# 177
CONVERSA/ ARTES VISUAIS O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES NA BERLINDA
Você começa a aplaudir ao ver a programação.
SETEMBRO
Dia 8 – RECITAL DE TROMBONE O Alma Trombone Ensemble, projeto do Alma Chamber Ensemble (SP), foi concebido e é gerido pelos trombonistas Caroll Ramgél, Ricardo Pacheco e Fernando Cardoso. Tem como principal objetivo desenvolver o repertório camerístico para trombone, despindo-se de preconceitos e buscando somar a sua contribuição musical dentro do cenário musical brasileiro. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
Dia 13 - MÚSICA NO PALÁCIO Quinteto de Sopros Arrecife Local: salão de entrada do Palácio do Campo das Princesas Horário: 10h Dia 14 - CIRCULAÇÃO DE MÚSICA DE CÂMARA Orquestra Vicente Fittipaldi Local: Escola Estadual Fernando Mota - Setúbal Horário: 15h Dia 16 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS Recital de piano – Gabriel Fernandes O repertório constará de obras de Bach, Chopin, Scriabin, e de compositores pernambucanos, incluindo obras autorais. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
Dia 24 – LANÇAMENTO DO LIVRO DIDÁTICO “ORQUESTRA NORDESTINA” Autoria: Milca de Paula Neste livro é registrada a história dos instrumentos típicos de Pernambuco, bem como a aplicação deles nos diversos ritmos nordestinos como frevo, forró, ciranda, dentre outros, formando o que denominamos de “Orquestra Nordestina”. Local:Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30 Dia 30 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS Coro de Câmara da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco Regente: Mônica Muniz Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
MÁQUINA DE FAZER SOM
Todos os eventos têm entrada gratuita.
CONSERVATÓRIO PERNAMBUCANO DE MÚSICA Av. João de Barros, 594 – Santo Amaro – Recife – PE Facebook: Conservatório Pernambucano de Música Site: www.conservatorio.pe.gov.br Fone: 3183-3400 SET 15
O Conservatório Pernambucano de Música está comemorando 85 anos de existência em grande estilo, com uma programação que se estende até o final do ano. Não poderia ser diferente para uma instituição que, durante décadas, é referência de qualidade para a música e a formação musical. Conheça as atrações de setembro e participe. Até dezembro, o CPM dá o tom.
Dia 24 – PROJETO PALCO PARA TODOS Show – Grupo Saracotia Lançamento do CD “A Vista do Ponto” Local: Palco para Todos - CPM Horário: 18h
CONTINENTE
Dia 2 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS Recital de violão erudito – Thibaut Garcia (FRA) O recital constará de obras de Bach, Barrios, Lloblet, Castelnuovo-Tedesco, Rodrigo, Piazzolla e Regondi. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
Dia 9 – QUARTAS MUSICAIS Recital de canto – Elizete Félix, Soprano(PE) e Fabrizio Claussen, Barítono (SP) Piano: Jussiara Albuquerque (PE) O repertório constará de trechos de óperas famosas. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
A CAPACIDADE CRIATIVA DOS MÚSICOS PERNAMBUCANOS
E MAIS FOTOGRAFIA MODERNA | CULINÁRIA PORTENHA JÚLIO MEDAGLIA | MÁRIO PEDROSA | CLÁUDIO FERRARIO
WWW. Mais do que um portal, uma ferramenta a serviço de quem faz arte e cultura em Pernambuco. Um espaço público à disposição de artistas e produtores culturais, para viabilizar projetos e dar visibilidade ao talento da nossa gente. Acesse, compartilhe e colabore com sugestões de pauta e agenda. Se faz parte da nossa cultura, tem a ver com o nosso portal.
.GOV.BR
.GOV.BR
SETEMBRO 2015
ALCIONE FERREIRA
aos leitores “O Recife é a cidade mais roqueira do país”, assegurou Marco Antonio Mallagoli, fã dos Beatles e personagem da seção Perfil da edição de agosto. Para quem convive com a música pernambucana, seja músico, técnico, produtor, crítico, dono de casa de shows ou (ainda) de loja de discos ou simplesmente assíduo ouvinte, sabe que a produção musical daqui é intensa e não somente na área do rock. Deste gênero à música clássica, o estado não para de gerar som e principalmente talentos e, junto com estes, um mercado. Neste mês, dedicamos nossa matéria de capa a alguns desses músicos. Selecionamos 10 artistas que estão com discos recém-saídos do forno. No entanto, tantos outros lançaram ou estão se preparando para lançar álbuns ainda neste ano, que, se abrigássemos todos, a reportagem teria que ocupar a revista inteira (!). Abordamos, então, o trabalho de alguns dos veteranos, como Siba, Alessandra Leão, Eddie e Lirinha, e dos novos, como Graxa, Zeca Viana, D Mingus, Mateus Mota e Zé Manoel, sofisticado pianista e cantor de Petrolina que compõe ao estilo de João Donato, provando que diversidade é uma lei natural em Pernambuco. Tanto que dois dos mais bem-sucedidos nomes da atualidade são opostos: Siba, cujo fio
condutor do disco De baile solto é o maracatu rural, e Johnny Hooker, que transita entre o rock e a “música de dor de cotovelo”, sendo o maior fenômeno da música pernambucana hoje. Para escrever sobre esses artistas, além da editora-assistente da Continente, Débora Nascimento, convocamos profissionais que atuam na cobertura musical alternativa, como Carlos Gomes, editor da revista Outros Críticos, Diego Albuquerque, autor do blog Hominis Canidae, o jornalista e DJ Guilherme Gatis, o músico Fernando Athayde, o repórter Bruno Nogueira, que já colaborou na curadoria do Abril Pro Rock. Cada um deles escreveu sobre esses cantores, compositores, instrumentistas, tendo como ponto de partida os discos que estão sendo lançados. O resultado é um interessante painel da produção musical local, revelando o fôlego criativo dessa geração. Outro destaque desta edição é a Conversa, que, na sua quinta edição, debate questões relativas às artes visuais. Para analisá-las, convidamos figuras relevantes ligadas à área, como o curador e pesquisador Moacir dos Anjos, os artistas Carlos Mélo, Gil Vicente, Juliana Notari e Oriana Duarte, mediados pela editora-assistente da revista Mariana Oliveira e a repórter especial Luciana Veras (foto acima).
sumário Portfólio
Fotografia moderna
6 Cartas
7 Expediente
8 Entrevista
62 Sonoras
Guitarristas Reportagem toma como partida o lançamento de autobiografia de Carlos Santana para construir uma genealogia dos virtuosos do instrumento
+ colaboradores Júlio Medaglia Maestro paulista conta que hoje prefere o silêncio, critica a indústria cultural e elogia a tradição musical brasileira
20 Balaio
Família Guinle Dona de um império que envolveu a construção do Porto de Santos e do Hotel Copacabana, ela é tema de biografia
52 Cardápio
Gastronomia portenha Baseada nas influências do espanhol e do italiano, culinária de Buenos Aires é centrada em carnes e massas
14
66 Leitura
Gêneros literários Biografia de carro e de país pode? Ou o termo deveria ser usado apenas para nomear obras relativas a pessoas? Biógrafos e críticos discutem o assunto
12 Conexão
Marco Zero Coletivo de jornalistas lança produto online no intuito de editar material independente
Mostra em cartaz no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, reúne imagens significativas do que representou o modernismo na fotografia
70 Entremez
onaldo Correia de Brito R Por que me devoras?
78
Matéria corrida José Cláudio Gênese de uma capa
88 Criaturas
Jovem Guarda Por Ricardo Melo
Claquete Grécia
“A estranha onda do cinema grego” é como estão chamando a produção recente de diretores do país, que discutem com acidez as várias crises que nele estão em curso
57
CAPA ILUSTRAÇÃO Manuela dos Santos
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4
Capa
Perfil
Siba, Lirinha, Eddie, Alessandra Leão começaram suas carreiras nos anos 1990 e agora lançam trabalhos maduros. A nova geração também aponta ótimas revelações
Há uma década fora do “pequeno” palco, ator volta à cena com A invenção da palavra, texto de sua autoria, que interpreta ao lado da filha e atriz Olga Ferrario
Visuais
Conversa
Crítico de artes plásticas e arquitetura, com textos seminais para no setor no Brasil, tem seu trabalho – há muito esgotado – de volta às livrarias em edições comentadas
Artistas e curadores discutem as demandas do setor, que é observado por eles como um campo em que se atua em redes, mas de forma isolada e sem apoio institucional
Música pernambucana
22
Mário Pedrosa
72
Cláudio Ferrario
40
Artes Visuais
80
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5
Set’ 15
cartas SUBSTANTIA JONES FOR WWW.ADIPOSITIVITY.COM
GORDOFOBIA I
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE
Ao falar de aparências, o jornalismo deveria dar prioridade a assuntos relevantes, como o que a Continente trouxe neste mês de julho, sobre Gordofobia. No meio de tantas notícias sem sentido, é bom encontrar uma capa como essa!
O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões.
LORENA BARROS RECIFE – PE
GORDOFOBIA II A matéria de Luciana Veras sobre Gordofobia, capa da edição de julho, foi uma das mais delicadas, certeiras e respeitosas que já vi sobre o tema. Eu, gorda e figura que passa um bom tempo da vida brigando e me empenhando para mostrar às mulheres que todas temos que nos amar como somos, agradeço à publicação por tocar no tema com tamanho bom gosto. AMANDA SOUZA SÃO PAULO – SP
GORDOFOBIA III A gordofobia vai muito além de excluir as pessoas de corpos volumosos... Pra mim, a gordofobia
começa com a fobia que nós temos de nós mesmos ficarmos gordos, a tristeza que temos quando estamos gordos, a alegria que temos quando emagrecemos, o medo de parecermos mais gordos (até numa foto), o horror de se ver gordo. Todo mundo tem medo de ficar gordo. Pra muitos que têm comentários menos crus sobre essa foto (acima), se perguntássemos: “ E aí, se você ficar gordo assim, tudo bem? Quer? Pode ser? Sem problemas?” Ninguém quer! Pra muitos seria “um desastre”. A verdade é que ninguém quer ser gordo. Todo mundo tem medo de ser gordo! Isto é a gordofobia.
CALABAR A matéria sobre Calabar (edição 176) reúne tudo que o apaixonado pelo mito e pelo período histórico espera: pesquisa, contextualização e excelente texto. Parabéns a Luciana Veras pelo trabalho cuidadoso e bem-estruturado! DANIELLE ROMANI JORNALISTA, RECIFE – PE
DO FACEBOOK Recomendo vivamente a revista e o trabalho da Luciana Veras. Juro que não é porque tem uma contribuiçãozita minha. A revista é coisa séria, elegante e fina.
KEILA MARA KASSIANO
KATARINA PEIXOTO
RIO DE JANEIRO – RJ
PORTO ALEGRE – RS
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6
A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
(81) 3183 2780
Fax
(81) 3183 2783
redacao@revistacontinente.com.br
Site
revistacontinente.com.br
colaboradores
Bárbara Buril
Bruno Nogueira
Carlos Gomes
Rodrigo Casarin
Jornalista, com pesquisa em arte, tecnologia e imagem.
Jornalista, pós-doutor em Comunicação e professor da UFPE.
Escritor, editor e curador da Outros Críticos, mestrando em Comunicação pela UFPE.
Jornalista, atua como freelancer escrevendo sobre literatura, livros, escritores e afins.
E MAIS Diego Albuquerque, jornalista e blogueiro. Fernando Athayde, jornalista e músico. Guilherme Gatis, jornalista e DJ. Guilherme Novelli, jornalista. Marcelo Abreu, jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder – Um repórter brasileiro na Coreia do Norte. Mariana Camaroti, jornalista, radicada em Buenos Aires. Olívia Mindêlo, jornalista e mestre em Sociologia pela UFPE.
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO
CONTINENTE ONLINE
ATENDIMENTO AO ASSINANTE
GOVERNADOR
Adriana Dória Matos
Olivia de Souza (jornalista)
0800 081 1201
Paulo Henrique Saraiva Câmara
SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO
SECRETÁRIO DA CASA CIVIL
Luiz Arrais
Fone/fax: (81) 3183.2750 CONTATOS COM A REDAÇÃO
Antônio Carlos Figueira
assinaturas@revistacontinente.com.br
(81) 3183.2780 REDAÇÃO
Fax: (81) 3183.2783
EDIÇÃO ELETRÔNICA
COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
Débora Nascimento e Mariana Oliveira
redacao@revistacontinente.com.br
www.revistacontinente.com.br
PRESIDENTE
(editoras-assistentes), Luciana Veras
Ricardo Leitão
(repórter especial)
PRODUÇÃO GRÁFICA
DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO
Maria Helena Pôrto (revisão)
Júlio Gonçalves
Ricardo Melo
Maria Eduarda Barbosa, Marina Moura,
Eliseu Souza
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO
Ulysses Gadêlha e Vitória Ayres (estagiários)
Sóstenes Fernandes
Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE
Bráulio Mendonça Meneses
Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)
CONSELHO EDITORIAL:
PUBLICIDADE E MARKETING
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO
Everardo Norões (presidente)
ARTE
E CIRCULAÇÃO
E PARQUE GRÁFICO
Lourival Holanda
Janio Santos, Manuela dos Santos
Daniela Brayner
Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro
Nelly Medeiros de Carvalho
e Karina Freitas (paginação)
Gilberto Silva
Recife/Pernambuco
Pedro Américo de Farias
Agelson Soares e Pedro Ferraz
Rafael Chagas
CEP: 50100-140
Tarcísio Pereira
(tratamento de imagem)
Rosana Galvão
Fone: 3183.2700
Joselma Firmino de Souza
Ouvidoria: 3183.2736
(supervisão de diagramação e ilustração)
ouvidoria@cepe.com.br
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7
JÚLIO MEDAGLIA
“Eu não ouço música. Gosto mais do silêncio” Grande nome da música erudita, autor de estudos como Música, maestro! – Do canto gregoriano ao sintetizador, ele critica o que chama de “oportunismo” da indústria cultural e ressalta o papel de músicos negros no Brasil TEXTO Marcelo Abreu
CON TI NEN TE
Entrevista
O maestro Júlio Medaglia tem sido, nos
últimos 50 anos, mais do que um dos principais nomes da música erudita no país. É também um estudioso e pensador da cultura, crítico ferrenho da indústria do entretenimento e dos modismos que dominam o mercado musical. Aos 76 anos, Medaglia divide seu tempo entre trabalhos de composição e regência – colabora regularmente com orquestras de países como Alemanha, Itália e Hungria –, e seu trabalho na Rádio Cultura FM de São Paulo, em que mantém um programa diário de música erudita, o Fim de Tarde. Além disso, a TV Cultura leva ao ar, semanalmente, o programa Prelúdio, no qual ele apresenta jovens solistas tocando junto a orquestras sinfônicas. Mas seu currículo inclui também o envolvimento com festivais de música popular, nos anos 1960, uma vasta produção de trilhas sonoras e a participação como arranjador nos discos do Tropicalismo. Júlio Medaglia nasceu na capital paulista, começou a tocar violino por acaso e teve aulas de regência com o maestro alemão Hans-Joachim Koellreutter, da Escola Livre de
Música São Paulo. Estudou também na Alemanha, onde manteve contato com Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez, dois nomes fundamentais na música erudita contemporânea. É autor de livros como Música impopular, sobre as experiências de vanguarda no século 20 e Música, maestro! – Do canto gregoriano ao sintetizador, no qual traça um panorama amplo da história da arte. Nesta entrevista à Continente, realizada numa sala de trabalho na Rádio Cultura, o maestro fala sobre o estado atual da música brasileira e sobre sua relação com o Tropicalismo. Faz críticas a expressões jovens como o hip-hop e o funk carioca. Elogia a cultura popular de Pernambuco e ressalta o papel nobre dos artistas negros no Brasil. CONTINENTE Sempre que se fala de música clássica, as pessoas se referem a grandes nomes como Bach, Mozart, Beethoven, e muito menos aos compositores do século 20. Por que os trabalhos mais recentes não tiveram popularidade nem entre o público erudito? JÚLIO MEDAGLIA Não é tão fácil substituir um valor cultural como é substituir um valor material. As coisas da
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8
alma têm a ver com o lado emocional, sentimental, com as vivências pessoais. O século 20 correu depressa demais, do ponto de vista material. Essa velocidade não foi acompanhada do ponto de vista espiritual. Existiram também vários equívocos no século 20. Algumas coisas não chegaram a ser populares porque funcionaram experimentalmente num determinado momento, tiveram muito sentido na época para abrir a percepção das pessoas, mas não se consolidaram como uma nova linguagem. A linguagem do ocidente é a harmonia tonal, baseada no dó maior. De repente, chegaram o Schönberg e o Webern e disseram: “Vamos jogar fora esse idioma e construir outro”. Todo mundo teria de aprender um novo idioma para fazer uma nova música. Isso não acontece assim tão repentinamente. Você não pode chegar e apagar toda uma tradição que tem a ver com experiências. CONTINENTE O senhor começou tocando violino. Qual o seu instrumento preferido hoje, em termos de sonoridade e expressividade? JÚLIO MEDAGLIA Nenhum em especial. O que me fascina é, quando a gente
ARNALDO PEREIRA /VIALUX
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 9
compõe alguma coisa, procurar tirar efeitos dos instrumentos. Aliás, a maior parte do que tenho feito em composição nem é para violino, é para instrumentos de sopro, os metais. O pessoal das orquestras que eu vou reger fora do Brasil sempre me pede músicas brasileiras com elementos nacionais ou da América Latina e, em geral, eu faço para metais. Comecei na infância, na Lapa, quando uma empregada veio morar na minha casa e trouxe um violino. Comecei a brincar, me apaixonei pelo instrumento e fui
culpa é dos artistas que não souberam enfrentar essa avalanche industrial. Infelizmente, chegou ao ponto de os meios de massa se fecharem para a música inteligente. Não há mais nada, só em uma ou outra emissora a gente ouve alguma coisa possível de ser ouvida. O resto é porcaria, não só no Brasil. É no mundo inteiro. CONTINENTE Desde que o senhor começou a fazer essas críticas, nos anos 1980, a coisa parece ter piorado. O que acha de estilos recentes como o sertanejo universitário,
Entrevista
DIVULGAÇÃO
CON TI NEN TE
música na cabeça, então fica ouvindo internamente. A relação com o popular foi uma coisa acidental. Caetano Veloso foi assistir a uma peça de teatro de Bráulio Pedroso, com Cacilda Becker e Walmor Chagas, para a qual eu tinha escrito a música. E Caetano me pediu para escrever um arranjo para Tropicália. Aí iniciamos aquele movimento que foi enriquecedor porque trouxe muita coisa para a música popular. Ela deixou de ser uma melodia para ser um caldeirão fervilhante de componentes culturais.
estudar música. Foi quando conheci Koellreutter e Damiano Cozzella, o pessoal da Escola Livre de Música. A gente deslanchou para um universo musical bem mais amplo e aí deixei de tocar. Hoje, o prazer é trabalhar com a sonoridade. É aquela mesma história: pensaram que essa sonoridade ia ser jogada no lixo, quando chegaram os instrumentos eletrônicos. E, no entanto, o tempo foi passando e voltaram as fontes antigas. CONTINENTE Depois de uma relação próxima com a música popular nos anos 1960, o senhor escuta hoje esse tipo de música? JÚLIO MEDAGLIA Não. Aliás, eu não ouço música (risos). Eu gosto mais do silêncio. A gente tem a
CONTINENTE O senhor tem sido um crítico do estado atual da música popular brasileira. Em que momento o popular de qualidade perdeu espaço para o comercial sem qualidade? JÚLIO MEDAGLIA O que aconteceu é que a indústria cultural cresceu demais e todas as facilidades para se produzir ficaram ao alcance de todos. Qualquer idiota compra uma guitarra numa loja por aí, chega em casa e faz um escândalo. Acha que está fazendo a melhor música do mundo, com dois acordes. Além disso, como não pode parar de funcionar, a indústria inventa os seus monstros, os seus ídolos, coloca um efeito aqui outro ali, cria bobagens e joga no planeta. Os países mais poderosos infestam o mundo de uma cultura pop padronizada. Em parte, a
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 1 0
o technobrega, o funk carioca, o forró estilizado, o hip-hop da periferia? JÚLIO MEDAGLIA Eu acho que esse movimento de funk, rap, hip-hop etc. é consequência de um colonialismo subcultural que o Brasil vem assimilando. A música de periferia das grandes cidades norte-americanas, que, na verdade, nem chega a ser música, é feita por pessoas que ficam na periferia puxando fumo e acham que a sociedade está contra elas. Ficam protestando naquela verborragia insuportável. Na realidade, isso acabou criando um mercado que tem força para exportar para a América Latina, e o negro brasileiro está assimilando isso, o que é uma tragédia. Toda a cultura brasileira do início do século 20 para trás era feita por
negros. Grandes músicos e artistas eram negros ou mulatos, como no barroco mineiro. Como Régis Duprat descobriu em suas pesquisas na Bahia, no século 18 havia músicos negros que escreviam como Händel. Padre José Maurício Garcia era filho de escravos. Carlos Gomes e Chiquinha Gonzaga eram mulatos. A ausência de maiores conflitos permitiu que esse pessoal praticasse as suas raízes. No momento em que se sofisticaram e passaram a aprender novas formas de cultura, fizeram-no com a maior dignidade. Agora vem esse funk que não têm nada a ver com África, com as raízes. É um “bangue-banguebangue”, na base do bate-estaca. Não tem a síncope, não tem o jogo de ritmos. Isso é música pré-bárbara. Infelizmente, como é coisa muito primitiva, é fácil de conquistar qualquer comunidade. CONTINENTE É possível dizer que a revolução tecnológica, que facilitou muitas coisas, teve, então, um reflexo negativo na qualidade? JÚLIO MEDAGLIA Roquete Pinto, quando criou a rádio no Brasil, instalou antenas no Corcovado e começou a distribuir rádios pela cidade. Começou a colocar sinfonias e óperas no ar, e se pensou que a cultura de graça ia chegar à casa das pessoas. Foi um engano da parte dele, que era um homem bemintencionado, um grande brasileiro e humanista. É difícil implantar valores musicais. Eles dependem de certa vivência que precisa ser elaborada com algum tempo. Aconteceu uma coisa muito curiosa. No final do século 19, as coisas relacionadas à tecnologia não iam mais adiante porque o ser humano achava que, depois que a revolução industrial estava cristalizada, tudo já havia sido inventado. O barato era a loucura, a criatividade, a belle époque, a art déco, a art nouveau, as ideias, a beleza, o charme, a felicidade cultural do ser humano. A tecnologia não tinha futuro. Ninguém levava o Henry Ford a sério nem dava dinheiro para produzir automóveis em linha. Os irmãos Wright, um ano antes de Santos Dumont levantar voo em Paris, disseram que ia ser preciso mil anos para o homem sair do chão com suas próprias forças e voltar para o mesmo lugar. O departamento de patentes dos EUA fechou em 1898 porque não havia mais nada a ser inventado. De
repente, inverteu-se a coisa. Chegamos ao final do século 20 com a tecnologia explodindo, coisas que ninguém imaginava começaram a acontecer, invenções de todos os tipos. E, na área cultural, nada. Depois da segunda metade do século 20, não se conheceram novos estilos, tendências, vanguardas, caminhos, apesar de toda a tecnologia. CONTINENTE O que o senhor pensa do modelo de incentivo à cultura no país? JÚLIO MEDAGLIA Acho que falta no Brasil uma visão mais global da situação
“Hoje, há o Spok (à esq.), uma coisa que não tem no mundo nada parecido. O Brasil devia pegar esse pessoal, botar num avião e falar: ‘Vocês vão ficar 10 anos tocando no mundo’ ”
do consumo da cultura. É um país que tem ideias próprias muito grandes, uma musicalidade fora do comum. Pernambuco é o estado mais musical do Brasil. Mas industrializar esse potencial que temos é uma coisa muito difícil. Seguramente, deve ter músicos deslumbrantes aí pelo Brasil. No interior de Pernambuco, por exemplo, vi em minhas pesquisas, várias vezes, gente que você fica babando com o que eles fazem com uma caixinha de fósforo na mão. A questão é como transformar essa cultura espontânea, essa matériaprima, numa coisa elaborada, num produto de exportação. Hoje há o Spok, uma coisa que não tem no mundo nada parecido. O Brasil devia pegar esse pessoal, botar num avião e falar:
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 1 1
“Vocês vão ficar 10 anos tocando no mundo inteiro, entortando a Inglaterra com a música que fazem”. No entanto, pouco se sabe dele aqui no sul. Vejo coisas pontuais com o vale-cultura, mas ninguém tem visão de conjunto, do que seria a função de Estado no dia de hoje. A função do Estado não é criar cultura. Mas, de repente, a sociedade está sendo massacrada por uma indústria medíocre e é preciso tomar uma posição. Eu pensei que, com esse negócio de música nas escolas, os molequinhos iam ouvir outros tipos de sons, o professor ia levar uns vídeos para ele ouvirem Beethoven, banda de pífano de Caruaru, Edu Lobo, música chinesa, tudo, para eles perceberem que existe um mundo cultural gigantesco. Mas não vejo nada até agora. CONTINENTE A indústria cultural não acaba se apropriando de recursos públicos que deveriam ser destinados a estimular uma cultura de qualidade? JÚLIO MEDAGLIA A indústria cultural se apropria de qualquer coisa. Ela quer é ganhar dinheiro. Quando surgiu, esse setor tinha dignidade, as rádios do Recife, da Bahia, do Rio, tinham orquestras sinfônicas, os diretores artísticos eram nomes como Claudio Santoro e Radamés Gnatalli. A própria Radio Jornal do Commercio tinha orquestra sinfônica, Guerra Peixe regia, faziam coisas maravilhosas. Músicos de primeiríssima qualidade estavam misturados com a música popular para oferecer ao público uma coisa de alto nível. Hoje, é na base do “vamos ganhar dinheiro com qualquer coisa”. CONTINENTE Apesar de tudo, como explicar a existência também de um grande interesse pelo estudo da música erudita e de um bom mercado para os músicos? JÚLIO MEDAGLIA Existem muitos movimentos sociais que levam a meninada a estudar instrumentos clássicos, o Projeto Guri, o de Heliópolis, o do maestro João Carlos Martins. Existem em Pernambuco, no Ceará, em Campos dos Goytacazes (RJ), em Poços de Caldas (MG). Isso é bom porque, mesmo que o cara faça rock ou bossa nova, a música clássica traz um know-how, um artesanato da criação, um refinamento, e depois cada um faz o que quiser na vida.
O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
CON TI NEN TE
MÚSICA PERNAMBUCANA
PERFIL
Leia, no nosso site, a entrevista completa de Siba, na qual o músico fala sobre a carreira, leis de incentivo, processo de composição, mercado e o preconceito velado que existe no país contra as manifestações populares, como o maracatu rural, protagonista do seu segundo disco De baile solto. Assista também a videoclipes de alguns dos músicos da nova geração, cujos trabalhos foram também abordados na matéria de capa. Estão no nosso canal, Molho, de Graxa (na foto ao lado); Colmeias, de D Mingus, e Estância, de Zeca Viana.
Leia a íntegra do texto da peça A invenção da palavra, cedido pelo autor Cláudio Ferrario e publicado com exclusividade pelo site da Continente.
Conexão
CLAQUETE Confira alguns trechos de filmes que compõem a cena contemporânea do cinema grego, tais como Dente canino (2009) e Attenberg (2010).
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br
ANDANÇAS VIRTUAIS
FEMINISTA
MÚSICA
APRENDIZADO
COLETIVO
Abordagem da cultura pop com olhar crítico em torno de questões de gênero
Discos, vinis, shows e notícias sobre o mundo fonográfico
Site oferece 1.085 cursos, gratuitamente, com direito a certificado
128 blogueiros reunidos em uma rede de cultura brasileira
collantsemdecote.com
tenhomaisdiscosqueamigos.com
coursera.org/courses
Criado pela roteirista Rebeca Puig, Collant sem Decote é um site brasileiro voltado para publicações que envolvem o universo da cultura pop com viés feminista. As colaboradoras trazem textos sobre cinema, televisão, literatura, quadrinhos, games, entre outros assuntos, com abordagens que ganham olhar crítico e questionador acerca da visão patriarcal e machista existente na cultura pop. Além de textos e imagens, Collant converge para o meio audiovisual com, até o momento, duas seções em vídeo: Review em cinco minutos e Ser nerd na semana passada.
Pela quantidade de publicações, é bem provável que a equipe do site tenha mais discos que amigos. A página reúne notícias diárias que movimentam o mundo da música, além de resenhas sobre álbuns recém-lançados e entrevistas com artistas nacionais e internacionais. Durante a navegação, é possível encontrar várias listas com sugestões de canções e artistas para ouvir. Algumas são inusitadas, como 8 músicas que Noel Gallagher levaria para uma ilha deserta. Há também uma seção dedicada aos termos utilizados para falar sobre vinil, funcionando como uma espécie de dicionário dirigido para essa mídia.
Para quem quer aprimorar seus conhecimentos sobre determinados assuntos, o Coursera oferece aulas online e gratuitas. A plataforma realiza parcerias com 121 instituições de todo o mundo. Os cursos disponibilizam certificados e perpassam temáticas como empreendedorismo, filosofia, programação e super-heróis. Este último, por exemplo, possui duração de oito semanas e aborda o significado, em âmbitos sociais e culturais, desses personagens nos quadrinhos e filmes. Ministrado pelo professor Ian Gordon, da Universidade Nacional de Singapura, o curso é composto de oito módulos, em inglês.
digestivocultural.com/blogs/ inscritos.asp
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 1 2
Com uma iniciativa ousada e inovadora, uma rede de blogs culturais foi criada no Brasil e conta com a participação de 128 blogueiros de todo o país. A ideia surgiu a partir de conversas entre o editor Julio Daio Borges e os leitores do Digestivo Cultural, que completa 15 anos este mês. Todas as páginas estão catalogadas em uma seção específica do site, mas também podem ser encontradas na principal do Digestivo. As postagens não passam por moderação e todas possuem chamadas na homepage. As melhores são selecionadas pelo editor, que as direciona para o blog principal da rede.
blogs BLOGUEIRAS NEGRAS blogueirasnegras.org/
Com publicações que partem das vivências e experiências das mulheres negras, reúne textos escritos por elas com um olhar crítico que lhes dá visibilidade, empodera e representa. Dentre as temáticas que integram o espaço, há abordagens relacionadas ao feminismo negro, afrotransfeminismo, sexualidade, religião, mídia e cultura.
JORNALISMO INVESTIGATIVO INDEPENDENTE
AUDIOVISUAL
Coletivo Marco Zero Conteúdo investe em textos diferenciados, que fogem aos modelos-padrão da grande mídia, sem vículos com o setor público ou privado
Vinculado à Carta Capital, versa sobre cinema e televisão e é feito em parceria entre as jornalistas Clarice Cardoso e Flavia Guerra junto ao roteirista Diego Olivares. Nele, encontram-se críticas, notícias e também um espaço para publicações em vídeo, o TVTELA.
marcozero.org
Lançado em junho de 2015 no Recife, o site Marco Zero Conteúdo trabalha com jornalismo investigativo, propondo reportagens aprofundadas e realizadas de maneira independente. O projeto é formado por jornalistas que trazem, em seus textos, um olhar diferenciado em relação ao jornalismo praticado na grande imprensa. O coletivo destaca não possuir vínculo com empresas privadas e públicas. Sobrevive de doações dos leitores, parceria com fundações e organizações internacionais, prestação de serviços como consultoria, além da realização de cursos e palestras. As publicações veiculadas pela Marco Zero Conteúdo podem ser reproduzidas em outros sites e redes sociais através da licença Creative Commons. Entre as temáticas abordadas, a equipe destaca três pontos principais: semiárido nordestino, urbanismo e relações de poder. Até o momento, o coletivo produziu reportagens envolvendo o Cais José Estelita, maioridade penal, consumo responsável e economia solidária, por exemplo. Os cursos oferecidos pela Marco Zero Conteúdo são pagos, presenciais e ministrados pelos próprios idealizadores do projeto. Já foram realizados alguns com temáticas voltadas para o jornalismo empreendedor, ativismo digital, criação de portfólios, além de Oficina da Palavra, que teve o objetivo de trabalhar mais densamente perspectivas diversas da escrita. MARIA EDUARDA BARBOSA
telatela.cartacapital.com.br/
NETFLIX filmes-netflix.blogspot.com.br/
Dentre os conteúdos do blog, há informações acerca das mudanças que ocorrem no catálogo desse serviço streaming no Brasil. Nele, todos podem se atualizar sobre as datas de lançamento dos produtos disponibilizados na plataforma, além de conferir notícias sobre os conteúdos originais produzidos pela Netflix como trailers e fotos.
sites sobre
B i c i c l e t a s INICIANTES
AJUDA
FIXED GEAR
vadebike.org/
bikeanjo.org/
facebook.com/groups/297946006891613/
Com mais de 10 anos, tem como objetivo auxiliar as pessoas que usam a bicicleta como meio de transporte ou desejam começar.
Ciclistas voluntários orientam os que desejam aprender a andar de bicicleta. A iniciativa trabalha com requisitos que envolvem manutenção básica e segurança no trânsito.
