Continente #178 - Novíssimo cinema

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NOVÍSSIMO

# 178

CINEMA

OS TEMAS, MODOS DE CRIAÇÃO E A ESTÉTICA DA PRODUÇÃO NACIONAL

#178 ano XV• out/15 • R$ 10,00

CONTINENTE Maeve Jinkings, no filme Boi neon, de Gabriel Mascaro

WALTER SALLES FALA SOBRE DOC FILMADO NA CHINA

OUT 15

CONSERVATÓRIO DE MÚSICA EM 85 ANOS DE ATUAÇÃO E MAIS CLAUDIA ANDUJAR | VIAGEM À BOLONHA | THAI FOOD VIVENCIAL DIVERSIONES | SHIKO E QUINTANILHA | ANDRÉ KOMATSU

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O Real Hospital Português faz parte da história dos pernambucanos. São 160 anos de respeito e principalmente de cuidado. O pioneirismo do seu corpo médico e os constantes investimentos na modernização dos seus equipamentos e da sua estrutura transformaram o Hospital Português no mais completo centro de excelência médica do Norte e Nordeste. Tudo isso contribuiu para transformar Pernambuco no 2º maior polo médico do Brasil.

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Provedor do Real Hospital Português: Alberto Ferreira da Costa Diretora Técnica / Médica: Dra. Maria do Carmo Lencastre CRM-PE 8325

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OUTUBRO 2015

LETÍCIA SIMÕES/STILL DO FILME JOAQUIM/DIVULGAÇÃO

aos leitores Se, no mês passado, demos destaque à música, agora, nosso foco é o cinema, mas com um aumento de lupa. Em setembro, nosso olhar recaiu na produção pernambucana, elegendo álbuns recentes de artistas que consolidam seus trabalhos desde a década de 1990 – como Siba e Lirinha – e aqueles que agora despontam, como Johnny Hooker e Zé Manoel. Nesta edição, ampliamos o escopo para o cenário nacional, observando o que tem caracterizado o chamado “novíssimo cinema brasileiro”, expressão que, em síntese, nomeia a produção pós-retomada, aquela que vem sendo apresentada sobretudo neste século 21. Em ambas as reportagens, portanto, nos lançamos a uma temporalidade que atravessa décadas de acontecimentos. Vale mencionar aqui um contexto subjacente aos temas propostos: a massificação da internet, o aporte de equipamentos digitais de produção (que a barateiam) e a comunicação via redes sociais. Assim é que reunimos, nesta reportagem de Luciana Veras, diretores de vários pontos geográficos do Brasil e também o crítico e professor Ismail Xavier, para conversar sobre o que impulsiona a criação cinematográfica hoje, no que diz respeito a projetos e modos de produção, em filmes que nos acostumamos a chamar “de autor”, porque não partem de demandas comerciais, e, sim, pessoais. Ismail

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Xavier, com sua maturidade de observador, resume: “Em termos estéticos, o panorama, antes já variado conforme o esquema de produção, inclui agora um novo esquema, em que os cineastas ganham maior independência atuando de forma cooperativa e partilhando as funções na equipe, inclusive a direção, em filmes de baixíssimo orçamento e que partem desse princípio de tomar a minimização de recursos como alavanca para uma maior liberdade no método de trabalho e criação, o que gera uma estética inovadora”. Além da nossa matéria de capa, em outros momentos o cinema ganha relevo nesta edição: na entrevista com Walter Salles, que nos fala de sua experiência de filmar na China um documentário sobre o cineasta Jia Zhang-ke; e na reportagem de Marcelo Miranda sobre o crescimento do público para filmes dublados no Brasil, que agora supera o de legendados. Por fim, chamamos a atenção do leitor para algumas mudanças editoriais que empreendemos nesta edição. A seção Cardápio deu uma engordadinha, graças a uma coluna de notas; a esporádica Viagem passa a ser regular e a Conexão agora deixa de ser uma coluna de notas e passa a ser uma seção, em que abordaremos a relação entre arte e cultura x tecnologia. Vejam o que acham, comentem, amigos leitores!

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sumário Portfólio

André Komatsu 6

Continente Online + Cartas

7

Colaboradores + Expediente

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Entrevista

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50

Walter Salles Cineasta carioca fala sobre a realização de Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, documentário em que aborda a obra do diretor chinês

68

Entremez

82

Matéria corrida

84

Claquete

88

Criaturas

Conexão

De volta para o futuro Seguindo as leis da física ou apenas delírios fantasiosos, a ficção científica antecipa invenções

60

Palco

64

Sonoras

HQs Shiko e Quintanilha, dois dos mais talentosos quadrinistas brasileiros, lançam trabalhos que atestam a qualidade de suas obras

74

Balaio

Fotografites de JR Grafiteiro francês recebe incentivo financeiro e tem compilado em livro seu projeto de dar visibilidade às minorias

Leitura

Artista paulistano, um dos expositores da 56ª Bienal de Veneza, constrói obras problematizadoras, que propõem uma exaltação ao indivíduo comum

12

Ronaldo Correia de Brito Tristes partidas

José Cláudio Comer e descomer

Dublagem Pesquisa revela que filmes dublados já são maioria nas salas de exibição do país, apontando uma tendência de uniformização do mercado Grande Otelo Por Paffaro

Vivencial Diversiones Remanescente do grupo dos anos 1970 reativa o coletivo, ocupando espaço no Bairro do Recife

Pernambouc Quartet Músicos pernambucanos formam projeto paralelo temporário, que vai cumprir agenda de shows e workshops na França

Viagem Bolonha

Situada numa das regiões mais ricas da Itália, a cidade conserva na arquitetura, na culinária e no patrimônio intelectual as heranças de seu passado medieval

44 CAPA FOTO Frame do filme Boi neon

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Capa

Especial

A produção atual brasileira tem mostrado estética renovadora, e também se transforma quanto aos métodos de criação, com partilhamento de tarefas

Instituição completa 85 anos aprimorando talentos musicais de jovens pernambucanos e incentivando a criação de grupos de matizes variados

Cardápio

Visuais

De muitos pontos em comum com a culinária tropical local, cozinha tailandesa ainda possui pouco espaço nos menus das metrópoles brasileiras

Instituto Moreira Salles abriga exposição de mais de 300 imagens captadas pela fotógrafa no início de sua trajetória, como cenas urbanas e da natureza

Novíssimo cinema

20

Thai food

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Conservatório

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Out’ 15

Claudia Andujar

76

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neste mês O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

NOVÍSSIMO CINEMA

CONEXÃO

Leia a tese de doutorado da professora de Cinema e da pós-graduação em Comunicação da UFF Mariana Baltar, Realidade lacrimosa: Diálogos entre o universo do documentário e a imaginação melodramática, e assista ao trailer do premiado Boi neon (2015, foto à esq.), do diretor Gabriel Mascaro, como também trechos dos longas-metragens O exercício do caos (2013), do cineasta maranhense Frederico Machado, e Os dias com ele (2013), da diretora carioca Maria Clara Escobar, três dos entrevistados da matéria de capa desta edição.

Assista a uma conversa entre o escritor Arthur C. Clarke, os astrofísicos Carl Sagan (foto) e Stephen Hawking, que discutem temas como ficção científica.

CLÓVIS PEREIRA Leia a introdução à biografia do maestro, escrita por Carlos Eduardo Amaral – que é foco de uma das matérias do especial sobre os 85 anos do Conservatório.

cartas REPRODUÇÃO

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140).

ENTREMEZ Em requerimento feito à Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, o deputado Waldemar Borges escreve: “Requeremos à mesa, ouvido o Plenário e cumpridas as formalidades regimentais, que seja transcrito nos Anais desta Casa o artigo O quadro que Chagall não pintou, do escritor Ronaldo Correia de Brito, publicado na revista

Continente, ed. 176, de agosto de 2015”. E justifica: “A edição 176 da revista Continente, publicada no mês de agosto de 2015, traz um artigo assinado por Ronaldo Correia de Brito, escritor, médico e dramaturgo brasileiro. O quadro que Chagall não pintou relata, a partir de situações vividas pelo escritor, o ambiente acolhedor, diversificado e democrático das Granjas Satujá e São Saruê, no

município de Carpina, pertencentes ao Sr. Renato da Cunha Antunes e Dona Maria de Lourdes de Cerqueira Antunes, meus avós, com os quais convivi boa parte da minha vida e a quem devo muito pela formação que recebi. O texto remonta às memórias com toda emoção e sensibilidade que são peculiares a Ronaldo”.

As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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WALDEMAR BORGES RECIFE – PE

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colaboradores

Ana Bizzotto

José Teles

Marcelo Miranda

Paffaro

Jornalista mineira, radicada em São Paulo

Jornalista, crítico de música e autor do livro Do frevo ao manguebeat

Jornalista, crítico de cinema e mestrando em Comunicação na UFMG

Caricaturista, ilustrador freelancer, professor de arte e publicitário

E MAIS Carlos Eduardo Amaral, jornalista e crítico de música erudita, pesquisador com mestrado em Comunicação pela UFPE e compositor. Germano Rabello, jornalista, especialista em arte sequencial. Gianni Paula de Melo, jornalista. Leo Caldas, fotógrafo. Mateus Araújo, jornalista, repórter do Jornal do Commercio. Priscilla Campos, jornalista, mantém o blog de literatura Fuga para o Oeste. Rafael Bandeira, fotógrafo. Roberta Guimarães, fotógrafa. Valentine Herold, jornalista.

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WALTER SALLES

“Ele redefiniu o cinema humanista”

Ao realizar o documentário Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, sobre o realizador chinês, o autor de Central do Brasil e Linha de passe afirma retratar, com intimidade, aquele que ele chama de “um dos melhores intérpretes, senão o melhor, do nosso tempo” TEXTO Luciana Veras

CON TI NEN TE

Entrevista

“A decisão parte do desejo de fazer um filme sobre diversas camadas da memória”, descreve o cineasta carioca Walter Salles a respeito da gênese de Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang (Brasil/China, 2014), sua mais recente incursão no gênero documental. Em cartaz no país desde setembro, trata-se do quarto documentário na filmografia de Salles, que inclui nove longas ficcionais, entre eles Terra estrangeira (1996), Diários de motocicleta (2004), Linha de passe (2008), Na estrada (2012) e, claro, Central do Brasil (1998) – mais de 60 prêmios internacionais, entre os quais o Urso de Ouro da Berlinale. De fato, não são escassas as lembranças e as reflexões por elas engendradas, em Um homem de Fenyang. Salles conduz o espectador à memória pessoal e afetiva do diretor chinês, que conheceu no Festival de Berlim e de quem se aproximou ao longo dos anos. Zhang-ke, autor de Plataforma (2000), Em busca da vida (2006), Um toque de pecado (2013) e do recente Mountains may depart (2015), exibido na competição em Cannes em maio passado, fala sobre sua infância

e sobre influências cinematográficas enquanto visita locações dos seus primeiros filmes ou casas na província de Shanxi. onde morou. Nada é como antes, na China, no Brasil, no cinema e tampouco no mundo. Para Salles, o cineasta asiático é “um grande intérprete da contemporaneidade”, justamente ao se concentrar “sobre o efeito que as transformações têm no homem, que é a matéria-prima que lhe interessa”. “Por isso, penso que ele redefiniu o que chamamos de cinema humanista, um pouco como Kieslowski fez nos anos 1990”, resume Salles, em entrevista à Continente. CONTINENTE O que levou você a querer filmar um documentário sobre Jia Zhang-ke? O que teria desencadeado esse desejo de partilha da visão de mundo de um dos cineastas mais importantes da contemporaneidade? WALTER SALLES Conheci a obra de Jia Zhang-ke cedo, por uma coincidência que aconteceu no Festival de Berlim de 1998. No mesmo ano em que Central do Brasil foi selecionado pela Berlinale, o primeiro filme de Jia Zhang-ke, Pickpocket, também foi selecionado pela

sessão paralela Fórum. Quando vi esse filme e logo depois a obra-prima que é Plataforma, segundo filme de Jia Zhangke, fiquei profundamente impactado por um jovem cineasta que falava de forma tão sensível do nosso tempo, da transição dos anos de juventude para maturidade, e daquilo que se perde nesse processo. Mais ainda, fiquei impressionado em ver como a transformação dos personagens refletia algo maior, a mutação de um país que iniciava a transição entre uma economia planificada e uma economia de mercado, com todos os traumas associados a essa decisão. Fui pouco a pouco percebendo que Jia Zhang-ke tinha se transformado em um dos melhores intérpretes, senão o melhor, do nosso tempo. Um cineasta extremamente talentoso no país onde as transformações que vivíamos eram as mais aceleradas. Nesse momento, nasce o desejo de fazer não só um documentário, mas também um livro sobre Jia Zhang-ke, suas influências, o seu processo de trabalho e, mais do que tudo, a sua visão de mundo tão original e singular.

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MÁRIO MIRANDA FILHO/DIVULGAÇÃO

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CONTINENTE Qual foi a reação inicial de Jia ao saber do seu projeto? WALTER SALLES Como foi um processo de lenta maturação, uma ideia que fomos desenvolvendo à medida que íamos nos encontrando nos festivais, ela tomou corpo de forma natural. Foi bom termos esperado vários anos antes de filmar, não só porque a obra de Jia foi se tornando cada vez mais ampla e representativa, mas também porque fomos nos conhecendo melhor. Essa proximidade é que permitiu a filmagem de um

CONTINENTE Um homem de Fenyang é uma viagem à história do diretor chinês e

Entrevista

documentário tão íntimo, em que ele nos abriu as portas de sua família, seus amigos, e para a cultura tão singular da província de Shanxi, onde ele nasceu, no Norte da China – praticamente na fronteira com a Mongólia. É um mundo dentro de outro mundo, uma cultura única e original. Ter tido a possibilidade de filmar nessa região, graças a Jia, foi um presente. CONTINENTE O que provocou a decisão de filmá-lo em sua cidade natal e, por conseguinte, nas locações de vários de seus filmes? WALTER SALLES A decisão parte do desejo de fazer um filme sobre diversas camadas da memória. Existem as memórias da infância do Jia, dos anos de transição da adolescência para a

na discussão da transformação da sociedade chinesa, que não há como entender profundamente as suas mudanças sem mergulhar em Plataforma, Em busca da vida ou Toque de pecado. Se você assistir a esses filmes em ordem cronológica, terá uma percepção muito mais clara da violência e da brutalidade das transformações ocorridas no mundo do que ler 30 matérias da revista The Economist sobre a China. Mais do que isso, Jia se concentra sobre o efeito que as transformações têm

“Os filmes de Jia Zhang-ke (à esq.) são de tal forma fundamentais na discussão da transformação da sociedade chinesa, que não há como entender suas mudanças sem mergulhar neles”

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CON TI NEN TE

idade adulta, e também a memória de uma cidade em transformação, que é Fenyang, onde ele nasceu. Finalmente, quis convidá-lo a voltar aos lugares em que ele havia filmado para trazer à tona uma terceira camada da memória, que é a própria memória fílmica. Ou seja, as lembranças das cenas que filmou, dos momentos que acabaram construindo os filmes que eu tanto admirava.

também a tudo que de uma forma ou de outra participou de sua construção como sujeito e autor. Fala da vida dele, da China e do mundo. Que linhas de pensamento e diretrizes você seguiu para atingir esse equilíbrio? WALTER SALLES O que Jia Zhang-ke faz é trazer, através dos seus filmes, o cinema de volta ao centro de debate. Era essa a função do cinema nos anos 1960 e 1970: os filmes discutiam os efeitos de Maio de 68, a Guerra do Vietnã, tudo aquilo que nos redefinia. Mas, aos poucos, o cinema foi se distanciando desse palco de discussão, e outras formas de expressão e de comunicação mais imediatas, como são hoje as mídias sociais, tomaram o seu lugar. Os filmes de Jia Zhangke são de tal forma fundamentais

no homem, que é a matéria-prima que lhe interessa. Por isso, penso que ele redefiniu o que chamamos de cinema humanista, um pouco como Kieslowski fez nos anos 1990. CONTINENTE Os filmes de Jia Zhang-Ke enfatizam as mutações do mundo e de uma China em desconexão com suas tradições – uma reflexão que pode ser feita a respeito de muitos países capitalistas. Isso foi algo considerado na concepção do projeto? WALTER SALLES Sim, pelo simples fato de que, com a globalização, as crises vividas pelos personagens dos filmes de Jia Zhang-ke se tornaram cada vez mais próximas da gente. Ou seja, passaram a espelhar situações que você podia identificar no Brasil ou

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em outras latitudes. A globalização fez com que o cinema de Jia Zhangke, que é tão local e reflete uma realidade tão específica, também nos espelhasse e reproduzisse. Esse é um dos estranhos efeitos dos tempos que vivemos, essa compreensão de que as causas e consequências das crises no mundo contemporâneo não estão mais relegadas a uma única latitude, e, sim, a algo mais amplo. Aquilo que acontece no outro lado do mundo também pode estar acontecendo ao seu lado.

em São Paulo, em Chicago ou em uma cidade europeia”. A padronização arquitetônica, dos gostos e dos costumes, é um fato evidente. Como lidar com ela, ou em outras palavras, como resistir e combater esse estado de coisas? Essa é uma das principais questões contemporâneas. CONTINENTE Que similaridades você enxerga entre sua obra e os filmes dele? Possui algum filme favorito de Jia? WALTER SALLES Acho que Plataforma é uma obra-prima, o filme de Jia

aquilo que aconteceu não só com a China, mas com o mundo a partir dos anos 1990. Quanto à similaridade entre os filmes de Jia e os meus, não sei se existem… Prefiro pensar que o admiro justamente porque ele consegue reproduzir no cinema aquilo que eu não consigo alcançar, que é essa capacidade de nos refletir de uma forma tão sensível e aguda. CONTINENTE Para terminar: que outro cineasta que você admira poderia merecer

“Plataforma, Em busca da vida (à esq.) ou Toque de pecado – se você assistir a esses filmes em ordem cronológica, terá a percepção da violência e brutalidade das transofrmações ocorridas no mundo” CONTINENTE Há um momento no filme em que Jia pondera sobre o fato de que as cidades do mundo inteiro estão ficando iguais – creio que ele se refere às publicidades que vê nelas. A reflexão pode ser estendida para outras áreas, como os próprios filmes dele atestam. Qual a função do cinema, e da arte de uma maneira geral, no contexto de questões como essa? Como discutir a padronização urbanística que faz com que Recife e Miami sejam idênticas, na opinião do sociólogo britânico David Harvey em entrevista recente à Continente? WALTER SALLES Ótima pergunta, e que me remete a uma frase que me disse uma vez o escultor Franz Krajcberg. Estávamos filmando o documentário que fizemos juntos, Socorro nobre, e ele disse: “Hoje, acordo em um hotel e não sei mais se estou

Zhang-ke que revi o maior número de vezes. O filme acompanha o processo de desintegração de uma trupe de teatro maoísta de uma pequena cidade, Fenyang, à medida que os anos passam. Ao final, alguns de seus membros acabam dançando break dance à beira de uma estrada, evidenciando a perda de referências que passou a afetar toda uma cultura. O cinema, antes de tudo, é uma forma de expressão que acompanha personagens ao longo do tempo e do espaço. Em Plataforma, todas essas possibilidades trazidas pelo cinema são investigadas à flor da pele. É um dos filmes mais impressionantes e extraordinários que já vi, uma obra realmente essencial para entender

uma homenagem igual a essa? E como reagiria se recebesse uma proposta igual de um outro cineasta interessado em retratar seu modus operandi? WALTER SALLES Admiro os filmes de diversos cineastas contemporâneos, mas não sei se uma obra de outro realizador me toca tanto quanto a de Jia Zhang-ke, hoje. Sou um grande admirador de Chris Marker e teria adorado fazer um documentário sobre ele. Mas, como você sabe, Marker era totalmente avesso a essa possibilidade, detestava ser filmado ou fotografado. Mas olhe que possibilidade interessante, a de um documentário sobre um artista que você jamais poderia mostrar...

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CON TI NEN TE

Portfólio

André Komatsu

POR UMA POÉTICA CONTESTADORA TEXTO Marina Moura

Na década de 1970, o professor e crítico carioca Ronaldo Brito já atentava – como

voz dissonante, aliás – para os malefícios de uma arte nacional folclórica, que estivesse submetida a ideias tipicamente colonizadoras de exotismo e brasilidade. Para ele, as obras só poderiam alcançar o contemporâneo se superassem as barreiras locais e atingissem uma linguagem universal (mas nem por isso uniforme). Este ano, na parte externa do pavilhão brasileiro da 56ª Bienal de Veneza, junto com a bandeira verde, amarela e azul nacional, está hasteado um par de tênis velhos e furados. A instalação, intitulada O estado das coisas II, é do artista plástico paulistano André Komatsu, convidado do país para o evento, ao lado da paraense Berna Reale e do luso-brasileiro Antonio Manuel. Segundo Komatsu, a obra pretende se contrapor à noção positivista de ordem e progresso e ser uma ode ao indivíduo comum, ou, nas palavras do autor, ao “trabalhador ordinário”, que está em geral à margem e, no entanto, representa, para ele, mais fielmente a ideia de nação. Nascido em 1978, André Komastu graduou-se em Artes Plásticas pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo, e tem explorado um caminho artístico de questionamento social e politicamente engajado. Um aspecto importante a ser considerado na produção de Komatsu é que ela se insere entre o conceito de que o homem (o artista) é filho de seu tempo e da extrema liberdade, alcançada a partir dos anos 1960, de recusar identidades compartimentadas, que fazem

Páginas anteriores 1 ANAMORFOSE SISTEMÁTICA 2

Obra faz parte de série que discute o conceito de distorção

Nestas páginas 2 FEBRE DO OURO

Instalação com alambrado de aço, fios e lâmpadas

3 BARREIRAS Como se comporta o que se consome, como se consome o que se comporta, de 2009, foi realizada a partir dos 20 anos da queda do Muro de Berlim

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Portfólio

cada vez menos sentido no atual mundo da arte. Ainda que se afaste de um historicismo datado e de uma militância que sacrifique seu projeto estético, o artista paulistano faz questão de fincar bem os pés no real, nas contradições contemporâneas, sem contudo abrir mão daquele universalismo ao qual se referia Ronaldo Brito. Utilizando restos, ruínas, materiais de construção civil – como tijolo, areia, madeira, ferro e concreto –, caixas de papelão, vidro, papel, além de fios, pregos e lâmpadas, Komatsu propõe um deslocamento dessas matérias-primas para construir obras conflituosas e problematizadoras. Um dos pontos recorrentes em sua produção é o de anamorfose, isto é, uma distorção do que se vê passível de mudança, de acordo com a alteração do ponto de vista. Em Anamorfose sistemática 2, por

exemplo, ele concebe prateleiras de compensado quebradas ao meio, para expor a fragilidade das coisas e sua inutilidade enquanto elemento ordenador – na medida em que serve para reunir e organizar objetos – da vida cotidiana. Já em Status quo, que pode ser vista até o dia 22 de novembro na Bienal de Veneza, um ambiente mais ou menos retangular, vazado e translúcido é criado com alambrado de aço e plásticos, “como uma arapuca ou gaiola”, explica. Do lado de fora da instalação, o sentimento é de aprisionamento, e o público é direcionado a percorrer uma trajetória estreita e opressora até o interior da área, onde há, curiosamente, um grande alívio. A obra questiona o espaço urbano e os limites entre público e privado, além de abordar dois conceitoschaves do regime democrático: o

arbítrio, a liberdade. Este é o tom politizado, inclusive, de todo o pavilhão brasileiro na bienal, cujo título É tanta coisa que não cabe aqui faz referência a cartazes mostrados nas manifestações de junho de 2013. Com uma carreira relativamente recente, iniciada nos anos 2000, o artista paulistano já teve trabalhos expostos em lugares como Inglaterra, Portugal, França, Japão, Itália, Eslovênia, México, Porto Rico e Colômbia. Participou ainda de residências artísticas nos Estados Unidos e Espanha e foi duas vezes (2010 e 2011) indicado ao Pipa, prestigioso prêmio das artes visuais no Brasil. Interessado no que é disfuncional para criar metáforas e propor novos modos de enxergar a realidade, ele aposta na desestabilização de ideias para exercer sua potência criadora. André Komatsu produz com a consciência de que, na arte, convencer o espectador ou apontar verdades é ineficaz, e segue a trilha de uma poética política sensível, entre o desconforto e a sugestão.

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4 CONSTRUÇÃO DE VALORES

Instalação exposta na Ucrânia em 2012 dispõe de fotocópias e ventiladores ligados, criando ambiente caótico 5 STATUS QUO Obra que aborda liberdade e aprisionamento pode ser vista até novembro na Bienal de Veneza 6 DISSEMINAÇÃO CONCRETA

Instalação traz o "corpo esmagado" no espaço urbano

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

FETICHES NERDS

Fotografites de JR em livro Sabe aqueles lambe-lambes imensos de fotografias em preto e branco de rostos expressivos espalhados pelas grandes cidades do mundo? Eles são feitos por um francês de trinta-e-poucos anos que assina simplesmente JR e se define como um photograffeur (neologismo perfeito para significar a junção entre as palavras fotógrafo e grafiteiro, em francês). JR já vinha fazendo um barulinho visual bom com os trabalhos que encampou, sempre discutindo os nossos conflitos em relação à pobreza, às minorias, etnias e à oposição entre cultura ocidental e oriental, entre outros engasgos sociais contemporâneos. Mas foi em 2011, quando ganhou U$ 100 mil do TED que o fotografiteiro tornou-se celebridade internacional, e teve grana suficiente para realizar o projeto InsideOut, pelo qual ele e equipe viajam o mundo fotografando pessoas das comunidades populares e exibindo seus retratos em grandes dimensões pelas ruas por onde transitam. Agora, JR acaba de ganhar um livro de luxo. Editado pela Phaydon, JR: Can art change the world? é um livrão cheio de bons textos, imagens e uma graphic novel biográfica sobre o artista que começou suas atividades como pichador nos subúrbios de Paris. Na foto acima, JR se “esconde” por trás da lombada do seu livro. ADRIANA DÓRIA MATOS

CON TI NEN TE

Uma das peças de maior fetiche da cultura nerd será leiloada neste mês: o icônico biquíni usado pela Princesa Leia, quando foi raptada por Jabba no filme que encerra a primeira trilogia Star Wars, O retorno de Jedi (1983). A vestimenta está na lista de mais de 50 itens ligados à série, que serão vendidos no site Profiles in History, entre câmeras, roteiros, pôsteres e protótipos do capacete de Darth Vader. A previsão é de que o biquíni, envergado pela atriz Carrie Fisher, seja arrematado por um valor entre U$ 80 e U$ 120 mil dólares. Esse leilão é um dos eventos que prometem aquecer os fãs para o lançamento do novo título da saga, O despertar da força, em dezembro. Antes mesmo do episódio VII chegar às telas, já se encontra no mercado um novo personagem da franquia, BB-8, robô cujo maior atrativo é gravar e reproduzir mensagens holográficas semelhantes às da série e que podem ser vistas na tela de um smartphone. O droid bem que poderia ter sido pensado como mascote futurista de uma Copa Mundo, pois parece uma mistura de R2D2 com uma bola de futebol. (Débora Nascimento)

Balaio 007 NEGRO OU GAY Em 007 – Operação Skyfall (2012), James Bond e o vilão Silva (Javier Bardem) protagonizaram uma cena em que o agente secreto, famoso sedutor de mulheres, deixa em aberto se já teve uma relação homossexual. Recentemente, Pierce Brosnan, que viveu o papel nos anos 1990 e 2000, afirmou que é chegada a hora de um James Bond negro ou gay. Pelo menos no audiobook, o novíssimo 007 já é negro. O ator David Oyelowo, de Selma, empresta sua voz ao romance Trigger Mortis, de Anthony Horowitz. Bond desde 2006, Daniel Craig, que está em 007 – Contra Spectre, cuja estreia no Brasil acontece em 5 de novembro, concorda com a ideia de um sucessor negro (o inglês Idris Elba, na foto, é um forte candidato), mas discorda de uma reviravolta na sexualidade do personagem cinquentenário de Ian Flemming: “Nunca haverá um James Bond gay, porque 007 não é gay”. (DN)

A FRASE

“Só se fantasia o que não se pode ter na realidade.” Wilhelm Reich, filósofo alemão

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ARQUIVO

TOP NO TWITTER O Twitter divulgou o ranking das séries mais comentadas para a Fall Season de 2015. O termo designa o período do ano – geralmente outubro e novembro – em que as principais séries de TV americanas lançam suas novas temporadas. Analisando cerca de 21 milhões de mensagens, publicadas entre 1º de junho e 14 de setembro, a rede social teve 34% de menções a mais que em 2014. A série mais citada foi Grey’s Anatomy, que vai para 12ª, e foi referida em 2,2 milhões de tuítes. Supernatural, indo à 11ª temporada, ficou em segundo com 2 milhões. A campeã do ano passado, The Walking Dead, ficou em terceiro, com 1,9 milhão. (Ulysses Gadêlha)

TOP NO TWITTER 2 Já no Brasil, a grande surpresa do Twitter foi o episódio final do Masterchef, que deu o prêmio à mineira Izabel Alvares. O resultado do reality show sobre gastronomia foi anunciado na noite do dia 15 de setembro. A rede social registrou cerca de 1 milhão de tuítes sobre o programa durante a final, levando a hashtag #MasterChefBR para o primeiro lugar do trending topics mundial do microblog. (UG)

Dança popular brasileira Eros Volúsia (Heros Volúsia Machado) nasceu no Rio de Janeiro em 1914. Filha dos poetas Rodolfo e Gilka Machado, logo cedo dedicou-se à dança. Bailarina que uniu balé clássico e ritmos brasileiros, Eros inspirava-se na natureza e na cultura do país, imprimindo nos passos, de maneira pioneira, traços das raízes brasileiras. As danças místicas do candomblé, o caboclinho, o frevo, o maxixe e o maracatu foram algumas das fontes de pesquisa artística da bailarina. Levou pela primeira vez ao Teatro Municipal do Rio, em 1931, um bailado de “dança livre”, inspirado nas performances da americana Isadora Duncan. Foi a única sul-americana a aparecer na capa da Life, o que lhe rendeu um convite da Metro Goldwyn Meyer para participar de uma comédia da dupla Abbot e Costello, Rio Rita, de 1942. Em fevereiro de 1945, após um espetáculo de frevo (dança denominada pela O Cruzeiro de “antifascista e democrática”), Eros foi efusivamente cumprimentada por Assis Chateaubriand e Fulgêncio Batista, futuro ditador de Cuba. Também com uma lapa de par de coxas daquelas! Em uma entrevista, Volúsia sintetizou sua missão artística: “Dei ao Brasil o que o Brasil não tinha, a sua dança clássica”. Faleceu no Rio, em janeiro de 2004. LUIZ ARRAIS

TRUE TARANTINO Parece que True detective, a série queridinha dos críticos de TV, não agradou a Quentin Tarantino. Em entrevista veiculada na New York Magazine, em agosto de 2015, o diretor revela que achou a série muito entediante, após uma tentativa de assistir ao primeiro episódio da 1ª temporada, e ainda aproveitou a deixa para insinuar que a segunda temporada parece horrível. Nessa última parte, muitos críticos hão de concordar, mas sem o tom hiperbólico de Tarantino. Frustrante é um adjetivo mais cabível. Por outro lado, o diretor diz ser fã de The Newsroom, também da HBO, e que divide opiniões entre os críticos. Ao saber disso, sua fala na entrevista lembra o tom de alguns diálogos de seus filmes: “Who the fuck reads TV reviews? Jesus fucking Christ”. (Maria Eduarda Barbosa)

PORSCHE PSICODÉLICO Embora tenha pedido a Deus uma MercedesBenz (na provocativa música em que criticava o consumismo), Janis Joplin passou a transitar, em 1968, pelas ruas de São Francisco com um Porsche 356 Cabriolet branco, modelo 1965. A cantora resolveu dar um toque psicodélico ao veículo e pediu a um amigo que o pintasse. O resultado foi um mural caleidoscópico colorido, intitulado “História do Universo”. Após a morte da artista, em 1970, o carro ficou sob custódia da família, que o restaurou e doou ao Museu do Rock and Roll, em 1995. Em dezembro, o Porsche irá a leilão pelo valor mínimo de U$ 400 mil dólares. (Marina Moura)

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DIREÇÃO As novas formas de fazer cinema CON TI NEN TE

CAPA

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Aquele que tem sido chamado de “novíssimo cinema brasileiro” opera em diferentes dinâmicas de produção e tem redefinido as relações do nosso audiovisual com o resto do mundo TEXTO Luciana Veras KARINA FREITAS

“O ponto de partida para uma planificação cinematográfica brasileira seria ter em vista para um futuro bastante próximo a produção anual de 50 filmes, cifra que deverá alçar-se gradativamente a 100”, escreveu Paulo Emílio Salles Gomes (1916–1977), no Suplemento literário do Estado de S.Paulo, em texto publicado em 18 de março de 1960 – mais de meio século atrás, portanto. Tratava-se de uma quimera; nos parágrafos anteriores, Salles Gomes, até hoje tido como um dos maiores críticos e pensadores cinematográficos do Brasil, falava em explícita rebeldia: “A modalidade e o grau de estratificação que a conjuntura cinematográfica brasileira atingiu tornam ineficazes os ensaios tímidos de reformismo. O que a situação presente sugere e comporta é uma revolução”. “A revolução é muito menos vanguardística do que à primeira vista parece”, prosseguia Salles Gomes, no artigo intitulado Uma revolução inocente. “Quando se torna possível, é porque já se encontra pronta dentro do corpo social, ao cabo de longa e complexa gestação. Sua eclosão tem a harmoniosa inelutabilidade do nascimento”, raciocinava. Os idos de outubro atestam que a utopia daquela previsão virou concretude: no mês que concentra dois eventos importantes do calendário consagrados à fruição cinematográfica no país, são expressivos os números da produção nacional no Festival do Rio e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Na sua 17ª edição, entre os dias 1º e 14, o Festival do Rio exibirá 19 curtas e 41 longas-metragens brasileiros. A 39ª Mostra Paulista, que começa dia 22 deste mês e se estende até 4 de novembro, abrirá espaço na sua programação para cerca de 50 longas nacionais. E, quando dezembro chegar, 2015 terá sido, de acordo com o Filme B, portal dedicado à compilação de dados sobre cinema no Brasil, o ano de estreia de 109 filmes com DNA nacional – “fitas”, como escrevia Salles Gomes, completamente rodadas e produzidas em solo tupiniquim ou coproduções com companhias estrangeiras. Até setembro, apenas uma delas, Loucas para casar, de Roberto Santucci, integrava o ranking dos 10 filmes de maior bilheteria neste ano.

