “‘Tudo com moderação’, diz-se com frequência. Nunca deveríamos esquecer o sábio acréscimo, às vezes atribuído a Oscar Wilde: ‘inclusive a moderação’”, conclui Pollan.
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ARYELLA LIRA/DIVULGAÇÃO
Cordel do amor sem fim Espaço O Poste Estreia dia 29, às 20h De maio a ago, sex a dom. R$ 20,00 e R$ 10,00
Palco
MONTAGEM No balanço do rio
Peça Cordel do amor sem fim, encenada pelo grupo O Poste, propõe apresentações experimentais dentro de um barco atracado no Capibaribe TEXTO Guilherme Novelli
“Deus separou o claro do escuro,
separou o mar da terra, separou o macho da fêmea, separou o bem do mal e, se Deus já começou separando, quem sou eu pra falar de união? Mas digo que o homem é bicho que nasceu pra ficar tudo junto”, começa o Contador, introduzindo ao público o Cordel do amor sem fim, peça da baiana Cláudia Barral, encenada pelo grupo de teatro recifense O Poste, sob direção de Samuel Santos. A peça, que já ganhou diversos prêmios em festivais pelo país, reestreia dia 29 deste mês, às 20h, no Espaço O Poste (Rua Aurora, 529, Santo Amaro, Recife), às margens do Capibaribe. É a história de três irmãs, Tereza, Carminha e Madalena, que moram numa cidade ribeirinha chamada Carinhanha, divisa entre Bahia e Minas Gerais. No dia em que José pediria a mão de Tereza, a mais nova, ela vai até o cais do Rio São Francisco comprar farinha e conhece um forasteiro chamado Antônio, ficando
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FICHA TÉCNICA Texto: Cláudia Barral Encenação e Cenografia: Samuel Santos Produção e realização: O Poste – Soluções Luminosas Atores: Agrinez Melo, Naná Sodré, Suelayne Ramos de Araújo e Madson Paula Músico: Diogo Lopes Preparadora Vocal e Fonoaudióloga: Theonila Barbosa Figurino: Agrinez Melo Programador Visual: Java Araújo e Samuel Santos
perdidamente apaixonada. O forasteiro embarca no vapor que o tinha trazido, dizendo que voltaria para casar com ela. Todos os dias, a partir daí, Teresa vai esperar por Antônio no mesmo horário, no mesmo local onde se conheceram. E ele não volta. Passam-se dias, meses, anos, e o amor de Teresa não esmorece. No processo de espera, de tempo, de amor, ela começa a enlouquecer. A cidade então comenta a sua loucura. De tanto esperar, acaba virando uma pedra às margens do São Francisco. O Capibaribe e o São Francisco são rios irmãos, em termos de importância e de imaginário poético. “Tivemos a oportunidade de levar o espetáculo a várias cidades que são banhadas pelo São Francisco. Percebemos a importância dele. Era como se fosse, realmente, o coração da cidade. É o que pulsa, faz viver, alimenta, dá respiração, assim como o Capibaribe, que corta toda a cidade do Recife indo até os interiores
de Pernambuco. Desse rio se tira muito. Famílias sobrevivem com a pesca, o turismo, passeios de barco”, conta o diretor Samuel Santos. No projeto atual, patrocinado pelo Funcultura, o grupo realizará apresentações dentro de um barco no meio do Capibaribe. “O espetáculo irá se adaptar a outro espaço, com outras marcações de cena, dentro do barco. Faremos o espetáculo no meio da noite, no rio. Também o apresentaremos ao ar livre, às margens do Capibaribe, pois queremos viver esse rio em suas potencialidades”, continua. O Espaço O Poste, onde serão feitas as demais apresentações, fica a 10 metros do rio. “Na Bahia, em todas as cidades que são rodeadas pela seca, o rio acaba sendo a veia econômica da cidade. Em Carinhanha, é exatamente isso que acontece. Muitas das relações da cidade se dão através do rio. Ele atravessa a cidade. Isso marca as pessoas de lá. Há diversas referências a ele, principalmente na obra poética”, conta Cláudia Barral, autora da peça.
O CASO DE TEREZA
A história de Tereza é baseada em fatos. Uma das versões conta que ela conheceu um turco, no cais, que lhe disse que voltaria pra buscá-la. Diante de sua espera, a população começa a tachá-la de louca. Até que, quatro anos depois, o estrangeiro volta. Os dois se casam, têm filhos. Na versão de Cláudia Barral, não há final feliz. A peça transita do riso, no início do texto, para uma tristeza lúgubre, da angústia da espera, da loucura. “Essa história é bem antiga. Aconteceu na década de 1940. Ao mesmo tempo, é algo atávico. O feminino enquanto passividade, espera. Investigar a força que existe por
trás desse arquétipo tem tudo a ver com o texto e é o diálogo que a montagem do Samuel propõe”, define a dramaturga. A versão de Claudia talvez combine mais com uma segunda versão dessa história popular, em que os senhores de idade de Carinhanha contam até hoje. Dizem que Tereza foi filha do prefeito da época e se apaixonou por um índio. O pai, com vergonha, mantém a moça trancada e ela enlouquece. Em termos da dramaturgia, a peça mistura referências bastante próprias do Nordeste, como a presença de cordelistas, narradores, contadores de histórias, violeiros, que eram vistos antigamente nas feiras da região. “A peça tem a característica desse tipo de história que passa de boca em boca, comum ao nordestino. Por isso, também, que a palavra cordel vai no título da peça”, explica a dramaturga, que lembra que as apresentações contarão com versão em libras. Teresa enlouquece ao longo do espetáculo. A plateia acompanha a espera e a loucura dela por amor. “O público acha que é tudo ilusão da cabeça dela, que esse amor nunca existiu, que essa pessoa é irreal, mas ele não é. E Teresa continua no cais do rio São Francisco, até virar uma pedra”, comenta Samuel.
ENCENAÇÃO
O Poste tem uma relação com o teatro físico, em que o trabalho corporal é bastante acentuado. Trabalha essa referência dentro do Expressionismo, da distorção do “eu”, representada na fisicalidade dos atores, emergindo daí o grotesco. A pesquisa vocal acompanha o trabalho corporal, fugindo completamente do registro naturalista. “A intenção é, justamente, fugir do clichê, do tradicional. Quando se fala em cordel, em teatro popular, existe esse estereótipo dos figurinos com sandálias de couro, roupa de chita, o violeiro cantando. Montamos esse espetáculo em outra dimensão”, ressalta o diretor. O texto norteou as pesquisas do grupo. “A partir do Cordel do amor sem fim, enveredamos pela pesquisa do corpo ancestral, primitivo, aquele que se deforma, vem de outra dimensão e invade a nossa, transformando a relação tempoespaço”, conclui Samuel Santos.
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DAVID POLSTON/DIVULGAÇÃO
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INSTRUMENTAL A “cozinha” mostra sua força
A percussão erudita vem ganhando mais espaço nas obras do gênero e inspirando músicos de variados estilos musicais TEXTO AD Luna
Início do século passado. Escrita
por encomenda e de maneira despretensiosa pelo autor, uma determinada peça erudita viria a se tornar um hit planetário. São cerca de 17 minutos, nos quais um único padrão rítmico se repete (ostinato, em linguagem técnica), exigindo grande concentração dos percussionistas. A
caixa clara – tambor de tonalidade mais aguda, presente nas modernas baterias de bandas de jazz, rock, pop, entre outros estilos contemporâneos – dá início ao tema, com uma intensidade levíssima. Instrumentos de sopro entram e, daí em diante, em meio a poucas variações, a dinâmica segue num crescendo arrebatador,
hipnótico. Há quem sinta um misto de sensações contraditórias, como desespero e alívio, ao ter contato com a composição mais famosa do autor francês Maurice Ravel (1875-1937): Bolero. Diversas obras de mestres mais antigos, a exemplo de Beethoven, Mozart, Bach, já contavam com intervenções percussivas. Porém, ainda pouco ostensivas. O russo Igor Stravinsky coloriu sua grandiloquente Sagração da primavera (1913) com o som de tambores, pratos e outros efeitos. “Mas é com o Bolero de Ravel que a percussão assume, pela primeira vez, o papel de protagonista em uma composição erudita”, pontua Marlos Nobre, o renomado compositor e atual maestro da Orquestra Sinfônica do Recife (OSR). Criada a pedido da dançarina Ida Rubinstein, a peça estreou em 22 de novembro de 1928, na Ópera Garnier, em Paris.
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STEWART COPELAND Baterista da extinta banda The Police compõe para orquestras, óperas, balés e filmes
Durante o desenrolar do século 20, ocorreu o que Nobre chama de “explosão da percussão”. Pouco a pouco, mais compositores foram acrescentando instrumentos percussivos em suas obras, tornandoos elementos essenciais em conjuntos eruditos. Dentre os europeus, Marlos Nobre destaca os franceses Darius Milhaud e Pierre Bouliz – o qual, inclusive, completou 90 anos no dia 26 de março. As percussões africanas, trazidas pelos escravos, influenciaram composições dos norte-americanos George Gershwin, Leonard Bernstein e Aaron Copland. Este último, apesar da semelhança do sobrenome, não tem ligações com o baterista da banda inglesa The Police. No entanto, é possível afirmar que os dois mantêm, sim, algum nível de parentesco, só que musical; visto que Stewart Copeland também compõe peças eruditas para orquestra, ópera, balé, além de trilhas sonoras para filmes. São dele as criações musicais que permeiam as cenas de O selvagem da motocicleta (1983) e Wall Street (1987), ambos de Francis Ford Coppola. Dentre seus trabalhos eruditos mais impressionantes, destaca-se justamente um dos mais recentes. Stewart Copeland escreveu concerto baseado no filme épico e silencioso Ben Hur: a tale of the Christ, dirigido pelo norte-americano Fred Niblo e lançado em 1925. A execução que marcou a estreia do concerto aconteceu em 19 de abril do ano passado, durante o Virginia Arts Festival in Norfolk, nos Estados Unidos. Na ocasião, o clássico do cinema mudo foi exibido em uma versão editada de 90 minutos (a original tem 143), com uma orquestra conduzida pelo maestro Richard Kaufman. Como é natural inferir, a peça contém grande espaço para instrumentos percussivos tradicionais, além da bateria. Copeland participou da première internacional tocando tanto bateria quanto os tradicionais instrumentos percussivos.