Com quase cinco mil membros, o grupo reúne amantes e usuários das bicicletas fixas (fixed gear) de todo o Brasil. Há discussões sobre peças, equipamentos e preços.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 1 3
JOSÉ YALENTI/DIVULGAÇÃO
Port 1
f贸lio
THOMAZ FARKAS/DIVULGAÇÃO
2
CON TI NEN TE
Portfólio
Fotografia
TESTEMUNHOS DE MODERNIDADE TEXTO Adriana Dória Matos
Não eram as panorâmicas que importavam, os grandes cenários, as gentes que ali viviam, trabalhavam, se transportavam. Não era o registro histórico, documental, antropológico; a reportagem. Para aqueles indivíduos, o que importava era discutir e elaborar uma linguagem autônoma para a fotografia, usando para isso conhecimentos requintados nos campos técnico, estético e formal. O fotoclubismo tornou-se um lugar ideal para isso, pois nele era possível a troca de informações e ideias, a criação de parâmetros e regras, o fortalecimento de uma rede de relações num ambiente cultural e educativo ainda carente de instituições acadêmicas. Foi nesse contexto, a partir da década de 1940, que se começou a produzir a moderna fotografia brasileira, caracterizada – como nos demais meios em que a modernidade se expressou – pela ruptura com padrões anteriores de criação e representação artística. É bom que se diga que já se manifestara, no Brasil, tanto o fotoclubismo quanto o modernismo artístico. O que ocorre é que esse tipo de agremiação serviu, naquele momento, ao fomento de uma “modernidade tardia na fotografia”, como se referem os historiadores, já que ela se dará duas décadas depois da eclosão do movimento literário e artístico nacional. Uma amostra preciosa do que foi produzido nesse âmbito da fotografia está na exposição Moderna para sempre – Fotografia modernista brasileira na Coleção Itaú Cultural, em cartaz até o dia 18 de outubro no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, o Mamam, no Centro do Recife. C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 1 6
GERALDO DE BARROS/DIVULGAÇÃO
Páginas anteriores 1 JOSÉ YALENTI
aralelas e diagonais P é uma das obras mais conhecidas deste fotógrafo
Nestas páginas 2 THOMAZ FARKAS
imagem prosaica A de telhas empilhadas ganha conotação gráfica nesta imagem de 1947
GERALDO DE BARROS 3 Artista plástico que entendia a matriz fotográfica como gravura realizava intervenções no negativo e sobreposições
4-5 TEMA A arquitetura foi elemento pictórico de modernos como Francisco Albuquerque e José Oiticica Filho
JOSÉ OITICICA FILHO/DIVULGAÇÃO
FRANCISCO ALBUQUERQUE/DIVULGAÇÃO
3
4
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 1 7
5
PAULO PIRES/DIVULGAÇÃO
6
CON TI NEN TE
Portfólio
Em cerca de 130 fotografias produzidas entre os anos 1940 e 1970, por pouco mais de duas dezenas de fotógrafos, podemos observar as motivações programáticas desses indivíduos, mais de 90% deles integrantes do paulista Foto Cine Clube Bandeirante. O trabalho de curadoria da mostra é de Iatã Cannabrava, que propôs a aquisição desse acervo ao Itaú Cultural, daí o subtítulo à mostra atribuído. Trabalhos de reunião de acervo como este são importantes para conceituar um período histórico, dar unidade a obras que podem ter sido realizadas isoladamente – e que farão sentido num agrupamento posterior – ou de modo compartilhado. Este foi o caso do Foto Cine Clube Bandeirante, que juntou amadores e profissionais em torno da elaboração da imagem. Em entrevista à Continente, Iatã Cannabrava comentou o inusitado de essas imagens tão críticas para a
época e tão emblemáticas da modernidade terem surgido numa agremiação tradicionalmente cheia de interditos. “O curioso é observar como essas rupturas formais e conceituais modernistas se deram num ambiente conservador como um foto clube, que opera à base de regras, preceitos. Mas certamente isso decorreu do contexto histórico e cultural do entreguerras, dos intercâmbios estabelecidos com fotógrafos, fotoclubes e salões de outros países.” Embora a unidade temática e composicional encontrada nessas fotografias resulte de um trabalho interpretativo curatorial, a noção de conjunto coeso de propostas que se observa também pode ser atribuída ao espírito coletivista do clubismo, que realizava viagens fotográficas, concursos, salões, publicação de revistas, colaborando para a organicidade das fotografias apresentadas. Assim é que vemos obras produzidas por José Yalenti, Geraldo de Barros, German Lorca, Thomaz Farkas, Marcelo Giró, Paulo Pires, Ademar
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 1 8
Manarini e José Oiticica Filho, por exemplo, como manifestações de um só pensamento fotográfico. Há neles uma deliberada ênfase em aspectos formais, em que telhas, fios de eletricidade, chaminés, ferragens, gravetos, vegetação, mobiliário, fachadas e formas arquitetônicas e mesmo o corpo humano não são representações da realidade, narrativas do referencial, testemunhos sociais, mas exercícios gráficos, geométricos e construtivos, que podem ter sido realizados apenas no momento da captação da imagem ou trabalhados em sofisticadas técnicas de laboratório fotográfico ou, também, em ambas as instâncias. De qualquer modo, esses (e outros) nomes, hoje “clássicos” da modernidade, estavam naquele momento – sobretudo na década de 1950 – discutindo o estatuto da fotografia como documento e, para além do pictorialismo (que pretendia outorgar à fotografia o título de arte imitando os procedimentos da pintura, do desenho e da gravura), criando uma nova compreensão deste meio como manifestação artística autônoma.
EDUARDO ENFELDT/DIVULGAÇÃO
7
RUBENS TEIXEIRA/DIVULGAÇÃO
8
GERMAN LORCA/DIVULGAÇÃO
6-7 GRAFISMOS Além do "olhar fotográfico" na captação de imagens, Paulo Pires e Eduardo Enfeldt empreenderam efeitos de laboratório nestas imagens ABSTRAÇÃO #5 8 Rubens Teixeira Scavone realizou uma foto como objet trouvé em 1950
9 GENTES A figura humana foi usada de modo compositivo pelos fotógrafos modernistas, como German Lorca
9
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 1 9
FOTOS: DIVULGAÇÃO
YOKO REVISITADA Numa tarde de agosto em Nova York, centenas de pessoas faziam fila no Museum of Modern Art/ MoMA, dispostas a ver a extraordinária coleção do museu, mas também a exposição Yoko Ono: One woman show, 1960–1971. Pela primeira vez, o MoMA reuniu 125 objetos da fase pioneira de uma artista que conjugou vanguarda, liberdade e ousadia; filmes, áudios, trabalhos em papel e raridades podem ser vistos até o dia 7. Um dos destaques é Bag piece (1964), performance criada por Yoko para explicitar/amainar sua timidez. O público é convidado a entrar numa grande sacola preta e tirar a roupa (se quiser) sob o amparo do tecido. Na tal ensolarada quinta-feira em Manhattan, não eram poucos os que, sob os signos da arte contemporânea e em tributo à viúva de John Lennon, lançaram-se a imitá-la. (Luciana Veras)
O sobe e desce dos Guinle Conhecida mais pelos devaneios consumistas e pelas barbeiragens amorosas de alguns de seus integrantes, a família Guinle, hoje sinônimo de decadência e arcaísmo, teve o seu auge a partir de fins do século 19 e início do 20 com a modernização do país, envolvendo-se em empreendimentos de altíssimos valores e benesses governamentais. Transformaram o lodacento litoral de Santos no maior porto da América Latina – apesar da licença de operação por 92 anos!; criaram a CSN, o Banco Boavista, o Copacabana Palace etc. Também eram donos da Granja Comary, onde hoje os perebas da Seleção Brasileira se aprontam para as partidas, a Fazenda Brocoió, onde Getúlio Vargas dava as caras para descansar, e dezenas de palacetes, um deles, o Laranjeiras, hoje sede do governo carioca. No livro Os Guinle (Editora Intríseca, 256 págs.), o historiador Clóvis Bulcão esmiúça a trajetória da família que deixaria sua assinatura no mundo empresarial, nas artes, na exploração de petróleo, no mundo do futebol e do turfe. E a cruel decadência. Pois veio 1964 e a vida virou “bosta d’alma” com os milicos acabando com a “furupa”. Só faltou vender as cuecas. O antes metido a devorador de starlets Jorginho Guinle (o baixinho, ao centro, na foto acima), cuja frase de efeito era “Não temos o dinheiro de Rockfeller ou Vanderbilt: o truque é parecer um deles”, abotoou o paletó (ops, smoking) numa suíte do anexo do Copacabana, de favor, pois “não queria morrer e ir para o céu, e, sim, morrer no céu”. LUIZ ARRAIS
CON TI NEN TE
A FRASE
Balaio CIDADE DOS SONHOS
“A função da universidade é criar elites, e não dar diplomas a pés-rapados.”
Um grupo de arquitetos e engenheiros britânicos quer transformar o sonho dos fãs de O senhor dos anéis em realidade. Eles esperam arrecadar R$ 10 bilhões, via crowdfunding, para construir a cidade de Minas Tirith em tamanho real. A ideia deles é criar uma atração turística marcante e também um lugar fascinante para se viver e trabalhar. Com o financiamento coletivo, os investidores podem adquirir a própria casa na cidade, e até serem declarados Lord ou Lady da região. Porém, o sonho não deve sair do papel: a pouco menos de um mês para encerrar a arrecadação, só foram recebidos R$ 420 mil. (Ulysses Gadêlha)
Paulo Francis, crítico e jornalista
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 0
ARQUIVO
AMOR ÀS RUAS Uma cidade é feita de ruas, ruas de todas as personalidades. Numa conferência de 1905, João do Rio afirmou: “Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a política, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua”. Diante do livro organizado por Josivan Rodrigues, Imagens do Recife – Ruas, uma coletânea de 30 cartões-postais de tempos vários da cidade, de datas e dias antigos, temos o ímpeto de declaração de amor às ruas. São imagens que Jota garimpou no acervo do Museu da Cidade do Recife, trabalho que ele vem realizando com primor desde o primeiro volume, de 2013, o Imagens do Recife – Pontes. (Adriana Dória Matos)
Alice no país da “perversão” Todo o ano de 2015 é de festa para Alice no país das maravilhas, livro da personagem enigmática do escritor inglês Lewis Carroll (1832–1898), que entrou na toca do coelho e caiu num universo psicodélico, encantando gerações ao longo dos últimos 150 anos. A personagem foi inspirada numa amiguinha do escritor, à época uma criança, Alice Lidell (1852-1934), 20 anos mais nova que ele. Carroll, que também era matemático, bibliotecário e, nas horas vagas, fotógrafo de ninfetinhas, tinha a amizade com Lidell em alta conta. Chegou a propor-lhe casamento, mesmo se dizendo celibatário. O que se sabe é que a relação entre eles era de fascínio mútuo. Platônica. Então, toma ele a bater foto da menina, em trajes sumários (como na foto acima), quase nua, até que a família da pequena rompeu com o “pervertido”. Antes da morte, Carroll destruiu cartas e fotos, deixando para o mundo poucas daquelas imagens. Já Alice Lidell, em 1928, aos 76 anos, leiloou o manuscrito do conto, o que a salvou da miséria, à época. Aprendiz do Humbert de Lolita, nos dias de hoje, se pego no flagra com suas atitudes, o escritor inglês teria, no mínimo, levado uma camada de pau. LUIZ ARRAIS
O PARQUE DE BANKSY
CANDIDATO À ESQUERDA
Imagine um parque, ocupando uma superfície de cerca de 10 mil metros quadrados, em cuja entrada lê-se: “Bem-vindo a Dismaland. A vida não é sempre um conto de fadas”. Pois essa improvável construção foi oficialmente inaugurada no último dia 20 de agosto, em Somerset, litoral oeste do Reino Unido. O artista de rua Banksy, que mantém sua identidade anônima, é o responsável pela empreitada – cujo título resulta de um jogo de palavras envolvendo Disney e o adjetivo dismal (“sombrio”, em português). Para visitar o local, pagam-se três libras (cerca de R$ 16). O grafiteiro e ativista político avisa, no entanto, que é “um parque temático familiar inadequado para crianças”. (Marina Moura)
Os Estados Unidos são conhecidos por serem um país de política neoliberal e capitalista, onde até mesmo Obama, presidente eleito do partido democrata, se dobrou ao conservadorismo. Imaginem a surpresa quando Lawrence Lessig, um dos principais ativistas da cultura livre e do Creative Commons, lançou sua canditatura à presidência levantando a pauta de reformas radicais. Lawrence está realizando sua campanha sob o discurso de que os EUA enfrentam uma profunda crise democrática por causa do financiamento privado das campanhas dos presidenciáveis. Por conta disso, ele iniciou a sua com financiamento independente para concorrer nas eleições pelo partido democrata, explicitando as contradições no processo eleitoral estadunidense. (Victória Ayres)
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 1
COLAGEM: MANUELA DOS SANTOS
CON TI NEN TE
CAPA
MÚSICA PERNAM BUCAN TTMM A
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 2
Dez de vários artistas pernambucanos estão agora divulgando seus novos discos. Embora sejam recémlançados, estão recebendo excelente repercussão do público e da crítica. Esse retorno é consequência de um trabalho que não começou hoje, mas que vem de uma longa formação. Também indica que a criatividade está conseguindo superar os entraves do mercado e gerar produção e patrimônio artístico. nas mais diversas linguagens musicais. Nas próximas páginas, abordamos a carreira de uma dezena dos profissionais da música pernambucana, que lançaram discos por esses dias: Alessandra Leão,D Mingus, Eddie, Graxa, Johnny Hooker, Lirinha, Matheus Mota, Siba, Zeca Viana e Zé Manoel. TEXTO Débora Nascimento
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 3
CON CAPA TI NEN TE
SIBA O caminho ao posto de mestre
Ex-integrante do Mestre Ambrósio e do Fuloresta do Samba firma-se, com seu segundo disco solo, De baile solto, como um dos melhores compositores de sua geração TEXTO Débora Nascimento
O primeiro som que se escuta nos dois álbuns solo de Siba é o de uma guitarra. Em Avante, de 2012, a aparição dela causou estranheza em quem estava acostumado a ver o artista encostar uma rabeca no ombro esquerdo por quase duas décadas. Agora, em De baile solto, o instrumento ícone do blues e do rock segue com força nos arranjos do músico e, dessa vez, mais a serviço de gêneros tradicionais nordestinos, como o protagonista desse álbum: o maracatu de baque solto. Surgido em Pernambuco, no século 19, o ritmo vinha sendo tratado como uma peça de museu, ganhando visibilidade somente no período carnavalesco. Nos anos 1990, assim como ocorreu com outras expressões da música popular pernambucana, o baque solto passou a receber mais atenção, principalmente após virar alvo do interesse de jovens artistas como Siba e Chico Science, que tornou icônica a vestimenta do caboclo de lança no videoclipe da sua versão de Maracatu atômico, de Jorge Mautner.
Letras de Siba trazem influências da poesia popular, do repente, das toadas de cavalomarinho e da música popular brasileira Em meados daquela década, Siba já havia deixado de lado a guitarra, o instrumento que o fez querer seguir, aos 14 anos, a carreira musical. O contato com o cavalo-marinho tinha despertado nele a vontade de tocar rabeca, que acabou se transformando numa espécie de emblema do músico, junto às roupas coloridas, chapéu e bigode – bem ao estilo dos mestres dessa manifestação. Mas, em 2012, ele surpreendeu todos ao deixar de lado essa indumentária e a rabeca, cuja execução já dominava. O retorno à guitarra, segundo o artista, foi árduo, exigiu um reaprendizado. No entanto, esses dois discos evidenciam que o regresso teve uma inesperada aliada, a bagagem
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 4
adquirida com os ritmos oriundos dos folguedos pernambucanos. O seu cuidadoso manejo do instrumento, exibido nesses dois últimos álbuns, mostra que essa redescoberta não o fez refém de clichês. Siba usa a guitarra ao modo dos africanos, dos paraenses, como Mestre Vieira, dedilhando as cordas com zelo, criando belíssimos fraseados que surgem, envolvem e acabam por conduzir as músicas, levando-as a alcançar momentos sublimes, como em Três carmelitas. A faixa é, também, um dos exemplos de sua apurada técnica de letrista. Ele consegue mesclar a experiência da poesia popular, do repente, das toadas do cavalomarinho e das letras da música pop e popular brasileira, exibindo domínio de estrofes e rimas, algo evidenciado nas nove composições do álbum, que inicia com o discurso anticapitalista de Marcha macia, uma crítica à aceitação passiva da engrenagem social movida em torno do dinheiro. Com De baile solto, Siba lança um manifesto poético, paradoxalmente atual e anacrônico, de licença à
JOSÉ DE HOLANDA/DIVULGAÇÃO
1 DE BAILE SOLTO Disco tem maracatu rural como fio condutor
1
utopia, mas que necessariamente relembra à plateia e aos próprios artistas o sentido e o objetivo da arte autêntica, profundamente distinta das ambições pecuniárias da indústria do entretenimento. De canto declamado, cheio de orgulhoso sotaque nordestino, permeado por reflexões e lirismo, aquele jovem Sérgio Veloso dos anos 1990, hoje aos 46 anos, se tornou um trovador idealista, um mestre obstinado nas suas convicções, tal como foram os papas do folk Woody Guthrie e Pete Seeger.
Essa música popular oriunda das brenhas, sejam do Brasil ou do mundo, que costuma ser tratada como “folclore”, encontra no músico diálogo possível e produtivo com variados ritmos e instrumentos, como a já citada guitarra influenciada pela sonoridade do Congo, que destila beleza em faixas como a maravilhosa ciranda Mel tamarindo.
PROJETO PESSOAL
Além das duas guitarras (ele e Lello Bezerra), a sua concisa e eficiente banda é formada por bateria (Antonio
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 5
Loureiro), percussão (Mestre Nico) e tuba (Leandro Gervázio), que ocupa perfeitamente o lugar do baixo – herança adquirida na Fuloresta, grupo formado em 2002 por ele e instrumentistas de Nazaré da Mata, com os quais lançou dois discos e realizou quatro turnês europeias entre 2004 e 2009. Canções como Mel tamarindo e Meu balão vai voar nos fazem recordar que outros artistas já realizaram intercâmbios sonoros, a exemplo de Paul Simon em Graceland (1986), que inaugurou a expressão world music – rótulo que caberia a Siba no exterior. Entretanto, ao contrário do cantor norte-americano, o pernambucano assume a música da cultura “alheia” não somente como influência passageira de um ou outro álbum e, sim, como uma escola, um projeto pessoal e artístico. Esse contato começou em tenra idade, devido aos familiares naturais de cidades do interior do estado e por ter vivido a infância em Olinda, lugar que aglutina diversas expressões populares, independentemente do período carnavalesco. Se o début solo, Avante, angariou uma recepção tão positiva, tendo algumas faixas virado hits de sua carreira, como Ariana, Preparando o salto, Qasida e Brisa, agora, De baile solto cumpre bem a sina do “segundo disco”. Realizada propositadamente sem verbas de lei de incentivo, a obra acabou sendo produzida pelo próprio Siba, que, no anterior, teve o guitarrista Fernando Catatau como coprodutor. O resultado: De baile solto soa mais cru, incisivo e pessoal. Em entrevista à Continente (leia a seguir), na qual fala sobre a carreira, o mercado musical e o segundo álbum, o artista deixou escapar uma autocrítica que denuncia a alma de um perfeccionista: “Quem entra fundo na escuta, desmascara um produtor improvisando um disco de não produtor, meio bruto, meio tosco e, nesse sentido, muito próximo da selvageria do baque solto”. Com tanta música pasteurizada e padronizada por aí, isso está bem longe de ser algo ruim.
CON CAPA TI NEN TE JOSÉ DE HOLANDA/DIVULGAÇÃO
Entrevista
SIBA “O ARTISTA DEVE LUTAR CONTRA AS ARMADILHAS DA DEPENDÊNCIA” CONTINENTE Por que a decisão de fazer De baile solto por conta própria, sem lei de incentivo? De que forma isso interferiu no processo de realização do disco? SIBA Foram vários os motivos. O principal foi um certo incômodo com a posição central que o financiamento acabou ocupando na produção independente de música no Brasil. Assim, desde o início do processo de produção, fui adiando e resistindo à ideia de me render aos editais. Mantive o foco no processo criativo, ao mesmo tempo em que tentei formular um projeto realizável com pouca grana. Na hora de fazer o disco, não tinha dinheiro suficiente, mas estava rodeado de gente altamente envolvida e o projeto está se pagando aos poucos com orgulho e dignidade. Não sou contra o financiamento público para a cultura, pelo contrário, em muitos momentos foi muito importante ter acesso a isso no desenvolvimento de meu trabalho, mas acho que o artista deve lutar contra as armadilhas da dependência. CONTINENTE Você considera que os lançamentos estão atrelados a esse calendário de financiamento? SIBA É claro que uma agenda de financiamento acaba induzindo a de produção. Vivemos, até recentemente, uma longa temporada de facilidade, de muita oferta de patrocínio e isso, de alguma forma, acabou dominando o horizonte de possibilidades de articulação e iniciativa. No caso da vasta produção musical que fica de fora dos padrões restritos das rádios e TVs, parece-me que ficou fácil produzir, mas continua difícil circular de forma independente, numa escala maior. E a promoção, apesar de facilitada enormemente pela internet, nem sempre consegue expandir a visibilidade de um projeto de um modo proporcional ao seu potencial.
CONTINENTE Isso tem a ver também com a frase que colocou no seu site:“negar ao dinheiro o lugar central que lhe permitimos ocupar em nossas vidas”? SIBA Uma das ideias centrais do disco é o questionamento do desenvolvimentismo a todo custo como valor central, como meta pessoal e social. O fato de não podermos parar tudo e saltar fora do capitalismo com o qual estamos todos comprometidos em algum nível não deve nos impedir de pensar alternativas, mesmo que pequenas. Nisso, eu acho que as culturas populares e as chamadas comunidades tradicionais têm muito a nos dizer. Em relação ao disco, tê-lo feito dessa forma foi coerente com o que o seu discurso propõe. Não fiz o disco sem patrocínio para poder falar dessas coisas, mas o discurso do disco ganha força sem a logomarca de uma empresa, um governo de estado, um ministério da cultura.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 6
CONTINENTE O seu disco foi direto para download gratuito. Você não acredita mais nas vendagens de discos físicos? SIBA A vendagem de disco físico funciona bem para mim. Nossa loja virtual não para nunca. Depois do show, que é um momento especial de contato do público com o artista, acontece uma coisa muito gratificante, que é presenciar, nas pessoas, o prazer de levar para casa um disco que tem a ver com uma apresentação ao vivo que acabou de gerar um estado de espírito diferenciado nelas. Vender disco é um negócio pequeno, um dinheiro “pingado”, mas de retorno bom. A disponibilização para download é importante porque potencializa a escuta da obra de um jeito infinitamente mais rápido e abrangente, pois as pessoas baixam, ouvem, compartilham e multiplicam o seu alcance. Quem gosta de comprar disco não deixa de fazê-lo só porque
cabeça dos nossos representantes. O consolo é o espaço múltiplo da internet que sempre traz, ao menos potencialmente, a chance de novas estratégias a cada dia. CONTINENTE Avante era mais confessional e De baile solto, digamos, mais político. Isso foi intencional ou retrata o momento que está vivendo? SIBA Avante foi um retrato de pessoa fragmentada, que olha para si e tenta recompor um todo qualquer. De baile solto é um quadro incompleto de alguém que olha ao redor e tenta dar conta da complexidade que o rodeia. O ponto de partida é a recente história de perseguição policial aos maracatus da Mata Norte de Pernambuco, um acontecimento local, mas de grande significado simbólico, por reunir temas como políticas de segurança pública e racismo, discriminação, controle e manipulação dos modos de
“O baque solto tem em comum com o rock os elementos expressivos que são marca da diáspora africana” baixou. E quem não compra não vai comprar mesmo, mas pode ouvir. CONTINENTE Você, que está no mercado há mais de 20 anos, como o avalia hoje? SIBA Eu, que venho dos anos 1980, quando fiz a opção de risco de ser artista, de viver a partir do meu próprio trabalho, posso dizer que vivemos um momento de muitas possibilidades, pois nos anos 1980 era loucura se assumir artista e viver da própria obra. Mas é impossível não notar que não conseguimos estabelecer um mercado realmente independente e sustentável para a música, depois de tanto tempo. Ainda está por vir uma política para a cultura que, no caso da música, fomente o empreendedorismo e não a dependência de patrocínio. Para a cultura popular, a coisa é ainda mais complicada, pois esta ocupa uma posição indigente na
organização populares, apropriação do “patrimônio imaterial” popular por parte do Estado. No momento do ápice desenvolvimentista pernambucano, a forma de expressão cultural mais autêntica da população mais pobre sofreu a pressão restritiva mais forte da sua história conhecida. CONTINENTE Li que você considera haver no maracatu de baque solto uma postura rock’n’roll. Gostaria que discorresse sobre isso. SIBA O baque solto tem em comum com o rock os elementos expressivos que são marca da diáspora africana: música, dança, poesia, teatro e artes plásticas conectados num todo indivisível, ritmo, intensidade, gosto pela distorção e volume alto, presença corporal, incorporação do ruído e do grito etc. Comparando o baque solto com o rock, tento estabelecer uma conversa que, de outro modo, vai ser guiada por referenciais pejorativos
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 7
como folclore, raiz e, mesmo, cultura popular. Curiosamente, quando levei pessoas da Europa, dos EUA ou do Japão a um terreiro de maracatu, muitas vezes músicos ou artistas de longa estrada, fui testemunha da possibilidade de leituras mediadas por um conceito de tradição que não pressupõe o “perdido no passado”. No Brasil, tradição só ocupa o presente se for blues, soul, jazz… CONTINENTE Percebo que há poucos artistas da nova geração que recebem essa influência da cultura popular pernambucana. O que acha disso? SIBA Eu não vivo fazendo essa conta e acho que as pessoas não têm que se obrigar a se referenciar na cultura popular. Mas não posso deixar de pensar que ignorar totalmente o que acontece nos subúrbios do Recife ou no interior do estado demonstra uma boa dose de arrogância, desprezo, ignorância e preguiça, porque esses modos de expressão locais têm uma força tão grande na constituição do lugar, que é inimaginável pensá-lo sem a presença deles. Assim, acabo achando sempre que falta alguma coisa em quem desenvolve um trabalho artístico em Pernambuco sem levar em conta, no mínimo, o incômodo que sente ante a vitalidade da cultura popular. CONTINENTE Você acredita que, de alguma forma, está conseguindo quebrar o preconceito que as pessoas tinham ou têm em relação à cultura popular? SIBA Quem tem realmente preconceito preza por ele e o cultiva. É um tipo de ilusão de superioridade que está muito relacionado ao racismo velado à brasileira, esse que “não existe” e que é a base para quase todos os modos de segregação que cultivamos há séculos como coisa natural. No caso da cultura popular, acho que precisaríamos começar banindo todo um vocabulário de palavras pejorativas como folclore, raiz, manifestação e até mesmo cultura popular, para, quem sabe, oferecer um lugar mais digno a cada uma dessas tecnologias sociais e artísticas que tanto têm a oferecer a um país que se afunda cada vez mais em seu sonho de enriquecer, esterilizando tudo ao seu redor. DÉBORA NASCIMENTO
CON CAPA TI NEN TE
EDDIE Mais adulta e cosmopolita
DIVULGAÇÃO
Banda aprofunda questões políticas em 6º disco, envolto em pop, surf music, frevo e samba TEXTO Bruno Nogueira
Poucos períodos na vida são tão
simbólicos quanto o primeiro quarto de século. Com 25 anos, não somos mais adolescentes, mas ainda não embarcamos totalmente na vida adulta. Estamos na linha tênue entre a diversão e responsabilidade, em um dos momentos mais definitivos na formação de nossa personalidade. Ao chegar em um quarto de século, a banda Eddie representa bem essa dicotomia: a responsabilidade de ser uma das bandas que melhor traduzem a cultura jovem pernambucana hoje e a vontade de reinventar seu próprio espírito de diversão no palco. Morte e vida, sexto disco da banda, carrega de forma bem evidente esse embate nas entrelinhas de suas 11 faixas. É o momento “pós-punk” do grupo formado por Fábio Trummer (voz e guitarra), Alexandre Urêa (voz e percussão), Andret Oliveira (trompete, teclado e samplers), Rob
Meira (baixo) e Kiko Meira (Bateria). Mais grave – e soturno – e andamento mais cadenciado – e sóbrio – que os anteriores Veraneio, Carnaval no inferno e, principalmente do Original Olinda style que deu a dimensão de artista que eles carregam até hoje. Nesse trajeto, a Eddie apresenta um de seus discos mais cosmopolitas até agora. Queira não abre o repertório desafiando os estereótipos tidos pela música pernambucana e assim segue já num ápice na ótima Carnaval de bolso, terceira na sequência de canções do disco. Trummer traduz seus 10 anos de residência em São Paulo em uma canção que redimensiona a festa popular num universo de referências que fala muito mais do Brasil que de Pernambuco, ou mesmo de Olinda. Daí em diante, Morte e vida segue num crescente com o viciante dueto Longe de chegar, com a cantora Karina Buhr até a última Olho você, que fecha uma
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 8
embalagem de referências ao pop, frevo, surf music e samba. Com isso, a banda conseguiu chegar em um álbum que parece dialogar com dois públicos distintos. São músicas que, no andamento mais rápido de uma apresentação ao vivo, prometem uma energia mais pujante ao tropicalismo de canções passadas, garantindo diversão ao vivo, ao mesmo tempo que o ouvido mais reservado e atento vai encontrar letras que mostram o que é certamente o momento mais politizado da Eddie. Falam de desapego, de violência e de Deus, em uma montanha-russa que vai da melancolia à euforia, comuns ao processo de amadurecimento de uma vida que se torna menos jovem e mais adulta. É nessa postura mais política que encontramos a melhor parte do amadurecimento da Eddie. Fábio Trummer consegue falar sobre a desilusão urbana e de um cotidiano
mais sofrido sem ser literal, sempre fazendo jogos de palavras, em versos como “quantas pedras bastarão para calejar as flores?” de Pedrada certeira, outra parceria com Karina Buhr. O polimento mais cru e com maior diálogo com o rock de Morte e Vida vem na masterização final de Fernando Sanches Takara, do CPM22, que já assinou a produção de discos do Ratos de Porão e é integrante de uma das principais famílias de produtores e músicos de São Paulo, junto com o irmão Maurício Takara. Valendo-se do inevitável bordãoclichê, a pedrada certeira de Morte e vida está na obra a que faz referência: Mortevida, um mural de colagens, somando diversas referências dos grafiteiros Alberto Lizarazo e Mozart Fernandes. Cada faixa é um objeto ora estranho, ora harmônico em um conjunto que representa o processo e a jornada da Eddie até aqui.
“O palco é parte vital da sobrevivência na música; estamos dando atenção especial a ele” Fábio Trummer OUTRAS NUANCES MUSICAIS
“A ideia era tentar não se repetir”, explica Trummer, autor de quase todas as músicas. “Coisa bem difícil de se conseguir quando a banda é a mesma”, diz o músico, afirmando que nesse álbum o grupo trava um diálogo maior, de fato, com outras pessoas. Em termos sonoros, Trummer explica: “Tiramos o baixo reggae da frente da canção, o que nos aproximou de uma sonoridade do rock dos anos 1980, para não ficar caracterizado apenas com uma banda ‘original Olinda
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 2 9
style’, que escondia outras nuances da nossa música. Queria sair desse estereótipo, que nós mesmos criamos e que estava limitando nossa música”. Essa fuga não é apenas de antigos, mas de novos rótulos. “Morte e vida é um disco de música popular urbana brasileira”, conta o músico, que prefere não se ancorar em denominações como o “surfrevo” que tem sido usado para falar da música da Eddie. “Nossas canções refletem as diferenças culturais de nosso país. Não temos medo de usar essa miscelânea a nosso favor. Nosso som é uma mistura de classes e de cores”, completa. Trummer contou ainda que, na atual fase da banda – com uma agenda de shows que nunca esteve tão forte como nos últimos cinco anos –, a experiência ao vivo acabou pautando seu processo criativo. “O palco é parte vital da nossa sobrevivência na música e temos dado atenção especial a essa questão, então este é sem dúvida um de nossos álbuns que têm mais músicas de show”, conta o vocalista, que disse ter feito ainda uma demo ao vivo, para que todos os arranjos fossem definidos juntos, enquanto nos discos anteriores essa era uma etapa definida apenas na hora e de acordo com a gravação. O viés mais politizado, ele explica, vem da postura da banda que precisa conviver entre limites de política e arte, para poder, por exemplo, se apresentar no Carnaval do Recife e Olinda. “Prefiro não tocar mais em lugar nenhum do que ter que ocultar minha posição política em relação à minha classe artística e ao meio cultural”, conta, lembrando o episódio do Carnaval de 2015, quando a banda foi excluída da programação de Olinda por cobrar publicamente da prefeitura o pagamento do cachê aos artistas da cidade. Por fim, com Morte e vida, Trummer espera conseguir abrir novos diálogos com artistas com quem a banda não tem ainda uma relação. “Vejo a música como um organismo que podemos vestir com qualquer roupa. Sendo assim, adoraria ver artistas de frevo se descaracterizando para fazer outros gêneros, cantando outros mundos”, provoca, numa expectativa de, no futuro próximo, ter também mais parcerias internacionais em suas canções.