Também em setembro, Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, aumentou sua participação no circuito de exibição em 90%, crescendo das 91 salas da estreia, em 27/8, a 156 delas, três semanas depois. Que horas ela volta? e Boi neon, do pernambucano Gabriel Mascaro, estiveram onipresentes nas notícias do mês passado justo por espelhar recorrências cada vez mais evidentes no cinema brasileiro: curva ascendente em audiência e o reconhecimento em festivais estrangeiros – Boi neon, descrito pelo diretor como “uma pesquisa sobre corpo, luz e a transformação da paisagem humana” a partir de um grupo de vaqueiros que transportam bois para vaquejadas, ganhou menção honrosa em Toronto e o prêmio especial da mostra Orizzonti, em Veneza. Ambos os filmes poderiam se encaixar no que alguns críticos, professores e pesquisadores denominaram “novíssimo cinema brasileiro”. O “novíssimo cinema brasileiro” seria o pós-Retomada (cujo marco zero costuma ser atribuído a Carlota Joaquina – Princesa do Brasil, de Carla Camuratti, de 1995), o pós-Central do Brasil, de Walter Salles (1998) e também o pós-Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2002), outras obras que, de certa forma, redesenharam a relação do audiovisual nacional com o resto do mundo. Compreenderia os filmes realizados com mais liberdade estética, sem amarras estilísticas ou temáticas, com um olhar aguçado para problematizar questões contemporâneas e de relevante componente autoral – não importa se com a assinatura de um único cineasta ou de um coletivo. O rótulo, que empreende um jogo de palavras com o cinema novo de Glauber Rocha (1939–1981), Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos, aparece tanto como título de uma disciplina eletiva do curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco como no nome de uma mostra promovida pelo Cinema da USP Paulo Emílio (Cinusp).

FORA DO EIXO

“Vivemos um momento importante do audiovisual como um todo. De um lado, esforços significativos de consolidação industrial, tirando proveito da chamada ‘lei da TV fechada’, abrindo um caminho interessante, por exemplo,

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CON CAPA TI NEN TE CALIL NETO/DIVULGAÇÃO

para a produção de ficção seriada de qualidade e alto nível técnico e estético (espero que num futuro os frutos do impacto dessa lei também consigam se ampliar para além do eixo Rio/SP). Por outro lado, vemos filmes circularem em festivais e salas menos comerciais, que mostram um arejamento estético e das formas de produção. Esses projetos vêm seguramente de fora do eixo tradicional; destaco Pernambuco, Ceará e Minas Gerais. Nesse sentido, sim, podemos falar de um novíssimo, mas o termo em si só existe na medida em que é útil para diagnosticar esse arejamento estético e de propostas e visões do cinema”, observa a doutora em Comunicação Mariana Baltar, professora da graduação em Cinema e Audiovisual e da pósgraduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq. A pluralidade de propostas e visões aproxima filmes como Já visto jamais visto, o novo de Andrea Tonacci; o supracitado Boi neon; Joaquim, que o diretor pernambucano Marcelo Gomes acabou de rodar em Minas Gerais; ou ainda O signo das tetas, do cineasta maranhense Frederico Machado, lançado em setembro na Indie – Mostra do Cinema Mundial, em Belo Horizonte. Não adianta, contudo, enfeixá-los; deles, pode-se dizer que procedem de uma lavra única e intransferível. “Quem é novíssimo são as pessoas. A classificação externa é sempre coisa de crítico. Qualquer categoria é um pouco de tudo e, como tudo no mundo de hoje, é retalhada. Mas com certeza há pessoas trabalhando a forma, redescobrindo, um pouco, a subjetividade do cinema”, vislumbra Tonacci, autor, entre outras, de Bangbang (1971) e Serras da desordem (2006), obras que desafiam etiquetas. “Com Já visto jamais visto, percebi que a ideia de autor é uma construção externa em cima do que acontece. As imagens foram feitas por mim, o que me deu a percepção de que se tratava de coisa maior do que eu, de um tempo e de um corpo maiores. Me senti mais como uma antena a captar os sinais que se juntam e fazem sentido”, elabora Tonacci, cujo filme parte de seu próprio acervo em película, resgatado da

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“A classificação externa é sempre coisa de crítico. Qualquer categoria é um pouco de tudo” Andrea Tonacci

deterioração após décadas. “As pessoas têm dito que é um documentário, mas eu o considero uma pequena ficção”, complementa o diretor. A fronteira tênue, quase invisível ou inexistente, entre o que é o registro documental e o enredo ficcional também serve para balizar o “novíssimo cinema brasileiro”. A filmografia do pernambucano Gabriel Mascaro, que abrange Um lugar ao sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010), A onda traz, o vento leva (2012) e Ventos de agosto (2014), traduz essa permeabilidade. “Meus

trabalhos refletem parte do que eu sou e muitos outros que estão no entorno. Me interessa muito trabalhar com reapropriação do imaginário. Às vezes, preciso me expressar filmando, como em Boi neon; em outros, não, como em Doméstica, documentário em que entreguei a câmera para que adolescentes, filhos dos patrões, filmassem suas empregadas por uma semana e eu, em seguida, editasse as imagens. Ou ainda no trabalho mostrado na Bienal de São Paulo, chamado Não é sobre sapatos, que envolve supostamente vídeos filmados pelos policiais militares contra os manifestantes. São trabalhos com processos de partilha”, expõe Mascaro à Continente. Ele rechaça a importância da autoria: “A palavra ‘autor’ ganhou um escopo teórico na nouvelle vague e não exerce fascínio em mim. Mas acho que vivemos um momento

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NATÁLIA REIS/DIVULGAÇÃO

EDGARD NAVARRO “Com Abaixo a gravidade, estou me despedindo do cinema. O mercado já mostrou que o cinema de autor não tem chance. Pesado e grave, o mercado torna todos engessados. Não tenho esse jogo de cintura, pois tudo isso me desgasta. Jogo a toalha com esse filme. Por quê? Porque não vai ser um sucesso de bilheteria. Talvez passe em alguns festivais, seja bem-acolhido por uma crítica muito restrita e faça sucesso junto aos meus amigos e às pessoas que me amam, que também são Quixotes como eu. Passar seis anos para fazer cada filme só tem sentido para quem está começando. Tudo está mais fácil para quem tem 30 anos. Fui muito mais enérgico no momento do Superoutro; hoje, não tenho a mesma testosterona no sangue. Sinto que envelheci e isso é muito bom. O cinema tem futuro para quem tem futuro, para os jovens… Talvez eu faça uma videoarte, talvez eu trabalhe com fotografias. Não é que não tenha sonho, mas já tenho 65 anos e vejo a noite se findar… Meu medo é que a gente não compreenda meu cantar.”

1 COMO UM QUIXOTE Cena de O homem que não dormia (2011), de Edgard Navarro: autor baiano filma agora sua despedida dos sets

muito especial no Brasil, no qual as gerações produtivas coexistem, fazendo trabalhos desafiadores e que não se encaixam nessa ‘gaveta’ geracional. Talvez este rótulo de um suposto ‘novíssimo cinema brasileiro’ tenha um estatuto de política afirmativa, e por isso legítimo, mas não me sinto confortável com qualquer rotulação de uma experiência inclassificável, orgânica, viva e mutante”.

CANTO DO CISNE

A organicidade a que Gabriel Mascaro se refere encontra guarida e tradução na trajetória do baiano Edgard Navarro, do antológico média-metragem Superoutro (1989) e do premiado longa Eu me lembro (2005). Navarro está filmando

na Bahia, com recursos obtidos via edital da Agência Nacional do Cinema/ Ancine, Abaixo a gravidade, aquele que ele julga ser seu “canto do cisne”. “O filme é uma tentativa de tornar menor o sentido trágico da vida, seja a doença, a velhice ou a morte. O homem que não dormia, meu último filme, é bastante grave e trágico. Quero brincar com essa contradição de querer mandar descer a gravidade, que já põe tudo para baixo”, antecipa Navarro, um veterano que não se incomoda de ser chamado assim, ou mesmo de “Dom Quixote”. Contudo, o cineasta baiano, embora se confesse “um quixotesco cineasta”, já não se vê com tanto fôlego. “Acho que Tonacci e eu pertencemos a uma mesma geração e fazemos um cinema bastante peculiar. Mas sinto que já não alcanço a tecnologia. Em Superoutro, eu mesmo manuseava a câmera em super-8, nem usava tripé. Na hora em que tinha uma ideia, ia lá e filmava. Hoje não domino nada e nem quero dominar. Não quero mais neurônios. Para minha consciência, creio que representei bem a passagem de bastão para essas novíssimas gerações. Não

quero estar na corrida oficial do cinema brasileiro. Sempre haverá novos jovens, novos baianos”, comenta. Para o cineasta carioca Eduardo Valente, desde 2011 no comando da assessoria de relações internacionais da Ancine, “sem dúvida existe, no novo cinema brasileiro, um retrato geracional, mas que não tem a ver com a idade”. “É uma geração de pessoas que passaram a operar de maneira importante mais ou menos no mesmo momento. Há algumas características específicas: a digitalização, os modos de produção, o estabelecimento de redes de trabalho, de trocas de informação e de influências. Existe, acima de tudo, uma geração com sentimento de pertencimento e de trabalho comum. E esse é um momento forte, para além do Brasil. Chamar esse círculo de ‘gueto’ é diminuir esse movimento natural. Um ‘gueto’ que vai a Rotterdam, a Locarno, à Quinzena dos Realizadores, de Cannes, e a Veneza? Difícil de chamar”, pondera. Ele faz uma comparação com o Cinema Novo. “Nenhuma matéria sobre os filmes de Glauber ou de Ruy

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CON CAPA TI NEN TE DESVIA FILMES/DIVULGAÇÃO

2 BOI NEON Ficção ganhou menção honrosa em Toronto e prêmio especial na Orizzonti, no Festival de Veneza 3 O SIGNO DAS TETAS Longa do Maranhão estreou em Tiradentes, em mostra que privilegia o “novíssimo cinema brasileiro”

2 DESVIA FILMES/DIVULGAÇÃO

GABRIEL MASCARO “Essa discussão sobre ser um ‘autor’ e a ainda mais de ‘cinema brasileiro’ é bem relativa. Por um lado, temos uma política pública nacional, que recentemente democratizou a produção de filmes e fez com que eu, filho de uma professora de escola pública do Recife, conseguisse fazer um filme. Por outro, Boi neon tem uma troca criativa que desafia claramente noções de identidade nacional. É um filme brasileiro/uruguaio/holandês, com produtores que entraram no filme apostando na ideia antes mesmo de eu ter um primeiro tratamento de roteiro. Isso me possibilitou um intercâmbio muito rico com Fernando Epstein (Whisky, Liverpool), que divide a montagem com Eduardo Serrano, e com o fotógrafo mexicano Diego Garcia, que saiu do Agreste direto para a Tailândia para fazer o filme de Apichatpong Weerasethakul. Foi uma experiência muito rica e desafiadora misturar uma equipe pernambucana com talentos de outras partes do Brasil e do mundo. Não confundo arte com nacionalismo, regionalismo e fetiches geracionais. As pessoas estão no mundo para criar encontros, independentemente de onde e quando nasceram ou onde escolheram viver.”

Guerra começavam falando sobre como cada diretor era diferente. Ora, os filmes são diferentes e o fato de o serem não impede de se falar nisso. As diferenças e individualidades não só aproximam, como criam contrastes, como sempre acontece em movimentos. Enxergo esse momento como um dos mais interessantes, porque permitiu o sentimento de fazer parte de alguma coisa, de ultrapassar a produção pessoal. Um dos aspectos mais interessantes é que esse ‘novíssimo cinema brasileiro’ não está localizado como Cinema Novo, no Rio, ou a nouvelle vague, em Paris. É espalhado pelo Brasil. Você percebe isso com muita força nos festivais, no clima dos debates”, reforça Valente. Um dos polos onde vicejam as discussões e onde se consolidou o conceito de “novíssimo cinema brasileiro” é a Mostra de Cinema de Tiradentes, que, em janeiro próximo, festejará a 19ª edição. “Quando lançamos o evento, estavam começando as leis de incentivo e havia poucos festivais dedicados exclusivamente ao cinema brasileiro.

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LUME FILMES/DIVULGAÇÃO

Nossa meta sempre foi ser um grande aliado dessa produção, bem como um reflexo das tendências, da estética e da linguagem. Era uma proposta ousada, que muitos disseram que não conseguiríamos sustentar”, recorda Raquel Hallak, uma das coordenadoras da mostra. “De 1998 para cá, Tiradentes se consolidou como plataforma de lançamento do cinema brasileiro independente, sempre atenta a essa nova geração e ao cinema de autor. O festival é o retrato da evidência do novíssimo cinema brasileiro e mantém o propósito de cavar espaço para esse cinema, que muitas vezes não chega ao circuito comercial”, defende. Foi em Tiradentes, por exemplo, que os cineastas Maria Clara Escobar e Frederico Machado escolheram lançar seus projetos mais recentes. Em 2013, Os dias com ele – no qual a jovem diretora carioca rompe convenções e embaralha as esferas pública e privada, ao radiografar o próprio pai, o dramaturgo, professor e escritor Carlos Henrique Escobar, ex-militante contra a ditadura militar e hoje autoexilado em Portugal – foi escolhido o melhor filme da mostra pelos júris da crítica e dos jovens. Em 2015, Machado levou até lá seu O signo das tetas, a segunda parte da trilogia iniciada com O exercício do caos (2012), também uma investigação acerca da figura paterna – aqui, a partir da obra literária do poeta Nauro Machado. Em ambos os casos, são escolhas íntimas, pessoais, que se vertem para narrativas fílmicas muito além do convencional.

3 MARCOS PACHECO/AGÊNCIA FOTO/DIVULGAÇÃO

FILMES PESSOAIS

“O cinema brasileiro sempre foi muito mais geográfico do que temporal. Sempre se fez filmes com água, favela, sertão. Mas a questão interior, relacionada ao tempo e à existência, era relegada a segundo plano. O que percebo é que essa nova geração se preocupa muito com esse tempo, em filmes bastante pessoais. Acredito que mesmo esses temas caros, perigosos e difíceis, podem ser revelados com apuro para que não espantem o público. O equilíbrio entre arte e indústria tem que ser mais pensado pelos realizadores.

FREDERICO MACHADO “Vivo em São Luís, uma cidade que ainda tem poucos realizadores, nenhum da minha geração. Portanto, o que vivo é uma solidão que se traduziu em meus filmes, todos eles com personagens solitários. Escrevo, dirijo, produzo, fotografo, distribuo e ainda exibo meus filmes. Faço tudo de maneira independente, sem vínculos com ‘modismos’ ou com escolas cinematográficas. Além disso, do ponto de vista teórico e abstrato, sou um autor porque traduzo em narrativa audiovisual uma visão pessoal e única de cinema e de vida. Ser autor, para mim, é viver pelo cinema e tentar responder, através dele, suas angústias pessoais diante da vida. É também responder por uma indiferença do grande público e até dos pensadores desse novo cinema, que se aliam a algum cineasta por quem têm preferência e esquecem que o cinema pode ser amplo e horizontal, reverberando diante de possibilidades artísticas e gêneros diferentes. Há uma preguiça no pensar e fazer cinematográfico, mas também há uma geração de cineastas, pensadores e críticos que procuram descobertas, que almejam fazer algo realmente novo e potente.”

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CON CAPA TI NEN TE DIVULGAÇÃO

4 OS DIAS COM ELE Em seu primeiro filme, Maria Clara Escobar confrontou sua trajetória e a versão oficial da História do Brasil ao entrevistar seu pai 5 JOAQUIM Novo filme de Marcelo Gomes, em fase de montagem, examinará a figura de Tiradentes antes da Inconfidência

4 LETÍCIA SIMÕES/DIVULGAÇÃO

MARCELO GOMES “Comecei minha carreira como cineclubista, no início dos anos 1990, conhecendo o cinema autoral alemão e americano, a nouvelle vague, o cinema novo e o cinema marginal brasileiros. Essas obras me influenciaram quando me tornei realizador, pois eram filmes que tinham propostas narrativas diferentes, inusitadas, atraentes. Vejo isso no cinema asiático de Hou Hsiao-Hsien, de Tsai Ming-Liang, de Wong Kar-Wai e de Apichatpong Weerasethakul, que buscam um cinema de escrita própria, de caligrafia particular, como se feito com uma caneta. Faço filmes que querem instigar a imaginação. Em Viajo porque preciso, volto porque te amo, o tempo longo de silêncio na estrada é um convite ao espectador para recordar o tempo modorrento de suas próprias viagens. Em Cinema, aspirinas e urubus ou em O homem das multidões, não mostro tudo porque quero que a plateia construa o extracampo. Quero que o espectador seja ativo naquela experiência, pois é esse o cinema que eu gostava e gosto de assistir. Se isso é cinema de autor, então sou um cineasta autoral.”

Usei erradamente, em uma apresentação, a palavra ‘hermético’ para descrever meus filmes. Acho que seja justamente o contrário: há uma necessidade de complementação que será feita pelo público que assiste à minha obra. Ela é aberta a diversas possibilidades de interpretação e complemento”, relaciona Frederico Machado, produtor, diretor de filmes e da distribuidora Lume, do Cine Lume e da Escola Lume de Cinema em São Luís. Cerca de 3 mil quilômetros o separam de Maria Clara Escobar, que trabalha e mora em São Paulo. No entanto, o modus operandi é parecido: ela fez a fotografia, o som, o roteiro e a direção do seu filme; Frederico cumpre dezenas de funções no set. “Acho que o barateamento da tecnologia facilitou, e muito, a difusão desse tipo de cinema. Não teria feito meu filme em película, por exemplo. Com o digital, é mais fácil as pessoas poderem acessar e interpretar arquivos de película e assim reinterpretar narrativas. E significa, também, não gastar tanto dinheiro”,

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MARIA CLARA ESCOBAR “As pessoas que não gostam de Os dias com ele se revoltam por ser um documentário que não explica muito sobre o personagem enquadrado – nesse caso, o meu pai, a quem filmei ao longo de quatro meses. Mas o filme traz um discurso que, para mim, não deixa de ser a fala de uma geração: o questionamento de vários conceitos, o conflito com as noções de arte, com o que é relevante para a atualidade e com quem fez a história. Quem escreve a história de uma pessoa ou de um país? Nela, há sempre uma fabulação, há sempre uma simulação, há sempre espaço para ficções. Me sinto parte de uma geração que repensa esses conceitos de alguma forma; quem se propõe a fazer um filme vai além das definições para tentar descobrir novas possibilidades de olhar essa história. E não vejo essa geração como ligada a uma questão geográfica específica, como se restrita apenas a São Paulo ou a Minas Gerais. Também não tenho, como autora, a preocupação de me enquadrar. Não fiz nenhuma concessão. Se havia uma preocupação, era justamente a de não cair em um lugar de fazer concessões.” LETÍCIA SIMÕES/DIVULGAÇÃO

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crê Maria Clara, cujo filme possui o selo de laboratórios de festivais como o de Berlim, o Bafici, de Buenos Aires, e o DocMontevideo. “Quando Os dias com ele ficou pronto, foi uma decisão política estrear em Tiradentes, que é um espaço que revela e valoriza esse tipo de cinema. Em um outro festival, sinto que talvez o filme ficasse jogado”, diz ela à Continente. Se estivesse vivo, talvez Paulo Emílio Salles Gomes definisse a cineasta, e tantos outros, como um híbrido entre os “artesãos e autores” que tentou evidenciar na coluna de abril de 1961 do Suplemento literário do Estado de S.Paulo: “a obra do artesão tende a ser social, não no sentido de crítica revolucionária ou reivindicadora, mas como expressão de ideias coletivas já estruturadas. A autoral tem inclinação psicológica e sugere uma natureza humana conflitiva”. De fabrico artesanal, autoral, coletivo e individual, ou mesmo despido de quaisquer incursões de categorização, o fato é que o “novíssimo cinema brasileiro” espelha uma nação gigante, fértil, entrópica e contraditória. “Um Brasil no cotidiano dos sujeitos, nas experiências sensíveis e afetivas desses sujeitos nas telas com a cidade que os cerca, com as pessoas, com seu dia a dia, e isso tratado na dimensão mais estética e política possível”, situa a pesquisadora e professora da UFF Mariana Baltar. O mesmo fio de raciocínio é seguido pelo cineasta pernambucano Marcelo Gomes, às voltas com a emersão pós-filmagem de Joaquim, um recorte sobre a vida do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. “As pessoas não apenas discutem a linguagem, como produzem reflexão sobre o momento político e social do país dentro dos seus filmes, a exemplo do próprio Os dias com ele e de Brasil S/A, de Marcelo Pedroso. Também aumentou a quantidade de escolas e o volume de reflexão. A discussão sobre cinema passa pela formação. Há um questionamento muito rico da forma e dos fatos dentro da sociedade. Quando você tem o que dizer, as tecnologias ajudam, em qualquer cinema, no velho, novo ou no novíssimo”, sintetiza Gomes.

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ALINE ARRUDA/DIVULGAÇÃO

CON CAPA TI NEN TE

Entrevista

ISMAIL XAVIER “A FIGURA DO DIRETOR-AUTOR CONTINUA DOMINANDO O ESPAÇO CRÍTICO” Ismail Xavier é autor de livros como O discurso cinematográfico: A opacidade e a transparência (Paz e Terra, 1977), Alegorias do subdesenvolvimento – Cinema novo, tropicalismo, cinema marginal (Brasiliense, 1993) e O olhar e a cena (CosacNaify, 2003), entre outros, e referência nos estudos do cinema brasileiro. Sua atuação no campo da pesquisa é reconhecida, inclusive, com o prêmio especial de preservação do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, dado pela Academia Brasileira de Cinema, e pela Ordem do Mérito Cultural, comenda do Ministério da Cultura. De formação multidisciplinar – graduação em Comunicação Social, mestrado e doutorado em Teoria Literária, todos pela Universidade de São Paulo, e pós-doutorado em Cinema Studies pela New York University, Xavier

atua como professor-associado na Escola de Comunicações de Arte/ USP, sendo figura de proa na análise fílmica na América do Sul. Sempre coerente e generoso ao apresentar suas formulações teóricas em congressos ou mediar debates em festivais, ele foi igualmente acolhedor ao receber as questões propostas pela Continente. Embora acredite que “o que há de mais vivo e com maior força de intervenção não chega ao reconhecimento tão nítido em festivais estrangeiros como já aconteceu no passado”, afirma categóricamente: “O cinema brasileiro tem uma longeva tradição de predomínio do filme de autor sobre o que seria um estilo de produtora”. CONTINENTE Como percebe este momento do cinema nacional? Acredita que, de fato, e como alguns críticos rotulam, estamos diante de um “novíssimo cinema brasileiro”? ISMAIL XAVIER O momento atual, como tem acontecido nos últimos 20 anos, desde a retomada, é de produção diversificada, com filmes com maior aporte de recursos pela Lei do Audiovisual e, quando comédias ou com algum outro ingrediente de maior atração de público, em coproduções que envolvem a Globo Filmes. Em termos estéticos, o panorama, antes já variado conforme o esquema de

produção, inclui agora um novo esquema no dito “novíssimo cinema”, em que os cineastas ganham maior independência atuando de forma cooperativa e partilhando as funções na equipe, inclusive a direção, em filmes de baixíssimo orçamento e que partem desse princípio de tomar a minimização de recursos como alavanca para uma maior liberdade no método de trabalho e criação, o que gera uma estética inovadora. Um cinema jovem com essas características é o setor mais incisivo na afirmação de uma nova tendência dentro da produção brasileira. CONTINENTE Quais seriam, então, as balizas desse “novíssimo cinema brasileiro”? ISMAIL XAVIER Além do modo de produção citado, há as escolhas particulares de temas, estilos e formas de intervenção no espaço cultural, que dependem de cada grupo em questão. Não há a busca de uma unidade de estilo em sentido estrito, mas a procura da forma e do tema que se inserem na formação e percurso de cada cineasta, em distintas direções. Esta é uma tônica que, sendo um traço do cinema de maior invenção e risco realizado a partir da dita retomada (1994-95), ganhou maior impulso e radicalização, com forte teor de improviso no

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chamado novíssimo cinema. CONTINENTE E quem seriam os cineastas e os respectivos filmes mais simbólicos dessa “nova onda”, por assim dizer? ISMAIL XAVIER Há realizações de coletivos que assinam a produção, a direção e a montagem, como no caso de Estrada para Ythaca, de Guto Parente, Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti (grupo Alumbramento/Ceará), ou filmes mais focados em um ou dois diretores, como Doce amianto, direção de Guto Parente e Uirá dos Reis, do mesmo grupo. No Rio de Janeiro, uma produção exemplar desse novíssimo cinema é Desassossego: Filme das maravilhas, coordenado por Felipe Bragança e Marina Meliande, filme em episódios dirigidos por Helvécio Marins Jr, Clarissa Campolina, Carolina Durão, Andrea Capella, Ivo Lopes Araújo, Marco Dutra, Juliana Rojas, Marina Meliande, Caetano Gotardo, Raphael Mesquita, Leonardo Levis, Gustavo Bragança, Felipe Bragança, Karim Aïnouz. Cada um dos diretores de episódios tem outros trabalhos, como é o caso de Alegria, de Felipe Bragança e Marina Meliande, no Rio; Trabalhar cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas, e de O que se move, de Caetano Gotardo, em São Paulo. Não podendo ser exaustivo nesta lembrança de experiências, como você disse, mais simbólicas, e sabendo inevitável esquecer aqui outros exemplos de igual valor simbólico dessa vertente, posso acrescentar a operação Sonia Silk, de Bruno Safadi e Ricardo Pretti, com que dialoga e homenageia os líderes da Produtora Bellair (1969-1970), Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, e tem como destaque a trilogia O uivo da gaita, O Rio nos pertence e O fim de uma era. CONTINENTE Pode-se afirmar que a noção de autor ganha força neste contexto atual de produção do cinema brasileiro? ISMAIL XAVIER O cinema brasileiro tem já uma longeva tradição, que inclui o período Embrafilme nos anos 1970 e 1960, de predomínio do filme de autor sobre o que seria um estilo de produtora. Claro que com nuances, conforme o esquema de produção, sendo mais radical tal predomínio autoral nos filmes de baixo orçamento. Falo no sentido de termos uma cinematografia não

dominada pela figura do grande produtor (embora estes existam no Brasil, mas não com a estabilidade e política de produção de um efetivo esquema industrial). E a figura do diretor-autor continua dominando o espaço crítico, como acontece desde a “política dos autores” da revista Cahiers du cinéma nos anos 1950. Esse predomínio de que falo tem suas nuances, do ponto de vista do grau de autonomia do cineasta e do ponto de vista das posições assumidas, sendo característica a esse período mais recente a ausência de programas estéticos zelosos de uma unidade de estilo e a ausência de um projeto político como aconteceu em movimentos dos anos 1960-70. CONTINENTE De que maneira o barateamento dos modos de produção e as novas tecnologias tendem a influenciar essa nova produção – tanto

“O cinema brasileiro tem já uma longeva tradição de predomínio do filme de autor sobre o estilo de produtora” de imagens como de discurso? ISMAIL XAVIER A questão fundamental é a liberdade, tanto no plano da relação com as fontes de recurso, quanto no sentido de uma não aceitação de demandas do mercado exibidor. A partir daí, o que vale é a escolha de cada cineasta, no plano estético e temático, escolha que ele vai conduzir procurando afastar as ditas interferências da lógica da mercadoria. O fato de predominar no Brasil um modelo de produção com base em lei de incentivo fiscal cria espaço para uma produção que não sente as pressões de retorno do investimento. E há ainda o novíssimo cinema que leva mais longe a ideia de afastar qualquer vínculo gerador de pressões sobre o processo de criação. CONTINENTE Por fim, você considera que o Brasil de hoje, com suas contradições e entropias, é refletido e problematizado

pela produção contemporânea? ISMAIL XAVIER O setor em que essa conexão com o Brasil contemporâneo se faz mais nítida é a produção do documentário, cuja riqueza e variedade de estilos é muito ampla e cujos principais autores são bemconhecidos. Além disso, digamos que, como tendência geral, isso tem acontecido no cinema de ficção nas últimas décadas de forma mais consistente – mas não exclusiva, pois há exemplos de filmes do Sudeste – no cinema pernambucano, que nos traz, no conjunto, uma percepção muito lúcida das novas experiências da urbanização selvagem e predatória, com as sobrevivências do passado – patriarcalismo mandonista, formas de dominação de classe e de gênero, ausência de cidadania –, enfim, o Brasil tratado por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e pelos sociólogos de esquerda dos anos 1950 e 1960, cujas pesquisas serviram de referência para o Cinema Novo e que agora continuam uma referência, não só na percepção das relações de poder no campo, mas também na cidade. Esta exibe sua aparência moderna e se insere num quadro temperado por uma maior mobilidade social, com migrações com outro padrão de motivações num país já consolidado como um espaço mercantil globalizado, porém não deixa de conviver com valores e formas de violência já tradicionais que imperam mesmo nas grandes cidades, seja no Recife, São Paulo ou Rio de Janeiro. O cinema pernambucano se compõe como uma constelação que conduz um debate que marca o diálogo entre filmes diferentes, uma vertente de que fazem parte filmes de autor, como nos casos de Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Karim Aïnouz (cearense que incluo aí pela efetiva interação dele com os outros cineastas citados). Eles atingiram significativa resposta da crítica e, como no caso de O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, também de público. A obra de Kleber se fez filme-chave na consagração da polaridade Casa-grande/ senzala, retomada por Casa grande, de Fellipe Barbosa (RJ), e Que horas ela volta?, de Anna Muylaert (SP).

