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#179 ano XV• nov/15 • R$ 10,00
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CONTINENTE
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AMOR PELOS LIVROS
BIBLIOFILIA AINDA É PRATICADA EM TEMPOS DE DIGITALIZAÇÃO
CONVERSA
ARQUITETOS DISCUTEM A PERDA DE PROTAGONISMO NOV 15
E MAIS BERNA REALE | MINSK | CÍNTIA MOSCOVICH | ARTE CUBANA | KARINA BUHR | UMAMI, O QUINTO SABOR | LITERATURA HOLANDESA CAPA_nov 2015_FINAL.indd 1
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Quantos anos de dor vale um segundo de descuido?
Vença o preconceito.
Mais de 40 mil crianças desaparecem por ano no Brasil. A maioria dos casos ocorre em frações de segundos, num instante de distração do responsável. Veja como evitar que a sua criança seja mais uma desaparecida:
• Oriente para que ela não fale nem saia com estranhos, nem aceite alimentos deles. • Tenha a atenção redobrada quando estiver com ela em local público. • Ensine a ela o nome completo e o telefone dos responsáveis.
CRIANÇAS DESAPARECIDAS. SUA ATENÇÃO É A MELHOR FORMA DE PREVENIR.
PARA DENÚNCIA, DISQUE 100 IMEDIATAMENTE.
Em caso de desaparecimento:
Ligação gratuita 24h
denuncie, imediatamente, à polícia e faça o Boletim de
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Ocorrência. Por lei, a busca
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Provedor do Real Hospital Português:
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pela criança começa logo Alberto Ferreira da Costa após a denúncia. Diretora Técnica / Médica:
Dra. Maria do Carmo Lencastre CRM-PE 8325
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Se você tem mais de 40 anos, previna-se contra o câncer de próstata. No Real Hospital Português, você conta com uma equipe médica especializada no setor de Urologia, além de modernos equipamentos para a realização de exames.
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Quantos anos de dor vale um segundo de descuido?
Em caso de desaparecimento:
PARA DENÚNCIA, DISQUE 100 IMEDIATAMENTE. Ligação gratuita 24h
denuncie, imediatamente, à polícia e faça o Boletim de Ocorrência. Por lei, a busca pela criança começa logo após a denúncia.
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IMAGENS: REPRODUÇÃO
aos leitores Que tipo de relação você mantém com os livros? Prefere as edições de bolso, mais em conta; busca novas edições, com prefácios, comentários críticos; presta atenção – no caso dos estrangeiros – no autor da tradução; não pode saber do lançamento de uma edição luxuosa, design caprichado, que vai correndo adquirir o seu; ou é “rato” de sebos, sempre em busca de um exemplar raro? Você é apegado aos seus exemplares, metódico na sua guarda e arrumação; ou se considera desprendido, pois assim que acaba de ler já quer passar o volume adiante, para espalhar a leitura? É possível que você se identifique com mais de uma dessas características, e enumere outras mais a esse respeito. Nesta edição, somos todos bibliófilos, porque cultivamos o amor aos livros, esses objetos feitos somente de papel e tinta. Na nossa matéria de capa, estamos junto – pelo menos em intenção, se não em bens – de espíritos como o de José Mindlin (1914-2010), que foi um dos maiores bibliófilos do Brasil, tendo legado às atuais gerações um acervo precioso de livros, hoje sob a guarda da USP, na Biblioteca Brasiliana Guida e José Mindlin. No final da década de 1990, o empresário paulista publicou Uma vida entre livros, em
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que conta a sua relação com obras literárias, autores, editores. Numa apresentação bem honesta, ele escreve: “O livro exerce uma atração multiforme, que vai muito além da leitura, embora esta seja um ponto de partida fundamental. Em primeiro lugar, existe sempre a ilusão de que se vai conseguir ler mais do que na realidade se consegue. Depois vem o desejo de ter à mão o maior número possível de obras de um autor de quem se gosta – já é o começo de uma coleção. Conseguindo o conjunto, que sempre se quer o mais completo possível, surge o interesse pelas primeiras edições, geralmente raras, e a atração pelo livro como objeto, e também como objeto de arte, em que entra a qualidade do projeto gráfico, a ilustração, a diagramação, o papel, a tipografia, a encadernação”. Como um “viciado”, ele conclui esse raciocínio dizendo que, ao final, esse leitor estará “irremediavelmente perdido”, tendo com esses objetos uma relação “quase patológica”. É neste caminho que segue nossa matéria de capa, observando tal comportamento que – estranhamente, na sociedade digital – sobrevive, dandonos a alegre impressão de que bibliotecas fenomenais estão a se formar por aí.
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sumário Portfólio
Berna Reale 6
Continente Online + Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Cíntia Moscovich Autora gaúcha fala sobre o livro que está produzindo, uma ficção em que aborda sua experiência com o câncer
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Balaio
Mercado de arte Ao contrário do que se podia pensar inicialmente, a venda de obras artísticas não arrefeceu no Brasil da crise
Cardápio
Sabores Doce, salgado, azedo, amargo e… umami. Conheça as características deste quinto sabor e quais os alimentos que melhor expressam suas qualidades
Acessibilidade Coletivo Lugar Comum investe em oficinas voltadas para pessoas com limitações físicas, num trabalho que teve início com o espetáculo Leve
Nos trabalhos viscerais da artista paranaense, além da presença cênica, prevalecem noções de poder, violência, miséria e contradições
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Visuais
Casa Daros Com uma exposição composta de 130 obras de artistas de Cuba, galeria de arte instalada no Rio de Janeiro encerra atividades no Brasil
Matéria Corrida José Cláudio Arte local
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Leitura
78
Entremez
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Criaturas
Sonoras
Karina Buhr Enquanto apresenta seu primeiro livro, artista lança terceiro álbum solo, Selvática, no qual aprofunda relações com o rock provocador
Palco
A Holanda no Brasil Lançamento de obras de autores holandeses mostra o quanto aquela sociedade é cheia de máculas e transtornos como a nossa
Ronaldo Correia de Brito A rosa púrpura do Recife
Alain Delon Por Cau Gomez
Claquete
Viagem
Horror queer Pesquisadores observam em clássicos do terror alegorias da “monstruosidade” homossexual dentro da sociedade heteronormativa
Minsk
Capital da Bielorrússia, país que integrou o bloco soviético, oferece ao visitante uma variedade de itens do realismo socialista, sobretudo no acervo arquitetônico
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CAPA FOTO Trevor Dixon/Glasshouse Images/Corbis/Latinstock
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Capa
Conexão
O que costumamos chamar de “amor aos livros”, e que leva pessoas a criar imensas bibliotecas, tem se constituído um gesto de salvaguarda do patrimônio intelectual
Facilitadas pelas tecnologias, novas formas de prestar serviços, como Uber (transporte) e a Airbnb (hospedagem), põem em xeque formas tradicionais de negócios
História
Conversa
Pesquisa da jornalista Clarice Hoffmann reúne fichas policiais feitas entre os anos 1934 e 1958 com artistas e estrangeiros que chegavam ao Recife
Profissionais que atuam nas universidades, em escritórios e junto ao poder público discutem questões que consideram prementes hoje
Bibliofilia
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Obscuro fichário
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Colaborativos
32
Nov’ 15
Arquitetura
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neste mês BIBLIOFILIA
KARINA BUHR
Nesta edição, dedicamos nossa capa ao gesto de amar os livros. Como extra ao material impresso, oferecemos online dois itens: o saboroso texto As obsessões de um bibliófilo, com o qual José Mindlin apresenta o seu livro Uma vida entre livros - Reencontros como o tempo (Edusp/Cia das Letras, 1997), e o perfil da guardiã dos livros do paulista (morto em 2010), Cristina Antunes (foto), publicado em agosto de 2009, edição 104. Ela foi responsável pela coordenação da digitalização do acervo do empresário, que hoje constitui a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
Assista ao show que a artista realizou no projeto Som na Rural, apresentado por Roger de Renor. O evento aconteceu no Largo do Paissandu, em São Paulo.
ARTE CUBANA Veja galeria de imagens com obras de artistas que compõem o acervo da Casa Daros (Rio de Janeiro), assunto de destaque da seção Visuais desta edição.
cartas DIEGO DI NIGLIO
PORTFÓLIO
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE
Queria agradecer a Adriana Dória Matos pela matéria sobre minha trajetória e meu trabalho na África (Portfólio, julho, nº 175). Gostei bastante da edição das imagens, e fiquei emocionado com o texto, que chegou à essência do meu processo pessoal de vida e viagem na África e o desenvolvimento da fotografia com minha forma de expressão predileta. Parabéns sinceros pela capacidade de entender e saber expressar em textos, de forma tão natural, as histórias e suas entrelinhas.
O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140).
DIEGO DI NIGLIO OLINDA – PE
CALABAR E A TRAIÇÃO POLÍTICA Ótima matéria da revista Continente. Todavia, faço uma ressalva a uma fala atribuída a mim, página 29, pois nunca foram encontradas evidências de que Calabar fosse um senhor de engenho(s). Era uma figura obscura, talvez até comerciante, mas de forma alguma um grande proprietário. Eu não disse isso. Se ele fosse senhor de engenho, teríamos muito mais dados sobre ele e sua
família, e não precisaria pedir auxílio financeiro para a Companhia das Índias Ocidentais após sua morte, como se verifica em uma Ata Diária do governo neerlandês de 13 de abril de 1636, quase nove meses depois de sua execução. BRUNO MIRANDA RECIFE – PE
DO FACEBOOK Na contramão de tanto lixo que se diz “revista”, a Continente se destaca pelo primor na edição de arte, pela pauta sempre moderna
e pelo brilhantismo de jornalistas como Luciana Veras, que, aliás, assina a instigante matéria de capa (Traição & Política) da edição de agosto. Revista massa! BRENO PEREZ RECIFE – PE
ERRATA O nome correto da peça de autoria do dramaturgo e ator cearense Gero Camilo é Caminham nus empoeirados, citada em matéria publicada na seção Palco da edição de setembro/15 (nº 177).
As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
(81) 3183 2780
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colaboradores
Cau Gomez
Priscilla Campos
Renata do Amaral
Ronaldo Bressane
Cartunista, chargista, ilustrador, artista gráfico, design gráfico e artista visual
Jornalista cultural com foco em literatura. Escreve para o site Fuga para Oeste
Jornalista, professora, doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural
Jornalista e escritor, publicou, entre outros, os livros Céu de Lúcifer e O impostor
E MAIS Lucas Colombo, jornalista gaúcho, editor do site Mínimo Múltiplo. Marcelo Abreu, jornalista, autor dos livros De Londres a Kathmandu e Viva o grande líder – Um repórter brasileiro na Coreia do Norte. Yellow, designer gráfico, músico, professor e mestre em Ciências da Linguagem.
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO
SUPERINTENDENTE DE EDIÇÃO
CONTINENTE ONLINE
ATENDIMENTO AO ASSINANTE
GOVERNADOR
Adriana Dória Matos
Olivia de Souza (jornalista)
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Paulo Henrique Saraiva Câmara
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SECRETÁRIO DA CASA CIVIL
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Fone/fax: (81) 3183.2750 CONTATOS COM A REDAÇÃO
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E CIRCULAÇÃO
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(tratamento de imagem)
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Tarcísio Pereira
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(supervisão de diagramação e ilustração)
Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
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CÍNTIA MOSCOVICH
“Há duas coisas infinitas e eternas: Deus e o clichê” Escritora porto-alegrense fala sobre processos produtivos, questões polêmicas do mundo literário, sobre a influência da matriz judaica nos seus enfoques e inflexão, e de como o humor a ajudou a enfrentar, recentemente, um câncer nas amídalas TEXTO Lucas Colombo
CON TI NEN TE
Entrevista
Cíntia Moscovich recebeu a
Continente em sua simpática casa azul de floreiras sob as janelas, no Bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, num dia nublado de inverno. Nuvens cinzentas também pairaram sobre a vida da escritora, pouco tempo atrás. Em 2008, concluídos 30% de um livro de contos, ela recebeu diagnóstico de câncer nas amídalas, contra o qual passou por tratamento severo até 2012. Curada, terminou e lançou o trabalho que a doença interrompera: Essa coisa brilhante que é a chuva, ganhador do Prêmio Portugal Telecom de 2013 e bemrecebido por crítica e público. No livro, Cíntia oferece contos que, embora convencionais na forma, prendem o leitor pela universalidade das suas tramas familiares e urbanas, envoltas por uma atmosfera que mistura melancolia e esperança. A temática judaica, uma das suas preferidas (ela é descendente de imigrantes judeus), aparece em algumas das histórias, bem como nas de outra reunião premiada de contos seus, Arquitetura do arco-íris (2004). Sua lista de obras contém ainda os romances Duas iguais (1998) e Por que
sou gorda, mamãe? (2006). São também romances os dois próximos livros nos quais trabalha. Um já está pronto. Baleiaassassina é uma narrativa infantojuvenil que, inicialmente criada para uma série sobre sustentabilidade da editora DSOP, será lançada em 2016. O outro, adulto, ainda não finalizado, é inspirado na convivência da autora com o câncer. Porto-alegrense nascida em 1958, Cíntia comanda, na capital gaúcha, uma oficina anticlichês de escrita e mantém uma coluna no jornal Zero Hora, na qual, por vezes, dispara corajosa contra a tropa do politicamente correto. Nesta entrevista, fala dessas atividades, dos novos projetos, questões polêmicas do mundo literário e como o humor a ajudou a enfrentar a doença séria. Também não se furta a comentar outro período nebuloso, este ainda sem dia de sol à frente: o que o Brasil atravessa. CONTINENTE Como foi escrever para adolescentes? O americano John Green, do best-seller A culpa é das estrelas, disse que escreve da perspectiva de adulto, não tenta “se passar” por adolescente, para não soar caricato. CÍNTIA MOSCOVICH Já tive uma
experiência anterior, com um livro de encomenda chamado Mais ou menos normal. Mas sempre tive uma narrativa mais de inação, reflexiva, paradona mesmo. Me ocorreu fazer “escaleta”, como num roteiro: a decupagem das ações que vão acontecer. Então, assumi a narrativa sem me preocupar se ia narrar do ponto de vista adulto ou adolescente. Não gostaria de fazer essa discriminação. Mas sabia que tinha de ter cuidado com a linguagem. Afinal, a linguagem que se usa para um adulto não é a que se usa para outro público. Isso não significa que é bom ou ruim, mas que é preciso agilizar a leitura. O approach para escrever tem que ser menos rebuscado em termos de linguagem e mais ativo em termos de ação. CONTINENTE Ao criar uma história com sustentabilidade como tema de fundo, procurou evitar certo romantismo “verde”? CÍNTIA MOSCOVICH (risos). Justamente. O medo que eu tinha, quando aceitei escrever o livro, foi de virar “ecochata”. Aí criei a história de um guri que tem uma mãe assim, dessas que recolhem lixo… E ele tem
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CLEBER PASSUS/DIVULGAÇÃO
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dessa merda. Câncer de amídalas é muito singular, geralmente dá em homens que fumam e bebem. Mas meu tratamento começou com cena de comédia-pastelão. No consultório, o médico foi retirar um pedaço da minha amídala para examinar. Aparecia na tela. Então ouvi passinhos, barulhinho de porta abrindo, um baque e mulheres gritando. Meu marido desmaiou! E ele é cardiopata. Saímos eu e o médico, com minha amídala numa pinça, e o vimos no chão. O médico disse que era só um susto.