CON CAPA TI NEN TE
LIRA O peso da palavra, do declamador ao cantor
ANDRÉ VIEIRA/DIVULGAÇÃO
Segundo disco solo de José Paes de Lira, O labirinto e o desmantelo aponta o zelo à letra também como vetor de interpretação TEXTO Carlos Gomes
A palavra na música de Lira é
mais pesada que o som. Por peso, não quero dizer que o som seja de alguma forma negligenciado ou que só exista em função desta palavra deformada, transformada, desviada da rota, em suma, como poesia. Se as primeiras histórias sobre José Paes de Lira são todas carregadas pela força da oralidade, performance e muitas, muitas palavras deformadas com as quais acostumamos a nos assombrar diante da presença do extinto grupo Cordel do Fogo Encantado, do qual ele fez parte, hoje, a catarse que antes se impunha como presença e gestual está contida no lugar silencioso da canção. “Esses discos me refizeram como intérprete também. Deram-me um trabalho novo para entoação das palavras e revelaram um compositor independente da presença no palco.” A canção dos seus dois primeiros discos sob a assinatura Lira é transformada pela expansão que a sonoridade, harmonia, melodia, timbres, texturas oferecem ao texto que ele canta, muito mais como cantor do que como poeta. No entanto, enquanto o cantor é presença, o poeta transparece entre algumas frestas do que chamamos “letra de música”. Corpo, cabeça, ouvidos, cabelos, olhos, lábios, dedos, são algumas das imagens que Lira evoca
“Esses discos revelaram um compositor independente da presença no palco” Lira para cantar se dirigindo ao outro. Para o corpo a que se canta há sempre um desejo sobre o outro que devaneia. “(Ah) o que sobrou (do) amor? / (Vou) desamar”, da canção Desamar, em que coro e voz soam como lamentos que se aproximam. Os sons que permeiam o disco tratam de manter ambiências mais límpidas, por onde os versos de Lira transitam mais à vontade. “Sinto que faço hoje o meu maior mergulho no mundo da canção. Meus dois discos solos são obras cancioneiras, principalmente, num contexto histórico em que foi anunciado por críticos de música brasileira a morte da canção. Sei que não morreu porque não acredito na morte das coisas e, sim, na transformação.” Composto quase sempre em parceria, com nomes como Pupillo, Vitor Araújo, Céu, Astronauta Pinguim, Junio Barreto, Bactéria e Guri Assis Brasil, as canções de O labirinto
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 0
e o desmantelo aprofundam a relação de Lira com a forma canção, quando se dá o encontro preciso entre letra, harmonia, melodia e ritmo. Não há relações de hierarquia tão claras como havia anteriormente em outras de suas músicas, sobretudo no período do Cordel do Fogo Encantado. A produção musical de Pupillo cria quase um lugar de coautoria estética para a música que Lira tem produzido desde que saiu do Cordel. Naturalmente, fruto de muitas conversas, troca de experiências, influências mútuas e, certamente, tensões criativas das mais diversas, as que envolvem a construção da identidade das canções e sonoridade de Lira nesses seus dois primeiros discos solo.
TEXTURA COESA
Especificamente sobre este último trabalho, os músicos convidados, muitas vezes também como arranjadores, se firmam com seus timbres e soluções criativas como sonoridade e, ao mesmo tempo, quebras, desvios, surpresas. Assim, entre eles, destaco os violões de Guri Assis e Regis Damasceno, a guitarra de Neilton e a voz da cantora e compositora Céu. O disco ainda conta com Thiago França e vários dos coautores das canções também tocando em algumas das faixas. Por labirinto – a sonoridade do disco trata de deixar a voz de Lira pairando acima dos outros sons, sobretudo pelos arranjos pontuados
a partir da produção de Pupillo. Com isso, cria uma textura coesa, clara, branca, por onde a voz pode moverse com maior nitidez. Nenhuma palavra do compositor Lira se perde entre os sons desse labirinto. Essa característica torna a sonoridade como que imagética, pois arranjos e texto parecem estar sempre em diálogo, como se um desse o mote e outro corresse atrás dos vestígios impostos pelas palavras, até que, no final, os dois, texto e som, pudessem se encontrar no que um sugere e o outro contrapõe, mas sem nunca esses contrapontos se tornarem previsíveis para quem ouve as músicas. A canção-título O labirinto e o desmantelo é um belo exemplo desse
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 1
jogo. O arranjo de violões, baixo e sintetizadores cria uma ambiência dramática que faz todo o sentido para quem ouve os versos: “Que lugar é esse labirinto/ desse nosso desmantelo”. A montagem da parte rítmica dos arranjos, mais comum para bateria ou percussão, é desenvolvida por Pupillo com stand-up drums, de forma mais concisa. Assistindo a uma apresentação ao vivo das canções do disco, vemos um outro baterista tocando de pé sem pratos, por exemplo, o que torna o arranjo mais seco e colabora com a textura mais homogênea presente nas canções. Já a presença dos sintetizadores e samples dão as nuances, os caminhos por onde os arranjos escapam, os que os diferenciam – o racional. Por desmantelo – assim como a palavra se comporta quando sai do uso ordinário para o extraordinário da poesia, a música pode se desfazer de seu lugar-comum da percepção do público, crítica ou mesmo dos próprios músicos, no modo naturalizado como enxergam o universo da canção, muitas vezes demarcada por territórios, fronteiras, regionalismos. As canções de Lira se enxertam dos variados lugares que a canção brasileira contemporânea tem percorrido, mas cada pele espessa que sua poética absorve, pela própria sobreposição de camadas, acaba por criar um lugar que é também possibilidade de labirinto, não estrada única, reta, mesmo que estejam ali todos os caminhos que nos façam dizer: isto é uma canção. Mas sendo o lugar um ponto cego em labirinto, é preciso muito mais que palavras sobre canções para refletirmos sobre os processos criativos que materializaram as suas palavras cantadas em um produto, disco, show, fonograma, comércio, mercadorias e futuro, como ele também nos diria. Desperdiçar um tempo no labirinto não é o mesmo que caminhar. Mesmo assim o fazemos. “Receio entregar minha interpretação do título do disco porque tudo que escuto de quem não criou é mais potente e certeiro do que minha ideia primeira. Mas o labirinto nasce do pensamento, da ordenação, da criação e o desmantelo é o devaneio” – o sonho.
CON CAPA TI NEN TE TIAGO LIMA E VANIA MEDEIROS/DIVULGAÇÃO
ALESSANDRA LEÃO Mergulho na produção Na trilogia Língua, cujo EP homônimo ganha lançamento neste mês, cantora e compositora realiza projeto de imersão pessoal TEXTO Maria Eduarda Barbosa
2
Foi num boteco em Olinda, o
Bar do Déo, que o acaso uniu cinco mulheres em torno da música. Elas já se conheciam de alguma forma. Alessandra Leão, Karina Buhr, Isaar e Renata Mattar. Também casualmente Telma César, que morava em Maceió, estava no Recife à época. Ali surgia a primeira formação da Comadre Fulozinha. Na verdade, a ideia de montar um grupo apareceu pouco tempo depois desse encontro, numa conversa entre Alessandra e Karina, que, junto a Renata, escolheram o nome da banda. Era 1997 quando a cantora, compositora e percussionista Alessandra Leão iniciava sua carreira musical. São 18 anos trabalhando, tempo sobre o qual ela brinca: “Estou na maioridade, já”. A artista de 36 anos nasceu no Recife, mas vive em São Paulo desde 2014. A mudança para essa cidade veio junto à produção de seu
novo projeto Língua, formado por três EPs: Pedra de sal, Aço e o terceiro, homônimo ao título da trilogia. O primeiro foi lançado em novembro do ano passado, o segundo saiu em maio deste ano, e o que encerra o ciclo tem lançamento neste mês. O trabalho surgiu de um mergulho de Alessandra, que vinha de cinco anos sem lançar disco solo. Mas, antes de falar sobre o recente projeto, vamos a um passeio pela carreira da artista. Ainda adolescente, Alessandra estudou teatro e começou a pesquisar caminhos para se aprimorar. “Então comecei a cantar e dançar.” A percussão sempre foi uma paixão. Assim que teve contato com o instrumento, surgiu a ideia da Comadre Fulozinha. Uma amiga se tornou a produtora do grupo e os shows agendados incluíram apresentação no Abril pro Rock. “Toda a energia do teatro eu comecei a voltar para a música.”
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 2
Em 2000, Alessandra deixou a Comadre por motivos pessoais. “Meu filho estava bem pequeno e achei que deveria trabalhar com outra coisa, com a família. Depois voltei a tocar e a trabalhar com música”, afirma. A amizade entre ela e as outras integrantes continua e, embora a artista possua uma sonoridade diferente da que era feita no grupo, a cultura popular se mantém viva em seu trabalho. “Acho que tem uma essência ali, ainda. Essa música de rua continua sendo uma referência muito forte.” Quando retornou à música, Alessandra chegou com o ótimo Brinquedo de tambor, trabalho solo lançado em 2006, que a revela compositora. O álbum conta com produção e arranjos feitos por Caçapa, violeiro, compositor e arranjador. Alessandra e o músico se conheceram em 1997, no grupo de maracatu de baque solto Boizinho Alinhado. A parceria profissional entre
2 LÍNGUA EP que carrega influência da cultura popular encerra trilogia da cantora
Alceu Valença da década de 1970. O pai do guitarrista foi parceiro de Alceu em trabalhos como Morena tropicana. Além dos shows, Alessandra pretende lançar CD do Punhal em 2016. Motivações pessoais, financeiras e de relação com o público fizeram Alessandra tocar para a frente o projeto da trilogia de EPs. “A gente chegou aqui no ano passado e não tinha grana para fazer um disco. Em paralelo a isso, eu e Caçapa já vínhamos conversando sobre outras formas de lançar pelo selo (Garganta Records)”, conta a artista. “Acho que a gente precisa fazer vários mergulhos ao longo da vida. Não é um só, nem um mais intenso que o outro. Acho que são vários”, explica. Pedra de sal é a preparação, a tomada de ar para a descida, e trabalha a relação dos outros com os espaços. Aço é quando o mergulho acontece. “É a parte mais densa, visceral, mais conceitual e autocentrada, digamos assim.” E Língua
Junto a Caçapa, Alessandra criou o selo Garganta Records, que possui oito títulos lançados, nove com o EP Língua os dois começou em Brinquedo de tambor. “E a partir daí a gente não parou mais”, conta Caçapa. Atualmente, além de trabalharem juntos, eles estão casados. Em 2008, Alessandra lançou o disco Folia de santo, produzido e idealizado pela artista. O projeto surgiu antes mesmo do lançamento do primeiro disco solo e dialoga com músicas populares que fazem referências à devoção. Um ano depois, Alessandra lançou seu álbum solo Dois cordões, e agora dá seguimento à finalização da trilogia Língua. Junto a Caçapa, Alessandra criou o selo Garganta Records, que possui oito títulos lançados, nove com o EP Língua. A artista conta que a ideia surgiu do anseio de maior autonomia para a produção. “A criação de um selo proporciona isso, essa estrutura, essa formalização”, ressalta. Ao lado de Rafa Barreto, guitarrista da banda que a acompanha nos shows, Alessandra mantém o projeto Punhal de Prata, no qual interpreta o repertório de
é o retorno dessa imersão, pois trata de partes mais externas do corpo. Ao ouvir os dois primeiros EPs da trilogia Língua, é possível acompanhar a tomada de ar e o mergulho de Alessandra. Em Pedra de sal, o timbre forte da artista se une aos arranjos bem-elaborados, porém mais leves em relação a Aço. No primeiro EP, as músicas anunciam a preparação para o mergulho. Nele, a guitarra torna-se protagonista, ao lado da voz marcante de Alessandra. Já a percussão, sempre presente na musicalidade da artista, ganha toques mais leves. Nas cinco músicas, é possível sentir o caminho traçado até acontecer o mergulho. A primeira música faz referência à Iemanjá, enquanto a faixa-título chega com mais ousadia vocal e sonora, trazendo em seu fim a primeira tomada de ar. Em seguida, os acordes anunciam a participação de Kiko Dinucci, que também canta ao lado de Alessandra.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 3
Em Tatuzinho, não encontramos a percussão, apenas as suas vozes, que assumem um ritmo mais intimista ao lado da guitarra. O ritmo emenda com os efeitos eletrônicos de Mofo, próxima música do EP, cuja sonoridade é mais densa. Em Devoro o lobo, última música de Pedra de sal, também com participação de Kiko Dinucci, Alessandra alcança seu ponto alto vocal na primeira parte da trilogia, em uma canção repleta de ruídos e efeitos combinados ao timbre da guitarra. Aço começa visceral, mais denso, com ruídos, acordes dissonantes e elementos percussivos. Na trilogia, a bateria é pensada como percussão, com timbres que remetem à sonoridade da música do Congo, uma grande referência para Alessandra. Em Mergulho, segunda música do EP, a ciranda se mistura às guitarras, com participação de Odete de Pilar, coquista e cirandeira da Paraíba. Aço segue com Prolonga e Acesa, uma parceria entre Alessandra, Kiko Dinucci, Rafa Barreto e Missionário José, continuando com Mergulho, na qual a artista canta: “cada tropeçar/ cada levantar/ deixa a pele se romper/ nado pra correr/ rasgo pra me ver”. E isso foi exatamente o que ela fez, recriando-se com autonomia e experimentações criativas. O EP finaliza com a volta de Odete de Pilar em Foi no Porão, na qual fica claro que a influência da cultura popular permanece no trabalho de Alessandra.
FICHA TÉCNICA DA TRILOGIA LÍNGUA Percussão e voz: Alessandra Leão Percussão: Mestre Nico Bateria: Guilherme Kastrup Guitarras: Rafa Barreto e Caçapa Baixo: Missionário José Direção artística: Alessandra Leão Produção musical: Caçapa Codireção artística: Luciana Lyra Gravação, mixagem e masterização: YB Studios (SP) Técnicos de gravação: Carlos “Cacá” Lima e Pedro Vini Técnico de mixagem e masterização: Carlos “Cacá” Lima Participações especiais: Juçara Marçal e Sandra Ximenez (Pedra de Sal), Odete de Pilar (Aço), Ná Ozzetti (Língua) e Kiko Dinucci (trilogia)
CON CAPA TI NEN TE
ZÉ MANOEL Talento lapidado pelo piano clássico
ELVIO LUIZ/DIVULGAÇÃO
Compositor, cantor e pianista lança, neste ano de consolidação de carreira, seu segundo álbum, o já aclamado Canção e silêncio TEXTO Marina Suassuna
Novos Músicos Quando lançou seu primeiro EP
homônimo, em 2012, Zé Manoel impressionou muita gente pelo requinte de suas canções, executadas no piano com a desenvoltura e o lirismo de um mestre da música popular brasileira. A surpresa do público também se deu pela afinidade do pernambucano, de apenas 31 anos na época, com uma seara musical ainda carente de jovens adeptos em Pernambuco: a música erudita. Suas harmonias carregam a cultura adquirida pela formação em piano clássico durante 10 anos, que inclui conhecimento de compositores como Heitor VillaLobos, Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Tom Jobim. A graduação em Música pela UFPE, somada à experiência de tocar na noite e em cruzeiros, lapidou ainda mais a linguagem adotada por Zé Manoel. Este ano, além de consolidar seu trabalho nacionalmente em shows pelo sudeste do país, o músico pernambucano deu mais um passo importante em sua carreira. Graças à aprovação no edital da Natura Musical 2013, conseguiu lançar seu primeiro CD (segundo registro da carreira), intitulado Canção e silêncio. O edital permitiu ainda que Zé Manoel reunisse, no mesmo álbum, dois dos
produtores mais requisitados do país, o gaúcho Carlos Eduardo Miranda e o carioca Kassin, que contribuíram bastante para a identidade do álbum. Kassin não só ficou a cargo da produção adicional de bases, como também assumiu o baixo nas gravações. “Além de tocar lindamente e escolher timbragens específicas para o disco, ele me ajudou a criar climas e dinâmicas para o piano. O caminho estético escolhido por ele e Miranda me surpreendeu positivamente. Foi um mergulho mais profundo no meu universo musical, uma redescoberta e ressignificação do meu trabalho”, ressalta o pianista. “Quando convidei Miranda para produzir o disco, isso causou estranheza a muita gente, pela história dele com bandas importantes de rock, além de ser uma figura importante na cena mangue da década de 1990. Mas eu queria exatamente alguém que não reverenciasse estruturalmente o que eu já vinha fazendo e que não tivesse receio de mexer, desconstruir. Alguém que trouxesse referências externas ao meu universo.” Além de acompanhar todo o processo de escolha do repertório, Miranda foi responsável por definir a sonoridade e a instrumentação do disco, que, além dele ao piano
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 4
e Kassin no baixo, contou com a presença luxuosa de Tutty Moreno, baterista com atuação em discos históricos da música brasileira, como Transa e Araçá azul, de Caetano Veloso; Expresso 2222, de Gilberto Gil; Cantar, de Gal Costa, entre outros.
CONCEITOS
De acordo com Zé Manoel, Canção e silêncio foi importante para desfazer velhos conceitos e reestabelecer novas conexões musicais-artísticas. Ele se refere, sobretudo, à revisão que fez de sua concepção acerca da canção romântica. “É inegável que uma das minhas referências é a música romântica, o bolero, o brega, samba-canção, o jazz balada,
a bossa nova. Mas sempre tive receio de adentrar mais esse universo já tão explorado e desgastado pela música brasileira. Tanto é que, inicialmente, eu reneguei a música que hoje dá nome ao disco. Uma música romântica, sem muitos arrodeios.” O disco conta com arranjos do maestro baiano Letieres Leite, do pernambucano Mateus Alves e do carioca Fabio Negroni, e têm as participações de Juliano Holanda (guitarra), Pupillo (bateria), do percussionista Johann Brehmer e da cantora pernambucana Isadora Melo. “No caminhar das gravações, todos foram me ajudando a aceitar melhor as diferentes formas com que o trabalho de um compositor
Músico estudou piano por 10 anos e compositores como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Tom Jobim pode se manifestar, sem censurá-las, fazer juízo de valor. Foi um processo libertador”, afirma. Durante a seleção para o repertório de Canção e silêncio, Zé Manoel deparou-se com a menção constante à água em suas composições. Nascido em Petrolina, o músico acredita que a inspiração vem de sua forte ligação
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 5
com o Rio São Francisco, e também da “simbologia da chuva no sertão, onde a água é quase um Deus”. Mas a água da qual o artista se banha neste trabalho é, sobretudo, a salgada. Aquela que “deposita sobre a areia cachos de estrelas marinhas”, como diz a canção O mar, parceria com o letrista Sérgio Napp. A relação que Zé Manoel estabeleceu com o elemento água como inspiração poética também inclui momentos de apreensão e desespero, quando um pescador da cidade de Olinda consegue fisgar, com sua rede, o próprio filho que havia desaparecido no mar, história real retratada na letra de Sereno mar. “Neste trabalho, estou quase o tempo todo à beira do mar, entre os mistérios, a beleza, as histórias de pescadores, as angústias de viver entre a vastidão solitária desse mar de água salgada e do lado oposto, o concreto frio e feio”, explica. “Porém, em alguns momentos do disco, visito Petrolina. Na prática, foram visitas reais. A música Água doce surgiu numa dessas idas em que o céu estava bonito para chover e lembrei o quanto essa sensação de pré-chuva é um estado de espírito no Sertão, um sentimento de paraíso, que só quem passa quase o ano todo sem ver chuva sabe como é.” Ao mesmo tempo, a chuva funciona como alegoria de pranto e lamento vividos pelo personagem da canção Cheio de vazio, que sai de madrugada pela Rua da Aurora, sem saber para onde ir. Para Zé Manoel, a presença da água não foi um prérequisito para a escolha das músicas, aconteceu naturalmente. “Percebi que tudo fazia muito sentido com o momento que eu estava vivendo. No Recife, vivo muito esse fascínio pelo mar. Este disco sou eu integrado, entregue ao Recife”, esclarece o músico, que trocou a cidade natal pela capital pernambucana em 2007. Prestar atenção às letras de Zé Manoel é enxergar paisagens tão universais quanto atemporais. Suas composições têm aparência de narrativa cinematográfica, não só pela potência visual, mas pela instrumentação clássica, que remonta a melodias elaboradas com picos de emoções peculiares às de uma trilha audiovisual.
CON CAPA TI NEN TE JUVENIL SILVA/DIVULGAÇÃO
Novos Músicos GRAXA Burilando as possibilidades do lo-fi TEXTO Guilherme Gatis
Enquanto você está lendo este texto, é provável que Angelo Souza esteja, agora mesmo, remoendo alguma ideia que vai virar música. Ou gravando cópias de lançamentos locais em fita cassete. Ou editando o áudio lo-fi de uma improvisação gravada de um celular. Ele pode, também, estar misturando blues com elementos do
samba, incorporando um músico americano que veio de zepelim para o Recife ou finalizando mais um capítulo de um livro que publica periodicamente na internet. Há ainda a possibilidade de ele estar passando a régua no fiado da oficina em que trabalha quando não está exercitando o seu alto potencial de criação.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 6
Dentre as várias personas e projetos tocados por Angelo, o Graxa é a alcunha que mais se destaca. O apelido faz referência à oficina, mantida por familiares e amigos, onde trabalha desde novo, seguindo os passos do avô Beraldo, já falecido – “o melhor mecânico do Jiquiá”, garante. Como Graxa, Angelo lançou dois álbuns: Molho, de 2013, e o mais recente, Aquele disco massa, que pode ser ouvido e baixado na internet e também está disponível nos formatos CD e fita cassete, em pleno 2015, uma forma pouco usual de circulação de músicas, ou, como gosta de dizer, um souvenir retrô. “Acho que o pior lançamento que se pode fazer de um disco é em cassete, mas, ao mesmo tempo, esse
é um formato que ninguém voltou a explorar ainda”, explica, adiantando que está em andamento o projeto de selo para, em parceria com outros artistas, lançar álbuns pernambucanos nesse formato. Um dos nomes listados no arranjo musical que uniu bandas e artistas de diferentes vertentes no que se convencionou chamar Cena Beto, Angelo participou da Insites e da Canivetes, além de tocar no grupo do amigo D Mingus, antes de lançar o primeiro disco solo. Como não tinha uma banda base, a parceria com D Mingus foi fundamental na produção de Molho. O álbum foi todo realizado num estúdio caseiro, utilizando programações midi para automatizar as sequências de baterias. A estreia de Graxa foi mais longe do que o próprio músico esperava, mais precisamente, para a República Tcheca. “O disco foi para a internet e um cara de Chapecó, que teve acesso às músicas, me disse que ia tentar um contato para prensar o álbum em vinil. Clênio Lemos, representante de uma empresa que nem existe mais, a Media for Music, ouviu o Molho e viabilizou o lançamento em vinil”, explica. O disco foi prensado no exterior e distribuído aqui no Brasil com boa resposta de público e crítica. Pode-se dizer que a circulação em vinil de Molho foi quase uma predestinação, já que Graxa disponibilizou os arquivos para download em duas pastas, assinaladas como lado A e lado B. “Eu pensei o Molho como um vinil, queria que a pessoa escutasse um lado e tivesse esse tempo entre trocar de uma pasta para outra, tal qual um LP. Apesar de usar esse conceito, não fazia ideia de como executar essa prensagem e foi uma surpresa grande quando rolou a oportunidade de fazer esse vinil”, lembra.
FORMAÇÃO SIMPLES
Entre o Molho e Aquele disco massa, Angelo ainda encontrou tempo para personificar o Biu Grease e gravar o Goodbye songs, um disco de blues com instrumentos e elementos de samba, uma forma que encontrou para homenagear o avô, trabalhando temáticas como despedida,
saudosismo e nostalgia, numa cadeia de histórias e personagens fictícios que repassam, por meio de canções, as tradições do bairro do Jiquiá, onde foi construída a primeira estação aeronáutica para dirigíveis da América do Sul. Não satisfeito, Angelo ainda editou e lançou o projeto Graxeboratha, que tem quatro volumes de gravações lo-fi, a maioria delas realizadas em um telefone celular. Duas músicas foram lançadas no formato de EP antes de Angelo, novamente Graxa, concluir Aquele disco massa. Eu não Kiss e Soul socialista foram inicialmente produzidas no mesmo processo de home studio, com programações para as baterias. Ele não gostou do resultado e veio então a vontade de trabalhar o próximo álbum com uma banda – é aí que entram Rama Om (guitarra) e Tiago Marditu (bateria), além de Adriano Leão, que mixou e masterizou o disco e hoje faz
Entre o Molho e Aquele disco massa, há o Goodbye songs, um disco de blues com instrumentos e elementos de samba parte da banda que está divulgando o Disco massa pelo Nordeste. “Queria que o álbum reproduzisse a mesma atmosfera do show, por isso optei por uma formação mais simples, de modo que o que você escuta em casa é basicamente a mesma sonoridade que você vai ouvir ao vivo.” Apesar de trabalhar na divulgação e shows do Disco massa, o próximo álbum está em processo de criação – e já tem nome e data para ir para a rua. Puto será um disco duplo com show de lançamento agendado para 17 de janeiro, data do aniversário de Jorge Mautner. “Escolhi essa data para homenagear Mautner, que é o principal puto da música brasileira.” Cada disco vai trabalhar duas dimensões diferentes do termo. “Num, a temática principal é o ser puto e, no outro, é o estar, o que deixa a pessoa com raiva, o que te deixa puto.”
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 7
O RUOCK D’AQUELE DISCO MASSA Toda essa proatividade de Angelo/ Graxa pode sugerir um raciocínio difuso e pouco coeso, mas é justamente em Aquele disco massa que ele condensa o melhor das suas criações. Se em Molho o músico optou por falar de questões pessoais, como tédio do final da tarde de domingo, no segundo álbum, em 12 faixas, aborda temáticas relevantes e atuais, como o mea culpa masculino ao movimento feminista da música Marcha das vadias. Críticas e ironias relacionadas às cenas musicais e a política cultural de Pernambuco também se fazem presentes. Sou socialista, lançada antes do acidente que vitimou o ex-governador Eduardo Campos, ironiza o famoso jantar que o político ofereceu aos cineastas em 2013. A introdução instrumental d’Aquele disco massa dá a deixa para outro elemento fundamental da obra: as guitarras em fuzz e a bateria marcada, acompanhando os riffs, denunciam que nas próximas 11 faixas são elas, as guitarras, que terão seu lugar de destaque. A ideia de fazer o disco soar como uma apresentação ao vivo funciona e o uso de elementos setentistas nos timbres, além das distorções, fazem de Aquele disco massa um álbum de ruock, termo criado pelo próprio músico para tentar definir, a partir da reapropriação desse termo, já cansado, a sonoridade peculiar do seu trabalho.
A julgar pela velocidade das ideias de Angelo, é muito provável que, antes mesmo de canalizar a raiva de Graxa, o músico reapareça com mais alguma persona – e a julgar pelo que já vem apresentando, quanto mais Angelo botar para fora o que circula na sua cabeça, essa verdadeira oficina de ideias, melhor.
CON CAPA TI NEN TE DIVULGAÇÃO
tendo um lado A e um lado B, em que a primeira parte teria um tom mais interiorano e a segunda traria um som mais urbano. Porém, com o andar das coisas, este último prevaleceu e podemos dizer que o lado A terminou com menos canções. O fato de esse trabalho ser o mais solto do artista influenciou até na arte do disco, criada por Matheus Mota, músico local e contemporâneo de Domingos. O nome do disco se refere a um aspecto astrológico que carrega de loops desarmônicos a vida do compositor. Ele optou por usar toda essa desarmonia trazida com as perdas da vida neste registro, tendo sido bem-sucedido no intento.
Novos Músicos
COMPUTADOR DOMÉSTICO
D MINGUS A sujeira da sonoridade TEXTO Diego Albuquerque
Domingos Porto, mais conhecido na música pernambucana pelo codinome de D Mingus, é natural de Arcoverde, cidade do interior do Estado, passou a infância em Pesqueira, e mora no Recife faz muitos anos. Na década de 1990, brincava com processos de gravação musical caseira, tanto que sua banda mais popular tem o nome de um desses processos. Estou falando da instrumental Monodecks. A banda esfriou, mas ele resolveu assumir-se como um artista solo. Lançou três discos com sonoridades e temáticas distintas, porém todos com o espírito lo-fi nas gravações. Filmes e quadrinhos tem uma linha roqueira psicodélica; Canções do quarto de trás é uma ode ao folk; e Fricção, uma viagem
pela música eletrônica, com nuances roqueiras. Nesses três trabalhos, ele apareceu como um dos principais nomes de uma nova movimentação de músicos pernambucanos, Cena Beto. Diferente dos três primeiros trabalhos solos, Saturno retrógrado é um disco atemático e o mais “desencanado” da sua carreira, segundo o próprio artista. A sonoridade não segue uma estética linear, arrisco dizer que sonoramente o trabalho parece uma mistura de todos os anteriores e também soa completamente diferente! O vocal sujo é proposital, seguindo a única característica sonora que reverbera na carreira de D Mingus, a sujeira da sonoridade e da vida lo-fi. Uma questão a ser considerada é que Saturno retrógrado foi pensado como
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 8
Este é mais um disco gravado no seu computador instalado no quarto de trás de seu apartamento, com o auxílio da internet. O registro contou com participação especial de nomes importantes do lo-fi/ psicodelia nacional, como Bonifrate, frontman da banda paulistana Supercordas, que gravou a viola de 10 cordas da canção que abre o disco Xamã Orubá, música que vem sendo composta desde 1998. Eis aqui uma característica do Domingos, a sabedoria de encaixar canções e letras antigas em seus discos, o que deixa claro quão atemporal é a obra do artista. Além de Bonifrate, diversos músicos locais, com quem ele têm uma relação de proximidade sonora e afetiva e que fazem parte desta nova cena recifense, estão presentes no disco. A segunda canção Zeto, o tal é uma homenagem a Zé do Pajeú, poeta de região bastante rica nas músicas tradicional e psicodélica brasileiras. Após uma pesquisa, Domingos resolveu colocar letra em uma faixa que seria instrumental e homenageá-lo. Na sequência, a faixa O náufrago apresenta uma bela introdução e melodia, que se quebra em alguns momentos da canção, num clima interiorano e, ao mesmo tempo, antigo. Esta canção conta com a participação de Júlio Ferraz (da banda Novanguarda) cantando e tocando guitarra. Em Carnaval dos sentidos, Domingos deixa o lado soturno de suas letras e melodias e nos apresenta uma faixa alegre e muito dançante. Juvenil Silva é responsável pela guitarra barulhenta nesta canção.
SAULO DINIZ/DIVULGAÇÃO
Já Clube dos 50’s tem um teclado pra cima e fervoroso, acompanhado de uma bateria também dançante, uma faixa instrumental com falas aleatórias em meio ao som e com participação de Zeca Viana tocando o baixo. Mágica luz tem todo o clima do primeiro disco solo do artista, Filmes e quadrinhos, de 2010. Não me surpreende que tal canção seja dos tempos deste trabalho. O final, com nuances eletrônicas, nos faz voltar ao disco Fricção, lançado em 2013 e precursor deste atual. Ostracity fala de um tema comum para quem conhece o artista: sua crítica sobre como a política cultural da cidade do Recife é gerida. O instrumental é carregado, o vocal dobrado, sendo Matheus Mota o responsável pelo som do mellotron que ambienta ainda mais a canção. Outra faixa animada, Jovem vampiro traz muita guitarra e um clima totalmente alto astral, que deve funcionar muito bem ao vivo. Gato da cidade nos traz a característica urbana de um bichano que vive andando por escombros deixados em meio ao caminho em todas as grandes cidades do país. Encontramos uma enorme presença das sonoridades roqueiras do ano 1990 em Revolução #3.1, cuja letra fala do poder da sonoridade. Santanestesia talvez seja o ponto destoante do trabalho. Tem início com uma bateria eletrônica e segue num tom soturno e calmo, mas não chega a lugar algum. Talvez o clima mais rápido e roqueiro do disco exerça maior influência, capaz de isolar essa canção das demais. Angelo Souza (o Graxa) emprestou sua voz ao trabalho e fez a introdução da ótima Sinfônico blues, que fecha em grande estilo este álbum. Graxa já apresentou a música ao vivo e expressou seu apreço por ela. Em pouco mais de 37 minutos, Domingos evidencia que é um dos nomes que agrega, “dá liga” à cena que tem definido os rumos da música independente recifense nos últimos anos. Todas as participações deste seu recente trabalho são de artistas com discos lançados neste ano ou no ano passado, o que prova que eles estão em sintonia com as ideias e sonoridades do maior produtor da Cena Beto – estou me referindo a D Mingus!