INFLUÊNCIAS NEGRAS
Assim como nos EUA, a ancestralidade africana é responsável em boa medida
pela evolução da percussão da música sinfônica na América Latina. Do México, destacam-se nomes como Carlos Chávez e Silvestre Revueltas. O argentino Alberto Ginastera chegou a estudar com o citado Aaron Copland. No Brasil, não se pode deixar de fora o carioca Heitor Villa-Lobos, o paulista Camargo Guarnieri e o próprio Marlos Nobre, autor de composições com ênfase na percussão e no ritmo, a exemplo de Rhytmetron Op. 27 e Kaballah para Orquestra, Opus 96. Esta fez parte do concerto inaugural da temporada 2014 da OSR, realizado em março, no Teatro de Santa Isabel, centro do Recife. Como o próprio nome indica, Kaballah é inspirada na tradição espiritual de origem judaica homônima. “Não sou judeu, mas tenho uma admiração muito grande pela filosofia”, destaca o maestro. A peça tem cerca de 10 minutos de duração, escrita em dois movimentos (Luz e Energia), e foi encomendada a
Até o século 20, na tradição ocidental, as prioridades eram a melodia e a linguagem harmônica, em detrimento do ritmo Nobre em 2004, durante a realização do 35º Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão (SP). “Apliquei nessa obra a ideia fundamental de que certas ideias musicais podem ajudar os ouvintes a expandir a consciência, a atingir regiões mentais mais avançadas”, discorre o maestro, com perceptível empolgação no falar. “É uma peça complexa, com compassos em 7/8, 8/8… No início, foi difícil para os músicos compreender e executar, pois é preciso raciocinar muito rapidamente”, explica. Além da participação de seis percussionistas, Kaballah conta com instrumentistas responsáveis pelas seções de metais e madeiras. Atualmente, é grande o número de composições com forte presença da percussão. Ainda assim, há quem a entenda como algo “menor” dentro de uma orquestra. Para o paulista Irineu Perpétuo, jornalista especializado em música
erudita, essa percepção não chega a surpreender. Ele lembra que, na tradição ocidental, a prioridade sempre recaiu na melodia e no desenvolvimento da linguagem harmônica. A pesquisa rítmica ficou relegada a segundo plano por centenas de anos. “Nesse aspecto, os povos africanos e de algumas partes do continente asiático desenvolveram uma música bem mais interessante e sofisticada. Com a abertura dos ouvidos europeus, no século 20, para as linguagens musicais de outros continentes, os compositores começaram a incorporar toda essa riqueza rítmica a sua música, e daí a percussão erudita pôde florescer em sua plenitude”, explica.
GRUPO PERCUSSIVO
Com passagens pela Sinfônica do Recife, na qual atuou entre 1984 e 2010, orquestras sinfônicas da Paraíba, Rio Grande do Norte, de Aracaju, de São Paulo, além da Orquestra Tonhalle (Zurique, Suíça) e Orquestra Virtuosi, Antonio Barreto vem desenvolvendo trabalho no qual tenta, justamente, difundir a percussão erudita. Percussionista e professor do bacharelado em Música da Universidade Federal de Pernambuco, ele fundou, em 1997, o Grupo de Percussão do Nordeste, junto com os colegas Germanna Cunha, Francisco Xavier, Vanildo Marinho e Glauco Andreza. “É um trabalho inteiramente ideológico. O retorno financeiro não recompensa as despesas e o tempo investido, porém, nós nos satisfazemos com os aplausos do público. Sempre me perguntam quando nos apresentaremos novamente e isso é gratificante! É o reconhecimento e, ao mesmo tempo, a percepção de uma carência por esse tipo de espetáculo e informação”, expõe o também integrante do grupo SaGrama. Em junho de 2014, o Grupo de Percussão lançou seu primeiro CD, Território XXI, com uma cativante apresentação no Teatro de Santa Isabel, no Recife. Com a voz embargada, Barreto quase não conseguiu proferir seu discurso de agradecimento. O álbum duplo, com textos em inglês e português, teve aprovação do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) e foi gravado no Estúdio Carranca, na capital do
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TERUNOBU OHATA/DIVULGAÇÃO
GERMANIA HEIBE/DIVULGAÇÃO
Sonoras 2
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TERRY BOZZIO Ex-baterista de Frank Zappa se apresenta com bateria incrementada com instrumentos eruditos
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EDER O ROCHA Percussionista que integrou o Mestre Ambrosio dedica-se, há duas décadas, à execução e ao ensino de ritmos populares
Estado. É composto por obras de autores pernambucanos, paraibanos e paulistas. Circuloníricos (Silvia de Lucca), Aboio e embolada (Dierson Torres), Rosa branca ou o percurso alheio (Paulo Lima), Ori (Nelson Almeida) e Hiper-ritmo (Nilson Lopes) foram criadas especialmente para o projeto fonográfico. Completam o repertório as tradicionais Movementes, de Vanildo Marinho; Rhythmetron Op. 27, de Marlos Nobre; Ensaio 79, quinteto para piano e tambores, de Mario Ficarelli; e Três estudos para percussão, de Osvaldo Lacerda. Marlos Nobre escreveu Rhythmetron para a Companhia Brasileira de Ballet do Rio de Janeiro, que a apresentou, pela primeira vez, em 1968, no Teatro Novo do Rio de Janeiro. Elementos de maracatu e samba integram o tecido sonoro da obra, a qual se divide em três movimentos: A preparação, A escolhida (momento em que instrumentos melódicos de percussão aparecem) e Ritual. Rhythmetron já foi interpretada por diversas orquestras e grupos do Brasil e do mundo.
NAS ALTURAS
Como já apontado, a passagem do tempo e os intercâmbios culturais
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contribuíram com a maior e crescente diversidade da instrumentação percussiva. Os instrumentos percussivos são divididos entre os de alturas definidas, ou seja, que podem ser afinados, como a marimba, o xilofone e o vibrafone; e os de alturas indefinidas. Nesse caso, aqueles que não podem ser melodicamente afinados, como caixa clara, castanhola, chicote, tom-tom, entre outros. Ainda assim, há diversos casos em que autores, maestros e músicos usam notas melódicas para timbrar sons de tambores. Mesmo no jazz, no rock, no pop, não é difícil encontrar bateristas que empregam esse recurso na hora de afinar suas ferramentas de expressão artística, além de se utilizar de instrumentos e técnicas de execução eruditas para tocá-los. É o caso de músicos como Neil Peart (Rush), Carl Palmer (Mike Oldfield, Emerson, Lake & Palmer, Atomic Rooster) e Terry Bozzio. Natural de San Francisco, Califórnia, Bozzio estudou percussão erudita no início de sua carreira. Tocou e gravou com Frank Zappa & The Mothers of Invention, Jeff Beck, Missing Persons (banda new wave dos anos 1980), Fantômas (projeto de Mike Patton, vocalista do Faith no More, que mistura punk rock, metal, jazz e arranjos inspirados em trilhas sonoras de filmes), entre vários outros artistas. A partir do início dos anos 1990, iniciou projeto solo no qual grava vídeos e se apresenta com uma enorme
bateria incrementada com diversos instrumentos percussivos eruditos. Ele criou algo que pode ser chamado de “concerto percussivo de um homem só”. Há inúmeros vídeos de suas performances no YouTube. Ex-integrante do extinto Mestre Ambrósio, o percussionista e compositor Eder O Rocha tem se dedicado, há mais de 20 anos, ao estudo, execução e ensino de ritmos populares. O pernambucano mora em São Paulo, onde mantém a Prego Batido – Escola de Percussão e Bateria Brasileira, localizada no bairro do Sumaré, zona oeste da cidade. Eder estudou percussão erudita no antigo Centro Profissionalizante de Criatividade Musical do Recife. Hoje chamada de Escola Técnica Estadual de Criatividade Musical, instalada na Rua da Aurora, no centro da capital. O músico passou pela Orquestra Jovem de Olinda, sinfônicas do Rio Grande do Norte e Recife. “Minha rotina era estudar de quatro a oito horas por dia, ensaiar três horas, diariamente, e me apresentar quatro vezes por mês, em média”, relembra. “Isso foi essencial para a minha formação. Hoje, tenho um método de zabumba (Zabumba Moderno) e um bom desempenho profissional por ter tido a base no estudo da percussão erudita”, complementa. Além dos ambrósios, Eder O Rocha chegou a trabalhar com Monjolo, Silvério Pessoa, Instituto, DJ Dolores, Mutrib, BiD, DJ Marky, Velho Maza, entre outros.
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INDICAÇÕES DIVULGAÇÃO
REGIONAL
TOCA OGAN Desatando o laço Independente
Disco solo do percussionista da Nação Zumbi, Toca Ogan. Variando do baião e do samba aos ritmos africanos, o artista busca influências na origem da própria percussão. Ainda assim, Desatando o laço não se perde como um álbum completamente referencialista e encontra espaços para incrementar as composições com efeitos de modulação com delays e vibratos. Além disso, a obra se vale de um lirismo minimalista, em que muitas vezes o direcionamento das canções é regido pelo som das palavras e menos pelo sentido.
EXPERIMENTAL
PANDA BEAR Panda Bear Meets The Green Reaper Domino
Quinto disco do norte-americano Noah Benjamin Lennox lançado sob a alcunha de Panda Bear. Melancólico, o músico abusa de melodias vocais dobradas e efeitos de produção musical, como variações de pan e volume para dar a forma e a identidade de suas 13 faixas. Além disso, o lançamento ainda é hábil ao incorporar o lirismo de Lennox às variações de dinâmica das composições, que transitam entre o pop melódico e as experimentações musicais mais densas.