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ojeriza à história da mãe. O pai é engenheiro, constrói prédios, derruba árvores. Eles têm uma discussão à mesa, o pai diz: “Mas tem que derrubar, paciência. Eu tive que derrubar um ipê para construir nossa sala de jantar”. A civilização é uma sinuca de bico, né? Pus no livro essas discussões que me tiram do enfoque mais radical, panfletário, porque tenho horror a isso. Mas também, como a série era sobre sustentabilidade, e eu tinha que dar uma força para o pessoal “verde”, não pude desprezar a questão.
CON TI NEN TE
Entrevista CONTINENTE Já terminou o romance sobre a convivência com o câncer? CÍNTIA MOSCOVICH Não encontrei o tom ainda, mas estou produzindo, penso nele o tempo todo. O problema é que, assim como evitei o panfleto no Baleiaassassina, quero evitar nesse. Quando se fala de doença e morte, a tendência é se lastimar, e deprimir o leitor. Mas não quero que seja sofrido para ler – porque será sofrido para escrever. Quero humor. Durante o tratamento, houve episódios ridículos, e talvez tenha sido esse lado ridículo que me fez vencê-lo. CONTINENTE O humor judaico, esse mais irônico, autodepreciativo, ajudou você a enfrentar o câncer como historicamente ajudou o povo judeu a enfrentar adversidades? CÍNTIA MOSCOVICH Sempre tive esse lado autodepreciativo, sem saber que era o tal humor judaico (risos). Fui criada nesse ambiente. Mas, quando fiquei doente, pensei: não vou rir
Mas meu marido quebrou a patela ao cair, teve que passar dias imobilizado. O médico depois me falou: “Não traz mais ele aqui. Tu precisas de uma pessoa forte ao teu lado”. “Mas, doutor, é meu marido!” (risos). “Não, é melhor que não venha.” Houve episódios dramáticos, claro, mas esse é sensacional. Jamais inventaria uma história tão maluca. E é esse lado que quero abordar no livro. CONTINENTE Em Essa coisa brilhante que é a chuva, você pôs citações de Woody Allen e Moacyr Scliar. A leitura de autores judeus é constante? CÍNTIA MOSCOVICH Citei o Scliar porque ele tinha falecido recentemente, e fiquei muito sentida. A frase do Woody eu acho maravilhosa. Como o livro foi publicado depois do meu câncer, não existia frase que definisse mais o momento que eu vivia (“A vida não imita a arte, imita programas de TV ruins”).
CONTINENTE O conto Bonita como a Lua, de Arquitetura do Arco-Íris, é a história da sua infância? CÍNTIA MOSCOVICH Em grande medida, é parecida com a minha. Histórias com personagens infantis são cheias de autorreferência. Cheias. A minha infância não foi tão perfeitinha quanto. Os pais dela são superqueridos, os meus eram mais “de verdade”, com um pouco mais de crueldade, mas isso é normal. CONTINENTE Você nunca escreveu poesia? CÍNTIA MOSCOVICH Comecei
“A frase do Woody Allen é maravilhosa. Como publiquei o livro depois do meu câncer, não existia frase que definisse mais o momento que eu vivia (‘A vida não imita a arte, imita programas de TV ruins’)” escrevendo. Muito pequena, já lia Pessoa, Bandeira, Vinicius, Drummond. Era boa leitora de poesia e sempre quis escrever. Mas tinha a ideia e, quando ia por no papel, parecia que se esfacelava. Escrevia porcaria. Tinha noção de que o que eu lia era bom e o que escrevia, não. CONTINENTE Pretende retomar, um dia? CÍNTIA MOSCOVICH Não! Só retomei uma vez para ganhar dinheiro. Uma fábrica pediu para imprimir poemas em papel comestível. Até fiz. Mas sei que aquilo tem que ir para a privada, mesmo… Só quando fui para a prosa, com 35 anos, consegui fazer algo que, mais ou menos, me agradasse. Sou neurótica. Não tenho condescendência comigo mesma. CONTINENTE E com os outros? Com clichês, por exemplo, contra os quais você ministra oficina?
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CÍNTIA MOSCOVICH Há duas coisas infinitas e eternas: Deus e o clichê. Tem pessoas que falam por clichê. É algo inescapável, pois é usado para facilitar a comunicação diária. São fórmulas prontas que ajudam. Propaganda usa clichê, narração de futebol usa, texto de novela usa. Mas literatura é outra coisa. O primeiro exercício da oficina é de “desobsessão” – peguei o título emprestado do espiritismo, aquilo de fazer com que o espírito “te deixe”. Eles escrevem um texto com todos os clichês possíveis, e a partir disso nunca mais vão usar.
livro não presta, não preciso demoli-lo. Naturalmente, o tempo vai fazer com que ele se perca.
CONTINENTE Por que a ficção brasileira, hoje, raramente entra na lista de mais vendidos? CÍNTIA MOSCOVICH Vou usar um clichê: “Santo de casa não faz milagre” (risos). Ninguém aqui faz o que o John Green faz, por exemplo. Lidar com um tema como o câncer com simplicidade, sem pretensão. Nós, e me incluo nisso com tranquilidade, ainda somos pretensiosos. E literatura mais elaborada é vista pelas pessoas como algo rançoso. Só leitores vocacionados se aventuram em livro de autor brasileiro.
“Obras ruins, o tempo consome. Não preciso colaborar para que desapareçam. Se um livro não presta, não preciso demolilo. Naturalmente, o tempo vai fazer com que ele se perca”
CONTINENTE Você tem explicação para o fenômeno Cinquenta tons de cinza? Leu? CÍNTIA MOSCOVICH Cheguei a ler. Achei jardim de infância… Foi sucesso porque tudo que diz respeito a sexo cola bem. Mas é difícil descrever sexo. Dificilmente se foge do “membro túrgido”, “botão do prazer”… e naquela porcaria tem tudo isso. Nenhuma cena bonita, erótica… Só aquela coisa sadomasoquista. A Tiazinha era mais encantadora. CONTINENTE E os livros de colorir, que tal? CÍNTIA MOSCOVICH Eu gosto, tenho um. Acho legal, nada contra. Por que ser contra diversão? As pessoas podem ler Machado e colorir livro. Não vejo antagonismo. Não é por ter livro de colorir que as pessoas vão parar de ler. CONTINENTE Quando você escreve sobre outros escritores, é em tom positivo. Por que você, como a maioria dos autores brasileiros, não costuma criticar obras de colegas conterrâneos? CÍNTIA MOSCOVICH Porque obras ruins o tempo consome. Não preciso colaborar para que desapareçam. Se um
CONTINENTE Mas concorda que há espírito de patota no meio literário brasileiro? CÍNTIA MOSCOVICH Concordo. Não sei quem é a patota, mas concordo. E não é diferente do meio dos advogados, médicos, jornalistas. As pessoas procuram seus iguais porque têm inquietações semelhantes. Nem tudo é patota, “galera”. Vejo virtudes no meu colega e falo delas. Quero que as pessoas
também leiam. Não estou fazendo favor a ninguém. Me recuso a bater numa obra e também me recuso a elogiar porcaria, pois isso depõe contra mim. Se um amigo publica um livro ruim, prefiro não tocar no assunto. CONTINENTE Arnaldo Jabor declarou que adorou virar cronista, nos anos 1990, pois passou a se “sentir útil”: influenciava debates mais do que quando era só cineasta. Colunas suas já geraram controvérsia. O conteúdo das reações dos leitores, tão rápidas nestes tempos de internet, já lhe fez se sentir útil ou inútil? CÍNTIA MOSCOVICH Na maior parte das vezes, muito útil. No jornal, quando posso incomodar, ah, incomodo. No sentido de querer fazer pensar. Pois estou nos achando muito “manada”. As pessoas não têm opinião própria. Não sabem o que estão falando. CONTINENTE Em 2014, você escreveu que o conflito Israel-Gaza estava servindo
como desculpa para antissemitismo. Neste ano, criticou a atitude da parte da militância negra que quer conquistar direitos no grito. Já se sentiu discriminada no meio literário brasileiro, majoritariamente crítico às ações de Israel e pró-cotas raciais? CÍNTIA MOSCOVICH Nunca. Uma vez, no entanto, num Portugal Telecom, presenciei algo não diretamente contra mim. Não vou dizer os nomes porque são pessoas conhecidas no meio. O livro em questão era um de poemas do Nelson Ascher, grande poeta, grande pensador, e judeu. Eu era a única judia do grupo. Mas o pessoal da Unicamp, da USP… meu amigo, é troço de maluco. Muito inflexíveis. Pomos em votação se o livro entraria na categoria poesia. E a senhora da USP disse: “Não posso votar nele porque ele é contra os palestinos”. E a da Unicamp: “Ah, não posso votar, o cara tem uma posição muito antagônica ao povo palestino”. E eu: “Peraí: estamos avaliando obras, o cara tem a posição que quiser, não se pode usar isso como parâmetro literário, não pertence à discussão”. Aí acabou. Ninguém mais falou sobre isso. Não sei se evitam falar perto de mim, porque eu vou pra cima, ou se realmente respeitam. CONTINENTE A poeta Adélia Prado disse que os artistas/escritores estavam omissos diante da situação política brasileira, deveriam criticar mais a corrupção. Estão? CÍNTIA MOSCOVICH Não creio. O escritor tem compromisso com o tempo dele, mas as pessoas confundem: acham que ele tem que entender de tudo, até de política. Não creio que escritores tenham de sair dando palpite, defender ou atacar Dilma. Todos, como cidadãos, têm um papel no tecido social, inclusive como formadores de opinião. Estamos omissos não como escritores, mas como povo, como nação. CONTINENTE Os adolescentes que lerem seu livro novo serão a primeira geração em 20 anos a viver uma crise? CÍNTIA MOSCOVICH Não tinha me dado conta disso! A crise que minha geração viveu, no fim da ditadura, foi mais punk que a de agora, mas resultou em coisa boa: todo mundo parava e refletia acerca da realidade. Quem sabe essa crise não sirva para um amadurecimento da democracia, uma valorização real do conhecimento, da cultura. Tomara.
