Continente #176 - Calabar

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# 176

#176 ano XV • ago/15 • R$ 10,00

CONTINENTE

CALABAR

O COMPLEXO JOGO ENTRE

TRAIÇÃO E POLÍTICA ESPECIAL GRAFITE GANHA OS MUROS DE LISBOA TRADIÇÃO O SENTIMENTO COMUM ÀS FESTAS BRASILEIRAS

AGO 15

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E MAIS BIENAL DE VENEZA JAM DA SILVA FENELIVRO PIERRE BYLAND

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O LIVRO DO FUTURO. O FUTURO DO LIVRO.

ESTE É O PRIMEIRO CAPÍTULO DE UMA GRANDE HISTÓRIA.

Pernambuco vai realizar a primeira Fenelivro, a Feira Nordestina do Livro. Mais do que um grande evento, a Fenelivro será um marco para a cultura do nosso Estado e de todo o Nordeste. Participarão autores, editoras, distribuidores, produtores culturais e um grande público movimentando o mercado literário, gerando conhecimento e disseminando o gosto pela leitura. Um evento gratuito para crianças, jovens e adultos viverem juntos uma grande história.

Centro de Convenções de Pernambuco De 28 de agosto a 7 de setembro de 2015

Confira a programação fenelivro.com.br

Quem lê aprende mais, escreve melhor e tem mais histórias pra contar. Incentive a leitura.

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ESTE É O PRIMEIRO CAPÍTULO DE UMA GRANDE HISTÓRIA.

Pernambuco vai realizar a primeira Fenelivro, a Feira Nordestina do Livro. Mais do que um grande evento, a Fenelivro será um marco para a cultura do nosso Estado e de todo o Nordeste. Participarão autores, editoras, distribuidores, produtores culturais e um grande público movimentando o mercado literário, gerando conhecimento e disseminando o gosto pela leitura. Um evento gratuito para crianças, jovens e adultos viverem juntos uma grande história.

Centro de Convenções de Pernambuco De 28 de agosto a 7 de setembro de 2015

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RICARDO MELO

A G OS TO 2 0 1 5

aos leitores Tu quoque, Brute, fili mi! Dizem que a frase atribuída a Júlio César nos idos de março de 44 a.C. teria sido, na verdade, inventada por William Shakespeare. Atacado a punhaladas desferidas por dezenas de senadores na república de Roma, que ele ajudou a fundar, César teria exclamado, não em latim e sim em grego, “até tu, meu menino?” ao constatar que entre os agressores estava seu protegido e filho adotivo. Sua morte é, até hoje, marco na história da traição política; ele virou um mártir e Brutus, por sua vez, foi eternizado como o vil traidor. É desse complexo jogo entre heróis e desleais que se constrói a reportagem de capa desta Continente. A misteriosa figura de Domingos Fernandes Calabar surge como mote na abordagem do tema. No século 17, quando da invasão holandesa, o mestiço Calabar lutou ao lado do governador da capitania de Pernambuco, Matias de Albuquerque, tendo sido ferido em 1632 ao lado dos portugueses em confronto contra os inimigos dos Países Baixos. Meses depois, ressurgiu combatendo para os flamengos. A defecção surpreendeu os lusos e deixou os neerlandeses em vantagem, pois ele era um exímio conhecedor do litoral e do interior pernambucanos. Em 1635, apanhado por tropas lusas na sua cidade natal – Porto Calvo (foto acima) – foi garroteado e

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esquartejado; sua cabeça ficou exposta em uma treliça por três dias. Muitos outros praticavam o escambo de informações e, pior, o tráfico de influência, mantendo relações econômicas e comerciais com os neerlandeses, a exemplo de João Fernandes Vieira. Este, no entanto, é lembrado apenas como um dos heróis da Guerra da Restauração, que expulsou o inimigo batavo em 1654, e não como um dos maiores fornecedores de alimento para as tropas da Companhia das Índias Ocidentais. Ganhou dois livros que mais se assemelham a hagiografias, dados os encômios e feitos a ele atribuídos. Já Calabar vaga, até hoje, como o “patriarca dos traidores”, como define o historiador Ronaldo Vainfas, um dos entrevistados desta edição. Na atualidade, não é diferente e seguem surgindo nomes como o australiano Julian Assange e do norte-americano Edward Snowden sob os quais também recai o manto da traição. Ambos simbolizam, hoje, a dicotomia entre o heroísmo dos seus feitos e a fama de traidores. Para a doutora em Filosofia Katarina Peixoto, no século 21, as rupturas no campo político devem ser reconhecidas como legítimas e não devem ser vistas como traição, mas sim como atos de dissidência. Algo essencial para a instauração de novos tempos.

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sumário Portfólio

Guilherme Luigi 6

Cartas

7

Expediente + colaboradores

8

Entrevista

12

20

55

60

Marcus André Vieira Psicanalista e psiquiatra fala sobre o fenômeno da superexposição imagética no mundo contemporâneo

64

Claquete

74

Matéria corrida

82

Entremez

84

Leitura

88

Criaturas

Balaio

Pablo Escobar Série resgata a trajetória do traficante colombiano com direção de José Padilha

Palco

Pierre Byland Artista suíço explica como surgiu o movimento Novo Clown e a importância dele na sua carreira

Jam da Silva Compositor, produtor e instrumentista consolida sua carreira solo com o álbum Nord

68

Conexão

Feminismo Universidade Livre Feminista promove a reflexão e a troca de ideias entre mulheres de diferentes perfis

Sonoras

Designer gráfico desenvolve uma linha temática cuja ideia perpassa pelas paisagens gráficas com recursos de repetição e estamparias

14

Real beleza Novo longa-metragem de Jorge Furtado fala das relações interpessoais que podem se estabelecer na busca pela perfeição

José Cláudio Os meses

Ronaldo Correia de Brito O quadro que Chagall não pintou Fenelivro Primeira edição da feira acontece este mês e terá como tema o livro digital

Le Corbusier Por Emilio Damiani

Cardápio

Sal Vilanizado pelo seu uso em excesso, o cloreto de sódio é tempero indispensável em qualquer cozinha

Tradição Festejos

As manifestações populares brasileiras aliam desejos do passado e do presente, num momento de união e de dissolução dos papéis sociais do cotidiano

45 CAPA ILUSTRAÇÃO Indio San

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Capa

Perfil

Na história, alguns personagens são vistos como heróis e outros como rebeldes. É dentro desse jogo que aparece a figura de Calabar, considerado o “patriarca dos traidores”

Fã dos Beatles desde os onze anos de idade, o maior colecionador brasileiro da banda expõe um recorte do seu acervo no Recife

Especial

Visuais

Arte urbana da capital portuguesa vive bom momento com o incentivo de órgão municipal, fazendo jus à tradição que vem desde o tempo da Revolução dos Cravos

Evento chega à sua 56ª edição apontando uma rearrumação do campo da arte e apresentando obras que mapeiam diversas questões urgentes da atualidade

Traição & Política

22

Muros de Lisboa

50

Marco Antonio Mallagoli

40

Ago’ 15

Bienal de Veneza

76

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cartas ISSN

mantermos uma coerência mínima com preceitos, que, olha, como não notamos antes, são tão básicos. Mas precisamos fazer esse movimento. Porque, se o debate é aberto, e se dele o constrangimento começa a vir, mesmo que na marra, a gente dá um passo adiante pra libertar o outro. E quando um vai libertando o outro para ele ser o que é, todo mundo fica livre. (Comentário feito ao compartilhar a capa da revista de julho, com o tema Gordofobia)

Vejo na revista Continente um referencial de qualidade no processo que envolve a edição, criação, redação, impressão e, principalmente, na diversidade de seus artigos. Gostaria de contribuir para a manutenção dessa qualidade. O número do ISSN (International Standard Serial Number) que a revista informou na etiqueta do código de barras (ISSN 1808-7558) até 2008, não mais aparece a partir de 2009. É importante que essa informação volte a ser apresentada. VIRGÍNIA BARBOSA RECIFE – PE

RESPOSTA DA REDAÇÃO Com a mudança de projeto gráfico em 2009, o número do ISSN passou a ser disponibilizado apenas no interior do código de barras da publicação, sem qualquer destaque como acontecia anteriormente.

DO FACEBOOK Primeiro veio isso de termos espaços e ambientes abertos, de falas que antes não chegavam e

GUILHERME GATIS RECIFE – PE

que agora, dependendo do nosso interesse ou da nossa rede de contatos, chegam. De todas, as mais importantes são as que te tiram do conforto, que mostram que as posturas e atitudes, já cristalizados, não rolam mais. Para muitos, é um saco isso de “tudo ser machismo”, “tudo ser homofóbico”, ter que se submeter ao patrulhamento do “politicamente correto”. Pois é. Não é lá muito fácil quando a gente está no sedentarismo intelectual e sabe que precisa, depois que essas falas chegaram, fazer o esforço para

A Continente é um orgulho do ambiente editorial de Pernambuco. Ótimos conteúdos e excelência gráfica renovam sempre o prazer da leitura: parabéns, Cepe! ROGÉRIO ROBALINHO RECIFE-PE

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

(81) 3183 2780

Estou adorando essa presença cada vez mais frequente da arquitetura na Continente. Continuem assim, e sucesso sempre! PEDRO YAGO

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JOÃO PESSOA-PB

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colaboradores

Bruno P. W. Reis

Carolina Leão

Cristiana Tejo

Ricardo Viel

É doutor em Ciência Política pelo Iuperj, no Rio de Janeiro, e professor da UFMG

Jornalista, professora universitária e doutora em Sociologia pela UFPE

Curadora, jornalista e doutoranda em Sociologia pela UFPE

Jornalista, radicado em Portugal, colabora com diversas publicações brasileiras

E MAIS Alexandre Figueirôa, jornalista, professor, crítico e doutor em Cinema pela Sorbonne. Christianne Galdino, jornalista, professora e doutoranda em Antropologia pela UFPE. Emilio Damiani, ilustrador, caricaturista e colaborador da Folha de S. Paulo. Guilherme Novelli, jornalista. Leo Caldas, fotógrafo. Marcelo Abreu, jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder! – um repórter brasileiro na Coreia do Norte. Renata do Amaral, jornalista, professora, doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural. Téo Pitella, fotógrafo.

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MARCUS ANDRÉ VIEIRA

“Acreditamos que podemos controlar nossas imagens” Psiquiatra e psicanalista de orientação lacaniana afirma que a psicanálise precisa encontrar estratégias para lidar com questões contemporâneas, surgidas a partir da interação nas redes socias, como a obsessão pela aprovação do outro TEXTO Carolina Leão

CON TI NEN TE

Entrevista

Imagine as primeiras gerações

que habitaram o planeta. Naquele universo inóspito, o olhar tinha uma função primordial. A escuta, de pássaros, trovões ou rugidos de predadores, apenas as indicava que algo, um fenômeno natural ou um ataque, poderia acontecer. O olhar não. Ele estava lá confirmando, sem ambivalências, o que se poderia esperar, de melhor ou pior, naquele momento. Nem sempre as imagens eram claras – dentro de uma caverna, por exemplo. Por isso, a necessidade da exploração sinestésica do mundo: a escuta, o paladar, o tato, o olhar. Desde as eras mais remotas, no entanto, o olhar representou um sentido fundamental, mas não o único e hegemônico. Atualmente, ele é soberano. Se precisarmos de uma “certidão de nascimento” para legitimar o contexto em que a imagem se tornou um elemento social dominante, coloquemos, então, as tecnologias de reprodução como essa virada, a partir da invenção da prensa, no século 15. Durante a modernidade,

a fotografia, a litografia, o cinema, por exemplo, deixaram a sociedade cada vez mais distantes da tradição oral. As imagens ganharam espaço, status e poder, ampliados cada vez mais com a cultura da convergência, na qual uma nova linguagem de comunicação e informação vem determinando a vida cotidiana. Selfies, avatares, filtros de fotografia e aplicativos de interação social, cuja dinâmica está centrada na edição de imagens, pessoais e coletivas, chegam aos divãs do analista. O tema é central no Encontro Americano de Psicanálise da Orientação Lacaniana (ENAPOL), que acontece em setembro, em São Paulo, sob o título O império das imagens, e no qual participa o psiquiatra e psicanalista carioca Marcus André Vieira. Autor de A paixão, Marcus, que esteve em julho no Recife, em palestra na Escola Brasileira de Psicanálise, aponta: a psicanálise também precisa investigar o fenômeno da superexposição imagética, no âmbito coletivo, para entender individualmente os pacientes neste contexto inserido.

Em entrevista exclusiva à Continente, ele falou sobre essa questão. CONTINENTE Desde a sua disseminação, no início do século 20, a psicanálise se mostrou como um meio de analisar a relação entre sujeito e cultura. Partindo dessa perspectiva, o senhor nota uma mudança na clínica, atualmente, por conta do excesso de exposição às imagens, com as novas tecnologias de edição e interação social, por exemplo? MARCUS ANDRÉ VIEIRA Sim. Todas as novas questões culturais forçam a psicanálise a entender melhor a dinâmica e mudanças da sociedade e como trabalhar com ela a partir da experiência na clínica. O que percebemos e discutimos hoje é a exposição de imagens como mosaicos fixos, que se acumulam na vida cotidiana gerando um imediatismo muito grande no consumo de narrativas imagéticas (YouTube, selfies, redes sociais, TV). Essas imagens produzem certezas, mesmo tendo a possibilidade de serem editadas o tempo todo. Certezas são narrativas fixas. E o paradoxo é que a nossa cultura está vivendo uma ilusão. A

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LEO CALDAS

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diversidade das imagens nos leva a crer que existem múltiplas escolhas de decisões. Mas não. Vivemos em um binarismo. Ou sim ou não. Esse binarismo oculta os dégradés, os vários tons de cinza que existem em nossa personalidade, em nossa cultura. Essa é a grande dificuldade em fazer com que as pessoas percebam as diversas nuances existentes na personalidade delas e ao redor delas. Porque, no final das contas, elas vão ter a tendência de escolher entre sim e não. No Facebook, esse binarismo é ampliado pela própria

história. Uma criança num jogo, com o terapeuta, também fala, é uma forma de contar uma história. Mesmo histórias fragmentadas, como os sonhos, que são feitos caleidoscópios, ou seja, não fazem muito sentido, representam uma forma de contar uma narrativa pessoal. Não é preciso ter uma boa retórica para se fazer análise, mas apenas consentir em falar. Atualmente, não é que eu veja uma baixa capacidade em articular as informações, em falar de si, de sua história. Mas o consumo de

IMAGENS: REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

“Os selfies são uma obsessão que tem por objetivo o controle da imagem que se quer mostrar. Não é que não houvesse uma edição de nossa imagem antes. A questão, agora, é que acreditamos que podemos controlar nossa imagem sempre e nos frustramos quando isso não acontece”

Entrevista lógica matemática do programa, pelo próprio algoritmo. Dia desses assisti ao filme sobre a origem do Facebook, criado para escolher a garota mais sexy da universidade, e o que a gente vê é que o mais importante era gostar ou não daquela imagem exibida, mesmo que as amostras fossem infinitas. CONTINENTE A imagem tem também um caráter de síntese. Ela resume. Os emoticons, por exemplo, acabaram funcionando como um resumo visual dos sentimentos. O excesso de exposição às imagens e a utilização delas como hábito pode, de alguma forma, influenciar na habilidade das pessoas falarem de si como mais propriedade? MARCUS ANDRÉ VIEIRA A análise é sempre alguém contando uma

CONTINENTE A que o senhor atribui essa hegemonia e potencial comunicativo das imagens na cultura contemporânea? Estamos passando por uma nova fase de narcisismo cultural? MARCUS ANDRÉ VIEIRA A imagem guarda em si uma nitidez muito grande. Ela tem um poder totalizante. Mas não vejo uma grande mudança do que chamamos de modernidade. São consequências de uma sociedade que já vem desenvolvendo essa relação há bastante tempo. Há outras formas de se editar, de escolher, aquilo que

imagens surge sem interrogações. Sem questionamentos. Estamos aceitando o binarismo, como a máquina. É um mundo polarizado e uma montagem hierarquizada entre sim e não. CONTINENTE Qual o efeito dessa tendência no comportamento pessoal e coletivo? MARCUS ANDRÉ VIEIRA Esse binarismo oculta as diversas camadas, os outros que precisamos conviver. Estamos, de certa forma, expostos a porcentagens, como no Big Brother, em que temos a escolha de deixar ou tirar quem aceitamos. Mas essa escolha é sempre positiva ou negativa. Ou sim ou não. Querer ou não querer não é uma escolha infinita, é uma escolha limitada.

vamos mostrar da gente para as pessoas, socialmente. A diferença é que necessitamos das imagens mais do que em outras épocas. Precisamos nos mostrar, ser visto e ter controle sobre isso. E quem se recusa a participar de redes sociais, por exemplo? Quem não participa, está fora. Está no limbo. De certa forma, somos compelidos o tempo todo a controlar nossa imagem, o que é exposto. É um outro modo de narcisismo: compulsivo e compulsório. Muito se falou na questão de uma pós-modernidade. Mas não vejo que houve uma ruptura de uma outra lógica e sim uma mudança de ênfase. Acredito que estamos numa nova etapa da hipermodernidade, que tem amplificado o poder atribuído à imagem.

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CONTINENTE De que forma, por exemplo, a relação com as novas tecnologias de socialização, bastante influenciadas pelo poder das imagens, tem surgido na experiência psicanalítica? MARCUS ANDRÉ VIEIRA Vivemos uma clínica diferente. Há uma crise grave. Primeiro, as pessoas estão com dificuldade de se posicionar como indivíduos e entender os matizes que fazem parte da vida delas. Exatamente por conta desse binarismo, que descarta os dégradés da personalidade. Por outro lado,

Ou eu pego aquela imagem que me atraiu ou eu não pego. Não tenho outra chance, porque uma vez passada a imagem não posso pegá-la mais. É imediato. É confuso, paradoxal. Há a ilusão de múltiplas escolhas. Mas as escolhas são limitadas. CONTINENTE Os selfies deixaram de ser uma moda passageira. São um hábito corriqueiro. Como o senhor observa essa superexposição da imagem pessoal? MARCUS ANDRÉ VIEIRA Virou uma obsessão. Uma obsessão que tem por

Obama, do qual foi divulgada uma selfie no funeral de Nelson Mandela. Há, ainda, sites focados especialmente em selfies de funerais. O senhor acredita que com esse autocontrole perdemos o limite ético? MARCUS ANDRÉ VIEIRA Não é simplesmente uma perda de ética, não vejo dessa forma. Não vivemos mais num ambiente sagrado. Isso acabou. Naquele contexto, a selfie de Obama tinha uma representatividade. A imagem captada representava a figura máxima da política americana, sociedade conhecida por sua

“No Tinder, ou eu pego aquela imagem que me atraiu ou eu não pego. Não tenho outra chance, porque uma vez passada a imagem não posso pegá-la mais. É imediato. É confuso, paradoxal. Há a ilusão de múltiplas escolhas. Mas as escolhas são limitadas” a necessidade desse controle gera ansiedade e angústia, que gera pânico. Essas questões surgem cada vez mais nos consultórios. É comum as pessoas se angustiarem com a imagem que elas estão passando para as outras pessoas ou com o excesso de exposição. Muita gente paralisa e não consegue assumir uma posição mais pessoal. Com a polarização, aliás, fica mais difícil assumir um posicionamento pessoal, distante da coletividade. A autorreferência, inclusive, pode ser coletiva, pois o coletivo é o somatório de uns. As pessoas estão o tempo todo esperando ou “sim” ou “não”, curtiu ou não curtiu. Artefatos técnicos como o Tinder não mostram outra possibilidade do que “sim” ou “não”.

objetivo o controle, o autocontrole da imagem que se quer mostrar. Não é que não houvesse uma edição de nossa imagem antes. A questão, agora, é que acreditamos que podemos controlar permanentemente nossa imagem e nos frustramos quando isso não acontece. O loser, por exemplo. Quem não teve sucesso, fracassou. E aí vem toda a pressão por ter um pensamento positivo, para superar as dificuldades. Para enfrentá-las, é preciso sair do binarismo e perceber que somos feitos de vários tons, de dégradés. CONTINENTE Tira-se selfie em qualquer lugar, de restaurante a funeral. Vejamos, por exemplo, o caso do presidente Barack

perseverança, confiança, que deveria estar nesse funeral. Nesse sentido, é preciso garantir a imagem. O que não deixa de ser um controle. Nesse caso, o controle da imagem da autoridade máxima dos Estados Unidos. CONTINENTE Com toda essa necessidade de controle ou autocontrole obsessivo, estamos caminhando para uma regressão intelectual? MARCUS ANDRÉ VIEIRA Não vejo de uma forma apocalíptica. É um modelo de sociedade que precisamos entender. O que a psicanálise precisa encontrar são estratégias para lidar com essa nova dinâmica e possibilitar às pessoas o entendimento do que eles são, para além desse binarismo.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

CON TI NEN TE

TRAIÇÃO E HOLANDESES

FENELIVRO

O internauta que visitar o site da Continente, neste mês, vai encontrar a entrevista na íntegra com a doutora em filosofia pela UFRGS Katarina Peixoto. A pesquisadora fala sobre traição e dissidência no âmbito da filosofia e da política, citando os filósofos Spinoza e Russell e também Trotski, Assange e Snowden. Além disso, estarão disponíveis artigos sobre a presença holandesa em Pernambuco – contexto no qual Calabar está inserido – publicados na Continente Documento, número 34, editada em 2005, assinados por Leonardo Dantas Silva.

Confira, no nosso site, a programação completa da primeira edição da Feira Nordestina do Livro, que acontece entre 28 de agosto à 7 de setembro.

Conexão

JAM DA SILVA Assista no nosso canal no YouTube videoclipes do compositor e instrumentista pernambucano, cujo segundo disco é tema da seção Sonoras deste mês.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

ANDANÇAS VIRTUAIS

STREAMING

CULTURA POP

QUADRINHOS

APARTAMENTO

Opção para as bandas independentes apresentarem seus trabalhos

Artigos trazem opiniões dos colaboradores sobre diversos temas

Resenhas, listas, podcasts e muito humor para os amantes da HQ

Textos e vídeos com as primeiras experiências de morar fora da casa dos pais

bandcamp.com

dangerousminds.net

splashpages.wordpress.com

apezinho.com.br

Plataforma gratuita conhecida entre os músicos independentes, o Bandcamp foi lançado em 2008 e oferece, numa interface amigável para os artistas e público, o streaming das músicas. A banda disponibiliza o áudio, os nomes das faixas, artes gráficas e os releases. O site faz o resto: um banner com a arte principal, lista discos e faixas. Apesar de gratuito, o artista também pode oferecer downloads pagos em diversos formatos como em mp3 (padrão) ou em FLAC (alta qualidade), coletar os e-mails de quem baixar as músicas, ou disponibilizar um espaço para doações à banda.

Considerado um compêndio de novas ideias, formas de arte e abordagens para as questões sociais e os limites da cultura pop, o Dangerous Minds é um blog que possui diversos colaboradores (muitos deles jornalistas, escritores, músicos e DJs, ativistas, entre outros), e portanto, sua política editorial reflete bastante o gosto pessoal de seu staff. O site existe desde 2009 e reúne importantes artigos e curiosidades sobre diversas áreas como música, quadrinhos, tecnologia, cultura black, feminismo, entre outras. Enfim, assuntos interessantes para leitores de todas as idades.

Termo originado dos quadrinhos para se referir às páginas duplas que abrem uma história ou que destacam um acontecimento bombástico, Splash Pages também é o nome do blog do roteirista e escritor gaúcho Guilherme Smee. No site, Smee posta novidades, faz análises sobre assuntos de seu interesse e resenhas de obras. Também tem espaço para textos sobre teoria dos quadrinhos, podcasts, listas com as melhores (e talvez piores) leituras do ano, além de um espaço voltado, única e exclusivamente, para o humor. Enfim, um prato cheio para os fãs de HQs.

O site reúne textos, vídeos e fotos sobre um dos momentos mais importantes da vida de todo mundo: a saída de casa. Considerado um projeto duplo, a página traz dicas para quem não tem nenhuma experiência em morar sozinho (ou dividindo apartamento), mas também celebra histórias sobre quem já passou (e bem!) pela experiência. Dividido em quatro áreas (“mudar”, “decorar”, “comer” e “manter”), tem artigos abordando desde o momento de escolher o apartamento, passando por dicas de convivência e cuidados com o lar, até a hora de contar como foi a sua experiência.

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blogs AUTORAL craigthompsonbooks.com

Site oficial do quadrinista norteamericano Craig Thompson, autor de graphic novels consagradas como Retalhos e Habibi. Nele, Thompson disponibiliza fotos de suas viagens pelo mundo, escreve sobre seus processos criativos, comenta obras passadas e projetos futuros, além de publicar vários sketches.

UNIVERSIDADE LIVRE FEMINISTA Espaço de aprendizagem política para as mulheres, através de cursos, conferências, debates e acervo virtual com livros, artigos, entre outros feminismo.org.br

Criada em 2009, a Universidade Livre Feminista é um projeto construído de forma

colaborativa com o objetivo de, sob uma perspectiva contracultural feminista, antirracista e anticapitalista, propiciar um espaço de aprendizagem política, libertária e transformadora para as mulheres. Para tal, o site promove a reflexão e a troca de ideias e experiências entre mulheres de diferentes perfis e áreas de atuação (política, artística, cultural, acadêmica ou comunitária) através de três formatos: cursos online – atividades de formação política, elaboradas a partir de um tema que podem ou não ter o auxílio de tutoras. No caso dos cursos sem educadoras, as aulas acontecem através da plataforma Moodle, muito utilizada em cursos de Educação à Distância (EAD); conferências livres – debates realizados de forma presencial e transmitidos online para discutir questões relevantes do cenário político e do feminismo; ações em a(r)tivismo libertário e feminista – atividades que reúnem artistas para troca de experiências e intercâmbio de conhecimento em diferentes linguagens (teatro, música, vídeo, poesia, fotografia, performance, grafite e outras intervenções artísticas). A ULF também dispõe de uma biblioteca virtual com artigos, cartilhas, livros, documentos, teses, entre outros, e de uma videoteca com acervo de mais de 4 mil vídeos para dar suporte às atividades de formação e aos debates. OLIVIA DE SOUZA

HORROR adorofilmesdeterror.wordpress.com

Um dos maiores sites brasileiros de filmes de terror e que teve suas atividades encerradas em junho deste ano, o Adoro Filmes de Terror possui uma enorme coleção filmes, séries, trilhas sonoras e HQs do gênero para download gratuito. O acervo conta com grandes clássicos, além de longas mais obscuros, com amplo espaço para as produções tanto nacionais quanto estrangeiras.

HQ vertigemhq.com.br

Grupo informal de tradução de HQs de temática adulto/alternativa inspirado pela editora Vertigo, o Vertigem HQ é o lar de séries de terror como The Walking Dead, Hellblazer, Preacher e Sandman e uma forma acessível do público entrar em contato mais rápido com essas obras, sem depender do atraso de sua publicação pelas editoras brasileiras.

sites sobre

vegetarianismo BLOG

PORTAL

GRUPO

papacapimveg.com

vista-se.com.br

facebook.com/groups/ogrosveganos

Conteúdo voltado para os adeptos do vegetarianismo e veganismo, com artigos e dicas esclarecedoras para os iniciantes. O site ainda agrega receitas fáceis de preparar.

O maior portal sobre veganismo e direitos animais do Brasil, e segundo site dedicado ao veganismo mais acessado do mundo, o Vistase tem seu conteúdo atualizado diariamente.

O grupo Ogros Veganos lança o desafio para seus seguidores publicarem o prato “ogro”, como coxinhas, feijoadas, sanduíches imensos, entre outras “gordices”.

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Portfólio

Guilherme Luigi

O CENTRO DO RECIFE COMO INSPIRAÇÃO TEXTO Maria Eduarda Barbosa

Teatro, cinema, música e visuais. Nas mais diversas áreas artísticas, é possível encontrar um pouco do trabalho do pernambucano Guilherme Luigi. Designer gráfico, ele atua em demandas pertencentes à produção cultural desde a graduação e, atualmente, desenvolve uma linha temática cuja ideia perpassa pelas paisagens gráficas com recursos de repetição e estamparias. Guilherme também utiliza o design como ferramenta para difusão de um trabalho de cunho memorial. Ele desdobra os elementos escolhidos e aplica-os em novos suportes, repondo-os depois em outros ambientes. A essência do seu trabalho se insere na técnica de colagens e sobreposições. A partir de uma pesquisa realizada pelo fotógrafo Josivan Rodrigues, sobre o cobogó em Pernambuco, o designer teve a ideia de desenvolver um dingbat, fonte digital que substitui letras e números por ícones e símbolos, baseado no elemento utilizado na construção civil. Quem foi ao Festival de Inverno de Garanhuns em 2013 e 2014 pôde encontrar intervenções de lambe-lambes com Dingbat Cobogó em galeria e pelas ruas da cidade. Também inspirado em um projeto com Josivan Rodrigues, na exposição O sertão de Zé do Mestre, o designer explorou elementos ornamentais da identidade sertaneja, como o couro e gibão, para criar as Estampas gonzaguianas, livremente inspiradas na vida e obra do Rei do Baião. O trabalho é composto por três linhas, nas quais Guilherme aborda o sertão, a indumentária e a música de Luiz Gonzaga. No total, são 12 estampas, quatro para cada temática, com cortes contemporâneos e cores atualizadas. “Pra que não ficasse muito estereotipado”, ressalta o designer gráfico graduado pela UFPE e mestre em Design de Produto pela ELISAVA, em Barcelona.

Página anterior 1 DINGBAT COBOGÓ

Projeto ganhou adaptação no ambiente da Orbe Coworking

Nestas páginas 2 LAMBE-LAMBE

Dingbat Cobogó em exposição nas ruas de São Paulo

3-4 MAGILUTH Identidade visual criada para espetáculos do grupo 5-7 SIBA Encarte do novo disco reúne elementos do Maracatu de Baque Solto

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CENTRO DE ARTESANATO DE PERNAMBUCO Identidade visual foi destaque na Bienal de Design Gráfico

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ISAAR Trabalho foi feito com técnicas de sobreposições

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ESTAMPAS GONZAGUIANAS Peças têm cortes contemporâneos e cores atualizadas

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VENTOS DE AGOSTO Guilherme ficou responsável pela elaboração dos letters do filme

No teatro, ele foi responsável pela identidade visual dos cartazes de divulgação dos espetáculos do Grupo Magiluth desde o primeiro até o Luiz Lua Gonzaga. Inclusive, o nome do Festival de Teatro de Grupo do Recife, o TREMA!, foi uma sugestão dele. Com seu trabalho desenvolvido para o Centro de Artesanato de Pernambuco, realizado em conjunto com a empresa O Imaginário, Guilherme ganhou um prêmio de destaque na 10ª Bienal Brasileira de Design Gráfico. Na música, o designer atuou na produção dos encartes de discos de artistas como Isaar, Bonsucesso Samba Clube e mais recentemente Siba. Neste último, foram criadas duas tipografias. “Na verdade, desenvolvi junto com Mayara Bione que trabalha comigo. Ela bordou o nome Siba a mão. A gente também colou os vidrilhos e com isso compôs o nome Siba e De baile solto”, revela Luigi. Já no cinema ele foi responsável pelos letters do filme Ventos de agosto, de Gabriel Mascaro. O designer vive e trabalha no centro do Recife. Seu escritório fica no Edifício Pernambuco, na Orbe Coworking, do qual é sócio junto com Ticiano Arraes. Para ele, seus projetos são influenciados pela localização central. “Muitos dos elementos que compõem essa paisagem do centro são temática para trabalhos que proponho”, conta Guilherme Luigi, que, atualmente, desenvolve dingbats sobre calçadas de pedras portuguesas do Recife e ladrilho hidráulico, além de preparar uma nova linha de estampas inspirada no acervo tridimensional de arte do Museu da Cidade do Recife.