ZECA VIANA A capacidade de se reinventar TEXTO Fernando Athayde
No mundo da música é muito comum usar a expressão viver o rock para designar os perrengues e situações inusitadas pelas quais os artistas independentes costumam passar para levarem seu trabalho ao mundo. Nascido em 1982, com várias bandas nas costas e cheio de histórias para contar, o cantor e compositor pernambucano Zeca Viana é quase a personificação da tal expressão. Do Bairro de Estância, na zona oeste do Recife, onde nasceu e mora até hoje, a turnês pelo Brasil, Estados Unidos e Canadá, o músico abraça uma obra que já completa mais de uma década, celebrada pelo lançamento de seu terceiro disco solo, Estância, disponibilizado virtualmente no último dia 1º de agosto. Para Zeca Viana, estar envolvido com o ato de criar resulta numa condição indissociável de sua própria respiração. Multi-instrumentista, o artista parece dominar com certa maestria as voltas
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 3 9
que a vida dá, sem nunca deixar que os desafios cotidianos o afastem da sua necessidade de se expressar. Para se ter uma ideia, em 2007, quando tocava bateria na banda pernambucana Volver, o músico conta que chegou a fazer uma turnê nacional sem abandonar o trabalho diário no Recife. “Eu trabalhava numa companhia aérea e, por isso, comprava as passagens de avião muito mais baratas. Aí o resto da banda saía em turnê de carro pelo país e eu viajava para encontrá-los só no dia do show, e depois voltava para trabalhar”, conta Zeca. Essa dedicação talvez seja um dos eixos fundamentais sob os quais orbitam a vida e obra do artista. Desde a década de 1990, quando ainda era um iniciante na música, Viana já pensava em caminhos alternativos capazes de suportar a vazão de suas vontades e anseios. Seu primeiro disco solo, Seres invisíveis, gravado em casa ao longo de vários anos e lançado
CON CAPA TI NEN TE RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO
Novos Músicos em 2009, é o retrato de um músico aprendendo e experimentando como manipular o som pela primeira vez, intuitivamente. Em 2010, impulsionado pela sua experiência com a Volver e com o projeto solo, Viana deu início ao Recife Lo-Fi, uma coletânea musical anual que reúne artistas de todos os gêneros e partes do Brasil sob uma única regra: a adoção da estética lo-fi, termo que reduz a expressão low fidelity recording, ou seja, registros fonográficos cuja sonoridade está situada longe daquelas oriundas dos grandes estúdios e próxima à utilização de técnica artesanais de gravação. Ainda assim, o músico não se diz propriamente um defensor ferrenho de tal forma de produção, mas acredita que, mais importante que seguir uma regra específica na hora de compor, é se expressar independentemente dos recursos técnicos disponíveis. Em 2015, foi lançada a quarta edição da coletânea, que hoje já conta com a participação de artistas até de fora do país. Após o lançamento de Seres invisíveis e da primeira edição do Recife Lo-Fi, Zeca se mudou para São Paulo, onde chegou a integrar a banda paulista de post rock Labirinto. Dessa vez como baixista, o músico participou da primeira turnê internacional do grupo, que passou por países como o Canadá e Estados Unidos. Na capital paulista, retomou seu projeto solo e seguiu compondo uma série de canções que viriam dar a forma ao seu segundo trabalho, Psicotransa, de 2012. Dessa vez gravado em estúdio e tocado por uma banda, o álbum se distingue
de Seres invisíveis não só pelo tratamento dado ao áudio, mas pelo fato de ter sido produzido em uma semana. O lançamento marcou o final da estada de Zeca em São Paulo, pois no início de 2013 retornou ao Recife.
REDENÇÃO
“Em 2013, eu estava sem dinheiro, sem mulher, sem rock’n’roll e com metade das minhas coisas em São Paulo”, conta o músico, que ainda foi assaltado logo que regressou ao Recife e perdeu todos os arquivos de seus projetos e registros de canções. Nesse momento de crise, Zeca decidiu dar um novo rumo à vida e optou por cursar Filosofia (UFPE). De volta à Estância, o músico pouco a pouco conseguiu trazer seus equipamentos de São Paulo. “Nos últimos anos, parei para aprender mixagem e masterização, coisas que eu já fazia intuitivamente, mas nunca tinha estudado pra valer”, conta o artista, que assina todo o processo de realização de Estância. Etéreo, o recém-lançado álbum reúne composições estritamente ligadas à vida e às lembranças de Viana. O novo trabalho de Zeca mantém um pé no erudito, mas se recria à medida que também abriga canções pop. Estância tem referências como Cocteau Twins e do My Bloody Valentine uma gama de timbres reverberados e acolhedores. Talvez por esse calor iminente, Zeca Viana, depois de dois anos sem fazer shows, retornou aos palcos. Apoiado pela banda recifense Verdes & Valterianos, o músico enxerga o futuro como algo que reserva boas surpresas.
MATHEUS MOTA Um olhar sobre o homem comum Desde o lançamento
do primeiro disco de sua carreira, Desenho, em 2012, o compositor carioca radicado no Recife Matheus Mota vem se tornando conhecido pela originalidade de seus arranjos e pelo tom de crônica de suas letras. E embora a percepção
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 0
de tais características esteja intrinsecamente associada à visão artística do músico, suas composições reservam um universo mais denso e reflexivo. Buscando se situar entre a complexidade da academia e a banalidade com a qual a rotina esgota os
Almeijão. Basicamente, a abertura do álbum consiste numa edição de áudio em que é possível escutar a voz do apresentador de televisão Fausto Silva, o Faustão, convidando Matheus Mota a entrar no palco do seu programa – uma escolha estética que não só chama automaticamente a atenção do ouvinte, mas que funciona como um denominador comum a todos os segmentos da sociedade brasileira. Essa abordagem, embasada na reflexão de que a arte não necessariamente deve permanecer como um campo de acesso restrito e difícil interpretação, é algo notável num país como o Brasil. Aqui, há um tipo de cisão entre o público que tem voz ativa na busca por conhecer artistas e o que responde passivamente ao bombardeio midiático proporcionado pelos grandes veículos de comunicação. Ao associar versos como “Você não é gorda, tá bonita/ Com esse olhar bobo
O trabalho do músico não se detém na face lírica, ele também se destaca pela dinâmica rítmica e melódica
dias, o artista dá à luz uma obra repleta de impermanências e conflitos pessoais quase sempre relatados através do bom humor e da sagacidade. Inquieto, Matheus enxerga sua relação com a arte como um exercício de administração de crise e cita os livros Ouvido pensante e a Afinação do mundo, do pesquisador canadense R. Murray Schafer, como obras que amparam sua perspectiva artística. “Schafer possui ensaios sobre educação de escuta… Exercícios para buscar, através de sons interessantes, ritmos diferenciados ou até de banalidades, inserir uma reflexão séria”, pontua o músico. Tal identificação fica muito clara ao escutarmos a primeira faixa do último trabalho de Mota, o disco
pra cima/ Numa foto em preto e branco/ Só pra parecer antiga, de outro tempo”, de Gorda, a harmonias dissonantes e escolhas rítmicas de difícil assimilação, por exemplo, Matheus busca entrar em consonância com ambos os grupos citados acima. De forma hábil, o compositor dá a deixa para uma discussão sobre a afetação que permeia a vivência em sociedade. Assim, coloca em xeque uma característica inerente à própria vida contemporânea e evidenciada após a massificação das redes sociais: a relação entre corpo, autoestima e imagem presente em todos os setores sociais.
CRIAÇÃO
Multi-instrumentista de habilidade incomum, Matheus gravou a maior parte dos seus discos sozinho. “Na época do Desenho, eu compunha quase tudo direto na partitura, mas no Almeijão eu compus no piano, tocando.”
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 1
Consequência de um estado de total entrega ao processo criativo, essa peculiaridade é algo que acompanha o músico desde o início de sua carreira. Esse direcionamento, refletido na complexidade dos arranjos e no apuro técnico do artista, porém, jamais deve ser interpretado como uma barreira aos ouvintes não iniciados na teoria musical. A composição de Matheus é assobiável, muitas vezes capaz de despertar sentimentos como a nostalgia. Algo que frequentemente se diz após a audição de seus discos, inclusive, é que eles remetem àquela sonoridade oriunda das trilhas dos programas televisivos da TV Cultura da década de 1990, em que melodias marcantes conseguiam espaço em meio a difíceis progressões harmônicas e rítmicas. Apesar disso, o músico afirma que seu som não é somente um mecanismo de resgate sentimental. O que ele faz é provocar o ouvinte a perceber que a música pode descer dos palcos e programas de auditório, se desglamourizar e usar o cotidiano como ferramenta para se comunicar de igual para igual com as pessoas. No entanto, não seria justo reter a relevância do trabalho de Mota à sua faceta lírica. Canções como Profissional, faixa de Desenho, também se sustentam por suas dinâmicas rítmicas e melódicas. Matheus fala que gosta de “pensar na música mais ligada à pausa” e pontua que “hoje é tudo muito comprimido”, referindo-se ao processo conhecido na mixagem como compressão, explicado de forma resumida como sendo um artifício capaz de equilibrar os volumes, todas as notas presentes numa faixa de áudio, ignorando a intensidade com que foram tocadas. Assim, ao trabalhar o uso do silêncio no meio de suas músicas, o artista dá vazão a uma mecânica quase inesgotável de possibilidades estruturais para suas canções. Matheus Mota escolheu dar vida a letras que trazem como protagonistas o homem comum. Fazendo crônica, mas sem deixar que a casualidade afete suas escolhas melódicas e harmônicas, o músico vai além da obviedade do dia a dia e enxerga naquilo que todo mundo vê diariamente alguma coisa diferente. FERNANDO ATHAYDE
DIVULGAÇÃO
CON CAPA TI NEN TE
JOHNNY HOOKER Porta-voz das vítimas do amor
Cantor e compositor leva postura rock’n’roll para a “música de dor de cotovelo” e se torna fenômeno com primeiro álbum solo TEXTO Débora Nascimento
Se existe hoje um fenômeno musical de Pernambuco, ele se chama Johnny Hooker. O cantor e compositor de 28 anos vem preenchendo alguns dos quesitos do que se considerava, à moda antiga, sucesso (tocou em novela da Globo, apareceu no Jô e em outros programas de auditório, saiu na Folha de S. Paulo e na Rolling Stone, está na “boca do povo”), como também atende a outros requisitos da nova formatação do mercado musical: seu primeiro disco solo, Eu vou fazer uma macumba pra
te amarrar, maldito!, alcançou o primeiro lugar na plataforma de streaming Deezer e foi número um no chart MPB do iTunes Brasil; seu nome circula com frequência nas redes sociais, já atingindo os trending topics do Twitter; participa do novo cinema brasileiro (atuou nos filmes A febre do rato e Tatuagem) e mantém uma carreira colaborativa, com a participação de amigos com objetivos em comum. Johnny Hooker pode até ter despontado com maior evidência de 2013 pra cá, mas sua
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 2
“fabricação” começou há muito tempo: dentro de casa, quando ainda era John Donovan, ouvindo, por conta dos pais, nomes de peso da música mundial, como David Bowie e Frank Sinatra. Do primeiro herdou a vontade de criar um personagem; dos dois, o desejo de cantar como profissional. Muita gente o compara a Ney Matogrosso e a Cássia Eller, devido à maquiagem, ao figurino, plumas, poses, transparências e brilhos típicos do ex-vocalista do Secos & Molhados,
e do canto forte da intérprete. Johnny nega principalmente a influência de Ney, por este ser mais telúrico, hippie, ligado à natureza; e o pernambucano, mais urbano. Outra diferença é o fato de compor e Ney apenas cantar. Ainda na área das comparações, que servem como parâmetro para nos guiarmos com “artistas novos”: Cássia Eller pode ser uma boa referência. Assim como a artista falecida em 2001, Johnny canta passionalmente, com toda a potência vocal de que dispõe, quase gritando. Ele não tem medo de se colocar na canção. Isso é raro. Porque, da mesma forma que essa nova geração cultiva o receio de se entregar aos relacionamentos e lida com suas emoções através de emojis, a maior parte dos músicos oriundos dela também tende a ignorar temas amorosos. Talvez haja o receio de soarem cafonas, afinal, a linha entre o drama e o melodrama é sutil e arriscada. Não é à toa que o último fenômeno decente do rock nacional tenha sido o Los Hermanos, grupo que entoava estrofes como “Não dá mais pra mim/ Pra eu poder viver aqui/ Sem ter a ti” (Outro alguém).
CONFESSIONAL
Parece que os ouvintes estão órfãos desse tipo de música confessional e, por isso, não hesitam em abraçar o trabalho de um artista que consegue traduzir o que os pobres mortais sentem. E Johnny Hooker, por ora, é esse porta-voz: vai direto na ferida, fala sob o ponto de vista da vítima do amor. A geração dos chats, tão bem-descrita no longa argentino Medianeiras (2011), ganhou um representante musical à altura de seus sentimentos. O destemor de Johnny em se expor é tanto, que ele adentra com força na seara do brega – apesar de o disco trazer outros estilos, como ska, bolero e samba. No entanto, leva vantagem com relação a outros nomes do controverso gênero: sua produção é requintada e está bem distante do tipo de realização apressada e pouco apurada, comum aos lançamentos dessa área, o que até reforça o preconceito contra ela. O disco foi gravado,
mixado e masterizado por Cristiano Lemgruber, no Fábrica Estúdios. Obviamente que o fato de um artista nativo do rock resolver investir no brega não se configura como algo revolucionário, até porque, além de já termos passado pelo Tropicalismo, que destruiu as fronteiras entre o que se considera bom e mau gosto musical, outros músicos, do brega roots de Reginaldo Rossi ao techno brega de Gaby Amarantos, foram assimilados por boa parte dos formadores de opinião, da mídia e, principalmente, de um público diversificado. Mas, ainda assim, esse trânsito musical não acontece com frequência, principalmente no que se refere ao ato de compor e não apenas fazer covers rock’n’roll de brega. Além de Johnny interpretar com garra, com a certeza do que está cantando, outro ponto que o destaca é a temática homoafetiva, com a
Com a inserção de duas músicas em trilhas de novela da TV Globo, divulgação do disco recebeu contribuição de peso qual, de maneira sincera e, ao mesmo tempo, alegórica, milita poeticamente contra a homofobia. No clipe de Alma sebosa, em que usa a verve de ator, ele troca beijos ardentes com Luiz Carlos Vasconcelos. Já o vídeo de Volta, o mais assistido do álbum no YouTube (quase 700 mil acessos), é estrelado por ele e Irandhir Santos, protagonista de Tatuagem, que tem a música em sua trilha sonora. O artista também toca numa outra questão, ainda polêmica, mesmo em pleno século 21: o candomblé. As citações vão do título a letras que falam em orixás. Atitudes como esta permanecem relevantes num país que, mesmo miscigenado, assiste à religião de origem africana ser estigmatizada, perseguida e violentada. É claro que outros nomes da nossa música chegaram nesse terreno antes, como Clara Nunes e Maria Bethânia, mas,
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 3
ainda assim, é importante que a nova geração tenha a iniciativa de reforçar essa presença mística.
VISIBILIDADE
Numa discussão no Facebook sobre Johnny Hooker, que gerou diversos comentários, alguém apontou talvez apressadamente: “Ele encontrou o estilo dele”, referindo-se ao fato de o cantor ter um currículo ligado ao rock – liderava o Candeias Rock City, grupo de viés glam rock. Apesar de ter iniciado sua carreira no começo dos anos 2000, o músico passou a ultrapassar os limites da terra natal em 2009, quando foi ao Rio de Janeiro para participar do reality show Geleia do Rock, do canal Multishow. Saiu como um dos vencedores da competição, pois o certame musical foi cancelado após a morte de um dos integrantes da The Hookers, Rafael Mascarenhas, filho da atriz Cissa Guimarães. Com essa banda gravou o CD Roquestar (2011) e antes lançou três EPs, The blink of the whore’s pussy (2004), Ultra violence discotheque (2007) e Fire! (2008) – ensaios para Eu vou fazer uma macumba… Este seu primeiro álbum solo recebeu duas colaborações de peso para projetar-se: a inclusão de algumas músicas nas novelas da TV Globo, Alma sebosa em Geração Brasil (2014), na qual participou como ator, e Amor marginal em Babilônia (em exibição), e a repercussão do Prêmio da Música Brasileira de Melhor Cantor na categoria Canção Popular, na qual concorreu com Luiz Caldas e José Augusto. Das redes sociais, dá para perceber o alcance do impacto dessa figura dessemelhante, que possivelmente é o exemplo da “pessoa certa no lugar certo e na hora certa”: internautas de várias partes do país elogiam a voz, a interpretação, a performance (ele explora o palco, seja este do tamanho que for, como se estivesse numa arena diante de uma multidão, aprendizado adquirido como fã de Madonna) e, principalmente, pedem shows em suas cidades. Um ou outro aparece para azedar com comentários maldosos, mas, felizmente, não é a maioria. A macumba está dando certo.
RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO
CON TI NEN TE
Perfil C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 4
CLÁUDIO FERRARIO Um eterno zombeteiro Ator, que comemora seus 40 anos de carreira este ano, ingressou nas artes cênicas como Mateus do cavalo-marinho, dedicou-se à TV e à comédia e agora volta aos palcos com texto dramático de sua autoria TEXTO Ulysses Gadêlha
Tudo começou com o Mateus do
cavalo-marinho, no Bairro de Afogados, no Recife, em 1975. Cláudio Alberto Ferrario de Carvalho Filho, ainda estudante de Letras na UFPE, pintava seu rosto, botava a roupa colorida e, com a bexiga de boi na mão, saía pelas ruas da capital pernambucana, como Mateus do Boi, no Bumba Meu Boi da Boa Hora. O Mateus se impregnou de tal maneira em Cláudio, que todos os personagens que se seguiram em sua carreira de quatro décadas de teatro não perderam o espírito zombeteiro do personagem popular. Hoje, conciliando sua arte entre a rua e o “palco da burguesia”, o ator de 58 anos imprimiu sua marca com a voz estridente, o humor aguçado e a presença enérgica e performática. “O Mateus é um personagem completo. É um personagem que me ensinou a dançar, a cantar, a interpretar, a rebolar, a improvisar, que é um elemento-chave para o ator”, definiu Cláudio, em entrevista recente ao Jornal do Commercio. Filho do advogado Cláudio Ferrario e da professora Mirta Magalhães de Carvalho, Cláudio despertou para o teatro por acaso, quando sua turma criou a Semana de Arte Moderna do Colégio de Aplicação, na Cidade Universitária, em 1972, para comemorar os 50 anos do evento que iniciou o modernismo
brasileiro. “Houve um grupo que decidiu se apresentar com música, de onde nasceu aquela banda Flor de Cactus; outro optou por literatura. E eu fiquei no grupo que não sabia o que fazer. Acabamos escolhendo teatro. A minha primeira peça foi O santo inquérito, de Dias Gomes, em que fui o iluminador”, recorda o ator. Cláudio participou de outras duas edições da Semana de Arte Moderna do Aplicação. Em 1973, atuou pela primeira vez no espetáculo Frei Serafim, escrita por um amigo dele, Jorge Tarcísio. Em 1974, deu vida ao personagem Euclião, na peça romana Aulularia, do dramaturgo Plauto. “Foi junto com esse pessoal que entrei para o cavalo-marinho. Nós não tínhamos nome, aí chamamos de Grupo Companhia e criamos o Bumba Meu Boi da Boa Hora. Foi quando conheci o Capitão Antônio Pereira, dono do Boi Misterioso de Afogados, que era uma referência pra gente. Mesmo com 80 anos de idade, fazia tudo e nos ensinou muito”, relata. Com o Bumba Meu Boi da Boa Hora, durante cinco anos, ele saía pelos bairros da periferia do Recife se apresentando por diversão. O grupo tinha um apelo popular e um certo discurso político mais alinhado à esquerda. “Aquela era a época da ditadura militar. Tinha uma história da
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 5
fila do gás, em que o pessoal reclamava que quando ia comprar gás, nas comunidades, fazia-se uma fila no pé do morro para o povo ir buscar os botijões, mas, para os bairros ricos, o vendedor entregava na porta. A gente pegou essa história e botou no brinquedo”, relembra o ator. Cláudio conta que, na caracterização do Mateus, ele chegou a participar da confecção das bolas utilizadas pelo personagem, feitas de bexiga de boi. “Uma vez, nós fizemos 40 bexigas de uma vez. A gente pendurava no quintal de um amigo nosso. Quem vinha da rua já sentia o cheiro ruim da bexiga apodrecendo, mas fazia parte do processo”, diz ele, aos risos. Na década de 1980, Cláudio se profissionalizou como ator, e deu início à parceria com o diretor João Falcão, com quem compartilhou cerca de oito espetáculos. Já em 1983, Ferrario participou da primeira montagem do musical infantil Caxuxa, que foi remontado duas vezes, em 1991 e 2012, sempre como sua presença no elenco. Outro espetáculo importante para a sua carreira foi Guarani com Coca-Cola, dirigido por Fernando Limoeiro, no qual contracenou pela primeira vez com a atriz Magdale Alves. Simultaneamente, Cláudio trabalhava como professor de Português, primeiro na Escola Novo Recife, no Bairro da Várzea, depois
REPRODUÇÃO
CON TI NEN TE
Perfil
1 FERNANDO CHIAPETTA/DIVULGAÇÃO
1 BRIVALDO, O REPÓRTER
O cinegrafista Nilton Pereira e Cláudio Ferrario (ao centro) trabalharam juntos em todas as gravações do personagem
2 PUXA SACO &
BABA OVO
Quadro da TV Viva era protagonizado por Aramis Trindade e Cláudio Ferrario
3 SUCESSO NO PALCO
ator viveu Armando O na celebrada peça Mamãe não pode saber
2
na Escola Parque do Recife, em Boa Viagem. A Escola Parque, que tem a mãe de Cláudio, Mirta Magalhães, como uma das fundadoras, foi o lugar onde Ferrario passou mais tempo lecionando, cerca de seis anos.
BRIVALDO, O REPÓRTER
Já em 1984, no fim da ditadura militar, surgiu em Olinda a TV Viva, e Cláudio foi convidado pelo diretor Eduardo Homem para fazer um programa de jornalismo voltado para o público popular, inserindo essa vertente de humor de rua. Ferrario criou o personagem Brivaldo, “o seu repórter de vídeo e áudio”, que fazia parte do programa Bom-dia, Déo. “Déo era o dono do bar que tinha no Largo do Amparo, em frente à sede do Vassourinhas. Bar do Déo era onde a gente ia na madrugada e amanhecia o dia. Eu era o câmera e o personagem oculto Dagoberto”, conta o cinegrafista Nilton
Pereira, que trabalhou com Cláudio em todas as gravações do Brivaldo, cerca de 300 vídeos e documentários, realizados durante 10 anos. Conta Nilton Pereira que as pautas de Brivaldo eram escolhidas pelo coletivo da TV Viva, que chegou a reunir com 25 pessoas, já em meados da década de 1990. “A TV Viva produzia, a cada 15 dias, um programa de variedades que era exibido em telões nos bairros mais populares e populosos do Grande Recife. Nesses programas, popularizou-se a figura de outro conhecido repórter trapalhão, o Brivaldo, interpretado pelo ator Cláudio Ferrario. Na mesma linha do antirrepórter, adotada pelo Ernesto Varela, criado pela Olhar Eletrônico, Brivaldo era um tipo gozador que se fantasiava de acordo com o tema da reportagem e não se acanhava em disparar perguntas desconcertantes aos entrevistados”, registra a professora de
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 6
Comunicação Yvana Fechine, no livro Made in Brasil: três décadas do vídeo brasileiro, organizado por Arlindo Machado. A abundante produção com o repórter Brivaldo levou a TV Viva a ser premiada no III Vídeo Brasil, em 1985, com o vídeo Amigo urso, programa temático de humor sobre a figura do corno – o traído. “Aonde íamos, sempre se formava uma roda para ver e participar das gravações. Sempre com muito humor e abordagens de duplo sentido. Tudo dependia da intuição e do improviso. Se a gente se divertisse, certamente o público também”, relembra Nilton Pereira. O cinegrafista conta que os programas costumavam abordar comportamento ou conjuntura política. “Como Todo homem tem seu preço, que foi saber sobre a cultura da corrupção. Imagine que isso rolou no início da abertura política, culminado com a campanha das Diretas Já, eleição de Collor. Fomos ameaçados de processo por Marcos Maciel, Joaquim Francisco e Gustavo Krause, com muito orgulho”, rememora, sorridente. Para Cláudio, a graça da história era a novidade e, mais uma vez, o Mateus do cavalo-marinho despontava como seu marcante traço teatral. “Você chegar numa Conde da Boa Vista, vestido de cupido, de qualquer coisa, e fazer comunicação num momento que ninguém conhecia isso. Fazíamos rodas enormes, cheias de gente, o povo enlouquecia, querendo ver que danado era aquilo e a gente tirando onda, fazendo roda, era o Mateus com a câmera”, diz Ferrario. Ainda na TV, Cláudio realizou o curta O homem da mala, sobre um eleitor fanático de Miguel Arraes, que percorreu o Sudeste fazendo campanha para o político pernambucano. O vídeo foi filmado assim que Arraes chegou do exílio na Argélia, na época da ditadura militar. Na cena cultural surgia então um novo jeito de se fazer reportagem de rua. O ator Aramis Trindade se uniu a Cláudio e, juntos, produziram curtas para a TV Viva, no quadro Puxa Saco & Baba Ovo. “O ator é um radar para captar tudo que vê e ouve. O Claudinho absorve muito bem esse radar da vida, para transformar em personagem. Aprendi muito com esse formato que ele tem. O programa era uma brincadeira nossa na época do Collor, quando a gente ia às universidades, às ruas. Tinha um jingle
FRED JORDÃO/DIVULGAÇÃO
de Zé da Flauta, que virou a músicatema”, conta Aramis Trindade. Depois disso, Cláudio ainda produziu para a TV programas que tinham clara inspiração no formato Brivaldo, como o Greia Geral, suas participações no Casseta & Planeta, além de entradas para o Domingão do Faustão, da Rede Globo. Posteriormente, Ferrario se destacou no contato com grandes públicos e apresentações ao ar livre, em coberturas de prévias do Carnaval pernambucano.
FAMÍLIA EM CENA
A primeira remontagem de Caxuxa, em 1991, contou com um elenco peculiar: Claudio contracenava com a atriz e, à época, esposa Lívia Falcão, que estava grávida de Olga, hoje colega de cena do pai em A invenção da palavra. O musical ficou em cartaz até novembro – em dezembro, Olga nasceu. O casal atuaria junto também em 1993, na comédia Mamãe não pode saber, texto do diretor João Falcão que foi sucesso de público, lotando o teatro por temporadas longuíssimas (hoje impensáveis no contexto do teatro local). A peça foi encenada durante quatro anos nos teatros Valdemar de Oliveira e de Santa Isabel, com passagens de dois meses no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro, e no Teatro Paulista, em São Paulo.
Depois de um tempo afastado do teatro, Cláudio Ferrario voltou aos palcos este ano na peça A invenção da palavra
3
“Mamãe não pode saber foi uma alegria muito grande, a gente apostou muito e se surpreendeu com tanto sucesso. Foi a primeira vez que a gente viveu um sucesso no teatro. Sessão extra, público dando volta na entrada. A gente se perguntava o que aconteceu, mas a peça era ótima”, recorda Lívia Falcão, com nostalgia. O texto tem 12 personagens, numa história em que cada um tenta tirar vantagem em cima do outro, como diz Cláudio, numa brincadeira com os elementos do próprio teatro. Além de Ferrario e Lívia, o elenco contou com as atuações exemplares de Aramis Trindade, Magdale Alves e Chico Accioly. Na plateia da comédia estava a atriz Fabiana Pirro, que assistiu à Mamãe não pode saber três vezes, muito por conta de Cláudio Ferrario. “Ele me abriu os olhos para o palco. Lembro quando assisti Mamãe não pode saber com ele fazendo Armando; eu achava o máximo
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 7
a presença, a voz, o tempo dele. Um amigo meu brinca dizendo que eu imito Claudinho em cena. Acho que nós temos em comum a doidice e a voz forte. Aprendi com ele a simplicidade de atuar e estar no teatro. Ele não tem frescura nem glamour, faz na raça”, afirma Pirro. A filha do ator, Olga, reforça essa característica, dita brechtiana, no teatro de Cláudio. “Meu pai é produtor até o último instante. Ele se preocupa com todos os detalhes. Quando chega na hora, simplesmente sobe no palco e faz”, conta a jovem atriz, de 23 anos. Segundo a irmã de Cláudio, Fernanda Ferrario, essa preocupação é fruto da história dele com o teatro. “Antigamente, as peças dependiam de público para levantar cachê, por isso Claudinho se envolve muito na produção. Hoje em dia, com as leis de incentivo, o teatro depende menos do público. Mas Claudinho ainda mantém a mesma preocupação, que é natural com o trabalho dele. Ele sempre foi muito responsável”, afirma.
INSTITUCIONAIS
Com o tempo, Cláudio acabou se afastando da atividade teatral para trabalhar com televisão, em produtos institucionais e comerciais. Foi já nos anos 2000 que ele partiu para São Bernardo do Campo, em São Paulo, para trabalhar como assessor cultural do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. “Eu fazia porta de fábrica que só a gotaserena. Foi telão, porta de fábrica, entrevistava a peãozada; era meio Brivaldo, mas em São Bernardo”, conta. Em 2004, Cláudio começou a apresentar o projeto Sesi Bonecos do Brasil e do Mundo, no qual é mestre de cerimônia dos espetáculos, que têm uma temporada de três semanas por ano. “Eu fico cinco horas de pernas de pau, falando. Vai chegar uma hora que o corpo vai dizer: ‘meu irmão, dá pra tu mais não’. Agora, tem que aguentar. Digo verso, falo bastante, apresento os espetáculos, tiro onda, fotografo”, relata o ator, que aprendeu a andar com pernas de pau em 1981 para participar de uma peça com atriz Marilena Breda. Durante uma década, a única ligação de Cláudio com o teatro foram as leituras dramatizadas produzidas pelo grupo Duas Companhias, de
CON TI NEN TE
Perfil Fabiana Pirro e Lívia Falcão, em projetos para o Centro Cultural dos Correios. A volta dele aos “palcos da burguesia”, como diz, ocorreu este ano, com a peça de sua autoria, A invenção da palavra, construída num intercâmbio artístico em Fafe, Portugal. A encenação é do diretor espanhol Moncho Rodriguez, hoje radicado em Portugal, sendo a primeira vez que pai e filha contracenam. “As ideias nascem das leituras dramáticas. Foi lá nos Correios que Lívia deu a ideia de a gente montar o texto d’A Invenção, que eu tinha escrito há uns 10 anos. Eu sempre quis fazer esse texto com Olga. Aos 40 anos de carreira, poder dividir o palco com uma filha me rejuvenesce”, afirma Cláudio. Além d’A Invenção da palavra, ele também escreveu a peça As sete chaves da sobrevivência, vencedora na categoria Textos Teatrais do Prêmio Funarte de 2014, ainda não montada. Com pequenas participações no cinema, como nos filmes Árido movie (2005), de Lírio Ferreira, e Kuarup (1989), de Ruy Guerra, Cláudio está produzindo, junto com sua atual esposa, a cineasta Dea Ferraz, o documentário Mateus, no qual percorre diversos lugares em Pernambuco para registrar o personagem Mateus do cavalomarinho, que marcou sua vida. A bordo de um fusca, Cláudio e Dea saíram visitando pequenos municípios, formando rodas do brinquedo, nas quais ele teve a oportunidade de retornar a esse personagem dos folguedos populares. Assim como a peça agora encenada, o doc teve orçamento aprovado pelo Funcultura. Hoje, Cláudio vive no Bairro do Espinheiro, na zona norte do Recife. Ele é pai de seis filhos, entre os quais Olga e Leo Ferrario, que estão ligados ao teatro. Sem contribuir com o INSS, Cláudio não pensa em se aposentar. Ele deseja trabalhar até o fim da vida, seja atuando ou escrevendo. “O bom é você tentar fazer coisas em que você acredita. Nunca fiz nada que eu dissesse ‘rapaz, eu tenho que fazer’. Por isso, quero trabalhar até morrer”, assevera.
RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO
DISPUTA FILOSÓFICA ENTRE DEUS E O DIABO A invenção da palavra, primeiro texto do ator Cláudio Ferrario a ser encenado (o seu As sete chaves da sobrevivência ganhou, em 2014, o Prêmio Funarte, na categoria Textos Teatrais), seria a história do Diabo cobrando os seus créditos na criação divina. E Cláudio, em sua construção filosófica com elementos da tradição popular, imputa à palavra a gênese da existência humana. A riqueza do texto rimado, que casa com uma atuação pautada no gesto minimalista, a música instrumentalmente poética, traz para o palco um espetáculo que leva a imaginação do público à transcendência. A peça esteve em cartaz durante todo o mês de agosto, no Teatro Capiba, no Sesc de Casa Amarela, e inicia setembro com curta temporada no Teatro Hermilo Borba Filho, no Bairro do Recife. O bom acolhimento da peça, que agradou ao público e à crítica, é fruto de um processo vivido por cerca de 10 anos. Inicialmente, o texto era maior, chamavase A peleja dos mil anos e contava com cinco personagens, sem música. No projeto de leituras dramatizadas do Centro Cultural dos Correios, o espetáculo foi posto à prova pela primeira vez e motivou Cláudio a investir na montagem.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 4 8
Num intercâmbio artístico que durou 45 dias na cidade portuguesa de Fafe, o ator modificou o texto e construiu a estrutura necessária para montá-lo. A encenação foi realizada pelo diretor espanhol Moncho Rodriguez, que inseriu elementos do cenário, da música (feita pelo português Narciso Fernandes e pelo paranaense Rafael Agra) e criou o gestual minimalista. “Deus e o Capeta, sobre um tapete que se entrelaça debaixo dos seus pés, pisam palavras escritas, impressas e transformadas numa trama falsa de palha, imperceptível para o espectador, porém significativa para as personagens”, afirma Moncho. É marcante a voz histriônica de Cláudio, que é um Deus monumental, manuseando o trigo da vida com a malícia travestida em benevolência, enaltecendo seus feitos e sublinhando-os com uma suposta modéstia. Já a atuação vibrante de Olga Ferrario, filha de Claudio, é marcada pela sátira, entregando um Capeta debochado, que assume sua vilania, mas que rivaliza o tempo todo com o divino à base da ironia e do escárnio, proporcionando bons momentos de reflexão e riso à plateia. “Com esse texto, tenho a intenção de questionar essa religiosidade louca que vivemos hoje. Por outro lado, uma coisa que me inquieta, enquanto ateu, é Deus ter todos os louros. Eu sou muito fã da dialética, acho que tem uma parte do Capeta nessa criação incrível”, explica o autor. ULYSSES GADÊLHA
@ continenteonline Leia no site da Continente a íntegra do texto A invenção da palavra, cedido pelo autor Cláudio Ferrario com exclusividade para a revista.
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PROGRAMAÇÃO
setembro e outubro
Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2015
A programação do Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco tem sequência em setembro e outubro, com muita música nas tardes de sábado em Recife.
05/09 • SÁBADO• 17h SHOW COM JULIA TYGEL
12/09 • SÁBADO • 17h SHOW COM CARLOS BADIA
19/09 • SÁBADO • 17h SHOW COM DUDARUA (ROBERTINHO SILVA E FOGUETE)
26/09 • SÁBADO • 17h SHOW COM DUO FINLÂNDIA
03/10 • SÁBADO • 17h SHOW COM PAES
10/10 • SÁBADO • 17h SHOW SUPERULTRAMEGAFLUUU com ÉRIKA MACHADO
17/10 • SÁBADO • 17h SHOW COM MABOMBE
24/10 • SÁBADO • 17h SHOW COM GRAXA
31/10 • SÁBADO • 17h SHOW COM GRAÚNA PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
APOIO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. REALIZAÇÃO
INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,0 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sab e dom 14h as 17h
GERO CAMILO Um ator em busca da potência artística total
Cearense leva à frente intercâmbio artístico e projetos cênicos em Portugal, ao mesmo tempo em que interpreta músicas do conterrâneo Belchior TEXTO Luciana Veras
Palco
O cearense Paulo Rogério da Silva,
44 anos, queria ser psicólogo, quando adolescente. Historiador e padre foram profissões que ele chegou a considerar – a breve inclinação religiosa o levou a estudar em um seminário. Ainda na juventude, um belo dia resolveu mudar e, inspirado nos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa, criou uma corruptela de um dos seus nomes próprios. Aos 16 anos, fugiu de casa, em Fortaleza, e se mudou para São Paulo. Voltou dois verões depois. Aos 23, aprovado no vestibular da Escola de Artes Dramáticas da USP, saiu do Ceará em definitivo. A missão: enveredar pela arte, caminho do qual, aliás, Gero Camilo nunca mais saiu. Ator, produtor, dramaturgo, diretor, cantor e compositor, ele é múltiplo por desejo próprio. “Entendo o artista como uma potência. Fazer esse tour de transitar por todas as áreas é, para mim,
seguir em busca dessa potência. Não se trata de talento, e, sim, de mecanismos de instrumentalização de possibilidades artísticas. Fazer um pouco de tudo é fundamental para a experiência, e não falo do acúmulo no decorrer da vida, mas do ato, do presente, do instante. A abertura de caminhos e a compreensão são fundamentais na arte”, sublinha Gero Camilo em entrevista por telefone à Continente, transcorrida num fim de tarde pouco antes de ele embarcar para Lisboa. Em Portugal, ele se prepara para dirigir uma versão de Correram nus empoeirados, texto seu a ser apresentado na segunda edição do Cena Contemporânea de Matosinhos em Português, festival devotado ao teatro lusófono. “É a história de dois artistas populares que saem mambembando pela vida em busca de sobrevivência e arte – um recorte sobre fazer números artísticos pelos lugares por
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 0
onde passam, sobre passar o chapéu, sobre a poesia dos artistas não só no esplendor no palco, mas por trás das coxias, no suor, na labuta”, conta o ator e diretor. O espetáculo será encenado em novembro, numa parceria criativa entre Gero e a portuguesa Luísa Pinto, diretora artística da mostra de artes performativas. Em 2014, o mesmo evento apresentou ao público d’alémmar Aldeotas, peça também concebida e dirigida pelo ator cearense. Tal expansão para o exterior vem ocorrendo em concomitância ao resgate que ele empreendeu de um peculiar artista do cancioneiro popular brasileiro. Alucinação é o título do quarto disco do cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes e também do show que seu conterrâneo estreou em maio, em Fortaleza. “A vontade de tocar a obra de Belchior veio antes do sumiço dele, que, inclusive, penso ser
RITA ARAÚJO/DIVULGAÇÃO
um sumiço da mídia, nunca da sua poética. Um poeta jamais foge da sua poesia”, diz Gero. “Minhas primeiras referências musicais são de Belchior, Fagner e Ednardo, que tocavam nas rádios universitárias do Ceará. Através delas, qualquer um tinha chance de conhecer os artistas da sua terra. Desde sempre, tenho uma enorme admiração poética e artística por ele. Fui a vários shows, mas não o conheço. Não tenho o menor acesso a ele que não seja pela música, que me faz passear pela adolescência em Fortaleza”, complementa. Microfone em punho em Alucinação, Gero Camilo entoa A palo seco, Como nossos pais, Apenas um rapaz latinoamericano e as outras sete faixas do
“Ser artista é estar predisposto a qualquer experiência, é estar aberto a todas as possibilidades” Gero Camilo álbum, com óbvias distinções com relação ao intérprete original. “Belchior é um poeta e é isso que me interessa na obra dele. Quando vou ao palco, estou em busca de uma aproximação poética, não relacionada ao ídolo em si, mas à poesia”, sintetiza. Ele, entretanto, trabalha para revestir aqueles versos de um brilho próprio,
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 1
como se alinhavados em uma colcha de lantejoulas. Inocula as canções com seu DNA inquieto e libertário. Essa conduta, aliás, é típica em seu processo de imersão. Foi assim ao encarnar o pintor holandês Vincent van Gogh, na peça A casa amarela, ou ao participar de filmes como Bicho de sete cabeças (2001), Cidade de Deus (2002), Narradores de Javé (2003) ou Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011). A entrega se dá no mesmo nível em suas incursões literárias ou televisivas – Gero foi visto nas séries Hoje é dia de Maria (2005), Som & fúria (2009) Gabriela (2012) e Felizes para sempre (2015) e é autor das publicações A casa amarela (2012), A macaúba da terra (2012) e Aldeotas (2013). A mesma desenvoltura com que se reparte entre tantas searas de concepção artística (e com que driblou o trânsito paulistano para atender a ligação da Continente) é ainda traduzida em Megatamainho (2014) e Canções de invento (2008), seus dois discos. Sim, ele também singrou os mares da criação musical. O álbum mais recente, inclusive, teve produção do pernambucano Bactéria e composições assinadas com Otto, Vanessa da Matta e Luiz Caldas. Mas, ainda assim, não busca fazer distinções entre os mergulhos que dá. Apenas procura prosseguir na aposta cotidiana no fascínio da arte: “Minha atitude é de ir pra vida tendo a criação como possibilidade. Sou artista, quero diversidade, quero ter a raiz do Ceará, que amo demais, e olhar para cima e ver um arco-íris de diversidade no céu de São Paulo, pois também me sinto paulistano. Meu lugar é meu canto”. Paulo Rogério se tornou Gero Camilo também para homenagear Valdegrácio Camilo da Silva, seu pai. Como sua avó teve 20 filhos, ele possui dezenas de primos – alguns deles desenhistas, guitarristas, baixistas – e quatro irmãos que, por sua vez, optaram por carreiras mais lineares. A cota familiar de experimentação, contudo, parece estar singularmente representada nesse cidadão do mundo sem medo de abraçar desafios ou acolher os encontros. “Ser artista é estar predisposto a qualquer experiência, é estar de cara aberta a todas as possibilidades”, desvenda.
DIVULGAÇÃO
Cardápio BUENOS AIRES Uma pitada da cozinha espanhola e da italiana
Constituindo-se de carnes e massas, culinária portenha incorporou mais elementos trazidos pelos colonizadores e imigrantes que os dos povos indígenas originários TEXTO Mariana Camaroti, de Buenos Aires
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 2
e italianos, a carne, a farinha, o tomate, o queijo e a batata tornaram-se a base do cardápio, fortemente ancorado em massas, pizzas, bife à milanesa, purê, empanadas, tortas salgadas e molhos, quase tudo acompanhado por pão. Entre os doces, saltam aos olhos os alfajores (doce de origem árabe de pão de ló coberto com chocolate) e o incomparável doce de leite desta terra. Conhecida internacionalmente pelo sabor e pelo corte da sua carne, que favorece peças macias, a gastronomia portenha é sinônimo de abundância e está intrinsecamente ligada à tradição do país de reunir-se ao redor da mesa e nela passar horas, do antepasto à sobremesa, geralmente regados por um vinho. O que impera nas casas e restaurantes é
As churrascarias oferecem a parrillada, um banquete com carnes, entranhas e salsichas, servidas com fritas ou salada
Se a porta da cozinha oferece a
maneira mais íntima de adentrar em uma casa, a culinária provavelmente é uma das formas mais genuínas de conhecer a cultura e a história de um lugar. Sentar-se para comer nos restaurantes, cantinas italianas e churrascarias de Buenos Aires permite entender que o que sai de fornos e fogões daqui é, sobretudo, a combinação entre a colonização espanhola e a migração italiana. Cidade fundada e expandida a partir do porto – daí se dizer que seus habitantes são portenhos –, a capital argentina incorporou muito mais dos colonizadores e imigrantes que ali desembarcavam que dos povos indígenas originários. Com os espanhóis
a comida simples e, diferentemente do brasileiro, o argentino geralmente come a carne e uma guarnição apenas. Bife com purê, milanesa com batata frita, filé com batatas assadas, peito de frango com salada… qualquer que seja a opção, há algo específico por essas bandas: a porção de carne é sempre deliciosa e muito maior do que seu acompanhamento. “A comida portenha é simples e honesta, ou seja, o que se vê no prato é aquilo que se come. Não tem mistérios, mas muito sabor. Os turistas adoram”, diz a respeitada cozinheira e autora de livros de receitas Narda Lepes (leia entrevista com ela no site da revista). Quem visita a capital argentina não pode deixar de se deleitar nas parrillas (churrascarias) e pedir cortes bovinos mais nobres e com pouca gordura: ojo de bife, chorizo, colita de cuadril ou lomo. Se o comensal prefere cortes com osso, o assado de tira é a grande pedida, porém, se prefere a suína, o pechito de cerdo ou a bondiola são infalíveis. Entre as opções crioulas mais suculentas e ideais para as temperaturas mais baixas, os guisos, estofados, bife a criolla (bife de molho
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 3
com batatas) e bife a cavalla (bife de molho com batatas e ovo de gema dura em cima) são ótimas opções. Praticamente unanimidade no paladar de adultos e, principalmente, das crianças é a combinação bife à milanesa com purê ou fritas. “Na minha opinião, a milanesa com fritas, que pode ser ainda com um ovo frito em cima, é o que define a comida portenha e é também o que meus clientes mais pedem”, diz o empresário Jorge Delprado, proprietário do restaurante Johann, há 25 anos no Bairro de Belgrano. Além de os bifes serem enormes para os padrões brasileiros, o segredo aqui é o seguinte: a carne a ser empanada é cortada bem fininha, para ser cozida rapidamente. Depois de temperada com sal, pimenta, alho e salsinha, é passada por ovo (com soda, em algumas casas) e por uma fina capa de farinha de rosca, e prensada com as mãos sobre o balcão para que a farinha fique bemaderida. Encontrado já empanado nos frigoríficos em suas versões bovina e de frango, o bife pode ser frito ou – mais prático ainda – assado no forno. Há ainda a versão napolitana, com molho de tomate e queijo.
CHURRASQUEIRA DOMÉSTICA
O nascimento da cultura gaúcha nessa região da América do Sul durante o período colonial, compartilhada com o Brasil e o Uruguai, arraigou a importância da carne nas refeições, e desenvolveu o costume de reuniões ao redor do fogo. Pode-se dizer, sem exagero, que o produto – sobretudo bovino – é motivo de orgulho nacional. “A carne é mais do que o prato nacional, é a aspiração nacional”, diz Narda Lepes. “O portenho acredita que se não comer em grande quantidade na verdade não comeu. E que, por ser argentino, tem direito a comer mais do que em qualquer outro lugar. Os restaurantes oferecem pratos com 800 gramas de carne!”, acrescenta. O churrasco portenho, algo bastante diferente da experiência de se comer um bife em um restaurante, é autenticamente comido em casa, no quintal ou na laje, e feito sobre grelha, e não em espetos. Mesmo entre as pessoas com menos recursos, uma churrasqueira não falta ou, pelo menos, uma grade é improvisada sobre tijolos na calçada. Nas
FOTOS: MARIANA CAMAROTI
Cardápio
2
1
sextas-feiras e finais de semana com sol, o cheiro de churrasco inunda alguns bairros portenhos na hora do almoço. Com poucos acompanhamentos – geralmente salada – e apenas sal como tempero, a carne é a grande protagonista. Um amante do churrasco que se preze faz ele próprio o ritual, não importando a classe social. Acende o fogo, harmoniza a brasa, salga as carnes e planeja qual vai à grade por ordem de cozimento, enquanto toma aperitivos, belisca queijos e embutidos, e observa orgulhosamente a chama queimar. Da churrasqueira, primeiro saem os chorizos (típica salsicha argentina), que podem ser comidos em forma de sanduíche no pão (apelidado de choripan), e a mocilla (salsichão de
sangue prensado, especialidade local) e entranhas. Quando prontas, as carnes são colocadas em uma travessa ou tábua na mesa, um verdadeiro banquete, e todos comem juntos. O chimichurri (molho picante, que também pode ser usado para temperar antes do cozimento) e o vinagrete acompanham. Como em um espetáculo, a cerimônia geralmente termina com uma salva de palmas após algum comensal gritar: Un aplauso para el asador! As churrascarias estão por todo lugar em Buenos Aires e oferecem a parrillada, um banquete com variedade de carnes, entranhas e salsichas, acompanhado de fritas ou salada. É o que mais se assemelharia ao que um portenho faz portas adentro. Mario Cueva, que há
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 4
nove anos trabalha em churrascaria, diz que o segredo de uma carne suculenta e saborosa é cozinhá-la a fogo lento, sem pressa. “Gosto de temperar com pouco sal e pincelar com chimichurri, antes de colocar na grade. Depois, é ir controlando e servindo de acordo com cada corte e o pedido do cliente”, conta. “Ser convidado para um churrasco na casa de uma família local é a melhor coisa que pode acontecer para alguém que visita Buenos Aires”, brinca Narda Lepes. Segundo ela, o passado de grande produtor e exportador de carne e grãos – o país era chamado frigorífico e seleiro do mundo – não apenas marcou a gastronomia portenha, como também a caracterizou pela abundância. O argentino não convida uma visita para tomar um drinque ou um simples cafezinho, convida para almoçar, jantar. Quando o encontro se dá no final da tarde, faz um piquenique na praça ou se senta em uma mesa farta em facturas (brioches locais recheados de doce de leite, creme ou marmelo) e medialunas (croissants), enquanto compartilha o mate (chimarrão). Uma cerimônia deliciosa!
MUITA MASSA
Os imigrantes italianos marcaram os portenhos não apenas com seu sotaque, o tom alto da voz e os gestos, mas também com a culinária. Raviólis,
1 BROCCOLINO O prato mais pedido na cantina é o que reúne quatro tipos de massa, com quatro molhos LA MEZZETA 2 Pizza é uma das opções rápidas e baratas em Buenos Aires EL SAN JUANINO 3 Empanadas de carne, queijo e presunto e queijo e cebola são alguns dos sabores dessa tradição portenha
nhoques, canelones, espaguetes, talharins, polenta com queijo e outras iguarias italianas regadas aos mais autênticos molhos se fixaram na culinária local. Além das cantinas típicas e das residências, elas são encontradas nas casas de massas espalhadas pela metrópole, em que o público compra os manjares précozidos, geralmente para as refeições de final de semana. Em dias frios, a clientela forma fila na calçada para levar massas frescas, secas ou recheadas, bem como os molhos que as acompanham. Filho de italiana e um dos donos da tradicional cantina Broccollino, no microcentro de Buenos Aires, Alejandro Ballabene diz que a culinária italiana, sobretudo as pastas, está totalmente instaurada e convive muito bem com outras preferências portenhas.“Minha mãe fundou este restaurante em 1985 e esteve à frente dele por 10 anos. Ensinou os cozinheiros a prepararem os molhos, como o à bolonhesa, pomodoro (tomate), pesto creme, e nós mantivemos sua receita original”, conta, revelando que o segredo de uma boa massa são o ponto de cozimento e o molho original italiano. Na Broccollino, as massas e pães servidos são de fabricação própria, feita no subsolo da casa, e geralmente vão à mesa com a bebida de especialidade
As empanadas surgiram no século 15, mas não se sabe se na Argentina, no Peru ou em outra parte da colônia espanhola nacional: o vinho Malbec. Um grande forno de lenha ocupa o centro do salão, de onde saem pãezinhos, chipás (parecidos com o pão de queijo brasileiro) e outros quitutes que vão quentinhos às mesas. Aberta das 12h à meia-noite, a cantina é procurada por estrangeiros por estar próxima a hotéis e pontos turísticos. Uma das opções mais pedidas pelos turistas é a “seleção de massas”, com quatro tipos diferentes (recheadas, frescas e secas) e molhos (à bolonhesa, carbonara, pesto crema e pomodoro). A pizza é um item à parte entre as heranças italianas em terras portenhas e ocupa, junto com a milanesa, a posição de queridinha dos hermanos. Amassada em casa nas famílias mais tradicionais, versão delivery, servida em pizzarias ou vendida pré-preparada em padarias, a pizza é imprescindível em reuniões de amigos e festas de aniversário. Com a inflação alta dos últimos anos (ao redor
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 5
3
de 30% ao ano) e a correria da vida de uma grande metrópole, ela ganhou ainda mais espaço, por ser uma opção rápida e barata. Aberta desde 1939 e considerada lugar de interesse gastronômico e cultural da cidade, La Mezzeta acumula pilhas de dezenas de assadeiras, quilos de tomate, cebola e queijo em sua cozinha, enquanto os maestros amassam e recheiam o que logo mais será assado, cortado e servido aos fiéis clientes. “Quem entra aqui quer algo rápido e, muitas vezes, termina passando mais tempo para tirar a ficha do caixa do que comendo”, diz sorrindo o gerente Luis Dovale, genro do fundador da casa, enquanto sacas de farinha de trigo são descarregadas e os primeiros clientes começam a chegar. Tradicional no Bairro de Villa Ortúzar, La Mezzeta é uma pizzaria popular, na qual se come em pé, e vende uma média de 1,5 mil porções de pizzas diariamente. A preferência da clientela é uma porção de fugazzeta (pizza recheada com queijo mozarela e cebola) com refrigerante ou copo de vinho, embora a venda de álcool tenha caído com a fiscalização de trânsito.
EMPANADAS
Das regiões Norte e Cuyo da Argentina, veio a saborosa empanada,
salgado em forma de pastel (a massa é mais grossa) com recheios variados, frita ou ao forno. As mais típicas são de carne (suave ou picante), mas
DIVULGAÇÃO
Pampas, no Litoral, nem na Patagônia. A gastronomia portenha tem seu peso próprio, pelo seu volume, e está diretamente ligada à nossa cultura, formada por espanhóis e italianos.
Cardápio também são vendidas em todo lugar as versões com queijo e presunto, queijo roquefort, tomate, queijo e manjericão, queijo e cebola, milho, frango, atum e verdura. Algumas diferenças marcam as empanadas de carne, segundo a província de origem, gerando uma certa disputa quanto à que é mais gostosa. De Tucumã, Salta, Jujuy ou San Juan, elas podem ter ovo cozido, azeitona ou outros detalhes que fazem de todas uma iguaria local. “A origem das empanadas remonta à época do virreinato (vice-reinado da Coroa de Aragão, século 15) e não sabemos se nasceu na Argentina, no Peru ou em outra parte, porque, naquela época, a colônia espanhola não tinha fronteiras”, diz Andres Patrolongo, um dos sócios do restaurante regional El San Juanino. Há mais de 60 anos aberta ao público, a rede serve não apenas empanadas, mas também guiso de lentejas (ensopado de lentilhas com carne bovina, linguiças e carne de porco), locro (ensopado de feijão, milho, carne bovina e suína e verduras) e mondongo (feito com vísceras, parecido com a buchada). “São pratos mais consumidos no inverno, porque são calóricos, e acompanhados por vinho”, explica. Além disso, como são tradicionais e remontam à época da independência argentina, dois séculos atrás, são pratos muito procurados durante as festas pátrias (maio e julho). Apetitosos também são a humita (milho ralado, queijo gratinado e ervas) e o tamal (farinha de milho com carne picada bovina e suína, com tempero picante), ambos envolvidos em palha de milho. Entre as sobremesas regionais, não podem faltar a pastelito (massa folheada frita e recheada de doce de batata-doce ou de marmelo), o alfajor santafecino (torta folheada e recheada de doce de leite), a empanadita de nozes e o martín fierro (doce de batata-doce com queijo).
CONTINENTE As províncias têm alguma influência? NARDA LEPES Há pouca influência, como as empanadas, por exemplo. As pessoas vindas de outras regiões trazem alguns pratos, mas costumam interromper suas tradições por falta de ingredientes e condições climáticas, por exemplo.
Entrevista
NARDA LEPES “NAS GRANDES CIDADES, QUASE NENHUMA CULINÁRIA É SAUDÁVEL” Uma das cozinheiras mais famosas e respeitadas da Argentina, Narda Lepes foi além das receitas deliciosas e autênticas e decidiu pesquisar a formação da cozinha do seu povo. Autora de três livros, fascículos e colunas em jornais e revistas, ela é também apresentadora de televisão. CONTINENTE Quais são as principais características e influências da culinária portenha? NARDA LEPES A Argentina é um país com um território grande demais e a gastronomia das regiões não é muito integrada. O que se come aqui em Buenos Aires não é o mesmo que se come no Norte, nos
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 6
CONTINENTE A gastronomia portenha é saudável? NARDA LEPES Nas grandes cidades, como Buenos Aires, quase nenhuma culinária é saudável, pela escassez de tempo das pessoas. Comemos uma quantidade exorbitante de farinha e carne, o que a torna também muito calórica, e comemos pouca fruta, apenas como sobremesa. O argentino gosta de acolher as pessoas com comidas feitas de farinha e carne. Por outro lado, somos uma das poucas cidades latinoamericanas que têm quitandas na rua, porque as pessoas gostam de comprar frutas e verduras frescas. CONTINENTE Os pratos variam de acordo com a estação? NARDA LEPES Comemos de acordo com a estação, e não de acordo com as colheitas. E precisamos aprender a comer de forma mais consciente, de acordo com o que há disponível no mercado. CONTINENTE A carne é o prato nacional? NARDA LEPES É a aspiração nacional e, na nossa cultura, tem a ver com reunir-se para comer, com o sacrifício do animal, algo primitivo. Outras paixões do argentino, como o futebol e os grandes shows de música, também estão ligadas a esse nosso costume de se reunir e comemorar. Reunir-se porque (o imigrante) sente saudade de casa. Tudo isso tem a ver com nosso passado e forma nossa identidade. MARIANA CAMAROTI
DIVULGAÇÃO
Claquete
GRÉCIA Cinema sobre crises
Filmes recentes parecem tratar tanto do distúrbio econômico como de um desajuste geral de valores tradicionais e modernos TEXTO Bárbara Buril
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 7
1
Parece que não existe apenas uma
crise na Grécia, mas duas. Uma, econômica, propagada na imprensa global como se fosse a única, e outra mais ampla, que não aconteceu da noite para o dia: um desequilíbrio de valores e de identidade que permeia as relações mais íntimas na sociedade. A “estranha onda do cinema grego”, como se convencionou chamar produções mais recentes de cineastas gregos, entre os quais Yorgos Lanthimos, Athina Rachel e Alexandros Avranas, parece estar tão ou mais relacionada com uma crise geral de valores no país do que propriamente com a econômica. A linha direta construída por críticos de cinema entre a instabilidade econômica e a chamada new weird wave, na imprensa internacional, dá sinais de que a situação carece de uma sensibilidade maior acerca de peculiaridades da sociedade grega contemporânea,
FOTOS: DIVULGAÇÃO
Página anterior 1 DENTE CANINO
ilme foi premiado F no Festival de Cannes de 2009
Nestas páginas 2 ATTENBERG
Claquete
ena em que as C personagens ensaiam um beijo inspirou o grupo de teatro pernambucano Magiluth
MISS VIOLENCE 3 Filme que faz parte da “estranha onda grega” trata da crise econômica do país de forma mais direta
2
e pode ser um caminho para compreender a Grécia atual. Como se a produção cinematográfica apenas se reduzisse, hoje, a mostrar os efeitos da crise econômica na constituição psíquica dos sujeitos. É assim que pensa a pesquisadora grega Lydia Papadimitriou, especialista em cinema grego e professora da Universidade Liverpool John Moores, na Inglaterra. Para ela, embora muitas das produções fílmicas mais recentes na Grécia tratem direta ou indiretamente dos problemas econômicos, é importante não cair em reducionismos capazes de fechar caminhos para compreensões mais amplas acerca da sociedade local como um todo. No entanto, as discussões mencionadas acima vêm de um fato inegável: desde 2009, filmes gregos têm ocupado o centro dos holofotes em festivais internacionais de cinema, como o de Cannes e o de Veneza, por
serem intencionalmente desagradáveis, claustrofóbicos e absurdos. “O sucesso internacional de Dente canino, de Yorgos Lanthimos, em 2009, sugeriu que, apesar de – ou, possivelmente, devido à crise –, o país pareceu ser capaz de produzir cinema digno de atenção”, acredita Papadimitriou. As produções gregas contemporâneas mais celebradas exibem famílias cujo comportamento distópico mostra convenções sociais extrapoladas ao máximo. Para ela, o cinema contemporâneo, mais especificamente as produções unidas sob a alcunha de “estranha onda grega”, pode ter ganhado projeção internacional justamente por conta da crise econômica. Ela se tornou uma lente para entender obras como Dente canino, Attenberg (2010), de Athina Rachel Tsangari, Alpes (2011), de Yorgos Lanthimos, Miss Violence (2012), de Alexandros Avranas, e O garoto que comia alpiste (2012), de Ektoras Lygizos.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 8
No entanto, para ela, embora alguns desses filmes realmente se refiram mais diretamente à crise econômica, outros tratam justamente de um conflito de valores e de identidade que pode ser compreendido de maneira mais clara por quem vive na Grécia. “Trata-se de uma grande questão, porque essa crise não é algo que aconteceu de repente (como a financeira), mas gradualmente, como o resultado de muitas mudanças que não foram assimiladas produtivamente e efetivamente pela sociedade grega (e as pessoas geralmente não entram em acordo quando vão explicá-la). Mas a sociedade grega viveu em duas engrenagens, uma mais tradicional e outra mais moderna. As duas, com frequência, se misturaram em formas estranhas, mas interessantes”, explica a pesquisadora. Para ela, a mistura indigesta, nos anos 2000, de escândalos políticos e religiosos, empréstimos a
3
juros baixos, enriquecimento rápido da população, surgimento de uma geração de jovens desempregados, violência policial, ocultação de escândalos e consequente descrédito nas instituições representativas gregas pela população, entre outros acontecimentos, tornouse o coquetel necessário para que a sociedade, não muito tempo antes de se ver como o bode expiatório para o possível enfraquecimento da União Europeia na esfera transnacional, entrasse em colapso.
DENTRO DE SI
Entra em cena, então, Dente canino, em 2009. Um ano antes de a crise econômica ter chegado às finanças gregas, em 2010, o filme ganha o prêmio Um certo olhar, no Festival de Cannes, e é indicado ao Oscar na categoria de Melhor Filme de Língua Estrangeira. Pela primeira vez, em 34 anos, a Grécia sai da invisibilidade na mais importante premiação de cinema do mundo. No filme, o diretor Yorgos Lanthimos mostra uma família claustrofóbica, cujo paterfamilias procura incessantemente isolar seus três filhos (duas mulheres e um homem) de todo o contato com o mundo exterior. Já adultos, eles acreditam que tudo o que está fora da mansão confortável e hermética, de onde nunca saíram,
seria uma ameaça, devido à ficção criada pelo pai de que sair da casa significaria praticamente morrer. Os três irmãos não só mantêm relações sexuais entre si, como também compartilham sentimentos dos quais parecem sequer ter consciência, como o tédio, a angústia e o vazio. A filha mais velha, interpretada
Parte das produções atuais exibem famílias cujo comportamento distópico mostra convenções sociais extrapoladas pela atriz Angeliki Papoulia (figura onipresente, aliás, nos filmes da “estranha onda grega”), encarna uma transgressão latente, manifestada em espasmos, em momentos que deveriam ser de adestramento, comedimento e contenção. O filme, ao não tratar diretamente de problemas políticos, econômicos ou sociais, vislumbra caminhos e rotas possíveis para se pensar a sociedade da qual emerge. “Se adotarmos a definição de arte sugerida por JeanLuc Godard – aquilo que produz
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 5 9
ou que apresenta o que é exceção à regra, aquilo que perturba o que é considerado como certo –, a arte não somente se alimenta de crises, mas as gera. Não necessariamente econômicas e políticas, mas nas formas de entendimento assentadas sobre as coisas do mundo”, acredita o curador e pesquisador Moacir dos Anjos. Para ele, a arte cria fissuras onde parece haver completude, produz ruídos onde se imaginava haver silêncio. “É natural que, nos momentos em que desarranjos e desigualdades sociais se explicitam – seja no âmbito local, nacional ou internacional –, a produção artística os repercuta e os aprofunde, apresentando-nos, no campo do sensível, a realidade fraturada em que vivemos”, acrescenta o curador. Segundo a pesquisadora Lydia Papadimitriou, Dente canino também pode ser uma metáfora para o medo de que um substancial fluxo de imigrantes, nos últimos anos, acontecesse. “Muitos aspectos mostram que a sociedade grega quer fechar tudo, mandar todos embora, criar grandes paredes e permanecer segura dentro de si mesma. Isso é, obviamente, apenas uma parte da sociedade – mas é presente. E você pode dizer (embora o filme não mostre isso)
DIVULGAÇÃO
4 MISSION ZEUS No filme, um homem de negócios alemão é abandonado por um taxista grego na periferia de Atenas
Claquete 4
que a extrema direita, representada pelo Golden Dawn (Movimento neonazista grego), é uma expressão disso”, interpreta Papadimitriou. Em Attenberg, de Athina Rachel, vencedor do prêmio Leão de Ouro no Festival de Cannes em 2010, a crise parece ganhar teor ainda mais universal. No filme, a jovem Marina, interpretada pela atriz Ariane Labed, vive duas importantes descobertas: a do sexo e a da morte. De maneira disfuncional e tosca, ela descobre o que é o sexo a partir dos ensinamentos práticos, mas nada sensualizados, da amiga Bella. Não parece aprender. Vê o que é a morte ao acompanhar o processo de degenerescência do pai, Spyros. Mas, ao não saber lidar nem com um (o sexo) nem com outro (a morte), Marina reserva grande parte do seu tempo para ver os documentários sobre o mundo animal do cineasta e naturalista David Attenborough. Talvez como uma fuga à tarefa de agir como um ser humano pretensamente ajustado. Não sabe pronunciar “Attenborough” e fala “Attenberg”. A dificuldade – ou o próprio conflito de ser humano – ganha contornos relativamente claros em um filme cujas questões extravasam os elementos contextuais da sociedade grega.