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CORTESIA DA ARTISTA E DA GALERIA NARA ROESLER/DIVULGAÇÃO
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IMAGENS: CORTESIA DA ARTISTA E DA GALERIA NARA ROESLER/DIVULGAÇÃO
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Berna Reale
BREVES NARRATIVAS ÉPICAS TEXTO Luciana Veras
Domingo, 9 de outubro de 2015: transcorria o Círio de Nazaré em Belém e, em meio
a dois milhões de pessoas, Bernadete de Lourdes Guerreiro Reale envergava o colorido fardamento da guarda suíça do Vaticano. O figurino, cujo desenho original é de Leonardo da Vinci, fora cerzido por sua mãe, Conceição. Segurando uma bandeira com as cores do arco-íris, inconfundível símbolo LGBT, a artista visual paraense caminhou por quatro horas na “maior procissão católica do mundo” para gravar imagens de Promessa. “Não queria vilipendiar a tradição da Igreja, mas propor uma reflexão sobre a hipocrisia e tudo que é escamoteado”, resume. Ao inserir Berna Reale como um elemento exógeno em uma paisagem urbana, Promessa não diferirá, em síntese, do vídeo Americano (2013), em exibição na mostra É tanta coisa que não cabe aqui, no pavilhão brasileiro da 56ª Bienal de Veneza; das imagens de Cantando na chuva (2014) e Soledad (2013); ou de Habitus (2015), em exposição no atual 34º Panorama da arte brasileira, no MAM/ SP, do qual ela participa ao lado de Cao Guimarães, Cildo Meirelles, Erika Verzutti, Miguel Rio Branco e Pitágoras Lopes Gonçalves. E não será apenas sua presença cênica o elo entre seus trabalhos: em todos, noções de poder, violência, miséria e contradições se imiscuem para criar breves porém épicas narrativas – ora em série de imagens, ora em vídeos – sobre o Brasil contemporâneo. Sua arte evoca questões sociais, políticas e culturais das quais boa parte dos debates atuais tende a desviar. Mas Berna Reale não se considera panfletária: “A polaridade poder e miséria é recorrente no
Página anterior 1 PALOMO
O vídeo foi um dos destaques da individual Vazio de nós, em 2013
Nestas páginas
2 ÁFRICA Obra faz parte do projeto Precisa-se do presente, em que ela trabalha com países do Brics 4 HABITUS Obra está no 34º Panorama da Arte Brasileira (MAM-SP) 4 IML Sua imersão neste ambiente lhe rendeu trabalhos como Habitus
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MANUELLA RESLE/DIVULGAÇÃO
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IMAGENS: CORTESIA DA ARTISTA E DA GALERIA NARA ROESLER/DIVULGAÇÃO
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Portfólio
meu trabalho e vai me interessar sempre porque é a realidade. Sou uma artista do presente e me contamino por ele”. Sua trajetória poderia ter sido bem diferente. Nascida na capital paraense, “perto do Ver-o-Peso, onde moro até hoje”, quis cursar Medicina. De uma amiga, ouviu falar do curso de Educação Artística. Aprovada na UFPA, atravessou a seara acadêmica sem muito deleite. “Não foi dentro da faculdade que descobri o gosto pela arte, e, sim, ao frequentar aulas de cerâmica na periferia”, rememora. Corriam os anos 2000, quando Berna enveredava pela escultura. Apreciava o artesanal, mas se incomodava com os limites físicos do barro. Migrou para a imagem e suas possibilidades. “Comecei a fotografar terra. Registrei tijolos, casas em reformas. Até hoje, uso símbolos fáceis para, sem esquecer a estética e o apelo visual, ‘dar a volta’ e neles encontrar a arte”, situa a artista. Há signos do cotidiano em Quando todos calam (2009), registro fotográfico de uma performance descrita pela própria artista como “fundamental” na sua construção artística: barcos no porto, urubus, pescadores ao fundo. O prisma, o ímã e o cerne do discurso eram, contudo, a própria Berna, nua sobre uma mesa adornada com uma toalha branca, com vísceras no seu
corpo a esperar as famintas aves. Decepcionada com os rumos da política, sentindose “sem horizonte”, ela deu vazão ao desejo de se colocar no trabalho. “Já não conseguia mais falar só com imagens, queria estar presente”, resume. A atitude lhe rendeu o grande prêmio do Salão Arte Pará. Nada apareceu por acaso – naquela época, Berna já havia sido aprovada no concurso de perita no Centro de Perícias Científicas do Estado do Pará. Antes de assumir, havia passado meses visitando o IML local para fotografar entranhas. Essa imersão se espelha, desde então, nas suas imagens. Foram ossos enterrados em valas clandestinas na região metropolitana de Belém que ela transportou, solenemente vestida de preto, em uma carroça em Ordinário (2013). No interior de uma penitenciária, ela reinterpretou o olímpico gesto de carregar uma tocha em Americano. Nas ruas desertas de uma Belém ao amanhecer, filmou Palomo (2012), em que monta um cavalo vermelho (tingido sem dano algum) e aparece, ela mesma, com uma focinheira, como se as eventuais palavras que ousasse proferir lhe tivessem sido negadas – o vídeo foi um dos destaques de Vazio de nós, individual no Museu de Arte do Rio de Janeiro (2013). Tapou o rosto novamente em Cantando na chuva, no qual, como uma alienígena em dourado, invadiu um lixão com uma máscara antigás; com um elegante vestido em azul a
dirigir uma biga, locomoveu-se por uma favela puxada por porcos. E ocupou a sala de necrópsia em que trabalha para ambientar Habitus. Há vestígios de chacinas, ruídos policiais e ecos da selvageria cotidiana das metrópoles brasileiras nos seus projetos. Afinidades mais do que eletivas, portanto, aproximam a atividade forense do exercício artístico. E assim ela age como uma detetive. “Numa perícia, é uma investigação científica. Na arte, é simbólica. Quando se entra numa cena de crime, tudo está envolvido por centenas de símbolos. O perito procura evidências, trabalhando com aquilo que está lá, com o concreto, com a ciência. Isso tem relação com a arte, em que tudo é simbólico. Só que a arte não é ciência, apesar de pesquisadores quererem decodificála a esse ponto. Possui milhões de possibilidades de interpretação.” Em Precisa-se do presente (2015), série de fotografias e um vídeo realizados para o Rumos Itaú Cultural durante uma viagem pela Rússia, Índia, África do Sul e China, em O tema da festa, instalação do 4º Panorama da arte brasileira, e na performance que se multiplicará no vídeo Promessa, Berna Reale usa a ironia para convidar o espectador a tecer sua própria camada interpretativa. “A arte não pode ser fechada. Quero que o espectador fique em dúvida sobre o que é real e o que é manipulado. Para uns, um cavalo vermelho é uma mancha de sangue.” “Égua”, diz, na expressão típica do Pará, “o que seria para outros?”.
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5-6 PODER E MISÉRIA Essa polaridade está presente nos trabalhos de Berna Reale, que já ambientou suas obras em um lixão (Cantando na chuva) e em uma penitenciária (Americano) 7 QUANDO TODOS CALAM
Registro fotográfico da performance, considerada “fundamental” pela artista, rendeu-lhe o grande prêmio do Salão Arte Pará
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MÚSICA PARA SURDOS No Rock in Rio deste ano, até os surdos puderam curtir a música. Os professores do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) acompanharam o show do grupo de reggae Cidade Negra, no último dia de apresentações, com a ajuda da mochila SubPac, tecnologia inventada por uma empresa de Los Angeles, nos EUA. O equipamento emite baixas frequências táteis de acordo com a música que está tocando, fazendo com que a pessoa tenha a dimensão física da experiência musical. A sensibilidade à captação é maior nas frequências e tons mais graves. Com a ajuda de um tradutor de Libras, os professores puderam se unir aos ouvintes, entendendo as letras de cada canção. Essa foi a primeira ação da SubPac na América do Sul. A mochila tem se popularizado entre DJs, para tornar o som ainda mais tátil e acessível. (Ulysses Gadêlha)
Mercado de arte em alta? Em tempos de crise e alta do dólar, imagina-se que o interesse em investir em obras de arte se arrefeça. Não é o que demonstrou o Projeto Latitude, com a 4a Pesquisa Setorial Latitude, principal estudo sobre o mercado de arte brasileiro, realizado em parceria com a Abact (Associação Brasileira de Arte Contemporânea) e a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos). Os dados recém-divulgados se referem ao ano de 2014, quando o Brasil ainda não sentia o clima negativo na sua economia, mas ainda assim não deixam de surpreender, já que o período também não foi dos mais favoráveis – com eventos como a Copa do Mundo e as eleições. Os números apontaram uma continuidade no crescimento do setor, atestado por 51% das galerias pesquisadas, com 47% delas aumentando sua equipe. Os principais entraves levantados foram a instabilidade econômica, alta carga tributária, e a dificuldade de acesso aos colecionadores institucionais – este último especialmente pelas galerias mais novas. Os colecionadores privados brasileiros seguem como os grandes impulsionadores do mercado, fazendo-se presentes em 73% das negociações. Outro dado interessante é que o mercado nacional é responsável por 85% das vendas e o internacional por 15%. Resta saber se essa crescente vai ou não se manter em 2016. MARIANA OLIVEIRA
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A FRASE
“Odeio dinheiro, mas odeio ainda mais a sua falta.”
Balaio DE U$ 2 A U$ 5 MILHÕES
Uma foto comprada por apenas U$ 2 foi posteriormente avaliada em U$ 5 milhões – o equivalente a R$ 20 milhões. A fotografia, adquirida numa lojinha de antiguidades em Fresno, Califórnia, só recebeu o novo valor depois que especialistas garantiram que nela aparece Billy The Kid, legendário bandido norte-americano que aterrorizou o Velho Oeste, no século 19. Na fotografia, que é o segundo registro fotográfico existente do ladrão e assassino, ele está num evento festivo (à esq.), jogando críquete com membros de sua quadrilha, no Novo México (EUA), onde foi morto, aos 21 anos. A história do malfeitor e do xerife que o vitimou é contada no faroeste Pat Garrett and Billy The Kid (1973), de Sam Peckinpah, que tem trilha sonora e participação de Bob Dylan. (Débora Nascimento)
Katherine Mansfield, escritora
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ARQUIVO
A SECRETÁRIA DOS BEATLES O baú dos Beatles parece ser mesmo uma fonte inesgotável. Encontra-se disponível no Netflix um dos mais recentes itens ligados ao quarteto, Nossa querida Freda (Good Ol’ Freda), documentário sobre Freda Kelly, ex-secretária da banda. A sorte da moça de 17 anos, que trabalhava numa repartição perto do Cavern Club, mudou quando, num belo dia, no início dos anos 1960, foi convidada por amigos para ver o show de um novo grupo de Liverpool. Essa foi a primeira de centenas de apresentações dos rapazes às quais assistiu. Há, inclusive, dezenas de fotos que comprovam a recorrente presença da tiete na abarrotada plateia do inferninho. A assiduidade de Freda, presidente do primeiro fã-clube dos Beatles da história, chamou a atenção da pessoa certa, o empresário Brian Epstein, que a convocou para ser a secretária deles. No filme, ela revela os bastidores do emprego mais cobiçados pelas fãs, no qual passou 10 anos, e fala sobre a convivência com os músicos. Paul McCartney, por exemplo, era o mais gentil e atencioso. E, pasmem, ainda restam incontáveis cartas de fãs que não foram sequer abertas. (DN)
Livro das baboseiras A intenção pode ter sido das melhores. O problema é que, depois de cair no gosto de milhões de pessoas com seus superlativos, o Guinness World Records, conhecido no Brasil como O livro dos recordes, acabou enveredando pelo caminho da bizarrice e da criação de asneiras, reduzindo a qualidade, virando um almanaque de baixa categoria. É um tal de fazer a maior omelete (foto), a rapadura mais doce, a cusparada mais distante e por aí vai. O livro foi lançado em 1955, depois que um diretor da cervejaria Guinness entrou numa discussão sobre qual era a ave de caça mais veloz da Europa, a tarambola ou o tetraz. A besteirada começou aí. A publicação passou a ter problemas éticos e decidiu tirar alguns itens, com medo de processos, tais como “o gato mais pesado”, pois os donos obrigavam os bichanos a comer, comer, comer… ou “a ingestão de bebidas em menor tempo”, o que poderia fazer bebuns “baterem as botas” de repente. Na primeira edição brasileira, de 1970, para variar, os recordes brasucas que apareciam eram o do maior tumor do mundo – um cisto de ovário pesando 12kg – e da prole de um único casal de 24 filhos vivos. E, ainda, o maior público em uma partida de futebol, 199.854 pessoas na trágica final da Copa do Mundo de 1950. Eita! E os 7 x 1 de 2014? Será que já foram incluídos na mais nova edição? LUIZ ARRAIS
A VOLTA À DONZELICE
A VOLTA À DONZELICE 2
Hugh Hefner, o criador da Playboy, aos 90 anos e lá vai pedrada, decidiu dar uma de membro de igreja reformista e, depois de passar 60 anos mostrando xoxotas, bundas e peitos de milhares de moçoilas mundo afora, decretou a proibição da nudez na revista, nos EUA. E jogou toda a culpa na internet. É claro que ele tem razão. Hoje, basta dar uma teclada para ver tudo que se quiser, de fêmea à escultura de Brennand. A circulação da Playboy caiu de 5,6 milhões, em 1975, para cerca de 800 mil, agora. Os tempos de Cindy Crawford (foto), Raquel Welch, Vera Fischer e outras, já eram. Pelo menos, a macharia gringa não vai precisar se desculpar diante das mulheres, dizendo que compraram a revista apenas para ler entrevistas e artigos. (LA)
Nas terras tupiniquins, as bofetadas da internet ainda não atingiram as partes baixas. A editora Abril, que há 40 anos edita a Playboy no Brasil, informou que, até segunda ordem, a revista daqui continua mostrando tudo. A tiragem atual, claro, também continua brochando (em abril deste ano não passou dos 72 mil exemplares) e nem faz graça quando comparada às edições de março e dezembro de 1999, as únicas a passar a marca de 1 milhão de exemplares vendidos. As responsáveis por esses números são ícones do fetiche, oriundas da televisão brasileira: A “Feiticeira” Joana Prado e a “Tiazinha” Suzana Alves (ao lado). (Janio Santos)
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BIBLIO
WIKIPEDIA
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CAPA
UM (QUASE) ATERRADOR AMOR AOS LIVROS C O N T I N E N T E N OV E M B R O 2 0 1 5 | 2 0
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OFILIA A paixão dos bibliófilos, cujo interesse vai muito além da posse do objeto, é peça fundamental para que os livros continuem sendo, hoje, referência no processo de documentar o conhecimento TEXTO Priscilla Campos
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Existe uma imagem extrema que ilustra o conceito de bibliofilia de maneira inquietante: livros raros, unidades de uma vasta biblioteca particular, consumidos como tijolos numa casa rodeada por água salgada. Páginas e mais páginas do melhor que há na história da literatura ocidental engolidas pelo cimento, pelas ondas, tempestades, ventanias. Isso não é uma metáfora inventada aqui, muito menos figura estética construída para romantizar um termo já tão imerso nos mais diversos imaginários. O recorte visual faz parte de A casa de papel, livro assinado pelo argentino Carlos María Domínguez e com recente tradução pela Realejo Livros. Na loucura de Carlos Brauer, personagem que, de certa forma, norteia toda a narrativa, encontramos as três principais características de um bibliófilo – compulsão, avidez pela pesquisa e alerta aos níveis de investimento – elevadas ao seu máximo grau de compressão. Brauer, de acordo com o que nos conta o narrador (personalizado na voz do próprio María Domínguez), resolveu morar, em meio a um surto que envolve isolamento e mistério, na cidade balneária de La Paloma, no Uruguai. Ali, a contínua busca pela memória vegetal empreendida pelo bibliófilo pôde, enfim, cessar. Descreve María Domínguez ao chegar na casa de papel, naquela altura dos acontecimentos, já abandonada por Brauer: “Esparramados ao redor de portas e janelas, semienterrados na areia, encontrei Huidobro, Neruda e Bartolomé de las Casas; grudados a um duro tijolo, Lawrence com Marosa de Giorgio, um resto de Eliot, outro de Lorca, o Renascimento, de Burckhardt, incrustado de pequenos caracóis, um Pallière irreconhecível e asfaltado”. Ao construir essa habitação distópica e absurda, Brauer atrela à bibliofilia uma simetria do transtorno, mas não só isso: o seu colecionismo convertido em abrigo é, também, um meio de incorporação completa de tal prática secular. De acordo com Umberto Eco, no texto de abertura do livro A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia, entre nós e a literatura acontece uma espécie de incorporação que se dá, claramente, através da leitura. Afirma o italiano que “O ritmo da leitura
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Um bibliófilo guarda, além da obra, os fragmentos presentes em toda origem de um livro, suas cronologias e processos gráficos
acompanha o do corpo, o ritmo do corpo acompanha o da leitura. Não se lê apenas com o cérebro, lê-se com o corpo inteiro, e por isso sobre um livro nós choramos, e rimos, e lendo um livro de terror se nos eriçam os cabelos na cabeça. Porque, mesmo quando parece falar só de ideias, um livro nos fala sempre de outras emoções, e de experiências de outros corpos”. Nos muros de páginas encontrados em La Paloma, podemos observar essa fusão de corpos e de memórias em um único espaço – a biblioteca. A concepção de um lar absoluto para o que restou da leitura aparece, enfim, como a essência de qualquer sujeito que exerça a atividade bibliófila com o máximo afinco.