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PASSADO PUNK

Escobar à brasileira Em 28 de agosto, o serviço de streaming de conteúdo audiovisual Netflix lança mais uma produção própria para seus milhões de assinantes. Para os brasileiros, que respondem por uma larga fatia dos espectadores da plataforma, há um chamariz interessante: Narcos é o resgate da trajetória do colombiano Pablo Escobar (1949-1993), com direção do cineasta carioca José Padilha e Wagner Moura na pele de um dos mais famosos criminosos do século 20. Padilha, que entrou no mapa cinematográfico mundial após o sucesso de Tropa de elite (2007) e no ano passado comandou o remake de Robocop, ergue a narrativa ao longo de dez capítulos. Já Moura, no afã de viver o lendário bandido, viajou para Medellín antes mesmo de ser contratado para o papel. Foi lá, na cidade-sede do cartel de onde saía 80% da cocaína consumida no planeta nos anos 1980, que o ator baiano aprendeu espanhol e engordou 20kg em cinco meses de filmagens. Ele se junta a Benicio Del Toro, que protagonizou Escobar – paraíso perdido (2014), no revival dado à figura do criminoso, até hoje um mito na Colômbia. Há um bairro em Medellín, inclusive, que se chama Pablo Escobar, onde as duas mil casas construídas pelo traficante para abrigar os mais pobres estampam, lado a lado, a imagem do menino Jesus e a fotografia do “benfeitor”. LUCIANA VERAS

CON TI NEN TE

A FRASE

Por trás de sua personagem Norma Romano, quase sempre calada na série Orange is the new black, a atriz Annie Golden tem uma história com a cena underground dos anos 1970. Seu passado musical voltou à tona recentemente, na internet, de forma inesperada. Em contraste ao seu papel no programa da Netflix, Annie soltava a voz como vocalista da banda punk The Shirts. Como de praxe naquele período, o grupo também se apresentou no CBGB, icônico clube de Nova York, onde os Ramones e Talking Heads, por exemplo, fizeram seus primeiros shows. Apesar de estar quieta em quase todos os momentos de OITNB, o último episódio da primeira temporada deixa uma pista acerca do potencial vocal de Annie, que canta durante uma apresentação natalina. (Maria Eduarda Barbosa)

Balaio O FIM DO PLÁSTICO-BOLHA

“Cometer erros não é só mais digno, é mais útil do que viver sem fazer nada”

Uma notícia soou como uma bomba para os viciados em estourar plástico-bolha. Fabricante oficial desde 1960, a Sealed Air Corporation anunciou que o produto está com os dias contados. Será lançado, em seu lugar, um mais avançado, que irá reduzir os gastos da empresa e os tamanhos das embalagens, mantendo a mesma função de proteger objetos. Mas, detalhe, não terá aquelas velhas bolhinhas que podem ser “explodidas” com a pressão dos dedos. Ou seja, o plástico bolha promete virar raridade, objeto de colecionador, isto se alguém conseguir resistir à tentação e mantê-lo intacto. (Débora Nascimento)

George Bernard Shaw, dramaturgo

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ARQUIVO

80 ANOS DE CANDEIA No dia 17 deste mês, completaria 80 anos um dos mais talentosos e polêmicos compositores do país, Antônio Candeia Filho. O artista começou a carreira cedo, aos 17 anos escreveu seu primeiro samba. Desde então, não parou mais, virou autor premiado de diversos sambas-enredo e partido-alto. Em 1961, passou a trabalhar como policial militar e começou a praticar abuso de poder, chegando, inclusive, a acabar com algumas rodas de samba, a prender o próprio irmão e a repreender Paulinho da Viola, que estava apenas jogando sinuca. Encarnando o personagem do samba de Geraldo Pereira, O escurinho, aquele “que agora está com mania de brigão”, Candeia se envolveu numa troca de tiros que lhe deixou paraplégico. A partir de então, suas composições se tornaram melancólicas, mas não abandonaram o lirismo, como a clássica Preciso me encontrar. (DN)

NYC, 20 ANOS DEPOIS… Numa tarde ensolarada de julho de 1995, um cidadão do mundo de chapéu de palha, calça colorida, meia branca até o joelho, tênis Bamba e óculos escuros mandou o seguinte recado para centenas de pessoas no Central Park, em Nova York: “Da lama ao caos, do caos à lama, um homem roubado nunca se engana”. A antológica apresentação de Chico Science e Nação Zumbi no SummerStage, programação anual de shows gratuitos no parque novaiorquino, será relembrada neste mês, quando a banda pernambucana retorna ao palco localizado nas proximidades da East 72nd Street e da 5ª Avenida. O guitarrista Lúcio Maia, inclusive, integrará uma mesa sobre legado e a contínua influência da CSNZ na música brasileira. A Nação Zumbi toca no SummerStage no dia 2, em show gratuito, e assim festeja as duas décadas da sua primeira turnê internacional. Onde quer que esteja, Chico, morto em um acidente de carro em fevereiro de 1997, deve estar sorrindo. E cantando. (LV)

Entre a dor e o riso aberto Lançado em 1925, Em busca do ouro era considerado por Charles Chaplin o filme pelo qual gostaria de ser lembrado. A ideia surgiu ao ver fotos em estereoscópio de garimpeiros em fila na entrada das minas e ao ler sobre um desastre com imigrantes nas montanhas nevadas de Sierra Nevada, no oeste da Califórnia, em que sobreviventes comeram mocassins e companheiros mortos. Chaplin planejou fazer do horror uma comédia. A produção tomou forma rapidamente. Só que com alguns entraves no caminho. A atriz principal, uma ninfeta de 15 anos, Lita Grey embuchou, no meio das filmagens, de Chaplin e acabou substituída, atrasando as filmagens. Naqueles tempos não tão modernos, ele teve que se casar. Depois, a “empeleitada” continuou com a construção de montanhas cheias de neve artificial nos estúdios em Hollywood. E, os horrores dos famintos pioneiros do séc. 19 inspiraram as sequências geniais do filme, como a que Chaplin cozinha e come sua bota, com trejeitos de fino gourmet (foto). E é engraçadíssima a sequência de quando seu companheiro de infortúnio, Big Jim, tem uma pilora e, alucinado, vê Chaplin como um saboroso galeto. E mais, a dança dos pães. Teve, já com a era do cinema falado, outra versão, lançada em 1942, com uma partitura orquestral composta pelo adorável vagabundo. LUIZ ARRAIS

A VOZ DO VAMPIRO Morreu em junho passado, aos 93 anos, o maior intérprete do conde Drácula, o vampiro chupador de pescoços, o ator inglês Christopher Lee. Um dos grandes atores do cinema, Lee começou sua carreira em 1948, em Escravo do passado, de Terence Young. Mas sua fama só chegou no final dos anos 1950, quando entrou nos estúdios Hammer e deu vida ao pavoroso Drácula nos cerca de 20 filmes que realizou com Peter Cushing. Lembro que na época, meus pais e tios assistiram ao O vampiro da noite e passaram a noite toda sem dormir. Hoje, até recém-nascido ri da figura que abominava a luz do sol. Não tinha protetor de pele à época? Lee também tinha paixão pelo heavy metal. Inclusive, colaborou com várias bandas com a sua voz gutural e gravou um álbum. (LA)

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REPRODUÇÃO

TRAIÇÃO & POLÍTICA

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CAPA

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As sociedades e sua História são formadas pelo antagonismo entre heróis e rebeldes, mártires e traidores, e, muitas vezes, as rupturas necessárias para instaurar novos tempos são vistas como atos de deslealdade TEXTO Luciana Veras

Quem é mais conhecido no Brasil de hoje: o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, ou Joaquim Silvério dos Reis, personagens principais da Inconfidência Mineira, conspiração engendrada contra Portugal no século 18? Em Pernambuco, quem é mais lembrado por seus feitos durante as batalhas contra os invasores holandeses nos anos 1630: Domingos Fernandes Calabar ou Matias de Albuquerque? Na memória ocidental, a quem é atribuída maior importância para Roma: Júlio César ou Brutus? Foi Stalin que rompeu com os ideais revolucionários ou Trotski que errou ao se opor ao líder do partido? Mártires e traidores caminham juntos na escrita da História. Sociedades se constituem, também, desse antagonismo entre heróis e rebeldes e as rupturas necessárias para instaurar novos tempos irrompem, por vezes, sob o signo da traição. É essa palavra de etimologia latina que aproxima Calabar, Silvério dos Reis e Brutus do australiano Julian Assange e do norte-americano Edward Snowden. Entre todos eles descerra-se o manto da traição política. Na era contemporânea, Assange e Snowden simbolizam a dicotomia entre o heroísmo dos seus feitos e a fama de traidores. O primeiro, escritor e jornalista, é fundador e portavoz do WikiLeaks, organização que divulga documentos reveladores, entre outros aspectos, de atrocidades cometidas ou erros que alguns países tentaram apagar. O segundo trabalhou para a NSA e para a CIA e de lá expôs um programa de monitoramento chamado PRISM, usado pelo governo americano para vigiar eletronicamente centenas de milhares de dados que circulam na internet, em tese sob absoluta privacidade. Em 2013, em reportagens publicadas nos jornais Washington Post e The Guardian, Snowden detalhou como o governo praticava espionagem diária contra os cidadãos, apropriando-se de informações obtidas ilegalmente em ligações telefônicas, mensagens de texto e troca de e-mails. Foi acusado de espionagem, roubo e transferência de propriedade do governo, comunicação não autorizada de defesa nacional e comunicação intencional de informações secretas. Nesses dois anos, virou personagem do documentário Citizenfour, de Laura Poitras, e esteio para

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CON CAPA TI NEN TE REPRODUÇÃO

IMAGEM GENTILMENTE CEDIDA PELO DEPARTMENT OF SPECIAL COLLECTIONS DA BIBLIOTECA CHARLES E. YOUNG DA UCLA

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a ficção Snowden, de Oliver Stone, que estreia em dezembro. Atualmente, está exilado em Moscou. Assange, por sua vez, permanece no mesmo local onde está asilado há três anos: a embaixada do Equador em Londres.

DISSIDÊNCIA

Ambiguidade é verbete crucial para se entender o século 21, nas relações internacionais, na diplomacia e nas questões da macropolítica. “Falamos em traição política, sobretudo, em sociedades pré-modernas, oligárquicas e arcaicas. Em sociedades modernas, com mudanças conceituais engendradas por uma transformação histórica, econômica e científica, as rupturas no domínio político são e devem ser reconhecidas como legítimas. Não cabe traição, mas dissidência. Assim, a característica mais próxima do que se concebe, arcaicamente, como ‘traição política’, é a de dissidência. O dissidente é alguém que rompeu um pacto de confiança política organizador de alguma estrutura representativa”, observa a filósofa pernambucana Katarina Peixoto, mestra e doutora em Filosofia pela UFRGS. Ela prossegue na conceituação: “O requisito fundamental para uma traição é um laço afetivo de natureza privada; para uma dissidência política, é o reconhecimento das prerrogativas legais de um sujeito de direitos individuais, portador de uma consciência racional e livre, capaz de determinar-se segundo a lei. Não sei se Snowden e Assange são exatamente dissidentes políticos,

Na modernidade, a característica mais próxima do que se entende como ‘traição política’ seria a dissidência

mas sei que são personalidades políticas autoconscientes de suas prerrogativas como portadores de direitos individuais, exigíveis e legítimos. É com base nessas prerrogativas que eles se autorizaram a obedecer às suas consciências, em ambos os casos, trazendo à tona ordens políticas vigorosas que funcionam ilegalmente”. Ainda no campo da política, Leon Trotski (1879-1940) é figura-chave quando se confronta essa temática. Sua oposição ao absolutismo de Joseph Stalin (1878-1953) no desenrolar da Revolução Russa de 1917 é cotejada, com frequência, à contraposição de Georges Danton (1759-1794) a Maximilien Robespierre (1758-1794), cujos encaminhamentos pós-Revolução Francesa de 1789 não tardaram a colidir. Em ambos os casos, eram lideranças de uma mesma rebelião que se apartaram ao tomar caminhos distintos, recebendo, no processo, a acusação de traidores. Sobre Danton versus Robespierre, assim escreveu o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) em A era das revoluções 1789-1848, publicado em 1962: “Os defensores mais moderados

da Revolução estavam alarmados com o ataque contra a oposição direitista, a esta altura encabeçada por Danton. Esta facção tinha fornecido refúgio para numerosos escroques, especuladores, operadores do mercado negro e outros elementos corruptos embora acumuladores de capital, e isso tão mais prontamente quanto o próprio Danton incorporava a imagem do livre amante e gastador amoral, falstafiano, que sempre surge no início das revoluções sociais até que seja suplantado pelo rígido puritanismo que invariavelmente vem dominá-lo. Os Dantons da história são sempre derrotados pelos Robespierres (ou por aqueles que fingem se portar como Robespierres)”. A respeito de Trotski, Katarina Peixoto ressalta a capacidade de antevisão. “Intelectual brilhante e criador do Exército Vermelho, ele enxergou o perigo que a promessa da revolução continha e rompeu com o autoritarismo da estrutura de poder, que esmagaria a legitimidade moral e histórica do projeto, se assim posso dizer, bolchevique”, comenta. Nesse sentido, dele se aproxima um outro “dissidente gigante” na sua opinião, o jornalista e historiador israelense Amos Elon (1926-2009). “Ele foi o maior etnólogo das primeiras gerações de sionistas que fundaram Israel. Foi o primeiro, quase sozinho, a dizer, nos dias imediatamente posteriores à ocupação dos territórios apropriados em 1967, que era errado fazer isso. Quando uma orgia nacionalista tomou conta de Israel, escreveu uma coluna dizendo

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Página anterior ROMA Morte de Júlio César por Vincenzo Camuccini, 1798

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Nestas Páginas 2 TROTSKI O intelectual e criador do Exército Vermelho rompeu com Stalin

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que os palestinos estavam pagando, injustamente, por pogroms na Ucrânia e por câmaras de gás em Auschwitz”. Na sua área de atuação e estudos, ela cita as figuras de Baruch Spinoza (16321677) e Bertrand Russell (1872-1970) como fundamentais no “tema fecundo e imenso” na Filosofia. “Dos grandes dissidentes, o que me comove mais é Spinoza, entre os filósofos modernos, e Russell, entre os contemporâneos. Spinoza foi o grande dissidente ao tratar o sagrado como produto do intelecto humano e, assim, abrir o caminho para a defesa da liberdade do pensamento, da ciência e da vida política numa ordem de tolerância. O preço que pagou, socialmente, foi altíssimo. Após a redação de Ética: o tratado teológicopolítico, foi excomungado e tampouco tinha espaço na universidade, pois, como não bastasse, era um militante do partido republicano. Já Russell rompeu com o idealismo que dominava o ambiente acadêmico e, quase como um Calabar, com as origens de classe e seus privilégios estamentais para escolher uma vida intelectualmente engajada, tanto no conhecimento como na luta pela paz e pela emancipação dos mais frágeis”, situa a filósofa.

DO COSMO AO CAOS

No âmbito da literatura, a traição política evidencia-se nas tragédias de William Shakespeare (1564-1616), não apenas em Júlio César, datada de 1599, mas também na tríade Hamlet, Macbeth e Rei Lear, escritas entre 1599 e 1607. “A

traição é paralela ou análoga à dinâmica de uma tragédia. É a interrupção de um laço que faz com que o sujeito ou a comunidade passe do cosmo, que é a organização suprema, ao caos, que é a desorganização. A traição política é um exemplo disso e me interessa porque há esse aspecto coletivo, quando alguém ou um grupo é responsável pela passagem do cosmo ao caos”, analisa o escritor pernambucano José Luiz Passos, professor de Literatura Luso-Brasileira na Universidade da Califórnia. Ele é autor do conto Marinheiro só, publicado no Brasil pela Alfaguara na versão nacional da Granta. Com uma dicção diferente da apresentada nos romances Nosso grão mais fino (2009) e O sonâmbulo amador (2012), o texto revisita a história de Silvino de Macedo, um marinheiro nascido em Goiana que participa, no Rio de Janeiro, da Revolta da Armada, quando a Marinha do Brasil se volta contra o então presidente Floriano Peixoto nos idos de 1892. No desenrolar dos acontecimentos, ele é ferido, dispensado das Forças Armadas e mandado de volta para Pernambuco; tempos depois, na surdina, é fuzilado a mando de Floriano. Dos aspectos ficcionais que acrescentou aos registros históricos existentes sobre Silvino e das pesquisas sobre essa turbulenta época vivida pela nova república do Brasil, o escritor cinzelou uma narrativa que sobrepõe várias traições. “Quando Deodoro da Fonseca renuncia, será que ele mesmo não trai a Constituição?

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REVOLTA DA ARMADA A Marinha do Brasil se voltou contra o então presidente Floriano Peixoto, em 1892

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JULIAN ASSANGE É fundador e portavoz do WikiLeaks, organização que divulga documentos reveladores

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EDWARD SNOWDEN Trabalhou para a CIA e para a NSA e expôs ao mundo um programa de espionagem utilizado pelos EUA

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Quando a Marinha brasileira se levanta contra Floriano, não estaria traindo a presidência e o país? Quando se recolhem os vários almirantes da Revolta da Armada, não é uma traição à defesa da democracia? Quando os monarquistas pedem o auxílio de Portugal e Inglaterra para ver se era uma tentativa de restauração monárquica, não é uma traição ao espírito popular que havia instituído uma república?”, enumera Passos. Os diversos ardis de Marinheiro só espelham a complexidade inerente a uma palavra – traição – e à conduta a ela associada. José Luiz Passos atenta para o mito mexicano de Malinche, a índia que acompanha o explorador Cortés e trai seu próprio povo ao se associar aos espanhóis. “Existe uma expressão mexicana chamada ‘malinchismo’, que é usada quando alguém vira traidor dos seus. Mas esse é um processo nada simples, pois é a traição dela que permite que a mexicanidade seja fundada. O México é criado a partir de uma traição política, no momento em que se permite que haja um choque e que uma parte domine a outra. Quando nasce, não é espanhol, nem índio. O Brasil tem um pouco disso em Iracema, de José de Alencar. Ela deixa a sua tribo, trai o pai e o irmão, casa-se com um soldado português e tem um filho chamado Moacir, cujo nome quer dizer ‘filho da minha dor’. Ela é a nossa Malinche, a permitir a fundação da nação brasileira a partir de uma traição de natureza política”, encerra o escritor.

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CON CAPA TI NEN TE INDIO SAN

Artigo

BRUNO P. W. REIS TRAIDORES E HERÓIS: AS DUAS FACES DA FUNDAÇÃO POLÍTICA O país estava maduro para a rebelião. Algo, obstante, falhava sempre: algum traidor havia no conclave. Fergus Kilpatrick havia encarregado James Nolan da descoberta desse traidor. Nolan executou sua tarefa: anunciou em pleno conclave que o traidor era o próprio Kilpatrick. Demonstrou

com provas irrefutáveis a verdade da acusação – os conjurados condenaram à morte seu presidente. Este assinou sua própria sentença, mas implorou que seu castigo não prejudicasse a pátria. Então Nolan concebeu um estranho projeto. A Irlanda idolatrava Kilpatrick, a mais tênue suspeita de sua vileza teria comprometido a revolta; Nolan propôs um plano que fez da execução do traidor o instrumento para a emancipação da pátria. Sugeriu que o condenado morresse pelas mãos de um assassino desconhecido, em circunstâncias deliberadamente dramáticas, que se gravassem na imaginação popular e apressassem a rebelião. Kilpatrick jurou colaborar nesse projeto, que lhe dava ocasião de redimir-se e que rubricaria sua morte.

(Jorge Luis Borges, Tema do traidor e do herói, 1944).

Nós, brasileiros, somos apresentados na escola a duas figuras de traidores relativamente célebres. A primeira é Domingos Fernandes Calabar, personagem da “invasão holandesa”, luso-brasileiro de origem, nascido onde hoje é Alagoas, que se bandeou para o lado dos holandeses em 1632, prestando auxílio valioso às incursões dos invasores no terreno pouco conhecido. Capturado em 1635, Calabar, conforme o procedimento usual na época, foi exemplarmente supliciado: garroteado, esquartejado e suas

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partes expostas à execração pública na paliçada do forte português. A outra é Joaquim Silvério dos Reis, delator da Inconfidência Mineira, no mesmo ano mítico de 1789 em que caía a Bastilha, em Paris. Como traidor de uma “inconfidência”, não recebe a pena reservada pelo poder político a seus traidores, mas antes precipita sua aplicação sobre outro: o denunciado Tiradentes, assim feito traidor da coroa lusitana, destinado a receber o mesmo tratamento dado a Calabar, 150 anos antes. Entretanto, como o mando português estava fadado a durar não mais que 30 anos depois do suplício do Tiradentes, o decadente regime colonial não pôde proteger a reputação de Silvério por muito tempo – e consta que nem mesmo as promessas feitas para induzir-lhe a delação chegaram a ser honradas. Assim, ele teria experimentado, ainda em vida, a hostilidade dos brasileiros e a alcunha de “traidor”, nada obstante o mérito duvidoso da acusação: dada sua condição de reinol, nascido a 1756 na freguesia portuguesa de Monte Real, traidor poderia ter sido considerado também, se não delatasse a conspiração – desde que, pelo menos, o domínio português durasse o bastante. Seja como for, o candidato a herói junto à rainha torna-se irremediável traidor para a posteridade, quando o neto da mesma rainha Maria I, a Louca, o príncipe D. Pedro, alça-se à condição de herói dos brasileiros ao trair o legado de seus antepassados e patrocinar a emancipação do império brasileiro. Tendo em vista os evidentes embaraços familiares com a nova ordem imperial, Tiradentes não é feito herói de imediato. Mas é canonizado pela República, depois de 1889: supliciado como traidor sob o reinado da bisavó do imperador destronado, torna-se o herói perfeito da liberdade brasileira em sua encarnação republicana. Calabar não teve a mesma sorte e, passados quase 400 anos de seu suplício, continua a ser apresentado nos bancos escolares (se é que continua) como um reles traidor. O mando português, afinal, sobreviveu-

lhe em quase 200 anos – e, mesmo depois, a causa a que entregou sua vida estava destinada a não prevalecer: afinal de contas, é em português que escrevo este texto. Foi resgatado da plena obscuridade no tocante Calabar – o elogio da traição, feito em 1973 por Chico Buarque e Ruy Guerra, como metáfora da liberdade sob a ditadura militar. Como uma sina do infeliz Calabar, a peça teatral terminou censurada pelo regime. Mas, ali, pelo menos na dramaturgia, em uma dezena de canções, a memória de Calabar termina associada a um ideal de resistência libertária contra toda forma de opressão – sexual inclusive.

NOVA ORDEM

As reversões de fortunas aqui referidas mostram como é perigoso – até para reputações – viver em tempos turbulentos. Mas revelam

O ato de fundação de uma nova ordem política será sempre um crime, sob o ponto de vista da ordem que se vai também como é curta a distância que separa o herói do traidor. A maioria das pessoas atravessará a vida sem correr o risco de ser considerada uma coisa ou outra. Mas quem se arroja em tornar-se um herói fatalmente terá de atravessar um período como traidor. Livrar-se ou não da pecha dependerá menos do conteúdo de seus atos do que do destino final de sua causa: o traidor de um ideal perdido poderá receber tratamento de herói por seus contemporâneos, alinhados ao statu quo. Mas, acima de tudo, será convertido em herói para sua posteridade aquele que lançar um desafio bem-sucedido à ordem política estabelecida – constituindo-se, assim, em seu mais audacioso traidor. No que toca ao heroísmo político, pelo menos, a travessia desse vale de ignomínia é inevitável. O ato de fundação de uma nova ordem política

será sempre um crime, sob o ponto de vista da ordem que se vai. Seja Cristo, Maomé ou Lutero; Alexandre, Júlio César ou Gengis Khan; Washington, Robespierre ou Lenin; Gandhi, King ou Mandela – nenhum fundador escapa. Como disse Max Weber, todo verdadeiro líder prega, cria ou impõe novas obrigações. É lugarcomum afirmar que seu sucesso nessa empreitada dependerá do “carisma” dessa liderança. Não obstante o que pode haver de mágico nessa palavra, isso é parte da história, já que fará as pessoas projetarem nessa liderança os valores que carregam consigo mesmas. Mas está longe de ser toda a história. Ao contrário, o principal reside no entrechoque largamente imprevisível (e que certamente ninguém comanda) entre forças e interesses contraditórios, e sua interação com circunstâncias incontroláveis. Quando, passado o turbilhão, o ataque contra uma velha ordem esclerosada tiver prevalecido, será preciso exercer a paradoxal atividade de converter os valores que justificaram o ataque novamente em ordem. Uma nova ordem, que propicie às pessoas uma rotina sob a qual possam retomar sua vida normal. Numa palavra, prover as instituições que organizem o novo mundo e, ao acoplarem rotinas aos novos valores, perenizem esse novo mundo nos corações e mentes das pessoas. A ironia é que o mero ato de alcançar essa rotina marca o início de seu inapelável esclerosamento em mais uma velha ordem a ser oportunamente chacoalhada por novo ataque. Enquanto esse dia não vem, para operar de maneira minimamente significativa aos olhos das pessoas submetidas ao seu poder, a ordem, agora instalada, emprestará carisma a suas normas rotineiras, vinculando-as aos belos sonhos de seus fundadores – agora sublimados na condição de heróis, cujos atos e sacrifícios serão celebrados e assim transmitidos às gerações futuras nos bancos escolares, nos rituais cívicos e nas histórias lidas às cabeceiras das crianças. Mas o eco de sua traição se instalará no espírito das crianças mais inquietas.

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CALABAR A retratação de um anti-herói

De algumas certezas e muitas

Longe de ser o único a fazer o jogo duplo entre os dominadores, o “patriarca dos traidores” nunca foi reabilitado e pouco se sabe sobre suas motivações TEXTO Luciana Veras

contradições constituiu-se sua breve vida, extinta após menos de três décadas, mas marcada como a existência de um pária do qual brasileiro algum há de se esquecer. Mal se sabe, por exemplo, sua compleição física: existem historiadores que o descrevem como mulato, fruto de um homem branco com uma mulher negra, e outros pesquisadores que o dizem mameluco, herdeiro de um português e de uma índia – uma “negra da terra”, como também se denominavam os indígenas na capitania de Pernambuco do século 17. Nem seu sobrenome, hoje sinônimo de perfídia, é dado concreto. Uns sustentam tratar-se de uma alusão a uma cidade nigeriana de onde viriam

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escravos para a travessia oceânica que desembocava na maior colônia de Portugal. Ou seria apenas mais uma lenda atrelada a um dos maiores mitos da História do Brasil? O historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, em O Brasil holandês (2010), chama-o de “Domingos Fernandes, o Calabar”; a historiografia oficial, por sua vez, de “o grande traidor”. A saga de Calabar irrompe durante a União Ibérica (1580–1640), quando Portugal, órfão após o desaparecimento de D. Sebastião, encontrava-se subjugado à coroa espanhola. A Espanha estava em guerra contra a República das Províncias Unidas dos Países Baixos. Parte do que hoje se convenciona apontar como Holanda era um punhado de estados; alguns deles já haviam se libertado do domínio hispânico, a exemplo da região de Flandres, hoje Bélgica. Após uma trégua de 12 anos, entre 1609 e 1621, o conflito recrudesce e Filipe II proíbe qualquer comércio com os neerlandeses. Tal interdição provoca o surgimento, em 1621, da West Indische Compagnie (WIC), a Companhia das Índias Ocidentais, “uma sociedade de ações operando mediante monopólio outorgado pelo governo neerlandês”, na explicação de Cabral de Mello. Seu objetivo: o açúcar brasileiro. Seu método: a expansão ultramarina. Depois de frustrada a tentativa de invadir a Bahia em 1624, Pernambuco e as capitanias adjacentes – Itamaracá, Paraíba e Rio Grande – tornam-se alvos flamengos. Ao todo, esse território compreende 160 engenhos capazes de produzir 659 mil toneladas ou 33 mil caixas do “ouro branco” por ano. Assim, em 14 de março de 1630, uma armada composta por 67 embarcações e 7 mil homens, comandada pelo almirante Loncq, no mar, e pelo comandante Waerdenburch, em terra, precipita-se no horizonte de Olinda e do Recife. A resistência é liderada pelo general Matias de Albuquerque, governador das capitanias do norte e irmão do quarto donatário, Duarte de Albuquerque Coelho. As tropas de Matias, na iminência da derrota, entrincheiram-se no Arraial do Bom Jesus (o atual Sítio da Trindade, em Casa Amarela). Ao lado do governador, com ferocidade e destreza, luta um certo Calabar.

Ele nascera em 1609, em Porto Calvo, hoje Alagoas, antes sul de Pernambuco. Sua mãe era Ângela Álvares; sua etnia, mulata ou mameluca, resume-se à palavra “mestiço”, como cronistas a ele se refeririam. Os primeiros registros de suas atividades aparecem nesse período inicial da invasão, quando o panorama bélico ainda estava indefinido. “Sem condições econômicas de combater a WIC, que possuía cerca de 3,5 mil soldados e uma força naval consolidada, os portugueses partem para a tática de guerra lenta, tentando impedir que os neerlandeses entrem no interior e tenham acesso aos recursos econômicos. São pequenos grupos de soldados na chamada guerra brasílica, que cerca as saídas principais de onde

Calabar não foi o único a contrabandear informações, nem pode ser tido como o grande responsável pela derrocada lusa os neerlandeses estão estabelecidos. Calabar, que aparentemente teria alguns engenhos, atua como militar entre 1630 e 1632. Dono de engenho ou comerciante, ele circulara bastante no território, conhecia as entradas e sabia quais eram os pontos estratégicos importantes”, contextualiza o historiador Bruno Miranda, professor adjunto do departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco/UFRPE e doutor em História pela Universidade de Leiden, nos Países Baixos, com a tese Gente de guerra: origem, cotidiano e resistência dos soldados da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630–1654). Em Memórias diárias da guerra do Brasil (escrita até 1644 e publicada somente em 1654, em Madri), uma das principais fontes narrativas da época, o donatário Duarte de Albuquerque Coelho afirma que Calabar “assistiu e serviu ao princípio desta guerra; e, quando o inimigo, a 14 de março de 1630, atacou o Real, que então começava a fortificar-se, foi ferido de um mosquetaço”, ratificando, assim, não apenas o ingresso do mestiço nas

hostes lusas, como seu envolvimento genuíno na causa contra o invasor. No entanto, dois anos depois, ele cambia de lado, feito assinalado pelo frei Manoel Calado em O valeroso Lucideno e triumpho da liberdade (publicado pela primeira vez em 1648, em Lisboa): “Neste tempo, se meteu com os flamengos um mancebo mameluco, mui esforçado e atrevido, chamado Domingos Fernandes Calabar, o qual entre eles, em breves dias, aprendeu a língua flamenga e travou amizade com Sigismundo von Schkoppe, governador da guerra, ao qual tomou por compadre de um filho que lhe nasceu de uma mameluca chamada Bárbara, a qual levou consigo e andava com ela amancebado”. “Calabar tem muito destaque entre os cronistas portugueses e quase não aparece entre os cronistas neerlandeses. O contraste se dá porque era mais fácil apontar um culpado do que várias razões para a fragmentação da resistência portuguesa”, teoriza Bruno Miranda.