Além da crise econômica, os filmes têm trazido questões universais e outras ligadas ao contexto social da Grécia Não é por acaso, pois, que o grupo recifense de teatro Magiluth tenha se apropriado de uma das cenas mais conhecidas do filme – aquela em que Bella e Marina ensaiam um beijo de língua nada convencional – para também falar de tensões mais universalmente humanas, na peça O ano em que sonhamos perigosamente, estreada no último mês de junho. “A arte sempre precisa do lugar da crise. Todos os lugares em crise levam inevitavelmente à arte, porque arte e vida não se separam. São dois universos amalgamados. Porém, estar no mundo, hoje, é estar em desequilíbrio de alguma maneira. Crise de se perceber como parte de um todo, de inércia, de ver tudo e não conseguir fazer muito para mudar”, justifica o ator Pedro Wagner, que dirigiu a peça cujas influências da “estranha onda do cinema grego” se fazem notar nessa e em outras cenas.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 0
ABORDAGEM MAIS REALISTA
Apesar de todas as outras crises que estão presentes no cinema grego (as mais universalmente humanas ou as mais ligadas ao amplo contexto social na Grécia, por exemplo), a mais conhecida delas, a econômica, marca presença, sim, em algumas produções fílmicas mais recentes. Da “estranha onda grega”, Miss Violence e O garoto que comia alpiste tratam da crise de maneira mais direta, mas não de modo tão explícito como nos curtas-metragens de diretores menos aclamados internacionalmente, como Casus Belli (2010), de Yorgos Zois, e Mission Zeus (2012) e Penguins (2011), de Dimitris Zahos. Estes dois diretores, embora coloquem a crise econômica quase como a personagem principal de seus filmes, não são considerados cineastas da new weird wave – o que mostra que, para ser rotulado como obra da “estranha onda grega”, não basta falar do assunto. “Há filmes que discutem a crise, ou são feitos depois dela, sem necessariamente serem ‘estranhos’. Mas eles são mais difíceis de vender em festivais e não são, então, anexados a um rótulo particular que possa atrair a atenção internacional”, escreve a pesquisadora e professora do King’s College London, Belém Vidal, no artigo Crise e criatividade: os novos
INDICAÇÕES cinemas de Portugal, da Grécia e Espanha (tradução nossa). Para o diretor Dimitris Zahos, há uma nova geração de cineastas gregos que tratam da realidade grega de maneira mais direta, sem a estética “bizarra” da “estranha onda grega”. “Como diretor, eu prefiro me referir à realidade mais diretamente. É uma preferência pessoal e eu considero isso mais sincero. Também acredito que essa nova geração tem mais estrutura e formação em cinema do que a anterior”, acredita Zahos. Ele cita Filippos Tsitos, Athanasios Karanikolas e Panos Koutras como exemplos de cineastas que tratam de questões da sociedade grega com uma estética mais realista. Com uma abordagem mais direta, Zahos traz em Mission Zeus, então, um homem de negócios alemão que é abandonado por um taxista grego em um bairro periférico de Atenas, em uma espécie de reação raivosa à intervenção de empresários e políticos estrangeiros no país. O curta-metragem transforma-se em comédia, quando o empresário alemão acaba por se envolver afetivamente com a atmosfera descontraída de uma festa grega que acontece no bairro. “Na verdade, a intenção de Mission Zeus foi tentar deixar toda essa situação mais leve, uma vez que estamos bastante estressados nos últimos anos. Este ano foi um desastre para os gregos, porque todas essas negociações nos meios de comunicação de massa têm nos deixado com medo. Também há muita raiva na Grécia”, conta Dimitris Zahos. Ainda que seja importante entender como o cinema grego contemporâneo se
articula dos pontos de vista estético e político, vale lembrar que todos eles sofrem atualmente de um mesmo mal: o orçamento zero do governo para o financiamento do cinema, através do Centro do Filme Grego, uma espécie de Agência Nacional do Cinema (Ancine). O fato de o cinema, na Grécia, não ter esmorecido pela falta de orçamento – uma vez que produtores, diretores e atores têm buscado financiamento externo e trabalhado em uma espécie de economia de trocas – significa que o cinema ainda pode oferecer para a população grega um potencial de transformação no campo do sensível. “O que se pode dizer é que uma obra engendra, sobre aquele que se deixa afetar por ela, a passagem de um determinado mundo sensível, onde algumas coisas são contadas e outras excluídas, para outro mundo sensível, onde esse recorte da realidade que inclui e exclui coisas é modificado, abrindo outro conjunto de possibilidades e de arranjos entre o que pode e não pode ser partilhado. Isso é talvez tudo o que a arte pode nos oferecer em termos de potencial de transformação”, explica Moacir dos Anjos. Caberia ao espectador, então, a responsabilidade de realizar mudanças efetivas de algo a partir do potencial emancipador da arte. Quem sabe, o “não” votado no plebiscito na Grécia no último mês de julho tenha vindo da apreensão de uma sensibilidade compartilhada – decerto trôpega, mas talvez preservada de alguma forma pela arte – de que o cidadão grego é um ser humano a priori.
DOCUMENTÁRIO
DEEP WEB: THE UNTOLD STORY OF BITCOIN AND SILK ROAD
Dirigido por Alex Winter Com Keanu Reeves, Andy Greenberg, Amir Taaki Epix Originals
SUSPENSE
GÊMEOS – MÓRBIDA SEMELHANÇA
Dirigido por David Cronenberg Com Jeremy Irons, Geneviève Bujold, Heidi von Palleske Versátil Home Video
Narrado por Keanu Reeves, o documentário conta a saga da ascensão e queda do Silk Road, que, entre 2011 e 2013, funcionou como um dos maiores mercados de vendas de drogas online da deep web. Atuando de forma anônima e ilegal sob o pseudônimo de “Dread Pirate Roberts”, o empresário Ross Ulbricht administrava a página até ser preso em outubro de 2013.
Inédito no Brasil, o DVD do filme, uma das obras-primas de Cronenberg, chega às lojas em versão restaurada com uma hora de material extra, incluindo making of e documentários. Na história, os gêmeos idênticos Beverly e Elliot são dois brilhantes ginecologistas que compartilham tudo, desde namoradas até a clínica em que trabalham, até que um deles, o mais tímido, se apaixona por uma de suas pacientes.
DRAMA
HORROR
Dirigido por Andrey Zvyagintsev Com Elena Lyadova, Vladimir Vdovichenkov, Roman Madyanov Imovision
Dirigido por Ingmar Bergman Com Max von Sydow, Liv Ullmann, Gertrud Fridh Versátil Home Video
LEVIATÃ
Kolya é dono de uma oficina e vive junto com esposa e filho numa pequena cidade litorânea ao norte da Rússia. Quando sua propriedade é alvo da especulação imobiliária promovida pelo prefeito corrupto Vadim, o protagonista tem que enfrentar o poder estabelecido para não abrir mão de seus bens. Vencedor de Melhor Roteiro em Cannes, o filme, uma espécie de drama de denúncia política, revela, em tom fatalista, uma “nova Rússia” tomada pela corrupção.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 1
A HORA DO LOBO
Considerado a única produção do gênero horror de Bergman, conta a história do pintor Johan e sua esposa grávida, Alma. Após se retirarem para uma ilha isolada, Johan vai sendo consumido por demônios do passado e por alucinações. Os dois personagens nunca dormem entre as cinco e as sete da manhã – a chamada “hora do lobo” –, período em que despertam os fantasmas, os mesmos que estimulam a veia criativa do pintor. O lançamento inédito inclui vários extras.
GUITARRA Um instrumento e seus instrumentistas
1 CARLOS SANTANA
maior inovação A do guitarrista foi combinar, aos modos do blues rock, o swing, a pegada da salsa e da música caribenha
Com o lançamento de autobiografia de Carlos Santana, a história da guitarra ganha contribuição do roqueiro que foi um dos seus inovadores TEXTO Guilherme Novelli
Sonoras “Acho que, se você for um guitarrista
sério e não apenas um músico de fim de semana, deveria ser obrigatório escutar Charlie Christian. Conforme fui conhecendo as suas melodias, passei a acreditar que todas aquelas músicas e todos aqueles músicos tinham entrado no meu caminho por algum motivo. Acho que todos a quem fui apresentado me fizeram pensar no instrumento de uma nova maneira e em como produzir algo novo”, conta o guitarrista Carlos Santana, na autobiografia Carlos Santana – O tom universal, lançada recentemente no Brasil pela Record. Santana conta que, enquanto ele e Jimmy Hendrix precisavam contar os trastes da guitarra para acertar as notas, Christian, Tal Farlow e Wes Montgomery, guitarristas de jazz, não precisavam nem olhar para o instrumento para tocar melodias intrincadas e sequências rápidas de acordes. Ao contrário dos guitarristas de blues, como B.B. King e Muddy Waters, que abusavam do bend, técnica que curva a corda da guitarra, e usavam os modos da escala pentatônica para se localizarem, os jazzistas antigos,
Já existiam grandes guitarristas nos EUA nos anos 1930–1940, mas o blues ainda era um movimento sem relevância como Christian, nunca tiveram tempo de dar um bend, tamanha era a velocidade do andamento de suas músicas. Sua forma de improvisar era mais livre e ao mesmo tempo mais complexa, refinada, com notas de aproximação, as chamadas escalas cromáticas. Santana se sentiu mais confortável com a música modal de B.B. e Muddy, já que conseguia aguentar o ritmo da improvisação dos jazzistas apenas por 20 segundos, como reconhece na autobiografia. Santana começou a tocar na adolescência, com colegas do colégio, na cidade de Tijuana, no México. A banda Santana surgiu um pouco depois disso e evoluiu, segundo o guitarrista, mais como uma banda de jazz do que
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 2
como uma de rock como os Beatles ou os Stones, que mantiveram sempre a mesma formação. A Santana mudou inúmeras vezes de formação e cada integrante novo acrescentava algo de si como instrumentista à assinatura da banda, caracterizada pelo R&B e pela música latina. A maior inovação desse guitarrista no manuseio do instrumento foi, justamente, combinar aos modos do blues rock, o swing e a pegada da salsa e da música caribenha em geral, que o influenciam até hoje.
ORIGENS
O blues e o jazz começam sem um nome. Partem da mesma fórmula, da mesma estrutura. O que muda é a linguagem. No início, eram os spirituals e as worksongs – estas eram cantos que os escravos desempenhavam durante o trabalho. Um lançava uma pergunta, o outro respondia. Uma música afroamericana que originou o blues. Eram temáticas do cotidiano, do trabalho nas lavouras de algodão, as experiências deles, o que os alegrava, lembranças do passado. O corpo até poderia ser aprisionado, mas o espírito, não.
STONE CITY ATTRACTIONS /DIVULGAÇÃO
1
No início, os instrumentos eram improvisados. A sonoridade da bateria do blues/jazz vem da tábua de lavar roupa que servia de instrumento. As notas que definem o estilo são chamadas de blue notes. Acrescenta-se uma nota à escala pentatônica, um cromatismo que dá essa cara de blues. Os paterns (frases) de jazz partem da cadência, sequência de acordes do blues. “A escala pentatônica é de origem oriental. Ela foi para os EUA com os chineses que estavam trabalhando na construção de rodovias, em condições análogas às dos escravos. Como eles estavam vivendo no mesmo ambiente dos negros, essa influência ficou marcada”, explica Carlos Iafelice Jr., guitarrista e professor de jazz.
O divisor de águas na história da guitarra foi mesmo Charlie Christian. Ele veio do blues e é considerado o primeiro guitarrista de jazz da história, aparecendo na década de 1930. “Foi o primeiro músico que chegou e disse: ‘Opa! Agora a guitarra vai solar, também, não vai ser apenas um instrumento de acompanhamento’. Ele realmente destacou o instrumento”, comenta Frank Hoenen, guitarrista e professor de blues. Os primeiros guitarristas de blues foram Son House e Robert Johnson. O estilo nasce pós-escravidão, mas a vida dos negros na década de 1930 não era nada fácil. “Há três versões para a morte de Robert Johnson, por exemplo. Não sabemos nem onde ele está enterrado”, continua Frank Hoenen. Já existiam
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 3
grandes guitarristas nas décadas de 1930, 1940, mas o blues nos EUA ainda era um movimento sem relevância. Quem o levou para o mundo foram os guitarristas ingleses Keith Richards e Eric Clapton. Richards começou a citar Chuck Berry como sua fonte de inspiração, que, por sua vez, tinha influência de Muddy Waters. Com Eric Clapton, foi a mesma coisa. Ele teve Robert Johnson como referência. Quando esses dois roqueiros britânicos começaram a fazer sucesso, trouxeram com eles suas influências. Wes Montgomery, por sua vez, foi divisor de águas. Um guitarrista completamente autodidata, influenciado pelo som do saxofonista Charlie Parker. Ele tocava com o polegar direito, para não fazer barulho por
FOTOS: REPRODUÇÃO
ARQUIVO SANTANA
Sonoras
2
3
CELIA DE COCA /DIVULGAÇÃO
2 CHARLIE CHRISTIAN
Veio do blues e é considerado o primeiro guitarrista de jazz da história
3 ENCONTRO
Carlos Santana e Eric Clapton já dividiram o palco algumas vezes
4 EDU ARDANUY
Guitarrista pontua que, com Jimmy Page, a banda Led Zeppelin foi a mais criativa de todos os tempos
4
causa do vizinho. Criou essa técnica. “Pat Martino foi outro guitarrista de jazz que mudou a maneira de pensar e de se tocar guitarra. Ele é extremamente técnico. Joe Pass também foi um gênio. Fez da guitarra uma espécie de violão, não precisava de banda para acompanhá-lo”, situa Iafelice. A maior fonte de inspiração dos guitarristas de rock das décadas posteriores foram os três Kings: B.B. King, Albert King e Fred King. Cada um tinha um estilo bem-definido. B.B. King usava a escala pentatônica maior. Albert King usava a escala pentatônica menor. Freddy King era um blues man com bastante influência do funk. Eles foram as principais referências de Hendrix, por exemplo. “Quem estuda
blues, hoje, e quer tocar Stevie Ray Vaughan, tem de antes conhecer Albert King ou, pelo menos, voltar para esses caras para entender as origens do estilo”, explica Hoenen, como que ecoando as palavras de Carlos Santana em relação à necessidade de se conhecer a obra de Charlie Christian.
HARD ROCK
“O primeiro revolucionário do hard rock foi Jimi Hendrix, popularmente falando. Havia outros guitarristas bons na época, mas, a partir dele, esses outros guitarristas começaram a enxergar a guitarra de uma outra forma”, conta Edu Ardanuy, guitarrista da banda Dr. Sin. Um pouco depois, Ritchie Blackmore, do Deep Purple, já
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 4
tocava num nível técnico superior ao de Hendrix, mas não necessariamente com a mesma criatividade e originalidade. Outra referência indispensável da época foi Jimmy Page, do Led Zeppelin. “Provavelmente, a maior banda de rock de todos os tempos, em termos de composição, foi o Led Zeppelin. O virtuoso da época era Richie Blackmore, mas a banda mais criativa sempre foi o Led Zeppelin”, continua. O rock, de uma forma geral, sempre foi um estilo pentatônico, pela já mencionada influência do blues. “Até os dias de hoje, essa escala é meio que ‘a voz do hard rock’ e do blues também. Blackmore trouxe os modos gregos, as escalas menores harmônicas, bem depois da morte de Hendrix.” Com o tempo, foi se elevando o padrão de precisão, o nível de virtuosismo. Ed Van Halen, no final dos anos 1970, reinventou o modo de se tocar hard rock. “Na história do rock, os guitarristas que o mundo inteiro parou para prestar atenção, e boa parte dos guitarristas das respectivas épocas quiseram copiar, foram: Jimi Hendrix, Ed Van Halen, talvez este o da revolução técnica mais radical, e depois Yngwie Malmsteen. Esses três, popularmente, foram os que mais fizeram rebuliço no universo do gênero”, aponta Edu Ardanuy. Malmsteen trouxe a onda erudita para o rock, mas não foi o primeiro. Blackmore já fazia isso na banda Rainbow e no próprio Deep Purple.
INDICAÇÕES Malmsteen trouxe um padrão técnico que, no início dos anos 1980, era praticamente impossível de atingir. “Escutá-lo tocando era assustador. Hoje, já não é tanto. Por causa dele, o padrão de estudo das novas gerações de guitarristas se tornou insano. Os guitarristas não comiam, não dormiam, não namoravam, só queriam saber de tocar guitarra. Esse nível de virtuosismo, mais tarde, se tornou cansativo”, continua Ardanuy.
FLAMENCO E ÁRABE
Van Halen e Malmsteen, por sua vez, tiveram como grande influência os guitarristas flamencos, como Paco de Lucia, e do jazz, como Al Di Meola e John Mclaughlin, que usam como referência tanto o jazz como o flamenco. Muitos anos antes desses dois ícones do hard rock tocarem rápido, esses três já eram bastante populares. As duas principais escalas que influenciaram o flamenco e os roqueiros/ metaleiros foram o modo frígio, um dos modos gregos, e o hijaz, uma escala do folclore árabe. “A mistura dessas duas escalas resultou na escala flamenca, concretizando o modo flamenco. Existem o modo maior, o modo menor e o modo flamenco, influenciado pelo modo menor e pelo modo maior. Então, o flamenco é uma ponte entre características orientais e ocidentais da música. A guitarra flamenca entra como apoio para essa ponte, mesmo. A codificação da escala flamenca foi feita de forma bem intuitiva”, explica Fernando De La Rua, guitarrista brasileiro de flamenco radicado em Madri.
Ele diz que Paco de Lucia foi quem reinventou o flamenco. “Esse estilo é dividido entre antes e depois de Paco. Ele inovou a técnica da guitarra flamenca, conseguiu transformar uma linguagem inteira, uma forma de tocar que influenciaria todas as gerações posteriores a ele. Deu muito mais personalidade ao instrumento”, continua Fernando. Dentro do cenário do fusion, que é, em grossas palavras, a junção do jazz com o rock, existem grandes guitarristas, às vezes, num patamar mais avançado que a maioria dos roqueiros, tal como Scott Henderson e Steve Morse. “Steve Morse nunca foi um roqueiro nato, era um guitarrista de uma banda de fusion, misturava rock, country, fusion e acabou indo tocar no Deep Purple. Hoje, as pessoas o veem como um guitarrista de hard rock, mas a essência dele necessariamente não é essa. Eric Johnson também é um guitarrista incrível”, conta Edu Ardanuy. Outros dois ícones do hard rock bem famosos neste universo dos guitar heroes são Steve Vai e Joe Satriani. A parte mais difícil para o guitarrista do Dr. Sin é o músico ter a própria identidade, uma assinatura enquanto guitarrista. “Para ser técnico, basta ser dedicado e ter um pouco de talento, mas isso não quer dizer que você tenha a sua assinatura. Nossa tendência é que sejamos o resultado de tudo aquilo que escutamos, e é difícil tirar da cartola um jeito novo de tocar, assim como Ed Van Halen tirou. Copiar, depois, é fácil, mas inventar algo é difícil pra burro”, conclui.
BLUES
DEATH METAL
Sony Music
Independente
BUDDY GUY Born to play guitar
CANGAÇO EP Retalhado
O guitarrista americano brinda a tradição do blues elétrico com um disco que faz jus à sua discografia. Ele não se priva de dizer por que é tão aclamado, quando canta “I was born to play guitar/ And everybody knows my name”. Com a guitarra impecável, Born to play guitar resgata sua história desde o início da carreira, em Louisiana, e também homenageia B.B. King. A participação de Joss Stone, por exemplo, traz frescor à sua música, em (Baby) You got what it takes. Já Come back, muddy é a declarada admiração pelo músico Muddy Waters.
A banda pernambucana de death metal Cangaço ficou conhecida na cena cultural local no ano de sua formação, em 2010, quando participou do maior evento de metal mundial, o Wacken Open Air, na Alemanha. Adicionando agressividade ao baião, forró e maracatu, a banda já gravou cinco discos. Com regravações de nomes como Zé Ramalho, Alceu Valença e Nação Zumbi, o novo trabalho mergulha no universo da violência, do cangaço, explorando a temática social. Está disponível apenas no formato digital, no site da banda.
POP ROCK
MEMÓRIA
ANA CAÑAS Tô na vida
Guela Records/Som Livre
O quarto disco da cantora paulista Ana Cañas, 34, é uma viagem pela sonoridade do rock. Com um toque pernambucano, o álbum teve o guitarrista Lúcio Maia (Nação Zumbi) como produtor, que também reforçou a pegada da melodia com violão e guitarra, e o músico e cantor Marcelo Jeneci, que fez as entradas de teclado em algumas faixas. A canção que dá nome ao disco, Tô na vida, gravada em parceria com Arnaldo Antunes, foi lançada como single, em julho. Tô na vida aposta no rock’ n’ roll, mas entrega um resultado mais suave, melódico.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 5
PAULO LEMINSKI SONGBOOK PAULO LEMINSKI Iluminuras
Poeta, tradutor, escritor e figura ímpar na cultura brasileira da segunda metade do século 20, Paulo Leminski (1944-1989) foi também um prolífico compositor. Pela primeira vez, partituras e cifras de 109 canções dele aparecem reunidas neste volume, parte de um projeto de resgate de sua obra musical empreendido pela filha, Estrela Ruiz. O songbook é um tesouro, também, por dispor de fotografias, rascunhos, manuscritos originais e depoimentos de parceiros como Moraes Moreira, Guilherme Arantes e Jorge Mautner.
HALLINA BELTRテグ
Leitura
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 6
BIOGRAFIA A dilatação dos limites do gênero
A tradicional definição de “relato da vida de alguém” não dá conta dos temas biografados em títulos recentes TEXTO Rodrigo Casarin
Um dos maiores jogadores de futebol
de todos os tempos. Nascido em Pau Grande, no Rio de Janeiro, atuava com a mesma irresponsabilidade que encarava a vida. Os dribles que dava nos gramados, seja pelo Botafogo, seja pela seleção brasileira, também executava fora deles. Parecia fácil passar por qualquer zagueiro, mas acabou sendo marcado de perto e perdendo a bola para o álcool. Garrincha, o gênio em questão, foi biografado após sua morte por Ruy Castro, no livro Estrela solitária. O Fusca surgiu em 1938, apresentado no Salão do Automóvel de Berlim por ninguém menos que Adolf Hitler. O nazista prometia que aquele seria um carro do qual todos poderiam desfrutar. O objetivo foi atingido com extremo sucesso e o veículo se tornou um dos mais vendidos, famosos e benquistos do mundo. O automóvel também foi biografado. Sua história está em O carro do povo – A biografia do carro mais popular do planeta, de Bernhard Rieger. Uma das personalidades mais complexas da história do Brasil, Getúlio Vargas, ex-presidente, ex-ditador, é o alvo de uma trilogia biográfica extremamente respeitada, escrita por Lira Neto. O trabalho mais recente das historiadoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Starling também já nasceu
cercado por respeito e admiração dignos de um indiscutível clássico. O título bastante direto da obra não deixa dúvidas sobre o que ela é: Brasil: uma biografia. Ou deixa? Livros que se declaram biográficos, mas trazem vidas ou “vidas” de personagens tão díspares como um jogador de futebol, um carro, um político e um país podem ou devem receber o mesmo rótulo de biografia? No caso de Garrincha e Getúlio, não há dúvidas de que sim, mas eles servem de parâmetro para contrastarmos com as outras duas citadas. Jornalista, professor, especialista no assunto e autor de estudos transformados em livros como Biografismo e Biografias & biógrafos, Sergio Vilas-Boas considera, em um primeiro momento, que qualquer “indivíduo, vivo ou morto, cuja inter-relação vidaobra seja interessante para um público heterogêneo e leigo” de uma biografia. Instado a um olhar mais vertical na questão, mostra-se um pouco mais aberto, aceitando, ainda que de maneira crítica, personagens que não sejam exatamente indivíduos. “Sinto que, no mundo de hoje, quando se trata de popularizar, viralizar, vender alguma coisa, tudo é válido. Se eu, particularmente, acho válido? Acho. Contudo, soa-me como um
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 7
maneirismo ingênuo e marqueteiro. Eu não adotaria essas nomenclaturas assim, indiscriminadamente. Por exemplo, preferiria ‘O carro do povo – uma história do carro mais popular do planeta’”, considera, enfatizando a palavra história no lugar de biografia. Indo além, Vilas-Boas explica que Garrincha, por exemplo, é um indivíduo com vida, personalidade, atitude e carreira próprias e apreensíveis, enquanto o Fusca é um objeto material, funcional e inanimado. “Qualquer narrativa em palavras sobre um fusca é fruto de uma interpretação humana. O Fusca não possui linguagem, uma trajetória e estética, por si próprio. Pode-se biografar qualquer outra coisa que não possua forma e linguagem humanas, mas, ao fazê-lo, entra-se deliberadamente no território específico e diferenciado da ficção, no qual tudo é possível, inclusive a invenção desbragada. Animais ou coisas não têm a linguagem que lhes atribuímos. Tudo o que dissermos sobre eles individualmente tende a ser pura idealização. Já na biografia sobre um humano, há uma reciprocidade que possibilita uma interpretação defensável e plausível.” Mas o que outros biógrafos pensariam da questão? Dentre eles, parece não haver grandes problemas,
FOTOS: REPRODUÇÃO
Leitura
1
talvez porque também tenham suas obras que narram vidas, digamos, não humanas. O próprio Lira Neto, por exemplo, autor de Getúlio, acredita que lançamentos como o livro sobre o Brasil e sobre o Fusca evidenciam a força e o interesse do público pelo gênero biográfico. “É sintomático notar que um monumental livro de história como Brasil, escrito por duas conceituadas historiadoras, chegue às prateleiras das livrarias com o subtítulo de ‘uma biografia’. Por muito tempo, a biografia foi considerada, nos meios acadêmicos, um gênero menor, tratado com desdém, quando não até mesmo com certa repulsa. Tal lançamento é uma demonstração de que o gênero biográfico se afirmou como uma produção bibliográfica válida e relevante do ponto de vista da produção do conhecimento histórico”, opina Lira. Ele também lembra que as biografias não precisam ser, necessariamente, sobre personalidades públicas. “Um dos livros mais deliciosos que já li é O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, uma espécie de perfil biográfico de um sujeito anônimo e maltrapilho que vivia pelos becos e esquinas de Nova York”, exemplifica. Já Ricardo Gozzi, autor da biografia de Kid Vinil e de livros-reportagem sobre a Democracia Corintiana e a banda Velhas Virgens – que, segundo ele, também poderiam ser rotulados como biografias –, tem uma visão semelhante à de Lira, mas com a
2
O termo“biografia” potencializa o poder de vendas de uma obra, por se tratar de um gênero familiar para muitos leitores ponderação crítica de Vilas-Boas. “Em princípio, não vejo motivo para que países, movimentos relevantes ou coisas não possam ser considerados dignos de biografia, ainda que se tratem de construções coletivas sobre as quais o sujeito da história carece de autonomia para tomar decisões por si. Ainda não li esses livros e, portanto, não tenho como emitir juízo sobre eles. Talvez soe esquisito chamar de biografia, ou ser rotulado como tal, e rótulos servem mais aos interesses do mercado do que aos do autor ou aos do leitor.” Celso Campos Junior, autor de obras biográficas sobre Adoniran Barbosa e Marcos, ex-goleiro do Palmeiras, também adentra na questão mercadológica, olhando para o uso do termo “biografia” como um possível catapultador de vendas, que amplia o número de potenciais compradores de uma obra, por conta do gênero já ser familiar para um grande número de leitores e ter boa aceitação do público. “Evidentemente, o rótulo não pode ser aplicado a qualquer biografado, digamos, inanimado. É preciso que o
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 8
objeto do estudo tenha uma espécie de identidade marcante, quase uma personalidade mesmo, que o destaque entre seus pares, sejam eles carros, países ou mesmo doenças, como é o caso de O imperador de todos os males – Uma biografia do câncer, premiado livro de Siddhartha Mukherjee. Quando o escritor se debruça sobre um objeto assim, encontra tantas e tão multifacetadas histórias, que a comparação com uma vida humana acaba sendo, mais do que compreensível, inevitável.” Campos Junior considera “especialmente importante em biografias que não se referem a pessoas” que o autor não se limite à história contada em si, mas vá além do personagem e dê ao leitor um panorama da época e do ambiente no qual o protagonista em questão se insere. Isso, destaca, amplia as possibilidades de compreensão do leitor, sendo algo fundamental também para que se tenha sucesso ao biografar um personagem humano.
VERBETE ATUALIZADO
Mas, então, quais seriam os limites da biografia? Voltemos às ideias de Vilas-Boas, que considera apenas dois os delimitadores. “Os limites da forma biográfica, na minha visão, são a necessidade de exatidão factual, o que impede certas experimentações artístico-literárias, e a necessidade vital de que a pesquisa honre o princípio fundamental de lançar luzes
INDICAÇÕES 1 FUSCA O carro que já foi o mais popular do planeta, biografado por Bernhard Rieger RIN TIN TIN 2 Mesmo sendo personagem fictício, vivido por um cachorro, ganhou biografia
sobre a relação entre vida e obra de um indivíduo humano imperfeito”, diz, voltando à questão da necessidade humana. “Um texto biográfico deixa de ser biográfico quando o autor minimiza a história pessoal do personagem central com vistas a atingir outros fins, como a defesa de interesses específicos. É o que chamo de biografia que não biografa, e, sim, milita em prol de alguma hipótese pré-determinada e fechada”, continua. Quando tratamos com os autores, no entanto, novamente encontramos uma flexibilidade maior. Campos Junior cita o livro Rin tin tin – A vida e a lenda, de Susan Orlean, como um exemplo de biografia feita “como manda o figurino”, ainda que se refira a um personagem fictício animalesco interpretado, se é que podemos utilizar a palavra neste caso, por diversos cachorros. “A autora conta a história de mais de 10 gerações do famoso astro canino da televisão e do cinema e aborda também aspectos cruciais da indústria do entretenimento, da Segunda Guerra Mundial, da relação do homem com os animais de estimação, entre outros temas que envolvem o personagem principal”, resume. Ao ser questionado se toparia, então, fazer algo nessa linha, diz que, na verdade, já o fez. É que
considera o livro Nada mais que a verdade, que escreveu junto dos jornalistas Denis Moreira, Maik Rene Lima e Giancarlo Lepiani, a respeito da trajetória do Notícias Populares, uma biografia do jornal, que enxerga inclusive com uma personalidade bem-definida, sendo amado pelos leitores e odiado pelos críticos. “Seus casos envolvem comédia e tragédia, esperança e desconsolo, como acontece na vida de todos nós. No livro, não falamos em fundação ou fechamento do jornal, e, sim, em nascimento e morte. Aliás, por execução, bem ao estilo dos casos tantas vezes retratados por ele”, brinca. Já Lira conta que, coincidentemente, neste momento escreve um livro histórico que não se refere a um indivíduo, mas que já comunicou a seus editores da Companhia das Letras que, ainda assim, pretende publicálo com o nome “biografia” estampado na capa. “Ainda não posso entrar em detalhes sobre o objeto da pesquisa, mas aprovaram a ideia.” O dicionário Houaiss traz a seguinte definição para o verbete “biografia”: “s.f. 1 relato da vida de alguém 2 livro, filme etc. que contém esse relato”. Pelo visto, a partir do que o mercado vem ditando e pela maneira que os profissionais da área encaram a abrangência do termo e, por que não do gênero, logo os organizadores do Houaiss terão que rever a primeira definição. “Relato da vida de alguém ou de alguma coisa” poderá ser mais adequado.
ENSAIO
EVANDO NASCIMENTO Derrida e a literatura É Realizações
ROMANCE
CACO ISHAK Eu, Cowboy Oito e Meio
Originalmente uma tese de doutorado, possibilita o entendimento dos principais conceitos do pensamento do filósofo. A obra, que chega à sua terceira edição, revista e ampliada, é tida como pioneira em língua portuguesa a tratar desse universo. No prefácio, Evando Nascimento diz que não se considera um discípulo.
Caco Ishak pode ser conhecido como o autor dos poemas de Dos versos fandangos ou a má reputação de um estudo em polvorosa (7Letras, 2006). Mas, com esse livro, vai ser conhecido como prosador, numa ficção de narrativa cheia de referências contemporâneas. O romance começa anunciando que ali a história termina. O autor é goiano (1981), mas mora em Belém do Pará.
ESPIRITUALIDADE
ETNOGASTRONOMIA
SANTA TERESA D’ÁVILA As moradas do castelo interior É Realizações
O título faz parte da trilogia doutrinal desta carmelita descalça, que abarca Livro da vida e Caminho de perfeição. Assim como a teologia lê a obra de Santo Agostinho como basilar da fé cristã, o legado de Teresa D’Ávila se refere à máxima mística, à busca da transcendência pelo encontro com Deus.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 6 9
ADRIANO MARCENA Raspando o tacho – Comida e cangaço Funcultura
A pesquisa foca o período entre 1922 e 1938. O autor se interessou sobre como os cangaceiros adquiriam, transportavam, conservavam, preparavam e comiam alimentos; e como faziam para apagar vestígios pelo caminho, evitando deixar rastros para a polícia. Farinha, rapadura e carne assada estão na sua base alimentar.
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
POR QUE ME DEVORAS?