Encartado
QUINTETO VIOLADO CANTA DOMINGUINHOS É impossível falar sobre a música pernambucana sem lembrar o Quinteto Violado. Ao longo de mais de quatro décadas de carreira, o grupo gravou quase 40 discos de estúdio e produziu quatro especiais em vídeo, além da realização de inúmeras turnês nacionais e internacionais e da composição de trilhas sonoras para o cinema. Consolidado como um dos grandes expoentes da música regional nordestina, o conjunto agora evidencia essa posição com o lançamento de seu novo álbum Quinteto Violado canta Dominguinhos, em que reverencia e homenageia a obra do sanfoneiro Dominguinhos, um dos maiores instrumentistas e compositores pernambucanos, falecido em 2013. Apelido de José Domingos de Moraes, Dominguinhos nasceu no município de Garanhuns em 1941, no agreste de Pernambuco, e começou a tocar a sanfona ainda na infância, aos seis anos de idade. Sua obra, que permeia parcerias com artistas renomados como Gilberto Gil e Toquinho, também é lembrada pelo apadrinhamento de ninguém menos que Luiz Gonzaga, que conheceu o músico ainda adolescente, quando este tocava sanfona na porta de um hotel em Garanhuns. O interessante é que a relação dos dois representa um ciclo para o próprio Quinteto Violado. Em 2012, o conjunto lançou o disco Quinteto Violado canta Gozagão, homenageando o Rei do Baião, álbum que precede o novo lançamento. Dessa forma, Quinteto Violado canta Dominguinhos, encartado este mês na revista Continente, surge com uma obra importante não somente por representar um passo adiante na carreira do grupo, mas por encerrar um ciclo de homenagens a dois dos maiores sanfoneiros pernambucanos da história. No disco, o Quinteto foi hábil ao ressaltar a identidade da música pernambucana, trazendo parcerias com artistas locais, como a do cantor Lenine, que interpreta a clássica canção De volta pro aconchego. FERNANDO ATHAYDE
FOLK
INSTRUMENTAL
Mute
Sinewave
JOSÉ GONZÁLEZ Vestiges and Claws José González é um artista de origem sueca, cuja expressividade musical se resume à voz e ao violão de nylon. Ainda assim, cada canção sua é um convite a adentrar no infinito de possibilidades criativas do compositor. No novo disco, González canta um folk repleto de corais, palmas, pisadas no chão e refrões pujantes. Bem-concebido tecnicamente, Vestiges and claws é um lançamento que ainda acerta ao investir no minimalismo das composições e preencher todos os espaços restantes com ambiências, reverbs e ruídos.
MAIS VALIA Mais Valia Após dois anos de estrada, a banda brasileira Mais Valia lança seu primeiro e homônimo disco de carreira. Produzido de forma independente, e lançado pelo selo paulista Sinewave, o álbum se destaca por trabalhar profundas variações de dinâmica e pela sonoridade analógica dos timbres. As composições, fundamentadas na interação entre guitarra, baixo e bateria, soam como a ordenação de várias sequências de improviso, revelando um pouco do processo criativo do grupo.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
RECIFE RETRATO
Fui dominado pelo quadro, que vi na parede de Plínio Santos, entre outros de alunos seus, Capibaribe vermelho, quadro-mãe, que gerou toda uma belíssima exposição. “Gostaria que o leitor ao abrir esta página, sofresse, deparando-se com a reprodução acima, o mesmo impacto que me causou o quadro pessoalmente. ‘Pessoalmente’ sim, como se diante de uma pessoa viva, viva e com voz.” (Terra Magazine, nov/2013, Só isso, p 109). Estivemos brincando, um dia desses, de achar a palavra exata para designar o que havia acontecido comigo: se eu tinha sido dominado, convertido, convencido, impregnado, cooptado, que diabo tinha acontecido, fisgado, o fato é que fiquei totalmente enfeitiçado, palavra de que não gosto porque dá ideia de iludido quando se trata aqui de uma evidência. Na minha maneira de ver, claro. E penso que vejo claro, a essa altura, vivendo nisso há muito tempo, não dado à prática de caçar talentos; pelo contrário, dificilmente poderia ser tirado de um certo torpor que a idade nos traz, e eu mesmo me
surpreendi com o surto de entusiasmo que esse quadro me causou. Quando vi na parede o quadro Capibaribe vermelho, me deu aquele vexame, como se urgisse fazer alguma coisa, dar um alerta, gritar “Terra à vista!”; como se o próprio quadro, dali do seu muro, se investisse de poderes, me ungisse e me incumbisse de sair pelo mundo anunciando “Nasceu um pintor!”. Digo “o próprio quadro” porque até então nenhuma informação possuía sobre o autor. Continuei olhando os outros quadros, de outros autores, “esforçando-me para olhálos”, melhor seria dizer, mas meu espaço mental já tinha sido tomado totalmente, com essa exclusividade, como diz a palavra, que excluía de minha capacidade de ver, de apreciar, qualquer outra obra naquela ocasião. Coincidentemente, Plínio Santos, ao falar-lhe eu da minha admiração pelo quadro, ou talvez a amiga Patrícia Lima, também aluna de Plínio, me comunicaram da aquisição do mesmo pelo ministrador do curso, como se também este tivesse sido “vítima” do quadro em questão, ia dizer “do
atentado”: sim, talvez a melhor palavra seja “atentado”, como se um coquetel Molotov nos tivesse atingido bem no meio do peito, bem no coração. Sem aviso, sem plataforma, sem fazer parte de nenhum movimento que a gente conheça, quando todas as modas já nos parecem esgotadas e a própria ideia de pintura pintada para muitos poderia parecer obsoleta, destaboca na nossa cara, e agora me vem uma poesia de um poeta náuatle: “um jaguar/milenar/ me ruge/na cara//eu começo/a cantar/todo tipo/de flores”. Não é que a pintora — depois foi que eu soube que se tratava de uma pintora, Ana Catarina, e jovem, inicial (mas parecendo “milenar”), primeira exposição — não é que somente nos “ruja na cara” mas nos recria, nos vira a cabeça, nos vira para ela, nos bota “a cantar todo tipo de flores”. Dali para a frente, tudo o que sair do seu estro já traz essa força a que não podemos resistir, não existindo quadros maiores ou menores, melhores nem piores, tudo fazendo parte do mesmo grito, o mesmo vagido do nascido que
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
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CAPIBARIBE VERMELHO
Óleo sobre tela, 70 x 100 cm
1
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AUTORRETRATO
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ROLIDEI
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40 GRAUS
Acrílica sobre
tela, 80 x 210 cm
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alardeia sua chegada com todo vigor, carregando toda uma ancestralidade. Com quatro anos de idade, até os nove, seu avô materno andava a pé com ela por todo o Recife, sendo essa a maior referência de sua vida. A maior alegria era seu avô ir buscá-la e saírem os dois andando pelo Recife, a pé, ela vendo tudo, andando pelo centro, no meio do formigueiro de gente, Mercado de São José, “pisando em frutas podres” como ela disse, a onipresença das águas de rio e de mar, os saltos surpreendentes das pontes, a irrupção dos edifícios qual animais fantásticos, grupos de edifícios longínquos como miragens tremeluzentes, naves de dimensões colossais, personagemprédio-falo decepado, de beleza iridescente, mensagens hieroglíficas dolorosamente sepultadas, grafismos que se superpõem ou convivem na promiscuidade de alegrias e crucificações a modo de inscrições gravadas na tinta fresca com cabo de pincel onde você poderá reconhecer o risco de um edifício, casas e ruas e subentender mil outros acontecimentos, rastros prateados das
Acrílica sobre papel, 70 x 100 cm Acrílica sobre papel, 80 x 100 cm
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Quando vi na parede o quadro Capibaribe vermelho, me deu aquele vexame, como se urgisse dar um alerta, gritar: “Terra à vista!” unhas dos caranguejos na lama do mangue ou as atas de todos os crimes memoráveis e dos anônimos sepultados no chão do Recife ou soterrados no fundo do Capibaribe. É ata e é ode. É choro e é cântico. É fuzilamento de Frei Caneca e é frevo e maracatu. Com toda liberdade em matéria de espaço, ela nunca perde o foco do Recife, protagonista de seus quadros e, não importa o devaneio geométrico, jamais resvala para a pintura abstrata, chegando até em algumas ocasiões a nos lembrar disso com intervenções drasticamente realistas de ruas, prédios, crepúsculos, horizontes e perspectivas, descrições de bairros incorporados a trechos mais herméticos ou subjetivos,
como a dizer “isso fique bem claro”, não haja dúvidas sobre seus propósitos. Pode passar de um único pano de cor monocromático para uma algaravia de grafismos no branco da tela, de extraordinária expressividade, como se não tivesse medo de acabar com tudo. Como se não tivesse medo de suicidar-se. É possível notar, aqui e ali, lembranças, ecos, preferências, citações, não sei até que ponto conscientes, nesse afã, também não sei se consciente ou não, de todo artista, de reescrever a história da arte a seu modo a partir do zero sem nada omitir, e ao mesmo tempo tomando como seu tudo o que foi feito no mundo desde o tempo das cavernas, desde a pedra da Roseta aos relógios moles de Salvador Dali, da simplificação do cubismo sintético à minúcia do rendado como coisa à parte ao sabor do capricho, sílabas ou glifos de sua linguagem pictográfica ou criptográfica. Recife Retrato é o nome que Ana Catarina deu à exposição, feita no Espaço Vitrúvio, Rua Antônio Vitrúvio, 71, Poço da Panela (início 23/04/15).