ESPECULAÇÕES

O que desencadeou a traição de Calabar? Dívidas, rancores, vergonhas, promessas, vinganças? Sobram especulações. Ao longo de séculos, propagou-se a noção de que ele teria agido em prol do Brasil, motivado pela certeza de que um domínio seria menos prejudicial do que o outro. Para tal argumentação, contudo, havia a réplica, até hoje presente nos livros escolares: ele, na verdade, teria traído a pátria. Mais do que romper um hipotético juramento de fidelidade nativa, ele praticara a heresia de “virar a casaca”, ou por “temer ser preso e castigado asperamente (…) por alguns furtos graves que havia feito na fazenda d’El Rei”, como aposta frei Calado, ou “por haver estuprado uma mulher na região de Camaragibe”, como escreve o soldado inglês Cuthbert Pudsey em Diário de uma estada no Brasil (escrito entre 1629 e 1640). É um raciocínio raso, injusto até. Calabar não era o único a contrabandear informações de um lado para outro, tampouco foi o responsável solitário pela derrocada lusa. “Havia um grande vaivém na sociedade pernambucana. Muitas pessoas aceitavam os holandeses, depois se voltam contra eles; pessoas mais importantes do que Calabar, mas ele é uma figura em que se pode colocar todos os erros e ódios. Isso revela um

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pensamento anacrônico, pois não existe um Brasil naquela época. A construção da noção de pátria é posterior. Naquele momento, não existe lealdade ou deslealdade a uma pátria que ainda não havia sido constituída”, expõe o professor Antonio Carlos Jucá, do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Percebe-se, pelos relatos do quarto donatário, reinventados por Chico Buarque e Ruy Guerra na peça Calabar – o elogio da traição (1973), que a deserção de Calabar espicaça os brios de Matias de Albuquerque. “Eu lhe dei minha confiança em matéria de navios e de guerra e ainda me pergunto, sem resposta para me dar, por que é que ele foi pra lá?”, indaga-se o governador e

Ao recuperarem o poder, os portugueses negaram os feitos de Nassau e condenaram Calabar, que era mestiço, como traidor general, no texto proibido pela censura e liberado apenas em 1979. A realidade, nesse caso, supera a ficção, como atestam as Memórias diárias de Duarte de Albuquerque Coelho: “Tendo ele muito valor e astúcia e sendo o mais prático em toda aquela costa e em terra que o inimigo podia desejar, como o nosso general lhe conhecia o talento, sentiu muito esta fuga, não só pelo mal que daí receava (como iremos vendo), mas pelo caminho que abria para outros como ele (que não faltavam) fazerem o mesmo”. Iguais a ele, havia outros que

CRONOLOGIA

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terminariam fazendo o mesmo: eis a chave para compreender porque é exagerada a condenação sumária de Calabar ao posto de “patriarca dos traidores”, na definição do historiador Ronaldo Vainfas. Em Traição – um jesuíta a serviço do Brasil Holandês processado pela Inquisição (2008), ele examina a vida do frei Manoel de Moraes, um contemporâneo de Calabar que vem de São Paulo a serviço da Companhia de Jesus, assume a liderança dos gentios no combate e chacina dos soldados inimigos com o mesmo

fervor com que professa a fé católica. Em 1634, converte-se ao calvinismo, adota o gibão escarlate dos oficiais neerlandeses, casa-se, tem um filho, serve de munição intelectual para a WIC em Amsterdã e, na acepção mais precisa do quinta-colunismo (expressão cunhada por Evaldo Cabral de Mello), arrepende-se e retorna a Portugal, ao catolicismo e aos preceitos anteriores. Para Vainfas, tanto Calabar como Manoel de Moraes, mestres na emboscada, “foram corajosos ao ultrapassar essas fronteiras”.

1609 1630 Domingos Fernandes Calabar nasce em Porto Calvo, ao sul da capitania de Pernambuco, hoje estado de Alagoas. Seus pais são um português desconhecido e Ângela Álvares, uma negra ou índia; mameluco ou mulato, o mestiço Calabar teria sido educado em escola de padres jesuítas; algumas fontes lhe atribuem a propriedade de engenhos de açúcar.

Pernambuco é invadido e Calabar logo se alista nas tropas lusas, passando a lutar ao lado do general Matias de Albuquerque, então ocupando o cargo de visitador e fortificador das capitanias do Norte, governador apontado pela Coroa e irmão do quarto donatário, Duarte de Albuquerque Coelho. Em 14 de março, os neerlandeses atacam o Forte Real (no Arraial do Bom Jesus, hoje Sítio da Trindade) e Calabar é ferido com um tiro de mosquete.

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1 FRANS POST Além das paisagens brasileiras, o pintor retratou os confrontos navais entre holandeses e portugueses

FERNANDES VIEIRA

A Calabar, contudo, restam outras pechas: ardiloso, vil, fraco, responsável pela maior deslealdade já cometida. O traidor, que “em força e coragem não podia ser igualado”, para o soldado Pudsey, mostrou-se seguro de sua decisão, quaisquer os motivos por trás dela, mesmo na hora de capitular. Em julho de 1635, quando é preso na sua Porto Calvo, graças à participação de Sebastião Souto (outro quinta-coluna), não resiste, não barganha, não esperneia. Aquiesce, talvez porque “vence na vida quem diz”, como séculos mais tarde recriariam Chico Buarque e Ruy Guerra, mesmo que seja “sim” para sacramentar seu desfecho fatal. “Não deixeis, senhor, de concordar no que se vos exige pelo que me diz respeito, pois não quero perder a hora que Deus quis-me dar para salvar-me”, fala o mulato, mameluco e mestiço ao comandante holandês Picard. O frei Manoel Calado, que recorda as palavras de Calabar, é enviado para a confissão do prisioneiro, que sobre outros traidores responde que “muito sabia e muito tinha visto nesta matéria e que não eram os mais abatidos do povo os culpados”. “Avisou o padre sobre o caso a Matias de Albuquerque de algumas coisas pesadas que o Calabar tratou com ele, que lhe deu licença para que as dissesse ao dito Matias de Albuquerque, o qual, em ouvindo, mandou que não se falasse mais nesta matéria por não se levantar alguma poeira, da qual não se originassem muitos desgostos e trabalhos”, escreve Calado.

Sofreram, entretanto, resultados distintos. “Calabar pagou sua ousadia com a vida. Manoel, porém, foi mais audacioso. Primeiro, porque se mudou para a Holanda, casou, teve filhos, virou calvinista etc. Mas sua maior coragem foi ousar regressar ao catolicismo e ainda servir de capelão das tropas da Insurreição Pernambucana. Ele não precisava ousar tanto. Só o fez por dor de consciência”, analisa o professor de História da Universidade Federal Fluminense.

Além do religioso, havia inúmeros outros colaboracionistas. “Quem eram essas pessoas que tinham negócios com os holandeses? Muitos ganhavam dinheiro com essa história. Como Calabar viveu dentro desse contexto, sabia muito desses figurões que estavam por trás, que não apareciam, mas que faziam o jogo duplo. Naquele momento, as traições eram tantas, era o que mais se via. Basta ver o exemplo de João Fernandes Vieira”, situa o professor Flávio Cabral, do departamento de História da Universidade Católica de Pernambuco. Fernandes Vieira é o protagonista de O valeroso Lucideno e de Castrioto lusitano, este último de autoria do frei Raphael de Jesus (1679), panegíricos em que sua bravura na guerra da restauração é louvada ad infinitum, inserindo-o no panteão dos heróis nacionais. Ao lado do índio Filipe Camarão e do negro Henrique Dias, forma a tríade que expurga o mal neerlandês, adentrando a História como a tradução do poderio advindo da miscigenação tupiniquim. O que pouco se difunde, no entanto, é que Vieira tinha negócios – muitos – com a WIC. “Ele luta na guerra de resistência, mas depois vira feitor de um neerlandês, compra um engenho quando a colônia se estabiliza, e se torna um dos grandes fornecedores de alimentos para as tropas da WIC, até para amortizar a dívida enorme que tinha com a companhia. Era bastante interessado em expulsar os holandeses por causa desses débitos”, afirma o professor da UFRPE Bruno Miranda.

1632

1633

1634

Em abril, por razões nunca elucidadas, Calabar se bandeia para o lado do invasor. Guia valioso, conhecedor da língua tupi e de todo o território, assume papel importante na conquista da Vila de Igaraçu, ao abrir caminho para as tropas lideradas pelo general Waerdenburch.

Espalham-se os feitos de Calabar entre os neerlandeses: ele é peça-chave na ocupação de Itamaracá e do Arraial do Bom Jesus e na tomada dos fortes do Rio Formoso e dos Reis Magos (RN). Matias de Albuquerque procura “por todos os meios possíveis reduzi-lo, assegurando-lhe não só o perdão de seu delito, mas ainda mercê se voltasse para o serviço d’El Rei”, escreveu seu irmão Duarte de Albuquerque Coelho.

Matias de Albuquerque ordena ao primo de Calabar, Antonio Fernandes, a caçada e o assassinato do mestiço. Em abril, ele acha Calabar, mas atrapalha-se e termina morto pela própria espada. Em 20 de setembro, Calabar batiza seu filho com Barbara (em outras fontes, Ana Cardoza) na fé calvinista na Igreja Reformada do Recife: “Domingo Fernandus, pais Domingo Fernandus Calabara e Barbara Cardoza”.

QUEIMA DE ARQUIVO

Em tese, Calabar teria que ser julgado. Matias o quis morto. Garroteado e esquartejado a 22 de julho, sua cabeça

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é deixada em uma estaca. Fim da trajetória, início da lenda. Dois anos depois, a outra figura mítica, o conde João Maurício de Nassau-Siegen, chegaria ao Recife. É sobre o período de Nassau que se debruça a cineasta gaúcha Monica Schmiedt em Doce Brasil holandês, filmado entre 2008 e 2009 no Recife, em Berlim e em Amsterdã. No

documentário, ela revisita a nostalgia alaranjada vez por outra evocada pelos pernambucanos a partir do caminho de uma historiadora alemã de sobrenome Van Der Ley. Ao decidir investigar suas origens familiares, chega a uma cidade em que a herança batava era a ser encarada com saudosismo. “A história é forjada com interesse

1635

1636

Em julho, Calabar é capturado na sua Porto Calvo e termina garroteado. Segundo Calado, em O valeroso Lucideno, Von Schkoppe “entrando na dita povoação e vendo pendurados dos paus da trincheira os quartos do Calabar e a cabeça espetada em um pau, se encheu de tanta ira e cólera, que mandou deitar bando que todos os portugueses que se achassem naquele distrito morressem a ferro e fogo”.

Na ata diária do conselho político da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, em 13 de abril, registra-se: “A pedido da viúva de Domingos Fernandes Calabar, de maneira que ela e suas crianças possam receber alguma manutenção e considerado o grande e valoroso serviço que o seu marido prestou à Companhia, se dará de agora em diante a cada um de seus três filhos 8 florins por mês.”

político. Isso acontece com o legado de Nassau. Quando os lusos retomaram o Recife, tornou-se interessante negar os holandeses. Hoje, já se fala muito no que Nassau deixou na cidade. Mas a história oficial diverge da história real. Calabar é um mito tanto quanto Nassau, mas era muito fácil condenar um mulato. Na época, convinha que ele fosse um traidor”, comenta. Se Nassau é lembrado por seu empreendedorismo, Calabar é o fantasma sem redenção. “A culpa é de Varnhagen”, sintetiza o professor Flávio Cabral, aludindo ao diplomata, militar e historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. “No século 19, ele escreve o primeiro livro de História do Brasil, mas uma história atrelada ao poder, aos interesses do imperador D. Pedro II. É o imperador que vai ter a clareza de dizer ‘vamos construir a nação’. E a nação de livros, de imagens, de quadros. Até aquele quadro que representa a Batalha dos Guararapes é para servir de imagem para o povo cultuar o Brasil que está nascendo”, diz. “No século 19, constrói-se o conceito e a identidade da pátria, projetandose a pátria para trás”, completa o historiador Antonio Carlos Jucá. Para Varnhagen, no segundo volume de sua História geral do Brasil, publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1857, sobre Calabar, “a história, a inflexível história, o chamará infiel, desertor e traidor, por todos os séculos dos séculos”. Em Olinda restaurada – guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654 (1975), Evaldo Cabral de Mello teoriza que a eliminação de Calabar “tratou-se aparentemente da operação que hoje se designa em linguagem policial por RICARDO MELO

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2 FERNANDES VIEIRA É um dos heróis da Restauração Pernambucana, mas mantinha negócios com os holandeses 3 CONFRONTO No século 19, a Batalha dos Guararapes é apontada como marco inicial da pátria

queima de arquivo”. Tal hipótese é repercutida e adotada por diversos pesquisadores em busca de uma justificativa menos maniqueísta do que o discurso amplificado por toda a historiografia oficial. Em Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana (1986), Cabral de Mello discorre sobre olhares posteriores que buscam – e falham – em atenuar os matizes da culpabilidade. “A reabilitação histórica de Calabar tinha de ser o corolário da apologética batava. A este extremo, não quis chegar, contudo, o nativismo tardio. Apenas em Alagoas, donde fora natural, pretendeu-se nos últimos anos dos Oitocentos homenagear-lhe a memória, dando seu nome a uma rua de Maceió, com a justificativa de que ele visara ‘servir à pátria colonial, na persuasão de que o Brasil teria mais a lucrar passando de colônia portuguesa a colônia holandesa’”, salienta o historiador pernambucano.

Para alguns especialistas, Calabar não pode ser chamado de traidor da nação, pois esse conceito só foi criado no século 19 Evaldo Cabral de Mello discursa, também, sobre os autores que vilipendiaram ainda mais a memória do “mestiço de Porto Calvo, que, tendo apenas pensado em fugir à sorte avara a que o regime escravocrata condenava o lumpenproletariat de mamelucos e mulatos livres, acabaria sendo transformado em arauto incompreendido da modernidade brasileira”. “O nativismo pernambucano, como também Varnhagen, o haviam sumariamente condenado; Fernandes Pinheiro,

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Souza Menezes e Mendes Leal Júnior, procurado entendê-lo”, redige o historiador pernambucano. Houve ainda os esforços de Goetz de Carvalho, autor de Monografias pátrias I – Calabar perante a história (1899), citado por Cabral de Mello como responsável por transformar Calabar “no mais inteligente e prático de todos os nossos revolucionários que o patíbulo ou degredo dos tempos coloniais tragaram”. Da nada adiantou. Calabar nunca foi reabilitado. Os historiadores justificam a ausência de documentos, dados e informações para um mergulho mais aprofundado nessa controversa, porém essencial, personagem para a compreensão da história de Pernambuco e do Brasil no século 17. A pátria nasceu aqui, garantem as placas de sinalização turística nos arredores do Monte Guararapes. E o seu “maior traidor” também.

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ficou famoso pelas circunstâncias da sua morte. Traído por um espião duplo, Sebastião do Souto, quando do cerco de Porto Calvo pelo exército luso-brasileiro, em 1635, foi capturado por Matias de Albuquerque e sumariamente julgado, enforcado e esquartejado – episódio de grande repercussão na época.

Entrevista

RONALDO VAINFAS “CALABAR COMO TRAIDOR DA PÁTRIA BRASILEIRA ERA UM ANACRONISMO QUE CONVINHA” Professor de História da Universidade Federal Fluminense, com foco na história ibero-americana e luso-brasileira dos séculos 16 e 17, o historiador carioca Ronaldo Vainfas é autor de Traição (2008), livro que ilumina a saga de religiosidade e aleivosia do frei Manoel de Moraes, tão quinta-coluna na guerra entre portugueses e holandeses na capitania de Pernambuco quanto o famigerado Calabar. CONTINENTE Calabar é descrito em Traição (2008) como o “patriarca dos traidores”. Mas sabe-se, a julgar pelo seu livro e outros trabalhos acerca do Brasil holandês, que ele não foi o único a praticar o que Evaldo Cabral de Mello descreve como quintacolunismo. Por que, então, ele entra para a História como o maior “vira-casaca”?

RONALDO VAINFAS Em primeiro lugar, porque foi o caso mais comentado na crônica portuguesa da conquista holandesa. Frei Manoel Calado, Rafael de Jesus, Francisco de Brito Freire, Duarte de Albuquerque Coelho, todos enfim, destacaram, na época, a passagem de Calabar para o inimigo holandês como desastrosa para a resistência. Mais tarde, quando Francisco Varnhagen se dedicou ao tema, na sua História geral do Brasil (1854-1857), embarcou nessa e adensou o mito. Em segundo lugar, porque a adesão de Calabar aos holandeses, em 1632, coincidiu com o avanço da conquista, até então restrita ao litoral de Pernambuco e à Ilha de Itamaracá. Em 1635, a conquista holandesa estava consolidada, inclusive na Paraíba e no Rio Grande do Norte, além do interior pernambucano. Os cronistas portugueses destacam muito o papel de Calabar, que conhecia trilhas e maneiras de lidar com os índios, pois era mameluco e falava a língua de tabajaras e potiguaras. Mas há exagero. O que contou mais foi o aumento dos investimentos da Companhia das Índias (WIC) e a troca do comando militar. A chegada do coronel polonês Christoffel Artichewsky foi muito mais importante. Aliás, ele ouviu muito os palpites do Calabar sobre como fazer a chamada guerra brasílica. Em terceiro lugar, Calabar

CONTINENTE Muito se especula sobre os motivos que teriam levado Calabar a passar para o lado neerlandês. Que razões o senhor aponta? RONALDO VAINFAS Ele não foi o único, embora tenha sido o mais famoso e um dos primeiros. A maior parte dos que passaram para o lado holandês foi motivada pela convicção de que a derrota era certa. O rei de Espanha, que também era o de Portugal, mal enviava reforços. As derrotas militares se sucediam. A perspectiva de fazer negócios rendosos com os holandeses pesou. O quintacolunismo cresceu muito entre 1632 e 1635. No caso de Calabar, muitas razões foram aventadas, desde a de que ele fugiu de uma acusação de estupro, fato meio delirante, até a de que ele tinha dado um desfalque no Arraial de Bom Jesus, o que é possível, mas muitos também faziam. Vasco Mariz, no livro Depois da glória, sugeriu que ele fugiu de uma sociedade em que o preconceito racial era muito forte e, de fato, os holandeses não fizeram caso de ele ser mestiço. Também Manoel de Moraes não teve problema com os holandeses por ser mestiço. Na minha opinião, Calabar passou para o lado holandês porque viu nessa ação um meio de ascensão social. Percebeu, em 1632, que os holandeses venceriam a guerra e quis ficar do lado vencedor. Até onde sei, ele mesmo ofereceu seus serviços, à diferença de Manoel de Moraes, que só o fez quando se viu cercado na Paraíba, em 1634. CONTINENTE A história de Calabar é pouco documentada. Ainda assim, ele é um dos mitos do período da ocupação holandesa, nome repetido nos livros escolares, junto ao de Maurício de Nassau, como personagens principais da história vivida entre 1630 e 1654. A que o senhor atribui a perpetuação dessa pecha de “grande traidor”? RONALDO VAINFAS Antes de tudo, a uma tradição historiográfica do século 19 que, como disse, se baseava na crônica portuguesa da guerra. Mas o século 19 foi tempo de construção do Brasil e de invenção da memória nacional,

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tarefa delegada ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Tratava-se de afirmar uma espécie de brasilidade vocacional, um sentimento patriótico que vinha desde o período colonial. Daí a consagração de termos como “invasão francesa” ou “invasão holandesa” para nomear disputas entre países colonialistas europeus, como se os inimigos da metrópole portuguesa fossem também inimigos do Brasil. Lembre que, segundo Varnhagen, o principal historiador brasileiro do século 19, a história brasileira era uma continuação da portuguesa. Logo, como Calabar aderiu ao “invasor holandês”, acabou celebrizado, negativamente, como o grande traidor do Brasil, mesmo antes de o Brasil ser Brasil. CONTINENTE O senhor considera que a historiografia oficial foi injusta com Calabar? RONALDO VAINFAS Não é questão de justiça ou injustiça, mas de saber distinguir bem a história da memória. Calabar como traidor da pátria brasileira é um anacronismo que, no entanto, convinha a um tempo em que os historiadores estavam empenhados em construir uma história pátria, confundida com memória da então jovem nação brasileira. Calabar não foi mais do que um dos primeiros e o mais famoso militante do quinta-colunismo na conquista holandesa do Nordeste. Ele traiu? Claro que traiu. Mas traiu, sim, o rei de quem era súdito, Filipe II de Portugal ou Filipe IV de Espanha. E traiu, sobretudo, Matias de Albuquerque, o comandante da resistência que tinha depositado enorme confiança nele – que, por isso, foi implacável ao capturálo. Trair o Brasil, Calabar não traiu, porque não existia o Brasil como nação. CONTINENTE Frei Manoel de Moraes, por sua vez, tem uma trajetória rica em reviravoltas, incluindo a liderança de um pelotão indígena ao lado de Portugal e uma posterior conversão ao calvinismo. Tudo isso é narrado em seu livro. Para o senhor, ele foi um oportunista, um espertalhão, um traidor ou um sobrevivente? RONALDO VAINFAS Foi tudo isso, mas evito falar em oportunismo ou esperteza para não emitir juízo de valor descabido. Manoel de Moraes era, de um lado, um homem comum, daqueles que preferiram aderir ao vencedor por ambições e circunstâncias de momento.

Mas, como era jesuíta que se converteu ao calvinismo e, mais, deu informações logísticas de grande valor para os holandeses, Manoel foi um colaborador especial. Trocou a Companhia de Jesus pela Companhia das Índias e isso diz tudo. Trocou a militância católica pelo fetiche da riqueza. Mas ele nunca deixou de ser católico e jesuíta nas profundezas de sua alma, embora fosse capaz de vender ou alugar sua fé e suas convicções para quem pagasse melhor. O que mais me atraiu na figura é o exemplo que ela dá de um tempo em que os valores tradicionais de lealdade e convicção religiosa conviviam com valores novos: riqueza e ascensão social. Manoel de Moraes viu no calvinismo uma via para poder casar, ter filhos, ganhar dinheiro, granjear prestígio, subir na vida, sem deixar de ser cristão praticante. Deu um passo enorme. Mas teve que dar outro maior para regressar ao seu nicho, porque sempre foi católico.

“Ele traiu o rei de quem era súdito e o seu comandante. Não traiu o Brasil, porque não existia o Brasil como nação” CONTINENTE O que mais o surpreende na trajetória de Calabar e de frei Manoel de Moraes? A traição em si ou a coragem de praticá-la? RONALDO VAINFAS A traição em si não me surpreende, porque foi (como é) muito comum. As circunstâncias pesaram, como sempre pesam. A qualidade da traição não me surpreende, mas é digna de nota, sobretudo no caso de Manoel, considerando a sua formação jesuítica. A obra de Joannes de Laet sobre a Companhia das Índias contém inúmeras informações valiosas que ele deu ao coronel Artichewsky sobre as aldeias indígenas do Nordeste: localização exata, número de guerreiros, nomes dos chefes em tupi e em português. Um luxo! CONTINENTE O senhor considera essas duas figuras ainda pouco conhecidas no contexto geral da História do Brasil – aquela que se ensina nas escolas ou mesmo nas universidades?

RONALDO VAINFAS Calabar é mais conhecido no Ensino Médio, mas muitas vezes de maneira tradicional, como traidor, e ponto. Manoel de Moraes sequer aparece nos manuais didáticos. Nos cursos universitários de História – nos bons –, aí é diferente, os personagens são conhecidos e problematizados. Meu livro Traição procurou ajudar esse processo de conhecimento histórico. CONTINENTE Que passagem da vida de frei Manoel de Moraes lhe chama mais a atenção? RONALDO VAINFAS O que mais me chamou a atenção foi o “retrocesso” dele. Em 1642, ele estava casado com uma bela mulher holandesa, Adriana Smetz, vivia em Leiden com ela, um filho do primeiro casamento e duas meninas. Era assistente de Joannes de Laet, grande intelectual, em uma universidade de ponta. Publicava textos, redigia uma história do Brasil com preciosas informações etnográficas e geográficas. Quando soube que fora condenado pela Inquisição à revelia, simbolicamente queimado como herege em Lisboa, ficou transtornado. Começou a procurar os embaixadores portugueses em Haia para negociar sua volta, desde que perdoado pela Inquisição; passou a frequentar a Igreja do Cordeiro Branco em Amsterdã, um reduto de católicos portugueses ali residentes; publicou texto a favor da restauração portuguesa contra a Espanha; ofereceu-se para lutar pelo novo rei de Portugal. Nenhum português condenado à revelia que vivia na Holanda sequer cogitou fazer uma coisa dessas. Tudo na surdina. Também na surdina, negociou com a Companhia das Índias um empréstimo para explorar pau-brasil em Pernambuco. Fez leilão de si mesmo e outra vez se vendeu aos holandeses. Mas já tinha o plano de dar calote nos holandeses e voltar ao catolicismo no Brasil, abandonando mulher, filhos, doutrina de Calvino e o que fosse. Era um jogador. Manoel passou a trair também os holandeses, sem deixar de trair os portugueses. Tentava combinar seus interesses pessoais com a glória devida a Deus – ad majorem Dei gloriam, “para maior glória de Deus” –, lema jesuíta que ele tinha aprendido quando menino. Tarefa impossível. (LV)

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CON CAPA TI NEN TE

ESPETÁCULO A traição que sobe ao palco

1 ANISTIA O texto foi liberado em 1980 e remontado com direção de Fernando Peixoto

Calabar, de Ruy Guerra e Chico Buarque, trouxe a história do personagem para o teatro, numa crítica ao regime militar

2 CARTAZ A primeira montagem de 1973 foi censurada antes da estreia

TEXTO Alexandre Figueirôa IMAGENS: DIVULGAÇÃO

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Por muito tempo, a história oficial fez da traição de Calabar o ato mais ignóbil perpetrado contra a pátria. Ao menos para o teatro, essa versão pode ser contada de outra maneira. Calabar – o elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra, é até hoje uma das mais lúcidas reflexões sobre o 20 de abril de 1632, quando Domingos Fernandes Calabar escreveu ao governador da Capitania de Pernambuco, Matias de Albuquerque, uma carta afirmando sua crença de que os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais, ao

contrário dos portugueses e espanhóis, traziam a liberdade para o Brasil. O texto da peça musical toma como base o acontecimento histórico, porém é muito mais uma discussão sobre a traição. Não de forma absoluta, como afirmou Ruy Guerra, mas como um conceito em relação à ideia de fidelidade, matizando esses dois extremos e questionando como o que se considera um ato de traição pode ser um ato de fidelidade ou vice-versa. Nela, vemos os principais protagonistas do evento histórico –

Matias de Albuquerque; Sebastião do Souto; Filipe Camarão; Frei Manoel do Salvador; Henrique Dias; Bárbara, a mulher de Calabar; Ana de Amsterdam e o conde Maurício de Nassau – comentando a sua suposta traição e a condenação à morte. O texto mistura fatos históricos reais com comentários debochados e irônicos sobre a situação, com um detalhe: o personagem Calabar não aparece fisicamente na peça. A primeira tentativa de encenar Calabar ocorreu ainda em 1973. Com direção do encenador Fernando Peixoto,

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o espetáculo, produzido por Fernando Torres, foi ensaiado por dois meses e tinha direção musical de Dori Caymmi, orquestração de Edu Lobo, coreografia de Zdenek Hampl e um elenco de 48 atores, entre eles Tetê Medina, Perfeito Fortuna e Betty Faria no papel de Ana de Amsterdam. A censura do regime militar, no entanto, impediu a estreia no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. De acordo com Ruy Guerra em matéria publicada no jornal O Globo, os censores alegaram suspeitas de que a montagem era financiada por comunistas russos. Mas, no fundo, a proibição devia-se ao caráter contestador do texto por opor-se à história oficial e ironizar indiretamente a situação política do Brasil naquele momento. A montagem realçava a quebra das regras habituais da dramaturgia e fazia uma revisão histórica numa perspectiva desmistificadora. Cenicamente, mesclava comédia e teatro musical e, ao mesmo tempo, mergulhava na análise dos personagens, destacando o comportamento e a rede de traições entre eles. Na apresentação do texto, Peixoto observava que o espetáculo não pretendia fechar as chaves de entendimento dos fatos, cabendo ao espectador escolher sua forma de pensar. Seguindo os passos da dramaturgia moderna, propostos por Bertolt Brecht, transpunha-os para a peça de Chico Buarque e Ruy Guerra, desmistificando o conceito de herói. Apesar da censura, as músicas compostas para o espetáculo foram gravadas e integraram o álbum Chico canta, entre elas Tatuagem, Tira as mãos de mim e Fado tropical. A capa, com o nome Calabar pichado num muro, foi proibida. Em janeiro de 1980, o texto foi anistiado e uma nova montagem, também dirigida por Fernando Peixoto, realizada em São Paulo. No elenco estavam Sérgio Mamberti, Othon Bastos, Tânia Alves e Renato Borghi. Peixoto realizou diversas alterações na encenação e trocou o historicismo crítico da primeira versão por uma colagem mais aberta e provocante, optando por uma exteriorização do espetáculo, mas sem as contradições dos personagens.

EM PERNAMBUCO

O personagem histórico de Domingos Fernandes Calabar e o período holandês

O texto mistura fatos históricos reais com comentários debochados, mas o protagonista Calabar não aparece na peça também são fontes de inspiração para grupos teatrais pernambucanos. Em 1965, o Grupo Construção, fundado por Benjamin Santos, criou um espetáculo cujo título era Calabar. O responsável pela encenação foi o jovem diretor Marcus Siqueira, que convidou o amigo e poeta paraibano Marcos Tavares para escrever o texto e o maestro Ernest Schurmann para cuidar da parte musical. O espetáculo inspirava-se no Arena canta Zumbi. Tavares propunha uma revisitação histórica do episódio da expulsão dos holandeses, vistos como representantes do capitalismo e do imperialismo, e valorizava o espírito de insurreição dos pobres contra os ricos comerciantes da Companhia das Índias Ocidentais. A encenação buscou uma linguagem moderna na fusão de texto e músicas, que não eram apenas ilustrativas, mas participavam da narrativa. O elenco era composto por Teca Calazans, José Fernandes, Paulo

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Guimarães, Zélia Marinho e Jomard Muniz de Britto. Os atores interpretavam diversos personagens e trocavam de roupa em cena. Em meados dos anos 1980, o texto de Ruy Guerra e Chico Buarque foi montado no Recife com um grande elenco, sob a direção inicialmente de Joacir Castro e, em seguida, do dramaturgo e ator Didha Pereira. A coreografia era do bailarino Black Escobar, que também integrava o elenco. Mais recentemente, em 2007, alunos da Escola de Artes João Pernambuco realizaram uma adaptação do mesmo texto com direção de Fred Nascimento, um dos docentes da escola. Essa montagem de Calabar – o elogio da traição seguiu os fundamentos ideológicos da versão de Fernando Peixoto, centrada nos conceitos de traição, pátria e colonização. Mostrava o sofrimento de Bárbara, mulher de Calabar, a fuga de Matias de Albuquerque e a chegada de Maurício de Nassau. Segundo Nascimento, a adaptação trazia ainda características do teatro épico proposto por Brecht, mantendo a estrutura de musical com as canções executadas ao vivo, porém com arranjos contemporâneos. A montagem participou de festivais estudantis e foi encenada em várias cidades do interior do estado.