Suponho que o curta-metragem foi
dirigido por Luchino Visconti, mas não posso garantir com certeza. Eu o assisti no antigo Coliseu, em Casa Amarela, quando o Recife possuía cinemas no centro da cidade e nos bairros, e várias salas exclusivas para filmes de arte. Tratava-se de uma produção italiana em que reuniram cinco diretores. O curta que me impressionou narrava a história de uma atriz famosa pela beleza – ou seria uma cantora lírica? –, aguardada ansiosamente numa festa em sua homenagem. Depois de algumas taças de champanhe, a beldade sente-se mal e desmaia. Os convidados se aproximam do corpo e começam a despi-lo de tudo o que realça a beleza. Removem joias, roupas e maquiagem, num trabalho de desconstrução do mito. Nunca esqueci os rostos expressionistas, as máscaras de concupiscência e crueldade dos predadores ávidos em destruir. O assassinato de Abel pelo irmão Caim, no Gênesis, é o primeiro registro sobre a inveja na mitologia judaicocristã. Isso se considerarmos que as
motivações de Adão e Eva ao comerem o fruto da árvore plantada no meio do Éden eram apenas a desobediência e a gula. Mas, o desejo do primeiro homem e da primeira mulher poderia ser o de que os seus olhos se abrissem e eles também se tornassem como os deuses, versados no bem e no mal. Uma pulsão invejosa. Abel era pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo. Caim ofereceu os frutos da sua colheita a Iahweh e Abel, por sua vez, as primícias e a gordura de seu rebanho. O Deus se agrada de Abel e sua oferenda, mas não se agrada de Caim e do que ele traz ao altar. Caim ficou irritado, com o rosto abatido, o que foi percebido pelo Onisciente, aquele a quem nada escapa, nem mesmo um fio de cabelo da nossa cabeça. O Deus não ignora os danos da sua arbitrária preferência. Mesmo assim interroga Caim: “Por que estás com raiva e por que teu rosto se abateu? Se estivesses bem disposto não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto, não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 0
espreita; podes acaso dominá-lo?” A interpelação de Iahweh aumenta o rancor de Caim, levando-o ao descontrole. Possesso, ele busca anular o que não compreende, nem aceita. – Não tolero o êxito do outro, sabêlo preferido e sentir-me repudiado. O que fiz? Em que errei? Por acaso as espigas não são necessárias à sobrevivência do homem, igualmente ao leite e à carne das ovelhas? Porém este Senhor parcial só tem olhos para as oferendas do meu irmão, só enxerga a prosperidade do seu trabalho. Mesmo que eu reinventasse o mundo, salvasse a humanidade do abismo, mesmo assim não seria olhado, nem teria a minha criação reconhecida. Julgo-me superior a Abel. Sou moderno e graças ao cultivo do solo crescem as cidades, o homem se fixa na terra e prospera. Este poderia ser o discurso do invejoso. Menciono a fala em que Caim subestima as realizações do irmão. – Quem é Abel? Um pastorzinho insignificante. Olha cabras e ovelhas pastarem, arranca o som modorrento de uma flauta, não possui ambições,
CAIN SLAYING ABEL, DE PETER PAUL RUBENS, C. 1608/REPRODUÇÃO
Através do sobrenatural, se dá o encontro de Macbeth com três feiticeiras esquálidas e estranhas na maneira de vestir. As parcas semeiam a cobiça ao trono da Escócia, no coração de Macbeth, que valoriza profecias e sinais fora da lógica. Bem diferente do pérfido Edmundo, do “Rei Lear”, o mais elaborado invejoso da história da literatura. Edmundo recusa que a astrologia e o sobrenatural expliquem seu nascimento bastardo, sem os direitos do irmão Edgar, filho legítimo do nobre Glócester, a quem ele se julga superior em tudo. “Tal é a excelente loucura do mundo que, se nos encontramos de mal com a fortuna (o que acontece frequentemente por nossa própria culpa), achamos que o sol, a lua e as estrelas sejam culpados de nossas desgraças; como se fôssemos vilões por necessidade, loucos por compulsão celeste; patifes, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbados, embusteiros e adúlteros pela obediência forçada ao influxo planetário e como se só fizéssemos o mal por instigação divina! Admirável escapatória do homem femeeiro essa de colocar suas veleidades lúbricas sob a responsabilidade de uma estrela! Meu pai se uniu com minha mãe sob a cauda do Dragão e a Ursa Maior presidiu ao meu nascimento; daí se
Exaltado pelo amor próprio, Caim mata o irmão. Matar é o derradeiro recurso do invejoso para suportarse e continuar vivendo mal distingue a noite do dia. Mas, com os artifícios da sua música, composta apenas de habilidades, ele engana o Todo Poderoso e alguns tolos juízes que o premiam, como se vissem merecimento onde nada existe. Abel reproduz estrídulos, coisa feita, artefatos. Exaltado pelo amor próprio, Caim mata o irmão. Matar é o derradeiro recurso do invejoso para suportar-se e continuar vivendo. Shakespeare aprofundou o estudo dos pecados capitais, no
seu teatro. Macbeth, personagem exemplo de cobiça ao poder, trai, enreda e mata para alcançá-lo. Investigando a personalidade do general escocês, descobrimos que a inveja o impulsiona a cometer atrocidades. A esposa alimenta a fogueira do invejoso. Ela incensa qualidades, que supostamente passam despercebidas. Ataca o destino e as forças que regem o universo e que não se ajoelham diante da grandeza do esposo. Eleva sua vaidade às alturas do que julga merecimento.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 1
segue que seja eu violento e libertino. Basta! Teria sido o que sou, se a mais virginal estrela do firmamento houvesse piscado, quando fui bastardeado.” Ninguém escapa aos invejosos, nem à sua sanha destrutiva. Na fábula do vaga-lume que vai ser devorado pela serpente, o inseto solicita fazer três perguntas ao réptil. Faço parte da sua cadeia alimentar? A resposta é não. Já lhe fiz algum mal? Outro não. Então, porque vai me devorar? Porque não suporto o seu brilho, responde a serpente.
MANUELA DOS SANTOS SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
Visuais CRÍTICA Mário Pedrosa reeditado Um dos mais influentes pensadores nacionais do campo da arte ganha novas edições de sua vasta obra, esgotada há décadas no país TEXTO Olívia Mindêlo
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 2
Se, hoje, temos uma noção mais
alargada do conceito de arte, devemos isso a Mário Pedrosa. Se, hoje, aceitamos e valorizamos a existência de uma produção artística distinta do conceito cartesiano de beleza, perseguido por séculos por uma dada pintura realista, devemos isso a Mário Pedrosa. Se, hoje, aclamamos nomes como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, o mérito é, em grande parte, de Mário Pedrosa. Se, hoje, tecemos uma apreciação crítica da arte não apenas sob o viés formalista e internalista da estética, mas sob o espectro mais amplo da sociologia, da filosofia e da história, por exemplo, devemos isso também a ele. Mais ainda: se, hoje, relacionamos como uma questão fundamental as dimensões arte e política, não podemos esquecer quem foi um pensadorchave no Brasil do século 20. Talvez nós nem tenhamos consciência disso tudo, mas eis um dos pilares estruturais para compreendermos, por exemplo, a virada entre os conceitos de arte moderna e contemporânea em nosso país. É inegável a força da influência dos escritos e da atuação desse crítico, que, nas palavras de sua filha Vera Pedrosa, “sabia abrir perspectivas sem imposição de rotas”. Os pontos mencionados acima são, na verdade, algumas das portas de entrada possíveis para compreendermos as contribuições de Mário Pedrosa, nascido menino de engenho em Pernambuco (Jussaral, Timbaúba) e criado pelo mundo, tendo difundido suas ideias a partir, principalmente, do Rio de Janeiro, onde fixou residência enquanto esteve no Brasil. Apesar de sua grande influência, há tempos não víamos títulos assinados por ele nas prateleiras de maior alcance do público, de modo que sua bibliografia permaneceu, durante muitos anos, esgotada nos fornecedores e restrita, no geral, a estudantes e pesquisadores do ambiente universitário. Finalmente, duas novas edições da editora Cosac Naify, com textos do autor, acabam de ser lançadas: Arte–Ensaios (vol. 1) (624 páginas) e Arquitetura–Ensaios críticos (192 páginas). Os livros inauguram uma coleção voltada à republicação do autor e encontram-se à venda nas livrarias físicas e virtuais do Brasil.
O primeiro título abarca a produção intelectual mais eloquente de Mário Pedrosa, com 31 ensaios sobre arte, sobretudo artes visuais, escritos entre 1933 e 1978, e agora organizados sob a curadoria do crítico e professor Lorenzo Mammì. O segundo reúne, como anuncia o título, uma fortuna crítica de 22 textos, publicados entre 1957 e 1962, em torno da arquitetura, particularmente daquela que convencionamos chamar de moderna/ modernista brasileira, cujo ícone maior foi Brasília. Organizado pelo arquiteto, crítico e curador Guilherme Wisnik, esse último volume mostra um lado mais breve e menos conhecido de Pedrosa, embora também importante na obra do pensador, alguém que, segundo Wisnik, “teve um papel seminal na crítica de arquitetura no Brasil”. Questionando-se, em seu texto de apresentação, qual foi, afinal, a importância do pensador nesse
No país, seus escritos foram fundamentais para a compreensão da virada da arte moderna para a contemporânea sentido, já que sua atuação foi mais abrangente nas artes plásticas e na política, Wisnik responde: “Pedrosa soube interpretar como ninguém o caráter revolucionário daquela arquitetura nascida, no entanto, em um ambiente social e político contraditório”. Ou seja, numa época tão influenciada pelo conservadorismo da Era Vargas quanto pelo vanguardismo das ideias de Le Corbusier, guru de nomes como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Reside aí uma justificativa considerável para a publicação, que, no entanto, não possui o mesmo grau de abrangência da primeira.
MILITÂNCIA
De fato, Mário Pedrosa dedicou boa parte da vida à arte, tanto como colunista e resenhista de jornais, revistas, catálogos, livros, quanto como importante agente do campo artístico. Além de ter escrito com frequência
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 3
para o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã e Tribuna da Imprensa, por exemplo, o crítico exerceu funções determinantes em instituições culturais influentes. Na Fundação Bienal de São Paulo, cuja grande mostra ajudou a fundamentar, atuou como membro das comissões organizadoras da exposição entre as décadas de 1950 e 1960, e como seu diretor-geral em 1961. Logo em seguida, dirigiu o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM– SP) durante dois anos. Todavia, além da arte, outra questão ajudou a catalisar sua energia em todas essas direções: a política, nos seus sentidos macro e micro. Por isso, a Cosac Naify também lançará uma coleção de escritos relacionados ao tema. “Mário Pedrosa foi um militante decisivo para as causas do socialismo democrático. Foi um antistalinista precoce, rompeu com o PCB e era, como único latino-americano, um dos organizadores da IV Internacional, com Leon Trótski à frente. Fez parte da Esquerda Democrática, que reunia opositores da ditadura do Estado Novo. Em 1980, foi o filiado número 1 do nascente Partido dos Trabalhadores”, lembra Milton Ohata, editor desses novos títulos. Por conta de seu engajamento, Mário Pedrosa passou por dois exílios: um de 1939 a 1945 e outro de 1970 a 1977. Pouco tempo antes, em 1938, havia viajado clandestinamente a Paris, na França, justamente para a IV Internacional, encontro voltado a reforçar o poder do proletariado. No ano seguinte, regressou também clandestinamente ao Brasil e, ao dar entrada no território, foi preso e liberado sob condição de exilar-se. De acordo com Ohata, estão programados, para 2016–2017, mais dois volumes sobre arte, duas compilações de escritos políticos e uma edição sobre “cultura em geral”. “Estamos também em conversa com os herdeiros sobre a edição da correspondência”, adianta o editor, referindo-se à negociação com a família de Pedrosa para publicar a série de cartas trocadas entre Mário e grandes artistas modernos, críticos e militantes políticos, por exemplo. Afora Lorenzo Mammì, à frente dos textos sobre artes plásticas, e Guilherme
COLEÇÃO FAMÍLIA PEDROSA
Visuais 1
Wisnik, sobre arquitetura, mais três especialistas estão envolvidos na organização dos novos livros da editora paulista: o professor e historiador Francisco Alambert, para a edição de cultura geral; e Isabel Loureiro e Dainis Karepovs, para os títulos relacionados às reflexões e militâncias políticas. Os dois últimos conheceram Mário no fim da vida (ele morreu em 1981) e tiveram a oportunidade de pesquisar no arquivo da sua casa. Todos os organizadores escolhidos pela editora são “uspianos”, ou seja, crias da Universidade de São Paulo, que segue, não obstante sua suma importância, ditando olhares e interpretações sobre o nosso conhecimento em arte, cultura e política no Brasil, pelo menos desde a Semana de Arte Moderna em 1922. A força de um eixo que se mantém, apesar da importante conexão de Mário com o Nordeste, por exemplo. Segundo a editora, a antologia dos textos políticos é a grande novidade editorial da coleção, porque vem associada, pela primeira vez, ao viés da estética, além das novas abordagens dos organizadores, das
Além das obras já publicadas, estão previstas mais quatro; entre elas, uma antologia dos textos políticos de Pedrosa notas de rodapé (fruto de pequisa de referências não feitas antes por Mário) e do caderno de imagens encartado na edição das artes plásticas. “O mais importante é que, na cabeça dele, arte e política andavam juntas, como era para Picasso, Miró e os surrealistas. A arte, como a política, era fundamental para criar um mundo menos alienado, mais livre. Simplesmente, decidimos juntar as metades que tinham tomado caminhos editoriais divergentes ao longo do tempo. Pela primeira vez, um projeto editorial está contemplando essas duas dimensões do Mário Pedrosa”, defende Milton Ohata. Os livros mais conhecidos do autor, ligados à sua atuação política,
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 74
foram publicados pela editora Civilização Brasileira e, depois, não mais reeditados. Os da Cosac Naify compreendem textos inéditos e abarcam justamente desde a sua dissidência do stalinismo, nos anos 1930, até sua contribuição à fundação do PT, em 1980. Quanto aos escritos sobre arte, Otília Arantes e Aracy Amaral haviam organizado importantes compilações, que foram amplamente consultadas no ambiente acadêmico e serviram de base para as novas edições. Na visão de Vera Pedrosa, sem os trabalhos de Otília e Aracy, a obra do seu pai “teria ficado dispersa e talvez esquecida”. “Tanto os textos recolhidos em livro e estudados por Aracy Amaral como os volumes da Edusp organizados e analisados por Otília Arantes são de importância capital para o conhecimento da obra dele. A dra. Otília teve o mérito de destrinchar e organizar, de maneira meticulosa, uma grande quantidade de documentos que lhe foram por ele entregues. Seu trabalho é a fonte de informação mais consultada pelos que estudam e realizam trabalhos acadêmicos a respeito”, afirma a diplomata, poeta e crítica de arte Vera Pedrosa (leia entrevista com ela a seguir). A professora Otília Arantes, aliás, foi responsável ainda pela organização do livro Mário Pedrosa: itinerário crítico (188 páginas), uma antologia de sua apreciação estética ao longo da vida, publicada também pela Cosac Naify, em 2005. Além disso, ela foi consultada pelo próprio editor Milton Ohata para este novo projeto. Poderíamos, então, perguntar: qual a diferença entre os trabalhos feitos pela especialista para a Edusp e para a atual edição, e, agora, os organizados por Lorenzo Mammì e Guilherme Wisnik, também ligados ao olhar estético do crítico? Ohata responde que “cada coletânea teve a sua importância na época de sua produção”. Segundo ele, as da Aracy Amaral, por exemplo, foram acompanhadas pelo próprio autor (“Há, de certo modo, uma chancela dele”). A de Otília Arantes, por sua vez, é mais extensa e foi baseada em pesquisas de arquivo, incluindo o do próprio Mário Pedrosa. “As duas coletâneas não têm exatamente os mesmos textos”, afirma.
FOTOS: REPRODUÇÃO
Para Vera Pedrosa, à diferença de Aracy e Otília, os encarregados pelas novas edições da Cosac não o conheceram pessoalmente, o que não implica numa diminuição de qualidade, pois um trabalho, neste caso, alimentou o outro. Ela acredita que o mais importante é que a atual iniciativa da editora paulista torna acessível, mais uma vez ao público, uma obra que estava fora de circulação. “É um fato cultural significativo”, ressalta ela.
CRÍTICA DE SÍNTESE
Afora os livros desta nova coleção, encontra-se em vias de conclusão a primeira edição em língua inglesa de textos do autor, organizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, local onde Mário foi frequentador assíduo, tendo travado relações com gestores da instituição. A publicação é fruto de uma iniciativa do curador Paulo Herkenhoff junto ao MoMA e está sendo organizada com a colaboração de Glória Ferreira e outros estudiosos brasileiros do mesmo calibre. Segundo Vera, o livro fará parte da série Primary Documents do museu, contendo volumes com panoramas da arte atual do Japão, da China, da Venezuela e da Argentina. “A particularidade do volume sobre o Brasil é a de centrar-se na figura de Mário Pedrosa.” Em se tratando dele, é preciso desconstruir noções do senso comum do que seja um crítico de arte, um intelectual. Por exemplo, há quem diga e reforce a ideia de que um crítico é, grosso modo, um árbitro apto a separar o “bom” do “ruim”. A professora e pesquisadora Maria José Justino afirma que, no sentido moderno, “a crítica surge como uma atividade humana voltada aos julgamentos, em particular, os julgamentos de apreciação (juízo de valor) da obra de arte”. E acrescenta que “essa ocupação faz do crítico, em relação à obra, uma autoridade, amada ou odiada”. Em parte, tem ela razão e pode até ser que Mário Pedrosa tenha se encaixado, ao longo da sua vida, nessa definição. No entanto, está longe de ser uma descrição suficiente, para não dizer reducionista, de sua contribuição ao mundo. Mário Pedrosa foi muito além disso. Na direção contrária, até. Do mesmo modo,
2
3
1 FAMÍLIA Mário Pedrosa com sua filha na década de 1950 2-4 ATENÇÃO Artistas como Lygia Pape, Lygia Clark e Helio Oiticida tiveram sua criatividade estimulada por Pedrosa
4
esteve igualmente longe de ser um apreciador no “sentido kantiano”: de visão puramente formal e distanciada, que vê na arte uma essência e uma grandeza – o belo e o sublime. Como escreve Guilherme Wisnik, em sua apresentação para os textos sobre arquitetura, Mário Pedrosa atuou nesse meio “não como um historiador ou um cronista da cultura, e, sim, como um verdadeiro crítico”. Poderíamos afirmar que ele inaugurou, no Brasil, a crítica de arte contemporânea, coerente com os caminhos e os pensamentos da produção artística brasileira a partir dos anos 1940, bem como a europeia e a norte-americana, com as quais o crítico também manteve íntima
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 5
aproximação. Todavia, mais do que ter sido “um crítico certo no momento certo”, para trazer as palavras de Milton Ohata, Pedrosa foi ainda um intelectual, digamos, sem antolhos, isto é, de vista alargada, profunda e perspicaz. Assíduo leitor de Karl Marx e outros, para ele importavam muito mais as questões sociológicas, filosóficas e psicológicas da arte do que as estéticas. Nesse sentido, podemos dizer que ele foi um dos primeiros, pelo menos nas artes plásticas, a praticar no Brasil uma crítica de síntese entre a linguagem jornalística, diferente da praticada atualmente, e a acadêmica, tendo sido, portanto, um ensaísta por excelência, de escrita extremamente sedutora e sensível.
FOTOS: DIVULGAÇÃO
Entrevista
VERA PEDROSA “ELE PASSOU-ME A CRENÇA NA ARTE COMO NECESSIDADE VITAL” A carioca Vera Pedrosa é uma
5
Visuais Podemos ver o amadurecimento de seu trabalho quando nos deparamos com a leitura de seus textos compilados agora pela Cosac Naify, ou quando lemos as apresentações dos seus respectivos organizadores. As contradições, claro, fazem parte desse processo: no início, foi um crítico das vanguardas e, depois, um grande defensor das experimentações contemporâneas. No seu texto Arte, necessidade vital, publicado em 1947, por exemplo, Pedrosa defende um conceito mais amplo de arte, numa época em que a criação era ainda (para não dizer ainda hoje) associada à ideia de uma virtude a serviço da reprodução fiel da realidade. Mas, para ele, a arte não quer “imitar a vida”, ela é a própria vida, ou em suas palavras (à luz da artista e educadora Marie Petrie), “a arte se realizaria pelos mesmos princípios que regem a criação incessante do universo e o seu mecanismo funcional. Ela não repete ou copia a natureza; mas obedece às mesmas leis que esta; transpõe-nas para o plano da criação consciente, isto é, humana”. Obviamente, Mário dava plenos poderes à arte, mesmo na
5 LANÇAMENTOS A Cosac Naify dedicou um volume aos escritos sobre arquitetura e outro aos de arte
sua tentativa de pôr em prática uma visão antiessencialista, contracultural. Contudo, há de se convir: a definição na qual relaciona vida e arte (talvez a grande questão teórica da arte) soa muito mais eficiente do que mil teses sobre a produção contemporânea e, vale ressaltar, em plenos anos de 1940 no Brasil. Lorenzo Mammì alega que Mário Pedrosa “não foi um pensador acadêmico, mas um crítico militante”. Uma dimensão não parece anular a outra, pois nem o pensamento científico está isento de sua militância. Entendemos a força de sua frase, no entanto, talvez seja mais interessante pensar, como escreve Wisnik, que, inspirando-se em Baudelaire, “Mário Pedrosa entende a atitude crítica de maneira política. Pois a crítica estética envolve juízo, comparação, hierarquia e uma relação dialética entre distanciamento e empatia com a obra. Para ser justa, a crítica tem de ser parcial, apaixonada, e não fria e algébrica”. E poderíamos acrescentar, à maneira de Pedrosa, que, para nascer arte, o adubo deverá ser a liberdade, posta em condições para tal.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 6
pessoa a quem podemos atribuir diferentes predicados: diplomata, poeta, crítica de arte, defensora e gestora da cultura. Entre esses, no entanto, há um decisivo em sua vida: ser filha de Mário Pedrosa. Única filha, aliás, de um dos principais pensadores brasileiros do século 20, sobretudo no que concerne a reflexões sobre arte e política. Junto à família, Vera segue responsável pelo zelo e pela difusão da obra do pai, para ela um exemplo de solidariedade. A seguir, acompanhamos um pouco de sua fala sobre as memórias e as influências do pai, nascido em Timbaúba, Pernambuco, de onde partiu, ainda bem jovem, para o mundo afora. CONTINENTE Vera, como era a sua relação com o seu pai? VERA PEDROSA Meu pai foi de convívio estimulante, afetivo e jovial. Tinha hábitos simples, advindos da herança familiar nordestina austera e espartana. Em casa, mostrava-se alegre e brincalhão. O entorno doméstico era vibrante e nunca opressivo ou tedioso. Dava apelidos de pássaros do Nordeste aos familiares e aos netos, que o adoravam.
CONTINENTE Que memórias de sua vida com ele são para você cruciais? VERA PEDROSA Foi um eterno otimista, de espírito aberto às conquistas e contradições da época. O diálogo corria livre e intenso à sua volta. Ouvia com atenção. Foram cruciais para mim muitos
BEL PEDROSA/DIVULGAÇÃO
aspectos de sua personalidade: a sua integridade e coragem, o renascer das cinzas nos momentos difíceis em que o avanço da harmonia e da justiça social parecia perigosamente regredir a tempos de trevas. Não esqueço o entusiasmo na defesa de seus ideais, a rapidez de pensamento, a fina ironia. Penso que exerceu influência sobre artistas e intelectuais de seu tempo graças à qualidade do contato pessoal e à transmissão oral e direta de conhecimentos. Sabia abrir perspectivas sem imposição de rotas. Outra característica que o distinguia era a solidariedade humana, que se evidenciava tanto na ação política, como no convívio. Tendo atuado de forma pioneira numa sociedade eivada de arcaísmos, são ainda hoje impressionantes a sua antevisão e perspicácia. CONTINENTE Quando passou a se interessar pelo trabalho de seu pai? Como foi descobrir Mário Pedrosa? VERA PEDROSA Era impossível desinteressar-me de seu trabalho. Trabalho e vida se confundiam. Desde criança, acompanhava-o a museus, exposições e visitas a ateliês de artistas. No Rio de Janeiro, adolescente, era convocada a comparecer a vernissages, a assistir a reuniões e debates. Atuei como secretária em circunstâncias nas quais minha mãe estava impedida de fazê-lo. A não ser quando me refugiava a portas fechadas para estudar, vivia numa casa em que era raro o dia sem a presença de visitantes com interesses culturais. Lembro-me de ter sido convidada a vê-lo organizar o que penso haver sido a primeira mostra individual de Volpi no Rio de Janeiro, no tempo em que o Museu de Arte Moderna (MAM) estava instalado nos pilotis do prédio do então Ministério da Educação. CONTINENTE Ele falava de Timbaúba? Que lembranças, observações e sentimentos tinha ele sobre Pernambuco e o Nordeste? VERA PEDROSA Orgulhava-se de ser pernambucano e gostava muito de falar de Timbaúba e do engenho onde nasceu, Jussaral. As lembranças circunstanciadas eram mais de João Pessoa, onde a família se instalou
conhecia chegaram ao Rio “feitos e completos” do Nordeste ou do Norte e, entre outros, citava seus amigos Livio Xavier, Evandro Pequeno, Jorge de Lima e Jayme Ovalle.
“Sabia abrir perspectivas sem imposição de rotas. Outra característica que o distinguia era a solidariedade humana” sendo ele ainda criança. Seu pai, Pedro da Cunha Pedrosa, eleito senador pela Paraíba, veio morar com a família no Rio de Janeiro, quando Mário, despachado para estudar na Bélgica, foi parar em Lausanne, na Suíça, em decorrência do estado de guerra na Europa. Voltou ao Brasil para cursar a Faculdade de Direito no Rio de Janeiro. Era muito ligado à família. Sentia grande respeito e admiração pelos pais, e tinha muito carinho pelos irmãos e sobrinhos. Seus contatos com Pernambuco foram mais decisivos na idade adulta. Adorava o Nordeste, que considerava o fulcro da real brasilidade. Encantado com uma visita que fez ao Recife, em companhia de Aloísio Magalhães, dizia que sonhava ser vice-rei de Itamaracá “numa existência idílica antes dos tempos”. Lembro quando comentava que os brasileiros mais cultos e inteligentes que
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 7
CONTINENTE Você acredita, como ele, que a arte pode transformar o mundo? Por quê? VERA PEDROSA Não sei se pensava que a arte movimentaria a dinâmica de transformação no sentido da superação das contradições e iniquidades da sociedade planetária. Passou-me a crença na arte como necessidade vital do ser humano, como possibilidade universal, suporte de realização individual ou coletiva, independentemente das circunstâncias de inserção social, tempo, cultura e civilização. Há quem lhe atribua, no final da vida, um desencanto com a arte. Acredito, antes, que nunca se desfez da percepção da inevitabilidade da arte. Achou-se descrente, em dado momento, de algumas manifestações que lhe vinham sendo apresentadas como de “vanguarda” e nas quais não identificava maior pujança. O conceito mesmo de “vanguarda” nas artes tornavase relativo e talvez esgotado. CONTINENTE Como podemos mensurar o legado de Mário Pedrosa? VERA PEDROSA Não me sinto apta a mensurar o legado de Mário Pedrosa. Não me entendo bem com a palavra “legado”. Estou convencida de que a leitura de seus textos por quem ainda não os conhece será enriquecedora. Alguns dos artistas brasileiros que hoje alcançam projeção internacional, e cuja relevância artística continua atual, foram por ele estimulados em sua criatividade e desenvolvimento. Refiro-me a Lygia Clark, Helio Oiticica, Lygia Pape, Mira Schendel e outros. A obra de Lygia Clark acaba de ser exposta no Museu de Arte Moderna de Nova York (o MoMa) e Hélio Oiticica terá uma individual importante no novo Museu Whitney, na mesma cidade. OLÍVIA MINDÊLO
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
GÊNESE DE UMA CAPA
Começou com um bilhete
de Arthur Carvalho. “Amigo Zé Cláudio: O livro chama-se A menina e o gavião/200 crônicas escolhidas, a ser publicado pela Cepe. Segue a foto de Teresa Cristina, a minha filha, que inspirou a crônica, tinha 8 anos quando comprei o gavião para ela e depois tivemos que soltá-lo. Zé Mário fez as orelhas e Ângelo Monteiro o prefácio, Zé Mário perguntou quem iria fazer a capa e eu disse que deveria ser o pessoal da CEPE, ele sugeriu que a capa fosse sua (...) tem pássaro no meio, um gavião. Gostaria muito que você aceitasse o trabalho. Amizades, amizades, negócios à parte. Diga quanto será e a forma do pagamento. Saravá, Arthur Carvalho.” Sabe o que é, Arthur, amarelei eu, são coisas que não se coadunam. Não encontrei como juntar, como fazer com que se coadunassem, pelo menos no meu espírito dividido entre a criança no quintal encantada com o gavião, encantamento repassado à parte de criança que em nos subsiste, apesar dos cabelos cor de prata, e a moça Teresa Cristina, muito linda,
de arrasar, reavivando todos os meus complexos de inferioridade, de classe, de raça, de cultura, de pobreza, ou sei lá mais quais, imperceptíveis ou inconfessáveis, que eu julgava há muito vencidos, ainda mais de feiura e velhice que entre os nhambiquaras eram designadas pela mesma palavra segundo Levy-Strauss segundo Simone de Beauvoir (A velhice), me fazendo lembrar, apesar da diferença de gênero, o desamparo de Katherine Mansfield quando via homem bonito, coisa que não consigo imaginar, homem bonito, apesar da profissão de pintor, resultando de tudo isso febre, frio, dor de cabeça, labirintite, e ainda por cima tendo de entregar o desenho da capa “ontem”, Luiz Arrais telefonando, dizendo que Leitão estava em cima dele, isso sem falar na cobrança de quadros há tempo encomendados por marchands, e eu me refugiando, sabe onde? Em quando eu menino nos meus “interiô”, longínquo embora no tempo e logo ali na distância: sei que é cansativo ficar falando o tempo todo de Ipojuca, que suscitará a pergunta:
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 8
“Por que não volta pra lá?” E volto. Na memória, único jeito de voltar. No quintal de lá de casa, como em todos os quintais que se prezam, tinha uma cacimba, de onde era bombeada por bomba manual a água para um tanque de cimento em cima do banheiro. Não havia energia durante o dia. A antiga tampa da cacimba, de madeira, meio apodrecida, foi substituída por outra de cimento armado, lisinha, passando a ser meu lugar predileto de contemplação, deitado de papo pra cima, olhando as nuvens. Maria Jorge, a empregada, me chamava de “Zé Preguiça”. Sabe Deus em que eu pensava. Em nada talvez. Talvez dormisse. Porque, numa dessas vezes, quando abri os olhos, pairava bem verticalmente acima de mim, a uns trinta metros de altura, como na crônica e no livro Ornitologia Brasileira de Helmut Sick, um gavião peneira (Elanus leucurus). “Peneirou peneira/ Peneirou no ar/Peneirou peneira/Meu amor onde ele está?” Deve se referir ao gavião, lá do alto observando tudo. Tanto que, me sentindo insuficiente para chegar à moça, parti para meu
REPRODUÇÃO
1
quintal d’antanho, em vez do sítio de Baccaro para onde se dirigiu Arthur Carvalho levando Crispim, nome com que Teresa Cristina batizara o peneira. Pensei em reproduzir na capa uma paisagem que pintei do céu de Ipojuca do livro José Cláudio/vida e obra mas o leitor se perguntaria por que o quadro, sem saber do episódio da tampa da cacimba. De novo olhava a foto, que apareceu na página social do Jornal do Commercio. Embarquei numa interpretação que me remetia dessa vez à Itália renascentista, a um quadro de fundo enigmático de Tiziano, A Vênus de Urbino. Nesse quadro, não me disseram por qual razão, uma cena dá ao todo da pintura um tom
1 CAPA I lustração em acrílico sobre papel, de José Cláudio, feita para o livro de Arthur Carvalho
Terminei fazendo um gaviãozinho num buraco azul do céu entre as nuvens recuperando-o ao menos da memória distante de mistério, uma criada saqueando um baú ao que parece, como aqueles criados surpreendidos pelo vulcão em Pompéia, quem sabe simbolizando um estupro ou sei lá que outras sugestões nos ocorram, e que corresponde a uma personagem no fundo da foto olhando com ar rancoroso, ameaçador, para a
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 7 9
figura da moça, como se injuriada pela beleza e serenidade desta, a perguntar-se: “Por que bela ela e não eu?” E é como se nos transferisse essa pergunta irrespondível, a ponto de nos tornar céptico quanto à justiça divina ou à própria existência desse ser superior que nos incutiram. Lembrei-me de dar uma saída, ir aos shoppings verificar nas vitrines das livrarias, na multidão de livros expostos, o que era raro nas capas, o que poderia fazer com que uma capa se distinguisse das demais quanto a tipografia, cor, ilustrações ou sei lá mais o que mas já sabendo pura perda de tempo, justamente o que eu não tinha. Ocorre ainda que, quando da publicação no jornal da crônica que dá nome ao livro, escrevera ao autor um bilhete parabenizando-o, tão encantado ficara quanto Cristina pelo pássaro, e era de se esperar pudesse eu traduzir isso agora no desenho da capa, transformando um trabalho talvez considerado corriqueiro num cavalo de batalha, numa questão de honra até. Já o francês Mathiew aventara ser o trabalho do pintor igual ao do toureiro, este arriscando a vida e o outro ainda mais: a honra. Terminei fazendo um gaviãozinho num buraco do azul entre as nuvens recuperando-o ao menos da memória distante, apostando no que disse Gauguin, de nada parecer tão banal quanto uma obra-prima. O que não se aplicará ao caso, dirá possivelmente coberto de razão o leitor.