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CRISTIANO MASCARO / DIVULGAÇÃO
Visuais
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FOTOGRAFIA Biscoito fino do documental
Coleção homenageia profissionais que ajudaram a consolidar o gênero no Brasil, como Cristiano Mascaro TEXTO Adriana Dória Matos
Andar pelas páginas
deste livro de Cristiano Mascaro (Ipsis Gráfica e Editora, 2014) é como entrar no conto Abraçado ao meu rancor, de João Antônio, e experimentar a sensação simultânea de imagens sem tempo e
definitivamente ligadas ao passado. “Dentro do Martinelli, procuro um salão de bilhares no andar térreo, o Mourisco, grandalhão, de espelhos laterais do tamanho de um homem. Onde funcionavam, certos e terríveis como relógios,
sonsos e dissimulados, uma ciência de precisão, sinuqueiros de nome – Brahma, Tarzan, Itapevi, Calói, Estilingue, Boca Murcha”, é um dos trechos da narrativa – um passeio aturdido e melancólico do narrador pelas ruas de São Paulo – escrita em 1986. Naquela mesma década, precisamente em 1980, em Cuiabá (MT), Cristiano Mascaro retratava dois homens numa sala de sinuca, ambos olhando incisivamente para a câmara, como que curiosos ou inquisitivos, a despeito de que “nomes de prestígio” pudessem ostentar naquela sala. Mascaro conta que, quando foi convidado a
compor a Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira e soube que a curadoria ficaria a cargo de Eder Chiodetto, fez uma seleção enorme de imagens do seu arquivo, pensando em estabelecer um olhar histórico sobre a própria obra, sobretudo os retratos. Era aguda sua consciência de que a relação espontânea que se estabelecia entre ele e aqueles retratados – todos os registros realizados nos anos 1970 e 1980, com raras datações nos anos 90 e 2000 – deixou de existir, porque o mundo se tornou mais hostil e as pessoas reagem com desconfiança ou agressivamente à mira da câmera. “Na nossa conversa, então, Eder e eu decidimos intercalar retratos com
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NELSON KON / DIVULGAÇÃO
1 CRISTIANO MASCARO Título dedicado a ele privilegia os retratos feitos nos anos 70-80 2 NELSON KON Fotógrafo começou sua carreira em 1985 e dedica-se ao registro da arquitetura
imagens de interiores e arquitetura.” Arquiteto e fotógrafo, Cristiano Mascaro (Catanduva, SP, 1944) é o que podemos chamar de um moderno humanista na fotografia brasileira. Seu trabalho tem sido, desde a década de 1970, pródigo no registro da cidade e da arquitetura, incluída nesse conjunto a figura humana, em elaboradas composições fotográficas, boa parte delas em preto-e-branco, como está exclusivamente representado neste livro que leva apenas seu nome. Tudo é silêncio, vagar e contemplação nestas fotografias, cujo tempo apreendido reflete o uso da máquina Rasselblad de grande formato, equipamento que ele dispunha em tripé na frente de seus temas e personagens. Os retratos expressam a disposição fixa do fotógrafo diante do seu tema, que, mediante o pacto estabelecido, deixase fotografar em pausa, daí a ausência de movimento, a apreensão intensa do olhar, dos gestos, objetos, cenários. Estas são também imagens de intervalo, pois o fotógrafo conta que as realizou sempre entre trabalhos em curso. Era um tempo, recorda, quando se podia bater na porta das pessoas, pedir para entrar e fotografar e ainda ser convidado para um café. Nessas incursões, Mascaro fotografava os ambientes – cujas mobílias e arrumações estão carregadas de significado – e seus moradores, a partir de um cuidadoso exercício de observação. Num excelente trabalho de edição, o arranjo das imagens neste livro – retratos e registros de ambientes internos, na maioria, embora haja belos planos gerais da cidade, sobretudo em fotos noturnas – resulta num percurso cadenciado, em que o leitor quase deixa escapar (ele é “salvo” pelas legendas) as distinções temporais e espaciais dos registros. Isso porque há unidade na linguagem fotográfica, seja na foto de uma sala de hotel de centro de cidade, de um vaso sobre uma mesa de casa simples, de um detalhe de corrimão ou da cortina esvoaçante de uma
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fazenda. As quebras ocorrem também placidamente, com a inserção de paisagens noturnas em neon, trens que cruzam a cidade, silhuetas de prédios, cortes e detalhes de monumentos, ruínas. É curioso: não há close-ups neste pequeno livro, escolha que denuncia o ponto de vista do fotógrafo. Não é gratuita a sensação de desaparecimento experimentada pelo leitor diante desse recorte na obra de Mascaro, e isso não se deve apenas ao fato de muito do que está nas imagens ter envelhecido ou deixado de existir. Mas porque ele captou algumas dessas imagens, nos anos 1970 e 80, em momentos de transição da cidade, como foi o caso da documentação que empreendeu nos bairros do Bom
Retiro (entorno da Estação da Luz e da Pinacoteca do Estado de São Paulo) e Brás, que teve trechos demolidos para a construção do metrô. Lugares apagados. Ecoa novamente João Antônio: “Aposentaram os bondes, enlataram a cerveja, correram com o sambista, enquadraram até os poetas. Lanchonetaram os botequins de mesinhas e cadeiras; pasteurizaram os restaurantes sórdidos do Centro e as cantinas do Brás, mas restaurante que se prezava era de paredes sujas, velhas! Plastificaram as toalhas, os jarros, as flores; niquelaram pastelarias dos japoneses, meteram tamboretes nos restaurantes dos árabes. Formicaram as mesas e os balcões. Puseram ordem na vida largada e andeja dos engraxates”.
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ARAQUÉM ALCÂNTARA / DIVULGAÇÃO
Visuais 3
3 ARAQUÉM ALCÂNTARA Rigor e sensibilidade caracterizam o trabalho deste “fotógrafo da natureza”
UM DISCÍPULO
Cristiano Mascaro foi professor universitário e, entre 1974 e 1988, coordenou o Laboratório de Recursos Audiovisuais da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, pelo qual passaram vários estudantes desse curso. Ali, eles desenvolviam projetos de pesquisa e documentação, e Cristiano conta que pôde formar vários bons fotógrafos de arquitetura. Um deles foi Nelson Kon, cujo título dentro da Coleção Ipsis de Fotografia foi lançado simultaneamente ao de Mascaro. Assim, vistos em dupla, os livros de Kon e Mascaro são uma amostra de como aquela que se convencionou chamar de “fotografia de arquitetura” está bem-representada por gerações distintas e foge ao senso comum que associa essa atividade ao puro formalismo. O curador da coleção, Eder Chiodetto, escreve na apresentação ao livro de Nelson Kon que ele “é um inspirado cronista, que se vale da paisagem urbana, das formas de apropriação do solo e, claro, da arquitetura para narrar tensões existentes nestas equações”. Podemos
tomar a imagem reproduzida na página 71, da Galeria Presidente (São Paulo, 2013), como exemplo das referidas “tensões”, observando que o grafismo significa uma situação urbana e não apenas uma boa composição. A coleção em que se incluem estes dois produtos de qualidade foi iniciada em 2013, com o volume inaugural dedicado ao “fotógrafo de natureza” Araquém Alcântara, cujas imagens enaltecedoras de fauna e flora foram popularizadas até em cadernos escolares. Nesta seleção, a curadoria fugiu desse repertório por demais explorado e buscou um recorte mais complexo da obra de Alcântara. A ideia do proprietário da Ipsis, Fernando Ullmann, é que esta coleção de livros de fotografia preste homenagem aos profissionais e seja a estreia da gráfica – reconhecida pela qualidade na impressão de livros de arte – como editora. Eder Chiodetto, que foi convidado para a curadoria da coleção, que deverá ter 10 títulos, diz que as escolhas recaem na obra de fotógrafos que contribuíram para a formação da fotografia documental no Brasil. Ele está preparando para este ano mais três volumes. O próximo será dedicado a Thomaz Farkas (1924-2011), em cujo vasto espólio – sob a guarda do Instituto
Moreira Salles (IMS) – Chiodetto está pesquisando. “Farkas tem um trabalho diverso, composto de várias fases. Gosto muito da experimental, mas, pelo recorte da coleção, ela está fora. Ainda estou trabalhando na seleção.” Ele também aguarda liberações por parte do IMS. Um trabalho que está adiantado, segundo Chiodetto, é a edição do livro de Guy Veloso, que, junto com a também paraense Elza Lima, deverá ter lançamento em outubro ou novembro próximo. “Estamos com 50% do livro editado, trabalhamos com a ideia do transe, dentro da documentação que Guy faz das religiões brasileiras.” Com relação a Elza Lima, o curador se felicita em poder divulgar o trabalho pouco conhecido da fotógrafa, do qual vai enfatizar ensaios com as populações ribeirinhas e a relação dos povos com as águas. “O olhar dela é tão particular quanto o de um Miguel Rio Branco, Mário Cravo Neto ou Tiago Santana. Ela nos leva aos extraquadros, a imaginar o que está fora da imagem”, aponta Chiodetto. Tanto ela quanto Guy Veloso terão nesta coleção seu primeiro livro solo. Embora não revele outros nomes que integrarão a coleção, o curador diz que gostaria muito de poder, com ela, publicar profissionais inéditos, além dos clássicos aqui mencionados.
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PEDRO SOTERO/DIVULGAÇÃO
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FAZ QUE VAI Versões para a dança do frevo
Projeto de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca reúne fotografias, documentários e videoinstalação em que o gênero pernambucano funde-se a ritmos populares atuais TEXTO Luciana Veras
Muitas são as certezas e algumas as incógnitas a respeito das origens do frevo, gênero musical e da dança cuja sinonímia primária dá-se com o carnaval pernambucano. Do ferver veio a palavra e, do verbo, fez-se a dança da carne, com acrobacias e passos de causar inveja a capoeiristas ou lutadores. Uma das vertentes históricas aponta similaridades entre a sonoridade do patrimônio imaterial da humanidade, declarado pela Unesco em 2012, e o compasso das bandas que capitaneavam os
desfiles militares, como sustenta a pesquisadora norte-americana Katarina Real em O folclore no carnaval do Recife (1990). Outras enxergam semelhanças com a polca ou mesmo a quadrilha junina. O olhar para o passado, provavelmente, não revelará muito além do que já se documentou. Mas, e o porvir? Os artistas visuais Bárbara Wagner e Benjamin de Burca apresentam uma hipótese em Faz que vai, exposição em cartaz no Capibaribe Centro da Imagem – CCI, no Bairro da
Boa Vista (Recife), a partir de 17 de junho. Integram a mostra uma videoinstalação de 12 minutos; quatro conjuntos de fotografias lenticulares – em que a imagem é impressa numa fusão de camadas que causa a impressão de movimento; dois curtas-metragens garimpados no acervo da Fundação Joaquim Nabuco – Olha o frevo, rodado em 1967, em 16 mm, por Rucker Vieira (1931–2001), e Trajetória do frevo, em 35 mm, dirigido em 1988 por Fernando Spencer (1927-2014) –; e a reprodução da partitura de um frevo-canção inédito de Nelson Ferreira e Sebastião Lopes. Trata-se de Picadinho do faz que vai, mas não vai, composta para piano entre 1940 e 1945, que ainda está à espera de gravação no arquivo da Fundação Joaquim Nabuco. Faz que vai denomina, também, um passo de frevo. Esse universo festivo de Momo atraiu o olhar de Bárbara Wagner em 2014 e, por conseguinte, o de Benjamin de Burca. A brasiliense, formada em Jornalismo pela UFPE, conheceu o alemão na Holanda, quando fazia mestrado no Dutch Art
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PEDRO SOTERO/DIVULGAÇÃO
Visuais 2
Institute. Casaram-se, viveram em Berlim e construíram uma relação de parceria afetiva e artística – é comum, por exemplo, assinarem Wagner de Burca. No regresso ao Recife, em 2012, Bárbara se confrontou com uma nova realidade. “Cheguei com Benjamin e pensei: o que fazer no Recife como artista? Como representar visualmente essas articulações entre tradição e progresso? Sempre fui uma fotógrafa do documental, que via no artista a função de investigar a realidade e, na arte contemporânea, um meio de compreender o mundo.” O conjunto de obras de Faz que vai nasceu da vontade de empreender “uma investigação das convenções”, determinação presente em sua trajetória desde a série Brasília Teimosa (2006), nas fotografias de integrantes de maracatu rural em A corte (2013) e amplificada em Edifício Recife (2014), em que ela e de Burca aliaram a fotografias de obras de arte, instaladas em prédios residenciais da cidade, comentários dos respectivos porteiros. Reunidas em 22 trípticos,
Bárbara e Benjamin passaram a observar a transformação do folclore em espetáculo a partir do trabalho de jovens dançarinos as imagens estiveram no 33º Panorama da Arte Brasileira do MAM/SP (2013). Em janeiro deste ano, eles voltaram a questionar as representações da realidade em É como se fosse verdade, projeto da Prefeitura de São Paulo para que os artistas fotografassem transeuntes em um terminal de ônibus de Cidade Tiradentes, na Zona Leste, e os reinserissem na sociedade em capas de CD, concebidas mediante as especificações apontadas em questionários.