COLEÇÕES E MEMÓRIAS
De antemão, adianto aos leitores algumas informações objetivas sobre a bibliofilia. Uma delas é a sua vertente de colecionismo. Eco – um de nossos guias neste texto – defende que o “verdadeiro tormento” de colecionadores de livros raros é que as visitas, em sua maioria, não ficam empolgadas com seus acervos. Um misto de distração e desprezo, por parte de, respectivamente, não bibliófilos e bibliófilos, é o que tende a acontecer durante esse contato – muitas vezes distante, por conta das circunstâncias que envolvem o armazenamento dos livros e o manuseio de cada um. Neste ponto, podemos observar uma frustração contígua a todo bibliófilo: talvez, sejam poucas as pessoas a quem eles podem, de fato, surpreender. Outro conhecimento importante para a temática gira em torno de como são dispostas tais bibliotecas gigantescas, tanto na questão espacial, quanto no que se refere à ordem dos títulos. Em Fantasmas na biblioteca – A arte de viver entre livros, o bibliófilo Jacques Bonnet narra o seu encontro com o
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REPRODUÇÃO
1 UMBERTO ECO Dedicou-se ao tema na obra A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia 2 JAQUES BONNET O bibliófilo francês chegou a ter livros no banheiro e na cozinha 3 HUMOR Em Un bouquiniste dans l’ivresse (1844), Daumier ironiza as manias e o detalhismo dos colecionadores de obras raras
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escritor e crítico italiano Giuseppe Pontiggia. Na conversa entabulada com Pontiggia, o francês relembra: “Cheguei a ter um banheiro com as paredes atapetadas de prateleiras, o que impedia o uso do chuveiro e obrigava a tomar banho com a janela aberta por causa da condensação; e também em minha cozinha, o que proibia certo número de alimentos com cheiro particularmente impregnante”. E continua, com algumas indagações: “A classificação da biblioteca deve ser alfabética, por gênero, por língua, cronológica ou, por que não, segundo uma rede invisível de afinidades, no gênero de Warburg, ignorado por todos, fora o interessado?”. O escritor Georges Perec foi um dos que tentaram enumerar as possíveis classificações de uma biblioteca. O francês chegou a 12 opções (entre elas: por continente e países; por cores; por datas de aquisição), mas sabia que “nenhuma dessas classificações é satisfatória em si mesma”. A impressão é de que, após realizar uma procura, um tanto quanto exaustiva, por determinada obra, o bibliófilo ainda necessita de disciplina e
O empenho em manter uma biblioteca preservada é um ponto de confluência entre os colecionadores de livros raros certo aparato estrutural, arquitetônico, que não é fácil de colocar em pleno funcionamento – mesmo para os mais ricos, por exemplo. Quando falamos da compulsão, da pesquisa que não finda e dos pormenores de investimento, não podemos esquecer que o cuidado com as publicações raras, muitas vezes feito com a ajuda de outras pessoas, é um aspecto perpassante de toda a ação bibliófila. Esse empenho em manter uma biblioteca preservada seria o ponto de confluência entre todos os colecionadores de livros raros; e o coletivo, a vontade de perpetuação que retira, em certo grau, a prática do colecionismo de seu lugar inalcançável. Nessa troca, encontramos algo como a
mágica da bibliofilia: o poder de reunir, ao redor das letras, gravuras, mapas e ilustrações, pessoas com o simples intuito de não destruir a literatura. Avançamos, então, para a ideia da memória. De volta às representações visuais, evocamos uma litografia de Daumier, intitulada Un bouquiniste dans l’ivresse (Um rato de sebo em êxtase, de 1844). Aqui, ela será a ponte que liga as breves reflexões acerca do colecionismo à consciência da biblioteca como espaço recordativo. Na gravura, vemos um homem folheando uma pequena publicação. Ele diz, entusiasmado, a outro indivíduo: “Nada se compara à minha alegria… acabo de encontrar, por 50 escudos, um Horácio impresso em Amsterdã em 1780… essa edição é excessivamente preciosa, cada página é repleta de erros!”. Na cena, o livro é, ao mesmo tempo, objeto de desejo material e lugar de memória de um tempo antigo – outro século, outro país, tantos erros. Em A imagem de Proust, Walter Benjamin declara: “(…) um acontecimento vivido é finito, ou, pelo menos, encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento rememorado é sem limites, pois é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”. Se encararmos todo tipo de narrativa como repositório da lembrança, ou seja, algo como uma caixa desses “acontecimentos rememorados”, a bibliofilia seria a área na qual infinitos tipos de memórias armazenadas estariam disponíveis ao leitor. Não só pela quantidade, variedade de autores em uma coleção, mas, em especial, pelos elementos e histórias que acompanham a aquisição de cada obra. Um bibliófilo é, sobretudo, alguém que guarda, além da voz da escrita, os múltiplos fragmentos presentes em toda origem de um livro, suas cronologias e processos gráficos. Um dos argumentos apresentados por Eco em seus estudos sobre o tema é a relação entre memória e escrita. O crítico italiano escolhe o Fedro, de Platão, para ilustrar o obsoleto pensamento de que o ato de escrever poderia aniquilar o exercício da rememoração. A partir dessa referência ao faraó Thamus e seu medo às letras no papel, Eco explana: “A escrita não
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só não eliminou a memória, como também a potencializou. Nasceu uma escrita da memória e nasceu a memória dos escritos. Nossa memória se fortalece recordando os livros e fazendo-os falar entre si”. Essa última frase, em conjunto com o pensamento benjaminiano ligado à prática das coleções, permite um modo de elucidação da bibliofilia que resgata algo que supera conceitos técnicos e históricos. Algo como essa fantástica chave “para tudo que veio antes e depois”, da qual nos fala o filósofo alemão.
ALGUMAS DEFINIÇÕES
Registros contemplam a presença do que chamaríamos de bibliofilia ainda no final do século 14. Com a invenção do primeiro sistema ocidental de tipos móveis, criado por Gutemberg, o livro passa a ser um objeto mais próximo da população e difundido com maior prontidão nas cidades. Segundo Roger Chartier, em A aventura do livro – Do leitor ao navegador, o início oficial da prática, nos meios financeiros, data do fim do século 17 e começo do
4 TIPOGRAFIA A invenção do primeiro sistema ocidental de tipos móveis, por Gutemberg, tornou o livro um objeto mais próximo da população
Registros apontam a presença de algo similar à bibliofilia no final do século 14, mas seu início oficial data do fim do século 17 18. Nessa época, supostamente, foi delimitado o universo do colecionável. Chartier conta: “Podem ser todos os livros impressos antes de certa data, ou todos os livros que têm o mesmo suporte material, rico e luxoso, ou todos os livros saídos da mesma oficina tipográfica etc. (…) Progressivamente, o gosto desses colecionadores será conduzido com mais facilidade (mas não necessariamente) para os objetos mais custosos, fazendo do livro raro um investimento”. Num prospecto contemporâneo do que foi descrito pelo historiador francês, o doutor em Editoração pela Universidade de São Paulo (USP), professor e diretor-presidente da Edusp, Plínio Martins, afirma
que a dedicação dos bibliófilos permite, ainda hoje, a difusão de obras centenárias para pesquisa e apreciação de todos. “Mas a bibliofilia não se restringe ao aspecto material, da posse do objeto: o estudo da arte do livro, a paixão pela descoberta das formas mais inventivas e elegantes de editá-lo, criaram todo um corpo de conhecimento que acompanhou e estimulou a própria evolução do suporte, num processo que continua acontecendo. Se o livro ainda hoje é a tecnologia mais eficiente e confiável de transmitir e armazenar conhecimento, isso se deve também a séculos de estudo e paixão dos bibliófilos”, reflete Martins, em entrevista concedida à Continente. Nesse (vasto) universo da história do livro, alguns significados podem tornar-se confusos, como, por exemplo, as peculiaridades de bibliofilia e bibliomania. O escritor e bibliotecário francês Charles Nodier defende que o primeiro “aprecia o livro, enquanto que o bibliomaníaco o pesa e mede”. A bibliomania tem uma forte característica de consumismo. Nesse caso, não importam os elementos históricos, gráficos, narrativos, mas, sim, a acumulação de livros e a possibilidade de compra – ou roubo – desenfreadas dos mesmos. Em A memória vegetal, Eco relembra um sujeito que poderia ser denominado pelos dois termos: um matemático italiano do século 19, chamado Guglielmo Libri. No total, ele roubou 40 mil textos antigos, entre manuscritos e livros raríssimos. Discutir a bibliofilia é como entrar, sem previsão de saída, na Biblioteca de Babel. Ao refletir sobre os vários tópicos que nos conduzem a essa loucura literária das mais seculares estamos caminhando por dentro das galerias hexagonais de Borges e, a cada instante, a literatura se confunde com o mundo. Qualquer coisa de metafísica permanece nos detalhes e histórias de um cotidiano – o dos bibliófilos –, do qual não temos muita certeza de como se faz presente a realidade. Uma rotina que pode nos espantar em ato contínuo, exatamente como aquela casa de papel engolida pelo Oceano Atlântico.
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MÁRCIO OLIVEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO
COLEÇÕES Camadas de história naquelas prateleiras
O impulso pessoal de buscar e adquirir obras move indivíduos, que acabam se tornando detentores de imensas bibliotecas privadas
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Manhã de setembro, quase primavera: o vento frio movimenta as árvores da Avenida Professor Luciano Gualberto, uma das vias centrais do campus da Universidade de São Paulo (USP). Em meio à imensa propriedade da instituição, uma estrutura de arquitetura moderna, de cor acinzentada e rodeada por janelas de vidros, se faz figura imponente na paisagem. Entre os prédios desse complexo, construído em 2013, está a Biblioteca Brasiliana Guita e JoséMindlin. O ambiente reúne 32,2 mil títulos que correspondem a 60 mil volumes, todos pertencentes ao casal Guita e José Mindlin, este, um dos maiores nomes da bibliofilia brasileira. No hall, o visitante pode estabelecer contato com toda a história do advogado paulista, desde uma linha do tempo até vídeos em que é documentada parte de sua casa, na qual o bibliófilo mantinha, em vários espaços, uma coleção de
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aproximadamente 120 mil publicações. “Essa biblioteca foi formada ao longo de 83 anos. O Dr. José começou sua coleção aos 13, quando comprou uma edição portuguesa de 1740 do Discurso sobre a História Universal, de Bossuet”, conta a curadora da Brasiliana Mindlin, Cristina Antunes. A pernambucana trabalhou com o bibliófilo por mais de 30 anos e hoje, acompanhada de uma pequena equipe, é responsável pelo acervo que se encontra na USP – as demais obras foram deixadas de herança para os filhos do advogado. Em entrevista realizada numa das salas de acesso proibido ao público – onde alguns livros de arte e mapas antigos podem ser encontrados em móveis especiais de madeira, espalhados pelo ambiente –, Cristina afirma que Mindlin era movido pelo amor ao livro e pela leitura. A curadora narra um episódio que foi o recorte inicial da dinâmica vida bibliófila do paulista: “Quando ele era muito jovem, ganhou de presente de uma tia um livro de História do Brasil, do Frei Vicente Salvador. Essa obra possuía uma lista bibliográfica enorme de obras
Situada no campus da USP, a Biblioteca Brasiliana reúne 32,2 mil títulos que correspondem a 60 mil volumes de brasiliana e ele acabou entrando em contato com livreiros do mundo inteiro por causa dessa bibliografia. Como Mindlin escrevia em francês e inglês, ninguém percebia que ele tinha 13 anos e respondia às cartas. Foi assim que iniciou um relacionamento com os livreiros europeus”, situa. Na galeria, que possui uma climatização regulada de forma rigorosa, estão obras como a primeira edição de O Guarany (José de Alencar) e a edição brasileira, datada de 1810, de Marília de Dirceu (Tomás Antônio Gonzaga) – muito rara, de acordo com Cristina. Ambos os livros tiveram histórias curiosas até chegar, em definitivo, a Mindlin. “Só existem quatro exemplares de O Guarany no mundo. Um
deles foi colocado em leilão na Europa e ele pediu para um amigo comprar. Porém, os lances estavam muito altos. Posteriormente, o livro foi colocado a leilão de novo e Mindlin, em pessoa, o arrematou. Na volta para o Brasil, ele perde o exemplar durante uma troca de aviões. Ao chegar em casa, diz: ‘Guita, eu comprei O Guarany’, ela responde, entusiasmada: ‘Que maravilha!’. Mindlin continua: ‘Mas já perdi’”, relata Cristina. Na época, uma das filhas do advogado conseguiu recuperar o livro através de um conhecido que trabalhava na companhia aérea.