FOTOS: ALCIONE FERREIRA
CON TI NEN TE
Conversa
ARTES VISUAIS
O papel das instituições
Artistas e curador apontam um momento difícil na cena artística local, comparado com a efervescência vivida no final dos anos 1990 e início dos 2000 Agradecemos ao artista Gil Vicente por ter cedido sua casa/ateliê para a realização desta Conversa.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 0
Chegamos à penúltima Conversa,
seção criada especialmente para circulação neste 2015, ano em que a revista Continente comemora 15 anos de publicação ininterrupta. Navegamos pelo Cinema (janeiro), Artes Cênicas (março), Música (maio), Literatura (julho) e agora chegamos às Artes Visuais. Neste percurso, convidamos profissionais dos setores, ligados direta e indiretamente à produção: escritores e críticos, cineastas e professores, para que conduzissem, eles mesmos, os assuntos que acham prementes no momento. Neste encontro, profissionais da cadeia artística apontam, sobretudo, para a atual desarticulação das instituições e das políticas públicas para o setor.
superbacana. Se não fosse esse primeiro impulso, a gente poderia estar muito pior, no sentido de não ter um lugar que abrigasse o que está sendo feito. Aquele período foi muito importante e ainda vivemos um pouco dele.
MARIANA OLIVEIRA Agradeço a presença de vocês nesta edição da Continente Conversa, que comemora os 15 anos da revista. Para iniciarmos, queria que vocês fizessem um panorama da cena das artes visuais em Pernambuco, hoje. LUCIANA VERAS Se chegasse algum estrangeiro aqui e pedisse uma apresentação do panorama das artes visuais em Pernambuco, hoje, como vocês o apresentariam? GIL VICENTE Gostaria de sublinhar o que aconteceu de Marcus Lontra para cá, ou seja, o que aconteceu com o Mamam. Isso foi
JULIANA NOTARI Acho que a gente vive uma certa baixa. Estava há três anos fora e voltei. E sinto a cena, principalmente a institucional, abandonada. Institucionalmente falando, é um momento de muita penúria. E corrobora para isso que o Recife, Pernambuco em si, em termos de artes visuais – é bom sempre frisar, porque tem outras áreas que vão bem – não tem mercado. Tínhamos duas galerias importantes – uma fechou. Temos uma produção que depende muito de políticas públicas. Houve uma fase em que estava tudo muito bem, as instituições estavam funcionando em boas condições, e você percebia que várias atitudes e vários núcleos que eram independentes estavam sendo absorvidos por elas. Mas, ao mesmo tempo, naquela cena de prosperidade, todo mundo se pegava pensando: “poxa, mas não tem mais nenhum espaço independente, não tem mais um ateliê”, porque as instituições estavam cumprindo bem a sua função. Agora percebo que acontece o oposto. Acho que o único lado bom desse descaso é que a cena alternativa alavancou. Isso é bem perceptível.
Convidados CARLOS MÉLO Natural de Riacho das Almas (PE), com pesquisas no ramo das artes e filosofia, desenvolve uma atividade artística regular. Foi premiado em diversos salões de arte e, em 2006, recebeu o Prêmio CNI Marcantonio Vilaça para as artes visuais. Compõe o casting da Galeria Amparo 60.
GIL VICENTE Gil Vicente nasceu no Recife, onde vive e trabalha. Em 1975, recebeu o 1º Prêmio do Salão dos Novos, no MAC. Realizou diversas individuais no Brasil e participou da Bienal de São Paulo em 2002 e 2010, e, em 2007, do Panorama da Arte Brasileira, no MAM-SP.
JULIANA NOTARI Artista pernambucana, é mestre em Artes Visuais pela UERJ. Em 2001, realizou sua primeira individual Assinalações no Museu da Abolição, no Recife. Desde lá, realizou várias exposições, participou de diversas mostras e recebeu prêmios.
MOACIR DOS ANJOS Pesquisador e curador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi diretor do Mamam (2001–2006),curador do pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza (2011) e da Bienal de São Paulo (2010). É autor, entre outros, dos livros Local/ global. Arte em trânsito e ArteBra Crítica.
ORIANA DUARTE Nasceu em Campina Grande (PB), é doutora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professora do Departamento de Design da UFPE. Como artista, participou de muitas mostras, entre elas Art from Pernambuco, em Londres, este ano.
Mediação
CARLOS MÉLO Eu nem gosto muito dessa palavra “cena”. Acho que acaba sendo uma cena, de fato, como se fosse uma encenação, um ensaio de algo. Cheguei por aqui em 1997, para morar no Recife, o que
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 1
LUCIANA VERAS Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco, com especialização em Estudos Cinematográficos pela Universidade Católica de Pernambuco, e repórter especial da revista Continente.
MARIANA OLIVEIRA Jornalista formada pela Unicap, editoraassistente da revista Continente, professora do curso de Jornalismo da Uninassau e mestre em Humanidades pela Universidad Carlos III de Madri.
ALCIONE FERREIRA
CON TI NEN TE
firmou de fato no Recife; há momentos melhores e piores. Os artistas sempre dependeram e continuam dependendo do mercado Rio-São Paulo para realizar vendas. E a reflexão que tem que ser feita é que a produção continua existindo, mas não há meios de torná-la pública. Não existem esses mecanismos de veiculação, de reverberação e de legitimação funcionando. Faltam as instituições que sejam elementos aglutinadores e geradores de conhecimento no campo das artes visuais.
Conversa
coincidiu com o IAC (Instituto de Arte Contemporânea), a abertura do Mamam. Claro que, naquele momento, tinha a sensação de que alguma coisa ia começar a acontecer, como de fato aconteceu, junto com a Fundação Joaquim Nabuco e outras instituições, assim como o surgimento de novos artistas. Tenho uma relação com a história da produção de arte daqui, de alguma maneira, muito otimista. Sempre fiquei nessa sensação de que a coisa continuaria, de que iria se firmar, e a sensação que tenho hoje é a mesma. MOACIR DOS ANJOS Acho que, quando a gente fala sobre como está a cena hoje, é inevitável que sempre compare esse momento com outro, de uma década e pouco atrás. MARIANA OLIVEIRA O que é bem interessante, porque foi quando a Continente começou também. Então, talvez fosse um momento no qual muita coisa começou. MOACIR DOS ANJOS É sintomático isso. Em meados dos anos 1990, estava havendo um boom, não sei se artístico ou cultural, não só na área de artes visuais, claro, basta lembrar o exemplo da música, como também a retomada do cinema naquele momento. No campo das artes visuais, há a conjunção
“Estava há três anos fora e voltei. E sinto a cena, principalmente, a institucional, mais abandonada” Juliana Notari de uma série de fatores. Seja no plano municipal, com a criação do Mamam; a solidificação de uma teia institucional, com o Murilo La Greca, com o Mamam no Pátio, com o Centro de Design etc. Tem a requalificação do Museu do Estado, o salão, sempre capenga, mas, naquele momento, ainda existindo. E, no plano federal, a Fundação Joaquim Nabuco que começa, de fato, a partir do final dos anos 1990, a se dedicar à arte contemporânea e ao cinema. E também a universidade (UFPE), com a criação do IAC, em 1995. Havia uma conjunção de elementos acontecendo, que criavam um ambiente propício a uma efervescência. Os artistas tinham canais por onde escoar, onde discutir suas necessidades. Existia, naquele momento, uma vontade institucional de fazer. E estou enfatizando isso porque hoje, em contraposição, o que a gente diagnostica é que há um certo vazio institucional. O mercado nunca se
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 2
ORIANA DUARTE Tem uma certa frustração em termos das expectativas de uma produção que existiu, de um momento fértil, dos anos 1990. Isso está na memória da geração, inclusive dos artistas mais recentes. Sendo professora, sou acessada também por essa via. É uma frustração que, de certa forma, apaga alguns problemas da nossa atualidade. Porque o mundo mudou muito nesse período. Houve uma mudança inclusive no modo de acessar a arte: a supervalorização do objeto artístico, da produção de arte, a figura mesmo do artista. Num mundo globalizado, temos outras potências que podem vir a interferir não só na própria figura desse artista, como um sujeito, que talvez não esteja tão interessado em fomentar o local como a gente estava na minha geração. Talvez ele esteja muito mais interessado em atuar num circuito maior. Ou seja, a figura do artista sai de cena, nesse sentido, de se preocupar com essa discussão local. O que ele quer mesmo é poder produzir e não se responsabilizar com o apresentar, com a exposição, com essas estruturas pelas quais a nossa geração estava tão interessada. E é estranho pensar no peso e na medida diferenciada que tem o Funcultura. Cinema, teatro, literatura, os outros segmentos têm uma força, um apoio e uma estrutura mais organizada – principalmente cinema – dos próprios produtores, que reverberaram para escolher os projetos, pleitear um edital próprio etc. Artes plásticas, de fato, é o que menos recebe. Por quê? Porque a demanda não é tão grande. E quem está lá dentro não entende. É como se dissesse “Olha, eles estão bem do jeito que estão”. Aí, tem uma mídia que cria uma imagem distorcida de um setor que movimenta milhões, em que seus
DIVULGAÇÃO
agentes são autossuficientes. Eu já ouvi isso. O artista que não consegue essa independência econômica não é bom. Para um ET, o estrangeiro que chegasse a Pernambuco, eu diria “vamos aos ateliês alternativos, vamos ver a moçada”. Até porque, como artista, confio mais na arte do que em tudo. CARLOS MÉLO Numa edição de 2013 da Continente, além de ter apontado essa sensação de que não existia cena, falei isso: se você quer ver o que acontece, vá ver os artistas. Porque o que tem sido feito realmente é a produção deles. Eu fico pensando: nós estamos frustrados para quem? Para um passado que a gente de alguma maneira foi condicionado a dar conta dele? De que é um estado promissor, que tem tradição de arte? E também vale perguntar: o que é dar certo? O que é ser de fato um artista? Será que a gente não tem que pensar em romper com essa ideia de um estado supertradicional? Lembro que, na época do Salão da Bahia, um dos diretores de lá me falou: “Pernambuco já tem uma tradição com artes visuais, a Bahia não tem e para isso criou o salão”. Então, quando se cria essa expectativa muito grande em relação a Pernambuco, fico pensando se não é um fardo pesado demais para dar conta agora, de ter que ser um lugar onde necessariamente tem que ter uma produção vigorosa dentro do que é vigoroso hoje. ORIANA DUARTE Uma pergunta: como estão as trocas, hoje, entre os artistas daqui? CARLOS MÉLO Existem alguns artistas com quem eu tenho, de fato, uma aproximação. Sinto que existe um diálogo, percebo que, nesse momento, é como se nós nos reconhecêssemos, como se existissem ali pessoas que estão vivendo e sentindo a mesma coisa. Eu lembro que Suely Rolnik, que foi minha orientadora, me disse uma vez que o difícil talvez não seja viver de arte, o difícil talvez seja viver fora do eixo Rio–São Paulo. MOACIR DOS ANJOS Você acha que é? CARLOS MÉLO Penso que não. Acho que o eixo virou seta. Eu me sinto diluído. É como se não tivesse fronteira. E isso a
1
gente vê especificamente na produção de alguns artistas que estão, digamos, mais projetados hoje. MOACIR DOS ANJOS Você falou uma coisa que me lembrou o seguinte: vivemos um momento em que, por um lado, estamos bastante desterritorializados, no sentido de que você está em contato com todo o mundo ao mesmo tempo. Você pode produzir aqui e expor em qualquer lugar do mundo. Por outro lado, existe uma forte característica das artes visuais, que é uma certa materialidade, diferentemente do cinema, por exemplo. Você faz um filme com 300 cópias e o mundo todo assiste a ele, simultaneamente. Ou a música, que você bota no streaming. Nas artes visuais, em boa parte dela, mesmo vídeo, há restrições. É uma produção que necessita de um lugar específico para ser vista. Você não vai ver no Recife a mesma coisa que em Nova York ou São Paulo. ORIANA DUARTE Esse é um momento em que o eixo se dá pelo mercado. São as galerias, as feiras. O artista em São Paulo vive na ansiedade da produção, de dar conta da demanda. É uma estrutura de mercado. Aqui, a bronca é que somos zerados de todas essas estruturas. Fica só a figura do artista. Agora, o positivo,
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 3
1
MIMOSO
Vídeoperformance de Juliana Notari, filmado na Ilha de Marajó (PA), levanta discussões sobre morte, castração e libido
novamente chamo a atenção para isso, é lançar um olhar diferenciado para as estratégias desses artistas, de estarem produzindo. Como é que isso está acontecendo? Como é que isso se mantém aqui? JULIANA NOTARI O manguebeat aconteceu quando saiu uma pesquisa da ONU colocando o Recife como a terceira pior cidade do mundo para viver. Ou sai daqui, ou faz o quê? Cria um movimento para ficar. Tira leite de pedra. A classe artística é muito pulverizada, desde a sua gênese de formação pela elite, com os mecenas. É complicado você fazer uma classe organizada, como se tem em cinema, teatro, música. MOACIR DOS ANJOS Mesmo no momento atual, se você olhar nacionalmente ou até internacionalmente, vê um reconhecimento de uma certa tradição de arte pernambucana, falando das artes de Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Montez Magno. Começa a olhar para trás e vê que existe uma genealogia sendo reconhecida, uma tradição. Vê
ALCIONE FERREIRA
LUCIANA VERAS Essa elite que viaja, vai a Paris e se orgulha de ir ao Louvre, vai ao MoMA, em Nova York, e posta suas fotos nesses museus, compra a arte contemporânea local?
CON TI NEN TE
Conversa que, nos últimos cinco ou seis anos, essas figuras dos anos 1970 e 1980 estão sendo reconhecidas. Quer dizer, os trabalhos de Gil, Juliana, Carlos, Oriana não surgiram do nada. Há uma genealogia, e não só de pintura modernista. Existem artistas fazendo coisas relevantes do ponto de vista contemporâneo, dos anos 1960, 1970, 1980. E, apesar disso, você não vê nenhuma repercussão disso num plano institucional, do apoio. É impressionante o desnivelamento entre o reconhecimento crescente que existe e a falta de reflexão ou acolhimento institucional dessa produção. CARLOS MÉLO Tive uma experiência recente em Caruaru, com a Bienal do Barro. Talvez seja uma forma de refletir um pouco sobre essa cena pernambucana sem ser o Recife. A ideia de fazer a Bienal foi, obviamente, uma extensão de uma obra minha, que se chama O corpo barroco, um anagrama, e eu fracionei esse anagrama em “o corpo”, “o barro”, e “o oco”, e descobri que o corpo já existia no meu trabalho, o oco também, mas o barro, onde é que estava? Estava na minha relação com o lugar, o Agreste, cuja matéria-prima de referência é o barro. E essa experiência para mim foi muito forte. Quando cheguei lá com o projeto
“É impressionante o desnivelamento entre o reconhecimento e o acolhimento dessa produção” Moacir dos Anjos aprovado do Funcultura e fui pedir só o apoio da prefeitura, eles ficaram muito surpresos com algo daquele tamanho acontecendo ali. ORIANA DUARTE Essa é uma estratégia bem própria desse outro momento do artista. Por exemplo: como poderíamos imaginar a cena londrina dos anos 1990 emergir, se não fosse Damien Hirst tomar a frente e montar exposições? Faz parte de toda uma estratégia que passa por tirar esse local pontifício do artista, e ser ele que propõe, que muda um pouco o sentido da história. Acredito que é na situação difícil que essas empreitadas emergem, não num local todo estruturado. Eu sou otimista nesse sentido de que cada vez mais vai vingar uma certa altivez pernambucana pela via do artista. Não tenho otimismo nenhum via órgãos governamentais, instituições e galerias. A elite pernambucana é distanciada da arte.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 4
GIL VICENTE Não sei bem quem era, mas que comprava, comprava. Mas não compra mais. É muito raro. São poucos colecionadores, porque só quem compra aqui, agora, é quem coleciona. Comprar para botar um quadro na parede depende do arquiteto que estiver assessorando. Mas se vendia muito. Quando comecei, o MAC, em Olinda, era o museu que agitava. Tinha o salão dos novos, pelo qual passei, e estavam sempre acontecendo coisas lá. Foi onde conheci um monte de gente do circuito. E outra coisa também sobre a compra: no começo dos anos 1980, desde que comecei a desenhar e pintar, sempre tinha gente para comprar. Passando pelos finais de 1970 e 1980, nunca tive problema financeiro, a não ser nessa temporada. É difícil. Não vende, a gente vê muita gente passando trabalho adiante. ORIANA DUARTE Aí eu vou nessa questão da inflexão que acontece nesse período de Gil, bem próxima da emergência de uma produção de arte contemporânea de um viés mais conceitual, de um olhar diferenciado que, de certa forma, acaba direcionando toda a produção daqui e, contraditoriamente, acaba diminuindo a repercussão de mercado. Nisso, sim, eu saio da figura do artista e venho cobrar das instituições. Se houvesse mais instituições formadoras de público, formadoras de opinião, haveria uma formação realmente. GIL VICENTE E referência para artistas que estão começando. MOACIR DOS ANJOS A questão é o que transformaria essa classe média emergente em compradores de uma arte que não apenas reproduza o que todo mundo já sabe? Ou seja, que passe a consumir o pensamento vivo contemporâneo das artes visuais ou que consuma o cinema de autor? Porque é essa mesma classe média que também vai para o cinema e acha uma porcaria a produção local. Há um mal-estar cultural que é preciso ser aprofundado. Como é que podemos atuar nisso? Ou,
ALCIONE FERREIRA
DIVULGAÇÃO
2
simplesmente, a gente tem que se render a essa nivelação pelo que já está dado, pelo que já foi reproduzido infinitas vezes na mídia, na televisão, nas rádios? MARIANA OLIVEIRA Na Conversa Literatura, o escritor Fernando Monteiro disse que havia a morte do leitor e não a morte do autor. MOACIR DOS ANJOS E, depois dos livros de autoajuda, agora a gente tem os livros de colorir. O que distancia o público da produção dos artistas que estão produzindo não de olho nessa visualidade hegemônica, mas de olho no furo, na transgressão, na fissura, no escuro? ORIANA DUARTE Voltamos para a instituição e para a figura do artista, que não é bem o grande prejudicado. É a sociedade toda. O artista resiste, cria até suas estratégias. Mas tem um papel maior, é preciso que os órgãos governamentais entendam isso. Acho assustador e tento vir primeiro nesse discurso de resistência do artista – esse outro lado, que depende de outros, que tem uma lógica descomprometida, dentro de um país cheio de bronca, de corrupção extrema, onde a educação foi relegada. É preciso cada vez mais abrir cursos de arte, cursos superiores,
“Comprar para botar um quadro na parede depende do arquiteto que estiver assessorando”
2
Gil Vicente pós-graduação. Por exemplo, lá em São Paulo, onde fiz meu mestrado e doutorado na área de Comunicação e Semiótica, é amplificada a discussão sobre arte em diversos setores. A arte já está ali naquela sociedade. GIL VICENTE Acho terrível não se ter o bacharelado aqui. No meu vestibular, não tinha. Só tinha desenho industrial, como chamavam. Não tinha curso de arte, nem licenciatura, nem bacharelado. Eu já estava, de certa forma, fazendo uma universidade, que foi a convivência com o pessoal da Oficina Guaianases. Um monte de artistas bacanas, com experiência. Cresci nessa formação. Desde novo, eu já estudava na Escolinha de Arte do Recife. Teve muita importância para mim, foi uma referência forte. Entrei com 15 anos e passei seis anos lá, com Teresa Carmem, que fazia gravura. Depois, fui para os ateliês de extensão da Universidade,
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 5
INIMIGOS
A série de desenhos assinada por Gil Vicente está em exibição no Mamam até fevereiro de 2016
ainda na Benfica, que tinha aula de observação de figura humana. E também fiz dois ou três anos lá. MARIANA OLIVEIRA Escutamos algumas queixas de que a mídia tem dado menos espaço para as artes visuais. Nos cadernos de cultura, nos roteiros de fim de semana, são noticiados os filmes em cartaz, tudo que está em cartaz, mas nem sempre se destacam as exposições. Geralmente, publica-se matéria quando a exposição abre e, depois, o acontecimento desaparece da mídia. Em que medida essa falta de atenção da mídia colabora para tornar a situação mais difícil? E também pensar, não falando apenas de Pernambuco, mas no geral, se temos críticos de arte e qual o papel deles hoje. MOACIR DOS ANJOS Essa é uma questão recorrentemente colocada. Creio que o diagnóstico vale não só para cá, mas para o Brasil todo e também outros lugares. E não só para as artes visuais, mas para outras áreas de produção artística. Essa transformação de um espaço de crítica para um espaço de divulgação, em que muitas vezes as matérias são muito próximas dos releases enviados para o jornal, como se o papel do jornal, da revista ou da mídia fosse simplesmente informar, anunciar o que está ocorrendo, e não refletir. Acho que tem a ver com algo que a gente já falou aqui, a questão da educação, a falta de reflexão,
GRUPO CAMELO: FRAMES DE VÍDEO
CON TI NEN TE
Conversa
3 UM RISCO NO CÉU
erformance P realizada por Oriana Duarte na residência artística Faxinal das Artes
4 O CORPO BARROCO
A Bienal do Barro (Caruaru, 2014) é uma extensão dessa obra de Carlos Mélo
hoje a questão continua assim: uma falência de formação de um lado, que vai se refletir numa perda de interesse e, com a perda de interesse, o jornal não vende. Se não é lido, não é assunto para estar aqui.
3
falta de interesse mesmo do público de jornais. Ou, pelo menos, do modo como os jornais avaliam qual seria o interesse desses leitores. Isso termina gerando um ciclo vicioso: à medida que a mídia não forma esse público, junto com outras instituições que deveriam ter esse papel formador, ele fica desinformado, não tem interesse em ver as exposições. Quer dizer, há todo um achatamento da compreensão do que é esse fenômeno cultural artístico contemporâneo, com uma banalização do sentido da própria criação cultural artística. Em outros países, principalmente grandes centros, como Nova York, Paris e Berlim, você pega determinados jornais e vê muita reflexão de qualidade sendo feita. Há de se investigar por que isso não ocorre aqui no Brasil e em outros países. Mas há espaços de resistência no mundo nos quais continua existindo crítica de qualidade bem-feita, pertinente, não só laudatória, mas colocando em questão o que está sendo dito. E vejo hoje em dia a questão da curadoria assumindo o papel da crítica, na medida em que relaciona artistas, relaciona obras, relaciona épocas e, de alguma maneira não direta, não explícita, cria um pensamento a partir dos trabalhos artísticos, propondo uma interlocução entre eles. ORIANA DUARTE É um trabalho de pesquisa o de curadoria, aproxima-se muito disso. Inclusive para conhecer essa aproximação de artistas, criar esses territórios móveis que a gente vê. Nisso aí também se dá um apoio ao acessar as obras que, no caso, vem a cumprir um papel de crítica diferenciada. Esse local do crítico, do pensador, pode muitas vezes acontecer numa curadoria responsável, organizando
CARLOS MÉLO A assessoria de imprensa também é um divisor de águas na história toda dessa construção crítica. Eu sinto falta, às vezes, de uma matéria mais autoral, até quando ela erra.
ALCIONE FERREIRA
GIL VICENTE Depende do jornalista. ORIANA DUARTE Historicamente, é muito importante o papel do jornal, porque ele é um veículo que também se torna obra. MARIANA OLIVEIRA Havia réplica e tréplica nos jornais, uma discussão acontecendo, e hoje não se vê mais isso.
“O artista sai dessa discussão local, ele quer produzir e não se responsabilizar com o apresentar” Oriana Duarte o pensamento para esse olhar, para o acessar desses trabalhos que são tão complexos, principalmente quando se juntam. Antes, nos anos 1960, isso era muito centralizado na figura do crítico. Inclusive, dentro da história do Modernismo, no início do século 20, era o próprio artista, junto com o galerista, que tinha um papel de organização do pensamento muito forte, além do jornalista, que era um pensador, um crítico, que emergia da redação. Depois, esse crítico cria independência desse ambiente, a partir dos anos 1960. Mas
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 6
ORIANA DUARTE O periódico era um disparador. O primeiro disparo acontece nos anos 1910, com o primeiro manifesto da arte moderna, o Manifesto Futurista, do Marinetti. Foi uma estratégia de marketing dele, que era fascista pra caramba, mas foi lançar em jornal, no Le Figaro. Se não fosse isso, ninguém ia dar bola para o que estava acontecendo na Itália. Eu lembro que, com Grupo Camelo, a gente contou realmente com a imprensa como estratégia. Pensamos: “Olha, se a gente pega o IAC e faz uma exposição com seis componentes, e mantém durante seis meses, então, durante seis meses a gente vai ter matéria no jornal”. E o que era uma matéria naquela época? O cara realmente ia lá e apreciava as obras, não chegava apressadinho, perguntando o que está acontecendo. A mídia foi uma estratégia, de fato, tão importante para nós, que pensamos: “vamos fazer a exposição e, durante um semestre, vamos ter uma página, vamos ter manchete de jornal”. Aconteceu isso. Havia o interesse pela arte. Havia uma construção de algo em que a mídia era estratégia posta pelo grupo. E foi fundamental para isso.
ALCIONE FERREIRA
GIL VICENTE Eu acho que o Camelo foi muito importante para o pessoal da geração de Juliana, uma referência. LUCIANA VERAS Para concluir, de maneira sintética, quero agradecer a todos por mais uma Continente Conversa muito reflexiva. Qual seria a principal batalha a ser empreendida pela arte contemporânea em Pernambuco e no Brasil nos próximos anos? MOACIR DOS ANJOS De um modo amplo, mais abstrato, seria inserir as artes visuais no campo de interesse da sociedade. Mostrar a relevância de existir um campo que pensa as sombras do presente, que pensa o contemporâneo pelo avesso e não pela repercussão do que já está exposto, do que está claro. Existirem esses campos cegos que pensam o contemporâneo justamente por aquilo que incomoda, por aquilo que fratura, por esses buracos. E mostrar a relevância disso. E como fazer isso? Só há um caminho: através do fortalecimento institucional que está supostamente dissociado ou tem independência suficiente para se impor diante da pressão homogenizadora ou repetidora que existe no âmbito do mercado, principalmente. Acho que o grande desafio seria esse. ORIANA DUARTE E, desse amadurecimento institucional, creio que há duas frentes bem fortes: a de formação e preparação do público e a de exposição do artista, que não deixa de ser também uma formação para ele. E nessa concepção de que o artista que expõe está se formando também, hoje em dia, eu já identifico algumas sequelas em relação à minha geração. Era um momento extremamente relevante para a própria produção ganhar força. Vou pegar agora a questão do Ocupe Estelita. Tenho um grupo na pósgraduação que discute os dispositivos de operações artísticas no espaço urbano, e estamos concluindo o semestre com um certo estranhamento do papel do artista visual aqui em Pernambuco, no período do Ocupe Estelita. Como foi fraco, como as estratégias de atuação foram extremamente frágeis. E, historicamente, esse é um espaço para o artista visual. O que aconteceu aqui foi muito tímido.
“Fico pensando se não é um fardo essa expectativa muito grande em relação a Pernambuco”
FRANCISCO BACCARO
Carlos Mélo CARLOS MÉLO Talvez a grande batalha seja trabalhar essa timidez. Quando penso na pouca presença do artista na cena política da cidade, penso também num ranço da ditadura, como se fosse um medo. Na psicanálise, fala-se que uma sociedade leva muito tempo para se libertar quando vive uma ditadura. Quando ouço algumas expressões como “eu não vou fazer isso para não me queimar”, fico assustado. E aí vem aquilo: será que só ser artista basta? Será que, de fato, a gente tem uma tradição de engajamento político como artista? MOACIR DOS ANJOS Talvez Pernambuco seja um dos poucos lugares no Brasil em que isso tenha existido, em algum momento. Mas acho que não existe. A presença política da arte brasileira é muito tímida, de um modo geral, quando comparada com a dimensão dos problemas. Há artistas que pontualmente se engajam, mas acho que a arte brasileira é muito pouco comprometida, ou engajada.
C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 7
4
Relaciona-se de uma maneira tímida com as questões extra-artísticas. A questão da violência, dos excluídos de modo geral, as mais candentes na sociedade, que estão aí batendo na porta. As pessoas saem da Estação Pinacoteca (SP), dão de cara com a Cracolândia e acham aquilo normal. JULIANA NOTARI É, se você compara o Brasil com os outros países da América Latina, foi o último país a se livrar da ditadura, de fato. MOACIR DOS ANJOS Há países com situações políticas tão ou mais dramáticas que o Brasil, como o México e a Colômbia, por exemplo, que têm uma forte tradição de articulação dos artistas com essas questões. E não estou só falando de um embate panfletário, não, estou falando de obras que são permeadas por essas questões.
CON TI NEN TE
Criaturas
Jovem Guarda por Ricardo Melo
“O futuro pertence à jovem guarda, porque a velha está ultrapassada.” De uma frase de Lenin foi extraída a expressão que designou o movimento musical e comportamental mais influente da música brasileira. Inspirada pelo rock que explodia no mundo, capitaneado pelos Beatles, a Jovem Guarda, protagonizada por Wanderléa, Erasmo e Roberto Carlos, repercute até hoje no país, seja no rock, na MPB, no sertanejo ou no brega. C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 5 | 8 8
WWW. Mais do que um portal, uma ferramenta a serviço de quem faz arte e cultura em Pernambuco. Um espaço público à disposição de artistas e produtores culturais, para viabilizar projetos e dar visibilidade ao talento da nossa gente. Acesse, compartilhe e colabore com sugestões de pauta e agenda. Se faz parte da nossa cultura, tem a ver com o nosso portal.
.GOV.BR
# 177
CONVERSA/ ARTES VISUAIS O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES NA BERLINDA
Você começa a aplaudir ao ver a programação.
SETEMBRO
Dia 8 – RECITAL DE TROMBONE O Alma Trombone Ensemble, projeto do Alma Chamber Ensemble (SP), foi concebido e é gerido pelos trombonistas Caroll Ramgél, Ricardo Pacheco e Fernando Cardoso. Tem como principal objetivo desenvolver o repertório camerístico para trombone, despindo-se de preconceitos e buscando somar a sua contribuição musical dentro do cenário musical brasileiro. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
Dia 13 - MÚSICA NO PALÁCIO Quinteto de Sopros Arrecife Local: salão de entrada do Palácio do Campo das Princesas Horário: 10h Dia 14 - CIRCULAÇÃO DE MÚSICA DE CÂMARA Orquestra Vicente Fittipaldi Local: Escola Estadual Fernando Mota - Setúbal Horário: 15h Dia 16 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS Recital de piano – Gabriel Fernandes O repertório constará de obras de Bach, Chopin, Scriabin, e de compositores pernambucanos, incluindo obras autorais. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
Dia 24 – LANÇAMENTO DO LIVRO DIDÁTICO “ORQUESTRA NORDESTINA” Autoria: Milca de Paula Neste livro é registrada a história dos instrumentos típicos de Pernambuco, bem como a aplicação deles nos diversos ritmos nordestinos como frevo, forró, ciranda, dentre outros, formando o que denominamos de “Orquestra Nordestina”. Local:Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30 Dia 30 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS Coro de Câmara da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco Regente: Mônica Muniz Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
MÁQUINA DE FAZER SOM
Todos os eventos têm entrada gratuita.
CONSERVATÓRIO PERNAMBUCANO DE MÚSICA Av. João de Barros, 594 – Santo Amaro – Recife – PE Facebook: Conservatório Pernambucano de Música Site: www.conservatorio.pe.gov.br Fone: 3183-3400 SET 15
O Conservatório Pernambucano de Música está comemorando 85 anos de existência em grande estilo, com uma programação que se estende até o final do ano. Não poderia ser diferente para uma instituição que, durante décadas, é referência de qualidade para a música e a formação musical. Conheça as atrações de setembro e participe. Até dezembro, o CPM dá o tom.
Dia 24 – PROJETO PALCO PARA TODOS Show – Grupo Saracotia Lançamento do CD “A Vista do Ponto” Local: Palco para Todos - CPM Horário: 18h
CONTINENTE
Dia 2 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS Recital de violão erudito – Thibaut Garcia (FRA) O recital constará de obras de Bach, Barrios, Lloblet, Castelnuovo-Tedesco, Rodrigo, Piazzolla e Regondi. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
Dia 9 – QUARTAS MUSICAIS Recital de canto – Elizete Félix, Soprano(PE) e Fabrizio Claussen, Barítono (SP) Piano: Jussiara Albuquerque (PE) O repertório constará de trechos de óperas famosas. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
A CAPACIDADE CRIATIVA DOS MÚSICOS PERNAMBUCANOS
E MAIS FOTOGRAFIA MODERNA | CULINÁRIA PORTENHA JÚLIO MEDAGLIA | MÁRIO PEDROSA | CLÁUDIO FERRARIO