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CON CAPA TI NEN TE ANDREA TONACCI/DIVULGAÇÃO

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VISIBILIDADE Um público nacional ainda em construção Estratégias criadas por realizadores para que os filmes brasileiros sejam vistos nos circuitos comercial e independente

De acordo com o censo do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE de 2014, o Brasil possui 203.450 milhões de habitantes, divididos em 5.570 municípios, dos quais 385 são dotados de salas de exibição – um total de 6,91%. Segundo a Agência Nacional do Cinema/Ancine, existem 758 complexos cinematográficos e 2.957 salas. Entre

janeiro e julho de 2015, conforme dados dessa agência, esse parque exibidor recebeu 90,4 milhões de espectadores, contingente 12% maior em relação ao público do primeiro semestre de 2014. Cerca de 83 milhões viram produções estrangeiras, como os três primeiros no ranking de bilheteria, Vingadores – A era de Ultron, Velozes e furiosos 7 e Cinquenta

tons de cinza; e aproximadamente 7,4 milhões de brasileiros pagaram ingresso para ver filmes nacionais. Entretanto, o quantitativo de espectadores da produção brasileira diminuiu 35,7% em comparação ao mesmo período em 2014. Como dar visibilidade à produção autoral ou ao “novíssimo cinema brasileiro”? Para Sílvia Cruz, da Vitrine Filmes, distribuidora de Hoje eu quero voltar sozinho (2014), de Daniel Ribeiro (206 mil espectadores), O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho (130 mil espectadores), e Branco sai preto fica (2014), de Adirley Queirós (16º colocado na hierarquia das 20 produções nacionais mais vistas em 2015), a via é recorrer à ferramenta de potencial mais democratizador – a internet. “Colocamos as peças promocionais com custo menor e alcance muito mais amplo na própria página da distribuidora no Facebook, que atinge um público que já sabe que quer ver esse tipo de filme. Fora isso, nossos filmes têm uma cauda longa. O lançamento no cinema é só o começo: depois vêm a TV fechada, o NetNow, o iTunes, o Netflix. Passam a existir por um tempo indefinido”, diz Sílvia, cuja

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ANCINE/DIIVULGAÇÃO

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JÁ VISTO JAMAIS VISTO

Novo filme de Andrea Tonacci tem distribuição pela SPCine, com foco em salas de periferia

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ANCINE

O cineasta Eduardo Valente coordena programa de intercâmbio com festivais estrangeiros

reconhece aquele cinema de arte”. Ele e a publicitária Ivana de Souza, sócios na änimä branding, ratificam a necessidade de se pensar a tática de acordo com as especificidades de cada obra. “Não é porque o filme é autoral que a estratégia é a mesma. Temos que buscar no DNA de cada um a chave para a comunicação. Em Tatuagem, por exemplo, a propaganda foi toda vernacular e a comunicação, baseada em guerrilha, porque se tratava de um filme passado numa década em que a propaganda e a comunicação eram assim”, comenta a dupla.

CIRCUITO INTERNACIONAL

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empresa funciona desde 2011 e tem 60 filmes no currículo – com os quais, brinca, “a Vitrine faz um casamento”. Há uma década, o cineasta pernambucano Marcelo Gomes fazia história ao inaugurar a participação do estado no Festival de Cannes: Cinema, aspirinas e urubus representava o Brasil, junto a Cidade baixa, do baiano Sérgio Machado, na mostra Un certain regard. Os DVDs de Aspirinas se esgotaram, mas quem quiser vê-lo, basta ir ao YouTube. “O filme está lá e todo dia penso em tirar, mas quando vejo que já tem 250 mil visualizações, fico com vontade de disponibilizar tudo. Viajo porque preciso, volto porque te amo passou seis meses em cartaz no México. Toda semana algum mexicano me escreve para saber dos filmes. Ou seja, os dados de bilheteria são muito relativos para medir o alcance desse cinema”, opina Gomes. Radicado há muito em São Paulo, o italiano Andrea Tonacci endossa o argumento: “Serras da desordem circulou em dezenas de aldeias indígenas. Em Belém, vi uma garotada que vinha do Amazonas, jovens ribeirinhos de pequenos vilarejos com DVDs que fizeram o filme circular. Passou totalmente por fora do crivo da Ancine. Os filmes, aliás, circulam à revelia disso”. Já visto jamais visto, seu novo filme, foi abraçado pela Empresa de Cinema

e Audiovisual de São Paulo/SPCine, criada pela secretaria municipal de cultura da capital paulista em conjunto com o governo estadual. “Como o projeto deles é passar em salas de periferia, não vou ter a referência de pessoas mais próximas dessa cultura autocentrada. Vai ser uma experiência interessante”, antevê.

“Quando vejo que já tem 250 mil visualizações do filme, fico com vontade de disponibilizar tudo” Marcelo Gomes Esse deslocamento – levar o cinema autoral para a periferia ou inseri-lo nas salas de shopping centers – é defendido também pelo publicitário pernambucano Fernando Lima, responsável pelo desenho de comunicação e lançamento de Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, de A história da eternidade (2014), de Camilo Cavalcante, e do novo Big jato (2015), de Cláudio Assis, entre outros: “Uma estratégia nova tem sido começar o lançamento de um filme autoral em salas mais comerciais, para despertar a atenção de quem não

As características exclusivas da produção contemporânea e a distância geográfica impeliram a Ancine a criar o programa Encontros com o cinema brasileiro, uma parceria com o Ministério das Relações Exteriores, que possibilita a visita de curadores dos principais festivais do mundo – Cannes, Veneza, Berlim, Locarno, Rotterdam, Sundance, Toronto e San Sebastian, entre outros. “No trabalho constante com os festivais, percebemos que os curadores tinham uma visão parcial e incompleta da contemporaneidade. Por um lado, muitos dos filmes não se inscrevem, pois há custos financeiros, e muitos cineastas, principalmente os mais jovens, acham que não têm chance ou que determinado festival só seleciona medalhões. Por outro, era a chance de permitir aos festivais ter esse entendimento do que é produzido a cada ano no Brasil. A ideia não é que eles passem a selecionar mais, e, sim, que possam selecionar melhor com as informações à mão”, detalha o assessor de relações internacionais da Ancine, o cineasta Eduardo Valente. Encontros com o cinema brasileiro existe desde junho de 2013. Boi neon, de Gabriel Mascaro, foi visto pelos curadores de Toronto e Veneza no programa. O Brasil, para Eduardo Valente, não vive uma realidade distante da França: “Lá também existe a dificuldade de chamar a atenção do público para a oferta nacional. Não é fácil para um autor independente francês, ou mesmo americano, ser visto em seus países. O mercado está mais perverso”. Portanto, é preciso criatividade e arrojo para que as obras sejam referendadas lá fora, mas sobretudo vistas e reconhecidas aqui dentro. LUCIANA VERAS

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CON TI NEN TE

CONSERVATÓRIO

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MÚSICA AO ACESSO DE TODOS Criado para democratizar o ensino musical, Conservatório Pernambucano de Música chega aos 85 anos com trajetória de formação de grandes instrumentistas brasileiros TEXTO Ulysses Gadêlha FOTOS Leo Caldas

A primeira gestão do maestro e violinista Cussy de Almeida (1936 – 2010) à frente do Conservatório Pernambucano de Música (CPM), em 1967, desencadeou uma revolução na música local. Segundo conta o maestro e professor Sérgio Barza, com o surgimento do Movimento Armorial, na década de 1970, a Orquestra Armorial de Câmara assumia o protagonismo da cena cultural, pondo o conservatório no centro da efervescência. Desse modo, a orquestra inaugurava o padrão musical que caracteriza a escola de música, misturando elementos do erudito e do popular. Completando 85 anos em 2015, a instituição resguarda as metas definidas por Cussy, que podem ser traduzidas na busca por aproximar a boa música da vida das pessoas. O trabalho de Cussy à frente do CPM foi marcante para a história da cultura pernambucana, mas o esforço de criação de uma escola de referência musical para Pernambuco teve início ainda no século 19. O maestro Euclides Fonseca pretendeu

criar a entidade, mas morreu em 1929, um ano antes de ver o sonho realizado. A tarefa ficaria para o pianista e regente carioca Ernani Braga (1888 – 1948), junto com o pianista Manuel Augusto dos Santos e o violinista Vicente Fittipaldi, primeiro regente titular da Orquestra Sinfônica do Recife. A fundação ocorreu em julho de 1930, de acordo com Sérgio Barza, atendendo a um apelo da população. Como instituição da sociedade civil, precisou de financiamento privado, e o Conde Pereira Carneiro foi um dos grandes patrocinadores do projeto. Instalado na Rua do Riachuelo, Boa Vista, o conservatório terminou o seu primeiro semestre de funcionamento com cerca de 100 alunos, ensinando basicamente piano e violino. Já em dezembro, realizou audição num Teatro de Santa Isabel lotado. Naquele momento, Ernani Braga transmitia a noção de que qualquer pessoa poderia se formar como músico. “Antes disso, só existia aula de música particular. Com o conservatório, pessoas de quaisquer

classes sociais podiam aprender. Se não tivessem dinheiro para pagar, o governo pagaria”, afirma Barza. Em 1941, a instituição se tornaria autarquia do governo do estado. Intérprete oficial da Semana de Arte Moderna de 1922, Ernani Braga chegou a trazer o compositor Heitor Villa-Lobos para visitar o CPM. Entre 1930 e 1960, o Recife era parada obrigatória para os grandes músicos de concerto do mundo. Eles vinham se apresentar na Argentina, mas os navios atracavam no Porto do Recife, para abastecimento. Nos dois dias que a embarcação geralmente passava no Recife, os artistas se apresentavam. Para abrigá-los próximo ao cais e ao Teatro de Santa Isabel, foi construído na Avenida Martins de Barros, em Santo Antônio, o Grande Hotel (onde hoje funciona o Fórum Thomaz de Aquino). Em 1961, o CPM se muda para a sede atual, na Avenida João de Barros, em Santo Amaro. Nessa época, já estavam instituídas boa parte das disciplinas que oferece na área de música erudita. A música popular só

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CON CONSERVATÓRIO TI NEN TE 1 SÉRGIO BARZA Para professor, instituição concentra demanda de ensino de música no estado 2 MATEUS ALVES Quando era aluno do CPM, músico teve composição no repertório da Orquestra Sinfônica Jovem

apareceria em 1969, com a cadeira de violão erudito, do professor Henrique Annes, que abriria a porta para a disciplina de bateria, em 1970, com José Xavier. “Recémchegado da Europa, o maestro Cussy de Almeida seria nomeado pelo governador Nilo Coelho para reformular o conservatório, em 1967. Como nessa época não havia concurso, boa parte dos professores não estava formalmente contratada. Assim, Cussy procedeu a regularização da instituição e deu início à criação de uma orquestra representativa”, relata Sérgio Barza.

ORQUESTRA ARMORIAL

Esse esforço institucional culminou com a criação da Orquestra Armorial de Câmara de Pernambuco, já que – simultaneamente à reforma feita por Cussy de Almeida – ocorria a formulação do Movimento Armorial por Ariano Suassuna. À parte a discordância entre Cussy e Ariano quanto à presença de instrumentos populares no grupo, o fato é que a orquestra capitaneou o movimento, já que era considerada a linguagem mais direta para o público. “A ideia de Ariano era que a orquestra fosse o carro-chefe do Movimento Armorial”, destaca Barza. Essa orquestra gravou cinco discos, com composições do próprio Cussy (Aboio, No reino da pedra encantada), de Jarbas Maciel (Chamada Nº 2, d’A Pedra do Reino), Capiba (Sem lei nem rei) e Clóvis Pereira (No Reino da Pedra Verde). As músicas eram executadas com violinos, viola, violoncelo, contrabaixo, flautas e percussão, com a entrada ocasional do cravo. O primeiro concerto da Orquestra Armorial ocorreu em agosto de 1970, com um repertório barroco. A segunda, em outubro do mesmo

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Em Pernambuco, até a década de 1930, antes da criação do CPM, quem queria estudar música tinha que ter aulas particulares

ano, no lançamento do Movimento Armorial por Ariano. Ainda em 1970, o CPM realizou o Concurso SulAmericano de Execução Musical, quando inaugurou o lendário piano Steinway, o melhor do mundo, que fora adquirido pelo governo para nivelar a qualidade instrumental de Pernambuco. O evento também

prestou homenagem aos 200 anos de Ludwig van Beethoven (17701827). “Todas as metas que Cussy de Almeida estabeleceu para o conservatório ainda existem hoje como missão nossa, de formar músicos excelentes e interiorizar o ensino. O conservatório não é uma escola de música do Recife e, sim, de Pernambuco”, sublinha Sérgio Barza. Na gestão do maestro Clóvis Pereira, entre 1983 e 1987, Cussy criou a Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco, que foi outro marco na música popular e erudita local. O grupo contava com ex-integrantes da Orquestra Armorial, como Henrique Annes e Ivanildo Maciel, além de nomes

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notáveis como Adelmo Arcoverde. Em 1995, nasceu a banda de música instrumental SaGrama, que se tornaria o grupo representativo mais famoso do conservatório. Juntando flauta, clarinete, marimba, viola sertaneja, o SaGrama completa 20 anos de existência com sete discos gravados, entre eles a trilha sonora da série e do filme Auto da Compadecida, inspirado na obra de Ariano Suassuna. “Para quem trabalha com música de raiz, aqui é o melhor lugar do Brasil. É uma diversidade absurda de ritmos e folguedos, os gêneros como maracatu, caboclinho, baião, tudo tem sua história, seu roteiro”, afirma o líder do grupo e professor do CPM, Sérgio Campelo.

A pianista Elyanna Caldas, diretora entre 1987 e 1990, trouxe o Método Suzuki, que facilitava o estudo da teoria musical MÉTODO SUZUKI

O trabalho de difusão do ensino foi acentuado quando a pianista Elyanna Caldas, diretora do CPM entre 1987 e 1990, trouxe o Método Suzuki, que facilitava o aprendizado da teoria musical. Depois, Cussy de Almeida, em sua segunda gestão, levou aulas para comunidades do

Recife, como o Alto do Céu. Foi de lá que vieram músicos como o solista Gilson Cornélio Filho, que terminou sua formação em violino aos 16 anos. “Como sou filho único e perdi meu pai quando ainda era muito pequeno, minha mãe sempre batalhou sozinha para manter a casa. Ela saía para trabalhar e eu ficava com minha tia, mas aproveitava os momentos de desatenção dela e ia brincar na rua. Para evitar isso, minha mãe ficou sabendo desse projeto, bem perto de minha casa, e me matriculou nele”, lembra Gilson. Ele conta que, em 2000, quando tinha 11 anos, ganhou bolsa para estudar no CPM com o professor Ademar Rocha e concluiu a formação técnica cinco anos depois. Graduou-se em música na Nicholls State University, nos EUA, e hoje cursa mestrado, vivendo de música na cidade americana de Albuquerque. No conservatório, Gilson participou da Orquestra Sinfônica Jovem, projeto oriundo da disciplina de Prática de Orquestra, criada pelo professor Sérgio Barza em 2000 e da qual passou a fazer parte o professor e maestro José Renato Accioly, em 2004. A OSJ tinha o objetivo de proporcionar aos alunos a vivência numa orquestra, além de criar plateias para a música de concerto. Durante os 10 anos que esteve em turnê com projeto Circuito Sinfônico – patrocinado por empresas como Chesf e Petrobras –, a orquestra realizou cerca de 200 apresentações, além de 150 concertos-aulas em mais 40 cidades em Pernambuco e no Nordeste. Por falta de financiamento, a OSJ parou desde 2013. “Nós estávamos quase chegando ao nível profissional, quando tivemos que encerrar nossas atividades. Em 2013, numa apresentação na Mimo, o crítico Clive Davis, do jornal inglês The Times, disse que nós éramos melhores que a Sinfônica de Londres. Certo que nós não éramos, mas nós passamos essa impressão para ele”, diz José Renato Accioly. O repertório da OSJ era formado por compositores clássicos, como Beethoven, Bach, Mozart, Tchaikovsky, Rossini, Verdi, Wagner, Dvorak, Bernstein, além de brasileiros como Vicente Fittipaldi, Villa-Lobos, Brenno Blauth, Clóvis Pereira e

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OSJ, a fim de garantir orçamento para dispor de 20 músicos profissionais que servirão de referência para 60 alunos bolsistas. A atual diretora do CPM, Roseane Hazin, acredita que em 2016 a orquestra deverá retomar as atividades. “Nós continuamos com nossas aulas individuais, mas é preciso ter essa prática de orquestra”, defende Hazin. Oferecer a formação superior em música também está entre os planos da entidade para o médio prazo. “Nós temos professores com mestrado e doutorado, temos capacidade para isso”, afirma a gestora. Com o violonista Sidor Hulak à frente do conservatório, a instituição conseguiu o primeiro reconhecimento do curso técnico pelo Ministério da Educação (MEC). Hoje, o CPM recebe mais de 2 mil estudantes, entre os cursos regular e técnico. Para atender a essa demanda, trabalham 167 professores nas áreas de Iniciação Musical, Canto, Percussão, Cordas Dedilhadas, Cordas Friccionadas, Sopros, Piano e Teclado. Além do SaGrama, a escola ainda conta com uma banda sinfônica, uma orquestra de frevo e os grupos representativos Alegretto (de música antiga) e Orquestra Retratos (de cordas dedilhadas).

O Conservatório oferece formação básica em bairros da zona norte, a partir do projeto Orquestrando Pernambuco

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Dierson Torres. Alunos da entidade, como o contrabaixista Mateus Alves, também tiveram a oportunidade de ter composições próprias executadas pela orquestra jovem. “Em 2010, a gente aprovou um projeto no edital da Petrobras Cultural e lançamos o disco com composições próprias. Mateus Alves, por exemplo, compôs a música Duas estações nordestinas, em homenagem a Clóvis Pereira, e nós tocamos”, diz Accioly. Graduado em Londres, Mateus acredita que é essencial para o

conservatório realizar o diálogo entre a música popular e a música erudita. “Só teria sentido se abraçasse esse tipo de manifestação. Diferente de Londres, onde eles estão replicando, conservando e mantendo a cultura erudita deles. A música popular tem a ver com a herança negra, dos escravos, a cultura indígena. É preciso uma instituição para manter a nossa música”, alega o contrabaixista. Ainda no governo Eduardo Campos, uma comissão foi formada para realizar a institucionalização da

Com o projeto Orquestrando Pernambuco, o CPM oferece formação musical básica nos bairros de Alto do Pascoal, Alto do Céu, Poço da Panela, Coelhos e Santo Amaro. A violinista Rafaela Fonsêca, formada pelo CPM, ex-integrante da OSJ, hoje ensina no Orquestrando Pernambuco e na Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque e acredita que há um ambiente favorável para a difusão da música. “A gente sabe que é uma profissão muito cara, porque o instrumento é caro, tem cordas,

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ALEX RIBEIRO/CRIA SA/DIVULGAÇÃO

3 JOSÉ RENATO ACCIOLY

Professor afirma que a Orquestra Sinfônica Jovem estava próxima do nível profissional quando se viu obrigada a encerrar as atividades 4 RAFAELA FONSÊCA Ex-integrante da OSJ, hoje ensina no Orquestrando Pernambuco e na Orquestra Criança Cidadã

palhetas, toda a manutenção é cara. Mas conheço pessoas que saíram de projetos sociais e são profissionais concursados, conseguiram bolsas para estudar no exterior. A música é mais democrática porque acaba julgando a pessoa pela sua competência técnica naquele instrumento, não é como um vestibular”, afirma. Os mais jovens é que têm colocado a tradição musical do conservatório para a frente, como é o caso da jovem cantora Pandora Calheiros, de 11 anos, que entrou no CPM aos 7 anos. Amadrinhada pela cantora Nádia Maia, Pandora cursa piano erudito no CPM. Influenciada pelo avô, a garota passou a se apresentar na noite do Grande Recife, cantando boleros, bossa nova e samba-canção. “Eu cantava para os vizinhos, apenas. Depois que entrei no conservatório, comecei

“Conheço pessoas que saíram de projetos sociais e são concursadas ou têm bolsas no exterior” Rafaela Fonsêca a ter aulas de canto coral, aprendi teoria musical, a ler partituras, os acordes do piano. Quando ganhei meu primeiro piano, passei a praticar em casa, geralmente uma hora por dia”, conta Pandora. Com o piano erudito, ela passou a se portar melhor e planeja, um dia, se apresentar com o instrumento. Conciliando as aulas no ensino fundamental com o conservatório e o curso de inglês, Pandora faz shows com sua banda, que conta com sete músicos. Em setembro,

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ela se apresentou no Manhattan Café, casa de shows do Recife que recebe grandes nomes da música popular brasileira. “Já teve shows em que Pandora ficava no camarim brincando de boneca, esperando a hora da apresentação”, relembra a mãe, Kátia Calheiros. A garota compôs a música Flores para Clarice, homenageando a escritora Clarice Lispector, que foi tema do Bloco das Flores, no carnaval recifense deste ano. A colaboração levou a cantora para o quadro dos imortais da agremiação. Na visão de Sérgio Barza, o conservatório continua concentrando a demanda do ensino de música no estado. “Desses 2 mil alunos que nós temos, se 200 se formarem como bons músicos, para nós será ótimo. Teremos 1,8 mil ouvintes que passarão essa cultura para frente. Nesse sentido, o conservatório está formando gerações”, afirma. Esse traçado termina por laurear o projeto de Cussy, a tentativa de tornar o conservatório uma escola de primeiro mundo, uma referência para o país. “A maioria das pessoas que fazem o conservatório realizam esse trabalho com amor”, ressalta Accioly. “Nós entendemos que existe apenas música boa e ruim. Não temos essa visão de que a música de concerto é algo antigo, feito por compositores que já morreram. Nós não fazemos música comercial, não é o nosso foco. Nós fazemos uma música com performance, que tem forma, demanda técnica. Essa música está ao acesso de todos”, declara Roseane Hazin.

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CON CONSERVATÓRIO TI NEN TE

PARTITURAS Resgate histórico de um repertório

Parceria entre o Conservatório Pernambucano de Música e a Cepe promove a digitalização e editoração do acervo da Orquestra Armorial TEXTO Carlos Eduardo Amaral

KARINA FREITAS

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Em 18 de outubro de 1970, a Orquestra Armorial de Câmara fazia seu segundo concerto oficial (o primeiro havia sido dois meses antes, a 21 de agosto), por ocasião do lançamento do movimento estético idealizado e batizado por Ariano Suassuna. O grupo era uma ampliação de um quinteto experimental sem nome, formado no ano anterior, que reunia dois violinos, duas flautas, bateria e, eventualmente, um violão adicional, e resumia simbolicamente os principais instrumentos utilizados na música folclórica nordestina: rabeca, viola sertaneja, pífanos e percussão. Conta a história do Movimento Armorial que, como Cussy de Almeida, spalla da orquestra, e Ariano divergissem sobre a presença ou não dos instrumentos “originais”, rústicos, em vez dos seus equivalentes sinfônicos, e também sobre a mais adequada formação instrumental, se camerística ou orquestral, cada qual seguiu seu rumo. E rumos diferentes também tiveram as obras tocadas pelos grupos ligados a ambos os artistas: o Quinteto Armorial, organizado por Ariano na UFPE em 1971, perdeu muitas de suas partituras na épica enchente de 1975; já a orquestra teve seu acervo quase todo guardado pelo Conservatório Pernambucano de Música (CPM), ao qual era ligada. Esse fator fez com que peças de Clóvis Pereira, Jarbas Maciel, Cussy de Almeida, Capiba, César GuerraPeixe e outros colaboradores eventuais da orquestra, como Benny Wolkoff, Marlos Nobre e Camargo Guarnieri, pudessem ser acessadas até hoje. No entanto, elas permaneciam em originais manuscritos, cópias manuscritas ou cópias xerográficas, exceto por algumas obras de Clóvis Pereira, editadas posteriormente pelo compositor. Por isso, a parceria celebrada este semestre entre a Cepe e o CPM ganhou um contorno valioso. As cerca de 30 partituras selecionadas e organizadas pelo maestro e professor Sérgio Barza e pela gerente-geral do Conservatório, Roseane Hazin, após resolvidas as questões de direitos autorais, foram encaminhadas para digitalização na Cepe e estão sendo editoradas pelo CPM para serem lançadas em livro

até início de 2016. Assim, qualquer orquestra de câmara do país poderá, com o CD anexo ao livro, imprimir as grades e partes e, igualmente, consultar os manuscritos para tirar dúvidas e visualizar anotações e outros detalhes do repertório que rendeu cinco discos nos anos 1970: Orquestra Armorial, Chamada, Gavião, Orquestra Armorial vol. 4 e Orquestra Armorial vol. 5 – este último pelo selo do CPM; os demais, pela Continental. Segundo Barza, algumas das obras nunca tiveram grade (a partitura “geral”, com todos os instrumentos), só as partes cavadas. Outras, encomendadas pelo conservatório a compositores consagrados, notabilizam-se por se distinguirem bastante da linguagem da Orquestra Armorial, como o Desafio para viola e cordas, de Marlos Nobre, o Concerto para cordas e percussão, de Camargo Guarnieri, e as Variações sobre um tema nordestino

Cerca de 30 partituras foram encaminhadas para digitalização, com o intuito de serem publicadas em livro até 2016 (Mulher rendeira), de Radamés Gnattali. Uma peculiaridade de boa parcela das partituras selecionadas é a marcação das entradas da percussão, sem que seja escrita a instrumentação exata ou a parte correspondente. “Como os percussionistas vinham da música popular, essa era uma escrita funcional: eles sabiam onde parar e recomeçar e faziam ataques dependendo da música. O mais verdadeiro (na edição do livro) seria manter essa escrita, mas pode haver uma decisão de buscar com os percussionistas do Conservatório uma solução mais exata. A contribuição dos percussionistas do passado para cada interpretação, porém, não deve ser descartada”, explica Barza. Sobre a participação esporádica do cravo, ele acrescenta: “O cravo é uma parte da orquestra, tocando em algumas músicas e noutras não. Sua participação nela é semelhante à do violão e da viola de 10 cordas. Se ele está na partitura,

estará na edição. Há um único caso, o Cipó branco de Macaparana (de Cussy de Almeida), que tem um improviso não escrito para cravo, mas isso não impede a execução da obra (na versão do Grupo Orange, o improviso era de flauta)”.