IRMANDADE
Já a edição brasileira de Marília de Dirceu era um objeto de desejo dividido entre o paulista e um de seus melhores amigos, o bibliófilo Rubens Borba de Moraes. Este sempre dizia que, caso Mindlin conseguisse o exemplar, não lhe contasse, pois isso seria motivo para um infarto. Numa ocasião, ao receber um colecionador mineiro em sua casa, ele foi questionado sobre a obra: “Não tenho e ninguém tem”. Ao passo que escutou de volta: “Eu tenho,
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mas o livro não está em bom estado. Caso Guita consiga restaurá-lo, é seu”. A restauradora – Guita, a esposa de Midlin, dedicou-se à conservação de todos os volumes da biblioteca desde cedo – trabalhou seis meses no livro. De acordo com Cristina, até uma máquina foi construída para inserir fibra no papel, que estava comprometido, principalmente nas primeiras páginas, por pequenos furos feitos por bichos. Após todo o processo, Guita costurou o livro e montou uma caixa para ele, que permanece até hoje em ótimo estado. Borba de Moraes foi o maior interlocutor de Mindlin ao longo de suas vidas entre livros. Ao falecer, o também paulista deixou em testamento sua biblioteca para o amigo. Destaque para a coleção da Impressão Régia, a primeira tipografia e editora brasileira, um tesouro no meio da coleção de Borba de Moraes. “Quando trouxemos esses volumes para a casa dos Mindlin, nós os dispomos do mesmo jeito que estavam nas estantes anteriores. Rubens gostava de deixar alguns livros com
as capas voltadas para frente, como por exemplo, as belas encadernações imperiais”, explica Cristina. Outro paulista que possuiu uma, neste caso, “modesta” biblioteca pessoal foi o escritor Mário de Andrade. Com cerca de 17 mil títulos, as produções marginais eram predominantes em sua coleção. De acordo com pesquisa realizada pela professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), Telê Ancona Lopez, muitos manuscritos foram encontrados no arquivo e na biblioteca de Mário. Essa interação do escritor com as obras relembra os conceitos de dialogismo (Bakhtin) e de intertextualidade (Julia Kristeva), nos quais a linguagem é, também, derivação de outros. Não é à toa que ambos os termos estão relacionados, em certa instância, à noção de memória da biblioteca, expressão que engloba os diversos tipos de subversões e interferências além-texto que um autor pode fazer, a partir de outros, em sua obra. Nessa conversa entre as múltiplas vozes da escritura, Ancona Lopez escreve: “Minhas cogitações a respeito
4 Páginas anteriores 1-2 JOSÉ MINDLIN Foi um dos maiores nomes da bibliofilia brasileira. Hoje, seu acervo está reunido na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin Nesta página 3 MÁRIO DE ANDRADE Possuía uma biblioteca pessoal com cerca de 17 mil títulos, dos quais muitas publicações marginais
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MARÍLIA DE DIRCEU O exemplar de 1810, antes e depois do restauro feito por Guita Mindlin
das bibliotecas de escritores e a criação literária partem do conceito de matriz enquanto diálogo da criação, quando o artista se encontra com ele mesmo na obra de outros, ou como Mário de Andrade raciocina: ‘Muitas vezes um livro revela pra gente um lado nosso ainda desconhecido. Lado, tendência, processo de expressão, tudo. O livro não faz mais que apressar a apropriação do que é da gente’”. A perspectiva de um subjetivismo que surge na fala de Mário, associada ao propósito de conversa permanente entre o colecionador e seus livros, é onde repousa, talvez, o principal sentido da construção de uma biblioteca particular. PRISCILLA CAMPOS
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SEBOS Adoráveis prateleiras de memória coletiva Os sebos também são dimensões
de prósperas trocas entre escritor e leitor. No geral, eles são organizados por alguém que possui uma história de aproximação elevada com a literatura e, assim como os proprietários de grandes acervos, convive desde muito cedo com esses poderosos objetos de papel. É o caso do jornalista Ricardo Lombardi, dono do Desculpe a Poeira, sebo inaugurado em 2013 no Bairro de Pinheiros, em São Paulo. “Desde muito pequeno, meus pais me ensinaram que a leitura era algo muito importante. Li desde Lobato até clássicos da literatura infantojuvenil como Vinte mil léguas submarinas. Na fase adulta, fui montando uma biblioteca bem boa. Eu era muito apegado, mas acabei colocando quase tudo aqui na loja. Minha relação com os livros mudou: sempre que aparece um bom, eu separo, leio e depois coloco na prateleira para poder vender”, conta Lombardi. Algumas raridades, como a coleção completa e encadernada das revistas Piauí e Playboy (esta, herdada de seu
pai), por enquanto, não estão à venda. Lombardi lembra que a ideia de abrir o Desculpe a Poeira surgiu durante uma viagem. “Me hospedei ao lado de um simpático sebo em Buenos Aires e percebi que seria possível criar algo do gênero aqui em São Paulo. Outra coisa que pensei: desde 2007, eu tenho um blog homônimo, no qual indico leituras. Achei que o sebo físico deveria ser assim, só os livros que eu poderia indicar. Ou seja, há uma decisão editorial – e não apenas comercial – na hora de colocarmos um livro na prateleira”, pondera.
RECIFE
Localizado na Rua José Bonifácio, o Sebo da Torre é um dos mais famosos pontos de garimpos literários do Recife. O paulistano Seu Amauri chegou à cidade há 10 anos. Há 18 trabalha com livros. “Na universidade, estudei Letras e sempre mantive uma relação com os livros. Mas, para trabalhar com eles, é preciso ter um desprendimento. Aqui, é meu meio de vida. Compro e vendo
exemplares para sobreviver”, relata. Livros que são referência em áreas como sociologia e filosofia, e possuem poucas tiragens (por isso, considerados raros), podem ser encontrados no acervo de Seu Amauri. “A procura dos leitores pela raridade pode passar também por elementos como as dedicatórias, ou no achado repentino de uma informação preciosa no meio de um livro ou, ainda, na presença do ex-líbris.” Mais uma vez, os encontros e o câmbio de informações aparecem como um dos pontos mais interessantes num espaço dedicado ao livro. Lombardi afirma que as histórias dos clientes chegam, de forma natural, até ele. “Conquistei novos amigos, conheci muita gente do bairro. Sempre penso que essas conversas formam uma espécie de teia, como se os moradores fossem tecendo uma história oral do bairro. Uma vizinha se ofereceu para fazer o meu mapa astral. Fiz, foi ótimo, viramos amigos.” Entre as lembranças de Seu Amauri está um visitante que nunca mais apareceu em seu sebo. “Ele só comprava livros sublinhados. Tinha interesse de fazer a leitura da leitura. A narrativa grifada é o que era importante. Esse cliente era rígido, escolhia a dedo os grifos que levaria para casa. Acho que era o passatempo dele.” E, neste instante, algum dos fantasmas de Mário de Andrade espera, pacientemente, para atravessar qualquer faixa de pedestre da Rua José Bonifácio, no Bairro da Torre. (PC)
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No conto A trama celeste, o argentino
EX-LÍBRIS O carimbo de propriedade
Inscrições gráficas que identificam os donos de livros ainda carecem de catalogação sistemática no Brasil
Adolfo Bioy Casares justifica o egoísmo do seu personagem, o armênio Carlos Alberto Servian, baseado em um ex-líbris. Diz o narrador que sua sobrinha havia adquirido o costume de chamá-lo de egoísta. “Parte da culpa disso eu atribuo”, escreve Servian ou Bioy Casares, “a meu ex-líbris. Leva triplamente inscrita – em grego, latim e espanhol – a sentença Conhece-te a ti mesmo (nunca suspeitei até onde me levaria essa sentença) e me reproduz, contemplando, através de uma lupa, minha imagem num espelho”. Por remeter, sempre, a uma origem – seja de um proprietário, seja de uma biblioteca –, todo ex-líbris (essa espécie de carimbo, etiqueta de propriedade ou cartão de visita da leitura) parece ter um aspecto que alude ao amor-próprio e ao individualismo, já que atesta, logo de cara, que aquele livro tem dono. Jorge de Oliveira, desenhista e um dos nomes fundamentais dessa arte no Brasil, costumava dizer que, se essas representações gráficas não existissem, “teriam que ser inventadas; o que o homem fez, num momento de máxima percepção”. Para o professor e diretorpresidente da Edusp Plínio Martins, o ex-líbris é a uma espécie de retrato de seu dono, mas também está presente numa engrenagem simbólica maior. “É ele que dá o caráter e a alma de uma biblioteca. Ele humaniza e aumenta a carga de significado de qualquer exemplar, por fazer parte, ao mesmo tempo, da história do livro, do conjunto de livros com que ele se relaciona e de seu proprietário”, reflete. De acordo com a professora Stella Maris de Figueiredo Bertinazzo, uma das maiores pesquisadoras do assunto do país, autora do importante livrodocumento Ex-líbris – Pequeno objeto de desejo, não existe um inventor oficial de tais marcas. Alguns historiadores atestam a presença delas no século 15 em tabuletas egípcias, outros indicam seu surgimento na Mesopotâmia ou ainda nos preciosos códices medievais. Bertinazzo grafa: “A história do exlíbris acompanha a história do livro e a da gravura. Esse cunho artístico acaba despertando o desejo do colecionismo, transformando essas marcas numa forma independente de arte, fato contestado por exlibristas ortodoxos.
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2 1 KNABENSBERG
O alemão está entre os pioneiros exlibristas
2, 3 e 4 ESCRITORES
Victor Hugo, Sigmund Freud e Joaquim Nabuco fixavam ex-líbris em seus volumes
Próxima página 5 JORGE DE OLIVEIRA
Artista é nome de destaque no exlibrismo nacional
6 PAULO PEDOTT
O designer gráfico confecciona exlíbris sob demanda 3
Segundo eles, o ex-líbris nasceu agregado ao livro e não tem vida própria fora desse abrigo original”. No Brasil, esse objeto cultural é difundido com a chegada da corte, em 1808. Porém, o processo de catalogação das imagens é incerto, apesar dos registros em publicações essenciais como Ex-líbris e o Barão do Rio Branco (1953) e dos inventários produzidos ao longo dos anos. O bibliotecário Moreno Barros, atento admirador das estampas, explica: “Normalmente, os ex-líbris não são catalogados pelas bibliotecas,
apenas o livro é. Em geral, eles servem para identificar determinadas coleções privadas. Então, na medida em que essas coleções foram sendo relacionadas ou fundidas em outras, perdemos o rastro. É possível que muitos deles ainda estejam por ser desvelados no Brasil; esquecidos nos gigantescos acervos de bibliotecas universitárias e públicas”.
DOCUMENTO ADICIONAL
Moreno lembra que os novos projetos de busca e identificação de ex-líbris ainda podem contar, hoje, com as
redes de colaboração online, o que facilita a coleta do maior número possível de informações sobre as etiquetas. Seu interesse pelas ilustrações surgiu quando trabalhou na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. “Percebi que eles são tão ricos quanto a obra em que estão afixados. É uma espécie de documento adicional. A partir dele, você pode destrinchar a história da família que representava aquela época, quais outras publicações possuíam o mesmo símbolo, enfim. O ex-líbris evidencia uma coleção à parte”, avalia. Em seu livro, Bertinazzo explana que exlibristas ortodoxos abominam a possibilidade de colecionismo dos desenhos, pois, dessa maneira, aconteceria um desvirtuamento da ação, relacionada sempre com os livros de uma biblioteca. Ao serem colecionadas, as siglas “perderiam sua função básica, ficando estéreis desse ponto de vista”. Mas a professora desmonta tal pensamento, lembrando que a proposta dos “verdadeiros amantes dos livros” não é a de arrancar as gravuras das páginas. Uma solução apontada por ela seria a possibilidade de o bibliófilo disponibilizar a reprodução das etiquetas, com as quais seriam impressas edições extras, destinadas a doações e vendas. Na pesquisa reunida na publicação, datada do final dos anos 1990/ início dos 2000, a especialista afirma que existia apenas um profissional criador tradicional de ex-líbris
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remanescente no Brasil. Mas, na atualidade, podemos encontrar alguns artistas que se dedicam à feitura de carimbos destinados aos leitores e bibliófilos modernos. Um deles é o designer gráfico gaúcho Paulo Pedott. Através de encomendas feitas pelo seu site (paulopedott.com/ exlibris) ou por e-mail, ele confecciona diversos tipos de ex-líbris exclusivos. “Notei que, nos empréstimos de livros entre meus colegas professores, alguns não voltavam, daí tive a ideia de começar a produzir marcas destinadas aos livros de cada um”, conta. Os carimbos custam R$ 67, além do valor do frete (entrega para todo o país).
DETALHES HISTÓRICOS
Johannes Knabensberg, Giorgis de Podebrady e Hildebrand Brandenburg são considerados os primeiros exemplos oficiais de ex-líbris, os três por volta do século 15 e 16. O pioneirismo brasileiro, que tem como base o movimento exlibrista de Portugal, foi atribuído por alguns pesquisadores a Manuel de Abreu Guimarães. Esse dado foi contradito pelo bibliófilo Rubens Borba de Moraes em Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Na obra, o paulista defende que o Padre José Correia da Silva – morador de Sabará, mesma cidade de Abreu
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Guimarães – seria o possuidor do ex-líbris brasileiro mais antigo. Na figura de Jorge de Oliveira, a produção no Brasil encontra uma vertente de resistência. Nascido em 1936, na cidade de Valença, no Rio de Janeiro, Oliveira foi aluno de Alberto Lima, prolífico artista do exlibrismo nacional. Além de executar
A história registra que as primeiras associações de exlíbris surgiram na década de 1890, em Paris, Londres, Berlim as etiquetas, o carioca era também colecionador, mas perdeu tudo – cerca de 15 mil peças de clichês, gravuras originais – numa enchente em São Paulo, no ano de 1967. Bertinazzo declara que as criações de Oliveira “revelam uma complexidade do traço como diversidade de temas, incluindo motivos infantis (…)”. Ela segue: “O artista não só fez ex libris, mas, igualmente, alguns ex musicis e ex discis. As técnicas usadas por ele variam do clichê à serigrafia e linoleografia (litogravura)”.