ELECTRO, FUNK, SUINGUEIRA
A minúcia com que conduzem o processo criativo alia-se ao acaso. Bárbara e Benjamin passavam uma
temporada em Olinda, coletando informações para a série da Orquestra pernambucana de fotografia, publicação idealizada por Gilvan Barreto com o intuito de pôr em diálogo fotógrafos e músicos, quando começaram a observar a relação que a juventude contemporânea – personificada em rapazes contratados para dançar frevo para os clientes de uma loja de artesanato – tinha com o frevo. “A transição da tradição para o palco se dava ali, com aqueles jovens que, nas suas comunidades e durante o Carnaval, dançavam afoxé, caboclinho, maracatu e frevo, mas que passavam o resto do ano dançando outros ritmos. Nós nos interessamos por essa transformação do folclore em espetáculo”, explica Bárbara. Um exemplar de Ritmos e danças – volume 1: frevo, uma cartilha lançada pela Secretaria de Educação e Cultura do governo de Pernambuco, em meados dos anos 1970, com fotografias de passos sendo executados por bailarinos brancos, chamou a atenção da dupla, que quis colocar em fricção – ou
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WAGNER DE BURCA/DIVULGAÇÃO
Página 73 1 FREVO ELETRÔNICO
Ryan evoca a cena electro no gestual e na caracterização
Nestas páginas 2 SUINGUEIRA
Bhrunno mescla a rapidez dos passos tradicionais ao vigor baiano
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colisão – a lição daquela cartilha e os ritmos atuais. Não tardou para que percebessem que o vídeo seria a linguagem mais adequada para comparar aquela caricatura de quatro décadas à velocidade com que o frevo era incorporado a outras coreografias. Surgia, assim, Faz que vai. Para dançar esse frevo misturado, Wagner e de Burca convidaram Ryan Neves, Bhrunno Henryque, Eduarda “Tchanna” Lemos e Edson Flávio e deram aos quatro bailarinos a oportunidade de escolher a modalidade de frevo que gostariam de corporificar. Ryan, que, durante o dia, se apresenta para turistas no sítio histórico olindense, e, à noite, incorpora uma drag queen em boate recifense, escolheu o electro. Tchanna, bailarina de frevo, ficou com o funk. Bhrunno trouxe seu repertório de suingueira, e Edson, integrante do grupo Guerreiros do Passo, intercalou a teatralidade de gestos como o faz que vai aos comandos do strike a pose, que caracterizam o vogue de Madonna. “Todos eles escolheram não apenas o ritmo que dialogaria com o frevo,
3-6 LENTICULAR Fotos sobrepostas dão a ideia de movimento como nestas de Edson Flávio e Eduarda Lemos
Os diretores utilizaram um metrônomo para determinar a velocidade dos registros imagéticos mas também como dançariam e como se vestiriam”, conta Benjamin de Burca. “Para capturar o movimento e registrar como aquele corpo se tornava a expressão de uma transformação, suprimimos a parte melódica. Tiramos os sopros, pois queríamos menos harmonia e mais percussão”, completa Bárbara Wagner. Entre fevereiro e março deste ano, houve ensaios, em que as coreografias eram apresentadas ao diretor de fotografia Pedro Sotero, e, em seguida, as filmagens eram realizadas em pontos diferentes da capital pernambucana, próximos de onde vivem os quatro jovens – negros, gays e moradores da periferia, numa configuração sociológica que
interessa aos criadores, nesse embate entre “tradição e progresso” que sustenta suas reflexões artísticas. A captação foi feita com uma câmera de alta definição, à qual foi acoplada uma lente de 16 mm. Na hora de filmar, os diretores levaram um metrônomo, instrumento que estabelece padrões fixos de andamentos musicais, para determinar a velocidade de cada um. Tchanna e seu frevo/funk se mexem a 95bpm (batimentos por minuto); mais acelerado, Edson empresta leveza e delicadeza à pantomima do frevo/ vogue a 120bpm; Ryan – o que mais capricha no figurino – metamorfoseia o frevo no “pancadão” do electro a 140bpm; e Bhrunno evoca axé, arrocha, forró e frevo na mescla que é a suingueira e dança mais rápido do que todos, mexendo-se a 151bpm. Só na edição, quando Wagner e de Burca chamaram os percussionistas Cícero Batom, Wellington Jamaica e Waltinho d’Souza, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, é que a sequência de imagens recebeu trilha sonora. “Eles viram as imagens e compuseram a percussão para aqueles passos específicos, sem saber o que é que cada um estava dançando”, rememora Bárbara. As fotografias lenticulares, por sua vez, adicionam outras evidências ao ato de investigar – seja o status quo artístico, político e social, seja o choque entre legado e vanguarda, ou ainda a imbricação entre práticas individuais e rituais coletivos – que norteia a prática dos artistas. É como se cada dançarino fosse legitimado pelo seu duplo, não como tese/antítese, mas à luz da multiplicidade e da pluralidade, palavras tão bem-empregadas para descrever a permanência do frevo como símbolo de Pernambuco, um século após seu surgimento. Faz que vai, que até dezembro também pode ser visto na mostra coletiva do 5º Prêmio Marcantonio Vilaça, no MAC/USP, vislumbra um futuro para o ritmo secular: abraçar as vibrações do acaso em um jogo em que deve prevalecer, para Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, mais as apropriações intuitivas e menos as releituras mercadológicas.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
ELES ESTÃO CHEGANDO PARA FICAR O rapaz africano que nos aborda
em Florença, fala como se fosse um velho conhecido. Hoje é um dia muito especial para mim, acaba de nascer o meu filho, diz numa mistura de idiomas. De onde vocês vieram? – pergunta ao ver nossas malas. Acabamos de descer de um taxi, viemos da estação de trens e aguardamos na calçada a proprietária do apartamento que alugamos, num prédio do século XVI. Do Brasil, minha esposa responde com simpatia e naturalidade. Brasil, ele grita três vezes, parecendo Galvão Bueno quando a Seleção faz um gol em copa do mundo. E nos cumprimenta com a mão fechada em punho, igualzinho a todos os jovens. Descubro mais tarde que a euforia ao nome Brasil repete-se nos africanos que circulam por ruas, praças e pontes da cidade. Meu filho dá um passo atrás, mais por incômodo do que por desconfiança, e sinaliza para não alimentarmos a conversa. Bem tarde. A esposa e a nora já negociam a compra de minúsculas esculturas em madeira, que segundo o jovem senegalês trata-
se de amuletos. Vão para frente e para trás na conversa, sem entrarem em acordo no valor da mercadoria. O mascate barganha com a sua condição de pai recente, abre uma bolsa e oferece pulseiras e outros artesanatos rústicos. Eu assisto a conversa de longe, me divertindo ao reconhecer a mesma sedução dos ciganos que passavam em nossa cidade, quando eu era criança. Felizmente, a anfitriã chega alvoroçada. Trata-se de uma americana investidora no ramo de alugueis, um modo de sobrevivência cada vez mais comum em cidades turísticas da Europa. No contrato, foi garantido um primeiro andar com apenas um lance de escada, mas na verdade se trata de um terceiro pavimento. Encaro subir os quatro lances de degraus, carregando as malas. Num impulso de brasileiro habituado a pagar pelo trabalho pesado, olho o jovem negro e sinto desejo de perguntar se não aceita uns euros para carregar as malas junto comigo. Nos três taxis que apanhamos, os motoristas faziam questão de pegar as malas e acomodá-las nos bagageiros dos seus carros. Não aceitavam a
menor ajuda, o que não me pareceu ofensivo à condição de taxista. Cobravam a corrida mais cara por conta disso. A proposta ao senegalês seria justa, sofro da coluna, meu filho trata duas hérnias, minha mulher não tem força para tanto peso. Porém, não sinto coragem de propor o biscate. Ajudado pela nora e pela anfitriã encaro o esforço e a subida íngreme. Dá pena ver as bugigangas vendidas pelos africanos. De tecnológico apenas uma gerigonça de metal inventada pelos chineses para distanciar o smartphone e permitir um selfie abrangente. Centenas de óculos de formatos e cores diversas, pulseiras, brincos e colares rústicos, iguais aos dos hippies. Estes deixavam suas casas e famílias em protesto aos padrões de vida burguesa e ao consumo. Os africanos chegam aos milhares à Itália, amontoados em navios, que vez por outra afundam, transformando o mediterrâneo num cemitério. Partem quase sempre da Líbia e entram por Lampedusa. Deixam suas famílias e culturas por necessidade de sobreviver à guerra, aos massacres, às doenças e a
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HANA LUZIA
fome. Durante o império romano, eles eram trazidos à Itália, escravizados. Nos séculos de colonialismo europeu na África, sofreram formas disfarçadas de escravidão. Agora, chegam voluntariamente à Europa dos brancos e não são desejados. Não acompanho a família na visita à Santa Croce. Renuncio aos afrescos de Giotto, ao belo claustro da igreja, aos túmulos de Michelangelo, Galileu e Machiavel. Prefiro ficar do lado de fora, sentado nas escadarias, olhando os chineses barulhentos e agitados, crianças e adolescentes italianos com seus professores para visitas guiadas. A garotada come sanduíches de presunto e queijo, ri e brinca. São generosos em suas manifestações de afeto. Os africanos sorridentes oferecem pulseiras, colares e óculos. Rapidamente se estabelecem relações comerciais, os meninos e as meninas barganham, querem adquirir as bugigangas a qualquer preço, quase todos já exibem óculos espelhados nos rostos e colares de contas coloridas nos pescoços. Brancos e negros se tratam de amigos, cumprimentam-se com as
Os africanos chegam à Itália em navios, que vez por outra afundam, transformando o mediterrâneo num cemitério mãos fechadas, até se abraçam, num clima de pândega e cordialidade. As diferenças parecem ser apenas de cor de pele, os jovens africanos riem alto, tratam os garotos pelos nomes, trocam propositalmente um nome masculino por um feminino, o que causa mais gargalhadas e brincadeiras. Garotas sem dinheiro oferecem os lanches em troca de pulseiras, voltando à era do escambo. Sinto-me contaminado pela sincera alegria entre eles, não percebo nenhuma forma de desprezo ou preconceito, temor ou desconfiança. Canso-me de esperar a família e decido visitar o antigo gueto judeu e a sinagoga. Ando por ruas com edifícios sem o esplendor de Florença, apartamentos onde se avistam roupas
estendidas em varais ou penduradas nas janelas a secar. Trata-se de um bairro sem glamour renascentista ou turístico. A sinagoga é vigiada por policiais armados, preciso deixar todos os meus pertences num armário, incluindo o celular, antes de meterme numa cabine detectadora de metais. Finalmente chego ao jardim e avisto uma parede com os nomes dos mártires do nazismo. Se paga ingresso um pouco mais caro do que na Santa Croce, mas certamente não é por isso que o número de visitantes é pequeno. Um silêncio incomum à cidade nos deixa reflexivos e solenes. Ponho um quipá e entro no templo. Ele é soberbamente belo, ao contrário do pequeno museu no andar superior, de acervo modesto. Penso nos mártires do cristianismo, há dois mil anos louvados e lembrados pela Igreja Católica. Leio os nomes dos mártires judeus, de história mais recente. A dor e o sacrifício me parecem comuns, embora do lado judeu não tenha havido escolha. O correto, no caso deles, nem seria dizer martírio, mas extermínio.