ACERVOS

A edição das partituras da Orquestra Armorial insere a Cepe entre as poucas editoras não segmentadas do país a aventurar-se no nicho de edição de partituras, que só costuma prover alguma recompensa quando estão envolvidos compositores do Barroco, Classicismo, Romantismo e Impressionismo – mais pelo peso dos nomes do que pelo fato de as obras serem de domínio público. O desafio da Cepe não foi algo calculado antes. Surgiu por estar dentro de sua missão de evidenciar a arte e a cultura pernambucanas, demonstrada pela importância da iniciativa, que enfoca a arte armorial. O Conservatório Pernambucano de Música, a seu turno, começa a se preparar para uma tarefa que poucas instituições do Brasil abraçaram, a digitalização de seu arquivo de partituras. Entre essas instituições estão a Biblioteca Nacional e a Biblioteca Alberto Nepomuceno, da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que inclusive atuaram em conjunto nesse sentido. Só a EMUFRJ disponibiliza mais de 3.500 páginas de manuscritos, obras raras, periódicos e documentos, que se encontram na internet, frutos de um inventário que prossegue da década passada até hoje. O professor e regente André Cardoso, ex-diretor da EMUFRJ e atual presidente da Academia Brasileira de Música, continua a trabalhar na editoração e edição das partituras publicadas na Revista Brasileira de Música, mais antigo periódico científico musical do Brasil e pertencente ao programa de pós-graduação da escola: “Na revista, foram publicadas obras inéditas de José Maurício Nunes Garcia, Lino José Nunes, Henrique Oswald, Francisco Braga e Leopoldo Miguez, sempre acompanhadas de um texto introdutório. O pesquisador que quiser, por exemplo, consultar o manuscrito autógrafo do Réquiem do Padre José Maurício, obra escrita em

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1-3 CUSSY DE ALMEIDA Peças do maestro e da Orquestra Armorial estão entre o material em digitalização

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1816 para os funerais da Rainha D. Maria I, poderá fazê-lo de qualquer lugar do mundo”, detalha. Cardoso ressalta que a digitalização de obras tem o benefício extra de preservar o acervo por mais tempo, evitando a manipulação dos originais. Atualmente, muitos compositores estão oferecendo amostras das próprias obras em sites específicos, a exemplo do Sesc Partituras, que começou as atividades como um banco físico em 2007. Assim, os próprios autores podem mandar quantas partituras desejarem, editoradas por eles próprios, e, da mesma forma, pedir a retirada delas a qualquer tempo. Com isso, esperam que intérpretes entrem em

contato para comprar ou solicitar outras partituras, sem prejuízo do recolhimento de direitos autorais a cada obra executada. Thiago Sias, da equipe de música do Sesc, conta que o Banco Digital Sesc de Partituras consistia de um computador com um acervo em CD-ROM no qual as partituras eram consultadas em 15 unidades da instituição em todo o país e impressas no próprio local, e que, em 2011, iniciou-se o projeto do site, com acesso global e expansão do arquivo. “Para isso, fomos atrás de autorização de compositores e herdeiros. Atualmente, temos 200 compositores (brasileiros ou radicados no país há mais de três anos) e mais de 1.500 partituras”, completa.

O processo de organização e liberação das obras de compositores falecidos (como Ernesto Nazareth, César Guerra-Peixe, Francisco Mignone e Glauco Velasquez), apesar de complicado, garantiu o sucesso da iniciativa, segundo descreve Sias: “A maior parte dessas obras estava em manuscritos, guardada com herdeiros ou mesmo na Biblioteca Nacional que, através de vários trâmites burocráticos de autorizações e licenciamentos, pudemos disponibilizá-las – todas editoradas, ou seja, totalmente adequadas e prontas para interpretação”. No Conservatório Pernambucano de Música existem outras raridades à espera de edição. Sérgio Barza cita uma delas: Na floresta encantada, de Ernani Braga, “um poema lírico sinfônico, composto em 1931 e estreado em 1932, para solistas, coro e orquestra, que contou também com encenação. O libreto é de Willy Diniz Lewin; figurinos, de Joaquim Cardozo, e cenário de Mário Nunes. O acervo de Braga também mereceria edição, bem como o da Orquestra de Cordas Dedilhadas. Jarbas Maciel, Benny Wolkoff e Clóvis Pereira têm obras que vão além do Movimento Armorial. Tudo isso está sendo pensado há décadas”, detalha.

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CLÓVIS PEREIRA A magnitude da obra do maestro

Assinada pelo jornalista Carlos Eduardo Amaral, biografia do músico pernambucano aprofunda a noção de sua contribuição à cultura brasileira TEXTO José Teles

Focado no frevo, o documentário Sete corações não destacou a extensão da obra dos maestros registrados no filme, com enredo cerzido pelas intervenções do maestro Spok. Todos eles trafegaram, uns mais outros menos, entre o popular e o erudito, alguns com obra mais dedicada ao segundo do que ao primeiro, como é caso do caruaruense Clóvis Pereira. Suas peças que chegaram ao público são apenas um breve indício de amplitude, do qual o jornalista e crítico de música erudita Carlos Eduardo Amaral mostra a real magnitude na biografia Clóvis Pereira – No Reino da Pedra Verde (Cepe Editora), que será lançada no dia 19 deste mês nas comemorações aos 85 anos do Conservatório Pernambucano de Música. Um livro dividido em duas partes. Na primeira, é contada a trajetória de Clóvis Pereira desde o garoto pobre de Caruaru, apaixonado por

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CON CONSERVATÓRIO TI NEN TE música e cinema, ao respeitado professor universitário, com cursos na Berklee College of Music, em Boston, Massachussets, nos EUA, hoje gozando de uma confortável aposentadoria, e finalmente podendo conviver no dia a dia com a família, mulher, filhos, netos. A segunda parte é um catálogo da sua obra, que não deve ser confundido com um simples songbook. Foi a etapa mais trabalhosa do livro, envolvendo, acentua o autor: “Listagem e classificação das partituras e discos; consultas presenciais e online a bibliotecas do Recife, do Rio de Janeiro e de João Pessoa; entrevistas com músicos que interpretaram peças do compositor ou tiveram peças arranjadas por ele; e redação final. Naturalmente, a pesquisa incluiu uma conversa com o próprio Clóvis”. A primeira paixão musical do maestro foi Frederic Chopin, biografado no filme A song to remember (de Charles Vidor, no Brasil À noite sonhamos), com Cornell Wilde no papel do compositor. O adolescente de 13 anos, que já tocava gaita, quis tocar piano. Tomou as primeiras lições com a professora Diana Barbalho, irmã do escritor e compositor Nelson Barbalho (autor de A morte do vaqueiro, gravada por Luiz Gonzaga, que assina a música com ele). Para Clóvis, a composição tem ligação com o cinema. Seu pai era operador-projetista do Cine Caruaru, em que havia uma boa coleção de discos, usada para trilha de filmes mudos. As peças clássicas eram reservadas para a Semana Santa. Sem ter piano em casa, Clóvis Pereira exercitava-se em pianos alheios. Pouco, mas o suficiente para quando veio morar no Recife, aos 17 anos, fazer o antigo curso científico, que o habilitaria ao vestibular. Os pais o queriam doutor, mas o filho já estava irremediavelmente inoculado pelo micróbio da música, o que já se prenunciava em sua cidade natal, quando ingressou na Banda Nova Euterpe, a convite do maestro Tenente Casaquinha.

RÁDIO E TV

Concentrando-se mais na música erudita de Clóvis Pereira, a biografia dá apenas um rasante pelo período em que o maestro trabalhou no rádio, no qual começou como gaitista, depois pianista, músico da orquestra do já lendário

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LUIZINHO NO FREVO Clóvis Pereira só compôs frevos instrumentais, como este seu mais famoso

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MAESTRO Regendo a Orquestra Armorial, em evento em Caruaru

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maestro Nelson Ferreira. Mais tarde, ele comandaria a Orquestra Paraguary, da Rádio Jornal do Commercio, na qual dirigiu nomes como Sivuca, Luperce Miranda e Jackson do Pandeiro, e acompanhou estrelas locais, nacionais e internacionais que cantavam nos programas de auditório da emissora. Uma sugestão do cantor e compositor Luis Bandeira, que estava se mudando para o Rio de Janeiro, o incentivou a se concentrar mais em arranjos e orquestrações, que o levariam ao maestro carioca Guerra-Peixe, cuja importância na música pernambucana merece uma obra à parte. Clóvis integrou a primeira turma que Guerra-Peixe montou: “Continha apenas quatro alunos, três dos quais viriam a ser integrantes da linha de frente da música pernambucana popular e erudita, especialmente durante o vigor do Movimento Armorial, nos anos 1970: Capiba, Jarbas Maciel e Clóvis. O quarto foi Sivuca, que logo ganharia o mundo”. Ironicamente, o aluno ocuparia o lugar do professor. Guerra-Peixe foi sumariamente demitido da Rádio

Jornal do Commercio por F. Pessoa de Queiroz, que recebera denúncia de que o maestro professava ideias comunistas. Alinhado ideologicamente com os Estados Unidos, o Brasil praticava uma versão cabocla do macarthismo. Mas Guerra-Peixe deixou plantada no Recife uma semente, que floresceria nos anos 1970. Dos quatro alunos, três deles – Clóvis, Capiba e Jarbas Maciel – foram personagens fundamentais do Movimento Armorial, com uma música que se encaixava nas elucubrações do professor e escritor Ariano Suassuna, um dos temas mais interessantes da biografia, já que o Armorial ainda não recebeu uma biografia mais aprofundada, empreitada de que o próprio Carlos Eduardo Amaral poderia se encarregar. No início dos anos 1960, Pernambuco mantinha uma das principais redes de comunicação do país, com duas TVs e várias emissoras de rádios, que priorizavam a programação local. Os músicos que atuavam no estado tinham, portanto, atrativos pessoais e financeiros suficientes para não ouvir o canto

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da sereia dos grandes centros, Rio e São Paulo. Com Clóvis Pereira não foi diferente. Seu amigo GuerraPeixe tentou levá-lo para São Paulo, mas os executivos da Rádio Jornal do Commercio chegaram a ele com uma contraproposta: “Já se falava de televisão, isso em 1956, 57… e não me deixaram viajar para o Rio e para São Paulo, por causa da TV que a Rádio Jornal pretendia inaugurar. Guerra já tinha arrumado uma vaga para mim na Rádio Nacional de São Paulo e uma boate para tocar. A Rádio Jornal soube, me fez outra proposta melhor (eu era solteiro, estava pensando em casar), aí fiquei.”, conta Clóvis Pereira ao biógrafo. Ele permaneceu na empresa de F. Pessoa de Queiroz durante 13 anos, de 1954 a 1967. Maestro no Recife, dificilmente não cairia no frevo. Como músico, depois maestro da orquestra da Rádio Jornal, era inevitável que Clóvis trabalhasse com o frevo, como arranjador, orquestrador, músico, embora suas composições iniciais, assinala o autor, não tenham sido no gênero: Rapsódia de ritmos pernambucanos, Risomar e

Foi com o Armorial que Clóvis Pereira pôde ter executadas e gravadas algumas de suas peças mais importantes Tanguinho do Vicente. Enquanto maestros como José Menezes, Duda ou Guedes Peixoto, por exemplo, entregaram-se ao frevo, Clóvis Pereira não escondia sua inclinação pela música para concertos. Até mesmo os frevos que compôs são instrumentais, sendo Luizinho no frevo o mais conhecido; nunca teve queda pelo frevo-canção. E ele se dedicaria à música erudita a partir de 1964, quando – já regendo a orquestra sinfônica da Rádio Jornal – passou a tocar na Orquestra Sinfônica do Recife, então com o maestro Vicente Fittipaldi.

ARMORIAL

Houve boa música durante o polêmico e conturbado Movimento

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Armorial, com desentendimentos entre o maestro Cussy de Almeida e seu ideólogo, Ariano Suassuna, e entre o próprio Clóvis Pereira e Cussy de Almeida, contados no livro pelo autor, embora sem detalhes. Foi com o Armorial que Clóvis pôde ter executadas e gravadas algumas de suas peças mais importantes. Armorial avant la letre, Clóvis Pereira já compunha em cima dos gêneros nordestinos modais. Em 1951, fez uma recriação de um jingle do maestro Guerra-Peixe, Viola e rabeca, que no Armorial foi rebatizado de Mourão. Do repertório armorial é a peça que subintitula esta biografia, e sua obra maior, A grande missa nordestina, que fecha sua participação no movimento que, pelo menos musicalmente (isto é afirmado no livro), apenas carimbou uma nomenclatura em um estilo de música para concerto que já existia muito antes da deflagração oficial do movimento, em 1970. A biografia de Clóvis Pereira também passa pelos Estados Unidos, onde ele aperfeiçoou os estudos; pela Rozenblit, na qual gravou e produziu centenas de arranjos; e pelo descaso com a cultura, cometido quando a Rádio Jornal mudou-se do antigo prédio, em Casa Forte, para a Rua do Lima. À época, quase todos os históricos arranjos dos seus arquivos foram incinerados (parte se encontra hoje sã e salva na Fundaj). No documentário Sete corações, Clóvis Pereira responde a uma pergunta do jovem maestro Spok sobre como gostaria de ser lembrado: “Eu gostaria de ser lembrado como um bom pai de família e um bom profissional”. Com esta biografia, ele será lembrado também como o músico que legou uma inestimável contribuição à cultura brasileira.

Clóvis Pereira CARLOS EDUARDO AMARAL Cepe Editora Biografia do maestro, com enfoque na sua trajetória profissional no Recife.

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Viagem

BOLONHA Eminentemente cultural Capital de uma das regiões mais ricas da Itália, a cidade de ares medievais abriga importantes universidades, bibliotecas e feira de livros infantis TEXTO Ana Bizzotto Melo, de Bolonha

Cidade-sede da maior feira de livros infantis do mundo, realizada há 50 anos, Bolonha conseguiu conservar na arquitetura, na culinária e no patrimônio científico as heranças de seu passado medieval. Apelidada de la rossa, la grassa e la dotta, a capital da Emilia Romagna, uma das regiões mais ricas da Itália, é também conhecida por abrigar a maior universidade do mundo, por onde passaram personagens ilustres como os escritores Petrarca e Dante Alighieri. Homenageada nas canções de Francesco Guccini e Lucio Dalla, a terra natal de grandes artistas como o cineasta Pasolini e os pintores Giorgio Morandi, Guido Reni e os irmãos Carracci foi eleita para moradia e trabalho por importantes nomes da cultura italiana,

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como o compositor Rossini, o poeta Giosuè Carducci e o escritor Umberto Eco. Os cientistas Guglielmo Marconi, inventor do rádio, e Luigi Galvani, cujos estudos deram origem à primeira bateria elétrica, também nasceram na cidade. A contribuição desses artistas e cientistas e a boa infraestrutura fazem com que Bolonha respire cultura. Mas apesar de toda a sua diversidade cultural e histórica, ela não costuma estar na lista de destinos mais visitados pelos milhares de turistas que circulam pela Itália diariamente. E é justamente a possibilidade de descobrir suas várias facetas pouco exploradas que a tornam mais interessante para quem procura uma típica città italiana. Famosa por seus pórticos, muros e torres, ela não impressiona pelas construções individuais, mas, sim, pelo conjunto da obra, traçado e conservado em ruas estreitas e harmônicas. Em cidades como Florença e Roma, as edificações são individualmente mais importantes que o desenho da cidade, mas em Bolonha ocorre o contrário: até os mais belos palácios renascentistas e barrocos são absorvidos pelas malhas do tecido urbano medieval e se alinham ao longo das radiais que partem do coração citadino: as torres Asinelli e Garisenda. Conhecidas como Le due torri (as duas torres), elas estão entre as poucas restantes. Erguidas em grande número por famílias nobres, foram desaparecendo ao longo dos séculos devido a terremotos, incêndios, desabamentos e guerras. Com 97 metros, a Asinelli é a mais alta da cidade. Subir os seus 498 estreitos degraus é tarefa árdua, merecidamente compensada com uma privilegiada vista panorâmica. Com exceção da Piazza Maggiore, no coração do centro histórico, as praças não foram construídas para ressaltar fachadas imponentes. Mas a falta de espaço nas ruas é compensada pelos pátios, que enriquecem de luz o interior das construções. A iluminação natural e a noturna, junto com as cores terrosas dos edifícios, em tons de amarelo-ocre, laranja e vermelho, parecem fazer parte do imenso cenário de um filme real. O apelido la rossa (a vermelha), relacionado aos tons da paisagem urbana, também tem raízes na politica. Após a Primeira Guerra

Mundial, Bolonha foi dominada pelos socialistas, que acabaram derrotados pelo fascismo nos anos 1920. Após os intensos bombardeios da Segunda Guerra, voltou a ser um importante e rico centro industrial e comercial, e por cerca de 50 anos foi governada por partidos de esquerda. Dentre os seus principais cartõespostais está o conjunto de pórticos de estilos e tamanhos diversos, solução encontrada na Idade Média para que o primeiro andar dos edifícios fosse ampliado sobre as “calçadas” sem precisar invadir as ruas. A extensão atual dos pórticos é de quase 40 quilômetros. Já os muros (le mura), do mesmo período, estiveram presentes por muito tempo, mas desapareceram. Hoje, restam apenas as portas construídas ao longo da extensão que marca os antigos limites da cidade, em torno dos quais largas avenidas (viali) fazem a ligação entre centro e periferia. Além de

Os apelidos que ganhou resumem atributos da cidade: la rossa (a vermelha), la grassa (a gorda) e la dotta (a douta) controlar a entrada e saída de pessoas e mercadorias, as portas serviram como prisões. Ainda é comum ouvir expressões como fuori mura (paredes exteriores) e fuori porta (fora da cidade), o que demonstra a importância dessas construções como referência espacial. Também características da época são as construções religiosas em estilo gótico, como as igrejas de São Francisco e de São Domenico e o interior da Basílica de São Petrônio.

VIDA NA CIDADE

Bolonha está no centro de uma área metropolitana de 50 municípios que, juntos, somam mais de 750 mil habitantes. Durante o dia, esse número pode chegar a 1 milhão, já que muitos moram fora da região metropolitana e vão e voltam do trabalho de trem: são os pendolari. Os invernos bolonheses são rigorosos, com precipitações de neve até muito

abundantes para uma região de planície. Para se proteger, basta procurar abrigo embaixo dos pórticos. Já os verões são quentes e abafados, com temperaturas que beiram os 40°C. Para aguentar o calor, o melhor jeito é se refrescar com um bom gelato. Cada vez mais popular em boutiques gourmet e food trucks no Brasil, o sorvete italiano ainda mantém sua originalidade quando consumido no país que o consagrou mundialmente. Além dos clássicos, cada gelateria produz sabores exclusivos para diferenciarse e atrair clientes com ingredientes de qualidade, escolhidos a dedo. Uma boa opção para uma tarde ensolarada é um passeio pelos parques da cidade, que são bem-conservados e oferecem grandes extensões de área verde para o descanso e o lazer. O mais conhecido e frequentado da cidade é o Giardini Margherita, com cerca de 260 mil metros quadrados. Outro bom percurso ao ar livre é o do Santuario di San Luca. Construído no alto de uma colina, o local atrai centenas de fiéis, peregrinos e turistas e proporciona uma bela vista. Portico di San Luca, que liga o santuário à cidade, é o mais longo do mundo, com 3.796 metros. Para os mais animados, é possível percorrer o caminho até San Luca a pé, a partir do Arco del Meloncello, que marca o início da subida. Quem não se arrisca na caminhada pode ir de carro, ônibus ou num colorido trem turístico que também sobe a colina.

LA GRASSA

No período medieval, Bolonha era dominada por ricas famílias senhoriais, em cujas cortes trabalhavam os cozinheiros mais celebrados. Com tempo e ingredientes de sobra, eles elaboravam deliciosos pratos que ganharam fama e se tornaram receitas típicas. A tradição gastronômica também foi enriquecida e diversificada por causa da Universidade, que reúne desde o século 11 um grande número de estudantes e professores de nacionalidades diversas. A cozinha bolonhesa, assim como a romagnola em geral, é conhecida pela variedade e opulência. Não é à toa que a cidade é conhecida como la grassa (a gorda): as massas tradicionais são à base de ovos, e a carne, em particular a de porco, é bastante utilizada, o que torna os pratos riquíssimos em gordura

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Viagem 1-2 FESTAS NA PIAZZA MAGGIORE Bolonha mantém um calendário anual de eventos de cinema, música e teatro ao ar livre 3 PÓRTICOS Caracteriza a arquitetura do centro histórico a presença de corredores cobertos, por onde se anda protegido das altas variações climáticas locais

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e calorias. Quem não abre mão de provar essas delícias centenárias pode encontrá-las em restaurantes e trattorias típicas, administradas muitas vezes por gerações de uma mesma família. As tradições se mantêm e convivem com outras trazidas pelos ventos da globalização: fast foods e restaurantes chineses, árabes, indianos… Em busca de garantir a continuidade e o respeito às tradições gastronômicas bolonhesas, foram depositadas na Câmara de Comércio as receitas oficiais de saborosos pratos como o

tagliatelle, o tortellini, a lasanha verde à bolonhesa, a cotoletta à bolonhesa, o certosino (doce típico com amêndoas, pinhões, chocolate amargo, canela e frutas cristalizadas), a spuma di mortadella (patê feito com a famosa mortadela de Bolonha, ricota e creme de leite) e o tão conhecido ragù, chamado no Brasil de molho à bolonhesa. Para os apreciadores de um buon vino, as opções regionais que se destacam são o Lambrusco e o Sangiovese. Grande parte dos estabelecimentos oferece também o vinho da casa, produzido

artesanalmente e mais barato que o engarrafado. Outra iguaria da região são os queijos grana padano e parmigiano reggiano, ambos conhecidos no Brasil como parmesão. O apelido la grassa, atribuído ainda na Idade Média, também costuma ser associado às noções de riqueza cultural e bem-estar. Transferido para o contexto atual, mantém seu caráter positivo: a cidade continua a ser um lugar aberto ao encontro de culturas diversas, o que se reflete tanto na gastronomia quanto na imensa variedade de manifestações e eventos ligados à música, dança, artes visuais, teatro e cinema.

CIDADE CRIATIVA

Em 2006, Bologna foi eleita pela Unesco como Cidade Criativa da Música. O projeto elege cidades mundialmente criativas nos campos da literatura, cinema, música,

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FEIRA DO LIVRO INFANTIL 3

desenho, arte popular, design, arte digital e gastronomia. A boa infraestrutura da cidade justifica o título, e o grande número de instituições e associações ligadas à música contribui para que o calendário seja preenchido com eventos, festivais e mostras de diferentes gêneros e ótima qualidade. O principal e mais importante palco é o do Teatro Comunale, que já recebeu óperas dos italianos Rossini, Bellini e Verdi, e do consagrado compositor alemão Richard Wagner. As temporadas são realizadas anualmente de outubro a junho, com apresentações de orquestras sinfônicas e óperas italianas e estrangeiras. Outra opção para ouvir boa música é o Salotto Del Jazz, festival a céu aberto promovido entre julho e agosto por bares e restaurantes da via Mascarella, como o Bravo

Caffè, referência de música ao vivo de qualidade o ano todo. Nas noites do evento, a rua é tomada pelas mesas em que o público pode comer, beber e apreciar os shows de jazz de artistas nacionais e internacionais em um ambiente charmoso e aconchegante. A sétima arte também tem espaço garantido. Além de salas do circuito comercial, a cidade conta com espaços alternativos de exibição e uma cinemateca de prestígio internacional. Criada nos anos 1960, a Cineteca di Bolonha se tornou um centro de conservação e restauro reconhecido internacionalmente, com um acervo de mais de 18 mil películas de 35 mm e 16 mm. A cinemateca também organiza diversos festivais que oferecem ao público a oportunidade de rever obras clássicas e conhecer trabalhos inéditos. Grande parte deles ocorre no verão, quando é instalado na Piazza

Durante quatro dias, Bologna se transforma em uma plataforma para todos os tipos de conteúdo para crianças. A Fiera dei Libri per Ragazzi, maior feira de livros infantis do mundo, se apropriou com muito profissionalismo da multiplicidade da era digital. “Hoje, não podemos nos limitar apenas ao livro de papel”, afirma a coordenadora da feira, Elena Pasoli. De licenciamento de produtos a aplicativos e edições interativas para tablets, o evento oferece atrações e oportunidades de negócios para os mais diversos públicos relacionados ao universo infantojuvenil. Mas o tradicional exemplar impresso continua a ter o seu lugar de destaque nas estantes e nos assuntos discutidos durante a feira por autores, ilustradores e tradutores. Em 2015, mais de 57 mil pessoas de 98 países participaram da 52ª edição, que também reuniu mais de 1.200 expositores de 77 países. Um longo tapete temático na entrada já indicava aos visitantes que os 150 anos de Alice do País das Maravilhas seriam ali celebrados. O Brasil marcou presença com 23 editoras, um ano após ter sido o país homenageado da feira. E o convidado de honra desta vez foi a Croácia, com uma exibição, um belo catálogo e toda uma programação especial, tanto na feira quanto na cidade. Uma das principais atrações do evento foi a mostra dos ilustradores. Ao todo, 15 mil obras – cinco obras de cada um dos 3 mil ilustradores inscritos de 60 países – foram avaliadas durante três dias por cinco jurados. O resultado é uma bela e diversificada mostra com cerca de 300 ilustrações. Um dos destaques foi o brasileiro Roger Mello, vencedor do Prêmio Internacional Hans Christian Andersen 2014 e autor do desenho de capa do catálogo da edição 2015 da feira. Atrás dos tapumes brancos onde as obras foram expostas, dezenas de cartazes, desenhos e cartões de visita de ilustradores profissionais e amadores formavam um colorido mosaico. Para 2016, os preparativos já começaram: o convidado de honra será a Alemanha. Conheça mais detalhes da feira no site: www.bolognachildrensbookfair.com.

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Viagem Maggiore um enorme telão para que parte da programação seja exibida à noite, ao ar livre e de graça.

LA DOTTA

O cotidiano da cidade está intrinsecamente ligado à Università di Bologna, uma de suas principais referências. Fundada em 1088, é

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considerada a mais antiga da Europa – alguns arriscam dizer que é a mais antiga do mundo, o que motiva controvérsias. Devido à sua tradição e qualidade, que lhe renderam o apelido de la dotta (a douta, a erudita), a Unibo atrai estudantes italianos de todas as regiões do país e também centenas de estrangeiros. Ao todo, são cerca de 84 mil matriculados. A presença significativa desses jovens, que correspondem a quase 25% do total de habitantes, é uma característica marcante.

A intensa relação da universidade com a cidade se reflete também na ocupação do centro histórico, onde os palácios conservados pelos trabalhos de restauro são hoje utilizados para sediar bibliotecas, museus, departamentos, faculdades e seções administrativas. Centenas de apartamentos também são alugados aos estudantes por famílias que preferem se mudar para bairros mais afastados da agitação universitária e turística. O apelido la dotta pode ser associado também à grande

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Rimini

TERRA NATAL DE FELLINI

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4 SAN PETRONIO A Basílica encontra-se no coração da cidade 5 TRATTORIA Massas e vinhos regionais são tradicionais aqui 6 SALA BORSA Uma das várias bibliotecas bolonhenses 7 VISITAÇÃO O fluxo de pessoas pode chegar, diariamente, a 1 milhão em Bolonha

quantidade e diversidade de bibliotecas: são mais de 120, em uma cidade de aproximadamente 386 mil habitantes. Dentre aquelas acessíveis aos turistas, a Sala Borsa merece uma visita. Localizada no conjunto da Piazza Maggiore, em frente à estátua do Netuno, se tornou ponto de encontro principalmente para jovens, que utilizam sua escadaria para descansar, bater papo e contemplar a beleza do entorno. Apesar de ter entrada própria, a biblioteca faz parte do

Palazzo Comunale, sede do Comune (Prefeitura). A última restauração do edifício respeitou a estrutura arquitetônica formada em sete séculos de história, e ao mesmo tempo criou um ambiente moderno, com visitação a antigas escavações no subsolo, espaços com iluminação natural, hemeroteca e ainda um acervo para crianças e jovens. Com tantas atrações para todas as idades ao longo do ano, Bolonha também dedica uma extensa programação paralela à Feira do Livro Infantil que promove anualmente. Mostras de filmes de animação, exposições, teatro e atividades em bibliotecas contribuem para enriquecer a já repleta e movimentada feira. Não é à toa que a capital mundial do livro infantil deve permanecer com o título por anos e anos, aliando tradição e modernidade.

Distante a 1h30 de carro de Bolonha, Rimini tem como principal atração turística o fato de ser o lugar onde nasceu seu filho mais ilustre, Federico Fellini. Na cidade, onde foi rodado Amacord (1973), sobre a infância do diretor, o maior ponto de visitação é na Piazza Cavour, na qual Titta, Ciccio e seus amigos fizeram a luta de bola de neve do filme. Em Rimini, há diversos murais que homenageiam os longas do cineasta, como também bares, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais que levam seu nome e de suas obras. Para o turista, a dica é a hospedagem no Grand Hotel, onde o diretor e sua esposa, a atriz Giulietta Masina, costumavam ficar alojados quando ele visitava a terra natal.

Turim

MUSEU NACIONAL DO CINEMA Quarta maior cidade italiana depois de Roma, Milão e Nápoles, Turim tem muitos atrativos. Dentre eles, o Museu Nacional do Cinema. Situado no interior da Mole Antonelliana, monumento símbolo da cidade, o espaço leva o visitante a fazer uma viagem cronológica pela história dessa arte, conhecendo o avanço da tecnologia cinematográfica ao longo de seus mais de 100 anos. O ambiente de muitos estímulos visuais ainda inclui exposição com diversos objetos, bilhetes e cartazes. Dentre eles, há, inclusive, o pôster de um dos filmes clássicos de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol. No último piso, é possível apreciar toda a vista dessa comuna italiana.