A arte do ex-líbris está em constante movimento no imaginário de muitos países. Entre 1890 e 1896, irromperam as primeiras sociedades em Paris, Londres, Berlim e Washington. Em decorrência das guerras, as associações sofrem um abalo, mas, em 1950 são reestruturadas e podem ser mapeadas em novos territórios como Áustria, Bélgica, Dinamarca e Itália. De acordo com Bertinazzo, no Brasil, as que um dia existiram, foram extintas. O intuito dessa reunião era, sobretudo, facilitar o intercâmbio de material e promover conferências, congressos, mostras. Toda a atenção que se possa dedicar à história do ex-líbris não se configura suficiente. Existe um contrassenso sedutor nessa arte: ao mesmo tempo em que o desenho tem a capacidade de condensar, naquele fragmento de papel, uma narrativa, ele também dialoga com outras ciências. Aqui, tomamos liberdade de juntar, mais uma vez neste mundo da escrita, Borges e Bioy Casares. O ex-líbris é como um encontro entre o ego inflado de Alberto Servian e o mecanismo de recordação infinita de Funes, o memorioso. Em suma, é uma arte tão poderosa em suas diferenças quanto o personagem de um conto argentino. (PC)
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Conexão 1
COLABORATIVO Atitudes contra o “valor inerte”
Impulsionados pelas facilidades tecnológicas, serviços de compartilhamento provocam debate sobre conceitos, modos de consumo e negócios na sociedade TEXTO Yellow
Imagine chegar ao aeroporto de uma cidade que você não conhece. Uma pessoa passa lá para lhe dar uma carona, mas não é seu amigo nem um táxi. O lugar onde ficará hospedado é o apartamento de outro desconhecido que deixou as chaves com o porteiro e avisou que você chegaria. À noite, você pega emprestada uma bicicleta e vai jantar na casa de um estranho. Ele cozinha para você e outras pessoas, numa experiência que é ao mesmo tempo turística e caseira, provocando-lhe a sensação de ter
dividido, com novos amigos, um momento especial. Tudo isso é possível, hoje em dia, graças a serviços como Uber, Airbnb e Eatwith. Eles pertencem a uma nova e ascendente categoria de negócios, a que explora o compartilhamento. A ideia não é nova, mas vem ganhando força nos últimos anos, graças a demandas sociais e conveniências tecnológicas. Algumas pessoas entendem o novo modelo como uma necessária renovação diante da estagnação de indústrias antiquadas, enquanto outras o veem como ameaça a
mercados estabelecidos e devidamente enquadrados à legislação. Uma das primeiras iniciativas de compartilhamento aconteceu em Amsterdã, no verão de 1965. Há 50 anos, o grupo contracultural Provo coletou, pintou de branco e distribuiu pela cidade dezenas de bicicletas, para que fossem usadas livremente por qualquer pessoa. O happening seria a primeira de uma série de ações de comunhão de bens e serviços, e durou menos de um mês, após enfrentar vandalismo por parte dos cidadãos, e eventual confisco das bikes pela polícia. As bicicletas brancas se tornaram símbolo da derrocada dos ideais da década de 1960, porém, entraram no imaginário do povo holandês. A capital é, até os dias de hoje, uma das cidades que mais fazem uso do transporte ciclístico no mundo, e, em algumas partes do país, ainda existem bicicletas brancas, como no Parque Nacional Hoge Velewe. Em 1993, um experimento similar aconteceu em Cambridge, mas, em menos de um ano, a maioria das 300 bicicletas (verdes, desta vez) havia sido
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roubada, e o projeto foi abandonado. Em outubro de 1995, foi lançado o primeiro sistema de compartilhamento de bicicletas bem-sucedido, o Bikeabout, na University of Portsmouth, também no Reino Unido. Pela primeira vez, foram utilizados bicicletários eletrônicos, que liberavam as bicicletas através do uso de cartões, o que permitia a localização de bicicletas extraviadas. Este modelo inspirou a maioria dos sistemas de compartilhamento de bikes em todo o mundo, como o Vélib’, em Paris, EcoBici, na Cidade do México, e Porto Bike, no Recife.
DESPERDÍCIOS
Um dos conceitos centrais da economia de compartilhamento é a ideia de “valor inerte”. O tempo em que um bem está sem uso é valor perdido. Um carro que circula com apenas um passageiro, na maioria do tempo, representa econômica e ecologicamente desperdício. O tempo inerte de um automóvel, ou de um quarto de hóspedes, pode, supostamente, ser convertido em renda. E daí surgiram serviços como Uber (que permite às pessoas que possuem carro trabalharem em seu tempo livre como taxistas), Lyft (em que motoristas oferecem e cobram por caronas a desconhecidos) e Airbnb (que oferece online imóveis, cômodos ou até mesmo leitos a hóspedes). Essas empresas se multiplicam a cada dia, crescem rapidamente e são cotadas por valores cada vez maiores; mas, enquanto se expandem em vários países, batem de frente com órgãos que regulam serviços, em uma teia litigiosa cada vez mais difícil de acompanhar. O serviço Airbnb foi inspirado por um evento que aconteceu com três
De acordo com essa nova forma de lidar com a economia, o tempo em que um bem está sem uso é valor perdido colegas que dividiam um apartamento em San Francisco e precisaram partilhar o espaço com um desconhecido para cobrir o valor do aumento do aluguel. Perceberam que a experiência não era tão desconfortável quanto imaginaram que seria, e criaram um site no qual as pessoas pudessem oferecer hospedagem a estranhos. A cada mês, o serviço atinge mais 1 milhão de clientes. A companhia não possui nenhuma propriedade, porém, compete diretamente com cadeias de hotéis, que precisam dispor de grande infraestrutura física e de mão de obra qualificada, além da adequação a normas e inspeções de diversas esferas governamentais. A Airbnb valia, em setembro do ano passado, 10 bilhões de dólares, enquanto a cadeia de hotéis Hilton, por exemplo, valia cerca de 25 bilhões. Por isso, encontra grande resistência do setor hoteleiro, sempre que se populariza em algum lugar. A cidade em que o serviço é mais popular é Nova York, e a prefeitura estima que cerca de dois terços da atividade de negócios da Airbnb seja ilegal. A empresa propriamente dita não está cometendo nenhum crime, e paga rigorosamente todos os impostos cabíveis. Porém, é possível que a maioria dos anfitriões (como a Airbnb chama as pessoas que oferecem
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UBER Serviço mais barato que o de táxi opera em mais de 50 países
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PROVO Uma das primeiras experiências de compartilhamento foi realizada em Amsterdã
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AIRBNB Oferece móveis, cômodos e leitos para viajantes
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seus imóveis para aluguel através do serviço) não cumpra com todas as suas obrigações, de acordos condominiais até o recolhimento de impostos, passando por normas de segurança. Seu uso chegou a ser proibido na cidade, e hoje só é permitido quando o anfitrião também está na residência. É difícil justificar a ilegalidade de alugar um cômodo a um estranho através de um serviço da internet, enquanto hospedar familiares, mesmo em um apartamento alugado, não seja. Existe a alegação de que o serviço facilite a realização de atividades ilegais, como a alocação de serviços de prostituição ou tráfico de drogas – e casos como estes já ocorreram –, porém a experiência da maioria das pessoas que usou o recurso é positiva. “Oferecemos nosso apartamento há oito meses e, nesse tempo, já o alugamos umas seis vezes”, conta Antônio Martins Neto, jornalista pernambucano que atualmente reside em Portugal, com a mulher e o filho. “Tem gente de outros estados que vem nos fins de semana, e outros que vêm durante a semana, a trabalho. Mas há também quem alugue por um tempo maior. Hoje, temos uma família dos Estados Unidos que vai ficar por quase cinco meses.” Antônio afirma que nunca teve problemas com os hóspedes. Ele costuma dar dicas sobre o bairro e a cidade, mas diz que a experiência requer “certa dose de desapego”. “Deixamos o apartamento mobiliado, com muitos objetos nossos, como livros e quadros. Mas tem sido um prazer saber que as pessoas valorizam isso e usufruem da nossa biblioteca.” O sistema do Airbnb oferece garantia em caso de sinistro, mas o jornalista nunca
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EATWITH Cozinheiros usam seus lares como restaurantes improvisados
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LIFT No sistema, motoristas oferecem e cobram carona a desconhecidos
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precisou usar. Ele elogia ainda a falta de burocracia, a rapidez do pagamento, e a comissão de 3% cobrada aos anfitriões, bem menor do que seria cobrado por uma imobiliária. O serviço cobra aos hóspedes uma taxa de 6 a 12%. Por enquanto, a Airbnb não encontra grande resistência no Brasil, mas a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis já começou a pressionar a Embratur para taxar as transações, de olho na ocupação de turistas durante as Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, a cidade brasileira que mais dispõe de vagas no serviço.
CARONA
No Brasil, programas de compartilhamento de transporte similares ao Lyft, como o pernambucano Bigoo, não vingaram. A Uber permite que alguém passe a transportar passageiros através de um aplicativo, tornando-se, praticamente, um taxista. O serviço espalha cizânia por onde quer que passem seus carros pretos. Em outros países, a empresa supriu demandas urgentes de grandes cidades, forçando governantes a se adequarem ao sistema. Nova York tinha, há pouco tempo, um número de licenças de táxi muito aquém da demanda. Os táxis esquivos se tornaram, inclusive, uma marca da cidade. A Uber facilitou o acesso ao transporte, diminuiu o valor das corridas e ainda serviu, após a crise econômica de 2008, como alternativa para muitos desempregados.
O modelo que a Uber trouxe ao Brasil é um serviço de carros de luxo – exige que motoristas possuam carros pretos, de determinadas marcas e modelos. O taxista e músico olindense Gustavo Pinheiro não entende por que alguém se interessaria em oferecer seu automóvel para o serviço: “Deve ser por vaidade. Não sei o que leva alguém a comprar um carro de luxo, pagar IPVA caro, arcar com a manutenção, vestir paletó e ainda oferecer água e cafezinho, pra deixar 25% do valor da corrida pro Uber”. Enquanto isso, os taxistas recebem incentivo, na forma de atenuação tributária, para trocarem de automóvel a cada três anos, e só precisam pagar comissão se fizerem parte de uma cooperativa. O maior empecilho à profissão é o acesso ao licenciamento. As “praças” são concessões municipais e deveriam ser gratuitas, mas são abertamente negociadas, como bens. Este provavelmente é o fator principal para a adoção do Uber. Cada cidade tem lidado de maneira diferente com o serviço. Em São Paulo, após muitos protestos dos taxistas, o serviço foi proibido e foi criada uma categoria especial, a dos “táxis pretos”, para veículos de luxo que atendam exclusivamente através de aplicativos de celular. No Recife, uma decisão da Câmara Municipal, em 29 de setembro, proibiu o uso de aplicativos de celular para transporte, tornando ilegais não apenas Uber, mas serviços já estabelecidos, como EasyTaxi e 99Taxis.
CHEFS E MODELOS
Tomando como inspiração o Airbnb, após um jantar que fez na casa de uma família durante uma viagem, o empresário Guy Michlin fundou, em 2010, o serviço EatWith, que permite a cozinheiros converterem seus lares em restaurantes. Seria justo permitir que qualquer pessoa venda refeições em sua residência, enquanto restaurantes precisam passar por inspeções de segurança e higiene? E quem processar, no caso de dor de barriga: a empresa ou o anfitrião? Swipecast é uma rede que permite a modelos publicarem seus books e negociarem trabalhos. Se der certo, promete acabar com as comissões de agências, como Wey, Elite e Ford, e abrir um canal para a divulgação de novos talentos independentes, em todo o mundo. Se der errado, pode diminuir cachês e servir de veículo para assédio moral e sexual. A plataforma já ganhou o apelido de “Uber de modelos”, mas seus detratores a chamam de “Tinder de modelos”. Se, por um lado, o compartilhamento nos permite superar os obstáculos dos sistemas de produção de valor, por outro, corremos o risco de tentar “monetizar” tudo. Um exemplo do cúmulo a que podemos chegar é a recém-aberta FlightCar, empresa que vai ao aeroporto buscar carros de pessoas que viajam, para alugá-los enquanto elas não voltam.
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ANDANÇAS VIRTUAIS
GÊNERO E ARTES VISUAIS Plataforma reúne entrevistas realizadas com mulheres ligadas ao campo artístico em dois projetos culturais mulheresnaartecontemporanea.wordpress.com
Os projetos Atelier como espaço de conversa e Mulheres na Arte Contemporânea – A.I.R Gallery nortearam a criação desta plataforma, na qual encontramos
entrevistas realizadas nesses dois programas acerca da discussão de gênero e artes visuais. O site é um excelente espaço no qual podemos
encontrar informações sobre a história e análises de mulheres que atuam no campo artístico. Realizado entre 2013 e 2014, o Atelier foi proposto pela artista Lilian Maus e, além de realizar atividades como oficinas e exposição, ganhou um livro bilíngue, o qual está disponível para download gratuito no site. Intitulada de A palavra está com elas: Diálogos sobre a inserção da mulher na arte contemporânea, a obra é conduzida através de entrevistas que também estão disponíveis na plataforma. Já o segundo projeto foi realizado entre abril e julho de 2015, pela jornalista Isabel Waquil, e buscou pesquisar sobre a primeira galeria cooperativa de mulheres artistas dos Estados Unidos, localizada em Nova York. Na ocasião, integrantes da galeria e artistas que fazem parte da história da instituição foram entrevistadas, com resultado disponível no site. Mulheres na arte contemporânea também conta com versão em inglês. MARIA EDUARDA BARBOSA
CULTURA
INTEGRAÇÃO
NACIONAL
MAPEAMENTO
Nonada foca no jornalismo cultural, em suas tradicionais áreas de interesse
Projeto trabalha com eventos culturais e utilização do espaço público
Site promove espaço para divulgação de produções audiovisuais brasileiras
Ancine elabora mapa com festivais e mostras de todo o Brasil
conexaocultural.org
assistebrasil.com.br
Idealizado por Paola Caiuby Santiago, o Conexão Cultural tem a proposta de promover ações de integração da cultura no cotidiano. A organização busca aproximar culturalmente o Brasil e outros países para trocas de experiências e estímulo à criatividade. O projeto também participa de eventos internacionais. A partir do portal, acessa-se o blog, no qual há vídeos, matérias e entrevistas realizadas ao redor do mundo. Entre as seções, destaca-se a Espaço Público. Nela, encontramos discussões em torno da relação entre pessoas e lugares, além de dicas de como podemos utilizá-lo.