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CON CAPA TI NEN TE BÁRBARA CUNHA/DIVULGAÇÃO

quem tiver lido antes nem vá notar. Não será uma mudança radical, será mais uma mudança de dinâmica de cena ou passar uma informação complementar que acho importante. Minhas intenções de mudança são pontuais. Quanto ao Chico, ah, o Chico não quer nem saber de nada. Mas claro que ele autorizou tudo. Eu nada faria, se ele não tivesse autorizado ou se sentisse que ele, de alguma forma, não quisesse. Temos uma amizade muito boa e, também, a obrigação de perceber o que o outro quer dizer. Mesmo que ele dissesse sim, mas se fosse um sim reticente, eu jamais faria. A amizade é mais importante.

Entrevista

RUY GUERRA “A DESOBEDIÊNCIA CIVIL É UM DIREITO.” Calabar – o elogio da traição voltará à ribalta em 2016. Quem garante é o próprio Ruy Guerra, 83, coautor do texto, ao lado de Chico Buarque. À Continente, no intervalo de uma breve estada no Recife, o cineasta e dramaturgo moçambicano falou sobre suas ideias para a nova encenação, orçada em pouco mais de R$ 5 milhões via Lei Rouanet. “Quero mudar um pouco o tratamento de cor na visualização e preciso de um outro tipo de arranjo musical, mais duro, mais pesado, pois um espetáculo mais sujo, mais esfarrapado, mais desagradável visualmente, não se passa num palácio e, sim, numa selva”, antecipou. CONTINENTE Qual a situação atual da nova encenação de Calabar – o elogio da traição? RUY GUERRA Na metade de novembro, começaremos os ensaios. Vamos estrear no Rio de Janeiro em fevereiro, logo depois do Carnaval, no Teatro Casa Grande, e depois de uma temporada de três meses seguiremos para São Paulo, para o Teatro Geo. Uma das coisas que fizeram a nossa estreia atrasar foi justamente isso: precisávamos de que o intervalo entre a passagem do Rio e a ida a São Paulo não fosse grande.

Tinha que haver uma proximidade, principalmente por causa do elenco, e essa conjugação atrasou, mas já foi resolvida. Nós já temos alguns quadros definidos. Maneco Quinderé vai fazer a luz, Egberto Gismonti foi convidado a fazer os novos arranjos musicais e, para a cenografia e os figurinos, chamei um pernambucano de trabalho extraordinário, José de Anchieta, que conhece tudo sobre aquela época. CONTINENTE E o elenco? RUY GUERRA Por enquanto, os atores com quem falei têm problemas de data, pois já estão apalavrados com projetos anteriores. Hoje em dia, para compor um elenco de teatro, tem que ser feito com muita antecedência. É uma engenharia para conseguir o ator que você quer para aquele determinado momento, pois você só pode fechar quando tiver a confirmação do teatro. É difícil. Mas, garantidos e certos, já temos os papéis das duas mulheres: Letícia Sabatella vai fazer a Bárbara e Claudia Ohana a Ana. Aguardamos agora outros atores que já foram sondados. A vantagem é que todos conhecem bem a peça. CONTINENTE Como foi revisitar um texto escrito há mais de 40 anos por você e Chico Buarque? Este, aliás, está envolvido de alguma forma na remontagem? RUY GUERRA Quando me perguntaram se eu ia mexer, respondi que não iria mexer em nada. Mas aí comecei a ler e a perceber algumas coisas. Espero que, com o que pretendo mexer,

CONTINENTE O que pensa, hoje, sobre Calabar? Ele entrou para a História como sinônimo de traição, muito embora houvesse outros tantos. RUY GUERRA Não é que tinha muitos – eram todos traidores. Havia tribos indígenas inteiras que saíam com os portugueses e depois se passavam a ajudar os holandeses. Havia oficiais que trabalhavam de lá para cá, praticando aquelas cooptações, e não havia sequer o conceito de pátria. Acima do Equador, a Holanda e Portugal eram aliados; abaixo do Equador, era terra de ninguém. Se atravessasse o Equador, Calabar não seria traidor. É por isso que a peça se chama O elogio da traição. Não podemos esquecer que o texto é de 1972, feito justamente para contestar a ditadura. O conceito de traição traz em si valores mais altos que a administração do momento, como se diz nos Estados Unidos, decide sobre o que é ou não é a pátria. A desobediência civil é um direito. Era um direito que cabia a Calabar, que era um conhecedor tão grande de Pernambuco, que desequilibrou a guerra. Mas não era traidor coisa nenhuma. Se discordarmos do poder vigente, nós podemos ser traidores, mas a nossa traição é que merece ser elogiada. Na ditadura, eles, os militares, é que eram os traidores; estávamos invertendo os valores. Daí o elogio da traição, que é algo que ninguém elogia ou tampouco apoia. Elogiar a traição parece errado, mas há traições que são necessárias e indispensáveis, principalmente quando se opõem ao poder vigente. (LV)

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BERNARDO DANTAS/ESP. AQUI-PE/D.A. PRESS

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MALLAGOLI Fã oito dias por semana O colecionador traz parte do seu acervo ao Recife e conta suas aventuras durante meio século perseguindo a trilha dos Beatles TEXTO Marcelo Abreu

Nos frequentes shows que Paul

McCartney tem feito nos estádios brasileiros nos últimos anos, uma pessoa se destaca na multidão. Um sujeito de 62 anos, compenetrado, de sobrancelhas grossas e cabelos grisalhos está sempre presente na chamada área premium, próxima ao palco, onde, na longa espera pelo começo dos shows, conversa com fãs assíduos que conhece de outras turnês. Usa sempre camisetas com imagens dos Beatles. Na sala de imprensa, credenciado como jornalista, atrai a atenção de repórteres mais jovens, dá entrevistas e tira dúvidas sobre qualquer coisa relacionada à banda. Ele é Marco Antonio Mallagoli, o mais conhecido fã e colecionador brasileiro dos Beatles. E também um dos raros que estiveram pessoalmente com os quatro rapazes de Liverpool. Mallagoli acompanha o grupo desde 1963, quando começaram a chegar ao Brasil as primeiras informações sobre o sucesso que conquistava a Inglaterra e rapidamente dominaria as paradas nos Estados Unidos e no mundo. Ao longo de mais de 50 anos, ele acumulou uma enorme coleção de discos, fitas cassete, vídeos, DVDs, livros, bonecos em miniatura, flâmulas, recortes de jornais e revistas. Desde 1979, vai todo ano a Londres e Liverpool como

Marco Antonio Mallagoli acompanha os quatro rapazes de Liverpool desde 1963, quando tinha apenas 11 anos de idade guia turístico, acompanhando grupos que visitam lugares relacionados à banda. Faz exposições sobre os Beatles em shopping centers brasileiros. Se alguém no Brasil vive da banda e, de certa forma, para a banda, essa pessoa é Marco Antonio Mallagoli, paulistano do bairro da Vila Guilherme, casado, cinco filhos, entre os quais um único homem que se chama João Paulo em homenagem a – já adivinharam – ninguém menos do que John Lennon e Paul McCartney. Mallagoli estará com sua exposição no Shopping Tacaruna, entre os dias 11 e 23 de agosto. Nos eventos que promove, ele coloca à mostra parte do seu acervo raro: capas de disco autografadas, réplicas de instrumentos usados pela banda, ingressos antigos, camisetas, canetas, chaveiros, canecas, selos e antigas caixinhas de fósforo usadas como brinde e ilustradas com fotos de seus ídolos.

A COLEÇÃO

“Quando, aos onze anos, conheci a música dos Beatles, vi que era aquilo o que faltava na minha vida”, diz Marco Antonio, sentado num pufe, no meio da sala de seu apartamento, num condomínio de classe média no bairro de Santana, zona norte de São Paulo, ao rememorar o compacto com She loves you, recebido de presente de um amigo do pai que havia viajado à Inglaterra. Seu apartamento é todo decorado com motivos relacionados aos Beatles. Na sala, um quadro na parede lembra o submarino amarelo da famosa canção. Dos três quartos, dois estão abarrotados com a coleção. O quarto de empregada e um dos banheiros também. Ao mostrar o acervo, desculpa-se pela “bagunça” e pede para não fotografar as pilhas de LPs, CDs e livros, muitos colocados no chão. Guarda com carinho as réplicas de instrumentos usados pelos Beatles, como dois baixos da marca Höfner – o modelo “violino” sempre associado à imagem de Paul McCartney, um deles autografado pelo próprio; duas guitarras de edição limitada, iguais às que George Harrison usava na banda Traveling Wilburys; dois violões Epiphone lançados com a assinatura de John Lennon; e baquetas de bateria

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

Página anterior 1 RINGO STARR

Mallagoli já assistiu a mais de 30 shows do baterista, com quem esteve por duas vezes

Nestas páginas 2 JOHN LENNON

O fã conheceu o ex-beatle em 10 de outubro de 1980, dois meses antes deste ser assassinado

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GEORGE HARRISON

O segundo encontro aconteceu em 1987, em Los Angeles

Perfil personalizadas, especialmente para o uso de Ringo Starr. A sua coleção é impressionante, mas nem ele sabe exatamente o que tem. Os números a seguir são apenas estimativas do colecionador, que incluem também os lançamentos solo dos quatro músicos pós-1970, quando a banda se desfez: 5 mil LPs (continua comprando muitos vinis todos os anos), 2 mil compactos, 3.500 CDs, fitas-cassete (duas mil horas de som), 4 mil revistas, jornais (uma pilha de mais de quatro metros), centenas de livros. Além de imagens em movimento em diversos formatos: películas em super-8, fitas VHS, laser discs e DVDs. Na pré-adolescência, quando conheceu a banda, Marco Antonio não tinha dinheiro para comprar revistas nem discos. Aproveitava as idas ao consultório do dentista para, discretamente, destacar e levar consigo as páginas das publicações que traziam fotos da banda. A coleção começou quando, a partir de uma lista de endereços publicada pela revista inglesa The Beatles book, passou a se corresponder com fãs de outros países e a receber, pelo correio, pequenos itens como revistas e recortes, que guarda até hoje. Lia as cartas dos amigos estrangeiros com ajuda de um dicionário e dos professores de inglês. Com a economia do dinheiro que lhe era dado pela mãe para comprar doces no recreio da escola, fez sua primeira aquisição: o compacto contendo as canções A hard day’s night e I should have known better. Em 1965, esperou três noites na rua, numa fila na frente do Cinema Windsor, no centro de São Paulo, para ver a estreia de Help!. Na época, assistiu ao filme 64 vezes.

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Coleção abrange 5 mil LPs, 2 mil compactos, 3.500 CDs, 4 mil revistas, jornais e livros, além de material audiovisual

COM LENNON

A fama de Mallagoli começou mesmo a se espalhar em 1980, quando o assassinato de John Lennon chocou o mundo. Desde o ano anterior, ele já era dono da Revolution, uma lojinha na Avenida Faria Lima, em São Paulo. Era um misto de fã-clube, loja de discos e bar. Vendia discos da banda, alguns raros no Brasil, camisetas e lembranças em geral. Havia estado com Lennon em Nova York no dia 10 de outubro de 1980 (um dia depois do músico completar 40 anos). As fotos comprovam e a circunstância arrepia os fãs: Marco Antonio, barba fechada, conversa com Lennon na calçada em frente ao Edifício Dakota, ao lado do Central Park, exatamente no mesmo lugar onde o músico seria assassinado por Mark Chapman, dois meses depois. Mallagoli não se cansa de contar a história. Lennon já tinha uma ideia de quem ele era porque recebia em

casa os fanzines do fã-clube há mais de um ano. Dias antes de falar com o ídolo, o brasileiro havia deixado na portaria do Dakota uma cópia do disco A hard day’s night, que no Brasil saiu com a capa vermelha (em vez de azul como na Inglaterra) e com o título em português – Os reis do iê-iê-iê. No encontro, o ex-beatle lembrouse do presente, achou interessante a diferença e quis saber o significado do título escrito em português. “John então me perguntou de que música eu mais gostava. Respondi que todas. Ele insistiu para que eu dissesse uma. Escolhi She loves you porque foi a primeira que ouvi.” Semanas depois, Lennon lhe enviava pelo correio um presente: um disco de ouro recebido pelo grupo na Dinamarca em reconhecimento pelas vendas do compacto de She loves you naquele país. O assassinato de Lennon fez disparar o interesse pela banda novamente. Em 1981, Mallagoli lançou nacionalmente, pela Editora Três, duas revistas especiais – intituladas John Lennon documento e Beatles documento – com qualidade jornalística profissional, muito superior aos fanzines. Durante uns seis anos, assinou uma coluna sobre o grupo na revista mensal Som três. De 1980 a 1993, manteve um programa semanal de rádio, em que só tocava Beatles, inicialmente na FM Brasil 2000 e, depois na Rádio 97, de

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São Paulo. A lojinha Revolution mudouse para um sobrado na sofisticada Alameda Franca, no bairro dos Jardins, em 1982, onde ficou até 1986. Mas acabou fechando por dois motivos: o ponto foi vendido para dar lugar a um edifício e as viagens constantes para exposições não permitiam que a loja ficasse aberta o tempo todo.

TURNÊS

Até o final dos anos 1980, Mallagoli nunca havia visto um show de um beatle, até porque as turnês dos músicos ingleses se tornaram muito raras a partir de 1976, quando ele, já adulto, tinha condições de viajar ao exterior. George Harrison, o mais recluso dos quatro, ele havia encontrado em São Paulo, em 1979, na portaria do Hotel Hilton, quando o autor de Something veio assistir ao Grande Prêmio de Fórmula 1 do Brasil. A lembrança mais significativa, porém, foi a tarde passada com o exbeatle numa casa cheia de guitarras em Los Angeles, quando Harrison estava lançando o disco Cloud nine, em 1987. Mallagoli convenceu um executivo da gravadora Warner no Brasil a lhe dar o prêmio numa competição entre fãs para ir à California, com tudo pago, especialmente para encontrar Harrison. “Nunca vi um show dele, mas não importa. Ele tocou e cantou para mim

Mallagoli acompanha os encontros anuais de fãs como a BeatleFest, em Nova York, e a Beatleweek, em Liverpool

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naquela tarde”, relembra o fã brasileiro. Em 1989, percorreu os Estados Unidos num furgão, seguindo Ringo Starr, que fazia a primeira turnê com a sua All Starr Band. Foram oito cidades, de Los Angeles, na costa oeste, até Cleveland, em Ohio, acompanhando um grupo de senhoras. “Pela idade, elas deviam ter visto os Beatles no Shea Stadium, em 1964”, diverte-se ao lembrar da aventura. Em Saratoga Springs, no estado de Nova York, em mais um show, conseguiu entrar no camarim e ser fotografado ao lado de Ringo, mas a foto nunca lhe foi enviada. Pelas normas do megaestrelato do rock, os fãs que chegam perto de McCartney e Ringo têm suas fotos tiradas por um fotógrafo da banda e nunca com suas próprias câmeras, por questão de rapidez e segurança. Ringo ficou sendo, então, o único beatle com o qual não tinha uma foto, mesmo já tendo assistido a uma média de 30

apresentações do baterista. A lacuna foi preenchida em fevereiro de 2015, quando conseguiu uma foto ao lado dele, depois de um show feito no Rio de Janeiro. Também em 1989, Mallagoli foi a Nova York para ver dois dos primeiros shows da Paul McCartney World Tour, no Madison Square Garden. Quando a turnê chegou ao Rio de Janeiro, em abril de 1990, ele estava entre os poucos que conseguiram entrar no camarim do Maracanã e falar com o ídolo na primeira noite. Contou sobre a homenagem prestada aos Beatles através do nome do filho pequeno. Impressionado, McCartney convidou-o a vir na noite seguinte com a família. As fotos não deixam dúvida. No camarim, depois do segundo show, lá estão Marco Antonio Mallagoli, sua mulher Edméa, e os filhos João Paulo, com dois anos, e Janaína, com quatro anos, juntos com Paul e sua mulher, Linda. O colecionador calcula que já assistiu a umas 60 apresentações do ex-beatle na Europa, Estados Unidos e por todo o Brasil. “É o maior show do universo. Quem falar mal é despeitado ignorante.”

COMPETIÇÃO

Ele demonstra desprezo por uma certa infantilidade presente entre alguns fãs e colecionadores. “Certa vez, numa exposição, apareceu um sujeito com um calhamaço, em que havia uma lista de itens de todo o seu acervo. Pediu para eu assinar uma declaração reconhecendo que a coleção dele era maior do que a minha e me convidando a ir à sua casa verificar. Eu assinei o papel sem ver a coleção. Se isso ia deixá-lo feliz.... Me livrei do cara”, conta sorrindo. Mallagoli afirma não querer o título de maior colecionador. “Não faço questão de ser o melhor nem o maior. Não tem como se medir o amor pela banda.” Até mesmo por conhecer profundamente essa história toda, sabe que seria uma luta vã tentar ser o maior numa coisa tão global como a admiração pelos Beatles, um fenômeno que conquistou o mundo há cinco décadas e se mantém sempre renovado. Ele conta que conheceu fãs da Europa que estavam por perto, quando o grupo estourou e puderam acompanhar tudo. “Encontrei, em 1981, um francês que viu todos os 20 shows da temporada da banda no Olympia de Paris, em 1964. Na casa dele, até as ombreiras e a

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REPRODUÇÃO

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roupa de cama tinham fotos dos quatro beatles.” Há duas décadas, Mallagoli passou uma semana na casa de um amigo e fã holandês, assistindo às imagens não editadas, que geraram o documentário Let it be. São, pelo menos, 140 horas de imagens que, de alguma forma, o holandês conseguiu obter em película e em VHS. O filme lançado mundialmente, em 1970, tinha a duração de apenas 101 minutos. “O holandês saía para trabalhar de manhã e me deixava com algumas fitas para assistir durante o dia. Implorei muito, mas ele não me deixou copiar nada. Mas pude passar uma semana vendo tudo do Let it be. Não tem como competir com esses caras”, diz o brasileiro. Ele acompanha os encontros anuais que reúnem fãs e colecionadores como a BeatleFest, em Nova York, e a International Beatleweek, em Liverpool. Nesses eventos, tem tido oportunidade de conhecer e tietar pessoas que tiveram algo a ver com os quatro músicos. Foi o caso das exesposas Cynthia Powell (ex-Lennon), Nancy Lee Andrews (ex-Ringo) e Pattie Boyd (ex-Harrison). Da banda Wings (formada por McCartney nos anos 1970), esteve com quase todos os músicos. Nas viagens, já conseguiu entrar com seu grupo de acompanhantes até no mitológico estúdio da EMI, em Londres, o famoso Abbey Road, em que a banda gravou os seus discos.

“Não faço questão de ser o melhor nem o maior. Não tem como se medir o amor pela banda.” Marco Antonio Mallagoli O que não tem ainda e gostaria de ter? Mallagoli lembra o disco Yesterday and today, uma edição norte-americana de 1965 que foi temporariamente retirada do mercado pela reação negativa devido à chamada “capa do açougue”. Ele tem o disco da época, mas já com uma embalagem diferente, a chamada “capa da mala”. A edição com a primeira capa chega a valer no mercado negro até US$ 30 mil. “Nunca vou pagar isso, só para dizer que tenho o original. Não tenho essa ambição.”

ROQUEIROS NO RECIFE

As exposições em shopping centers começaram em 1984, quando foi convidado, em Ribeirão Preto, a ocupar um espaço ocioso de uma loja vazia. Hoje, viaja o país com uma amostra do seu acervo. Fica 15 dias em cada cidade, ajudando a manter aceso o mito em torno da banda. As viagens ajudaram a desmistificar preconceitos, como o de achar, por exemplo, que no interior de

PAUL MCCARTNEY

Foto foi feita na primeira apresentação do cantor no Brasil, em abril de 1990

São Paulo só se ouve sertanejo ou no Nordeste somente forró. “Percebi que o Recife é a cidade mais roqueira do Brasil, de longe”, diz Mallagoli, baseado na receptividade dos shows de Paul na cidade e seus contatos com os fãs. Durante as exposições, vende objetos como camisetas, CDs e DVDs, e, no final de cada noite, faz um show acústico em que canta e toca violão, dividindo um pequeno palco com músicos locais que compartilham sua paixão pela banda. Conversa com outros colecionadores e atende pacientemente a curiosos eventuais que pouco ou nada sabem sobre o assunto. “O que me irrita é só quando um cara despreza um DVD de boa qualidade que estamos vendendo com o argumento de que pode ver a mesma coisa de graça no YouTube. Não se compara.” Mallagoli não é sectário. Gosta muito de outros grupos dos anos 1960 e 70. Entre os seus favoritos estrangeiros, cita Rolling Stones, Deep Purple, Herman’s Hermits, Procol Harum e todos os nomes da chamada invasão britânica do período. Na música brasileira, gosta da turma da Jovem Guarda, mas acha que todos ficaram datados, com a exceção de Leno (da dupla com Lilian). Gosta também de Pixinguinha, Noel Rosa, Paulinho da Viola e Inezita Barroso. Adora Mutantes, Raul Seixas e MPB4. A última banda brasileira de rock que chamou a sua atenção foi Ultraje a Rigor. Trinta anos atrás, líderes de fã-clubes como Mallagoli eram fundamentais na ligação das bandas de rock com seu público fiel. Hoje, ele mantém a relevância através do seu site e suas publicações. Pretende relançar a revista Revolution, que circulou nos anos 1990. Entre viagens, shows e exposições, a curtição continua. Após a última apresentação da turnê brasileira de McCartney, em 2014, uma maratona de três shows em quatro dias, o repórter perguntou brincando se no dia seguinte teria mais. “O sonho acabou”, disse Mallagoli, sisudo, mas bem-humorado, repetindo a famosa declaração de Lennon. Mas, com os Beatles encantando e conquistando novas gerações, o sonho parece nunca acabar.

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FESTAS Do cotidiano para a arte

Manifestações populares tradicionais articulam desejos e aspirações do passado com o presente, num momento de suspensão de papéis e congraçamento social TEXTO Guilherme Novelli

A festa impregna o sentir e o fazer

brasileiro, constrói nossa identidade, sedimenta a construção de quem somos, nossa sensibilidade, desde os primórdios de nossa colonização e formação. Segundo o historiador Jacob Burckhardt, a celebração é o “momento solene da existência de um povo, onde um ideal moral, religioso e poético ganha forma visível”. Este mesmo historiador defende que, na ocasião festiva, ocorre a “transição da vida comum para a arte”. Divino Espírito Santo, Círio de Nazaré, Reinado/Congado, Boi-Bumbá e tantas outras. Manifestações da cultura popular tradicional brasileira que, apesar das cores e formas distintas, reúnem motivos recorrentes nos quatro cantos do país, entrelaçados ao longo da história

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de formação e de confrontação dos diversos grupos étnicos e sociais. Reis congos, cristãos e mouros, culto aos santos e marinheiros. Segundo os pesquisadores Mariana Monteiro e Paulo Dias, esses são os principais motivos das festas brasileiras, que se multiplicam numa complexa dinâmica entre festas de resistência de uma cultura ameaçada e proibida, e festas aceitas e difundidas como “diversões honestas”. Elas expressam um conhecimento e uma memória presentes no corpo dos que as fazem. Uma história cultural dos povos e populações brasileiras, incorporada nos gestos e no fazer dessas celebrações, assim como uma expressão dessas populações diante das realidades que elas vivem. “As festas têm relação com o passado, uma herança de tradições dessas comunidades; através desses rituais, uma memória é mantida e reavivada. Como diria o antropólogo Clifford Geertz, ‘é uma história que eles contam sobre e para eles mesmos’”, explica John Dawsey, professor de Antropologia da USP. “Os participantes não vão saber dizer exatamente o que é essa festa, mas ela

Reis congos, cristãos e mouros, culto aos santos e marinheiro são os principais motivos das festas brasileiras está lá no corpo, e o que eles não dizem se faz através das danças, dos sons, das músicas. Essas comemorações são estórias contadas através do corpo”, continua. A festa faz a cidade, revitaliza as relações sociais. Os participantes se veem fazendo parte da formação de uma identidade. “Como Victor Turner diz, é um momento de suspensão de papéis, em que acontece um congraçamento social. As pessoas se veem face a face de outra forma, fora daqueles papéis sociais cotidianos, evocando lembranças e memórias que se afundam no passado, mas que também estão no corpo delas”. Nos percursos por onde a festa acontece, procissões ou cortejos, a comunidade organizadora carrega uma mensagem de ‘nós pertencemos a esse lugar’.

Esses rituais que estão em risco de cair no esquecimento evocam formas de pensar o mundo. Por isso, é uma experiência marcante, extracotidiana. São populações que, em muitas ocasiões, estão vivendo situações de perigo. “Não é à toa que, às vezes, encontramos imagens assombrosas nas festas, com figuras grotescas, chifres, imagens que provocam o terror, mas com riso. As pessoas lidam com coisas do dia a dia e, em muitas oportunidades, esse dia a dia pode ser uma experiência insólita.”

CICLO DO DIVINO

Momento do milagre, da multiplicação dos pães, do alimento, da fartura. Isso tudo cala fundo nas pessoas, porque nesse momento elas estão articulando o seu cotidiano com o espaço do sagrado. O Divino ganha a cor do povo. Na folia, uma procissão com grupos musicais, no Divino Espírito Santo de Pirenópolis (GO), a multidão vai para o interior, passando pelas casas. “É o Divino chegando e trazendo uma energia do sagrado, mas esse sagrado vem junto com as energias do povo, as narrativas, as coisas que se contam na chegada, e

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1 DIVINO Durante muito tempo, a festa fez parte de um catolicismo não oficial 2 POMBA Nas festividades, é comum se ver o símbolo do Divino Espírito Santo em bandeiras e outros adereços

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a tradição que começa a ser lembrada. O Divino também tem a ver com fome, com doença, com tudo aquilo que o povo sofre. Não é à toa que ele chega com tanta força”, continua John. Folias, coroação do imperador, cerimônias do império. Cavalhadas, encenações de batalhas em homenagem ao imperador e ao Divino Espírito Santo. Mascarados, pastorinhas, congadas. O complexo do Divino de Pirenópolis acontece desde 1819 e dura cerca de 60 dias, com clímax no domingo de Pentecostes, 50 dias depois da Páscoa. A festa do Divino é recorrente por todo Brasil. É uma das festas que mais se espalharam. O festejo é mais antigo que o próprio catolicismo. Na época do Antigo Testamento, dos judeus, era uma festa de primícias, de primeiros frutos. Eles colhiam os primeiros trigos, faziam pão e ofereciam para a divindade. As irmandades católicas do Divino Espírito Santo mais antigas da Europa datam do século 13. “Durante um certo tempo, essas irmandades tiveram vigência, foram toleradas pela igreja oficial, mas logo passaram a ser vistas como heresias, com rituais desviantes

do catolicismo oficial”, conta Paulo Dias, etnomusicólogo, presidente da Associação Cultural Cachoeira. Existem teses teológicas sobre o Divino, como a do monge Joaquim de Fiore, de que existiram três eras: a Era do Pai, no Antigo Testamento, do Deus Vingador. A Era do Filho ou Deus Redentor, o Deus que dá a outra face, Jesus Cristo, o Deus de amor. E a Era do Espírito Santo. Isso é baseado na ideia de que Deus é composto por três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. “A igreja católica, enquanto instituição, sempre intermediou as relações entre Deus e o seu rebanho. Nunca ninguém tinha conversado diretamente com Deus. E a Era do Espírito Santo se caracterizaria pelo contato direto do homem com a divindade. A função da igreja, portanto, fica meio anódina.” Por essa razão, durante muito tempo, a festa do Divino Espírito Santo esteve mais fora do que dentro da igreja. Fazia parte de um catolicismo não oficial, heterodoxo. O catolicismo português, ibérico, era ancorado num território influenciado por tradições celtas antigas, como as festas de solstício, de

colheita, de entrada da primavera. O clero, mesmo na época em que veio ao Brasil, tinha enorme dificuldade em desenraizar essas tradições antigas do povo português. Entre elas, está o culto ao Divino, feito com grandes festas, farta distribuição de alimentos, danças, folias. Isso tudo veio parar no Brasil, porque era um catolicismo arraigado no povo. “Em termos de magnitude popular, o culto ao Divino é enorme. O marechal Rondon chegou num rincão distante da Região Norte e perguntou aos ribeirinhos: ‘Quem é o presidente do Brasil? Como é o hino nacional brasileiro? Como é a bandeira do Brasil?’ Eles responderam: ‘A única bandeira que eu conheço é a bandeira do Divino Espírito Santo’.” Antes até da identidade de estado, nação, está o pertencimento a um corpo de crenças, que seria o complexo do Divino, fundado nessa revelação direta aos fiéis. Sempre existem, nas festas do Divino, cortejos com imperador e imperatriz, normalmente, pessoas que patrocinam uma parte da festa. “Dizem que D. Pedro até mudou o título dele de rei para imperador porque José Bonifácio disse: ‘Olha, pela fé que o povo tem no Espírito Santo, é melhor você mudar seu título para imperador’. Existem até tambores que pertenceram a D. Pedro II com a insígnia do Divino”, conta Paulo.

MISTÉRIOS DA SANTA

Um caboclo, de nome Plácido, estava caçando às margens do igarapé Murucutu, Belém do Pará, no ano de 1700, quando encontrou no lodo a imagem de uma santa com, coincidentemente, uma réplica da Nossa Senhora do Nazaré portuguesa. Levou-a consigo e deixou-a num altar em sua casa. No dia seguinte, a santa sumiu. Voltando ao igarapé, Plácido encontrou-a no mesmo local. Levou-a de novo para casa e, para a sua surpresa, a santa desapareceu e de novo voltou ao igarapé. A história chegou aos ouvidos do governador D. Francisco de Souza Coutinho, que levou a santa para seu palácio. Mas ela desapareceu e foi encontrada de novo no lodo. Vinte e um anos depois, o então governador vigente ordenou que, no local onde foi encontrada a imagem de Nossa Senhora do Nazaré, fosse construída uma capela de taipa, para onde a santa seria levada.

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No dia 8 de setembro de 1793, aconteceu o primeiro Círio de Nazaré, a primeira procissão vinda do palácio do governo, em Belém do Pará, para a capelinha no igarapé. A santa foi levada no colo de José Monteiro de Noronha, governador do bispado, num cortejo militar. Desde então, o Círio sofreu muitas modificações de datas e, atualmente, é celebrado no segundo domingo de outubro. Devido às grandes peregrinações para homenagear a virgem, as autoridades locais reedificaram a capelinha e construíram no local uma basílica em estilo romano, de forma retangular, com capacidade para receber milhares de fiéis. “Já estive em Belém, falando com as pessoas sobre a festa do Círio de Nazaré. É uma coisa poderosa, de histórias e imagens. Milhões de pessoas participam desse cortejo. É gente que vem do interior, cidades pequenas, chegam em embarcações. Essa procissão tem uma energia social muito forte”, explica John Dawsey. A história do caboclo Plácido remete a outras aparições, como a da Nossa Senhora de Aparecida, no interior paulista. “Foi encontrada por um caboclo e ela também é de uma cor escura. Isso é marcante, na verdade, se pensarmos na formação da nossa população. A figura da mãe, mãe de

As procissões do Círio de Nazaré e de Nossa Senhora de Aparecida acontecem na mesma época do ano, durante o mês de outubro Deus, mas também mãe dos devotos, de cor cabocla, mistura do índio, do negro e do português. Ela é uma figura que anda, que é errante. O governador tentou levá-la, mas ela volta para o lugar onde foi encontrada. Como essa história reverbera na população?”, indaga. Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre e outros tantos inscrevem, na formação do Brasil, esse mito de origem da sociedade brasileira, das três raças: do branco, do índio e do negro. “A mãe da nação é uma índia laçada no mato, praticamente, em muitas histórias que contam. A relação da Nossa Senhora com uma população, filhos seus e de um pai português, símbolo do poder, mas que tem os filhos através da índia ou da negra. A população brasileira é isso. A figura de uma mãe índia cala fundo. Nós podemos observar essa questão não apenas através da cor da pele do povo, mas da formação social da população, formação desse corpo brasileiro”, continua.