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Conexão 1

INVENÇÕES De volta para o futuro que criamos

Como a arte vem, através da ficção científica, ao longo dos anos, contribuindo para modificar ou prever notavelmente o que está por vir TEXTO Yellow

Agora: 21 de outubro de 2015. Após negociar sua descida em meio a um engarrafamento de carros voadores, Marty McFly desembarca de sua máquina do tempo na praça central de Hill Valley, onde se depara com skates flutuantes, tênis com cadarços automáticos, postos de gasolina comandados por robôs e o ataque de um gigante tubarão voador azul, que na verdade era um trailer de cinema em realidade aumentada. Quando foi lançado, em 1989, o filme De volta para o futuro II, do diretor Robert Zemeckis,

divertiu pessoas de todo o mundo, e gravou em seus inconscientes promessas de um futuro próximo. Algumas das previsões feitas durante a cena, mais discretas, acertaram em cheio. Os automóveis, por exemplo, apresentam traços muito parecidos com os que vemos hoje – formas exageradamente aerodinâmicas e curvas. Os sistemas comandados por voz são um recurso de vários aparelhos e se tornam cada vez mais comuns. Algumas pessoas andam nas ruas com roupas constrangedoramente coladas

e coloridas, o que também confere com o que acontece hoje. Outro acerto foi a nostalgia pela década de 1980, mostrada quando McFly entra em um bar ao som de Beat it, de Michael Jackson, música que tinha sido lançada há apenas cinco anos, mas tem presença ubíqua nas ondas do rádio e nos mashups do YouTube até hoje. No entanto, nem esse filme nem outra forma de ficção, seja ela o cinema, a música ou a literatura, conseguiu prever coisas como a internet, que mudou drasticamente a maneira como nos comunicamos, trabalhamos, criamos e pensamos. “Porque escritores são visionários, e não videntes”, opina Diego Carreiro, doutor em Teoria da Literatura. “Por mais cientificamente ficcional que seja uma obra, a preocupação central continua a ser uma só: o homem. A ficção não tem obrigação com a realidade. Se a vida imita a arte, esse é um problema que a vida tem de resolver, não o inverso.” Carreiro entende que nosso fascínio com o futuro mascara outra preocupação: “Há em nós um desejo inconsciente, incontrolável, de ‘dominar’ o futuro, e com ele, a morte. O homem nunca aceitou a morte. No universo ficcional

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MARTY MCFLY Personagem interpretado por Michael J. Fox descobre que viajou no tempo em De volta para o futuro

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EU, ROBÔ Filme é baseado em romance de Asimov, que supôs desfecho inesperado para o uso da inteligência artificial

posso criar um clone de mim mesmo, não posso? Se eu posso, então serei, de alguma forma, imortal. Se eu cheguei à imortalidade, dominei aquilo que não posso dominar e que não aceito: a morte e o desconhecido”. A ficção científica não apenas entretém ou tenta fazer profecias. O gênero inspira muitas pessoas a dedicar suas vidas e carreiras à realização das astúcias descritas pelos autores. O inventor americano Simon Lake ficou fascinado pela leitura de 20.000 léguas submarinas, de Júlio Verne, e criou, assim, o primeiro submarino a enfrentar águas oceânicas, em 1898. E o foguete, projetado por Robert H. Goddard e lançado pela primeira vez em 16 de março de 1926, foi inspirado pela leitura de Guerra dos mundos, de H. G. Wells.

VIAGEM À LUA

A viagem do homem à Lua é uma das mais notáveis previsões ou inspirações que a ficção científica já foi capaz de perpetrar à humanidade. O livro de Júlio Verne, Da Terra à Lua, de 1865, era amparado no estado da ciência da época. Acreditava-se, por exemplo, que a gravidade da Terra exerceria força até certo ponto, a partir do qual a força gravitacional da Lua seria mais forte, e os passageiros do projétil disparado na direção do corpo celeste seriam jogados para o teto do habitáculo. Quando questionado sobre a possibilidade de respirar na superfície da Lua, o capitão da expedição diz: “Certamente deve haver ar suficiente para nós”. Verne erra em vários fatos científicos, mas inspirou não apenas a criação de outras obras de arte, como o livro Os primeiros homens na Lua (1901), de H. G. Wells, e o filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès, como também um século inteiro de inovações científicas, possibilitando a verdadeira visita de astronautas à Lua, em 1969. “Um fã de Isaac Asimov acabar como coordenador de uma equipe de competição robótica não deve ser coincidência”, diz João Paulo Cerquinho Cajueiro, professor de Mecatrônica da UFPE e coordenador

A viagem do homem à Lua é uma das mais notáveis previsões que a ficção científica já foi capaz de perpetrar da equipe Maracatronics de robôs de competição. Ele salienta a importância do exercício da imaginação pela ficção para a inovação: “Acho que ajuda no chamado ‘pensar fora da caixa’. No caso da chamada ficção científica dura (hard sci-fi, que segue as leis da física, em contraste com a soft sci-fi, que cria leis diferentes), as análises técnicas feitas dentro da própria ficção já são interessantes para definir o que pode ou não ser feito”. O exercício da ficção científica força a imaginação do autor a vislumbrar as consequências de mudanças na nossa realidade. Uma prática comum aos autores é mudar apenas um detalhe da realidade, e deixar desenrolarem os acontecimentos em torno dessa mudança. Foi puxando o fio da meada que, por exemplo, Isaac Asimov previu que o nascimento da inteligência artificial ditada por suas leis da robótica eventualmente levará a humanidade a retornar a sociedades rurais e agrárias, ao final de Eu, Robô. A invenção de uma sociedade baseada na revolução industrial levou

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Aldous Huxley, no livro Admirável mundo novo, de 1932, a concluir que as pessoas do futuro controlariam seus humores quimicamente, através de uma droga chamada Soma. Dados de 2013 mostram que antidepressivos são a classe de medicamentos mais prescritos a pacientes dos Estados Unidos, fazendo parte do cotidiano de 16 milhões de pessoas apenas neste país. Muitos autores acabam tornandose porta-vozes das inovações sobre as quais escreveram. Isaac Asimov respondeu, até o fim de sua vida, em 1992, a questões éticas sobre o relacionamento entre homens e robôs, devido às maquinações que matutou em Eu, Robô. Arthur C. Clarke deu pitaco, até seu último suspiro na brisa da Sri Lanka, sobre viagens interplanetárias, graças a 2001, uma odisseia no espaço e à série Rama. Autores contemporâneos também tornam-se referências para a discussão de novos temas. Neal Stephenson escreveu, em 1992, Snow crash, um romance que descreve as consequências de bugs em um mundo de realidade virtual, e seu nome ganhou evidência em 2003, quando do lançamento de Second life, um mundo virtual em 3D, similar ao que ele havia idealizado. Daniel Suarez, autor Daemon (2006), Freedom (2010) e Kill decision (2012), pode ser encontrado em dezenas de episódios de podcast e vídeos de palestras, enumerando os perigos da inteligência artificial e os problemas éticos com os quais a humanidade precisará lidar em um futuro próximo.

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Conexão 3

Alguns autores fazem sugestões tênues, amparadas mais na fantasia que na ciência, enquanto outros oferecem declarações corajosas e fundamentadas. Os robôs, imaginados pelo tcheco Karel Capek em 1921, para a peça Robôs universais de Rossum, não passavam de um conceito: máquinas construídas para realizar trabalhos pesados, inspirados na lenda do Golem. William Gibson cunhou o termo ciberespaço em seu romance Neuromancer, de 1984, e é procurado muitas vezes para opinar sobre a internet, uma rede de informação bem diferente da que criou. A rede de Gibson lembra mais o mundo do filme Matrix, no qual as pessoas se conectam fisicamente à rede de computadores, numa imersão completa, e ser pego hackeando bancos de dados do governo e de empresas pode resultar em dor ou mesmo morte. Certamente, esse não era o objetivo do consórcio da W3C (World Wide Web) liderado por Sir Tim-Berners Lee, que lançou o protocolo HTML em 1991, com o propósito de servir ao acesso de trabalhos acadêmicos. Neste caso, podemos dizer que aos pais da tecnologia também faltou imaginação para prever o alcance de sua criação. Dedicados autores de ficção, porém, foram capazes de contribuições verdadeiras à ciência. Em um artigo publicado na revista Wireless World, em outubro de 1945, Arthur C. Clarke descreveu a possibilidade de usar satélites em órbitas geoestacionárias (quando o objeto em órbita parece

A hard sci-fi segue as leis da física, em contraste com a soft sci-fi, que cria leis diferentes, mais baseadas na fantasia parado em relação à rotação do planeta) para enviar sinais de rádio, telefone ou televisão de qualquer lugar do mundo para outro. Hoje, mais de 300 satélites de comunicação usam a órbita geoestacionária, que é também conhecida como Órbita Clarke. Em 1895, dois anos após a descoberta do elétron, o autor irlandês Robert Cromie imaginou, no livro The crack of doom, uma bomba capaz de libertar a energia que mantém unidos os átomos de uma molécula e que “levantaria 100 mil toneladas a quase duas milhas de altura”. A ideia de uma arma superpotente não é nada original, mas o método descrito por Cromie era curiosamente parecido com as bombas que seriam criadas 50 anos depois pelos cientistas do Projeto Manhattan, em Los Alamos. Em 2005, em seu livro Shaping things, outro autor de ficção científica, Bruce Sterling, cunhou o termo design fiction, lembra H.D. Mabuse, consultor de design do Cesar e responsável pela criação e fomento de várias iniciativas de inovação dentro da instituição pernambucana, localizada no Porto Digital.

NEAL STEPHENSON Escritor idealizou mundo virtual em 3D, no livro Snow crash, de 1992

“Design fiction é uma atividade que não é exatamente ficção nem design, mas, sim, o uso de elementos narrativos para imaginar futuros possíveis úteis para criação de inovação disruptiva.” Essa forma de imaginar a ficção como maneira de explorar realidades possíveis e iluminar possibilidades de futuro está longe de ser uma abordagem recente. O próprio Mabuse traz à tona uma citação de William Gibson: “Qualquer um que pensar que a ficção científica fala sobre o futuro está sendo ingênuo. A ficção científica não prediz o futuro. Ela o determina. Coloniza-o. Pré-programa a partir da imagem do presente”. A humanidade ainda anseia pelo divertido, colorido, amigável futuro mostrado em Os Jetsons. A série de animação da “família do futuro”, criada pela Hanna-Barbera, que foi ao ar no início da década de 1960 em contraponto a Os Flintstones, povoou a imaginação de gerações de crianças, com seus edifícios suspensos e máquinas que serviam refeições ao toque de um botão. Seria coincidência termos trabalhado tanto nas últimas décadas para desenvolver TVs de tela plana, ligações telefônicas com vídeo, bronzeamento artificial, robôs que varrem a casa e esteiras ergométricas para cachorros, todos esses produtos mostrados no desenho animado? Prova de que a ficção alimenta a realidade é que hoje existem esforços verdadeiros para o desenvolvimento de algumas das invenções propostas em De volta para o futuro II. Empresas e centros de pesquisa já tentaram reproduzir os skates flutuantes, aparentemente sem nenhuma consideração à óbvia periculosidade do objeto. A proposta mais promissora veio da Universidade Paris Diderot, o MagBoard, que usa supercondutores, mas mostrou-se inconveniente, pela necessidade de controle da temperatura baixíssima da placa supercondutora. Outra demanda do público são os tênis com cadarços automáticos da Nike, que foram prometidos por Tinker Hatfield, designer da empresa, para este ano. Pelo visto, já perderam o prazo estabelecido pelo filme.

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ANDANÇAS VIRTUAIS

CINEMA DE GÊNERO Site reúne informações relacionadas à participação de mulheres na área cinematográfica, em várias frentes profissionais, como direção e atuação mulhernocinema.com

“Um site para celebrar o trabalho das mulheres nas telas.” Essa é a descrição do Mulher no Cinema, criado e escrito pela jornalista Luísa Pécora.

Num mercado de trabalho em que, infelizmente, a desigualdade de gênero ainda existe, a página chega para dar voz às mulheres que atuam

na área cinematográfica, tanto à frente quanto atrás das câmeras. No site, encontram-se notícias, opinião, entrevistas, informações sobre filmes em cartaz e estatísticas relacionadas às mulheres e o cinema, além de listas como “100 filmes dirigidos por mulheres para todo mundo ver”, entre outras categorias. Uma seção bastante interessante do portal é intitulada Apoie, na qual são divulgadas, toda semana, iniciativas de crowdfunding relacionadas ao trabalho de cineastas, para quem quiser colaborar. Ao acessar o site, é possível encontrar nos arquivos conteúdos produzidos desde junho de 2015. No entanto, o interesse de Luísa pelo tema existe há anos. Em 2013, a jornalista escreveu uma série de reportagens sobre o binômio proposto pelo site para o portal iG, que a fez perceber que muitos leitores tinham interesse pelo assunto e que o debate sobre o tema era, e ainda é, algo recente no Brasil. MARIA EDUARDA BARBOSA

COLABORATIVO

SERIADOS

NEGRAS

MERCADO

Página agrega colaboradores que escrevem sobre cultura e comportamento

Site oferece notícias, resenhas, podcast e entrevistas sobre séries

Portal traz ações e reflexões sobre mulheres promovidas pelo Instituto Geledés

Informações e análises sobre o setor cultural brasileiro estão reunidas neste site

obviousmag.org

www.ligadoemserie.com.br

www.geledes.org.br

www.culturaemercado.com.br

No Facebook, é comum encontrar alguém compartilhando textos da página Obvious com alguma reflexão envolvendo cultura e comportamento. O site reúne centenas de colaboradores que compartilham seus textos. O projeto abrange matérias e artigos, muitos com análises psicológicas e sociológicas interessantes, em diversas áreas como fotografia, design, cinema e música. Além disso, a página oferece um espaço para quem deseja se tornar colaborador, voluntariamente, e tem como língua escrita o português, seja do Brasil, de Angola, Moçambique, TimorLeste, Cabo Verde ou Portugal.

O segundo semestre do ano é sempre marcado pelo retorno e novas estreias de séries televisivas norte-americanas, a famosa fall season, que começa em meados de setembro. Para acompanhar as novidades e conferir análises de episódios, uma boa alternativa é acessar o Ligado em Série, site que traz conteúdos aprofundados e originais. Nele, há resenhas, notícias, além de entrevistas exclusivas, em vídeo, com atores dos títulos originais da Netflix, como Wagner Moura, protagonista de Narcos. Além disso, oferece ao leitor podcasts com debates e comentários sobre esses e outros fenômenos da TV.

Criado em 30 de abril de 1988, o Geledés – Instituto da Mulher Negra tem por missão lutar contra o racismo e o sexismo, valorizando as mulheres negras. Organizado por elas, o instituto também se encontra no meio digital, através do portal Geledés, no qual a organização divulga suas ações. No site, conferem-se as áreas de atuação do instituto, como educação, comunicação e saúde, além de se conhecer as diversas seções criadas no portal, como Atlântico Negro e Racismo e Preconceitos. Dentre os prêmios conquistados, encontra-se o Desafio de Impacto Social Google Brasil – 2014.

Análises, informações e ideias sobre o cenário cultural brasileiro podem ser encontradas no Cultura e Mercado. Criada em 1998 por Leonardo Brant, a plataforma inclui site, vídeos e redes sociais, reunindo discussões envolvendo quem trabalha, pesquisa, divulga, financia, enfim, vive de cultura. Com uma identidade visual clean – fundo branco e textos nas cores laranja e preta –, o site é editado por Mônica Herculano e traz, dentre as suas seções, informações sobre editais, políticas e mercado. A plataforma também possui uma área voltada à realização de cursos para profissionais do setor cultural.

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Cardรกpio

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ASIÁTICA A cosmopolita comida tailandesa

1 TRADIÇÃO Espetinho de lula pode ser encontrado em várias barracas pelas ruas

Aromática, substanciosa e tropical, a thai food cai no gosto das metrópoles que ditam tendências gastronômicas, mas (ainda) não tem espaço no Recife TEXTO E FOTOS Eduardo Sena

No vocabulário gastronômico pernambucano, termos asiáticos como sushi, sashimi, wassabi e yakissoba, bem como o já traduzido rolinho primavera, fazem-se presentes de forma tão natural e cotidiana, que podem chegar a superar os tradicionalíssimos sarapatel e chambaril. Isso, falando apenas de pratos e ingredientes notórios da Ásia. Se formos abrir o leque para comidas de outros países, pode-se jurar que há recifense que nasceu comendo steak tartare. Os cenários sublinham duas realidades. A primeira é a nossa admirável habilidade histórica em adotar e conciliar hábitos culinários estrangeiros (os consagradamente famosos, pelo menos) como se fossem nossos, naturalizá-los. E o segundo é uma interrogação: por que assimilamos tão bem a culinária japonesa, por exemplo, enquanto receitas tailandesas, mais próximas em alguns momentos dos nossos preparos, não fazem parte desse repertório? Uma busca no celebrado guia de restaurantes da Time Out traz 165 tailandeses em Londres. A situação é parecida em Nova York: são 161

O guia da Time Out traz 165 tailandeses em Londres, 161 em NY. Na versão paulistana, a categoria inexiste (estamos falando de duas cidades que “dão as cartas” nesse jogo de tendências que é a gastronomia). Já na versão paulistana do guia, a categoria sequer existe. “Há, sim, muitos endereços asiáticos em que constam dois ou três pratos tailandeses no menu. Mas nunca abri a boca para convidar um amigo com um ‘vamos num tailandês?’”, anota Roberta Malta, jornalista especializada em gastronomia, que atua há mais de 10 anos na capital paulista. Para o chef Hugo Delgado, do Restaurante Obá, que traz um pouco de oxigênio thai, o paulistano não tem paladar tão cosmopolita como pensa. “Ele aceita bem as cozinhas italiana, japonesa e sírio-libanesa, mas resiste a outras, como a thai e a indiana.”

Se na metrópole São Paulo a realidade é essa, no Recife, não é muito diferente. “É curioso, porque a cozinha tailandesa tem muitos pontos de conexões com a culinária tropical pernambucana, com ensopados em leite de coco, muito coentro, e onipresença do arroz como acompanhamento”, pontua o escritor, pesquisador e antropólogo da alimentação Raul Lody. Por falar na formação da mesa brasileira numa perspectiva histórica, no livro História da alimentação no Brasil, o folclorista Luis da Câmara Cascudo aponta, entre outras coisas, a grande participação do coco (o indiano Cocos nucifera L.), sobretudo o seu leite, na estética basilar da identidade alimentar nordestina. “Especializa determinadas iguarias, como peixe de escabeche, moqueca, peixe de coco, arroz de coco, com ampla utilização na cozinha ‘afro-baiana’ e no passadio normal noutras paragens brasileiras, molhando o cuscuz, munguzá, vinte outras excelências, ostras camarões, lagostas, na classe dos ‘ensopados’”, detalha o pesquisador na obra.

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Cardápio

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Nas ruas de Bangcoc e nas estradas que levam às suas cidades vizinhas, ele, o coco, é presença dominante nas barraquinhas que compõem o visual da estrada. Algo parecido com o abacaxi que se encontra na subida e na descida da Serra das Russas, em Pernambuco. Mas, na Tailândia, o fruto indiano tem um terroir diferente. A água é (muito) mais doce, e a carne interna que conhecemos por “laminha” tem uma espessura de um centímetro, como se fosse polpa. Com essa fartura, é comum o suco de coco – a água batida com a parte sólida comestível do fruto. Com ele mais seco, dessa polpa é extraído o leite que dá base a grande parte dos pratos nacionais. Como o aromático e apimentado Tum Yum,

ensopado caudaloso, temperado com especiarias como gengibre, pimenta, capim-limão, limão khafir e curry – este que pode ser do tipo amarelo, vermelho ou verde (do menos ao mais apimentado, respectivamente). A esse caldo temperado é acrescentada uma proteína, normalmente camarão, porco, frango ou carne (que é sempre a opção mais cara nos restaurantes, o crustáceo é a mais em conta). “É como uma moqueca tailandesa”, compara um amigo. “Perceba que é um prato nacional, mas é incomum ver essa cozinha tailandesa de raiz no Brasil. Comestivelmente falando, as pessoas têm afeto a algo que pensam o que é. O problema não é a cozinha da Tailândia, é a relação do público com

as cozinhas exóticas. Ele acha, e quer encontrar nela essas referências do que ele entende por exotismo, ou como ele configura essa nova realidade. Em geral, não estamos abertos ao novo, mas a ideia que temos do novo”, explica Lody. O antropólogo lembra que foi do Oriente que vieram muitas das especiarias que se utilizam na cozinha doméstica até hoje. Portugal fez o nosso próprio processo de colonização ser um pouco oriental. “Cominho, cravo, canela, cana-de-açúcar, arroz, coentro, pimenta-do-reino, a mistura do açúcar com a canela, noz-moscada… Tudo isso é bastante oriental e está nos nossos armários, mas se naturalizou de tal forma, que achamos que isso faz parte do que temos de particular”, observa. “Nossa raiz está no outro”. É o que lembra, sempre quando pode, o sociólogo da alimentação italiano Massimo Montanari – autor de, entre outras obras, o clássico Comida como cultura. Chef recifense inspirado pela cozinha asiática (essa que é compreendida como exótica), Thiago Freitas, à frente do Restaurante Budhakan, no Pina, acredita que o gargalo entre o pernambucano e a comida tailandesa é a pimenta. “Nós comemos pimenta, gostamos, mas dosamos. Colocamos o quão suportamos, o quão fica bom para nós naquele momento. A pimenta faz parte do rito de personalizar o seu prato, de torná-lo singular. Na comida tailandesa, não é uma escolha, uma dosagem, é uma obrigação. A pimenta é tão importante para a thai food quanto, sei lá, o molho de tomate para uma pizza”, teoriza Thiago. “Mas aí vale lembrar como a comida e a saúde são unidas. Os asiáticos usam as pimentas em seus pratos como um valor de saudabilidade, não só de gosto. Entre vários benefícios, as pimentas ajudam a proteger as vísceras. É importante pensar que a comida não é apimentada, é dentro dos princípios culturais dos orientais”, defende Lody. Do seu lado, Thiago ressalta que o cliente é parcimonioso quando recebe o indicativo de que o prato tem elementos tailandeses. “Para eles, há a ideia de que é uma comida muito exótica, forte, bastante frutada, floral. Intensa. Daí, faço praticamente um ‘thai de bolso’, sem colocar muito curry, pimenta e

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2 SOBREMESA O sorvete de coco é de consumo disseminado 3 COSTUME No país, há uma combinação recorrente entre frutas e arroz

coentro, para não assustar. Tenho um compromisso comercial. E, apesar da comida thai ser tendência no mundo, nosso público é conservador. Quando sou mais roots, tem gente que tenta, mas devolve o prato”, justifica. Mas, na cozinha tailandesa, nem tudo é dentro dessa gaveta do que se entende por exótico ou excessivamente aromático. “As pessoas precisam experimentar primeiro. Acredito que os propagadores da thai food precisam chegar mais forte, ressignificar esse estigma do exótico e naturalizar a comida. Temos ingredientes e modos de fazer comuns. Comida é um texto simbólico, de texturas, sentidos, tem que ler e conhecer. Falta oportunidade”, acredita Lody.

COMIDA NA RUA

Na Tailândia, a grande representatividade da comida como característica singular são menos o ingrediente e receitas e mais o hábito. O que a torna especial é ela fazer parte do cotidiano das pessoas nas ruas, mais do que o gosto em si. Não é uma culinária de celebração,

A Tailândia não cultiva o hábito de uma culinária de celebração, há uma visão prática do ato de alimentar-se de se dedicar produzindo-a, compartilhar com alguém. Em Bangcoc, comida típica não pede mesa posta, tampouco companhia. Como em poucas nações, a comida faz parte do cotidiano das cidades daquele país asiático. O alimento é comprado na rua, o ritual de comer também feito lá – e de qualquer maneira. As vias do centro da capital tailandesa são um mercado gastronômico que funciona por cerca de 20h por dia. Das 6h às 2h da madrugada, há barraquinhas com o que há de típico. Para facilitar a venda, os alimentos são embalados em saquinhos plásticos transparentes e postos num tapete no chão. De um lado sempre o aromático arroz

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tailandês (também chamado de arroz jasmine), do outro, algum ensopado. Se formos pensar nas comidas do mundo como binômios (arroz e feijão, massa e molho, peixe e molho, carne com batatas…), a tailandesa também segue essa vertente. A exceção que confirma a regra é o pad thai, cujo valor simbólico e afetivo que representa para a cidade é algo como o acarajé para o soteropolitano, ou o bolo de rolo para o recifense. Trata-se de um macarrão de arroz, disponível em três formatos, noodles (tipo miojo), talharim e espaguete que, num tacho fumegante e besuntado de óleo de palma e gergelim, é refogado com vegetais como cebolinho, raiz de coentro, broto de feijão, camarão ou frango, ovos, tofu, e um condimento escuro (como um shoyu); tudo isso envolto na massa. É o grande fast food de rua de Bangcoc, impossível não encontrar uma barraquinha dele em qualquer lugar da cidade. Nos restaurantes, inclusive, há várias placas do tipo “temos o melhor pad thai”. Questiono a gerente do restaurante Green House, Sui

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Cardápio Kwaintg, o que a faz ter o melhor pad thai. “Leva suco de tamarindo, açúcar de palmeira, nabo fermentado, tofu seco, brotos de feijão, nirá e amendoim”, sentenciou.“Por favor, não escreva que é o yakissoba tailandês”, advertiu. Ainda nas ruas, o brasileiro encontra outro ponto de familiaridade gastronômica. São muitas as barraquinhas que vendem espetinhos. Aqui, tratados como nacos de alguma proteína espetada num palito grosso de madeira e levados à brasa. Os com fruto do mar são os mais comuns. Mas tudo pode ir para o palito, inclusive frituras, outra obsessão asiática. Os que levam insetos, e estão dentro daquela gaveta que entendemos por exótico, são mais itens para turista ver do que repertório do cotidiano. Tanto que se paga para fazer uma foto de uma bandeja de espetinhos de escorpiões e outros insetos locais. Cortes de frango empanados e fritos, sim, são vistos o tempo todo, a capital da Tailândia é quase um KFC (rede americana de frango frito) a céu aberto.

FRUTAS E ARROZ

Partindo da premissa de que a melhor comida de um lugar é a sua paisagem em versão comestível, não há como sublinhar as vocações gastronômicas da Tailândia sem falar no arroz e nas frutas. Assim como no Brasil, e também numa solução de saúde (lembre-se que lá faz muito calor e é preciso repor além de líquido, sais minerais), recorrese muito às frutas típicas nas ruas. Além do coco,

manga, banana, mangostina, fruta do dragão (pitaia), durian (muito semelhante à jaca) e abacaxi. Para um brasileiro médio, não há tanta provocação de experiência gastronômica nesse sentido pela fruta em si, mas pela forma de consumo. E aqui vale uma explanação. A Tailândia é um dos primeiros produtores e o primeiro exportador mundial de arrozes, embora o rendimento por hectare seja fraco. Em 2013, a produção anual dos grãos de arroz rendeu 35,3 milhões de toneladas. Dentro da lógica agrária econômica, o ingrediente mais barato vai fazer mais parte do cardápio. E isso se aplica também às frutas. Lanche rápido de rua em Bangoc é manga em cubos com arroz. E como esse grão local é bastante perfumado, como se houvesse sido cozido com outros ingredientes, torna-se uma combinação muito especial e referência de primeira ordem para os veganos e vegetarianos do país. Ah, pode-se acrescentar leite de coco ao (mais um) binômio alimentar. O que não se consegue produzir com essa equação arroz e frutas é sobremesa. Não há uma sobremesa típica na Tailândia (alguns cardápios oferecem a própria fruta cortada). Por se tratar de uma cidade cosmopolita que dialoga muito bem com o que é global, é comum ver petit gateau, sorvete (muitos de coco) e tortas que podem ser encontradas em qualquer lugar do mundo. Bangoc nem sempre é totalmente ela. Como as outras cidades, também abre mão. O que não quer dizer que sempre será aceita.

O Libanês

COZINHA ÁRABE Há pouco mais de três meses em funcionamento, restaurante é o novo ponto de referência da cozinha árabe no Recife. Instalado na movimentada Av. Conselheiro Aguiar, em Boa Viagem, a casa é comandada pela família imigrante libanesa de seu Sari. Homus, tabule, babaganoush, charutos de cordeiro, coalhada seca, quibe cru, falafel, esfirras (assadas na hora), tudo com sotaque libanês, chamam a atenção. Todas as especiarias usadas como tempero são importadas do país que dá nome ao gentílico. Informações: 3034-7694.

Vesúvio

DE NÁPOLES Simpática e longe dos holofotes, uma pizzaria em Setúbal, zona sul do Recife, vem chamando a atenção dos foodies da cidade. Trata-se da Vesúvio. Aberta há pouco mais de um ano pelos italianos Mario e Massimiliano Serino, que trabalhavam com pizzaria e panificação em Nápoles, os irmãos vieram para o Recife de férias, gostaram, e acabaram ficando. Mario credita os elogios à pizza ao uso de todos os ingredientes italianos e à fermentação longa da massa, de um dia para o outro, que a deixa leve e o organismo digere rapidamente. Vale pedir o sabor carbonara. Informações: 3097-6060.

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A C c r i p o


Aqui, quem está na regência é a qualidade.

OUTUBRO 04 – PROJETO MÚSICA NO PALÁCIO Coro Infantil do CPM Regente: profª Célia Oliveira Local: salão de entrada – Palácio do Campo das Princesas Horário: 10h 07 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS TRIO MOSAICO O grupo formado por Levi Guedes (piano), Frederica Bourgeois (flauta) e Wilson Pimentel (trompete) apresentará um recital com as obras de Haendel, Neruda, Villani-Côrtes entre outros. Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30 14 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS Dilvan Ferreira (tenor) e Jetro Rodrigues (piano) Árias de oratórios e óperas Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30

16 – PROJETO CESTA DE MÚSICA Gonzaga Leal – show “Pérolas aos Poucos” Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30 19 – CIRCULAÇÃO DE MÚSICA DE CÂMARA Orquestra Vicente Fittipaldi Local: EREM Sizenando Silveira Horário: 15h 19 - CONCERTO COMEMORATIVO AOS 45 ANOS DO MOVIMENTO ARMORIAL Orquestra de Câmara de Pernambuco Coro de Câmara do Conservatório Pernambucano de Música Coro Contracantos Regente: José Renato Accioly Lançamento do livro Clóvis Pereira – No Reino da Pedra Verde, de Carlos Eduardo Amaral. Local: Igreja da Madre de Deus Horário: 19h

A programação dos 85 anos do Conservatório Pernambucano de Música continua trazendo grandes atrações para o público recifense. Não poderia ser diferente para uma instituição que, durante décadas, é referência de qualidade para a música e a formação musical. Conheça as atrações de outubro e participe. Até dezembro, o CPM dá o tom.

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22 - PROJETO PALCO PARA TODOS Catarina Rosa – show “Seeing Again” Local: Palco para Todos – CPM Horário: 18h 29 - CIRCULAÇÃO DE MÚSICA DE CÂMARA Orquestra de Câmara Vicente Fittipaldi Local: Escola Estadual João Matos Guimarães – Olinda Horário: 10h 29 - PROJETO CESTA DE MÚSICA Dilvan Ferreira (tenor), Maurício Cézar (piano) e Mozart Ramos (flauta) Canções francesas Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30 Todos os eventos têm entrada gratuita.