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RENATO ALARCÃO
Leitura CRÍTICA Entre o jornalismo e a literatura
Autores e críticos levantam ponderações acerca do texto analítico literário, suas possíveis características e seus constantes desafios TEXTO Priscilla Campos
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Quando se propõe debater a crítica literária brasileira contemporânea, uma espécie de tabuleiro automático de temas é aberto. Nele, são travados pequenos e sagrados conflitos, movimentos teóricos e opinativos que variam entre as repetições de aprendizados antigos e a procura por um ponto fraco inédito no que já foi dito por outros. Harold Bloom, Afrânio Coutinho, Leyla Perrone-Moisés, João Cezar de Castro Rocha, José Castello, Antonio Candido, Claudio Magris, Enrique Vila-Matas, Virginia Woolf. Esses são apenas alguns nomes, entre acadêmicos, críticos e escritores, que podemos citar como vozes condescendentes na busca
É possível que a crítica seja um tipo de obra artística que desperte o prazer, assim como a literatura? por repostas para tais temáticas espontâneas: linguagem, crise, formatos, relação da crítica com o leitor, personalismo e la nave va. Aqui, compreende-se, em especial, a crítica como um ponto limítrofe entre a linguagem performativa jornalística e a linguagem maldita literária. Na abertura de
Jornalismo e literatura, o escritor Antônio Olinto afirma: a prática comunicativa tem, fundamentalmente, as mesmas possibilidades que a literatura para produzir obras de arte. Em Texto, crítica, escritura, Leyla Perrone-Moisés disserta sobre as possibilidades da crítica literária ser considerada escritura, termo definido por Roland Barthes “como uma realidade formal situada entre a língua e o estilo, e independente de ambos”. Ou seja, Perrone-Moisés pergunta-se se é possível que a crítica seja um tipo de obra artística que desperte o gozo como a literatura. Mikhail Bakhtin e Tzvetan Todorov, ambos filósofos do formalismo russo, encaminharam as questões de gênero para além da literatura e da linguística, ao elucidar que os gêneros discursivos estão sempre associados às dimensões de “atos da comunicação”. Essas ponderações são factíveis no texto crítico, que existe como intersecção entre jornalismo e literatura. Deixemos para trás as pomposas perguntas que pareciam ser direcionadas a uma esfinge (Qual o futuro da crítica literária brasileira? Por que a crítica está em crise?) e nos proponhamos dúvidas pragmáticas acerca do assunto: Como podemos pensar a construção textual de uma crítica? Quais elementos devemos destacar nesse processo criativo? Onde o texto crítico literário será encontrado? Em 1955, na obra acima referida, Olinto defendia que, para o gênero jornalístico ser (grifo do autor) literatura, o importante, de início, era a linguagem. No manuseio das palavras, então, localiza-se a primeira parte do quebra-cabeça que resulta nessa tábua de esmeralda das discussões sobre literatura: o exercício da crítica.
AUTOR X CRÍTICO
No livro Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Kelvin Falcão Klein), o autor catalão declara que uma diferença entre a crítica literária feita por escritores e críticos é a preocupação dos primeiros com “a técnica da linguagem, mais do que propriamente com a interpretação” da obra. Ele afirma que essa falta de abordagem acontece porque é
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chama a atenção para o fato de que a literatura brasileira contemporânea vive numa bolha, fechada em si mesma. “Isso acontece porque o grupo que produz é tão pequeno, que os autores acabam fazendo também o papel de leitores e de críticos. Os jornais chamam escritores para falar sobre livros de outros escritores em suas páginas – muitas vezes, eles se veem obrigados a resenhar obras de amigos ou de desafetos. Não é que haja corporativismo ou falta de isenção. É mais complexo do que isso: a literatura precisa de um olhar de fora, que possa oferecer uma observação menos viciada. Pessoas que não reproduzam os mesmos códigos, referências e anseios que já dominam uma determinada produção”, sugere. Todavia, o diminuto círculo literário brasileiro mencionado por Bolívar sofre recorrências ao longo do século 20. Em Pena de aluguel – escritores jornalistas no
Leitura
“Escritores falam sobre livros de outros escritores. A literatura precisa de um olhar de fora” Bolívar Torres
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muito difícil escrever a respeito da estrutura linguística de uma obra. A escritora gaúcha Luisa Geisler, discorda, com fervor, da premissa exposta pelo catalão. “Acho um pouco complicado separar linguagem da interpretação. A linguagem ajuda a construir a história, seus contextos simbólicos. Assim, a história está dentro (no meio e fora) da linguagem. Alguns críticos, como José Castello, fazem esse diálogo muito bem nos seus textos. É difícil escrever bem sobre linguagem, qualquer um pode falar algumas bobagens e ficar por isso mesmo”, observa a autora de Quiçá e Luzes de emergência se acenderão automaticamente.
Já o jornalista pernambucano Diogo Guedes, setorista de literatura do Jornal do Commercio, concorda com Vila-Matas no aspecto da importância de um texto crítico que analise a estrutura linguística explorada pelo autor. Porém, ele lembra a dificuldade de tecer comentários sobre esse elemento numa crítica veiculada em- jornal diário. “O que tento é me forçar a falar da linguagem sempre, mesmo que de forma precária. Gosto de buscar algo que ilustre bem isso, um trecho que revele o ritmo ou até o vocabulário do escritor, para poder destacar o que me interessou na obra”, afirma. Sobre a tríade crítico/escritor/leitor, o repórter do Prosa, suplemento literário do jornal O Globo, Bolívar Torres,
Brasil 1904-2004, a professora da UFRJ Cristiane Costa traz informações que apontam a dificuldade que havia em se separar, no país, autores e críticos. No tópico Linguagem condicionada x liberdade criativa, a autora escreve: “(…) a linguagem literária se oferece como o espaço da experimentação por excelência. Mas não se pode esquecer que, ao longo dos últimos 100 anos, a imprensa foi, em muitos casos, o laboratório da poesia e do romance nacional”. De acordo com Costa, foi o cenário jornalístico que propiciou aos escritores ferramentas narrativas, como “manipular ritmos, cortar palavras, dominar a língua, aproximar-se do coloquial e comunicar-se com o leitor”. Nesse cenário, importa a lembrança da figura do crítico literário acadêmico, como destacou o poeta carioca Victor Heringer. “A crítica está bemequipada para lidar com esse recurso
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(linguístico). Não há melhor ‘técnico de linguagem’ do que um acadêmico – o que não é necessariamente um elogio. Mas os exemplos de crítica inventiva são muitos. Basta pensar nas Passagens, de Benjamin, ou nos Fragmentos (de um discurso amoroso), de Barthes. Não estão à altura dos melhores poetas? Gosto de uma frase de Agamben que diz que a função da crítica não é interpretar um texto, iluminá-lo, torná-lo palatável, mas sim ‘garantir as condições de sua inacessibilidade’.” Na publicação Crítica literária – em busca do tempo perdido?, o professor de Literatura Comparada da UERJ João Cezar de Castro Rocha investiga uma polêmica da qual os críticos Afrânio Coutinho e Álvaro Lins foram protagonistas, na década de 1950. A peleja envolvia os processos críticos inseridos num tom mais tradicionalista universitário (cátedra) e em outro inventivo, impressionista, publicado na imprensa (crítica de rodapé). Castro Rocha argumenta que “nas condições históricas da formação da vida cultural no Brasil, e mesmo na América Latina como um todo, não estamos condenados a uma solução binária simples” e “aceitar tal disjunção equivale a ignorar o espaço que determinados suplementos culturais e cadernos de livros abriram e
abrem para professores universitários, tanto para a escrita de resenhas quanto para a divulgação de ensaios”. A jornalista paranaense Gisele Eberspächer, resenhista do suplemento literário Jornal Rascunho e responsável pelo vlog Vamos falar sobre livros?, aponta uma dicotomia que deve ser observada também no comportamento dos leitores. “Para alguns, a crítica pode servir como uma espécie de curadoria, uma ajuda na decisão do que ler ou não. Para outros, ela é o meio de se aprofundar em uma leitura, aprender mais sobre determinado momento ou estilo, entrar em contato com interpretações diferentes.” De acordo com Gisele, essa escolha está inserida, entre outros fatores, numa questão de tempo. “Assim como as pessoas não têm tempo para ler todos os livros, não terão tempo para ler todas as críticas. Elas vão escolher a categoria de texto que lhes parecer mais adequada, com o tipo de informação e aprofundamento que procuram”, reflete. Sobre uma das querelas literárias mais discutidas no Brasil, Luisa Geisler é categórica: “Achar que a opinião de alguém é mais ou menos qualificada por conta de uma formação acadêmica é um pouco
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1 BOLÍVAR TORRES Para ele, literatura brasileira vive numa bolha 2 LUIZA GEISLER Escritora não separa a linguagem da interpretação 3 CAMILA HOLDEFER Blogueira evita hermetismos, mas não subestima o leitor
de elitismo. Literatura não é uma torre em que apenas os honrados (e formados) podem entrar”.