As procissões do Círio de Nazaré e de Nossa Senhora de Aparecida acontecem na mesma época, em outubro, num ciclo da dádiva, do dom, “daquilo que o antropólogo Marcel Mauss define como reciprocidade: pessoas homenageando a mãe e ela retribuindo, porque é uma mãe poderosa. Tal como a índia laçada no mato, ela pode surpreender. Em termos teológicos, se pensarmos o Pai, o Filho e o Espírito Santo, essa mãe fica às margens, mas é a responsável por fazer a mediação com os filhos”.

CONGADO/REINADO

O rei de Congo, no século 16, se deixou batizar pelos portugueses em troca de apoio militar para poder mover guerra contra seus inimigos tribais. A partir daí, começou um processo de acomodação de um pensamento africano e católico. “Eles mandavam os nobres estudarem em Coimbra, eram todos batizados, mas, quando voltavam, não abandonavam o culto aos antepassados. Então, muitos desses africanos vindos ao Brasil escravizados já carregavam o pensamento de um culto a algum santo católico, o rei Congo já aparecia como um rei católico”, define Paulo Dias. No Brasil, a palavra congo começou a denominar qualquer rei dessa tradição do reinado/congado. O reinado se preservou enquanto instância religiosa

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3 CÍRIO DE NAZARÉ O cortejo pelas ruas de Belém atrai milhões de pessoas 4 REINADO Tem muita força em Minas Gerais, com mais de 500 irmandades, entre elas a de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá

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afrodescendente. Em Minas Gerais, adquiriu uma importância grande, com o registro de cerca 500 irmandades. A Associação Cultural Cachoeira lançou o livro O reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, que trata de uma irmandade que se formou a partir de uma fazenda, chamada Pantana, na qual trabalharam diversas etnias africanas. Nela se falou durante muito tempo uma língua africana, o benguela, e foi tombada na capital mineira como um dos espaços mais antigos de culto afro-brasileiro. Quando falamos em congado mineiro, imaginamos o conjunto desses grupos. Quando falamos em reinado, imaginamos a tradição das linhagens reais, das majestades afrobrasileiras. “Rei e rainha de Congo são os reis que, geralmente, patrocinam a festa: rei e rainha de São Benedito, rei e rainha de Nossa Senhora das Mercês… Temos as guardas, que são grupos musicais e coreográficos representando esses antigos séquitos, já descritos anteriormente pelos viajantes europeus ao Brasil desde o século 17. Eles faziam suas danças e autos teatrais diante dos soberanos, rei e rainha de Congo”, descreve Paulo. Os grupos rituais são chamados de congadas e podem cair em alguma dessas categorias: congo, moçambique, catupé, vilão, marinheiro, marujo,

As festas se relacionam com o passado, com uma herança de tradições, com uma memória que é reavivada cacunda, caboclo, candombe. Grupos com estilos musicais, coreográficos, todos devotados aos santos católicos de devoção negra, a maioria deles ligada às irmandades. As congadas têm diferentes denominações, segundo seu estilo e as forças espirituais que elas representam. “Os caboclos, por exemplo, são remanescentes de danças jesuíticas, cujos quadros étnicos daqueles dançantes foram sendo substituídos por negros, que se consideram, vestidos de índios, como representantes das forças espirituais dos ancestrais da terra.” O banto assimila a religiosidade do povo local, não importa se na África ou no Brasil. “Muitas das divindades africanas deixadas para trás na diáspora foram reinterpretadas com cores locais, no Brasil. Então, o caboclo é muito importante, porque é quem está primeiro, e sua ancestralidade tem de ser cultuada”. Existe na África uma preocupação muito grande com

linhagens, com ancestralidade. A cadeia de parentesco sanguíneo une o africano ao primeiro ser humano sobre a terra e ao preexistente, que seria a ideia de um deus criador. No Brasil, a questão das linhagens de sangue deixou de existir, porque os traficantes de escravos procuravam desfazer as famílias, desmanchar o clã, para não se unirem na diáspora, não formarem um espírito étnico coletivo. Isso fez com que fosse necessária uma reconstrução da pessoa espiritual da ancestralidade. “Não se sabe ao certo, mas a figura dos reis tem muito a ver com a reconstrução da ideia de uma linhagem, de um reinado, que teria origem na África, simbolicamente”, explica Paulo. A força da tradição está relacionada a histórias que ainda não se realizaram. São pessoas que estão lutando por coisas que ainda não aconteceram. “Não é simplesmente um desejo de querer ser como antigamente. A questão mais forte dessas festas populares não é lembrar um passado que já foi embora. São histórias de grupos que estão em risco, na verdade. De grupos que estão lembrando não tanto como se faziam as coisas no passado, mas coisas que seus antepassados estavam buscando. Sonhos e aspirações de um passado ainda não realizados”, conclui John Dawsey.

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GRAFITE O que dizem os muros de Lisboa Feita por artistas renomados ou desconhecidos, incentivadas ou não pelo poder público, a arte urbana da capital portuguesa, que teve início com a Revolução dos Cravos, retrata o espírito da cidade TEXTO Ricardo Viel FOTOS Téo Pitella

Houve um tempo, não muito distante,

em que escrever ou desenhar num muro em Lisboa podia custar a vida, ou, pelo menos, uma sessão de tortura. Hoje, enormes paredes são pintadas na capital portuguesa com a ajuda do poder público, que fecha o trânsito, cede ou consegue o espaço, empresta escadas e gruas, além de fotografar e filmar o resultado do trabalho. Atualmente, Lisboa é apontada como um dos principais centros de arte urbana do mundo, e há vários fatores que explicam isso. Um deles é a existência de um órgão da Câmara Municipal que tem como objetivo conciliar a preservação do patrimônio comum com o incentivo ao grafite e a outras expressões artísticas urbanas. A criação da GAU (Galeria de Arte Urbana) em 2008 significou uma mudança de política da administração pública em relação à street art. Ao mesmo tempo em que se apertou o cerco ao que a prefeitura considera vandalismo, criou-se um órgão, dentro do Departamento de Patrimônio Cultural, para fomentar as pinturas na rua. O Bairro Alto, conhecido por seus bares e discotecas, foi a primeira área da cidade

a ser “limpa” e, simultaneamente, ter muros destinados às pinturas, numa tentativa de dar alguma ordem ao caos – muros, portas de casas e estabelecimentos, monumentos, paredes de azulejo, nada ficava imune ao spray. “O pessoal da manutenção não dava conta de limpar a cidade. Pintavam uma fonte e, uma semana depois, tinham que pintar depois. Hoje, quase todo esse dinheiro que era gasto foi revertido para pagar cachê aos artistas e divulgar os trabalhos”, conta a antropóloga Inês Machado, 36, funcionária da GAU desde que o órgão foi criado. O começo não foi fácil. Tiveram que contornar a desconfiança dos grafiteiros, dos moradores e dos funcionários mais antigos da prefeitura. “Alguns aqui nos diziam: então agora a Câmara apoia os rabiscos?”, recorda. “Não seguimos nenhum modelo, até porque penso que não havia nenhum modelo a ser seguido. E a cada momento paramos e fazemos uma avaliação se vamos bem ou não. Fomos afinando a estratégia com os artistas”, explica a antropóloga. Criada num dos bairros da Grande Lisboa, onde o grafite surgiu

com força no começo dos anos 1990, Inês tirou proveito dessa proximidade com artistas que conhece desde a adolescência para tentar convencêlos de que o poder estatal já não os via como uma ameaça. “A nossa premissa é, por um lado, preservar o patrimônio e, do outro, aceitar a arte urbana como uma expressão cultural que está no mesmo patamar, por exemplo, do azulejo português.” Passados sete anos da sua criação, a Galeria de Arte Urbana é tida com referência dentro e fora de Portugal. É matéria de estudo em centros universitários e constantemente convidada para expor sua experiência em outros países – recentemente, uma representante do órgão esteve em Fortaleza num encontro patrocinado pelo governo e prefeitura locais. No início do projeto, 80% das obras eram feitas com dinheiro público. Hoje, a conta se inverteu: de cada cinco muros pintados, quatro são patrocinados por empresas e instituições públicas e privadas que procuram a GAU porque querem valorizar seu patrimônio com pinturas. Antes, era o órgão que ia em

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busca de paredes. Agora, elas são muitas vezes oferecidas. Há basicamente dois modelos que a instituição adota. O primeiro é a abertura de espaços na cidade para a expressão artística, que podem ser muros, caminhões da limpeza, containers de lixo, pilares das pontes etc. Qualquer artista pode participar, desde que respeite com a sua arte premissas básicas como os direitos humanos e não use o espaço para fazer publicidade de produtos. Às vezes, há um tema comum a ser desenvolvido; noutras, a temática é livre. Os artistas recebem um cachê que, embora não seja alto, é suficiente para cobrir gastos com material e sobrar algo. O outro braço de ação são os projetos maiores, que envolvem nomes internacionais. Muitas vezes essas iniciativas são possíveis com a ajuda de parceiros, como empresas, fundações ou galerias. A Underdogs, plataforma criada há dois anos pelo renomado artista português Alexandre Farto (Vhils) e pela galerista francesa Pauline Foessel, é uma das principais parceiras da GAU. Desde 2013, eles já trouxeram 18 artistas para intervirem em muros em Lisboa. Os gastos correm a cargo da galeria, mas a ajuda da Câmara é essencial, diz Pauline. “Aqui, é tudo muito menos burocrático que nos outros lugares que conheço. Em Paris, demora em média seis meses para conseguir uma parede para pintar; em Lisboa é muito mais rápido.” O processo costuma ser rápido: a galeria entra em contato, diz as dimensões da parede de que

precisa, a zona da cidade e, passados alguns dias, recebe algumas propostas. “Nunca houve nenhum tipo de censura no nosso trabalho. Eles nunca pediram para saber quem ia pintar ou que tipo de trabalho iria ser feito”, explica a francesa que, antes de Lisboa, passou uma temporada em Xangai. A galeria recebe algum apoio financeiro da GAU, mas a maior receita que tem é com a venda de peças dos artistas que agencia e também nos serviços que fazem para empresas. Cada vez é mais comum que marcas queiram associar o seu

No início, a GAU tinha que procurar os muros para receber as intervenções, hoje eles são oferecidos pelos proprietários nome à arte urbana. “Nós escutamos todas as propostas e logo avaliamos se é interessante ou não”, resume. Se os primeiros meses de existência da GAU foram para afinar estratégias, apresentar a artistas e população a plataforma criada, e conseguir apoios privados, a partir de 2010 a política incluiu a internacionalização através do projeto Cronos – uma proposta que partiu de Alexandre Farto (Vhils). O primeiro passo além das fronteiras foi dado com a ajuda dos brasileiros OSGEMEOS, que, em conjunto com o italiano BLU,

pintaram a enorme fachada de um edifício de quatro andares numa das avenidas mais importantes da cidade – a peça, que ainda pode ser vista, foi considerada por publicações do ramo uma das mais importantes de arte urbana no mundo, feitas em 2010. “Foi a primeira vez que artistas de renome internacional vieram pintar em Lisboa, financiados pela prefeitura. É o primeiro projeto grande que colocamos em funcionamento e é muito chamativo porque está numa área muito vista”, explica Inês Machado. Aqueles dias foram decisivos para impulsionar a street art na capital. OSGEMEOS estavam na cidade para inaugurar uma exposição num museu de arte moderna, a primeira que um museu público português dedicava a artistas urbanos. E, de repente, a cidade acorda com um mural gigante pintado por eles e por BLU. As portas haviam sido abertas e o que viria nos meses seguintes era um furacão. Naquele ano, 12 artistas de várias partes do mundo deixaram suas marcas na cidade. E o fluxo nunca mais parou. Hoje, é difícil encontrar um artista urbano de ponta que não tenha pintado pelo menos uma parede na capital de Portugal. Todos os trabalhos, sejam de artistas anônimos ou renomados, são fotografados (e muitas vezes a produção da peça é filmada) e arquivados no órgão da Câmara, que edita uma publicação periódica que divulga as novas obras espalhadas pela cidade – algumas pinturas não autorizadas também são catalogadas.

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Página anterior 1 CONVITE

A GAU trouxe estrangeiros como o espanhol Okuda, que recobriu um muro em Marvila

Nestas páginas 2 SANTA APOLÓNIA

O bairro recebeu um mural pintado pelo coletivo Pampero

3 PARCERIA Parede pintada pelos brasileiros OSGEMEOS e pelo italiano BLU na Avenida Fontes Pereira de Melo

É verdade que nem todos os grafiteiros estão de acordo com a política oficial aplicada, mas há um respeito em relação às obras “patrocinadas” pelo órgão. Uma das explicações para isso é que muitos dos que aderiram ao projeto são artistas respeitados no universo português. Além disso, existem aqueles que continuam fazendo suas pinturas em muros não autorizados e, ao mesmo tempo, participam dos projetos da Câmara. “A arte urbana encerra, em si, várias contradições, e a política da GAU não é de domesticar ninguém, o grafite sempre foi indesejável”, diz Inês Machado.

O BOOM LISBOETA

Lisboa está na moda. Essa frase é escutada com muita frequência por estes lados, a cada vez que um jornal/revista internacional dá destaque à capital. Os números comprovam. Nenhuma cidade europeia teve maior aumento de visitantes nos últimos anos. Em 2015, são esperados mais de 3,5 milhões de visitantes na cidade – quase cinco vezes a sua população. O turismo representa 5,8% do PIB de Portugal, o dobro da média mundial e bastante acima da média europeia, que é de 3,1%. As empresas já identificaram que há um público disposto a pagar para conhecer o museu ao ar livre que é Lisboa, e têm investido em promover essa atração. Há pouco mais de um ano, Filomena e Pedro Farinha criaram uma agência para oferecer visitas guiadas. Meses depois de começarem as atividades,

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foram contratados para fazer o translado de um grupo que vinha a Lisboa para participar de um congresso universitário sobre arte urbana. Ali encontraram uma oportunidade: e se criassem um tour pela cidade para mostrar as paredes? O que começou como algo provisório tornouse permanente. Como guia, escolheram Vasco Rodrigues que, embora nunca tenha pintado um muro, praticamente assistiu ao nascimento do grafite em Lisboa. “Desde a primeira vez que vi um grafite, eu fiquei fascinado. Voltei lá e fiz uma foto. E depois comecei a fotografar todas as paredes com peças”. Ainda adolescente, um dia criou coragem e foi conversar com os que pintavam. Tornou-se uma espécie de assessor de

imprensa informal dos artistas de rua. Trabalha hoje como agente cultural para algumas prefeituras, promove encontros e exposições, e também faz o passeio temático. “Eu conheço todos os artistas. Só de ver uma pintura, eu sei dizer, com bastante grau de certeza, de quem é”, diz o guia. O tour pela cidade varia conforme o público: o que conhece, o que quer ver e o tempo que tem. A maioria é de estrangeiros. “Muitos são fotógrafos, ou estudiosos, ou artistas. Os brasileiros ainda são raridades”, conta Filomena. “Quando ofereço esse passeio, noto uma resistência. Ainda não convenci os brasileiros a verem arte urbana”, lamenta a empresária nascida em Angola – quando ainda era colônia portuguesa – e radicada no Brasil.

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CON ESPECIAL TI NEN TE Além da questão estética, uma das boas surpresas do tour – que, em geral, dura cerca de 4 horas e custa 35 euros por pessoa – é a possibilidade de se conhecer uma outra Lisboa, a que não está no raio turístico. Um desses lugares que dificilmente um visitante conheceria é a Quinta do Mocho, um bairro afastado do centro que só aparecia nos jornais quando havia um morto. A maioria dos moradores é de imigrantes de ex-colônias africanas. Ali, não há opções de lazer. Em 2013, a administração local colocou em marcha um projeto (aprovado em assembleia pelos moradores) para que artistas portugueses pintassem os muros dos edifícios de moradias populares – todos de três andares e igualmente sem vida. Já são dezenas de pinturas que enfeitam o lugar. “Acho que é um espelho para o bairro. Agora vêm pessoas, até estrangeiros, para fotografar. Dá uma nova visão ao que é isso. Havia um estigma e muita gente não entrava aqui, pensavam que era perigoso”, conta o cabo-verdiano Adelino Conceição, 52, morador da Quinta do Mocho desde que era uma ocupação irregular. “Essas pessoas sentem mais orgulho de onde vivem porque agora são visitadas. Por outro lado, há uma maior preocupação das autoridades em cuidar do espaço”, diz o guia Vasco Rodrigues. Alguns dos moradores participam de programas para serem guias ocasionais de visitantes. Aprendem sobre os artistas, que também aprenderam com eles – durante os quatro ou cinco dias que precisam para pintar as paredes, residem no bairro e convivem com os moradores.

MUROS DE ONTEM

Em abril de 1974, após a Revolução dos Cravos que derrubou uma ditadura de quase 50 anos, pela cidade se espalharam escritos de esperança e de desabafo. Estava ali o germe, ou a pré-história da arte urbana de Lisboa. Depois, no final dos anos 1980, apareceu o grafite. Influenciados pela “moda MTV”, jovens dos subúrbios que escutavam hip-hop e andavam de skate encontraram nas marcas das paredes uma maneira de fazer-se ver. Muros que um dia trouxeram escritos lemas como “Rumo à Liberdade”, “Educação”, “Reforma

4 PERIFERIA Pintura do português Nada, na Quinta do Mocho, região que abriga imigrantes, antes só conhecida pelos casos de violência

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A nova política lisboeta de arte urbana resgata a tradição de pinturas de muro da Revolução dos Cravos

Agrária”, “Fascismo Nunca Mais” e agora estão pintados por consagrados artistas, portugueses e estrangeiros. “Há um histórico em Lisboa de pinturas em muros que vem da Revolução dos Cravos, era outro contexto, eram sobretudo mensagens políticas, mas eu penso que aqui há uma cultura de usar as paredes para exprimir uma ideia”, diz a galerista da Underdogs. Para a francesa, essa abertura dos portugueses para esse tipo de expressão artística, somadas à criação da GAU e ao fato de a cidade estar na moda, explicam

o boom da arte urbana lisboeta. “Está na moda, mas nós não nos preocupamos com isso, estamos aqui para fazer algo mais. Acreditamos que a arte tem que falar para todos e que o artista tem um poder grande nas mãos.” Incentivada pelo poder público ou não. Feita por artistas renomados ou desconhecidos. Na periferia, longe do olhar dos turistas, ou nas principais avenidas da cidade, a arte urbana cada vez mais dá colorido a Lisboa, e atrai olhares. Ao contrário dos grandes monumentos, como o Castelo de São Jorge, a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerónimos, que embelezam a urbe há séculos, essas novas pinturas surgem e desaparecem rapidamente. Não deixa de ser o retrato de uma época: acelerada, globalizada e fragmentada. Se quer conhecer o passado de Lisboa, visite os museus. Se quer conhecer o presente e imaginar o futuro, ande pelas ruas, sempre atento aos muros.

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Palco PIERRE BYLAND Levando o nariz vermelho ao teatro

O primeiro Novo Clown de Jacques Lecoq narra sua trajetória artística após apresentação de Confusion em São Paulo TEXTO Guilherme Novelli

Pierre Byland está no centro

do palco, observando sua esposa enrolada no pano da rotunda. Um refletor despenca e fica pendurado próximo ao tablado de madeira. Ele, distraído, em cima da marca, aguarda o desfecho da cena final: uma escada de uns cinco metros de altura cai em sua direção, pelas costas, tombando a dez centímetros do seu corpo. Black out. Risos, gargalhadas, aplausos. A cortina vermelha se fecha. O casal, os produtores Luciana Arcuri e Peti Costa, além do tradutor de francês Rodrigo

Veloso, sentam-se próximos à ribalta. Pierre está sem sapatos e começa a se explicar para a plateia que ficou para aquela roda de conversa: “Eu tirei os sapatos para diferenciar a vida real do teatro. Só uso sapatos em cena. Espero que o cheiro não esteja muito forte”. Esse suíço de 77 anos é ator, autor, diretor de teatro e pianista. Esteve recentemente com sua esposa, a atriz holandesa Mareike Schnitker, em São Paulo com o espetáculo Confusion, pelo Festival de Circo promovido pelo Sesc. Jacques Lecoq, mestre da mímica e do

teatro francês, considera o artista suíço o primeiro a levar o nariz vermelho do circo para o teatro, mudando o significado dessa que é a menor máscara do mundo. A partir do Novo Clown de Byland, o nariz vermelho iria expor a idiotice, a ingenuidade e a fragilidade humanas. Confusion é um trabalho criado e dirigido pela dupla Byland/Leqoc. É uma homenagem póstuma a Leqoc, pois apresenta toda a metodologia criada pelo gênio francês, em cena. “O teatro de Lecoq era fenomenal. Nós começamos a trabalhar juntos na sua escola, em Paris, e foi uma incrível descoberta do teatro e da vida, porque ele também era filósofo, cientista, pesquisador, e conseguia trabalhar com os atores de uma forma a estimular a criatividade”, conta. Byland saiu de Aarau, Suíça alemã, com 20 anos de idade, em 1959, matriculando-se no curso de teatro de Lecoq. “A Suíça é um país pequeno e provinciano. Eu quis fugir de lá. Depois, compreendi que foi uma grande ideia, porque estava me sentindo claustrofóbico. Paris foi ótima para mim. É uma cidade

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Palco

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cosmopolita… Na escola de Lecoq havia pessoas de várias nacionalidades, e foi ótimo começar a compreender outras culturas. Uma experiência linda.” Lecoq era um pedagogo muito exigente, no sentido de fazer com que eles se descobrissem enquanto atores. Seus alunos não podiam, simplesmente, imitar algo já pronto, pois partia da prerrogativa de que teatro e vida estão sempre em relação. “O teatro não é algo abstrato, desconectado da vida. Lecoq tinha esse espírito e filosofia de trabalho: a vida em relação ao teatro e o teatro em relação à vida. Ele não dava exemplos, não demonstrava como deveríamos interpretar. Tínhamos que criar nosso estilo próprio de atuação.” Durante os dois anos do curso, Byland e seus colegas queriam fazer cenas cômicas, mas Lecoq sempre os reprovava. No final do curso, eles estavam muito frustrados. “Para nós, não era permitido ser cômico. O curso terminou e ele nos disse: ‘Vocês querem fazer rir?’. E nós respondemos: ‘Ah, sim’. E ele disse: ‘Então, nós podemos fazer um terceiro ano de curso e trabalhar nisso’.” O terceiro ano começou e o primeiro exercício era, justamente, fazer rir. Um ator inglês, o mais frustrado da turma, se ofereceu para ser o primeiro.

O movimento Novo Clown se desvincula dessa ideia de palhaço de circo, ligada a uma tradição familiar de linhagem Sua improvisação foi péssima, jamais tinham visto nada pior. Ninguém deu nenhuma risada. Terminou a cena, tirou o nariz vermelho e sentou no chão. “Então, começamos a dar risada. Rolamos no chão de tanto rir por 25 minutos. Ele estava paralisado, sem ação, não entendia o que estava acontecendo. Lecoq compreendeu, nesse instante, que o durante não desperta interesse. O interesse estava nesse fiasco, esse homem frustrado por dois anos seguidos liberando seu sentimento de querer fazer rir e ninguém ri dele. Nascia, então, a Pedagogia do Fiasco.” Lecoq era científico, acima de tudo, e disse: “Temos que trabalhar nisso, nesse momento do fiasco”. Eles nunca mencionaram o antigo palhaço de circo. “Estava claro que nós tínhamos que encontrar a nossa estupidez e a nossa maneira trágica diante da vida. Eu percebi, simbolicamente,

que o simples fato de vestir o nariz vermelho queria dizer que nós somos estúpidos, ingênuos, não entendemos nada. Eu peguei isso para mim e Lecoq concordou comigo, dizendo que o nariz vermelho simbolizava a estupidez humana.” Eles foram os primeiros alunos, a primeira classe que compreendeu o Novo Clown, não mais o palhaço de circo vinculado a uma tradição familiar de uma linhagem de palhaços que era obrigada a seguir o ofício dos pais. Então, esse foi o início de um novo movimento, do Novo Clown. “Nós estávamos lá, no dia 6 de outubro de 1962, às 10 da manhã. E foi um tremendo privilégio presenciar e sentir o momento trágico desse pobre rapaz.” “Trabalhei com Beckett em Paris. Ele ficou uma temporada por lá com várias performances. Tinha terminado o curso de Lecoq e era, para mim, um recomeço no teatro. Minha primeira performance nesse recomeço foi com Roger Blanc, um grande diretor que era amigo de Beckett. Roger Blanc foi o primeiro a encenar Esperando Godot e muitas outras peças de Beckett.” Roger Blanc indicou Pierre Byland para atuar na encenação de Act without words, dirigida pelo próprio autor. Quando Beckett escreveu esse espetáculo, pensou que ninguém jamais a encenaria,

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1-2 CONFUSION É um estudo sobre a linguagem corporal cotidiana e traz em cena Pierre Byland e sua mulher Mareike Schnitker

tempos, esse segundo plano vem à tona e deixa todos surpresos.” Além de exemplificarem a contramáscara em cena, Pierre e Mareike mostram o trabalho das máscaras da escola de Lecoq, raro de se ver aqui no Brasil, que no contexto da peça acentuam também a estupidez humana.

REFERÊNCIAS

porque achava que ninguém estava interessado em nada que escrevia. Era uma peça com movimentos coreografados e Byland um ator acostumado com improvisação. Ele entrava e saía de cena, mas se sentia perdido. “Era a história de Deus, um chamado divino, mas eu não podia compreender o que era Deus. Então, estava tendo problemas para desempenhar meu papel. Beckett estava lá e contei-lhe minha situação.” Ele respondeu que sua peça era um exercício para o ator, uma proposição com o intuito de elaborar motivos para a ação cênica. “Conseguimos resolver isso quando ele me deu um exemplo concreto, usou a figura de uma mariposa para representar Deus.”

LINGUAGEM CORPORAL

Confusion é um estudo sobre a linguagem corporal que as pessoas desempenham nas situações cotidianas. O modo atrapalhado, ingênuo e estúpido com que nos comportamos na fila do cinema, na casa de amigos ou parentes, no restaurante etc. Situações repetitivas e engraçadas com uma dinâmica que o próprio Samuel Beckett retratou em seu Teatro do Absurdo. “Se observarmos as pessoas, e nós podemos observálas 24 horas por dia, entenderemos como elas são. Nós descobrimos

O clown, para Byland, é uma forma de dizer que o sistema está errado, que ele está fora desse modelo social falido que o corpo e a voz nos dão uma imagem interior dessas pessoas, como elas se sentem. Começamos a compreendê-las melhor e, como consequência disso, entendemos melhor a nós mesmos. Como Bertold Brecht dizia, ‘tentar compreender o teatro pode ser uma forma de entender melhor a arte mais difícil que existe, a arte da vida’”, explica. Byland se surpreende quando a linguagem corporal de uma pessoa comunica o oposto do que ela realmente é. “Um conhecido meu tem um rosto angelical. É muito bonito, mas um homem horrível, cruel. Ele está preso, devido a uma de suas crueldades. Então, ele tem duas caras. Em seu interior, é completamente diferente do que aparenta ser. Esse é um exemplo do conceito de contramáscara, uma pessoa que aparenta uma coisa, mas, na verdade, é outra e, de tempos em

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Pierre se inspira nos filmes de Buster Keaton. Karl Valentin, o grande palhaço de Munique, também é uma referência para ele. Em sua escola de clowns, o Burlesk Center, na Suíça Italiana, faz homenagens a ele, tirando exemplos para os alunos praticarem como exercícios. “São aspectos de uma ingenuidade e de uma idiotice extremas. Para se chegar a uma idiotice extrema, é preciso ser muito inteligente.” Ele considera o humor atual, principalmente o televisivo, um tanto quanto perverso. “Eles obrigam o público a rir. Os animadores riem para estimular a plateia comprada a rir. A pobre audiência pensa num primeiro momento que aquilo é um lixo, mas, ao mesmo tempo, começam a achar interessante, porque veem todo mundo rindo e passam a se achar estúpidos por não estarem rindo. É uma tragédia! Eles riem apenas porque todo mundo está rindo.” O clown, para ele, é uma maneira de dizer que o sistema está errado, que ele está fora desse modelo social hipócrita e falido, que também engloba a educação, o ensino. No Burlesk Center, ele tenta desconstruir o modelo de ensino atual. “A gente não tem mais o direito de não conhecer. Na escola, temos que saber tudo e é uma catástrofe ter de saber tudo. Se eu disser que não sei, todo mundo vai dar risada de mim. Então, não tenho o direito de não saber. Temos que, laboriosamente, reaprender a não saber, fazer uma antieducação, e isso é difícil, principalmente com as pessoas inteligentes”.