CONSERVATÓRIO PERNAMBUCANO DE MÚSICA Av. João de Barros, 594 – Santo Amaro – Recife – PE Facebook: Conservatório Pernambucano de Música Site: www.conservatorio.pe.gov.br Fone: 3183-3400

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ROBERTA GUIMARÃES

Palco 1

ESPAÇO Uma casa para o Vivencial Diversiones

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HENRIQUE CELIBI

Ator e diretor do Vivencial ocupou, junto com elenco inicial, prédio no Bairro do Recife

Grupo surgido nos anos 1970, em Olinda, volta à cena cultural, montando sede no Recife e estreando espetáculo em comemoração aos seus 40 anos TEXTO Mateus Araújo

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O grupo – surgido em 1974, em Olinda, como braço artístico da pastoral da juventude da Arquidiocese de Olinda e Recife – foi expulso pelos beneditinos logo depois da estreia por encenar esquetes ligadas à homossexualidade, violência, massificação e drogas. Abrigados por cinco anos no Teatro Guadalupe, também na cidade histórica, os atores juntaram dinheiro e conseguiram criar sua própria sede no Complexo de Salgadinho, o Vivencial Diversiones, espaço de peças, apresentações músicas e shows de travestis que funcionou até 1983. O desejo de reabrir o Vivencial 40 anos depois surgiu de Henrique Celibi. Cria da verve transgressora do grupo olindense, o ator descobriu sua potência artística mirando-se no espelho das travestis e transformistas que habitavam aquele ambiente vertiginoso da república irreverente. Aos 14 anos, em 1979, ele fez sua estreia no cabaré teatral e entrou para o elenco sem papas nas línguas e vergonha no corpo. “Eu morava na Ilha do Maruim (periferia de

O desejo de remontar o grupo partiu de Celibi, que tem trabalhado como diretor e figurinista de várias companhias Entre as vigas largas interligadas por tapumes de madeira transformados em um provisório chão, o ator e diretor Henrique Celibi se equilibra para apresentar os dois andares da nova república do Vivencial Diversiones. Num casarão abandonado, no Bairro do Recife, o símbolo da transgressão teatral dos anos 1970 em Pernambuco vai ressurgindo, quatro décadas depois de extinto. O prédio – que um dia foi boate underground e há 12 anos deixado de lado por seus donos, servindo de depósito de metralhas e abrigo para moradores de rua – hoje faz parte de um sonho ousado do coletivo anárquico e de afiada crítica ao moralismo social.

Olinda) e na escola era chamado de ‘bichinha’. Nunca quis jogar bola; queria ser artista. Quando minha mãe morreu, fiquei sem ninguém, e o Vivencial me acolheu”, lembra, sem medo aparente de andar nas madeiras frágeis que substituem o chão inexistente do prédio. Com o fim do grupo, Celibi passou a integrar equipes de outras companhias pernambucanas, seja como diretor ou figurinista, e criando personagens memoráveis do humorístico local, como Cinderela, vivido pelo ator Jeison Wallace, e sucesso de público no estado na década de 1990. Há 15 anos fazendo figurinos e adereços para o Grupo Experimental de Dança, que funciona num prédio

maltratado no histórico Bairro do Recife, Henrique Celibi observava o casarão vizinho abandonado e vislumbrava fazer dele um espaço de arte. Entre as tantas puladas de muro para usar aqueles escombros como oficina de criação, o diretor pensava em reavivar o Vivencial ali, numa simbólica metáfora de reconstrução.

OCUPAÇÃO

O número 139 da Rua Vigário Tenório foi invadido há dois anos por Celibi e Guilherme Coelho, um dos fundadores do grupo mítico, numa “ocupação pacífica” – como eles chamam. Os donos do prédio sequer questionaram a invasão, e em breve a casa deverá estar legalmente nas mãos do grupo de teatro. “Essa casa é de uma senhora. Ela já sabe que estamos aqui, mas nunca procurou brigar por isso. Temos advogados resolvendo o processo e em breve o IPTU virá para o nosso nome”, explica Celibi. Foram necessários seis caçambas de papa metralha e três caminhões para tirar os entulhos amontoados dentro do casarão. O trabalho foi feito por Celibi e Guilherme, ajudados, a partir de então, por Fábio Coelho, também ex-integrante do coletivo, e hoje morador do local. As pretensões para a casa são generosas. No térreo, já ocupado por objetos de cenário e figurino, deverá existir um espaço de leitura e pesquisa de linguagem cênica. Acima, ainda sem chão, o mezanino se transformará num teatro para as apresentações das vivecas – como são chamados os integrantes do elenco. E o segundo andar, uma espécie de hostel, hospedará grupos e artistas que vierem ao Recife em turnê. Como muitos dos prédios do casario que compõe o Bairro do Recife, este é mais um que grita por recuperação. O Vivencial pretende fazer do prédio uma ocupação teatral sonhada não só pelos integrantes do grupo, mas por muitos outros artistas pernambucanos que desejam potencializar o bairro como um centro de resistência cultural. Em frente à casa está o Espaço Cênicas; ao lado, o Grupo Experimental de Dança. O projeto de criação aprovado no Prêmio de Fomento às Artes Cênicas da Prefeitura do Recife fez Celibi concretizar parte do seu sonho. Ele uniu

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ROBERTA GUIMARÃES

Palco

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um elenco de 10 pessoas para remontar o Cabaré Diversiones e gastou mais de R$ 10 mil do próprio bolso para colocar o espetáculo em cena outra vez – já que o pagamento do edital atrasou e ele não “deixaria as pessoas na mão”. Com essa dezena de artistas – a maioria atores de humorísticos populares e apenas uma ex-viveca, Sharlene, o trabalho estreou no final de agosto no Teatro Hermilo Borba Filho. “Era importante comemorar os 40 anos do Vivencial (celebrados no ano passado) fazendo uma montagem”, lembra o diretor.

A VOLTA

A montagem, ainda sem data para voltar ao cartaz, lotou a plateia de gente ansiosa para rever – ou conhecer, no caso dos mais novos – o falado grupo tropicalista de quatro décadas atrás. Desse sucesso, parte se deve ao filme Tatuagem (2013), do diretor Hilton Lacerda, que lança luz

Parte do resgate do Vivencial se deve ao filme Tatuagem, que ambientou seu enredo em meio à história do grupo teatral sobre a subversão do grupo teatral, transformando o coletivo em pano de fundo para a história de amor entre o soldado Fininha (Jesuíta Barbosa) e o ator Clécio (Irandhir Santos). Sob direção de Henrique Celibi, o Cabaré une com sarcasmo esquetes antigas do grupo, costuradas com temas atuais, como a crise política brasileira, os preconceitos de gênero e a desvalorização da arte. Já a repressão que pairava como fantasma para os integrantes do grupo nos anos de ditadura militar agora é substituída pelo

contexto em que o discurso conservador se apresenta tão forte como no passado. “O espetáculo é um agradecimento ao grupo que me tirou de uma possível marginalidade. Se não fosse o Vivencial na minha infância, eu poderia ter seguido um caminho perdido como outros meninos que conheci”, afirma Celibi. Na peça, além de estar no elenco, ele foi um faz-tudo: dirigiu, fez cenário, figurino, coreografia e coassinou o texto. Se um dia esteve à margem dos olhares da sociedade e dos próprios artistas do Recife, seja pelos seus deboches ou pela “falta de profissionalismo”, agora o Vivencial retorna em um momento de valorização. “Hoje somos santificadas, mas sempre fomos mesmo demônios”, brinca Celibi. “No passado, as pessoas faziam ‘beijinho no ombro’ para a gente, e nem todo mundo queria chegar perto do Vivencial. O elenco não era de atores profissionais e,

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ACERVO VIVENVCIAL DIVERSIONES

Herdeiros

O MODO VIVENCIAL DE ENCENAR E CRITICAR

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2 CABARÉ DIVERSIONES Espetáculo comemora os 40 anos do Vivencial

por isso, nem sempre era respeitado”, conta. O diretor lembra que ele e seus amigos brigavam pela igualdade e tinham a transgressão como arma de discurso. “A gente não queria que as pessoas fossem caretas. Muitas vezes, nas festas que aconteciam na república, em Olinda, a gente ficava de garçom, e quando via as pessoas morgadas, mexíamos na música e começávamos a tirar a roupa. A gente chocava todo mundo, transcendia a festa dos outros”, comenta, às gargalhadas. Quarenta anos depois, a nudez ainda é algo que causa estranhamento, segundo Celibi, e, dessa vez, para o próprio elenco.

3 MEMÓRIA Henrique Celibi, nos anos 1970, atuando no grupo teatral

No passado, o motivo era a censura; hoje, a religião. “Tive problemas com a nudez na peça. Quando falei da possibilidade de ficar nu em cena, alguns atores desistiram e os que ficaram só relaxaram depois da estreia”, lembra. “Tenho atores de famílias evangélicas, que não posso nem marcar nas fotos do Facebook. Mas o Vivencial sempre foi de transformar a realidade, e eles terminam sendo transformados”, completa ele, para quem o casario, com previsão de abrir as portas em 2016, servirá não só de ocupação de arte e oficinas culturais, mas de mudanças humanas. “O futuro, a gente quer que venha.”

A verborragia conduzida pelo Vivencial Diversiones na década de 1970, em Pernambuco, manteve-se na cena local mesmo com o fim da república das vivecas, em 1983. Durante quatro décadas de ausência artística das “meninas transgressoras”, alguns grupos e artistas locias levaram aos seus trabalhos inspirações da maneira ácida e sarcástica do Vivencial recontar a realidade do país. De todas as consequências e “filhos” do coletivo olindense, o mais palpável e tangível é a Trupe do Barulho, segundo o pesquisador e professor de Licenciatura em Teatro da UFPE, Luís Reis. Fenômeno de público no teatro de Pernambuco da década de 1990, a peça Cinderela – A história que sua mãe não contou é o exemplo mais concreto dessa herança do Vivencial na obra da Trupe. A personagem humorística vivida pelo ator Jeison Wallace surgiu a partir da esquete Cinderela, a bicha borralheira, apresentada em 1989 por Henrique Celibi na extinta boate gay Misty. Assim como o Vivencial, a Trupe do Barulho também sofreu com a “demonização” do seu trabalho. “Hoje, você não está vendo um décimo do preconceito que a Trupe viveu naquela época”, conta Luís Reis, autor do livro-reportagem Cinderela, a história de um sucesso teatral dos anos 90, lançado em 2002. “Eu me interessei em estudar a Trupe nos anos 1990, porque naquela época foi publicada num jornal local uma série de fascículos sobre o teatro de Pernambuco em que não aparecia em nenhum lugar o nome do grupo, quando ele estava lotando as plateias. Sofreram muito com o preconceito, e até hoje tem gente que torce a cara para eles”, explica Reis. No tangente à questão de gênero presente na sua estética, o Vivencial Diversiones colocou as travestis e transformistas na cena pernambucana, como avalia o jornalista e crítico de teatro e cinema Alexandre Figueirôa. “Elas ganharam visibilidade e assumiram os palcos. Depois de lá, foram fazer shows em bares e boates, como o Kibe, no Pina, e o Mangueirão, na Boa Vista.” Coautor do livro Transgressão em três atos, Figueirôa afirma que essa influência do Vivencial está ainda mais tensionada na produção atual, chegando indiretamente às coreografias das bandas de brega e das quadrilhas juninas, por exemplo, e em outras linguagens artísticas. “No cinema, influencia Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda. Já na música, diria que existem marcas na figura de Johnny Hooker”, opina. Para ele, se em 1970 foi o momento de abrir a porta do armário e dizer “existimos”, agora o Vivencial volta para fazer afronte à posição dos religiosos que discursam pela homofobia. “Tem de garantir o espaço de liberdade conquistado.” Henrique Celibi, no entanto, traz sua leitura a essa possível “herança” das vivecas na contemporaneidade. “Já me perguntaram quem seriam os herdeiros do Vivencial. Dizem que é a Trupe do Barulho, mas acho que os herdeiros mesmo são os meninos do Magiluth”, diz o diretor. “Porque eles têm o discurso crítico que o Vivencial tinha. Enfrentam as coisas, não esperam patrocínio. Vão e fazem; tocam fogo”, completa. Um dos fundadores do Magiluth – coletivo atuante no Recife há 11 anos –, o ator Giordano Castro comenta que algumas das influências do Vivencial na formação do grupo está na “iconoclastia e no fato de fazer do teatro um momento de celebração”. “Como não se inspirar num grupo que, em tempos de ditadura militar, se organizava como pessoa jurídica, Grupo de Teatro Vivencial Ltda., e ainda assim fazendo um teatro de contracultura, subversivo para a época?”, destaca o ator. MATEUS ARAÚJO

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Sonoras

PERNAMBOUC QUARTET A polivalência de quatro músicos Experientes instrumentistas formam projeto especial com intuito de apresentar ritmos nordestinos à França, onde cumprirão agenda de festivais e workshops TEXTO Valentine Herold FOTOS Rafael Bandeira

O nome não deixa dúvidas: é bem de música e de músicos pernambucanos que estamos falando. O frevo das ladeiras de Olinda, o repente do sertão do Pajeú, a percussão de matrizes africanas do Morro da Conceição e os acordes dos ritmos tradicionais do Agreste se encontram no Pernambouc Quartet, formando uma amálgama rítmica e melódica que emana dos instrumentos de Lucas dos Prazeres (percussão), César Michiles (flauta transversal), Antônio Marinho (voz) e Breno Lira (violão e guitarra). Agora em novembro, o quarteto embarca para a França, onde vai cumprir uma agenda de festivais e workshops sob o propósito pelo qual foi criado, a pedido da jornalista francesa Françoise Degeorges e sob a tutela e curadoria do produtor pernambucano Amaro Filho. Desde o início de agosto, os músicos vêm se encontrando duas vezes por semana para ajustar o repertório que será apresentado em Nîmes, Toulouse e Paris nas próximas semanas. O último ensaio ocorreu na primeira semana de setembro e foi

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iniciado de maneira despretensiosa, porém certeira. A chegada da equipe de reportagem não alterou o curso dos ajustes que Marinho e Lira faziam para a canção Peleja, protagonizada pela viola e escrita por Lira e Juliano Holanda, outro nome expoente da atual cena musical pernambucana. Em um movimento crescente, após repassarem alguns versos, a flauta de Michiles se juntou ao duo que, já em trio, foi complementado em seu quase final pela chegada de Lucas e de seu cajón. Também dessa forma, pela mistura sonora, foi pensado o repertório do Pernambouc Quartet. Do coco ao frevo, passando pela embolada e pelo maracatu. Uma localidade inteira de gêneros musicais tradicionais da cultural popular nas 16 canções escolhidas pelo quarteto. Além de composições de cada um dos integrantes, foram incluídas músicas de artistas clássicos do estado, como Luiz Gonzaga (revisitado em seu Algodão, por exemplo), Domiguinhos (com Lamento sertanejo), Jota Michiles (Recife nagô) e Chico Science (com

A praieira). Todas as faixas foram rearranjadas pelo quarteto de maneira contemporânea. “Resolvemos dar uma chance para um representante de outro estado também. Um rapaz muito bom que está começando a carreira agora, Heitor Villa-Lobos”, brinca Antônio Marinho, referindose à inclusão de Trenzinho caipira no repertório dos shows. Aliás, as três horas de ensaio foram todas assim, repletas de brincadeiras e sinergia. Quando questionados se já haviam tocado juntos antes desse projeto, é César quem responde: “Em vidas passadas, já”. É perceptível o comprometimento de cada um com o fazer artístico, seja nos arranjos das canções ou nas inúmeras repetições de certos trechos no ensaio. Além das faixas que serão executadas pelos quatro durante as apresentações, haverá um momento de solo para cada. A escolha do repertório se deu de forma natural, segundo os integrantes e o produtor. Havia certa premissa de representar a diversidade musical do estado, e isso foi refletido sem

muito planejamento através da história e trajetória musical de cada um. “A nossa matriz individual é complementar à outra. Nós viemos do mesmo Pernambuco, a diferença é o palmo de chão onde nascemos”, explica Marinho. “É a música que tem que mandar aqui.” César complementa dizendo que a mescla de ritmos e de referências é a principal razão de estarem reunidos. “A experiência que cada um tem, a vivência musical, facilitaram muito a união do grupo.”

HERDEIROS

Lucas dos Prazeres nasceu e foi criado com a força do maracatu e da dança no Morro da Conceição. Integrou o trio instrumental Rivotrill, circula desde 2013 com o espetáculo Frevo de casa (acompanhado do Maestro Spok, de Flaira Ferro e Valéria Vicente) e, há quatro anos, criou a Orquestra dos Prazeres – projeto que reúne 30 percussionistas em uma grande orquestra –, entre outros projetos. Breno Lira, natural de Caruaru, é formado pela UFPE

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INDICAÇÕES

Sonoras e pelo Conservatório Pernambucano de Música (CPM), onde também é professor. Já trabalhou com diversos artistas, como Yamandu Costa, Hermeto Pascoal, Silvério Pessoa e Lula Queiroga, além de ter integrado a SpokFrevo Orquestra e Treminhão. Sua formação erudita cedeu espaço já há alguns anos aos acordes dos ritmos populares pernambucanos. Diretor musical de Geraldo Azevedo, César Michiles carrega em seus sopros de flauta a herança musical de seu pai, o compositor de frevo J. Michiles. Estudou no início dos anos 1990 na Manhattan School of Music e atua também como arranjador. Com apenas 11 anos, tocou ao lado do Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Fagner, Chico César e Alceu Valença são alguns dos artistas com os quais César também se apresentou. Antônio Marinho também convive, desde que nasceu, em São José do Egito, com arte e poesia. Neto de Lourival Batista, o Louro do Pajeú, o talento de criar sextilhas e rimas cantadas permanece na família. É que Marinho integra, junto a seus irmãos Greg e Miguel e sua mãe Bia, o grupo Em Canto e Poesia. A decisão de juntar trajetórias tão distintas foi “pensada e pinçada”, segundo Amaro Filho. “A ideia, desde o começo, era a de que seriam quatro músicos polivalentes em seus instrumentos”, explica. Esse tal começo ocorreu no último mês de

fevereiro, quando Françoise, âncora de um programa sobre música ao redor do mundo na Radio France, passou uma semana em Pernambuco produzindo matérias especiais. Durante esse período, ela entrevistou diversos músicos e representantes da cultura popular local, como Naná Vasconcelos e os próprios Antônio Marinho, César Michiles e Lucas dos Prazeres. Amaro foi quem elaborou os roteiros da viagem. “No penúltimo dia, Françoise veio com essa história de querer montar um grupo para tocar no Festival de Nîmes, do qual é curadora”, lembra o produtor. No início, Amaro pensou em formar um duo. Mas Françoise preferiu um trio. “Aí eu disse: então vamos levar um quarteto! Mas já ouvi tanto papo de gringo, que deixei para lá, achei que não fosse rolar. No dia seguinte, ela me disse que já havia falado com o pessoal do festival e que já podíamos pensar nos nomes, incluindo músicos que havíamos visitado nessa estada.” Criado para essa turnê francesa, o Pernambouc Quartet se configura até o momento como um projeto pontual. Mas a vontade de permanecer como um grupo, quando forem solicitados, está nas conversas dos músicos. “Todo mundo tem seus trabalhos independentes e ninguém vai deixá-los. Mas, pintando convite, por que não? Acho que tem que ganhar o mundo todo. Se não for nem Lucas, nem Breno, nem César nem o Em Canto e Poesia que querem, se for o Pernambouc Quartet, vamos embora”, arremata Marinho. C’est parti, então.

MPB

ROCK DE GARAGEM

Sony Music

Independente

GAL COSTA Estratosférica

VIVENDO DO ÓCIO Selva Mundo

Gal Costa completa 50 anos de carreira lançando o ousado Estratosférica. O álbum une compositores consolidados, como Tom Zé, Milton Nascimento e Caetano Veloso, a nomes mais recentes da MPB, como Mallu Magalhães, Criolo e Céu. A cantora repete a pegada eletrônica de Recanto em algumas músicas, aposta na guitarra e na sonoridade baiana que consagrou sua carreira. Alguns autores tiveram suas canções interpretadas por ela pela primeira vez, como Marisa Monte.

Também da Bahia, o rock de garagem do Vivendo do Ócio é música indie que fala de Salvador, do Nordeste. Uma das músicas de maior sucesso do grupo, Radioatividade, é composta de referências baianas, com um instrumental que lembra bandas como Franz Ferdinand ou Red Hot Chili Peppers. No YouTube, vale a pena conferir a versão pesada que a banda gravou, com Caju e Castanha, do Futebol no inferno. Este novo disco, Selva mundo, financiado via crowdfunding no site Kickante, está disponível em todas as plataformas.

HIP HOP

MPB

BNEGÃO & SELETORES DE FREQUÊNCIA Transmutação Natura Musical

Segundo Bernardo, o BNegão, “esse disco é totalmente do momento”, porque o grupo não acreditava que venceria o edital Natura Musical. O projeto era de um disco instrumental, mas, com o financiamento na mão, a banda partiu para Transmutação. Em suas 11 faixas, o rap está no centro dos ritmos musicais, que incluem funk dos anos 70, samba, reggae e o próprio hip-hop, em deferência à música negra. Bem-recebido pelos fãs na rede, o disco tem uma veia política forte, que tenta fugir do lugar-comum.

DANI BLACK Dilúvio Luz Azul/Tratore

Com apenas 27 anos, o paulista Dani Black chamou a atenção de artistas como Ney Matogrosso, Lenine, Maria Gadu, Leila Pinheiro, Milton Nascimento e Paulinho Moska. Ele estreou neste primeiro disco só com composições próprias. Em suas canções, sente-se um autor maturado, que não apela para soluções fáceis. Boas canções suas falam de amor, como na paixão impossível de Linha tênue. Guitarrista , Dani adota uma musicalidade elétrica já experimentada por grandes nomes da MPB, como Caetano Veloso.

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REPRODUÇÃO

Leitura

HQS Identidades movediças

Talco de vidro, de Quintanilha, e Lavagem, de Shiko, lançadas quase simultaneamente, são obras desafiadoras que comprovam a vitalidade do quadrinho nacional TEXTO Germano Rabello

Marcello Quintanilha e Shiko estão entre os mais prestigiados nomes do quadrinho nacional. Existe em ambos uma grande dedicação à técnica, visível no traço, na transformação fiel e bemplanejada do discurso em linguagem. Em meio a grandes diferenças, o lançamento quase simultâneo de seus trabalhos mais recentes faz perceber a complementaridade de suas visões sobre o ser humano. Talco de vidro, de Quintanilha, e Lavagem, de Shiko, estão ligados por uma persistente lembrança de coisas que ameaçam nos

devorar vivos: o mundo lá fora, o ego aqui dentro. São ruídos de fundo cuja intensidade aumenta de forma subreptícia e constante. Os lançamentos são boas notícias em si e, além disso, sinais da vitalidade do mercado editorial brasileiro. A produção de quadrinhos não para, seja pelas grandes editoras, seja por editoras menores, sejam fanzines ou álbuns de luxo. Lavagem e Talco de vidro são publicações em capa dura, com produção muito além da média. As editoras, Mino e Veneta,

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respectivamente, apareceram no mercado há pouco tempo e já apresentam no currículo alguns lançamentos bemselecionados, conquistando espaços através da inteligência. A Veneta foi premiada com o Troféu HQMix de melhor editora e, por ela, Marcello Quintanilha recebeu o prêmio de melhor roteirista nacional, pelo álbum anterior, Tungstênio. A livraria é hoje a principal vitrine do quadrinho nacional, ao menos em se falando de edições físicas, ou seja, descontando a internet. Quintanilha, nascido em 1971 na mesma Niterói que é o ambiente da sua graphic novel, é desses que pegaram o bonde do quadrinho nacional em fase de transição, nos anos 1990. Mas ele foi comendo pelas beiradas e fazendo seu nome em salões de quadrinhos, e em revistas variadas (todas de duração curta). Mas um dos seus maiores entusiastas foi sempre Rogério de Campos que, nas editoras Conrad e Veneta, publicou a quase totalidade das obras dele, começando por A fealdade de Fabiano Gorila (1999), passando por Sábado dos meus amores (2009) e Almas públicas (2011).

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Leitura 2

Como se não bastasse a precisão do seu traço, seu roteiro e seu texto estão entre os mais elaborados do quadrinho nacional. Em Talco de vidro, a narrativa se desfaz em lembranças, acontecimentos banais, à primeira vista insignificantes. A gente se aproxima da personagem principal, temos acesso à sua intimidade; até aos seus pensamentos – ou como o texto ressalta, às suas sensações. E são essas sensações, vagas, inconscientes, não decifradas, que levam Rosângela a sair dos trilhos de sua vida aparentemente perfeita. Mesmo numa situação confortável de classe média, de êxito profissional, casamento estável, a mente abre espaço para uma crise. O sentimento geral é reforçado já do título, a partir da combinação de elementos díspares, entre o que é reconfortante e o que pode perfurar, entre o que é familiar e o que é ameaçador. Não é leitura das mais fáceis, para o público em geral, não tem uma grande trama de mistério nem heróis, são os sentimentos varridos para debaixo do tapete que interessam aqui. Estão expostas a mesquinhez e instabilidade da alma humana.

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Esse olhar adulto sobre o cotidiano o aproxima de mestres modernos como Daniel Clowes e Eddie Campbell. “Minha intenção é trabalhar um tipo de mentalidade muito raramente verbalizada em nosso convívio cotidiano, e que é muito familiar a todos nós, tenho certeza, independentemente de nossa origem social”, explica Quintanilha. Mesmo que não tenha sido a intenção do autor, é difícil não ligar esse recalque a uma parcela da classe média brasileira que, de tanto se definir por suas posses e seu status, se defronta com o vazio que existe apesar de tudo isso. E ao momento de polarização política e transformação social que a gente vive. É uma narrativa fragmentada. A estrutura tem idas e vindas, pensamentos recorrentes e obsessivos, lembranças revividas. Remete à literatura contemporânea, ao cinema. Quintanilha é fã declarado de escritores como Clarice Lispector e Machado de Assis, de diretores como Welles e De Sica. O que ele produz aqui é uma narrativa de pensamentos velados, um fluxo de consciência

em terceira pessoa, talvez porque a própria personagem tenha dificuldade de saber muito bem o que sente. Por ter os diálogos interiores na mesma proporção que as ações factuais, o roteiro impõe vários desafios para a representação gráfica, mas o autor consegue escapar tranquilamente das armadilhas, sem cair no óbvio. A qualidade labiríntica dos pensamentos tem paralelo no leiaute claustrofóbico das páginas, divididas em quadros bem pequenos, e também nos muitos planos de detalhe, nas letras invadindo o espaço de forma irregular. Algo próximo do estilo que ele também apresentou ao adaptar O Ateneu para os quadrinhos. Este segue a linha do anterior, Tungstênio, em preto e branco e tons de cinza. A diferença é a decisão de enfatizar os vazios, as manchas de luz e sombra, deixar as formas se estabelecerem sem contorno. Quintanilha define assim: “Tungstênio faz uso de tons de cinza para dar agilidade e crueza ao desenho, enquanto que os tons de cinza de Talco de vidro reforçam sua atmosfera subjetiva, expressionista. O desenho sugere, muito mais do que mostra”. Investe também

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REPRODUÇÃO

Página anterior 1 TALCO DE VIDRO

Narrativa se dá a partir de lembranças

Nestas páginas 2 QUINTANILHA

Quadrinista exibe traço preciso, texto e roteiros bem-elaborados

3 SHIKO Multifacetado, seu trabalho pode ser visto em galerias ou nas ruas 4 LAVAGEM HQ é uma adaptação de curta dirigido pelo autor em 2011

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num recurso injustamente esquecido pelos quadrinistas ocidentais de hoje, as retículas (zip-a-tone), e constrói com elas texturas incríveis. E o habitual detalhismo com o cenário: com ajuda de referências fotográficas, Quintanilha faz dos quadrinhos um retrato bem fiel das ruas brasileiras.

LAVAGEM

As estratégias narrativas e estilísticas em Lavagem, de Shiko, são praticamente inversas. Pouco se sabe sobre a personagem principal, nem ao menos o nome da mulher. A ação assume o primeiro plano, as palavras são esparsas. O contexto é desolador: uma palafita na lama da maré, que tem nos fundos um curral de porcos. Os conflitos são mais tangíveis, têm carne, sangue e ossos. Shiko é uma figura multifacetada, cuja arte pode estar tanto em galerias como nas ruas – sua versão street art costuma ser assinada como Derby Blue. Nascido em João Pessoa, em 1976, faz cartazes de festa, capas de disco, storyboards, enfim, transita bem à vontade pelo universo pop. Lavagem é a adaptação de um curta dirigido por ele e lançado em 2011.

Existe nos dois artistas uma imensa dedicação à técnica e à transformação fiel do discurso em linguagem “Acho que a maior diferença foi o tempo que tive para maturar os problemas e as questões que o roteiro apresentava. Nesse sentido, o roteiro do quadrinho tem mais capricho, é mais bemlapidado”, explica. A trama envolve um casal da beira do mangue, seu cotidiano enfadonho, ele cuidando dos porcos, ela cuidando da casa e indo à igreja evangélica. A súbita aparição de um pastor evangélico é o evento que desencadeia o resto. É um contexto de opressão avassaladora, pobreza, misoginia, conservadorismo. Todos os terrores são da vida real – incluindo aí uma televisão ocupada por pregações religiosas paranoicas. Sobre isso, Shiko declara: “Em nenhum momento faço uma crítica a

esse discurso, ou descontextualizo de modo a criar um discurso crítico a ele. Tampouco o favoreço. Mas o leitor que é contra esse tipo de pregação será crítico ao personagem, o leitor que compactua com esse discurso será simpático, sem precisar de minha ajuda para isso. Também não é de graça que a mulher não tenha nome. Em casa e na igreja ela não é tratada como indivíduo, ela é generalizada como ‘mulher’. Acho que esse é um bom exemplo de como uma informação que falta, às vezes, diz mais do que a informação completa”. A HQ tem também crueza no traço. Cheia de hachuras, traços grossos, um visual “sujo”. Isso é equilibrado pela fluência de Shiko em tornar expressivos os personagens e os cenários. Proporções realistas, acentuando alguns detalhes do marido em especial. As páginas fluem de maneira mais aberta, menos quadros por página, menos palavras. Elas comunicam muito, imediatamente, ao primeiro olhar. Há páginas regulares, compostas de tiras horizontais, como uma tela em Cinemascope, e outras em que essa lógica é quebrada completamente; páginas são compostas como uma ilustração única, sem limites entre os momentos. O impacto é construído como nos melhores filmes de terror, nós sabemos que vai acontecer algo, e que pode até em alguma medida ser previsível, mas não sabemos de onde vem o golpe. E quando tentamos racionalizar, já é tarde demais, estamos dentro da história, já trocando de pele com os personagens, no lugar deles, no ambiente claustrofóbico. É uma história de terror, com algo de alucinação ou pesadelo. Impactante, tensa, para ler num só fôlego, não apenas pelo número de páginas e escassez de palavras, mas porque sequestra a atenção do leitor e não a devolve até o final. A HQ remete tanto aos clássicos quadrinhos de horror de revistas como Kripta e Calafrio, como às modernas revitalizações do gênero através de Thomas Ott e outros artistas. Seja na paranoia do isolamento ou da busca do status na sociedade, e mesmo com o desconforto que possa causar a alguns, Lavagem e Talco de Vidro são duas obras desafiadoras. Quintanilha e Shiko são dois artistas que devemos acompanhar sempre.