Assiste Brasil é um site dedicado à produção cinematográfica, que busca contribuir para a valorização de obras nacionais. O Assiste Brasil foi fundado por Fernanda Mendonça, estudante de Jornalismo da UFPB, e conta com mais três colaboradores, sendo dois deles pernambucanos. Nele, encontramos resenhas, entrevistas e novidades sobre o que acontece na área do audiovisual brasileiro. O leiaute do portal corresponde à proposta do conteúdo, com referências à bandeira brasileira, incluindo nela símbolos cinematográficos. Enfim, é uma ótima oportunidade para conhecermos mais o nosso cinema.
ancine.gov.br/mapa-demostras-e-festivais
nonada.com.br
“Para nós, bom jornalismo cultural é aquele que, antes de tudo, pretende acrescentar ao leitor”. Essa é a proposta do site Nonada – Jornalismo Travessia. O portal oferece conteúdos e análises culturais em diversas editorias “clássicas”, como Cinema, Música, Artes Cênicas, Visuais e Literatura. Por ser um site criado no Rio Grande do Sul, algumas matérias possuem enfoque na região. No entanto, muitas pautas trabalhadas trazem abrangência nacional. No espaço, você ainda pode acompanhar o podcast intitulado Jabá, realizado pela equipe do Nonada.
Para ficar por dentro de festivais e mostras que acontecem no Brasil, pode-se consultar o Mapa de Mostras e Festivais, criado pela Ancine. Através dele, é possível encontrar eventos já realizados (indicados pela cor vermelha), em andamento (cor verde) e os que acontecerão (em azul). O site inclui as mostras e festivais que estão registrados no órgão para isenção da Condecine – Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional . No link do mapa também há o passo a passo para registrar festivais e mostras.
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Viagem
MINSK Realismo socialista na arquitetura
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NEZALEZHNOSTSI
Na avenida, é possível observar toda a monumentalidade da arquitetura baseada no realismo socialista
Ao andar pelas ruas da capital da Bielorrússia, o visitante entra em contato com a memória do socialismo soviético, em construções erguidas nos padrões do neoclássico stalinista TEXTO Marcelo Abreu
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A avenida principal da cidade reúne o que há de mais curioso no estilo. A mudança no nome da rua reflete as vicissitudes da história. No período soviético, chamavase Leninski Prospekt (Avenida Lênin). Com a desintegração da URSS, quando se tentava afirmar a identidade nacional, passou a ser conhecida como Frantsysk Skaryna, em homenagem ao humanista bielorrusso do século 16, considerado como herói nacional por ter sido o primeiro a imprimir uma tradução da Bíblia no idioma eslavônico antigo. Já na década passada, a mesma avenida tornou-se Nezalezhnostsi, que significa “independência”. Dependendo da placa ou do mapa consultado, de alguma forma, todos os nomes ainda são citados para designar o mesmo lugar. A Avenida Independência começa no centro-sul da cidade, na praça do mesmo nome, onde estão situados o Palácio do Governo e a Universidade Estatal – com uma estátua de Vladimir Lênin no centro.
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A Avenida Nezalezhnostsi corta
o centro de Minsk e é um aberto e amplo museu de arquitetura. Em poucos outros lugares do mundo, a monumentalidade bombástica da arquitetura baseada no realismo socialista foi praticada de forma tão evidente como na capital da Bielorrússia. Destruída quase completamente no final da Segunda Guerra Mundial, Minsk foi reerguida a partir do final dos anos 1940, no melhor estilo soviético, o chamado neoclássico stalinista, usado para a glorificação da classe trabalhadora supostamente no poder. Com o fim da União Soviética, em 1991, a república da Bielorrússia tornou-se independente, mas soube preservar o conjunto arquitetônico.
Chicago seria símbolo da arquitetura moderna capitalista, enquanto Minsk, da monumentalidade socialista E segue em direção ao noroeste com seis faixas de rolamento e calçada amplas, abrigando dos dois lados edifícios imponentes, como os Correios e Telégrafos, o Hotel Minsk e o Cinema Tsentralnyi. Atenção especial merece a sede do Ministério do Interior, responsável pela segurança interna no país (leia-se, controle dos dissidentes políticos), que divide as salas do amplo edifício com os agentes da KGB, a polícia secreta local. O edifício neoclássico com colunas gregas em cor amarelada é harmonioso, mas quem passa na frente olha com receio para suas janelas de vidro, imaginando que pode estar sendo observado do lado de dentro.
Em seguida, na Praça de Outubro – o centro cívico da capital – estão os enormes prédios do Palácio da República e o Museu da Grande Guerra Patriótica. O Palácio de Cultura dos Sindicatos é outro belo exemplo do neoclássico socialista com suas imponentes colunas gregas. Curioso é também o estilo do Circo Estatal. Ao contrário do que acontece no Ocidente, os circos no antigo mundo socialista não são estruturas temporárias de lona, mas grandes ginásios cobertos, de concreto, que mantêm programação o ano inteiro. A avenida continua com grandes edifícios como o da Gum, a tradicional loja de departamentos. Na cidade, as lojas ainda são no estilo soviético, com balcões de madeira escura separando os clientes dos funcionários, que buscam as mercadorias solicitadas nas prateleiras.
HOMENAGEM A ESCRITORES
É no Parque Yanka Kupala que fica uma casa simples de madeira, celebrada por ter sido o local da reunião que fundou, em 1898, o Partido Social-Democrata Russo, que viria a tornar-se o Partido Comunista da União Soviética, depois da revolução de 1917. No parque, há uma grande quantidade de árvores exuberantes, amplos gramados, córregos e tem a dignidade característica dos grandes espaços públicos no socialismo, algo que parece saído de outra era, se comparado com a degradação de muitas praças e parques no Brasil. O nome é uma homenagem ao escritor Yanka Kupala, conhecido pelo seu envolvimento com a Revolução de 1917 e depois por suas posições críticas ao regime. No parque, fica o Museu Literário, construído no local da casa em que o escritor morou entre 1927 e 1941 e que foi destruída durante a Segunda Guerra. Do outro lado da avenida, a área verde continua, desta vez homenageando Maxim Gorky, um dos maiores nomes da literatura soviética. Ali perto, outra curiosidade, evidentemente não explorada nos guias turísticos oficiais: o prédio de apartamentos em que morou,
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POBEDY PLOSCHAD
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BIBLIOTECA NACIONAL
A praça tem um enorme obelisco, em homenagem à expulsão das tropas alemãs em 1944
Um dos símbolos do país foi projetado por M.K. Vinogrdov e V.V. Kramarenko
do Kino Oktiabr (Cinema Outubro), estilo que reflete o otimismo futurista dos anos 1960. A sede da Academia de Ciências da Bielorrússia também se destaca na paisagem com sua fachada dominada por grandes arcos brancos.
SOVIÉTICO TARDIO
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Viagem 2
no início dos anos 1960, o desertor norte-americano Lee Harvey Oswald, que viria, logo depois, a ficar mundialmente conhecido como responsável pelo assassinato do presidente John Kennedy, em 1963. Ao passar pelo Parque Yanka Kupala e cruzar o Rio Svisloch, a Avenida da Independência vai ficando mais larga e ainda mais imponente, até chegar na Pobedy Ploschad (a Praça da Vitória), com um enorme obelisco no centro, em homenagem à expulsão das tropas
alemãs em 1944. Tudo é superlativo e solene nessa área da cidade. Se o centro de Chicago, nos Estados Unidos, representa o ápice da arquitetura moderna no capitalismo, Minsk pode ser considerada como sua antítese, uma cidade-irmã no outro sistema, o máximo em monumentalidade proletária. Mais adiante, a Praça Yakuba Kolasa é outro bom exemplo de planejamento urbano grandioso. Uma curiosidade na área é o formato redondo e parcialmente suspenso
A grandiosidade de Minsk, entretanto, não se restringe à sua longa avenida principal. O conjunto arquitetônico é homogêneo, já que toda a cidade é resultado da reconstrução ocorrida, em grande parte, entre o fim dos anos 1940 e a década de 1960. O que surgiu depois disso também seguiu o estilo. É o caso da Avenida Pobeditelei, que margeia o Rio Svisloch, com prédios de escritório e hotéis de um lado e um enorme Palácio dos Esportes à beira do rio. Nessa área, impera o estilo soviético tardio, o padrão funcional dos anos 1970, empobrecido em relação à grandiosidade da utopia neoclássica, mas, mesmo assim, ousado, às vezes até escandaloso. Nas fachadas, ainda se veem cartazes dominados pela cor vermelha, utilizados para anunciar campanhas cívicas, e cenas de heroísmo retratadas em alto-relevo. Apesar de o regime ter mudado formalmente no final de 1991, a Bielorrússia é um dos países mais conservadores do Leste Europeu. O presidente Alexandr Lukashenko está no poder desde 1994, tendo sido reeleito três vezes seguidas. Há muitas acusações de violação dos direitos humanos e poucos consideram que o país se democratizou após o fim da URSS. Isso se reflete nas características arquitetônicas da capital, que se conservam em sua imponência. Curiosamente, o centro de Minsk não conta com elementos comuns à paisagem urbana de boa parte do mundo atual. Mendigos,
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aglomeração de jovens alternativos, pichações, lanchonetes de fastfood, comunidades de imigrantes, comércio informal são quase desconhecidos na cidade. Em contrapartida, a capital apresenta todos os cacoetes da sociedade centralizada e socialista: grandes prédios de estatais por toda parte, monumentos que comemoram grandes eventos cívicos – como o caso da vitória sobre os nazistas na Segunda Guerra –, e a ênfase na cultura clássica, com grandes instalações culturais nas quais se abrigam companhias de óperas, balés, teatros, cinemas, bibliotecas e museus. Esculturas de bronze e concreto, divertidas e um tanto quanto infantis, enfeitam parques e calçadas. Existem também muitas instalações para a prática dos esportes, uma das forças do
Apesar de o regime ter mudado no final de 1991, a Bielorrússia é um dos países mais conservadores do Leste Europeu antigo bloco socialista. Boa parte dos estádios, ginásios e parques aquáticos foram erguidos num estilo audacioso, que reflete a força e a energia de modalidades variadas como levantamento de peso, tênis, hóquei e futebol. O metrô, como é comum ocorrer nas grandes capitais que foram governadas pelos comunistas, também é eficiente e grandioso. Tem 28 estações e, numa cidade de área relativamente pequena, percorre 35 quilômetros e continua em expansão.
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Pelas ruas, ônibus elétricos e bondes reforçam o clima retrô. Os nomes das ruas e de bairros, em língua russa ou bielorussa, dispensam traduções e refletem o clima político ainda dominante: Kommunitcheskaya, Sovetiskaya, Partizanski, Karl Marx, Engels, Sverdlov, Kropotkin, Kirov, Maiakovski e Dzerzhinski, esta, em homenagem ao famoso fundador da KGB, nascido no país.
ARES MEDIEVAIS
A única área da cidade que destoa do monumentalismo de concreto é o bairro conhecido como Traetskaye (Trindade), em que os edifícios foram reconstruídos sob o estilo dominante até o século 19. Centro da cidade no fim da Idade Média, lá se encontram casas antigas em ruas estreitas e curvas, calçadas com paralelepípedos, e velhas igrejas que
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Varsóvia
MEMORABILIA SOVIÉTICA 4
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Viagem foram reconstruídas com esmero. Apesar da beleza do local, o bairro parece meio artificial, sem vida própria. A reconstrução nos anos 1980 teve o objetivo de explorar turisticamente o local. Mas os turistas não apareceram. Uma viagem à Bielorrússia implica, ainda agora, em tantos trâmites burocráticos (novamente, no velho estilo soviético), que o turismo de massa acaba não sendo estimulado. Assim, as ruas de Traetskaye, com suas casas charmosas e grandes igrejas de inspiração barroca, ficam como uma obra do passado esperando um projeto de uso futuro. A composição étnica e cultural de Minsk reflete a história da região, caminho natural entre a Europa Ocidental e a Rússia. Apenas entre 1917 e 1921, a Bielorrússia trocou de governo pelo menos cinco vezes, sendo comandada sucessivamente por russos czaristas, ocupantes alemães, nacionalistas
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ESTAÇÃO DE TREM
As duas torres são conhecidas como as portas da cidade de Minsk
bielorrussos, poloneses e soviéticos. Antes da invasão nazista, em 1942, a cidade tinha 300 mil habitantes. No final da guerra, somente 50 mil continuavam. Hoje, Minsk tem quase 2 milhões de pessoas, das quais 79% se declaram bielorrussos. Mas a língua russa também é amplamente falada. A cidade se orgulha de ser um centro industrial importante, com fábricas de tratores, automóveis e refrigeradores, exportados principalmente para os países da Comunidade de Estados Independentes, que substituiu o antigo mercado soviético. Quarenta por cento dos trabalhadores estão empregados nas fábricas. Esse lado proletário explica, em parte, a adesão da capital bielorrussa ao passado comunista. Alheia à expansão imobiliária dominada pelo aço e pelo vidro, Minsk parece consolidar sua posição como museu vivo da arquitetura socialista.
Se temos ousadia suficiente para ir à capital da Bielorrússia, não podemos perder a chance de conhecer a vizinha Varsóvia, capital da Polônia, 475 km distante de Minsk. Como várias cidades europeias, Varsóvia tem uma old town medieval, com estrutura urbanística de grande praça, ao redor da qual se estabelecem residências, igrejas, comércio e, sobretudo em tempos de turismo massivo, instituições culturais. Museus estão entre esses aparelhos incontornáveis. Na capital polonesa, destaque para o peculiar Czar PRL – Life under Communism Museum (acima), constituído de memorabilia do período soviético, e o Fryderyka Chopina (na grafia local), em homenagem ao compositor que, nascido em 1810 num ducado de Varsóvia, aos 20 anos mudou-se para Paris, onde se tornou o incrível Chopin.