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ROGÉRIO ALVES/SOBRADO 423/DIVULGAÇÃO

Palco GRUPOS Corpos no plural

A 12ª Mostra Brasileira de Dança contraria tendência de eventos que privilegiam os solos e duos e aposta nos grandes elencos TEXTO Christianne Galdino 1

Cada vez mais as contingências

econômicas desenham um cenário reduzido nas artes, em vários sentidos. Na dança não é diferente, isso se nota na proliferação recente de festivais que contemplam exclusivamente solos e duos e com programações bem enxutas. Não é novidade para os artistas brasileiros – principalmente os residentes em regiões como o Norte e o Nordeste – que na busca da estabilidade profissional um dos maiores entraves é a difusão. Conseguir circular para mostrar o trabalho além das fronteiras estaduais e até municipais é uma missão quase impossível em tempos de crise. E quanto mais gente na equipe, mais difícil a empreitada. Por conta dessa reconfiguração da cena da dança, alguns grupos foram extintos ou forçados a repensar o quantitativo dos seus elencos e a sua dinâmica de funcionamento. Para os que resistem, os eventos da área funcionam como vitrines. E

se os festivais e mostras cumprem papel decisivo nesse processo, estar presente neles é um importante fator para conquistar a tão desejada projeção. Mas como garantir esse espaço, se os próprios eventos precisaram encolher para se adequar às novas configurações sociais? Marcada pela diversidade de estilos desde a sua criação, a Mostra Brasileira de Dança chega à décima segunda edição e, na contramão da crise e do reducionismo por ela imposto, decide priorizar grupos com elencos numerosos e trajetórias consolidadas. Segundo a curadora e produtora Iris Macedo, os festivais devem ser espaços de difusão de grandes obras, independente da quantidade de pessoas envolvidas nas equipes. “Com essa iniciativa queremos proporcionar ao público o contato com produções grandiosas, vindas de todo o Brasil, e estimular também o investimento governamental na criação de

companhias de dança estatais, como é o caso de três dos grupos presentes na programação. Queremos mostrar que existem muitos fatores implicados num espetáculo de dança, não é só o movimento, tem todo o sistema de luz, som, direção de arte. Isso envolve a participação de muita gente”, destaca. Fundada em 1971 e mantida pelo Governo de Minas Gerais, a Cia. de Dança Palácio das Artes traz um elenco de 17 bailarinos na remontagem do espetáculo Entre o céu e as serras, para a abertura da mostra, nos dias 5 e 6 de agosto, no Teatro de Santa Isabel. O Balé da Cidade de São Paulo (SP), a Cia. Mário Nascimento (MG), a Focus Cia. de Dança (RJ) e o Corpo de Dança do Amazonas (AM) são outros convidados de peso, na extensa e variada programação do festival, que durante dez dias vai ocupar vários teatros e espaços do Recife, com espetáculos, coreografias, performances e atividades

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GUTO MUNIZ/DIVULGAÇÃO

12ª Mostra Brasileira de Dança 5 a 15 de agosto Mais informações: mostrabrasileira dedanca.com.br

formativas. Nesse reino do superlativo, a cena local está muito bem representada por alguns dos seus maiores grupos de dança, “em qualidade e quantidade”: o Grupo Experimental; a Vias da Dança; a Cia. Etc.; a Cia. Sopro-de-Zéfiro – Cecília Brennand; a Criart Cia. de Dança, o Ballet Stúdio de Danças e a Academia Fátima Freitas, entre tantos outros. O Recife é um lugar onde a prática artística sempre se desenvolveu tradicionalmente em grupo, até mesmo porque esse é o local, a priori, no qual se formam os artistas, sendo assim, a companhia de dança consolidou-se, por aqui, no papel duplo de escola-trabalho. As mudanças que as novas configurações socioeconômicas impuseram não conseguiram transformar totalmente a realidade da cena pernambucana. Atenta ao fato, a Mostra Brasileira de Dança, produzida por Paulo de Castro e Iris Macedo, garante a presença de grandes companhias em sua diversificada grade de atrações, com ingressos a preços populares e até entrada franca.

MUITOS INTÉRPRETES

Merece um destaque especial o espetáculo da Compassos Cia. de Dança (PE), Três mulheres e um bordado de sol. Prestes a comemorar 25 anos de trajetória, a companhia dirigida por Raimundo Branco, sempre investiu em

Durante dez dias, festival vai ocupar vários espaços, com espetáculos e atividades de formação elencos numerosos, mesmo sabendo da dificuldade que essa escolha acarreta. “Para mim, a experiência em grupo é muito mais rica, porque favorece a troca e possibilita que a gente discuta o corpo de uma forma macro, proporcionando o amadurecimento profissional e pessoal dos artistas. Procuro sempre perceber a quantidade de intérpretes que cada obra pede, mas como gosto de trabalhar conflitos de personagens, acabo por criar para grupos de mais de cinco pessoas”, justifica Branco. Para falar do feminino a partir da poética, obra e biografia de Clarice Lispector, Edith Piaf e Frida Kahlo, ele escolheu sete intérpretes, incluindo o iluminador Eron Villar, que tem destacada atuação no elenco. Concebido para um espaço de área livre, com cadeiras móveis para os espectadores, a obra tem no público um partícipe, que compõe o espetáculo junto aos bailarinos. A profundidade de uma

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CIA. COMPASSOS

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DE MINAS

Três mulheres e um bordado de sol está entre os destaques Entre o céu e as serras é o espetáculo de abertura do evento

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pesquisa desenvolvida por mais de três anos ininterruptos aparece nas cenas dramáticas e envolventes de Três mulheres e um bordado de sol. Impressiona também a unidade da companhia, onde todos os intérpretes apresentam o mesmo nível e estão inteiros na proposta; contando a história em um movimento fluido e coeso, mas sem esconder os valores subjetivos de cada bailarinoator. “As narrativas que me interessam explorar são muito imagéticas e não dá para desenvolver determinadas ideias em solos ou duos. As histórias que quero contar têm muitos personagens, relações complexas e situações de conflito sempre”, explica Branco. Quem vê a Compassos em cena, percebe o entrelaçamento de linguagens que compõe o perfil da companhia. Dança, teatro e capoeira dialogam com música, cinema, artes visuais e literatura – como era a intenção de Raimundo Branco quando criou o grupo. “A culpa é de André Madureira, diretor do Balé Popular do Recife, que me mostrou há muito tempo que dá para trabalhar dança, teatro, capoeira, tudo junto num mesmo espetáculo”. Seguindo essa trilha, Branco apostou na formação múltipla dos seus bailarinos, e o resultado aparece agora consolidado e maduro em Três mulheres e um bordado de sol.

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Cardรกpio C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 5 | 6 0

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TEMPERO Sem sal, não há cozinha Com moderação, ingrediente, cujo uso no Brasil se consolidou com os portugueses, adiciona sabor e variedade às preparações TEXTO Renata do Amaral FOTOS Leo Caldas

Para quem se inicia na cozinha, uma das maiores dificuldades reside numa hermética expressão: sal a gosto. Além do conhecimento sobre a sensação preferida ao paladar próprio e alheio, resta a dúvida sobre qual é a exata quantidade do ingrediente que vai proporcionála. O livro de receitas da mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, Dona Canô – compilado por outra irmã dos cantores, Mabel Velloso –, leva o título de O sal é um dom. Essa foi a resposta da matriarca às tentativas de Mabel de precisar a medida certa de cloreto de sódio das preparações. O dom de Dona Canô tem o sentido de aptidão inata ou talento, mas é possível ampliar para outro sentido da palavra: dádiva concedida pelos deuses. Em Comida & cozinha: ciência e cultura da culinária, Harold McGee afirma que o sal é “o tempero primordial, preparado pela terra bilhões de anos antes de os primeiros seres humanos aprenderem a temperar com ele seus alimentos”. É coletado desde a pré-história tanto no litoral quanto em minas em terra – estima-se que a produção mundial atual seja metade realizada de uma forma, metade de outra. “Antes que aprendessem a cozinhar em panelas, os seres humanos nunca precisaram se preocupar em pôr sal na comida. A carne animal já contém todo o sal de que nossos corpos necessitam, e assá-la preserva a maior parte dele. Foi só com o advento

da agricultura, quando as pessoas começaram a se apoiar numa dieta de grãos e outras plantas e a ferver grande parte da sua comida (e, no processo, percolando o sal que havia ali), que as deficiências de sódio se tornaram um problema”, explica o jornalista Michael Pollan em Cozinhar: uma história natural da transformação. À importância prática do ingrediente na cozinha e na saúde, soma-se sua relevância simbólica e econômica. “Não admira que seu nome esteja presente em numerosas palavras e expressões de uso cotidiano (‘salário’, da prática romana de pagar os soldados com sal; ‘sem sal’; ‘sal da terra’) e que ele tenha sido objeto de monopólios governamentais, de tributos lançados pelo Estado e de revoltas populares contra eles, desde a França revolucionária até a lendária caminhada de Gandhi rumo ao povoado litorâneo de Dandi, em 1930”, diz McGee. O historiador Felipe FernándezArmesto ressalta o papel dos impostos de sal na Revolução Francesa, mas destaca, no livro Comida: uma história, que houve dois momentos em que o cloreto de sódio mudou o rumo da história mundial. O primeiro foi quando o mercado da África Ocidental no fim da Idade Média sustentou o comércio medieval de ouro. O segundo se deu quando a indústria de salga de alimentos no norte da Europa,

principalmente nos Países Baixos, no século 17, foi essencial para o pontapé inicial do imperialismo marítimo de longa distância. Tudo isso porque faltava sal nos dois locais. A valorização do tempero também pode ser percebida pelas maneiras à mesa. Pequeno dicionário de gastronomia, de Maria Lucia Gomensoro, indica que, na Europa medieval, o pote de sal era uma verdadeira obra de arte. Além disso, sua posição à mesa marcava a hierarquia dos convidados – o mais importante ficava mais perto do saleiro. No clássico História da alimentação no Brasil, Luís da Câmara Cascudo frisa outro simbolismo: “Derramar o saleiro era triste agouro, como permanece nos nossos dias. No quadro da Ceia, Leonardo da Vinci pinta o saleiro entornado diante de Judas Iscariotes”. No Brasil do século 16, “o sal não era desconhecido nem querido. Nenhuma novidade no seu emprego mas também nenhuma preferência em sua função. Bem ao contrário”, lembra o autor. Os índios acreditavam que alimentos salgados resultavam em diminuição da vitalidade. A salmoura não era usada como método de conservação, mas sim a secagem no moquém, espécie de grelha feita com varas e usada para desidratar levemente carnes e peixes sobre o fogo. “Essa inevitabilidade do sal o português trouxe para o Brasil e fez usual a comida salgada, de nenhuma predileção para o indígena, que demorou a adaptar-se.”

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Cardápio 1

EQUILÍBRIO

Apesar de vilanizado pelos problemas ocasionados pelo seu uso em excesso, o ingrediente é indispensável para o organismo. “O sal não tem semelhantes entre nossos demais alimentos. O cloreto de sódio é um mineral simples, inorgânico: não vem de vegetais, nem de animais, nem de microrganismos, mas do mar e, em última análise, das rochas que, erodidas, alimentaram-no com suas partículas. Trata-se de um nutriente essencial, de uma substância química sem a qual nosso corpo não vive”, afirma McGee. Se consumido em grandes quantidades, porém, pode causar doenças. Precisamos de cerca de um grama de sal por dia para manter o equilíbrio químico do corpo, mas a quantidade pode variar se o indivíduo faz muita atividade física – e perde sal no suor. Nos Estados Unidos, por conta do alto consumo de alimentos processados, o consumo chega a dez gramas, conta o autor. A nutricionista e professora Fábia Moura esclarece que o cloreto de sódio é um mineral essencial ao funcionamento celular, juntamente com o potássio. “Ambos estão sempre se equilibrando dentro do organismo. Esses minerais são importantes na transmissão do impulso nervoso, entre outras funções”, diz.

A história mostra que, à importância prática do ingrediente na cozinha, soma-se sua relevância simbólica e econômica A nutricionista explica que os alimentos naturais já contêm sódio em sua composição e que o sal de cozinha é considerado sal de adição e deve ser consumido de forma moderada. “O excesso de sódio pode elevar a pressão arterial e contribuir com aparecimento de doenças cardiovasculares. De modo geral, o brasileiro consome-o em excesso”, diz. Não adianta trocar pelo chamado sal light, no qual parte do sódio é substituído por potássio. “Esse composto foi criado na intenção de atender ao público hipertenso, mas merece cautela. Salga menos e isso pode levar ao uso de uma quantidade exagerada”, alerta. Nem só para salgar serve o produto. McGee lembra que termos culinários como “sauce” (“molho” em inglês), “sausage” (“embutido” em inglês) e “salada” vêm da palavra “sal”, ingrediente indispensável em todos

eles, com funções que vão da retirada do amargor nas saladas à conservação nos embutidos. Ao mesmo tempo em que impede a proliferação de microrganismos que deterioram os alimentos, também possibilita o crescimento de bactérias “do bem” que ajudam a produzir sabores. “O sal, portanto, preserva o alimento e ao mesmo tempo o aperfeiçoa”, explica.

SABOR BÁSICO

Ao falar sobre os cinco sabores (doce, salgado, amargo, azedo e umami), Pollan lembra que o apreço dos seres humanos por cada um deles tem função biológica. Se o gosto amargo costuma indicar a presença de toxinas, o contrário acontece com o salgado: “O sal é um nutriente essencial do qual fomos programados para gostar”. Apesar disso, a intensidade da preferência é variável. McGee explica que a sensibilidade individual ao sal acontece por fatores tão diversos quanto “diferenças hereditárias no número e na eficácia das papilas gustativas, a saúde em geral, a idade e o costume”. “É a única fonte natural de um dos cinco sabores básicos e, por isso, o acrescentamos à maioria dos alimentos para complementar o sabor destes. Além disso, o sal

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1 SALGA Para o chef Claudemir Barros, cozinhar sem sal é tão impensável como cozinhar sem água 2 SABORIZADOS Há oito anos, a pernambucana Kook produz sal com sabor de alho, limão, pimenta, entre outros

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intensifica ou modera os sabores: reforça a impressão dos aromas que o acompanham e suprime a sensação de amargor”, afirma McGee. Para o chef Claudemir Barros, do Wiella Bistrô, cozinhar sem ele é algo tão impensável quanto cozinhar sem água. “Cozinhar sem sal é não produzir sabor e, posso ir mais adiante, prazer”, afirma o chef, que usa sais aromatizados quando deseja dar efeitos diferentes às preparações. São vários os tipos de sal, como qualquer consumidor atento pode perceber hoje. McGee descreve um por um em seu livro. O sal de mesa granulado tem forma de pequenos cristais regulares. O sal iodado leva iodeto de potássio para evitar doenças causadas pela deficiência de iodo, que acarreta problemas no desenvolvimento físico e mental. O sal em flocos tem forma de partículas achatadas e finas. Um exemplo é o sal marinho de Maldon, no sul da Inglaterra. “Polvilhado sobre o alimento logo antes de servir, o sal em flocos proporciona uma textura crocante e uma explosão de sabor.” O sal kosher é usado para tornar um alimento apropriado aos preceitos do judaísmo – por exemplo, para retirar restos de sangue da carne de um animal.

Apesar dos problemas de saúde que seu excesso pode provocar, o sal é indispensável para o organismo O sal marinho não refinado tem processamento mínimo e seu preparo pode levar até cinco anos. A flor de sal, cuja coleta foi desenvolvida em salinas marinhas do sudoeste da França, é a parte mais delicada do sal. Os cristais são separados da superfície antes de se misturar ao sal marinho comum. Por fim, há os sais aromatizados e coloridos. “Na confecção dos sais havaianos preto e vermelho, o sal marinho comum é misturado com lava, argila ou coral finamente moídos.”

SEM REGRAS

Pernambuco já conta com produção de sais saborizados. A Kook existe há oito anos, vende seus temperos e sais para mais de 400 cidades brasileiras e se prepara para começar a exportá-los para a Alemanha. Depois de trabalhar em cozinhas, o sócio Gustavo Accioly teve a ideia de montar a empresa

quando morou na Holanda e percebeu um outro cuidado com o sal. Segundo ele, cerca de 85% do sal produzido mundialmente é usado na indústria e apenas 15% na alimentação. Então, as salinas não se preocupam muito em desenvolver produtos diferenciados. A empresa importa sal mineral do Himalaia, de grão mais poroso e composto por 50% de cloreto de sódio e 50% de outros 84 minerais que lhe conferem um tom levemente rosado. Já o sal marinho é colhido em uma salina em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Dele são feitos também os sais saborizados: defumado ou com limão, alho ou pimenta. Accioly conta que eles levaram cinco anos para desenvolver o processo de saborização, em que o sumo natural do alho, do limão ou da pimenta in natura é retirado e aplicado no sal, criando uma película de sabor. Ou seja, o sabor é “colado” no sal, que ganha diferentes cores. A granulometria também provoca efeitos variados no sal. O granulado fino, usado na linha de potes para cozinha, permite maior precisão na pitada. Cada grão tem até um milímetro de diâmetro, tamanho equivalente ao do açúcar cristal. O granulado médio é específico para churrasco, pois tem um grão mais achatado que permite maior aderência ao assado e menos desperdício. Accioly ressalta que, quando se usa o sal comum nessa preparação, metade termina caindo no carvão em vez de grudar na carne, porque esse sal tem granulometria variada e não homogênea. Por fim, o granulado grosso tem moedor acoplado e é usado para finalização dos pratos. A textura provoca alterações de sabor: quanto mais fino, maior é a superfície de contato com a língua; quanto mais grosso, menor é essa área. A diferença é sentida na degustação. Accioly acredita que todos os sais podem ser usados em qualquer tipo de comida, de acordo com o gosto do consumidor e com o efeito desejado. Não há regras – e combinações aparentemente inusitadas podem funcionar. “O defumado é bom com carne, mas pode fazer um ovo frito se tornar uma iguaria”, sugere.

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DIVULGAÇÃO

Sonoras JAM DA SILVA A geração que cresceu

Instrumentista que integrava bandas nos anos 1990 realizou um dos mais interessantes discos da década, Nord, o segundo álbum da sua carreira solo TEXTO Débora Nascimento

A maior parte dos músicos que

despontaram em Pernambuco nos anos 1990 se encontrava em bandas. Além das afinidades musicais, esses cantores, compositores, instrumentistas se reuniam em grupos como forma de criar coletivamente e de enfrentar conjuntamente os problemas do mercado musical, ainda pouco conhecido. Com o crescimento profissional, alguns deles preferiram seguir em carreira solo, para terem mais possibilidades de diversificar o trabalho, enveredar por outras frentes de maneira mais independente e menos atrelada à escolha da maioria dos membros. Assim, surgiram vários artistas solos, entre eles, Silvério

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Pessoa (ex-Cascabulho), Siba (exMestre Ambrósio), Alessandra Leão, Karina Buhr, Isaar França (as três exComadre Florzinha), Otto (ex-Mundo Livre S/A) e Jam da Silva. Ex-integrante do Dona Margarida Pereira e os Fulanos, Orchestra Santa Massa e F.U.R.T.O (com Marcelo Yuka), Jam é um dos bons exemplos dessa bem-sucedida guinada pessoal de alguns artistas, sendo um dos mais festejados atualmente no Brasil. Compositor, instrumentista e produtor, ele utiliza a liberdade de não estar vinculado a um grupo para pensar e investir sempre em novas parcerias. “Numa banda você termina se restringindo aos membros específicos; já solo toca com mais gente, pode chamar músicos diferentes pra cada música a ser gravada. Portanto, algo que parece ser individual e focado apenas numa imagem, vira um processo muito mais abrangente e coletivo do que numa banda”, explica. Além do contato com novos parceiros (neste disco, Maciel Salú, Fábio Trummer, Juliano Holanda, Luísa Maita e a norte-americana Lisa Papineau), estar num trabalho individual vem lhe proporcionando conhecer outros lugares. “A música sempre me deu um presente a mais, permitindo que eu viajasse e encontrasse novos amigos, parceiros em cada lugar, me estimulando a criar novas sonoridades; permite, de fato, estar livre pra criar em qualquer lugar do mundo, um novo show, ou um novo álbum, sem depender de uma organização que passe por várias pessoas. Uma perfeita combinação com o meu espírito aventureiro”, revela. Nessas andanças, o músico vai captando sons, material que se torna uma espécie de caderno de anotações de viagens e acaba servindo como fonte de inspiração para a criação ou, até mesmo, base para as composições. “Seja em estúdios ou na rua, vou montando uma biblioteca de sons meus e isso me motiva a fazer um outro processo que gosto muito, o das colagens, tendo um pensamento não em música e seus compassos, mas em cenas e imagens. Gosto de partir do chão, dos beats, a música através de

um sentimento rítmico, mesmo que depois eu não use nada do ritmo, mas preciso me sentir à vontade com esse ‘chão’, e a pulsação também é muito importante. Depois vêm as melodias e, por último, as letras. Não faço pré-produção das músicas a serem gravadas, vou pro estúdio muitas vezes sem saber o que vai sair e aí depois vou trabalhando nos overdubs. Dependendo do estado de espírito do dia, elas sairão mais lentas ou mais aceleradas, e por aí segue.” Com a experiência adquirida ao longo desses anos, Jam deu um passo importante na carreira, produziu sozinho o seu segundo álbum solo, Nord. “O primeiro, Dia santo (2008), coproduzi com o cientista do som, Chico Neves – na minha opinião, o melhor produtor do Brasil, um grande amigo que tive a sorte de esbarrar nesta vida. Com ele presenciei mais de 20 produções do mainstream

Entre o processo de gravação, mixagem e masterização, o disco circulou por 11 estúdios de diferentes países brasileiro, me levava a todas as sessões de gravações de produções em que estava envolvido. Uma delas foi inesquecível, aconteceu na casa do Milton Nascimento, no disco com o Jobim Trio (Novas bossas, de 2008). Foi lindo ver e ouvi-lo cantar – coisas que ficam na memória”. Acompanhar essas gravações foi fundamental para Jam burilar o talento, ganhar experiência e adquirir a coragem necessária para decidir produzir por conta própria o seu trabalho. Para realizar esse disco, viajou bastante. “Queria ir em busca dos sons das pessoas, uma identidade musical e não apenas bons músicos pra gravar nas músicas. Em Dia santo, usamos o estúdio como um instrumento; em Nord, o estúdio foi uma ‘máquina fotográfica’”, diz o músico, que viajou para países tão distantes quanto díspares, como Estados Unidos e Islândia. “O artista

cria muito dentro do universo geográfico em que ele está inserido e a Islândia foi um lugar que sempre mexeu com meu imaginário. Queria entender como os artistas de lá faziam aquela música linda. Conhecia apenas a Björk e o Sigur Rós (o trombonista Samúel Jón Samúelsson, que já colaborou com a banda islandesa, participou de Nord), mas chegando lá pude constatar uma vasta cena musical, com bandas de garagem e músicos incríveis. Eles sempre apresentam algo inusitado e por isso são muito interessantes.” O resultado dessa viagem é que o artista conseguiu elaborar um interessante painel sonoro, confeccionando uma vasta teia de sons, que se completam e criam ambientes, como expõe a faixa de abertura, a instrumental A vida na dança. O intrincado arranjo coletivo de Gaiola da saudade, gravada anteriormente por Elba Ramalho e Maciel Salú (coautor), respectivamente como forró e maracatu, comprova a habilidade de Jam como produtor. O disco do músico, que também é autor de trilhas sonoras, consegue o raro feito de transformar músicas em imagens na cabeça do ouvinte. Talvez por essa capacidade, Jam da Silva tenha tanto interesse em realizar bons videoclipes, como mostram os de Gaiola da saudade e Samba devagar, do álbum anterior. Hoje, quando as facilidades de gravação estimulam os músicos a realizarem seus registros de forma caseira e até mesmo sozinhos, Jam preferiu trilhar o caminho mais trabalhoso e complexo, mas não menos prazeroso e frutífero. Entre o processo de gravação, mixagem e masterização, o disco circulou por 11 estúdios diferentes, com a participação de dezenas de instrumentistas, refletindo a diversidade dessa contribuição. Eis a evidência de que aquela geração – que começou de mãos dadas lá trás de forma coletiva, em sua própria terra, pra enfrentar o restrito e excludente mercado musical – cresceu, se expandiu, mas continua junta. E está oferecendo ao mundo grandes discos, como Nord.

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

Entrevista

JAM DA SILVA “NO COMEÇO, ERA TUDO MAIS ESCASSO ” CONTINENTE Diante da experiência de já ter participado de uma banda, quais as vantagens e desvantagens de estar numa carreira solo? JAM DA SILVA Uma das desvantagens é que você sozinho tem de colocar o bloco na rua, sem dividir os custos, portanto precisamos nos aliar ao nosso amigo tempo. Outra desvantagem é se os objetivos artísticos dos membros não estiverem claramente definidos e não forem parecidos, é um inferno. Artistas solo têm mais liberdade e liberdade é o ar do artista. E se ainda for coerente com a arte, melhor ainda.

Sonoras

CONTINENTE Percebo que você gosta de realizar videoclipes. Você acredita nesse formato? Qual o retorno que eles vêm trazendo para tua carreira? JAM DA SILVA Os clipes popularizam muito o meu trabalho, as pessoas vêm falar nas ruas, encontram e trocam ideias. Hoje o formato em que mais acredito é o audiovisual, a música ligada a outras mídias, não apenas o MP3 pra se ouvir.

CONTINENTE Como foi a turnê na América Latina, realizada no mês de junho? Qual a importância dessas turnês? Como elas foram realizadas? JAM DA SILVA Foi maravilhoso! Teatros lotados e público muito animado, curiosos e com os ouvidos atentos para tudo. Foi uma alegria imensa perceber que mesmo cantando em português, as pessoas estavam lá curtindo, vibrando e conectadas através da linguagem e da estética do som. Eu que já fazia e faço tours de forma independente, foi muito importante dessa vez, esse reconhecimento por parte do Funcultura. A importância é essa troca de culturas e conexões diversas entre os artistas todos, estamos dando continuidade de uma representação da nossa cultura, bem como incentivando outros artistas a ampliarem seus horizontes. CONTINENTE Você acha que os artistas locais deveriam investir mais nessas turnês pelo continente? JAM DA SILVA Sim, devem investir, pois acho o mercado fora do país mais estável. Sempre fiz isso independente de patrocínios e continuarei fazendo, agora mesmo estou montando mais duas turnês de forma independente, tenho muitos convites este ano pra shows nos EUA e Londres e, ano que vem, pro Japão. Daí terei de viabilizar de forma independente, pois as datas estão aí muito perto e não coincidiriam com o calendário dos editais. CONTINENTE Quais foram os shows mais importantes da sua carreira? JAM DA SILVA No Rio, fui pra um mês e fiquei dez anos. Fiz muita coisa bacana por lá, projetos como o Multiplicidade e o Festival Back to Black, no qual abri o show da Erykah Badu. Também trabalhei com o griot da kora, o malinês Toumani Diabaté; toquei no palácio Somerset House nas Olimpíadas de Londres, em 2012, a convite dos curadores ingleses e o show da Islândia também foi incrível. CONTINENTE Você voltou a morar no Recife? JAM DA SILVA Sim, mas estou morando mesmo é no meu sapato. Estou viajando muito, acho que nossa casa mesmo termina sendo a estrada. O disco Nord naturalmente está sendo convidado pra

ocupar muitos espaços e estou muito feliz com isso. Eu me adapto aos lugares que vou, podendo me firmar por um tempo, sem problemas e sem esquecer as minhas origens. Hoje posso morar em qualquer lugar do mundo, pois tudo está mais prático e facilitou nossa vida, se querem que eu grave algo em estúdio, mando via internet e também se for algo presencial basta pegar um avião. Tenho muitos amigos no mundo e me sinto em casa em qualquer lugar desses, viajar nos ensina a ter paciência e é um grande aprendizado, lugar onde podemos reorganizar nossos afetos e pensamentos. Quando comecei no Recife, era tudo mais escasso sim, poucos estúdios, etc. Há um bom tempo que tudo já floresceu e o nível dos profissionais da música, técnicos do som, estúdios, músicos, palcos, são nível top. CONTINENTE Como você avalia o mercado musical pernambucano hoje, com relação à época em que começou na música? JAM DA SILVA Pra se ter um mercado, teria que ter: espaços + comunicação (TV, rádio, etc.). Vias de força pra escoar o produto aqui, num âmbito maior, pois público tem. Está acontecendo um momento bonito, com a movimentação dos artistas com seus trabalhos autorais, produzirem seus shows aliados a determinados locais, isso é uma bela iniciativa, sendo assim não gera uma relação de dependência com o Estado. Pernambuco é um berço cultural com grande potencial e, apesar disso, o mercado que abraça o trabalho autoral parece ser pequeno. Tem algumas casas de shows, mas a sua grande maioria é de pequeno porte, que comportam, no máximo, 150 pessoas. O público está acostumado, por sua vez, com os shows abertos dos governos municipal e estadual (Carnaval, Ano-novo, etc.), mas ele consome o que lhe é oferecido. O artista procura vias de fora do estado para garantir a manutenção do seu trabalho, num êxodo artístico. Ocupar os teatros é fundamental, a cidade tem lindos teatros, pouco aproveitados. DÉBORA NASCIMENTO

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INDICAÇÕES SOUL

LEON BRIDGES Coming home

ALTERNATIVO

O norte-americano de 26 anos certamente é uma das grandes surpresas de 2015. O estilo e música do cantor faz referência ao soul da década de 1960, como pode ser observado em seu disco de estreia Coming home. As baladas são leves e dançantes, com combinações empolgantes entre bateria, guitarra, metais e backing vocals. Sua música transporta o ouvinte à época de ouro da gravadora Motown. A faixa-título do álbum ficou entre as mais tocadas no serviço de música streaming Spotify.

Deckdisc

Columbia

Tame Impala

GUINADA R&B NO 3º DISCO

MAGLORE III

Três é o número de integrantes da Maglore e da quantidade de discos lançados pela banda. Não à toa, também é o nome do recente álbum do grupo. Após algumas mudanças na formação, o trio baiano composto por Teago Oliveira (voz e guitarra), Rodrigo Damati (baixo) e Felipe Dieder (bateria), oscila rock e MPB a elementos pop que trazem às músicas melodias agradáveis e doces de se ouvir. As letras carregam certa dose de melancolia.

Depois de uma espera de três anos, os fãs do Tame Impala, enfim, podem ouvir o terceiro disco da banda australiana. Logo de cara, uma possível decepção, Currents tem pouco do rock psicodélico dos anteriores Innerspeaker (2010) e Lonerism (2012). O álbum dá uma guinada para o R&B e o pop dos anos 1980, parecendo uma mistura de Air com Michael Jackson. Se nos dois primeiros houve a colaboração do produtor Dave Fridmann (Flaming Lips, MGMT...) agora o multi-instrumentista Kevin Parker, nome por trás do Tame Impala, deu um mergulho total na concepção de um álbum: composição, instrumentação (com ênfase nos sintetizadores), engenharia de som e produção. Dentre os destaques, Past life, Let it happen, Reality in motion e The less I know the better, algumas das melhores músicas que se ouvirá neste ano. (Débora Nascimento)

MPB

SIBA De baile solto

Após sete anos sem lançar álbum com canções inéditas, o paraibano Chico César compensa o hiato com o recente Estado de poesia. As músicas têm tom de romance, mas também críticas sociais, acompanhadas de arranjos com suingue e elementos regionais. Canina, primeira faixa do disco, chega com blues mesclado ao forró. Versátil, o disco também inclui sonoridades de reggae, frevo e samba. Destaque para a longa e última faixa (11 minutos), composta por Carlos Rennó, Reis do agronegócio.

Desde a capa às músicas, o pernambucano traz a tradição do maracatu de baque solto em seu novo disco. Diferentemente de Avante (2012), menos intimista e mais crítico, seu novo trabalho carrega letras fortes, a exemplo de Marcha macia e Quem e ninguém. Os arranjos unem a percussão ao timbre da guitarra já característico de Siba, além do grave da tuba equilibrando a melodia. De baile solto foi produzido de maneira totalmente independente e contou com o financiamento coletivo através da plataforma Kickante.