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PABLO CRUZ/DIVULGAÇÃO

Leitura SELVA ALMADA Perdas e danos no Chaco argentino

Primeiro romance da escritora argentina lançado no Brasil, O vento que arrasa trata, no final das contas, da complexa relação entre nós, pessoas TEXTO Priscilla Campos

No improvável encontro entre os pormenores arquitetônicos do Império Romano e as amplas variações térmicas do Chaco argentino, situa-se o romance O vento que arrasa, de Selva Almada. Lançado pela Cosac Naify neste semestre, o livro surge como um objeto cultural que demanda certo grau místico de suas pretensas análises críticas; algo não relacionado à descrição de sensações ou palpites intuitivos, mas, sim, à valorização de uma narrativa do espaço associada a qualquer ordem metafísica da escritura. Roma, século 1. Através de um tratado atemporal, Vitrúvio designa poder e centralidade à figura do arquiteto. Apesar do seu desejo em solidificar questões práticas direcionadas ao futuro, o romano cria 10 livros – reunidos no volume que se intitula De Architectura – nos quais a força da palavra permanece acima de uma aplicabilidade técnica.

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Para além das diretrizes voltadas às construções de muralhas, canais, templos, relógios solares, Vitrúvio apresenta, de forma original, a arquitetura como uma atividade que está em constante diálogo com o sagrado e outras ciências. No capítulo dedicado à astronomia, aponta-se uma relação entre o que está posto (a vivência dos ciclos naturais por meio dos astros) e o que ainda vai ser construído (a beleza e proporcionalidade arquitetônica). É neste ponto que o regime de ventos latino-americanos e a escrita de Almada alcançam uma aresta do conceito de Antiguidade. Chaco argentino, recorte cronológico indefinido. Pai e filha, costumeiros viajantes, são surpreendidos por um problema mecânico automotivo que, por ora, frustra seus planos de continuar na rota planejada. Topam, por acaso ou sorte, com essa impensável oficina em meio à paisagem solitária. O lugar árido e sufocante é a mira certeira no que diz respeito ao desenvolvimento de O vento que arrasa. Ali, o Reverendo Pearson, sua filha Leni; o mecânico Gringo Bauer e Tapioca realizam uma espécie de dança narrativa do abandono. Movimento esse que se estende ao ato de leitura: ao final do romance, os leitores também estão rodopiando na ideia, sempre submetida ao ermo, proposta por Almada. Ao longo da breve novela, existe o contínuo paralelo vitruviano do que é tido como definitivo – forte influência das alterações climáticas na dimensão textual, ausência materna, busca ou fuga religiosa – com o que ainda vai ser erguido: a escritora argentina parece ter perfeito controle de como manejar as diversas possibilidades de recortes narrativos pósteros que irrompem ao longo do livro. “O romance fala, talvez, como a maioria das histórias, dos relacionamentos humanos. Em O vento que arrasa, essas relações estão quebradas ou machucadas de alguma maneira. Existe abandono, sim, mas, no caso das mães de Leni e Tapioca, esse abandono é condicionado: ambas as mulheres se veem obrigadas a deixar seus filhos

por várias razões”, explica Selva Almada, em entrevista à Continente. A argentina afirma manter uma postura “contra a ideia mentirosa da ‘família unida’, do ‘núcleo de amor’”. Pois, segundo Almada, é no seio familiar que acontece a maioria dos abusos, em especial, os primeiros abusos físicos e psicológicos. “O escritor Fabián Casas tem um verso que ilustra bem o que eu penso: ‘Todo lo que se pudre, forma una familia’”. Um dos fragmentos mais simbólicos de tal disfunção doméstica é quando somos transportados para uma lembrança da garota: “A última imagem que Leni guarda da mãe é através do para-brisa traseiro do carro. Leni está dentro, ajoelhada no banco, com os bracinhos e o queixo apoiados no encosto. (…) A mãe faz menção de ir até o carro, mas o Reverendo se interpõe e ela se congela em meio ao movimento. Estão brincando de estátua, pensa

Na novela há um contínuo paralelo entre o que é considerado definitivo com o que ainda vai ser erguido Leni, que sempre brinca disso, sempre em pátios diferentes e sempre com crianças diferentes, depois do sermão dominical”.

DEUS E NATUREZA

De acordo com a escritora, a ideia de família quebrada é um tema frequente em seus romances e neste não foi diferente. Porém, O vento… traz essa noção de despedaço ampliada para o vínculo religioso, e, também, para a interação dos protagonistas com os elementos naturais. “Em alguns momentos, Deus e a natureza parecem negligenciar, de certa forma, esses personagens”, reflete. No arcabouço do enredo, o diálogo com o sagrado é interposto por uma prosa concisa e pragmática. O salto de linguagem causa um estranhamento que parece fazer parte da perspectiva de preservar o leitor naquele local pouco frequentado; um espaço estranho

no qual curiosidade e vazio estão incessantemente juntos. Ao mesmo tempo em que promovem algum tipo de repulsa, os sermões escritos por Almada possuem elementos ligados à hipnose; são catárticos numa medida doutrinária e perversa, o que causa certa perturbação: “Se a pessoa mais saudável que há entre vocês saísse nua no meio de uma noite chuvosa de inverno, há noventa e nove por cento de probabilidade que acabe pegando uma pneumonia. Do mesmo modo, se deixam o corpo entregue ao pecado, há noventa e nove por cento de chances que o Demônio se apodere dele. Cristo é amor. Mas não confundam amor com covardia, não confundam amor com escravidão. A chama de Cristo ilumina, mas também pode provocar incêndios”. A argentina assegura que a tarefa fundamental de um escritor é debruçar-se sobre a linguagem. “Eu gosto de dizer que as vezes trabalhamos contra a linguagem também, no sentido de desmontar um mecanismo e trocar as peças de lugar. Em O vento… trabalhei com uma estrutura simples, pequena, econômica. Quando começo a escrever uma história, levo um bom tempo até encontrar o tom. Às vezes, esse tom está relacionado ao argumento. Neste caso, pensei que o romance deveria ser escrito como um sussurro; um murmúrio, algo parecido com o jeito dos crentes falarem com Deus”, detalha. Apesar das possíveis conexões com a obra de Vitrúvio, a formulação do tempo em O vento que arrasa subverte toda a ideia estética da Idade Antiga, na qual a monumentalidade, formada por seus ideais simétricos e definições matemáticas, é o que era considerado belo, oportuno. O livro de Almada evoca o fascínio por uma representação das ruínas, de algo que ficou preso entre o passado e o presente. Com isso, a temporalidade é turva, inspira tanto a ideia de memória – como nos momentos de recordações empreendidos pelos personagens –, quanto a de fugacidade; uma lembrança do memento mori: o Chaco argentino como espelho, no qual você reconhece não só o fim daqueles sujeitos, mas o seu, também.

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RODRIGO VALENTE/DIVULGAÇÃO

Leitura

POESIA A linguagem como lugar de criação e jogo

No seu terceiro trabalho, O livro das semelhanças, Ana Martins Marques afirma seu interesse em refletir sobre o ofício da escrita e seus lugares de acontecimento TEXTO Gianni Paula de Melo

Quem lê os três livros de Ana Martins Marques tem a sensação de estar diante de um projeto poético que caminha com uma segurança delicada pelas imagens, os temas, as formas e ritmos que lhe interessam. Desde Vida submarina, quando poemas de uma vida inteira foram ao encontro do leitor desconhecido, sabia-se que aquela não era uma escritora feita da noite para o dia, e nas entrelinhas dos versos capturava-se também a leitora dedicada. No seu segundo livro, Da arte das armadilhas, veio então a experiência da obra pensada como uma unidade, quando os seus modos de dizer a poesia e o mundo ora se confirmaram, ora se transmutaram aos olhos de quem acompanhava seu trabalho. A

partir de sua nova publicação, O livro das semelhanças, recém-lançada pela Companhia das Letras, já é possível falar com um pouco mais de segurança sobre alguns territórios poéticos que a autora persegue incansavelmente. No livro, Ana reafirma que a linguagem não é apenas o seu lugar de criação e jogo, mas também um motivo de reflexão constante. Não à toa, o termo palavra consta em 21 poemas e o termo poema em 17 deles. Além disso, a primeira seção da obra se organiza em torno da materialidade do livro, contemplado em versos sobre o título, a dedicatória, a epígrafe, o papel de seda, o índice remissivo. Existe uma realidade literária comprimida entre a capa e a contracapa, e existe a realidade

do mundo, por isso “que, sendo de onde sou,/ fora do poema eu nunca chamaria/ de ‘tu’”. A percepção das trocas entre essas duas realidades é um dos traços mais sedutores da sua obra. No terreno da discussão filosófica sobre a relação entre os nomes e as coisas, bem-resolvida no campo linguístico, onde se assume ser arbitrária a escolha das palavras com que designamos aquilo que existe, Ana brinca de descortinar esse falso atamento entre o léxico e o mundo. Afinal, quanto do mundo o léxico comporta? “Quanto do desejo mora/ na palavra desejo?”. Mas a poesia, ao contrário da ciência, não propõe leis universais, ela sequer responde perguntas simples. Por isso, a problemática “nome-coisa” em O livro das semelhanças se expande, porque, parafraseando Octavio Paz, o poeta não explica a cadeira: coloca-a na nossa frente. Assim, o livro não oferece uma bússola que leva o leitor a entender a operação “palavramundo”, o norte que ele aponta é antes o de um labirinto em espiral contínua: “É mais difícil esconder um cavalo do que a palavra cavalo”, “Posso tocar o seu corpo, mas não o seu nome” ou “sei que primeiro se ama um nome sei/ que o que se ama no amor é o nome do amor”.

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INDICAÇÕES Há também em Ana Martins Marques uma atenção ao uso natural que fazemos da língua, posteriormente tensionada e revertida em imagens poéticas lapidadas. Em Visitas ao lugar-comum, metáforas cotidianas como “quebrar o silêncio”, “perder a hora” ou “pagar para ver” ganham cenário literário quando, curiosamente, recebem um tratamento que flerta com o literal dessas expressões: “Dobrar a língua/ e ao desdobrá-la/ deixar cair/ uma a uma/ palavras/ não ditas”. Na seção intitulada Cartografia, uma série de poemas que, para além dos mapas, fala sobre o convite e a expectativa, sobre a possibilidade de aproximação e de encontro, sobre a tentativa de reduzir distâncias ou, se possível, diluir fronteiras. Viagens que giram em torno da experiência e não do deslocamento, assim como nos poemas que levam o nome de Penelópe em Vida submarina. Lá, Ana Martins evidencia a heroína espartana e sua “odisseia da espera” em detrimento de Ulisses e seu retorno de Troia. Aqui, no entanto, os mapas também nos conduzem, nos retornam às questões sobre o mundo e a sua representação. Em conto de Marcílio França Castro, o autor escreve: “Alinhou no rumo da rodovia a pista tracejada no papel, para fazer coincidir as duas geografias, como se, de repente, o território pudesse configurar uma extensão concreta do próprio mapa, e este fosse uma ruga que o condenasse”. A partir de um alinhamento semelhante, a poeta ergue novas imagens e ora viaja

“olhando pela janela do ônibus/ em busca das linhas vermelhas das fronteiras/ ou dos nomes luminosos das cidades”, ora constata que nos mapas “não ventava nem chovia/ e nunca era noite”. O livro das semelhanças se lança ainda por uma série de outros assuntos caros à literatura: os elementos desimportantes (“se houvesse/ um museu/ de momentos/ um inventário/ de instantes”), a finitude que nos cerca (“Há estes dias em que pressentimos na casa/ a ruína da casa/ e no corpo/ a morte do corpo”) e o amor sempre (“palavra inventada/ para rimar com dor/ coisa aprendida/ nos poemas de amor”). Nesse apanhado de fontes poéticas, outras duas se destacam: o mar e a mitologia. Os mitos, os heróis, os seres mágicos estão presentes nos três livros da escritora, como é o caso de Penélope, citado anteriormente. Na nova publicação, três poemas põem em diálogo a humanidade e a animalidade dos personagens cantados: Centauro (“cuja parte humana sobrevivesse à parte animal”), Sereia (“centauro/ com sal/ melhor é tua metade/ animal”) e Ícaro (“quando Ícaro/ caiu/ no mar/ a sereia que/ primeiro/ o encontrou/ amou nele/ o pássaro/ele amou nela/ o peixe”). Já o mar, que não contempla Belo Horizonte – cidade natal da poeta –, é um “desconhecido”, uma ausência constante: “aqueles que nasceram longe/ do mar/ aqueles que nunca viram/ o mar/ que ideia farão/ do ilimitado?/ que ideia farão/ do perigo?/ que ideia farão/ de partir?”.

POESIA

NOVELA

Confraria do Vento

Carambaia

CRISTIANO RAMOS Muito antes da meianoite

NATHANAEL WEST Dia do gafanhoto e outros textos

Escritos desde 1991, estes poemas do professor e jornalista Cristiano Ramos foram por ele agrupados em tópicos como Os versos de Guadalupe, subintitulados pela data de criação. Embora haja essa divisão, os poemas são de um tom enlutado, noturno ou “em negativo”, repletos de referências à morte e ao desaparecimento.

Considerado um dos grandes prosadores norte-americanos, Nathaniel West não era editado no Brasil desde 1985. Agora, a Carambaia traz narrativa que gira em torno de Todd Hackett, artista que, como outros das décadas de 1920-30, sonha com um trabalho em Hollywood. Retrato dos bastidores da indústria cinematográfica.

POESIA

CRÍTICA

MIRÓ aDeus

Mariposa Cartonera

“No princípio/ não havia nada// hoje também”. Com este breve texto, Miró abre o livro de 32 poemas aDeus, editado de forma artesanal, em volumes numerados, pela editora Cartonera. Apesar do título, nem todos os poemas têm caráter agnóstico. Este é o primeiro livro publicado por ele depois da coletânea Miró até agora, lançada em 2013 (Interpoética/Fundarpe).

T. S. ELIOT O uso da poesia e o uso da crítica É Realizações

Eliot reflete sobre o próprio ofício e a função da crítica. Ele parte do princípio de que se deve “começar com a suposição de que não sabemos o que é poesia, o que ela faz ou deve fazer, ou para que ela serve, e a tentar descobrir, examinando a relação entre poesia e crítica, para que servem ambas”.

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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

TRISTES PARTIDAS

Lembro vagamente dos primos Edno e Raimundo, o mais velho nascido no mesmo dia em que nasci. Brincávamos de balançar numa rede, dando impulso com os pés, achando que alcançaríamos o telhado alto. Certa tristeza de separação nos tornava diferentes naquele dia. Crianças também sofrem pressentimentos. A casa da nossa avó movia-se fora dos eixos habituais, causando inquietude na família. Desde a madrugada começara a matança das galinhas. Depuradas na gordura, sem sangue nem vísceras, elas não arruinavam. Coziam nas panelas de barro até ficarem escuras, misturandose em seguida a farinha de mandioca. Só depois da farofa bem fria guardavam em latas, acreditando que durariam os sete dias de viagem. Raimundo, o primo menor, falou: nunca mais a gente se vê. Demorou anos até que eu os reencontrasse dessemelhantes da infância. O pai deles partira na frente. Foi o primeiro a abestalhar-se em São Paulo, a zanzar em frente à Sé nos domingos de folga, a altivez diminuída, os passos inseguros no meio de tanta grandeza. Em 1958,

ano de seca, fome e epidemias, os pobres abandonaram o Ceará por São Paulo. Corriam atrás de futuro, trabalho e comida. A viagem podia durar uma semana, no desconforto de um caminhão pau-de-arara. Bem ou mal, São Paulo acolhia os retirantes nordestinos que conseguiam pagar uma passagem. Folhetos de cordel, distribuídos nas cidades e nos sítios, falavam de uma terra prometida, estimulando as migrações. Os homens largavam as famílias, prometendo mandar buscá-las assim que ganhassem o necessário ao transporte. Muitos se extraviaram nas mãos de grileiros mancomunados com donos de caminhões. Tornavam-se escravos em fazendas escondidas, onde morriam sem dar notícias, ou fugiam mais famintos do que chegaram. Coisa que ainda acontece nos dias de hoje, mesmo nas grandes metrópoles, sobretudo com migrantes de países fronteiriços. Quando nosso tio Gustavo retornou do Sul, era madrugada. Nós ainda morávamos na fazenda dos Inhamuns. Ouvi os latidos dos cachorros, as batidas na porta de casa e o nome do

meu pai chamado alto. Depois escutei minha mãe chorando, transtornada com a magreza do tio, seu semblante envelhecido. Tudo se passando junto de mim, em torno da rede em que eu fingia dormir para escutar as histórias que os adultos nunca me contavam. Ofereceram ao tio o que havia em casa: rapadura, queijo, coalhada fresca, enquanto a mãe acendia o fogo e preparava uma refeição quente. Antes, o tio não comia nenhum alimento à base de leite. O sofrimento rebaixara seu orgulho. O Sul não existe – ele falou enquanto mastigava –, é pura invenção de violeiro repentista. Eles enchem a cabeça da gente de promessas mentirosas. Viajar é o mesmo que correr atrás de fumaça. Disse que tinha chegado ao Mato Grosso, trabalhava numa fazenda. Os grileiros o tornaram escravo. Tomaram suas roupas e até o fumo do cigarro controlavam. Nunca via a cor do dinheiro, pois estava sempre devendo ao barracão. Teve malária e pensou não escapar com vida. Quando sentiu que ia morrer, fugiu por dentro da mata. Nem sabia para que lado ficava o nordeste. Desaprendera a olhar o céu e a se guiar pelas estrelas.

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JANIO SANTOS SOBRE REPRODUÇÃO

No tempo em que viveu escravizado, só enxergava a copa das árvores. Mas tio Davi, o pai dos meus primos, teve mais sorte. Arranjou emprego de marceneiro em São Paulo, profissão em que era mestre. Escreveu à mulher falando em abrir o próprio negócio. Não conhecia a filha pequena, nascida depois que ele fora embora. A carta de tia Edite, contando as agruras da viagem, só chegou três meses depois de sua partida. A folha de papel passou de mão em mão, muitos choraram quando a leram. Lembro que minha única preocupação era saber se as carnes tinham apodrecido, tamanho era o meu desejo pela farofa de galinha. A tia não mencionou essa passagem e jurei que perguntaria quando um dia a encontrasse. Todos se aliviaram ao saber que os retirantes começavam vida nova na terra estranha. Nosso tio Antônio andara sonhando com a tia Edite. Ela caminhava pela casa da avó, ele até escutara os ossos dos pés dela estalarem igual à lenha crepitando no fogão, o que foi interpretado como sinal de morte. Nesses dias em que assistimos a uma onda de pessoas vindas do Oriente Médio e da África, tentando entrar na

A viagem podia durar uma semana, no desconforto de um caminhão pau-dearara. Bem ou mal, São Paulo acolhia-os Europa Ocidental para fugir da guerra, perseguição e pobreza, sinto que em proporções distintas tudo isso é bem familiar aos nordestinos. Os políticos ainda buscam uma palavra que defina a situação desses homens, mulheres e crianças. Trata-se de migrantes, clandestinos, refugiados ou exilados? De fluxo ou crise migratória? Mais justo é chamá-los de refugiados. Enquanto não decidem o nome que os definam, fala-se em naufrágio da humanidade, aumentam os acampamentos em praças e estações de trem e diariamente mais gente se afoga nas águas do Mediterrâneo, na louca travessia pela vida. A Europa não pode esquecer que o enriquecimento dos seus países se deu às custas da exploração e

pilhagem dos povos que hoje pedem socorro às suas portas, depois de sofrerem séculos de colonização. Nossas migrações aconteciam quase sempre motivadas pelas secas sazonais, num fluxo do Nordeste para o Sudeste, Centro Oeste e Norte. Quando não havia transporte, como nas estiagens de 1877 e 1934, os bandos famintos se deslocavam a pé, dentro dos seus próprios territórios. As soluções encontradas pelos aglomerados de gente, como em Canudos e no Caldeirão, foram combatidas pelo Governo. Na estiagem dos anos 30, comerciantes, população e poder público descobriram uma maneira de livrar-se dos miseráveis: confiná-los em campos de concentração, onde eram tratados como bichos e morriam. Foi uma limpeza social, algo parecido com os campos nazistas. Os tempos são outros, a comunicação se faz em tempo real, os migrantes estrangeiros possuem melhor nível de educação e consciência de seus direitos. Apenas o sofrimento é o mesmo: dor, fome, abandono. Ele se repete entre pessoas de línguas e culturas diferentes, porém iguais na condição humana.

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FOTOS: CLAUDIA ANDUJAR

Visuais 1

CLAUDIA ANDUJAR Entre a realidade, o sonho e a epifania Instituto Moreira Salles abriga exposição com mais de 300 imagens da fotógrafa que registrou um Brasil em transformação TEXTO Luciana Veras, do Rio de Janeiro

Por não saber falar o idioma do país em que desembarcara aos 24 anos, vinda dos Estados Unidos e com um passado de perseguições nazistas e fugas transcontinentais, a imigrante instituiu o exercício cotidiano de aprendizado pelas lentes de uma câmera fotográfica. O quão provável seria, então, que aprendesse a domar as técnicas da

fotografia e a regência, os pronomes e a ortografia do português? “No impossível é que está a realidade”, escreveu, certa vez, Clarice Lispector. Se pudesse ver as imagens de Claudia Andujar – No lugar do outro, em cartaz até novembro no Instituto Moreira Salles, na Gávea, no Rio de Janeiro, a escritora ucraniana, membro da “legião estrangeira” que se

fez brasileira como a própria fotógrafa, tenderia a concordar com a frase do curador Thyago Nogueira: do olhar de Claudia e do resultado de suas incursões imagéticas precipita-se “uma visão que transcende o registro e oscila entre o sonho e a epifania”. Assim é o conjunto de mais de 300 imagens da exposição, espalhadas pelos amplos cômodos do elegante exemplar modernista que é a sede da instituição, fundada pelo embaixador Walther Moreira Salles no mesmo imóvel que serviu, durante décadas, de residência para a família. É um amálgama de contornos interessantes a junção das fotografias de Claudia Andujar e o ambiente de aposentos que outrora serviram de quartos, salões de baile e salas de jantar. Porque boa parte de No lugar do outro constitui-se de registros que a fotógrafa fez, entre 1962 e 1964, a partir de imersões na rotina de quatro famílias brasileiras – pescadores em Picinguaba, perto de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo; os Porciúncula, clã abastado que cultivava cacau em São Francisco do Conde, na Bahia; uma família em Jabaquara, na zona sul da

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1 COTIDIANO Fotógrafa empreendeu imersão na vida de quatro famílias de diferentes cidades do país 2 ANOS 1970 Registro da natureza feito nas primeiras viagens à Amazônia 3 A SÔNIA Ensaio experimental reúne série de nus feita com filme infravermelho

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capital paulista; e um numeroso grupo de pais, filhos, sobrinhos, tios e primos em Minas Gerais. O recorte curatorial engendrado por Thyago Nogueira, editor da revista ZUM e coordenador de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Salles, transcende os encontros de Andujar com os brasileiros. Abarca

as quedas d’água do Rio Jari e outras exuberantes paisagens amazônicas; a Rua Direita, no centro de São Paulo, e os transeuntes que por lá circulavam, sacolas na mão, olhar de espanto para a câmera localizada no ângulo do chão; as cirurgias espirituais do médium Zé Arigó, cujo principal modus operandi consistia em enfiar uma faca entre a

pálpebra e olho do paciente; a paixão interditada entre dois homens gays e os lugares por eles frequentados; o sagrado momento em que uma parteira acolhe o bebê, metade já pertencente a esse mundo, a outra metade ainda a sair do corpo da mãe; o “trem do diabo”, expresso que saía de São Paulo e demorava sete dias para voltar à Bahia, “devolvendo” passageiros que não haviam tido êxito na sua experiência migratória; e os experimentos no ensaio A Sônia, com adoção de filmes infravermelhos e sobreposições na sua investigação do corpo feminino. Trata-se de uma produção circunscrita entre o início dos anos 1960 e meados de 1970, que abrange, por exemplo, os anos em que a fotógrafa integrou o escrete da revista Realidade

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CLAUDIA ANDUJAR

Entrevista

CLAUDIA ANDUJAR “FIZ TODO ESSE TRABALHO COM MUITO AFETO” A voz carrega um sotaque

Visuais 4

e precede o seu mergulho na vida dos yanomamis. “A exposição lança um olhar para um período pouco visto e estudado de sua carreira. Todo mundo conhece as fotos de Claudia com os yanomamis, mas se você repara nessas imagens, percebe que a originalidade, a complexidade, o domínio da técnica e a generosidade em procurar entender o outro, em se relacionar com aquelas pessoas, já estavam ali”, expõe Nogueira à Continente. Sua aproximação com ela deu-se a partir de 2012, quando trabalharam juntos para o segundo número da ZUM. Surgiu a ideia de trazer à tona essa produção, de uma certa maneira eclipsada pela potência e pelo alcance das imagens dos índios – bem como pelo fato de que a própria história de vida dela passou a se confundir com a dos yanomamis que se comprometeu a defender, visibilizar e proteger. Thyago Nogueira conta que foram dois anos de visitas semanais com o propósito de exploração de acervo. Era quase uma prospecção arqueológica: “Toda segunda-feira, eu ia à casa dela e ficávamos a olhar o material que ela guardava no arquivo. Fomos fazendo uma revisão de tudo, separando por eixos, mas nunca com o pensamento de fazer algo cronológico. Claudia nunca quis que a exposição tomasse um rumo

4 ZÉ ARIGÓ Registro das cirurgias espirituais do médium

explicativo ou óbvio demais, digamos assim. Há imagens na exposição que nunca haviam sido impressas, muito menos mostradas antes”. Claudia Andujar – No lugar do outro opera menos como o registro de um Brasil que buscava se (re)construir em época de ditadura militar (muito embora existam registros que simbolizem essa urbanidade tão tupiniquim, como as fotografias de uma São Paulo que remete a um cenário de ficção científica, ou mesmo os instantâneos de florestas e cachoeiras prestes a ser extintas na Amazônia, e costumes que hoje parecem obsoletos) e mais como impressionante testemunho da produção artística e política de uma das maiores fotógrafas em atividade no país. “Acredito que as imagens também deixam transparecer a verdade e a coragem de Claudia, que, no início dos anos 1960, ainda sem falar quase nada em português, viajava sozinha de barco apenas para conhecer uma simples família de pescadores, ou que depois encarava sete dias em um trem, dormindo nas mesmas condições que os passageiros, só para poder retratar aquela jornada”, conclui o curador Thyago Nogueira.

que não esconde sua origem estrangeira. Traz, também, a candura e a determinação de quem, ao reconstruir a vida em um Brasil tão longínquo para quem fugiu de uma Europa cindida pela 2ª Guerra Mundial, criou um vocabulário próprio de imagens por meio das quais buscava conhecer, observar e compreender o povo, as paisagens e os costumes da nação que adotara. Aos 84 anos, Claudia Andujar, nascida na Suíça, de origem húngara e naturalizada brasileira, é autora de diversas imagens significativas e luminares na fotografia brasileira recente. Foi sobre uma porção não tão conhecida de seu trabalho, compilada na exposição Claudia Andujar – No lugar do outro, que ela falou à Continente, por telefone e com a mesma delicadeza com que fotografou pescadores, médiuns, parteiras, urbes e a natureza. CONTINENTE É um encanto poder acessar uma fase tão rica de produção sua, de certa forma menos conhecida do que seu impactante trabalho com os yanomamis. Como foi empreender o resgate dessas imagens? CLAUDIA ANDUJAR O Instituto Moreira Salles quis fazer uma exposição com meu trabalho. Como estou também preparando o pavilhão permanente em Inhotim, em Minas Gerais, e vai ser unicamente dos yanomamis, então a gente decidiu trazer outro trabalho, que era de antes desses índios. E foi assim que nasceu esse trabalho que você viu. Foi uma sugestão deles fazer, também, uma exposição grande – são mais de 300 fotos. Realmente, através dos últimos anos, e principalmente a

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MARIA CHAVES/DIVULGAÇÃO

partir dos anos 1980, estou a mostrar continuamente esse meu trabalho com os yanomamis. Na verdade, esse trabalho que você viu, eu até quase o esqueci. CONTINENTE Foi mesmo? CLAUDIA ANDUJAR É, quase esqueci mesmo. Bem, tem coisas que realmente fiquei surpreendida de ver. Obviamente, tem outras que nem tanto, mas porque me lembro muito bem do começo do meu trabalho de fotografia. Essa exposição no Rio de Janeiro se refere a isso. Foi realmente o começo, pouco tempo depois que comecei a fotografar no Brasil. Eu tinha muita vontade de conhecer os brasileiros. Foi por isso que, de uma certa maneira, me dediquei à fotografia: porque era uma linguagem para mim e obviamente na época, quando comecei a fotografar, não sabia falar português. CONTINENTE Era mais fácil para você, munida de uma câmera, encarar esse país novo e essa língua nova? CLAUDIA ANDUJAR Sim, é isso mesmo. Eu tinha o desejo de aprofundar, de conhecer o Brasil. Quando cheguei ao país, em 1955, eu não sabia se ia ficar ou se era só uma passagem por aqui. Acabei ficando até hoje. E vou ficar, tudo indica, até o fim da minha