CORPO DE UM DISCURSO
Na construção de sua teoria, Castro Rocha disserta sobre um esgotamento do formato comum à crítica e sustenta a necessidade de que qualquer tipo de reflexão sobre literatura deva “partir da teorização das consequências da centralidade dos meios audiovisuais e digitais na definição da cultura contemporânea”. No prefácio de Aos sábados, pela manhã – compilação de textos assinados por Silviano Santiago –, o pesquisador Frederico Coelho escreve que, talvez, o crítico não possa mais oferecer ao leitor algo novo e, sim, “organizar de forma inovadora as informações”. As ideias de Castro Rocha e Santiago convergem para uma observação da estrutura textual (formato), e
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INDICAÇÕES
Leitura colocam no centro do debate a pergunta sobre qual espaço recebe a crítica literária brasileira hoje. A gaúcha Camila von Holdefer, autora do blog Livros Abertos, surge como um exemplo contemporâneo certeiro para as questões levantadas pelos professores. A estudante de Filosofia começou o projeto em 2011. Na época, criou um blog que estava inserido nos sites do grupo de mídia em que trabalhava como redatora. Com o grande número de acessos e a alta frequência de atualização, o Livros Abertos não se encaixou mais no perfil da empresa, que, de acordo com Camila, não tinha cultura como foco. “Depois do estupendo pé na bunda, levei o projeto para um domínio próprio, em que tive, e ainda tenho, liberdade para selecionar o conteúdo. O tamanho do texto não me preocupa, mas ajustei o discurso. Busco regular o tom de maneira a não subestimar o leitor, mas evitando o hermetismo”, afirma. Em janeiro deste ano, a gaúcha publicou algumas notas sobre o calhamaço Graça infinita, de David Foster Wallace. Estruturado como dodecaedro – um dos poliedros de Platão –, a iniciativa foi bastante discutida no meio digital e nas redes sociais. No mês de maio, foi a vez de uma extensa série sobre a crítica literária contemporânea movimentar o site. Os textos foram recomendados e elogiados por escritores, acadêmicos, editores e leitores.
Na contramão da teoria apresentada por Frederico Coelho, Camila acredita que o crítico sempre pode apresentar algo diferente, sobretudo porque os novos autores ajudam a redefinir a própria literatura. “Mesmo a organização das informações em uma forma original é, por si só, uma maneira de inovar. Sobre o espaço da crítica hoje no Brasil, não compro a ideia de marasmo, mas concordo que há pouco espaço na mídia tradicional para a reflexão mais ponderada. A consequência é que certos textos tendem a migrar para a internet ou para publicações específicas. O molde a ser buscado, pelo menos no meu caso, é justamente a falta de molde”, avalia. De acordo com Derrida, em Essa estranha instituição chamada literatura, toda escrita e toda leitura participam de “uma dupla injunção do acaso e da necessidade, da necessidade que se deixa também guiar pelo acaso, para poder efetivamente reinventar o destino”. Quando se lança um olhar narrativo discursivo na direção do texto crítico literário, pode-se empreender a tentativa de pontilhar essa reinvenção do destino, proposta pelo filósofo francês. Independentemente dos caminhos e respostas encontrados, o importante é escutar dentro desse futuro desconhecido o murmúrio incessante do qual fala Maurice Blanchot. Afinal, a crítica, assim como a literatura e o jornalismo, é capaz de promover encontro entre a necessidade e o acaso desses que “uma vez ouvido, não poderá deixar de se fazer ouvir”.
HQ
RIAD SATTOUF O árabe do futuro Intrínseca
POESIA
ANDRÉ DAHMER A coragem do primeiro pássaro
As HQs têm sido um excelente meio de ler sobre a vida no Oriente Médio. Assim como Marjane Satrapi realizou em Persépolis, o cartunista Riad Sattouf conta, em O árabe do futuro, sua história quando seu pai sírio e sua mãe francesa deixaram a França e foram morar na Líbia e na Síria, na década de 1970; ele era um garotinho. Até 2014, Sattouf publicou tirinhas no Charlie Hebdo.
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HISTÓRIA
ESTUDO
JOSÉ GUILHERME MERQUIOR De Anchieta a Euclides – Breve história da literatura brasileira É Realizações
Originalmente publicado em 1977, este livro é uma ótima entrada no pensamento de Merquior. Ele diz que seu objetivo neste trabalho foi tornar acessível a crítica, sem esquecer a seletividade e a estética textual. Sua análise recai nos autores considerados basilares à formação.
Enquanto encontra uma voz clara e pessoal nas tirinhas, André Dahmer tateia na poesia. Em 2009, ele havia publicado Ninguém muda ninguém, em que poemas se juntavam a fotografias, pinturas, desenhos. Em A coragem do primeiro pássaro, ele se concentra no texto de dicção prosaísta e se revela melhor na composição curtíssima.
VALÉRIA VICENTE E GIORRDANI DE SOUZA Frevo – Para aprender e ensinar Associação Reviva/Editora UFPE
Este livro pretende contribuir à busca de práticas saudáveis da dança do frevo, em seus aspectos físico, mental, sensível e simbólico. Para isso, há uma abordagem histórica e metodológica da dança e dos seus movimentos bem como a fisiológica, atenta aos princípios do treinamento físico e do fortalecimento muscular.
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REPRODUÇÃO
Claquete SOUND DESIGN O poder do som no cinema
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Este elemento fundamental à imersão do espectador está ligado à evolução dos processos de manipulação de áudio TEXTO Fernando Athayde
Introduzido no cinema no início da década de 1930, o som renovou a forma de pensar a linguagem cinematográfica. Muito além disso, a interação entre áudio e vídeo também contribuiu para transformar a sétima arte num mecanismo de expressão cultural imersivo, consolidado pela capacidade de instigar sensações e reflexões no público. À função estética atribuída pela inserção do som na experiência fílmica é dado o nome de sound design, traduzido para o português como “desenho de som”. O termo, criado pelo montador norteamericano Walter Murch nos créditos do filme Apocalipse now, de 1979, expandiu-se com o passar dos anos, traçando um caminho intimamente ligado à tecnologia musical
e à evolução dos processos de manipulação de áudio. Em primeiro lugar, é fundamental perceber que, cinematograficamente, foi necessário um tempo até que o som se tornasse um agente estético de importância equivalente ao da imagem. Apesar disso, a necessidade de estimular emocionalmente o público através dos sons sempre existiu, acompanhando de perto a evolução da tecnologia de áudio no século 20. Se, nas suas primeiras décadas, os filmes eram exibidos simultaneamente a apresentações de orquestras ao vivo, tudo começou a mudar em 1927, com a implementação do Vitaphone, aparelho criado pela empresa Western Eletric, que sincronizava as rotações de um disco de gomalaca
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Claquete (resina posteriormente substituída pelo vinil) às da película. O equipamento estreou no longa O cantor de jazz, de Alan Crosland, primeiro filme falado da história e que desencadeou uma revolução tanto técnica quanto conceitual. A partir daí, as funções linguísticas do som começaram a ser intensamente exploradas, e, já no final da década de 1930, era possível encontrar diversos componentes auditivos atuando na concepção estética das obras, além dos tradicionais diálogos e da trilha sonora. Precário e de funcionamento duvidoso, o Vitaphone foi rapidamente substituído por tecnologias mais eficazes, capazes de registrar o áudio dos filmes diretamente na película, contribuindo para a materialização de uma mídia, enfim, audiovisual. Nesse contexto de pleno desenvolvimento, surge, então, aquele que é o elemento mais importante para a dinâmica estabelecida na sétima arte pelo sound design: o som surround. Traduzido livremente do inglês, to surround é um verbo que significa cercar, cingir, abraçar. No som, significa espacialidade, ou seja, a capacidade de envolver o ouvinte em sons emanados de todas as direções, exatamente como acontece na vida real, levando o espectador ao estado de imersão característica da experiência cinematográfica. O jornalista e pesquisador do assunto Rodrigo Carreiro explica que “foram feitas várias experiências com o surround antes que ele fosse usado efetivamente, sendo a primeira delas em 1940, quando a empresa RCA criou um sistema de som a pedido da Disney, chamado Fantasound para o filme Fantasia”. O Fantasound surgiu sob a premissa de posicionar caixas de som à esquerda, à direita e no centro da sala de cinema – uma ideia revolucionária, mas que, devido ao seu alto custo de produção, foi adiada por vários anos. Carreiro explica que “Fantasia
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Foram feitas várias experiências com o surround antes que ele fosse usado efetivamente no cinema
foi o único filme lançado nesse sistema, que, na época, foi colocado à disposição dos teatros que quisessem instalá-lo por 40 mil dólares”. Somente três décadas depois, em 1974, com o clássico Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, o som surround se tornou popular na sétima arte, graças à criação do sistema
Dolby Stereo, pela empresa Dolby Laboratories. “Quando o Dolby Stereo foi introduzido, em 1975, as salas de exibição tinham de desembolsar apenas 5 mil dólares de investimento para aderir à tecnologia, ou seja, oito vezes menos que o Fantasound, 35 anos depois”, esclarece Carreiro. Essa compensação financeira fez com que o tal sistema fosse convertido num elemento onipresente na indústria cinematográfica. Ainda assim, o Dolby Stereo nunca deixou de ser aprimorado, evoluindo até se transformar no Dolby Digital ou Dolby 5.1, lançado em 1992, no filme Batman – o retorno, de Tim Burton. Utilizada até hoje, tal tecnologia permite a divisão do som dos filmes em seis canais,
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1 O CANTOR DE JAZZ Primeiro filme falado desencadeou revolução técnica e conceitual 2 FANTASIA Filme da Disney estreou o surround, em 1940 3 SOUND DESIGN Termo criado por Walter Murch apareceu nos créditos de Apocalipse now
sendo cinco deles posicionados ao redor da sala de exibição, além de um sexto exclusivo para a reprodução de frequências graves. Recentemente, porém, a Dolby Laboratories anunciou o desenvolvimento de uma nova tecnologia, a Dolby Atmos, que expande o número de canais de áudio disponíveis nas salas de seis para 128. Embora ainda incipiente, o sistema, por enquanto só incorporado a uma sala do circuito brasileiro, aparenta ser um artifício não somente voltado para a elaboração de desenhos de som cada vez mais sofisticados, mas também enquadrado como um mecanismo de ação comercial. “Toda vez que o cinema se sente ameaçado por um outro
A Dolby anunciou nova tecnologia que expandirá a quantidade de canais de áudio nos cinemas, de seis para 128 mercado, que hoje seria a internet, ele tenta oferecer ao espectador uma experiência visual e sonora que não seja reproduzível em casa”, aponta Carreiro, referindo-se ao fato de atualmente ainda não haver aparelho de som de uso doméstico capaz de reproduzir tamanha quantidade de canais de áudio simultâneos.