Pommelo

Wilco

DISCO SURPRESA DE INÉDITAS Enquanto boa parte da imprensa musical estava ainda decidindo se o novo disco do Tame Impala seria muito bom ou muito ruim, o Wilco, que se encontrava na turnê comemorativa dos vinte anos do grupo, pegou todos de surpresa, anunciando que havia um novo disco de inéditas pronto e disponível para baixar gratuitamente. Nessa tour, a banda estava tocando seu repertório clássico e mais algumas músicas do então último álbum, The whole love (2011). No dia seguinte ao anúncio, executou todas as novas composições ao vivo no Pichtfork Music Festival. O melhor da notícia é que, em Star Wars, o bandleader Jeff Tweedy resolveu voltar a fazer canções mais cruas, como no début, A.M. (1995), e deixou um pouco de lado a megaprodução de discos marcantes como Yankee Hotel Foxtrot (2002), A ghost is born (2004), e Sky blue sky (2007). (DN)

REGIONAL

CHICO CÉSAR Estado de poesia

Independente

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FABIO REBELO/DIVULGAÇÃO

Claquete 1

JORGE FURTADO De volta ao faz de conta urbano

1 VLADIMIR BRICHTA Ator interpreta fotógrafo em busca de modelo perfeita

Referência no audiovisual brasileiro contemporâneo, cineasta retorna à ficção com Real beleza, drama sobre triângulo amoroso TEXTO Luciana Veras

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relações interpessoais que se podem estabelecer a partir da busca pela graciosidade infinita e pela perfeição. Os protagonistas: João (Vladimir Brichta) é um fotógrafo em decadência, que, após um incidente, volta a rastrear candidatas a modelo em cidades do interior do Rio Grande do Sul; Maria (Vitória Strada) é a adolescente que ele encontra e em quem identifica a fagulha da tal “real beleza”; e Anita é a mãe da jovem, casada há duas décadas com Pedro (Francisco Cuoco), um homem mais velho, culto e, não por acaso, reticente quanto à ideia de permitir que sua única filha abandone os estudos para se lançar ao mercado das top models. De todos os enigmas da experiência humana, a beleza talvez seja o mais curioso. “Une todas as pessoas, é algo que todos nós reconhecemos. Mesmo que não

Sexto longametragem do realizador de O homem que copiava (2003) entra em cartaz este mês

“A gente só sabe bem aquilo que não entende.” A frase de Guimarães Rosa é proferida por Anita, personagem de Adriana Esteves em Real beleza, e ilumina várias das questões problematizadas pelo cineasta gaúcho Jorge Furtado em seu novo filme. Em cartaz nas salas do país inteiro nesta primeira quinzena de agosto, o sexto longametragem do realizador de O homem que copiava (2003), Meu tio matou um cara (2004) e Saneamento básico – o filme (2007) explora as

saibamos explicar, é misteriosa e interessante. Por que achamos uma pessoa bonita? Como isso muda de época?”, indaga Jorge Furtado em entrevista à Continente. João, o fotógrafo, encanta-se pela filha e também pela mãe, enredado por diferentes perspectivas de formosura. Anita, a mãe, acolhe o desejo por aquele estranho que pretende levar sua filha dali, sem, no entanto, neglicenciar a beleza e a harmonia da vida que leva ao lado do marido – que, por sua vez, declama, em citações pinçadas de clássicos da literatura, a graça da existência cotidiana. Todos estão em tempos diferentes, em momentos distintos, porém unidos por essa noção do belo. Regressando à seara ficcional após O mercado de notícias (2014), incursão no mesmo gênero documental que o consagrou com o curta-metragem Ilha das flores (1989), o diretor conta

que escreveu o roteiro com o ator baiano Vladimir Brichta em mente. “Fui direto nele, depois convidei a Adriana, e o Cuoco veio logo a seguir”, diz. É o primeiro filme em que Vladimir e Adriana, marido e mulher na realidade, contracenam – aspecto que vem sendo explorado no material de divulgação de Real beleza, em parte porque se trata de um casal com grande inserção no universo das telenovelas, em parte porque isso parece, de fato, atiçar a curiosidade dos espectadores. “De fato, é o primeiro filme dos dois juntos. Como havia cenas de romance, de sexo na cama, queria que tivesse bastante integração entre eles. Daí, logo pensei que Adriana é uma grande atriz dramática, que até faz comédias superbem, mas que para fazer drama tem uma intensidade incrível. Então, por que não chamá-la? Sem contar que fica até mais fácil para trazer um ator e ele poder viajar ao lado da sua mulher”, observa o diretor, que rodou o longa durante o mês de outubro de 2013, em Garibaldi, Três Coroas e São Francisco de Paula, cidades da Serra Gaúcha. À facilidade para escalar o trio de adultos se contrapôs o esforço em achar a atriz que receberia a missão de interpretar a aspirante a modelo. “Foi uma história totalmente diferente. Botamos anúncio em jornais, procurando meninas de 14 a 18 anos que quisessem ser modelos. Apareceram mais de 300 garotas. Daí selecionamos 40, que são as que estão no filme. Aquela parte de documentário é real”, comenta Jorge Furtado, aludindo a uma sequência em que diversas adolescentes posam para a câmera de João em Real beleza. “Dessas 40, selecionei 10 e aí fiz testes de atuação. Terminei escolhendo Vitória, que, além de ser muito bonita, tinha altura e porte de modelo, preenchendo todos os requisitos. É o primeiro trabalho dela como atriz”, acrescenta o diretor que, em Houve uma vez dois verões (2002), já revelara o ator André Arteche. O olhar certeiro para descobrir joias a lapidar soma-se ao conforto de trabalhar, literalmente, em casa. Real beleza é uma produção da Casa

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FABIO REBELO/DIVULGAÇÃO

Claquete de Cinema de Porto Alegre, da qual Furtado é um dos sócios, e tem na equipe nomes recorrentes em todos os seus trabalhos de cineasta – a exemplo de Nora Goulart (produção-executiva), Giba Assis Brasil (montagem), Rosângela Cortinhas (figurinos), Fiapo Barth (direção de arte) e Alex Sernambi (fotografia). “É a mesma equipe, mas tem sempre uns novos, viu?”, brinca, aos risos. “Isso facilita muito, porque todo mundo já sabe como cada um trabalha, o clima da filmagem é tranquilo, sem estresse. Costumo dizer que a gente brigou em 1993, então já faz tempo. Na verdade, não sei filmar sem eles. Cinema é uma arte de equipe. Tanto que eu nunca boto o crédito de ‘um filme de Jorge Furtado’ num trabalho meu. É sempre a publicidade que acaba botando e, quando posso opinar, tiro. Para mim, de todas as expressões artísticas, o cinema é a que é mais de turma.” E é também, na visão do cineasta gaúcho, a poderosa junção entre palavra e imagem. “Foi essa relação que sempre me interessou no cinema. A disputa, a solidariedade, a união… Quando esses mundos se encontram, o poder é imenso. Imagina pegar tudo que a literatura, a pintura e a fotografia têm e colocar para dançar com as imagens. É por isso que é tão poderoso, é por isso que fui atraído a fazer cinema, em que é possível escrever e filmar, e assim agrupar mundos irreconciliáveis. Acho que, se eu soubesse desenhar muito bem, faria histórias em quadrinhos”, confessa. Se as HQs perderam um autor que certamente a elas se dedicaria com afinco, o cinema e a televisão acolheram um profissional que se tornou referência no audiovisual brasileiro contemporâneo. Na cadência dos diálogos e na naturalidade com que as situações se encadeiam, Real beleza tem a marca e a expertise de Jorge Furtado. O que pouco não é nem nunca será.

Entrevista

JORGE FURTADO “A VELHICE É UMA DÁDIVA” Na tarde em que falou por telefone com a Continente, Jorge Furtado percorria uma maratona metafórica: “Tô na correria para fechar o elenco da próxima série que vou gravar para a Globo”. Ele se referia a Mister Brau, com Lázaro Ramos, Taís Araújo e Luis Miranda, projeto que o ocupará em agosto, para ir ao ar em setembro, em 14 episódios. E, nesse mês, um outro seriado, O país do futuro, com texto seu, de João Falcão e Guel Arraes, começará a ser gravado. Antes de falar sobre seu novo longa-metragem, ele ainda achou tempo para discorrer sobre o que tem lhe chamado a atenção: “Gostei bastante do filme Branco sai, preto fica, do Adirley Queirós. Impressionante mesmo. Também tenho visto bons seriados, como Broadchurch, Better call Saul e Veep, além, claro, do final de Mad men, que achei excelente”. CONTINENTE Como vieram as ideias para o título e para a trama do filme? JORGE FURTADO O filme se chamava Beleza. Sempre me referi a ele assim, mas depois, na última hora, botei a música de Sérgio Sampaio naquela cena do lago e troquei o título. Essa investigação sobre a beleza é antiga. Já no Saneamento básico havia uma frase na cena do striptease da personagem de Camila Pitanga que era “a beleza salvará o mundo” – na verdade, uma frase do Dostoiévski. Depois, tem também o fato de o Rio Grande do Sul ser um reduto de modelos. Das 20 mais famosas do Brasil, 12 são gaúchas, incluindo Gisele Bündchen, Ana Hickmann, Carol Trentini e a própria Xuxa. Creio que há, aqui, uma mistura da beleza brasileira e europeia e isso atrai scouters, que são justamente esses fotógrafos que vêm para cá em busca de novos rostos. Então,

eu queria contar a história desse cara que está desiludido porque viu beleza demais, já se cansou de fazer publicidade e, numa infelicidade e na crise de recomeçar a vida, descobre que existem várias formas de beleza. CONTINENTE E que cada beleza tem o seu tempo… JORGE FURTADO Sim, tudo na vida tem um tempo certo. Tem uma fala do personagem João em que, ao conversar com Anita, diz a respeito de Maria: “Para ser bailarina, é tarde; para ser veterinária, pode ser depois; mas para ser modelo, é agora”. Acho que o filme também é sobre esse tempo certo. Cada personagem tem uma idade diferente. A menina tem 16 anos e seu pai quase 80. A mãe é casada com um cara bem mais velho e se interessa por um homem mais

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Tem uma passagem em Rei Lear, de Shakespeare, em que o bobo diz ao rei: “Ninguém deveria ficar velho antes de ficar sábio”. Fiz um seriado chamado Doce de mãe, com Fernanda Montenegro, e ela e Cuoco me mostraram que a velhice é uma dádiva – chegar aos 80 com a história que eles têm, desde os 18 anos no teatro, fazendo tudo que é peça, sabendo tudo. Cuoco é uma biblioteca ambulante, um homem muito bonito, de vozeirão. Eu precisava de um cara assim, para que fosse possível o jogo aberto que se estabelece no filme.

jovem. Essa “dessincronização”, essa “dessintonia”, são partes importantes da trama. A passagem do tempo influencia a vida das pessoas. CONTINENTE Foi por isso que você escolheu aquela locação, uma paisagem verde isolada? JORGE FURTADO Exatamente. Aquele lugar possui um tempo perdido, isolado, longe de tudo. O ritmo é outro, totalmente diferente do que o personagem do fotógrafo estava acostumado a viver. Um lugar em que o tempo e a velocidade da vida são distintos. CONTINENTE Como se aquela ambiência contrária às metrópoles fosse uma antítese que também ecoasse o conflito da velhice e da decadência em oposição à juventude, que é evidente na relação dos personagens de Francisco Cuoco e Adriana Esteves.

“Coloco nos personagens muito de mim. Eles são, de alguma forma, parte de nós; sou um pouco de cada um” JORGE FURTADO Sabe que eu tenho alguns casais de amigos com grande diferença de idade entre marido e esposa? O cara se separa aos 50, casa com uma menina na faixa dos 20, o tempo passa e, depois, ele tem 70 e ela tem 40. Fico observando isso. No filme, o personagem tem mais de 80 anos. Ao mesmo tempo em que ele tem muito das coisas associadas à velhice – está praticamente cego, relativamente dependente, por exemplo –, traz a sabedoria do velho.

CONTINENTE Falando em Shakespeare, Real beleza traz muitas referências literárias – o bardo, Molière, Decameron, Guimarães Rosa. Como foi inserir a literatura naquele enredo? JORGE FURTADO Pedro, o personagem de Cuoco, é muito inspirado em Jorge Luis Borges. Não dá para pensar em um cego na biblioteca sem pensar nele, não é? Há uma frase de Próspero, em A tempestade, de Shakespeare, em que ele responde quando lhe oferecem para ser duque: “Para mim, pobre homem, a biblioteca é reino de bom tamanho”. Coloco nos personagens muito de mim. Eles são, de alguma forma, parte de nós mesmos; eu sou um pouco de cada um. Um pouco eu quero ir embora como Maria, um pouco eu procuro a beleza como João, um pouco eu quero encontrar um grande amor como Anita e um pouco sou como o personagem Pedro: estou falando contigo cercado dos meus livros. Nunca morei em outro lugar que não Porto Alegre. Trabalho no Rio de Janeiro, viajo muito, mas a minha biblioteca, na minha casa, é mesmo um reino de bom tamanho. Então, o personagem Pedro é a beleza da memória, da palavra. Ele tem a angústia da não criação: “Não escrevi um livro, não pintei um quadro, li muito, vi muito, mas não vou deixar nada”. Aquela angústia dele, cercado de um monte de livros, é interessante. Eu boto muito dessa minha paixão pela literatura mesmo, por tudo que os livros nos trazem. LUCIANA VERAS

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CAETANO BRENGA BITENCOURT/DIVULGAÇÃO

Claquete 1

PERISCÓPIO Saga de clausura e mistério

Longa-metragem do cineasta mineiro Kiko Goifman traz uma trama que tem como base o isolamento de dois homens num apartamento TEXTO Luciana Veras

Não há como pensar o cinema

brasileiro da segunda metade do século 20 sem recorrer a Jean-Claude Bernardet. Pesquisador, escritor e teórico, este belga de origem francesa se tornou bússola e farol na crítica cinematográfica ao começar a escrever para o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, na década de 1960. Autor de Brasil em tempo de cinema (Civilização Brasileira, 1967) e Cineastas e imagens do povo (Brasiliense, 1985), Bernardet é um prolífico ensaísta. E, para surpresa de alguns acostumados a vê-lo

apenas através do matiz do crítico, é também um excelente ator, como atesta Periscópio, em cartaz no país neste mês. Dirigido pelo cineasta mineiro Kiko Goifman, o filme traz Bernardet à frente das câmeras como um dos dois protagonistas e nos créditos como roteirista. A saga de clausura e mistério entre Eric, o personagem vivido por ele, e Élvio (João Miguel, de Cinema, aspirinas e urubus e O céu de Suely), dois homens isolados em um apartamento e mergulhados em uma relação tumultuada de asco e dependência, é

uma ideia do ator/roteirista estrangeiro. “A história nasceu a partir de sequências criadas por Jean-Claude. Existe uma questão dele com os temas de solidão, vigilância e dor. Eram assuntos que nos interessavam. Ele me mandou e escrevemos o roteiro, com ajuda de Claudia Priscilla e Olivia Brenga, assistentes de direção e de roteiro”, conta Goifman em entrevista à Continente. Os dois já haviam trabalhado juntos em FilmeFobia (2008), em que a versatilidade de Bernardet já se evidenciara com naturalidade. Em Periscópio, no entanto, há mais espaço para ele crescer como intérprete. No hiato entre o que a trama permite entrever e o que o público apreende – Qual é o vínculo entre aqueles dois homens? Por que estão sozinhos no prédio? –, percebe-se uma dedicada construção dramática por parte dos dois atores. A cumplicidade em cena ajuda a aproximar o espectador daquela misteriosa situação de solidão e apego – em especial quando um terceiro elemento é acrescentado. E qual seria esse outro vértice? A palavra que dá título ao filme não é

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INDICAÇÕES 1 EM CENA No longa, o crítico Jean-Claude Bernardet contracena com o ator João Miguel

uma metáfora. Em certo momento, a rotina de agressão mútua de Eric e Élvio é interrompida pela chegada de um periscópio, a destruir o chão da sala e se fincar como uma luneta ou um espião. A narrativa assume, então, o tom de uma inteligente e curiosa reflexão sobre esses tempos em que tudo é exposição – vidas devassadas nas redes sociais a partir de uma distorcida lógica de que “faço, sou visto, logo existo”. Para aqueles dois homens em compasso da espera, aguardando a morte ou qualquer outra revelação e/ou revolução, a descoberta de que algo ou alguém deseja vê-los funciona como um gatilho. “Usamos essa ideia simples de um terceiro elemento que chega e modifica tudo. Como o tempo é fundamental pro filme, essa lógica do gatilho é perfeita. A chegada do periscópio é algo que os faz levantar e dançar”, comenta o cineasta. Kiko Goifman não se interessa por elaboradas explicações. Sua trajetória como diretor – iniciada com 33 (2002), documentário em que ele mesmo aparecia em cena numa busca por seus pais biológicos, e acrescida de Atos dos homens (2006) – é uma prova de que o cinema que ele pratica se afasta de fórmulas prontas e exige do espectador um olhar atento para imersão, fruição e sua própria fabulação a respeito do que é visto. Um exemplo é a inserção da lenda de São Jorge na trama de Periscópio. Élvio é apresentado como devoto e o lúgubre apartamento é adornado por diversas imagens do santo. Há,

inclusive, uma cena da morte do dragão reencenada diante da “coisa”, como o personagem de JeanClaude Bernardet chama o objeto que os encara. Mas não há uma promessa de redenção de quem quer que seja patrocinada pelo ícone católico. “São Jorge entra como um motivador de histórias. Jean-Claude adora o que chama de não-significação e isso é, basicamente, o que fizemos no filme. A presença do santo pode ser lida de várias formas, como a leitura de um brasileiro com um interesse por religiões negras e o olhar de um europeu. Mas isso fica para o espectador decidir”, pontua Kiko Goifman. A mesma liberdade outorgada ao público foi dada aos intérpretes durante as filmagens. Jean-Claude Bernardet e João Miguel puderam inventar, expandir e forjar novas situações em cima do roteiro. “Sempre gosto do improviso como possibilidade criativa. Existia roteiro, mas sempre aberto. Eles puderam criar algo mais, o que foi muito bom. João Miguel é um dos maiores atores brasileiros. Aprendi muito com ele”, revela o diretor, para quem Periscópio “tem a ver com cinema, performance e artes plásticas ao trazer uma inegável questão de metalinguagem”. Nada mais metalinguístico do que ter como ator um dos críticos mais perspicazes do cinema brasileiro. A presença de Jean-Claude Bernardet dá força e propulsão a Periscópio e amplia as possibilidades interpretativas do enredo. “Trabalhar com JeanClaude é um prazer de vida. Dedicado e sério como ator, ele é detalhista e cuidadoso, muito preocupado com o sentido da performance”, alinha Kiko Goifman.

SERIADO

DRAMA

Direção: Vários Com Liev Schreiber, Jon Voight Paramount

Direção: Erik Poppe Com Juliette Binoche, Nikolaj Coster-Waldau Europa Filmes

RAY DONOVAN

Ray Donovan (Liev Schreiber) é um fixer, um gerenciador de crises que lida com as derrapadas cometidas pelas celebridades de Hollywood (uma versão masculina para a Olivia Pope vivida por Kerry Washington em Scandal). A segurança que Donovan mostra para tirar seus clientes das mais diversas emboscadas, entretanto, fragilizase ante o retorno do pai, Mickey (Jon Voight), que quer retomar o contato com a família depois de duas décadas na prisão.

IRANIANO

ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO?

Direção: Abbas Kiarostami Com Babek Ahmed Poor, Ait Ansari Lume Filmes

Dando continuidade à louvável missão de lançar obras há muito indisponíveis, a distribuidora maranhense oferece essa joia escrita e dirigida por Abbas Kiarostami em 1987, antes de ele ser descoberto pela crítica ocidental. Um garoto leva para casa, sem querer, o caderno de um companheiro de classe e decide empreender uma jornada para lhe devolver o objeto. É na travessia que o menino percebe as nuances das relações humanas do pequeno vilarejo onde vive.

MIL VEZES BOA NOITE

Ao voltar para casa depois de sobreviver a uma bomba, uma fotógrafa de guerra (Juliette Binoche) é questionada pelo marido (Nikolaj Coster-Waldau, de Game of thrones) sobre suas prioridades. É possível resumir assim o esteio dramático do filme de Erik Poppe, mas há muito mais em jogo – nas relações entre a mãe e as duas filhas, no vínculo entre essa mulher e seu trabalho – do que é dito. Sobretudo aquilo que se sente, mas que não se verbaliza.

SERIADO

THE AMERICANS

Direção: Vários Com Matthew Rhys, Keri Russell Sony

A segunda temporada da série produzida pelo FX sai em DVD no Brasil, logo após a terceira leva de episódios ter sido exibida na TV norte-americana. Embora relativamente pouco visto, The americans é produto de altíssimo quilate. No enredo, dois espiões soviéticos, figuras de elite da KGB, vivem sob a aparência de uma perfeita vida suburbana em Washington. Ambientada no auge da Guerra Fria, a trama mescla a violência, a paranoia e as traições inerentes ao período.

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José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

OS MESES

Outubro é o outubro de 1917, da

Revolução Russa. Quando eu estava na Bélgica, por ocasião da Expo Bruxelas 1958, aquela do átomo gigante que ficou sendo o símbolo da cidade, o general Voroshílov perguntou em russo a uma máquina que entendia, ouvindo, não sei quantas línguas, qual o maior acontecimento mundial do ano de 1917, a máquina respondeu em cima da bucha: a Revolução Russa. Tem também a controvertida descoberta da América em 1492, havendo quem diga que Colombo já vinha com o mapa na mão, inclusive sabendo da existência desta terra mais ao sul hoje chamada Brasil à qual chegaria Cabral no dia 22 de abril de 1500, novas controvérsias, muitos considerando nosso descobridor o espanhol Vicente Pinzón algum tempo antes, tocando primeiro aqui neste lugar futuro Pernambuco, no Cabo Santo Agostinho, de onde meu pai, Amaro Joaquim da Silva, era natural, nascido no Engenho Taveira, no último ano do século 19, 1899. 21 de abril tem aqui em casa duas comemorações: o motivo do feriado,

Dia de Tiradentes, e principalmente a data do nascimento em 1961 do nosso primeiro filho Cláudio Manuel, por coincidência nome do poeta inconfidente: minha mulher queria botar meu nome e eu queria botar o nome de um tio meu por quem tinha grande admiração, Manoel de Albuquerque Pinto, irmão de minha mãe, Maria Ramos da Silva, em solteira Maria Ramos, por ter nascido Domingo de Ramos, de Albuquerque Pinto, Ramira, como era conhecida; aliás meu nome devia ser José Cláudio de Albuquerque Teixeira Pinto da Silva, porque meu avô materno era Cândido Miguel Teixeira Pinto, casado com Joana Graciana de Albuquerque Pinto, Mãe Joquinha; papai resolveu acabar com todas essas nobrezas e cravar “da Silva”. Eu ainda tenho mais uma comemoração, minha, particular, no 21 de abril: data da fundação de Roma, cidade com que tive alguma intimidade, não sei, alguma afinidade, um dos meus princípios de mundo, como a Bahia é outro, e São Paulo, além de Ipojuca e Recife. Foi o pintor Giuseppe Baccaro quem me informou

ser essa a data da fundação de Roma quando lhe contei que quebrei um dente comendo cereja, que não sabia ter caroço tão duro, justamente na Via Ventuno Aprile: com 25 anos nunca tinha visto uma cereja in natura. Maio, mês de Maria, Nossa Senhora, aqui em casa se comemora o nascimento de outra Maria, nossa filha Maria Júlia, em 22 de maio, dois anos, um mês e um dia depois do de Cláudio Manuel, Mané Tatu como adotou nos quadros: Maria em homenagem a minha mãe, Maria Ramos, e Júlia à mãe de Leonice minha mulher, Júlia Leopoldina Morais, vai a informação para futuros estudos sociológicos. Em Ipojuca cada dia de maio era patrocinado por um comerciante, ou outras pessoas gradas, no Convento, havendo uma certa disputa para ver quem fazia a noite mais bonita enfeitando o altar de Nossa Senhora, e soltando mais fogos. A noite de meu pai era uma delas. Tinha a noite de Seu Silva, a noite de Seu Barreto, a noite de Seu Otávio, a noite de Seu Zé Ramos. Há quanto tempo, Deda, há quanto tempo, hein

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REPRODUÇÃO

Breno? Seu Silva, Cristóvão José da Silva, era dono dos engenhos Jitaí e Montevidéu; meu pai era Amaro Silva, comerciante, embora Seu Silva também fosse: parece que era comum senhores-de-engenho, com a chegada das usinas e decadência dos engenhos, tornarem-se comerciantes na “rua”. Junho é São João. No vocabulário de minha avó Mãe Joquinha não existiam as palavras junho nem julho, eram São João e Sant’Ana. São João começava na loja com a chegada dos fogos trazidos do distrito Nossa Senhora do Ó por um João cujo segundo nome não consigo lembrar, que tinha as mãos aleijadas, ou uma das mãos aleijada, pela explosão de uma bomba, alguns dedos não dobravam e, a última falange, onde tem a unha, fazendo ângulo reto com o resto do dedo. O outro João fogueteiro era João de Ana, de Caruaru, ou, quem sabe, este era o do Ó. De Caruaru vinham os foguetes e bombas-reais, cujas aspas eu usava para fazer arapuca para pegar lambu dentro das canas: nunca peguei um. Do Ó vinha peido-de-velha e bomba de soltar no chão, diabinho, mosquitinho

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Na minha infância não lembro de som. Acho que só tinha mesmo a voz humana e dos animais, os tiros dos fogos e o som dos sinos e outros, talvez busca-pé, não sei se estrelinha e traque-de-massa ou desala. Muita coisa papai vinha buscar no Recife, vulcão, umas bengalas, bichas-de-rodeio. Os matutos procuravam bomba-estravaliana, já proibida naquela época, que estourava jogando na parede. Era de 1930. Fogueiras e comidas, as mesmas de hoje. As fogueiras, maiores e mais bem feitas, cada um que fizesse maior. No Engenho São Paulo, perto de Camela, onde eu e minha irmã mais velha Nena íamos passar férias de São João, em casa de Seu José Dias, casado com minha tia Edith, irmã de minha mãe, ele, fiscal do engenho, mandava fincar trilhos em vez dos quatro paus verticais,

FREI TARCÍSIO

Noite de São João, óleo sobre tela, 34 x 44 cm, 1946

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com bem quatro ou cinco metros de altura e lenha até o topo, construção imensa a nossos olhos infantis, e logo os dois troncos bem grossos de madeira dura servindo de travesseiros, ou travesseiras ou travessas, nem me lembro mais. Uma vez vieram bacamarteiros de Camela, dando grandes tiros para apagá-la. Diziase “tomar a fogueira”. Nessa época eram três festas, pois Santo Antônio e São Pedro não ficavam atrás. Havia quem andasse descalço por cima das brasas: ver mesmo nunca vi. Acho que chamavam “saltar fogueira”. Como as cidades não tinham calçamento, isso facilitava a construção das fogueiras: no calçamento não dá para fincar os paus, e as fogueiras logo desmoronam. Na minha mais remota infância não lembro de som. Acho que só tinha mesmo a voz humana e dos animais, os tiros dos fogos e o som dos sinos do Convento. Motor de carro era raro. Rádio veio depois. Hoje parece incrível um mundo sem ameaça de “som”. Talvez tenha ficado algum pedaço dele dentro de mim. Depois falo dos outros meses.

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STEFANO MARCHIANTE/BIENAL DE VENEZA/DIVULGAÇÃO

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BIENAL DE VENEZA A semelhança das feiras de arte

1 VENEZA Bienal alterou sua data para ajustarse ao frenético calendário mundial

Inaugurada em maio, exposição mostra a rearrumação do campo da arte no que diz respeito à sua economia, geopolítica, formas de apresentação e organização de seus agentes TEXTO Cristiana Tejo

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dos anos 1980, e mais fortemente nos anos 1990, o número de bienais cresceu exponencialmente, gerando uma economia de exposições mais complexa e internacionalizada, que tornou praticamente impossível acompanhar todas elas, já que há bienais em todos os continentes. Para se ter uma ideia, se alguém quiser ver todas as que ocorrem em 2015, terá que se deslocar para Nova Orleans, Taipei, Montreal, Xangai, Bruge, Nova York, Havana, Thessaloniki, Osaka, Lyon, Gotemburgo, Lituânia, Nova Zelândia, San Juan, Indonésia, Cantão, Curitiba, Porto Alegre e Veneza, a cidade que abriga a mais antiga e prestigiosa do mundo. Há muitos motivos por trás da crescente “bienalização” do mundo da arte, mas poderíamos ficar nos três mais evidentes: o interesse de dar visibilidade a um país ou a uma região (literalmente colocar uma cidade no mapa não apenas das artes, mas também do turismo), a luta de uma elite local por prestígio internacional e a enunciação de outras visões de mundo.

Nos anos 1990, as bienais cresceram exponencialmente, tornando impossível o acompanhamento de todas Durante quase 50 anos, as bienais e trienais de arte e a Documenta de Kassel foram as principais balizas, instâncias de legitimação do campo artístico e a forma de se atualizar com o que estava sendo feito, discutido e pensado em algumas partes do mundo. Estudantes de arte, artistas, críticos, jornalistas, colecionadores e o público mais familiarizado com as artes visuais viajavam para Veneza, São Paulo, Kassel, Paris, para verem a novidade desse campo do conhecimento e poderem fazer parte de discussões que reverberavam por anos. Ser artista participante destes eventos significava um passo importante para a consagração imediata. A partir

Em paralelo à proliferação de bienais, corre o fenômeno das feiras, que também cresceram em número e em importância no campo da arte nos últimos 20 anos. Grosso modo, esses acontecimentos artísticos existem desde o início das bienais (não podemos esquecer que o próprio modelo de Veneza foi inspirado nesses eventos universais em que os países imperiais ou mais industrializados apresentavam suas “últimas invenções”). Entretanto, as feiras tentavam ajustar-se ao calendário das bienais como eventos satélites e atraíam apenas colecionadores e curadores institucionais que buscavam fazer aquisições para suas coleções. Com o

fortalecimento do mercado global da arte contemporânea e a reinvenção dessas exposições, começou a haver o contrário. A Bienal de Veneza deste ano alterou a data de sua abertura para se compatibilizar à frenética agenda desses eventos. A horda de especialistas saiu da abertura da prima donna direto para Nova York a fim de acompanhar a Frieze Art Fair. Há 10 anos, o máximo que aconteceria eram algumas pessoas seguirem de Veneza para a Feira de Basel, que ajustava o seu funcionamento ao redor da bienal. Trazendo para um exemplo brasileiro, antes de haver a SP Arte, houve a chamada Paralela (2002– 2010), evento das mais fortes galerias de arte de São Paulo durante a época da bienal paulista. As galerias convidavam um curador para fazer uma exposição a partir dos artistas de seus times e a mostra ocorria num lugar alugado especialmente para o evento. Em algumas edições, o resultado teve melhor repercussão crítica do que a própria bienal, porém o mais importante de se notar, olhando para trás, é que já estava em marcha o sutil borramento de fronteiras entre algo que se fincava no território da esfera pública da arte e por sua vez mais “desinteressada” dos desejos imediatos do mercado (a bienal) e um outro terreno do campo do privado (o mercado propriamente dito). A Paralela sobreviveu alguns anos ao surgimento da SP Arte, a feira propriamente dita, até seus organizadores compreenderem que não era mais pertinente bancar dois eventos com propósitos iguais. O mundo da arte já havia absorvido a feira em seu calendário anual, ela havia se profissionalizado e se internacionalizado e contava com mostras curadas por jovens nomes, supervisionadas por curadores de renome. A questão é que tem ocorrido uma rearrumação do campo da arte no que diz respeito à sua economia, que se reflete na geopolítica da arte (o que pode ser aferido pela inclusão cada vez maior de artistas e curadores de regiões não hegemônicas como uma tentativa de expansão de mercado), nas formas de apresentação da arte e de organização de seus agentes. O

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FOTOS: DIVULGAÇÃO/BIENAL DE VENEZA

2 PEPO SALAZAR Reinterpreta Dalí sob um olhar contemporâneo 3 EUA Traz obras de Joan Jonas que discutem a mudança climática

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Visuais

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conceito de mercado foi expandido, pois, na complexa ecologia atual das artes, mercado não diz respeito apenas à venda e compra de obras, mas a um amplo espectro de capitais (simbólicos, sociais, culturais etc.) que gera valor. Portanto, eventos mercadológicos ganham cada vez mais caráter crítico e curatorial e as regras do mercado ficaram mais sutis e multifacetadas, gerando a percepção de que feiras de arte estão ficando cada vez mais parecidas com bienais e as bienais com as feiras de arte.