“De certa maneira, me dediquei à fotografia porque era uma linguagem para mim e, na época, eu não falava português” vida. Gostei do Brasil, dos brasileiros, da maneira que fui acolhida. CONTINENTE Isso fica bem perceptível no conjunto de imagens da exposição: a maneira como você fotografa aquelas situações denota muita intimidade. As pessoas permitiram que você ocupasse aquele espaço no lar delas e que pudesse fotografá-las, e as imagens trazem muita delicadeza no olhar, em estar ali, fotografar e não invadir. CLAUDIA ANDUJAR É exatamente isso. Eu acho que faz parte da minha maneira de ser, de não ser invasiva, entendeu? Isso para mim é importante. Eu fiz todo esse trabalho com muito afeto, com amor. CONTINENTE Você disse que, naquele momento, recém-chegada ao Brasil, a câmera era como se fosse o seu idioma, com o qual foi construindo uma espécie de abecedário particular. Com o passar do

tempo, e a própria exposição mostra isso, você foi experimentando mais com as fotografias. Um exemplo é o ensaio com a modelo Sônia, em que você refotografou as imagens. Era como se você fosse assumindo o controle do meio e experimentando até mesmo para subvertê-lo. CLAUDIA ANDUJAR Quando comecei a fotografar no Brasil, no fim dos anos 1950, eu ainda não tinha desenvolvido uma linguagem fotográfica que tentasse mudar ou modificar. Era uma linguagem espontânea. Sim, com o tempo eu tentei obviamente me aprofundar na linguagem fotográfica também. Procurei meios diversos para poder ainda melhor me expressar. No ensaio sobre a Sônia, era como se fosse o começo de tentar fotografar fotos já feitas, de usar técnicas que para mim não eram novas. Mas não era só experimentar. Era para conseguir transmitir melhor o que eu sentia. CONTINENTE Nessa volta a imagens das quais, como você mesma disse, pouco se lembrava, qual o mergulho “no lugar do outro” que mais a surpreendeu? CLAUDIA ANDUJAR Tudo me surpreendeu bastante. O título da exposição também confirma que eu sempre tentava entender melhor o outro. Quanto mais eu fotografava, mais eu sentia uma certa liberdade de poder entender a pessoa. Não foi um título que eu inventei, foi o Thyago (Nogueira, curador da exposição), mas ele sugeriu porque sentia que era isso que eu tentava fazer. CONTINENTE Tantos anos depois, você tem curiosidade a respeito das pessoas que fotografou? Alguma vez se indaga sobre onde estariam e o que fariam agora? CLAUDIA ANDUJAR Sim, sim. É claro que tenho. Alguns anos atrás, pude reencontrar alguns personagens. A Folha de S.Paulo propôs uma matéria para saber onde estariam os integrantes daquelas famílias. Pude reencontrar a família paulistana e foi muito bom. Me receberam com o mesmo carinho. Foi também muito interessante perceber as mudanças trazidas com a passagem do tempo. LUCIANA VERAS

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GILVAN BARRETO

Visuais

GILVAN BARRETO Sob o sol de Camus

Na exposição Suturas, Gilvan Barreto apresenta série de 25 fotografias manipuladas em que toma como ponto de partida a memória de Estrangeiro TEXTO Marina Moura

A banda de rock britânica The Cure

lançou, em 1978, o single Killing an arab, numa referência ao personagem Mersault, do livro O estrangeiro, escrito pelo franco-argelino Albert Camus. Ainda adolescente, o pernambucano Gilvan Barreto, que viria a ser fotógrafo, escutou a música e, em seguida, resolveu ler a obra. Ele possivelmente não sabia que, mais de 30 anos depois, a produção de Camus, e sobretudo O estrangeiro, estariam no centro de suas referências fundamentais, inclusive de sua mostra mais recente, Suturas, em exposição na galeria Amparo 60, neste mês de outubro. Na mostra, há cerca de 25 fotografias híbridas (desenhos e fotocolagens), entre inéditas e outras presentes na trilogia de livros lançados por Gilvan: Moscouzinho (2012), O livro do Sol (2013) e Sobremarinhos (2015). A escolha das imagens, no que possuem de semelhanças formais e conceituais, foi feita pelo curador paulistano Eder Chiodetto. Ele observa

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o caráter experimental de Suturas, algo a ser celebrado porque se insere nos contornos escorregadios da fotografia contemporânea, justamente por dialogar com outras linguagens, como a literatura e a escultura. Nesta exposição, aliás, há uma escultura inédita — um chumbo de pescaria, com aproximadamente 12 kg, fincado na parede. O fotógrafo, radicado há nove anos no Rio de Janeiro, já havia se utilizado de imagens de chumbinhos, relacionando-os ao peso de sentir culpa, em Sobremarinhos. Lançado em 1942, o mais famoso livro de Camus acompanha a trajetória de Mersault, que se comporta sob os signos da distração, aparente frieza e do absurdo. Ao saber da morte da mãe, o personagem vai ao cinema. No enterro, não dá mostras de sentir qualquer emoção (“Na nossa sociedade, todo homem que não chorar no enterro da mãe corre o risco de ser condenado à morte”, provoca o narrador). Depois, ele vai à praia, toma banho de mar e mata um árabe. Levado a julgamento e questionado sobre o motivo do assassinato, Mersault argumenta que foi culpa do “Sol que não deixa sombras”. Laços afetivos, culpa, Sol, ciclos de vida e morte, mar, vestígios, fraturas — eis alguns elementos presentes no livro de Camus que são ressignificados como uma narrativa nas fotografias de Gilvan Barreto, para quem a produção de imagens é comparável à escrita, ou melhor, “é uma escrita. Como autor, preciso criar um vocabulário próprio”, afirma. Assim, a mostra toma uma direção ficcionalizante e é possível observar essa influência em trechos de O

estrangeiro e Diário de viagem (registro feito por Camus em viagem ao Brasil, no ano de 1948), utilizados em colagens e sobreposições do artista. A figura paterna é outra temática forte na poética do fotógrafo e, em Suturas, está presente em uma imagem na qual o pai flutua ao lado de uma criança e em uma série de cinco desenhos representando o seu funeral. Chiodetto observa que um dos motivos para o tema ser caro a Gilvan é porque ele “perde o pai quando se torna pai” e precisa lidar com sentimentos contraditórios, os quais são aproveitados em sua produção como modo de agenciar a memória e o afeto. Outras referências apontadas por Chiodetto são o diálogo com o Surrealismo, o inconsciente e a aproximação da linguagem do fotógrafo norte-americano Man Ray, um dos mais importantes do século 20 e considerado precursor nas pesquisas de artes visuais abstratas. Uma das técnicas utilizadas por Ray, a solarização (inversão parcial dos tons da fotografia), tem seu efeito de foto metalizada evidenciado em muitas das imagens de Gilvan na mostra Suturas. O entendimento de que a fotografia é uma maneira própria de existir das coisas e de que se constrói e sustenta-se como forma de representação é fundamental para o processo de Gilvan Barreto. “Não busco lá fora os elementos visuais para minhas imagens, eu as invento”, declara. Ao reinventar pedaços de seu mundo de memórias, as imagens de Gilvan nos representam — enquanto detentores de recordações pessoais diferentes das dele e, no entanto, feitas da mesma substância — muito profundamente.

Fotografia

EM TORNO DOS COLETIVOS Click! Pronto! Habemus uma foto! Mas será que fotografar é apenas manusear a câmera? Será que é uma atividade individual? Os coletivos fotográficos contemporâneos estão aí para ampliar ainda mais essa discussão. Agrupamentos de fotógrafos não são novidades, existem há anos como os fotoclubes e agências. No entanto, os coletivos contemporâneos surgem com uma grande diferença em relação aos anteriores. Enquanto os primeiros estão intrinsecamente ligados a ações individuais, os contemporâneos compartilham o ato de fotografar, criando uma perspectiva de autoria coletiva, que nos faz refletir sobre a forma como supomos a fotografia. A discussão em torno desses grupos é o foco do livro Coletivos fotográficos contemporâneos (Appris, 205 páginas), fruto de um desdobramento da pesquisa de mestrado do fotógrafo Eduardo Queiroga, realizada no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. A ideia para a publicação surgiu a partir da percepção do autor sobre uma confusão existente no meio fotográfico em relação aos coletivos contemporâneos, que muitas vezes eram desqualificados em debates sobre o tema. “Como eles ampliam a ideia de fotografia, quando pensamos sobre o coletivo, pensamos sobre fotografia. Minha ideia era contribuir para essa reflexão”, pontua Queiroga. Ao pensar sobre os coletivos contemporâneos, percebe-se que o clique é só uma parte do processo. Há etapas, antes e depois dele, como observação e edição, que também integram o ato fotográfico e são compartilhadas pelos grupos contemporâneos. O livro de Eduardo Queiroga faz uma análise de agrupamentos como fotoclubes e agências e aprofunda a discussão em torno dos coletivos contemporâneos, com análises de grupos como a Cia de Fotos, que existiu entre 2003 e 2013, em São Paulo, além de Pandora e Garapa. Coletivos Fotográficos Contemporâneos é uma obra voltada para fotógrafos, jornalistas e estudantes e colabora para ampliar os horizontes sobre o que é produzir uma fotografia. MARIA EDUARDA BARBOSA

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José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

COMER E DESCOMER

Ninguém me pergunta como como. Não vejo ninguém que escreve sobre arte perguntar uma coisa crucial, o alfa e o ômega da vida que é comer, como é que o indivíduo que produz a arte come, junto às outras funções correlatas; como se fosse feio, como se se cometesse uma gafe, ao falar de arte, falar de comida; isto é, não discutir cardápios, mas a própria possibilidade de se alimentar, o ganho necessário para comprar comida. Sem comer, sem beber, ninguém vive. Seria a primeira indagação, procurar saber como ele mora, se tem um teto, suas condições de vida. Por isso achei genial a obra (sem trocadilho) do italiano Piero Manzoni (1933-1963) Merda d’artista (merda de artista), “a afirmação última da unidade da arte e da vida” segundo ele, noventa latinhas contendo trinta gramas cada, vendidas ao preço equivalente na época, 1961, a trinta gramas de ouro, cotada cada latinha hoje a setenta mil euros, valorização de setenta vezes, cálculo de Armando Garrido. Já o poeta Castro Alves, lido em tempo de ginásio, e que nunca

esqueci, denunciava em Ahasverus e o Gênio, mesmo que naquela época eu não me colocasse no lugar do “gênio”, isto é, pintor, pois não me passava pela cabeça àquela altura vir a me dedicar à pintura ou qualquer outra arte: “Pede u’a mão de amigo — dão-lhe palmas:/Pede um beijo de amor — e as outras almas/Fogem pasmas de si./E o mísero de glória em glória corre.../Mas quando a terra diz: — ‘Ele não morre’/Responde o desgraçado: —‘Eu não vivi!...’” Exato: nunca tem nem o que comer, que é o primeiro item. Era assim que eu entendia, talvez por não pensar ainda em “beijo de amor” e “u’a mão de amigo”, de que tanto precisei e tive, como necessidades básicas, ter o que comer, ter onde dormir, ter o mínimo para suprir as necessidades primárias, ter onde tomar um banho, ter onde fazer necessidade, tempo e espaço sossegado para trabalhar, material de pintura, ver quadros, convívio com outros pintores e o mais difícil: vender. O pintor Gil Vicente contou que um pintor estava pintando um painel

numa agência bancária quando o dono do banco passou e perguntou ao gerente o que era aquilo. O gerente explicou que era para embelezar a agência. Quando soube do custo o dono espantou-se. “Isso até meu filho faz”, disse. O pintor, que ouviu a conversa, atalhou: “Fazer, até que faz. Quero ver é ele vender”. Também Gil contou que perguntaram a um pintor como iam as vendas. “Bem”, respondeu o pintor: “Já vendi a televisão, o carro, a geladeira...” Para o vulgo, o pintor é sustentado por um corvo que lhe atira um pão, como Santo Antão no deserto, e isso lhe basta. Nem isso: “O deserto negou-lhe — o grão de areia,/A gota d’água — rejeitou-lhe o mar” já dizia Castro Alves. E para não sair da Bahia, lembro a frase da mulher de Rui Barbosa ante a pletora de convites a apresentações gratuitas: “O Conselheiro também come”, citado por João Ubaldo Ribeiro. “E descome”, diria Piero Manzoni. Eu nunca vi quem escreve sobre arte se interessar em saber como o pintor come, esse “bípede implume” que

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FOTOS: REPRODUÇÃO

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1-2 GENIAL

A obra Merda d’artista (acima) e o autor, Piero Manzoni (à esq.)

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por isso precise de maior leveza que os mamíferos. Notório é que os pintores que exercem maior influência na praça são os mais vendáveis. Quando a maré de vendas muda de rumo, uns procuram migrar imediatamente para o novo campeão de vendas; outros continuam fiéis à antiga filiação, até por já terem sido relativamente reconhecidos, isto é, já terem começado a vender; outros procuram uma aproximação com a nova tendência sem no entanto aderir completamente, sem arriscar todas as fichas. Acredito nem serem essas mudanças totalmente conscientes ou interesseiras e aí entram outros fatores, a origem do candidato a pintor, se de origem mais modesta cuja família não pode ou não quer “sustentar vadio”, a idade, se se trata de puro encantamento ou propósito de mudar de vida, se quer construir ou reconstruir a vida através da

Para o vulgo, o pintor é sustentado por um corvo que lhe atira um pão, como Santo Antão no deserto, e isso lhe basta pintura, tratando-se de indivíduo que não tem outra fonte de renda que não o quadro, além do puro mergulho sem volta, da vocação incontrolável. Mesmo para o pintor de origem burguesa, ou que se tornou burguês por acidente de percurso, há essa necessidade de conferir seu valor de mercado, como dizem que acontecia com Lasar Segall aqui no Brasil, como se no mundo capitalista o único valor incontestável seja o preço. Até para quem não come, porque já morreu, por força dos herdeiros

ou proprietários de suas obras, a se digladiarem nos leilões, Van Gogh, Picasso e outros. Di Cavalcanti aqui no Brasil. Um desses casos me toca de perto porque pintor com quem trabalhei. Içado às alturas nos jornais, recebendo visita de intelectuais, artistas estrangeiros de nomeada — foi assim que conheci Léonide Massine e Sacha Guitry —, me mandava com quadros debaixo do braço oferecê-los a compradores seus em troca de algum dinheiro, pouco, tanto assim que era eu que trazia, a pé, e raramente eu não voltava com os quadros e a resposta: “Diga a Fulano que no momento não estou podendo”. Era comum eu ir buscar o almoço fiado. Quando Sócrates perguntou a um menino qualquer na rua onde encontrar os bens necessários à vida, o menino, que se chamava Xenofonte, respondeu sem titubear: no mercado. Sei que mercado hoje pode ser o mundo todo. Dizem que um ricaço na Grécia, tinha um avião para comprar pão em Paris. Mas mercado de que falou Xenofonte geralmente dá para ir a pé. Fica bem ali na esquina. E, decorrência disso, de se viver uma vida local, é o surgimento de uma arte local, sem alarde, sem patrocínio, sem preconceito, sem manifesto.

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Claquete

DUBLAGEM Falado em português

Constatada em pesquisa inédita, preferência por filmes dublados se consolida no país e já é maioria entre os títulos exibidos nas salas comerciais TEXTO Marcelo Miranda

Numa crônica publicada na edição 47 da revista Filme Cultura, em agosto de 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade lamentava a demolição ou abandono de vários cinemas de rua na cidade do Rio de Janeiro. Ao fim do texto, lançava a provocação: “O espectador deixou-se ficar em casa, vendo filmes dublados; que

a princípio lhe doíam como dor no canino e hoje são deglutidos sem ninguém se dar conta da falsa voz de Ursula Andress”. Arriscando certa atualização na ideia de Drummond para 2015, o que se pode constatar é que o cinéfilo brasileiro não mais “deixou-se ficar em casa” para ver filmes dublados: ele os encontra

nos multiplexes com facilidade e frequência nunca antes tão intensas. Se, no passado, era restrita a animações ou infantis em geral, a dublagem agora se espalhou por todos os gêneros e para todas as faixas etárias. A presença maciça de filmes estrangeiros dublados em português nas salas comerciais de exibição no país e a opção da maior parte do público em assistir a eles têm sido constatadas semanalmente por qualquer frequentador assíduo de filmes, mas faltavam dados consistentes que relacionassem os dois movimentos. Em maio deste ano, a revista Filme B divulgou o resultado de uma pesquisa referente a 2014 que confirma a impressão. Dos 155 milhões de ingressos vendidos em salas de cinema no Brasil no ano passado, 59% foram para filmes dublados. O restante se dividiu entre 28% para filmes legendados e 13% para produções

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alguns focos de resistência de quem não aceita a predominância. A questão, porém, é muito mais prática e econômica do que às vezes aparenta: se existe demanda, continuará existindo oferta. A própria apresentação da pesquisa da Filme B aponta para alguns fatores: a ampliação do público nos últimos anos, com novos espectadores, principalmente das classes C e D; a tradição de filmes dublados na TV aberta, hoje recorrente também na TV paga; e a ascensão do 3D, formato mais difícil ao acompanhamento de legendas e mais propenso a oferecer filmes dublados, por estar, em sua maioria, dentro de um nicho comercial de superproduções. “Em 2007, as distribuidoras começaram a fazer testes, dublando filmes que não eram necessariamente animações ou infantis. Foram feitos lançamentos de versões dubladas e legendadas em um mesmo

O aporte do público das classes C e D, a ascensão do 3D e a cultural de dublados na TV são fatores de influência do cenário brasileiras. Um dado a ressaltar é que todos os 15 filmes mais vistos do ano foram ofertados em versões dubladas e legendadas, sendo Jogos vorazes – A esperança: Parte 1 o título de maior estreia (1.339 salas) e também o de maior oferta em versões dubladas (992). O Recife teve 3,8 milhões de pessoas nos cinemas em 2014 e aparece em sétimo lugar no ranking do público de filmes dublados: 1,9 milhão de ingressos (50% do total). No dos legendados, a capital pernambucana também está em sétimo, porém com taxas menores: 1,2 milhão de ingressos (31,4%). As capitais com maior percentual para versões dubladas são Manaus (AM) e Cuiabá (MT), com índices acima dos 70%. Os números não apenas confirmam a preferência dos frequentadores de cinema no país como apontam a sedimentação da oferta dos dublados no circuito, por maiores que sejam

cinema. Em várias praças, o saldo era surpreendente, com a dublada dando resultados muito superiores à legendada”, diz o jornalista e pesquisador Pedro Butcher, que vem apurando o mercado pelo portal Filme B há mais de 10 anos. Ele afirma que a digitalização dos equipamentos de projeção facilitou financeiramente a maior presença dos dublados. Se antes era necessário fabricar e transportar várias cópias em película 35 mm, encarecendo o processo, hoje basta ter dois arquivos digitais num mesmo HD para se definir como e em quais salas serão exibidas uma ou outra versão do mesmo filme. Butcher também percebe que o aumento na oferta dos dublados teve relação direta com a criação de novos espaços de exibição. Atualmente, o parque exibidor brasileiro conta com 2.870 salas comerciais. A Ancine (Agência Nacional do Cinema)

prevê que o número ultrapasse a marca de 3.000 até o fim do ano. “A consolidação dos resultados que fizemos no Filme B confirmou o que alguns profissionais de mercado vinham dizendo: a preferência pelo dublado veio principalmente das salas novas, construídas nas cidades do interior, periferias, ou até mesmo nas capitais onde havia poucas salas. Elas trouxeram também um público novo, acostumado a ver filmes e programas de TV em português”, aponta Butcher. Para o jornalista e crítico de cinema Marcelo Hessel, a dublagem hoje “funciona um pouco como ferramenta de inclusão social”. Por outro lado, ele não acredita que o motivo da preferência pelos dublados se deva apenas à maior inserção das classes populares no circuito de cinemas. “Em muitas interações online com leitores, independentemente de classe ou poder aquisitivo, percebo uma incapacidade generalizada de interpretação de texto ou mesmo de paciência de se ler alguma coisa até o fim”. Pedro Butcher concorda: “Lembro que, antes mesmo dessa tendência do dublado nos cinemas, e ainda quando a TV paga era privilégio das classes A e B, o Telecine começou a exibir filmes dublados por conta da demanda dos assinantes”.

NEGÓCIO RENTÁVEL

Financeiramente, o filme dublado tem sido um bom negócio. A pesquisa do Filme B mostra que a renda dos dublados foi de 57% do total em 2014, contra 32% dos legendados e 11% dos brasileiros. Entre os exibidores, a rede Cinemark, com aproximadamente 570 salas no país, espalhadas em 77 complexos, foi a campeã no posicionamento dos dublados, totalizando 50,6% de seus espectadores para estes filmes, ante 36,8% nos legendados. “A constante melhoria dos processos de dublagem otimizou o interesse do público pelo formato”, diz Betina Boklis, diretora de marketing da Cinemark. “A rede analisa, junto da sua equipe, a demanda de cada complexo para determinar quais salas receberão a versão dublada, legendada ou ambas as versões. Avaliamos resultados de filmes similares e experimentamos.”

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1 CULTURAL Países como a França naturalizam a dublagem de estrangeiros

Claquete

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Até mesmo redes exibidoras de títulos menos comerciais, como é o caso da Espaço de Cinema, têm se rendido à presença do filme dublado. “Já coloquei num mesmo circuito versões dubladas e legendadas de um filme. Com um, tive público de uns 2.000 espectadores; com o outro, 300 pessoas”, compara o programador Adhemar Oliveira, um dos nomes mais conhecidos no setor. “É claro que varia de cidade para cidade e de cinema para cinema, em alguns prevalecendo o filme dublado e, em outros, o legendado. Mas é questão de aderência. O público brasileiro está aceitando a dublagem com naturalidade, e isso não pode ser olhado com preconceito.” Para Butcher, o grande problema do atual cenário surge a partir do momento em que o mercado pende para apenas um lado, eliminando (ou quase) os filmes legendados de suas cartelas de opções em prol da busca pelo ganho mais garantido do filme dublado. “Nas cidades do interior e nas periferias, principalmente, a oferta de legendados tende a ser mínima ou nenhuma, o que certamente é uma sacanagem com quem prefere ver filme na língua original”. Ele ainda vê como “uniformização perigosa” a padronização de determinados nichos de programação, pasteurizando o

O problema da ascensão da dublagem é a tendência do mercado pender para a eliminação dos legendados circuito a partir de desempenhos específicos e diminuindo a variedade de oferta. “Muitas vezes, ao não ofertar determinado filme ou determinada versão do filme, o exibidor está praticamente empurrando aquele que seria seu consumidor mais fiel, o amante de cinema, para a pirataria.” O fantasma do filme pirata é, de fato, uma realidade dentro de um mercado que passa a ofertar apenas o tipo de produto que agrada à maioria, em detrimento da preferência de fatia significativa (ainda que menor) que não se vê contemplada. O resultado pode ser o afastamento de uma parcela do público de filmes comerciais nos cinemas e a transformação das salas alternativas em espécies de “templos” do filme legendado, já que, nesses espaços, o espectador habitual tende a ser mais fiel e cativo. “Pelo histórico do que acontece na Europa, onde a questão do protecionismo cultural é

mais latente e a regra é dublar os filmes nas línguas locais, a tendência é que, ao ouvir seu idioma na tela, o público se habitue a isso”, analisa Marcelo Hessel. “Ao mesmo tempo, a oferta de filmes em outras mídias e a oportunidade de assistir a um filme legendado (clandestinamente ou oficialmente) em casa pode tornar a dublagem ainda mais hegemônica nos multiplexes.” Adhemar Oliveira fez recentemente o experimento inverso, para avaliar como seu público se comporta: enquanto todas as grandes redes exibiam a animação Divertida mente em versões dubladas e em 3D, ele lançou, em pleno Espaço Unibanco da Rua Augusta, em São Paulo, uma cópia do filme legendada e em 2D. “Funcionou muito bem, porque é claro que existe a demanda”, afirma.

EUROPA E EUA

O cenário controverso do filme dublado no Brasil não encontra paralelos em países de cinematografias e circuitos mais desenvolvidos, como na Europa e nos EUA. No primeiro caso, países como França, Espanha e Itália têm a dublagem como base, sendo raridade encontrar produções estrangeiras no som original e com legendas – muitas vezes, eles estão apenas em salas alternativas, fora do circuitão. “É curioso como o mercado brasileiro cresceu e se tornou mais parecido com esses mercados chamados ‘maduros’, quer dizer, os países europeus, onde o cinema não tem mais muito como crescer e onde a dublagem é a regra pelo menos desde os anos 1960”, compara Pedro Butcher. No caso dos EUA e da Inglaterra, a questão é diferente. Ambos os países possuem circuitos nos quais predominam os filmes falados em inglês, o que evidentemente afasta a legendagem e a dublagem. “Quando você não lê legendas, há melhor fruição das imagens e do ritmo do filme. O filme sem legenda seria sempre a melhor opção, mas, no Brasil, ninguém assiste só ao que é feito em sua própria língua, como nos EUA”, diz Adhemar Oliveira.

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INDICAÇÕES Historicamente, o filme estrangeiro dublado em português sempre gerou polêmica no Brasil. Em 1929, os primeiros longas-metragens sonoros começaram a ser lançados nas salas locais e, três anos depois, a legenda já tinha se tornado o padrão. “A dublagem em português também foi experimentada nesse período, mas vários motivos resultaram em seu abandono. Os custos mais altos do processo e a rejeição à substituição das vozes originais dos atores foram duas das principais razões”, escreve o pesquisador Rafael de Luna Freire, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), no artigo Dublar ou não dublar: A questão da obrigatoriedade de dublagem de filmes estrangeiros na televisão e no cinemas brasileiros, publicado na revista acadêmica Famecos no final de 2014. “As primeiras experiências de dublagem em português de cópias exibidas no Brasil foram realizadas no exterior, o que gerou críticas. Não havia então a possibilidade de realizar no país a dublagem das centenas de filmes estrangeiros importados anualmente.” Na pesquisa, Rafael de Luna encontrou a inusitada história do senador Geraldo Lindgren, que propôs, em 1960, o Projeto de Lei nº 37/1960, cuja base era de que “os filmes editados no estrangeiro sejam gravados no Brasil, na língua portuguesa e, bem assim, determina que o fundo musical ou partes musicadas sejam também gravadas por orquestra brasileira”. Demonstrando senso de imposição elitista e autoritária a um tipo

específico de defesa nacionalista, o texto do senador registrava que, com a dublagem, “nossos patrícios de todos os rincões terão oportunidade de travar um íntimo contato com o vernáculo correto e quase sem variações prosódicas, ao mesmo tempo que será uma oportunidade para formarse um vocabulário mais seleto para toda a população brasileira”. Em 1961, o projeto de Lindgren foi arquivado, após enfrentar forte oposição da sociedade civil e da imprensa. Curiosamente, apenas um ano depois, em 1962, o governo editava o Decreto nº 544, que obrigava as emissoras a dublarem filmes e programas estrangeiros na TV brasileira. Conforme constata a pesquisa de Rafael de Luna, a medida não enfrentou nenhum tipo de oposição do mercado ou do público, consolidando a dublagem na televisão como algo naturalizado e propiciando a criação de diversas empresas especializadas neste tipo de serviço, como a Herbert Richers e a Álamo, entre dezenas de outras. “Enquanto o cinema já tinha alcançado estatuto definitivo de ‘sétima arte’, a televisão, como um meio ‘menor’, seria teoricamente voltada para um público menos exigente, para o qual a dublagem não causaria tanta repulsa estética”, diz Freire. Em 1971, outro projeto de obrigatoriedade de dublagem dos filmes estrangeiros nos cinemas surgiu sob autoria do deputado federal Léo Simões, fincado mais em questões econômicas do que nacionalistas. Esta nova proposta também foi arquivada, em 1975.

BOX

CASA GRANDE

A ARTE DE ANDREI TARKÓVSKI

Primeiro longa-metragem do carioca Fellipe Barbosa, o autobiográfico Casa grande conta a história do amadurecimento de Jean, garoto de família rica que está prestes a concluir o Ensino Médio e vivenciando seus primeiros relacionamentos amorosos típicos da idade, enquanto seu pai tenta esconder a falência da família. De modo sutil e bem-humorado, o longa aborda questões de classe e privilégio na sociedade brasileira.

Contendo dois DVDs, a coleção reúne três obras em versões restauradas do diretor russo: Nostalgia (1983), sobre a jornada de um poeta russo que vai à Itália pesquisar sobre um músico que se suicidou durante o exílio; A infância de Ivan (1962), sobre um menino de 12 anos trabalhando como espião no front soviético, e O espelho (1975), que retrata a história de um homem à beira da morte. O box inclui o doc Tempo de viagem.

NACIONAL

Dirigido por Fellipe Barbosa Com Marcelo Novaes, Suzana Pires, Thales Cavalcanti Imovision

Dirigido por Oleg Yankovskiy, Erland Josephson e Domiziana Giordano Com Oleg Yankovskiy, Nikolai Burlyaev, Margarita Terekhova Versátil Home Vídeo

GUERRA

DOCUMENTÁRIO

Dirigido por Jean-Pierre Melville Com Lino Ventura, Paul Meurisse, Simone Signoret Versátil Home Vídeo

Dirigido por Miriam Chnaiderman Com Dudu Bertholini, Laerte, Ney Matogrosso Imovision

O EXÉRCITO DAS SOMBRAS

Baseado no romance de Joseph Kessel, a obra-prima de JeanPierre Melville, O exército das sombras, retrata o cotidiano de tensão e heroísmo anônimo vivido pelos soldados combatentes da Resistência Francesa durante a década de 1940, liderados pelo engenheiro civil Philippe Gerbier, que cumpre duras missões de enfrentamento à ocupação nazista. O filme encerra a trilogia da Resistência francesa de Melville.

DE GRAVATA E UNHA VERMELHA

Vencedor do Prêmio Felix de Melhor Documentário no Festival do Rio 2014, o documentário de Miriam Chnaiderman visa, mais do que se aprofundar em questões do universo LGBT, ressaltar a diversidade existente no meio através de depoimentos de personalidades como Laerte , Ney Matogrosso, Rogéria, Johnny Luxo, Candy Mel, entre outras, tratando de temas relacionados à construção do corpo, suas histórias de vida, seus medos.

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CON TI NEN TE

Criaturas

Grande Otelo por Paffaro

Sebastião Bernardes de Souza Prata (1915-1993), mais conhecido como Grande Otelo, era o que se podia

chamar, sem medo, de multiartista. Foi compositor, comediante, cantor, escritor e ator. Mas destacou-se mesmo como um versátil intérprete no teatro, na TV e no cinema. Dos mais de 100 personagens que encarnou, um marcou-o para sempre: Macunaíma. A alma do icônico personagem de Mário de Andrade ganhou um corpo definitivo.

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O Real Hospital Português faz parte da história dos pernambucanos. São 160 anos de respeito e principalmente de cuidado. O pioneirismo do seu corpo médico e os constantes investimentos na modernização dos seus equipamentos e da sua estrutura transformaram o Hospital Português no mais completo centro de excelência médica do Norte e Nordeste. Tudo isso contribuiu para transformar Pernambuco no 2º maior polo médico do Brasil.

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CINEMA

OS TEMAS, MODOS DE CRIAÇÃO E A ESTÉTICA DA PRODUÇÃO NACIONAL

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CONTINENTE Maeve Jinkings, no filme Boi neon, de Gabriel Mascaro

WALTER SALLES FALA SOBRE DOC FILMADO NA CHINA

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