SOM, TÉCNICA E LINGUAGEM
Um dos casos mais famosos da história do cinema ocorreu na exibição da primeira imagem em movimento, no pequeno Um trem chegando à estação, de 1895, produzido pelos irmãos Lumière. Diz-se que boa parte do público saiu correndo da sala, sem saber se a cena – composta por um trem vindo em direção à câmera – era real ou não. Tal acontecimento ilustra perfeitamente o impacto exercido pelo contato de uma nova linguagem com o homem. Cem anos atrás, as pessoas não estavam preparadas para interpretar os códigos sob os quais se constrói a experiência audiovisual. Hoje, graças à gigantesca popularidade e influência obtida pela sétima arte ao longo do século 20, o espectador médio desenvolveu e incorporou ao seu repertório a capacidade de assimilação da linguagem cinematográfica. Nesse contexto, o som desempenha uma função complexa e intrigante. Enquanto as pessoas passaram a interpretar com naturalidade elementos como a trilha sonora, narrações em off e demais ruídos exteriores à diegese das obras, a tecnologia de áudio contribuiu para que a edição do som dos filmes os tornassem cada vez mais verossímeis.
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Claquete 4
Hoje, é possível registrar as falas dos atores no momento em que as cenas são rodadas, mas, até pouco tempo, era obrigatoriamente necessário regravar os diálogos durante a pósprodução. Além disso, uma técnica artesanal como o foley art – que se resume a criar em estúdio todo tipo de ruído impossível de ser captado ao vivo, como o barulho de explosões atômicas ou prédios desabando – passou a dividir espaço com a enorme quantidade de bancos de som disponíveis gratuitamente na internet, como o famoso site www.free-sound.org. E, embora esse progresso das técnicas de gravação e manipulação do áudio tenha convertido o sound design numa prática mais dinâmica e acessível, alguns aspectos relacionados ao potencial linguístico do som do cinema permanecem passíveis de reflexão, especialmente em relação à composição das trilhas sonoras. Isso se deve ao fato de que, ao longo do século 20, a linguagem musical tomou o caminho inverso da sétima arte. Retida aos moldes e formatos disseminados pela música
Hoje, há uma enorme quantidade de bancos de som disponíveis gratuitamente na internet pop, a capacidade de interpretação sonora do público médio acabou pautada a apenas um dos infinitos caminhos pelos quais a composição musical pode seguir. Assim, é comum que a maioria das pessoas só associe determinadas sensações e sentimentos às progressões harmônicas e melódicas consolidadas pela indústria fonográfica. Além disso, a pluralidade de formatos de arquivos de áudio e a qualidade incerta da maioria das caixas de som domésticas também foram determinantes para que a música se distanciasse das condições estruturais necessárias à sua compreensão plena. O produtor musical e sound designer Rafael Borges aponta: “Nós nos
acostumamos a ouvir música muito mal. Essa experiência é infinitamente inferior ao que deveria ser. No cinema, existe uma solenidade em ir à sala e assistir a um filme, um resgate à apreciação plena da arte”. Tal análise coloca a experiência cinematográfica como um artifício capaz de levar o público a interpretar o som nas condições adequadas, algo que nem a própria música é capaz de fazer hoje. “No Ocidente, nós somos reféns da melodia. Instrumentos melódicos compõem a harmonia para nós. Não só a harmonia musical, mas a harmonia enquanto equilíbrio natural”, pontua Rafael, que também cita a trilha sonora do cultuado filme Birdman ou A inesperada virtude da ignorância, de Alejandro González Iñárritu, composta exclusivamente por percussão, como um exemplo de um modo de estimular sentimentos no espectador através de outras abordagens musicais. Tal aspecto solene da experiência cinematográfica ainda reverbera em outro ponto importante para a construção do som dos filmes – os
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INDICAÇÕES DOCUMENTÁRIO
DRAMA
Dirigido por Brett Morgen Com Kurt Cobain, Krist Novoselic, Courtney Love Universal Pictures
Dirigido por David Michôd Com Guy Pearce, Robert Pattinson Roadshow Films
KURT COBAIN: MONTAGE OF HECK
THE ROVER – A CAÇADA
Desde o suicídio de Kurt Cobain, em 1994, o mundo tenta interpretar a obra do músico à frente da banda norte-americana Nirvana. Primeiro documentário realizado com autorização da família, Kurt Cobain: montage of heck é a materialização do desejo que os seus admiradores têm de conhecer a vida pessoal e as motivações do artista. Um dos pontos polêmicos do filme é ausência do baterista do Nirvana, Dave Grohl.
Num futuro distópico, em que se passaram 10 anos desde um colapso econômico que espalhou a miséria pelo mundo, um ex-fazendeiro tem seu carro roubado por uma gangue e conta com a ajuda de um membro renegado pela quadrilha para ajudá-lo a encontrar o veículo. Brutal, o filme australiano se destaca por investir numa complexa análise sobre a personalidade de personagens que perderam tudo e agora têm de encontrar algo que dê sentido às suas vidas.
DRAMA
COMÉDIA
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chamados LFE, abreviação de Low Frequency Effects, traduzidos como “efeitos de baixa frequência”. Responsáveis por interagirem diretamente com a fisiologia do corpo humano, as frequências graves são elementos quase obrigatórios para a criação de tensão e alívio na experiência fílmica e que raramente podem ser reproduzidos num equipamento de som doméstico. Um filme como Onde os fracos não têm vez, dos irmãos Cohen, sequer faz uso de uma trilha sonora e situa toda sua tensão na inserção de sons extremamente graves nas cenas – uma experiência que só atinge o seu estado de apreciação ideal na sala de exibição. Ainda assim, quando um filme é finalizado, ele passa por uma série de
4 BIRDMAN Trilha do longa inovou ao usar sons de bateria para acompanhar a narrativa 5 BATMAN Filme de Tim Burton fez a estreia, em 1992, do Dolby Digital
procedimentos de mixagem de som, para que se adapte a todos os mercados, desde o cinema até a televisão. Embora a sala de cinema seja um elemento atemporal e necessário à sétima arte, a elaboração da linguagem cinematográfica permanece em constante efervescência, transformada pela própria dinâmica do mundo. Ao definir o termo sound design, o norteamericano Walter Murch percebeu justamente isso: o som do cinema é, por excelência, um organismo vivo, necessário e flexível, à medida que evoluem a linguagem e a tecnologia.
O SAMURAI DO ENTARDECER
Dirigido por Yôji Yamada Com Hiroyuki Sanada, Rie Miyazawa, Nenji Kobayashi Shochiku Co.
No Japão do século 19, um samurai encontra a miséria, quando perde a esposa para a tuberculose e tem de sustentar a mãe doente e as duas filhas. Amargurado pela castradora rotina de trabalho, ele vê sua vida mudar ao reencontrar um amor de infância, obrigando-se moralmente a protegê-la de um bêbado violento. Excepcional da concepção do roteiro à direção de arte, o longa, lançado em 2002, foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
JCVD
Dirigido por Mabrouk El Mechri Com Jean-Claude Van Damme, François Damiens, Zinedine Soualem Gaumont
Após uma carreira de quase 40 longas-metragens de ação, problemas judiciais envolvendo quatro casamentos fracassados, e a luta contra a dependência de cocaína, o astro belga Jean-Claude Van Damme interpreta ele mesmo em JCVD. Num filme em que não há sequer uma troca de socos e pontapés, Van Damme retorna à sua terra natal a fim de encontrar a paz de espírito. Com domínio técnico louvável, a obra conta com uma interpretação fabulosa do ator.
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CON TI NEN TE
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Simião Martiniano por Humberto Araújo
Mais conhecido como o “Ed Wood brasileiro”, em referência ao diretor norte-americano que realizou uma grande quantidade de filmes de baixíssimo orçamento e de gosto duvidoso, Simião Martiniano teve o nome projetado após o lançamento do documentário sobre seu trabalho, O camelô do cinema (1998). O cineasta pernambucano, que morreu no dia 27 de abril deste ano, deixa nove filmes independentes e a lição de que, quando se quer mesmo, se faz.
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