QUESTÕES URGENTES

Este preâmbulo é importante para compreendermos o contexto no qual se situa a Bienal de Veneza. Sua 56ª edição

– que segue até 22 de novembro – tem como mote norteador Todos os futuros do mundo, escolhido por seu primeiro curador africano, o prestigiado Okwui Enwezor. Entretanto, trata-se de uma exposição que se baseia em grandes nomes da arte, sem um caráter prospectivo, o que era de se esperar de uma mostra que leva em seu título a palavra “futuros”. O curador apresenta uma mostra elegante com obras que mapeiam diversas questões urgentes da nossa contemporaneidade, como imigrações, precarização do trabalho e da vida, a fragilidade das identidades e das certezas, mas sem muitos riscos, sem grande frescor, quase uma versão esmaecida de

4 JAPÃO A instalação The key in the hand, do artista Chiharu Shiota, é destaque no pavilhão do país

sua potente edição da Documenta de Kassel, que revirou paradigmas do mundo da arte há 13 anos. Teria Enwezor ficado mais conservador ou seria o estado das coisas que não permite bienais mais vivazes e imprevisíveis? Há algumas pistas que podemos seguir para elucidar essa questão. Como a bienal não possui orçamento fixo para bancar seu projeto curatorial, a participação de artistas tem que ser garantida por galerias e instituições privadas, situação que favorece a presença de artistas, mesmo jovens, representados por galerias mais estabelecidas. Além disso, numa época de mundo artístico globalizado, pesquisar artistas tornou-se um périplo mundo afora e muitos curadores passaram a basear suas investigações em suas visitas pagas às feiras de arte (muitos são convidados para eventos teóricos, mas também para simplesmente figurarem na lista de participantes e verem as galerias) ou mesmo em consultas às grandes galerias de arte. Poucos têm financiamento ou tempo para realmente viajar para os cinco continentes a fim de conhecer artistas sem galerias ou sem reconhecimento institucional internacional e seus contextos. Como resultado, notamos pouca renovação no que é mostrado internacionalmente. Num mundo da arte ainda eurocêntrico e branco, é de se destacar e de se celebrar a maior presença até então de artistas africanos (14%) e a participação do primeiro curador negro na mais antiga e tradicional bienal de arte do mundo. Porém precisamos fazer uma breve ressalva ao escrutinarmos as estatísticas. Se olharmos mais atentamente os currículos dos participantes, notamos que eles estudaram ou moram ou tem galerias no eixo Europa/EUA, o que nos leva a supor que a chamada virada

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global na arte contemporânea não é necessariamente uma descentralização do circuito da arte, mas o reposicionamento do mercado de arte e a expansão de seus horizontes geográficos. A inclusão de agentes oriundos de regiões não hegemônicas não tem significado a ampliação das formas de se fazer, se apresentar e falar sobre arte, mas uma reacomodação da gramática já instituída. É como um idioma que se alastra e começa a ser falado por muitas pessoas de lugares distintos, em vez de uma situação em que uns começam a falar a língua dos outros, acabando por gerar uma confluência poliglota. Devemos saudar, por certo, que ao menos os sotaques deste idioma estão sendo mais aceitos, mas não devemos nos dar por satisfeitos. A nova virada pós-colonial e global que notamos em bienais (como a última edição de São Paulo) e projetos institucionais (Museu Georges Pompidou, Tate Modern, MoMA, MACBA, Museu Reina Sofia e Guggenheim) é o resultado

A inclusão de agentes de regiões não hegemônicas significa uma reacomodação de um sistema já instituído de um longo processo de revisão teórica que está em curso desde os anos 1960, como consequência das epistemologias do sul, das desconstruções, dos movimentos civis, mas também do novo estágio de mobilidade global. Há algumas diferenças entre o que se via nos anos 1990 com o multiculturalismo, por exemplo, e o novo estágio desta virada. Nota-se que neste momento a discussão foi alargada para temas globais que são discutidos por agentes de várias origens. Já não se aceita tão facilmente que um evento teórico reúna apenas profissionais europeus, por exemplo. Ao mesmo tempo, novas metodologias e aportes teóricos têm sido criados para revisionar

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a história da arte, a exemplo da observação das artes da África, América Latina, Oceania e Ásia não mais como uma derivação da arte europeia ou norte-americana, mas como simultânea e interrelacionada. Isso tem levado a novas narrativas da arte e ao interesse em se saber o que ocorria pelo mundo em épocas semelhantes. Não à toa, a recepção crítica de Todos os futuros do mundo tem gerado desagrado nas mais diversas vertentes do mundo da arte. Grosso modo, os partidários de uma arte mais “transcendental” e “estética” repudiam o tom político e por vezes panfletário dos trabalhos escolhidos por Okwui Enwezor. Os especialistas mais voltados para o paradigma pós-colonial, por sua vez, esperavam uma abordagem mais radical e acutilante. É que estamos bem no meio de um processo de transição de valores e de disputa de visões da arte. O interessante é notar que o mercado da arte já capitalizou isso e sejam quais forem os lados que apareçam numa bienal, galeristas rentabilizarão.

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PAVILHÕES Sob perspectiva histórica

Alguns trabalhos se destacaram pelas propostas de revisão crítica do passado de seus países TEXTO Cristiana Tejo

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BÉLGICA ARMÊNIA O Leão de Ouro de melhor pavilhão da Bienal de Veneza de 2015 foi dado para a Armênia. Diferentemente da edição anterior em que a premiação de Angola causou rebuliço, a deste ano para a mostra Armenidade coroou uma recepção já muito favorável. A sensação era de que o prêmio foi realmente merecido e isso deveu-se principalmente à grande pertinência da proposta que cruza micro e macro-histórias, trajetórias e diásporas de uma maneira muito coerente. No ano do centenário do genocídio armênio, o primeiro do século 20, a curadoria escolheu o lugar mais potente em Veneza para acessar esta história silenciada: a Ilha de São Lázaro, local onde o monge armênio Mekhitar estabeleceu a Ordem Mekhitarista, em 1717. Trata-se de um local extremamente importante para a história da Armênia, pois foi lá que vários livros relevantes de literatura e religião europeus foram traduzidos para o armênio e onde documentos foram mantidos durante quase três séculos. A curadora Adelina Cüberyan v. Fürstenberg é neta de armênios sobreviventes do genocídio e convidou artistas com a mesma ascendência que nasceram em vários lugares do mundo como Líbano, Síria, EUA, Egito, Turquia, Argentina, Irã, Bélgica, Grécia, Itália, França, Armênia e Brasil para formar uma espécie de reunião transnacional, sob a noção de deslocamento, território, justiça e conciliação, ethos, resiliência e autodefinição.

Entre todos os pavilhões de países “imperiais” e centrais, apenas o belga responde ao tom politizado da bienal com uma proposição que coloca o dedo na própria ferida colonial. A Bélgica foi o primeiro país a construir seu pavilhão no Giardini, em 1907, sob o reinado de Leopold II, autor de um dos capítulos mais sangrentos da história do colonialismo, que se tornou uma espécie de ponto cego da historiografia mundial e praticamente ausente dos currículos escolares belgas. Entre os anos de 1885 e 1908, o Estado Livre do Congo foi uma possessão do rei da Bélgica, situação que se encerrou em 1908, após grande pressão internacional a respeito de suas terríveis políticas no Congo e quando o país passou a ser parte do estado da Bélgica até 1960. Em Personne et les autres, a curadora Katerina Gregos e o artista Vicent Meessen convidaram artistas de vários continentes (Mathieu Kleyebe Abonnenc, Sammy Baloji, James Beckett, Elisabetta Benassi, Patrick Bernier & Olive Martin, Tamar Guimarães & Kasper Akhøj, Maryam Jafri e Adam Pendleton) para questionar a ideia eurocêntrica de uma modernidade singular, ao examinar uma herança vanguardista compartilhada que foi criada pelas inter-relações entre Europa e África, que gerou uma pluralista gama de contramodernidades. Os curadores, portanto, partem da história do próprio prédio do pavilhão para traçar uma linha do tempo de referências que conectam críticas da modernidade colonial como Dada, CoBrA e a Internacional Situacionista (1957–72), os últimos movimentos de vanguardas revolucionárias ocidentais, assim com a emancipação dos negros, panafricanismo, movimentos de independência africanos e Global 68, um fruto menos conhecido do maio de 1968 no Sul global.

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BRASIL

CHILE

A escolha dos artistas que estão no pavilhão brasileiro da Bienal de Veneza de 2015 não foi feita pelos curadores da última Bienal de São Paulo, como tradicionalmente ocorre, mas pelos curadores convidados, Luiz Camillo Osorio e Cauê Alves. É tanta coisa que não cabe aqui, título retirado de uma das faixas usadas nas manifestações de junho de 2013, é uma resposta ao tom político da mostra principal da bienal, mas também ao estado das coisas no Brasil e sua conflituosa sociabilidade. A aposta recaiu numa mistura geracional bastante instigante: Antonio Manuel, Berna Reale e André Komatsu. Trata-se também de nomes que não são tão reconhecidos no campo da arte internacional, o que é importante, dado que as lentes de leitura da arte brasileira resumem-se atualmente à Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica e Cildo Meireles.

Pela primeira vez, o governo chileno promoveu uma chamada pública para a escolha do projeto curatorial do seu pavilhão na Bienal de Veneza. A proposta selecionada foi Poéticas da dissidência, da teórica Nelly Richard, que apresenta uma enxuta e pungente exposição de duas das artistas nacionais de maior visibilidade internacional: Paz Errázuriz e Lotty Rosenfeld. O fato de serem duas mulheres não é aleatório, Nelly tem se debruçado sobre a epistemologia feminista e a tentar dar visibilidade “aos corpos maltratados pela exploração econômica, a falta de assistência pública, de proteção dos direitos civis, a privação de justiça e o abandono social”. Errázuriz volta-se para os lugares de encarceramento ou de isolamento, tais como o hospital psiquiátrico. Já Rosenfeld apresenta uma versão atualizada de seu trabalho sobre a transição da ditadura para a democracia no Chile.

ESPANHA O curador Martí Manen escolheu Salvador Dalí (foto ao lado) como um ponto de partida de seu pavilhão, sem apresentar nenhuma de suas obras. O famoso artista surrealista é visto sob o viés de sua persona e está presente por meio de suas entrevistas em vídeo e de opiniões dadas por intelectuais espanhóis sobre os múltiplos aspectos de sua personalidade. Cabello/Carceller, Francesc Ruiz e Pepo Salazar, artistas jovens espanhóis, reinterpretam Dalí sob uma perspectiva contemporânea, a partir de discussões sobre questões de gênero, o poder da mídia de massa e a relação entre objeto e imagem. Dalí é contextualizado como um artista que compreendeu e soube usar a mídia a seu favor e encontrou-se sempre numa constante simbiose entre o público e o privado. As performances, filmes e instalações que compõem Los sujetos estão arraigados nas teorias feministas e queer e oferecem um olhar crítico sobre a definição de identidade e a luta política do indivíduo.

ESTADOS UNIDOS O pavilhão norte-americano trouxe um peso-pesado da arte internacional: a artista Joan Jonas. They come to us without a word é uma reedição de um trabalho desenvolvido em 2010, a partir dos escritos do islandês Halldór Laxness sobre os aspectos espirituais da natureza. Trata-se de uma constelação de vídeos, desenhos, objetos e sons que criam ambientes oníricos e quase imersivos, em que somos levados a refletir sobre as mudanças climáticas. Os vídeos foram desenvolvidos em Nova York no inverno deste ano, durante uma série de workshops com crianças entre 5 e 16 anos que performam na frente de paisagens captadas por Jonas em vários lugares e também de obras anteriores suas. A fragilidade da natureza numa situação em rápida transformação é desenvolvida em cada sala. Há fragmentos de histórias de fantasmas provenientes de tradições orais.

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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

O QUADRO QUE CHAGALL NÃO PINTOU Não me lembro se foi na Granja Sajutá ou se foi na São Saruê, em Carpina. Com o tempo, as certezas tornam-se nebulosas e perdem o significado. Sei que era 1976, porque nesse ano ingressei para a residência médica do Hospital Getúlio Vargas, e se comemorava a noite de São João. Avelina fora convidada por Bernadete Antunes e me levou junto. Arrastei o nosso professor de inglês, um estudante de medicina, que por sua vez levou a namorada. Apenas no Nordeste do Brasil é possível esse abuso de hospitalidade. No terreiro da granja, uma fogueira acesa, bandeirinhas, jarros com flores, mesas cobertas de panos de chita e muita comida, o que se possa imaginar de bom e melhor. Os manjares, que antes se apreciavam apenas no ciclo junino, nas festas de Santo Antônio, São João e São Pedro. Canjica, pamonha, pé de moleque, bolo de milho, grude, pamonha de forno, milho cozido e assado... quanto exagero! Mas todos na família de Seu Renato e Dona Lourdinha pareciam malucos por comida. Encher a barriga dos convidados e fartá-los até a regurgitação era lei sagrada, a mais alta

expressão de nobreza e hospitalidade. Pairando sobre a neblina e os risos festivos, o barulho de fogos e do trio pé de serra, a sanfona subindo e desafinando na mesma proporção em que o álcool ascendia à cabeça do sanfoneiro. Calado e solitário, no lugar de observador, o camarote de voyeur que procura sentir com os olhos, o lápis e a caderneta sempre ao alcance da mão, eu me divertia ao meu modo. Tentavam me arrastar para a quadrilha, cheia de dançarinos embriagados, atrapalhando as evoluções. Alguns já buscavam cadeiras, poltronas nos terraços, se acomodavam nos degraus das escadas ou no próprio chão. As mães deitavam as crianças em camas e berços, na casa-grande ou nos seus anexos. Convidados se despediam, cobrando a retribuição da visita. Abraços, tapas nas costas, lembranças, voltem sempre, a casa é de vocês, nesse ano foi ainda melhor do que no ano passado, impossível, foi sim, não teve balão, mas o trio era afinado... Desafinado mesmo estava o conviva bêbado. Perguntavam se ia dirigir naquele grau, nem um quatro era capaz de fazer.

– Oxe! Faço até um cinco. E tentava cruzar a perna esquerda sobre a direita, mantendo-se de pé, sem apoio. Caía para os lados, precisando ajuda dos amigos para não beijar o chão. Risos, um recomeço de festa. Estou bom, insistia o bêbado na voz trôpega, as palavras aos tombos, o hálito vindo das profundezas de um inferno estomacal. Aconselhavam dez remédios ao mesmo tempo, traziam café forte da cozinha e o amigo ia ficando até o dia amanhecer, quando se entregava ao sono, numa cama ou num colchão improvisado. Lá para as tantas, a fogueira já queimara boa parte da lenha, os copos expunham restos e a comida murchara, sem sedução. As conversas descambavam em declarações de afeto, pequenas desavenças, choros, saudades do filho morto num acidente de carro, reclamações contra os que faltaram à festa, como se já não houvesse convidados de sobra. Se faltavam alguns parentes legítimos, excediam os putativos, os agregados bem ao estilo das famílias de passado canavieiro. A granja também possuía capela e sacerdote, padre de quarto reservado,

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MARC CHAGALL, OVER THE TOWN (1918)/ REPRODUÇÃO

lugar garantido à mesa e conversa em sala. Amigo, conselheiro, religioso formado no discurso e na prática da igreja progressista. Celebrava o sagrado e o profano de todos os rituais da família: benzeduras, bodas, casamentos, batizados e recomendação das almas que se encantavam. Sem sair de perto da mesa de comilanças, eu lembrava um poema de Ascenso Ferreira. Reforçava minha impressão da casa-grande dos Cerqueira Antunes, a boa casa pernambucana, de saudosa memória. Entrei no mundo das granjas Sajutá e São Saruê com minha esposa Avelina, e fui dando entrada aos filhos Joaquim, Isabel e Tomás, por ordem de nascimentos. Telefonava na maior confiança e pedia: – Posso passar o final de semana com vocês? Nunca escutei um não, e nunca um sim que me parecesse não sincero. Encontrava os quartos arrumados, com jarros de flores e roupas de cama limpas e perfumadas. Em todos esses esmeros eu percebia o zelo de Dona Lourdinha, uma aristocrata de alma generosa e acolhedora, atenta em

Os dois velhinhos andando de mãos dadas lembravam as figuras de Chagall. A qualquer momento eles poderiam subir ao céu servir. Sentávamos em torno da mesa comprida para os cafés da manhã, almoços e jantares que se estendiam por horas, ocupando a maior parte dos dias. Eu inventariava histórias em restos de louça da Companhia das Índias, pratos azul borrão e pombinho, sobras de sucessivas divisões entre os membros da família. Todos expostos em armários e aparadores com zelo e nobre desdém, o sentimento de um passado desfeito, lembrado com firmeza e sem saudade. Houve época em que fui profundamente infeliz. As pessoas questionavam o motivo de tanta tristeza, minha escolha por caminhar entre as sombras. Nem sempre o homem escolhe a porta a abrir, ela se abre movida por uma vontade estranha

a ele, e o engole. Foi nesses anos de pouca lucidez que eu frequentei a casa de Seu Renato e Dona Lourdinha, assiduamente. Os dois velhinhos amáveis, passeando de mãos dadas entre os canteiros dos jardins, lembravam as figuras dos quadros de Chagall. A qualquer momento eles poderiam se elevar às alturas do céu, provocando o riso das cozinheiras ocupadas em assar um pernil de porco e espantar enxames de moscas. Ao término das refeições, quando parecíamos mais felizes do que éramos, por conta da nossa saciedade; depois das conversas jogadas fora, das anedotas e risos, e das lembranças repetidas; na comoção do café com bolos e licores, seu Renato Antunes, sonolento e esquecido, o mais leve de todos nós, olhava sério para os convivas e repetia frases de A festa de Babette, o conto de Karen Blixen. De verdade, isso nunca aconteceu, mas sempre imaginei. E justamente por ser imaginação me parece mais real e possível. Chegará a hora em que os nossos olhos se abrirão e, finalmente, reconheceremos que a graça não tem fim.

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DIVULGAÇÃO

Leitura

FENELIVRO A relação entre tecnologia e literatura

Primeira edição da Feira Nordestina do Livro, que acontece no Centro de Convenções, a partir do dia 28 deste mês, terá como um dos temas centrais a discussão sobre o livro digital TEXTO Maria Eduarda Barbosa

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Em uma época na qual as palavras download e delete caracterizam bem o que o sociólogo Zygmunt Bauman conceitua como modernidade líquida, um período de fluidez onde algo pode ser rapidamente substituível, há incertezas e inseguranças acerca do futuro de determinados segmentos, como o editorial. Em 2013, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) realizou a primeira pesquisa Mercado do Livro Digital no Brasil, na qual constatouse que 68% dos entrevistados já estavam inseridos na comercialização

de livros digitais. Em contrapartida, 58% dos que ainda não participavam desse cenário alegaram motivos técnicos, como insegurança em relação ao formato, por exemplo. Já 85% revelaram que as editoras onde trabalham estavam preparadas caso as vendas de livros digitais tornemse superiores à de impressos. Diante desse cenário, surgem os questionamentos: qual será o livro do futuro? E o futuro do livro? Essas indagações estarão em debate na primeira edição da Feira Nordestina do Livro, que será realizada entre os dias 28 de agosto e 7 de setembro, no Centro de Convenções, em Olinda. Com iniciativa da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), da Associação do Nordeste das Distribuidoras e Editoras de Livros (Andelivros) e apoio da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e da Associação Brasileira de Difusão do Livro (ABDL), o evento promoverá a discussão da temática acerca da tecnologia e literatura com a presença de convidados como o diretor do site PublishNews Carlo Carrenho. O acesso à Fenelivro será gratuito. O Governo do Estado tinha o interesse de retomar o protagonismo na realização de feiras literárias em Pernambuco. De acordo com Ricardo Leitão, presidente da Cepe, a parceria com a Andelivros e o apoio da CBL e da ABDL criaram condições de atrair editoras do país inteiro e realizar uma feira focada na literatura nordestina, mas sem se isolar das questões nacionais. “Tanto que a temática do evento é focada no livro do futuro. Estamos esperando uma participação de aproximadamente 150 mil pessoas na Fenelivro. Eu acredito que esse evento vai se consolidar e vamos realizálo todos os anos. Nossa expectativa está sendo bastante positiva em relação a isso”, destaca Leitão. O segundo semestre de 2015 marca um período de grandes eventos literários no Estado. A Feira Nordestina do Livro chega para completar a tríade, formada em conjunto com a Bienal do Livro de Pernambuco, que ocorrerá em outubro, e da Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), em novembro. Com o tema O livro do futuro, o futuro do livro, o evento, que será realizado

anualmente no Estado, contará com estandes, debates, mesas-redondas, lançamentos, atrações musicais e também um café literário para um bate-papo informal.

LITERATURA NORDESTINA

Além da temática envolvendo o futuro do livro, a Fenelivro promove um diálogo permanente com o Nordeste e sua produção literária. O evento fará uma discussão sobre o regionalismo nordestino em áreas como cultura, política e vida social, tendo como ponto de partida para os debates a obra que completa 90 anos em 2015: Nordeste, publicado em 1925 por Gilberto Freyre. O exemplar é uma coletânea que aborda ícones da cultura nordestina como o vaqueiro e a literatura de cordel, realizada através de colaborações de pessoas da região. “São textos que, de algum modo, antecipam o que ele faria em 1926 com o lançamento do manifesto regionalista”, completa o curador da feira Evaldo Costa. Em sua primeira edição, a Fenelivro homenageia dois grandes pernambucanos: o escritor e historiador Evaldo Cabral de Mello, que sucedeu neste ano o lugar de João Ubaldo Ribeiro na Academia Brasileira de Letras, e Lourival Batista Patriota, conhecido como Louro do Pajeú, grande poeta nascido em São José do Egito que faria cem anos em 2015. Para celebrar o legado do repentista e manter viva essa tradição nordestina, haverá uma noite dedicada à poesia popular. Ao todo, serão dez dias de feira. O evento terá início com uma abertura formal e segue com cada noite sendo dedicada a um estado do Nordeste. A Fenelivro contará com a presença de escritores nordestinos, cujas histórias carregam características regionalistas como em obras de nomes como José Lins do Rêgo e Rachel de Queiroz, mas com percepções da atualidade. Na feira, os autores convidados debaterão sobre a relação do lugar e suas obras. “A gente quer essa confluência: que o Nordeste se encontre na Fenelivro, que se atualize sobre as tendências, sobre as coisas novas que estão acontecendo no mundo editorial e no mundo da cultura”, revela Evaldo Costa.

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IMAGENS: REPRODUÇÃO

1-2 HOMENAGEADOS Nesta primeira edição, a Fenelivro vai reverenciar o poeta Louro do Pajeú e o escritor e historiador Evaldo Cabral de Mello

Leitura 1

Ao todo, serão mais de 120 estandes com participação de mais de 200 editoras, incluindo a Cepe. Entre os autores confirmados, estão o angolano José Eduardo Agualusa e os brasileiros Xico Sá, Gerson Camarotti, Marcelino Freire, Augusto Cury, Mary Del Priore e Guilherme Fiuza. O evento terá também a presença de autores internacionais, além de promover uma oficina literária com o pernambucano Raimundo Carrero, cujas inscrições serão gratuitas. Com orçamento geral estimado entre 900 mil e um milhão de reais, a Fenelivro investe em uma programação que possa abranger diversos estilos literários. “É uma feira altamente democrática onde todo mundo vai se ver, vai encontrar diálogos dentro daquilo que gosta”, enfatiza o curador Evaldo Costa. O evento ocupará cerca de 10 mil metros quadrados do pavilhão central do Centro de Convenções, além de utilizar o teatro Beberibe. A infraestrutura da feira fica a cargo da Cepe, enquanto a Andelivros é responsável pela comercialização dos espaços junto às editoras. “Pelo tamanho da programação que estamos organizando, pela quantidade de nomes expressivos, pela própria temática que nós vamos debater em discussão, nós acreditamos que

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A Fenelivro também buscará a participação intensa de professores e alunos de escolas públicas e privadas colocaremos Recife como a meca do mercado editorial brasileiro nesse período”, enfatiza Evaldo Costa. Sobre o tema principal, ele revela que haverá algumas demonstrações práticas como um estande dividido ao meio, proporcionando ao visitante experiências sobre novas formas de publicações, enquanto a outra parte indaga sobre o futuro do livro impresso. “É possível que esse livro, que a gente conhece hoje, tenha um futuro parecido com o LP na época do lançamento do CD. É uma questão aberta que a gente vai colocar em discussão durante o evento”, pontua o curador. A Fenelivro também buscará a participação intensa de professores e alunos de escolas públicas e privadas. “Os professores da rede estadual terão um desconto de 10% na aquisição de qualquer livro durante qualquer dia da feira”, ressalta o presidente da Cepe

Ricardo Leitão. Além disso, haverá disponibilização de transporte para que alunos da rede estadual pública possam visitar a feira. A Feira Nordestina do Livro marca também a celebração dos 100 anos da Imprensa Oficial do Estado. A Companhia Editora de Pernambuco é sucessora de um conjunto de repartições públicas que faziam as publicações oficiais há cem anos. “A Cepe tem esse papel de ser responsável pela publicação do Diário Oficial do Estado, mas também tem um papel importante da cultura de Pernambuco. Aquelas publicações relevantes e importantes, que não chegariam ao público através do mercado, chegam através da Cepe”, ressalta Evaldo Costa que destaca a presença da editora na primeira feira literária de Pernambuco. “Esse é um evento que não vem de hoje. É uma história que começa em 1997, quando a Cepe capitaneou a realização da primeira grande feira de livro de Pernambuco”. As publicações oficiais do Estado também estão alinhadas à temática tecnológica da Fenelivro. Isso porque o Diário Oficial deixou de ser impresso este ano para ser disponibilizado no formato digital assim como a revista Continente e o Suplemento Pernambuco que, além do formato impresso, também estão acessíveis digitalmente.

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INDICAÇÕES FICÇÃO

WILLIAM FAULKNER Absalão, Absalão! Cosac Naify

INFANTIL

RICARDO MELLO E SAMUCA Poeminhas

Publicado em 1936, amplifica a obsessão de Faulkner (1897-1962) em radiografar as contradições do sul dos EUA. Da história de Thomas Sutpen, e usando a parábola do filho que se revolta contra o império do pai (Absalão versus Davi, rei de Israel), o escritor erige um labirinto de memórias e tragédias. Um dos narradores é Quentin Compson, de O som e a fúria, de 1929.

Bagaço

ROMANCE

ARTES

Rádio Londres

Record

Quarto volume da parceria criativa entre o jornalista e escritor Ricardo Mello e o ilustrador e chargista Samuca, esta coleção de haicais é um deleite para tardes literárias com crianças. É da vida delas, afinal, que se ocupam os versos, tão certeiros quanto divertidos. A luta para acordar e ir à escola e a hora do almoço são alguns dos temas.

1922

O ANO DAS MAIORES MUDANÇAS Constelação de gênios (Objetiva, 568 páginas) pode ser considerado um livro-almanaque do ano de 1922. Naqueles dias, muitos eventos importantes aconteceram em áreas históricas, culturais e científicas. Segundo o poeta americano Ezra Pound, foi o início de uma Nova Era para o mundo, a partir do momento em que o escritor James Joyce (na foto, com a esposa Nora Barnacle) encerrou a escrita do tijolete Ulisses e o lançou em seu aniversário de 40 anos, em 2 de fevereiro para a sua inclemente jornada de elogios, desagravos e críticas. Pound, inclusive, passou a assinar suas cartas com p.s. U.– post scriptum Ulixi. A partir daí, segue-se uma infinidade de fatos como a fundação da BBC, a queda do Império Otomano, a última conferência de Freud, a ascensão de almas sebosas como Mussolini, Hitler e Stalin, a primeira animação de Disney e o Nobel de Física para Einstein. Dividido em 12 partes (mês a mês), o autor Kevin Jackson faz uma espécie de diário, onde desfilam alternadamente em suas páginas personagens do cinema, teatro, literatura, artes plásticas e da ciência tais como Chaplin, Man Ray, Dalí, Breton, Nabokov, Hemingway, Virginia Woolf (baixando a lenha sem piedade no livro de Joyce), T. E. Lawrence, entre dezenas de outros. O Brasil, aparece apenas com os eventos relacionados à Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, entre os dias 11 e 18 de fevereiro, considerada como “um dos eventos culturais mais significativos da cultura latino-americana”, que apresentou as transformações do modernismo brasuca ao mundo. O ano terminaria com a morte do macambúzio Marcel Proust às cinco e meia da tarde do dia 18 de novembro e com a publicação de A terra devastada, de T. S. Eliot, em dezembro, que em Londres, onde morava, praguejava com o tempo que, em sua opinião, estava “miserável”. LUIZ ARRAIS

BEN LERNER Estação Atocha Adam Gordon, um arremedo de poeta norte-americano, com bolsa do governo ianque, desembarca em Madri, para um projeto de pesquisas. Porém, acaba desviando-se de seus objetivos e desanda numa sucessão de erros em seus relacionamentos, até por conta de seu péssimo espanhol, em meio a muito haxixe, álcool, ruminações existenciais e mentiras deslavadas.

RICK GEKOSKI Alguém viu a Mona Lisa? Composto por uma série de capítulos relacionados a histórias de obras de arte e literatura perdidas e que podem ser lidas isoladamente. Trata do roubo da Mona Lisa, em 1911, as apropriações indébitas em tempos de guerra, a destruição de estátuas e sítios históricos por fanáticos religiosos e até o sumiço de um improvável poema escrito por James Joyce, aos nove anos de idade.

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CON TI NEN TE

Criaturas

Le Corbusier por Emilio Damiani

Le Corbusier (1887-1965), originalmente Charles-Edouard Jeanneret, nasceu na Suíça, mas naturalizou-se francês em 1930. Arquiteto autodidata, também foi escultor e desenhista. O seu conceito estético moderno revolucionou a arquitetura e influenciou uma geração de profissionais brasileiros. Entre as inovações que propôs, estava a utilização de novos materiais, como o concreto armado. Morreu afogado, aos 78 anos.

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CONTINENTE

CALABAR

O COMPLEXO JOGO ENTRE

TRAIÇÃO E POLÍTICA ESPECIAL GRAFITE GANHA OS MUROS DE LISBOA TRADIÇÃO O SENTIMENTO COMUM ÀS FESTAS BRASILEIRAS

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E MAIS BIENAL DE VENEZA JAM DA SILVA FENELIVRO PIERRE BYLAND

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O LIVRO DO FUTURO. O FUTURO DO LIVRO.

ESTE É O PRIMEIRO CAPÍTULO DE UMA GRANDE HISTÓRIA.

Pernambuco vai realizar a primeira Fenelivro, a Feira Nordestina do Livro. Mais do que um grande evento, a Fenelivro será um marco para a cultura do nosso Estado e de todo o Nordeste. Participarão autores, editoras, distribuidores, produtores culturais e um grande público movimentando o mercado literário, gerando conhecimento e disseminando o gosto pela leitura. Um evento gratuito para crianças, jovens e adultos viverem juntos uma grande história.

Centro de Convenções de Pernambuco De 28 de agosto a 7 de setembro de 2015

Confira a programação fenelivro.com.br

Quem lê aprende mais, escreve melhor e tem mais histórias pra contar. Incentive a leitura.

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