Odessa
À BEIRA DO MAR MORTO Quando a gente pensa a Ucrânia, lembra logo as barricadas sangrentas na Praça Maidan, em Kiev. Mas este terceiro maior país da Europa também pode povoar de forma leve o nosso imaginário. Basta mencionar Odessa, cidade portuária à beira do Mar Morto, que concilia influências mediterrâneas, russas, otomanas e europeias, evidentes na arquitetura e no estilo de vida. Os viajantes destacam seu balneário de águas mornas (no verão) e seu traçado de bulevares, tão ao gosto francês, de cujos prédios despontam estilos arquitetônicos como o eclético e o de cúpulas bulbosas, típicas das construções russas. Um marco na história local, este do período soviético, foi a cidade ter sido cenário de O encouraçado Potemkin, de Eisenstein, na memorável cena da escadaria (acima).
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KARINA FREITAS
Cardápio UMAMI O quinto gosto
Esta nova maneira de descrever a sensação gustativa de um alimento conta com respaldo científico, mas ainda é polêmica TEXTO Renata do Amaral
Doce, salgado, azedo e amargo. Muita gente está tão acostumada aos quatro gostos básicos, que se surpreenderia ao saber que existe um quinto gosto – e, mais ainda, que ele foi descoberto há mais de 100 anos no Japão. Só neste milênio, porém, ele foi reconhecido cientificamente como tal. O umami não é tão óbvio de perceber quanto os outros quatro, mas se caracteriza justamente por harmonizá-los e potencializá-los, além de oferecer maior persistência na boca. Para ele aparecer, o glutamato monossódico precisa estar presente. O pesquisador Kumiko Ninomiya, da organização sem fins lucrativos Centro de Informações sobre Umami, explica que a palavra umami pode ser traduzida como “saboroso”, ou ainda como “típico de carne ou de caldo”. O gosto foi descoberto em 1908 pelo professor Kikunae Ikeda, da Universidade Imperial de Tóquio,
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Cardápio 1
1-3 ALIMENTOS No tomate fresco na alga marinha e no queijo parmesão é possível sentir o quinto gosto nas algas marinhas
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em sopas com a alga marinha da variedade kombu desidratada. Não é exatamente a mesma coisa, mas o gastrônomo francês Brillat-Savarin já falava de um gosto típico de carne no seu livro A fisiologia do gosto, em 1825. “Apesar de o umami não ser um gosto tão destacado como o doce, o ácido, o salgado e o amargo, esse quinto gosto realça o sabor dos alimentos, tornando-os mais intensos e deixando-os mais apetitosos”, explica Ninomiya. Seu artigo faz parte do livro Umami y glutamato:
aspectos químicos, biológicos y tecnológicos, organizado por Felix Guillermo Reyes Reyes, professor titular do Departamento de Ciências dos Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em mais de 600 páginas, reúne 20 artigos científicos sobre o tema. “É difícil de explicar. Quando você come um queijo parmesão, você dá uma mordida e vem aquele extra de sabor. A boca parece que fica com mais saliva. Você sente um sabor a mais que não consegue identificar”,
afirma o chef André Saburó, do restaurante japonês Quina do Futuro. No momento desta entrevista, ele estava em Roma para gravar o documentário Pernambuco: sabores do mundo, em que percorre, ao lado dos chefs Joca Pontes e Duca Lapenda, suas influências gastronômicas no Japão, França e Itália. Além do queijo curado, ele ressalta o umami do tomate fresco e das algas marinhas. Não é só na cozinha oriental que ele se encontra, mas também em combinações tipicamente ocidentais como as massas italianas. “Ele não é doce nem salgado, fica uma coisa no meio termo, não tem acidez nem é amargo. Você sente realmente um ponto a mais”, explica. O chef diz que, apesar o umami ser um gosto de difícil caracterização, os japoneses costumam defini-lo como uma explosão na boca. “Ele realmente é um outro sentido”, conclui. O gosto foi confirmado recentemente, mas há muito já era usado na cozinha na forma de molhos de peixe fermentado e extratos concentrados de carnes e vegetais, por exemplo. No mesmo livro citado acima, os professores Carlos Silvera, da Universidade Católica do Uruguai, e Rosa Alejandra Longa López, da Universidade Peruana de Ciências Aplicadas, buscam refazer o percurso do umami na história da gastronomia. Na Roma Antiga, havia o garum, molho feito com peixe salgado e fermentado ao sol. “O sabor umami está estreitamente relacionado aos mais importantes molhos e condimentos que, enraizados nas entranhas das mais antigas civilizações, navegaram pela cultura alimentar, alimentando a carne e o intelecto da humanidade”, explicam os autores. Condimentos e pratos como molho inglês, ketchup e sopa de peixe com parmesão ralado em cima são alguns exemplos. Ninomiya defende que o uso de anchovas como tempero em pratos italianos até hoje – a sardela é um exemplo – remete ao garum.
CARNE E TOMATE
O umami foi reconhecido como gosto apenas no ano 2000, quando o professor Charles Zuker, da
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Por outro lado, o excesso de uso do pó branco que promete essa mágica pode causar a síndrome do restaurante chinês, que inclui desidratação e dor de cabeça. E, como era de se esperar, ele não substitui as sensações ocasionadas pelo glutamato, quando encontrado naturalmente nos alimentos, conforme defende McGee: “O aspecto mais deplorável da saga do glutamato monossódico é o modo pelo qual ele foi usado como um substituto barato e unidimensional de alimentos verdadeiramente extraordinários”.
SENSAÇÕES
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Universidade da Califórnia, publicou um artigo na revista Nature Neuroscience demonstrando que a língua possui um receptor gustativo específico para o glutamato, que está presente naturalmente em carnes, peixes, vegetais e lácteos. No livro Comida e cozinha: Ciência e cultura da culinária, Harold McGee explica que o umami está mais presente em alimentos do reino animal, ricos em proteínas, mas também se encontra em vegetais. “O ácido glutâmico do tomate, aliado a seu equilíbrio entre doçura e acidez, pode ajudar a explicar por que esse fruto é usado com tanto sucesso como uma hortaliça, acompanhado ou não de carnes”, esclarece. “Os aromas de ácido glutâmico e enxofre são mais comuns nas carnes do que nas frutas, daí a predisposição do tomate de complementar o sabor de carne ou mesmo substituílo, e, sem dúvida, de acrescentar complexidade e profundidade a molhos e outros preparados mistos.” Quando bem maduros, eles são mais ricos em umami. A sensação de água na boca é a sempre lembrada quando se fala no quinto gosto, também encontrado em moluscos e crustáceos. “Para equilibrar a salinidade da água do mar, a maioria das criaturas
A sensação de água na boca é a lembrada quando se fala no umami, também encontrado em moluscos e crustáceos marinhas tem as células preenchidas de aminoácidos e de suas parentes, as aminas. O aminoácido glicina é doce; o ácido glutâmico, na forma de glutamato monossódico, é sápido e dá água na boca. Moluscos e crustáceos são especialmente ricos nesses e em outros aminoácidos gostosos”, diz McGee. É claro que, quando o umami foi descoberto, a indústria de alimentos foi em busca de criar sua versão do glutamato. O professor Reyes Reyes explica que ele é obtido pela fermentação da cana, milho e mandioca. Como aditivo alimentar, é seguro se usado em pequenas quantidades, segundo a Food and Drug Administration (FDA), órgão responsável pelo controle dos alimentos nos Estados Unidos. O autor afirma que hoje ele é o aditivo mais usado no mundo e tem função de potencializar o sabor.
É importante fazer uma distinção: gosto e sabor não são a mesma coisa. A professora Maria Aparecida Pereira da Silva, da Universidade Federal de Sergipe, no livro organizado por Reyes Reyes, diz que o sabor é a soma de três elementos: os cinco gostos básicos gerados por estímulos sensoriais na boca, as sensações odoríferas causadas por compostos voláteis liberados pelo alimento durante a mastigação e as percepções – como adstringência, ardor e temperatura – obtidas pela estimulação do nervo trigêmeo, localizado na boca e no nariz. O sentido do gosto vai além do prazer: tem funções importantes na sobrevivência humana, como evitar a ingestão de substâncias tóxicas e avaliar o valor nutricional dos alimentos. Doces, por exemplo, são fonte de energia e há uma predileção inata por alimentos adocicados. O antigo mapa da língua impresso nos livros de biologia, porém, com locais específicos para cada gosto, está superado. “Todos os cinco gostos básicos podem ser percebidos em todas as regiões da língua que possuem botões gustativos”, explica. Ao falar, no mesmo livro, sobre os aspectos sensoriais do umami, a professora Elba Sangronis, da Universidade Simón Bolívar, ensina como identificar um gosto básico: “Deve ser claramente diferenciado de outros que já se conhecem, a qualidade desse gosto deve ser universal em todos os alimentos e deve ser verificável pela neurofisiologia como um gosto diferente dos já existentes”. No caso do gosto umami, ele é mais forte quando há o encontro
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Cardápio entre o glutamato e outras duas substâncias: o guanilato dissódico e o inosilato dissódico. A presença do glutamato nos alimentos é o foco do texto de três pesquisadores da Unicamp: Jaime Amaya-Farfan, Priscila Neder Morato e Marina Vieira da Silva. “Os alimentos que se destacam pela elevada concentração de glutamato livre naturalmente presente são, justamente, aqueles usados na culinária em virtude de sua capacidade de conferir atributos sensoriais de sabor a pratos e preparações”, afirmam. Por isso mesmo, são ingredientes muitas vezes usados em molhos, tais como o tomate, o queijo e o cogumelo. Os autores citam uma pesquisa que mostra o conteúdo de glutamato livre (em miligramas a cada 100 gramas): o queijo parmesão tem 1.680; a alga marinha kombu tem 1.608; o molho japonês de peixe, 1.323; o molho shoyo japonês, 782; o tomate tem 246, o leite materno, 19 e o leite de vaca, 1. É curioso perceber como o leite materno tem muito mais glutamato livre do que o leite de vaca, o que pode motivar uma predileção inconsciente pelo gosto umami ao longo da vida.
ÁCIDO GLUTÂMICO
Processos naturais de maturação, secagem, cura, envelhecimento e fermentação aumentam o gosto umami dos alimentos ao liberar seu ácido glutâmico. É o que explica a professora Silvia Mendoza, da Universidade do Chile, na coletânea de artigos. Isso acontece em embutidos como o choriço espanhol e o pepperoni italiano. O tomate maduro tem 10 vezes mais glutamato que o verde, assim como o shiitake seco tem 1.060mg a cada 100g, contra 71 do produto fresco. Ou seja, é possível potencializar o gosto sem recorrer a aditivos industrializados. Claro que tamanha descoberta não passaria batida pelos chefs mais renomados. É o caso de Heston Blumenthal, do restaurante The Fat Duck, na Inglaterra, com três estrelas
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no Guia Michelin. Para ele, o umami não é uma exclusividade oriental, pois está em diversos ingredientes que os ocidentais usam no dia a dia, como o tomate. No livro Umami: the fifth taste, lançado em 2014, o chef explica que prepara um “caldo umami” para quem deseja sentir o quinto sabor. Leva alga kombu, molho de soja, cogumelo shiitake seco, peixe cavalinha e tomate. Da geração de chefs ligados tanto à cozinha quanto ao laboratório, ele participa de pesquisas sobre gosto realizadas na Universidade
de Reading. Em artigo publicado no jornal The Guardian, em 2002, Blumenthal afirma que o caldo dashi é usado no Japão para adicionar complexidade às preparações – enquanto essa função é cumprida por gorduras, como manteiga e creme, no Ocidente. O caldo dashi leva algas secas e raspas de peixe curado. Cogumelo desidratado é um item opcional. Mais cheio de umami, impossível. “O dashi, feito no Japão há mais de mil anos, é um exemplo clássico de
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4 HESTON
BLUMENTHAL
Chef de renomado restaurante inglês, ele prepara um “caldo umami” para quem deseja sentir o quinto sabor 5 PUBLICAÇÕES Depois do seu reconhecimento como gosto, o umami passou a ser tema de estudos
Temperos
MISTURINHAS SABOROSAS O Recife já foi uma cidade pobre na oferta de temperos considerados “exóticos”, com uma culinária muito centrada no uso de coentro fresco, cominho em pó e colorau. Agora, há várias casas que oferecem todo tipo de ervas e especiarias. Um dos negócios que certamente atrairá os amantes de temperos é o Bombay Herbs & Spices, que estabeleceu quiosque no Shopping Rio Mar. O espaço contém uma variedade interessante de pimentas (seu carro-chefe), sais, geleias e misturas como a garam massala, o chilli powder e o pudding spice. 5
como, recorrendo a nada além de tentativa e erro, uma cultura tradicional pode aperfeiçoar um processo químico culinário, que só conquistaria reconhecimento muito tempo depois”, afirma o jornalista e escritor Michael Pollan, no livro Cozinhar: Uma história natural da transformação. A alga kombu desidratada é coberta por uma camada de cristais brancos repletos de glutamato, ou seja, contém umami em estado bruto. Pollan explica que o gosto é inato, mas que o sabor depende da experiência pessoal. Ele cita o exemplo do “tofu fedido” que experimentou na China, considerado agradável naquela cultura, mas asqueroso em outras. O umami, curiosamente, é um gosto sem gosto identificável, cuja função
é justamente destacar os outros gostos. “Um pouco como o sal, o glutamato parece destacar o gosto dos alimentos; porém, ao contrário do sal, ele não tem um gosto próprio reconhecível”, escreve Pollan. A despeito de ser algo intangível, o umami atualmente é dado como certo. “Hoje existe uma compreensão do umami no campo da neurociência e da fisiologia do sabor”, diz a professora Silvia Mendoza, da Universidade do Chile. E Pollan mata a charada sobre a importância do quinto gosto: “Será mera coincidência que tantas das coisas que consideramos comidas afetivas – do sorvete à canja – transitem entre o doce e o umami, os dois primeiros gostos que conhecemos ainda no peito da mãe?”
Câmara Cascudo
ALIMENTAÇÃO EM MOSTRA O clássico A história da alimentação no Brasil é o mote de um dos setores da exposição O tempo e eu (e vc), em cartaz até fevereiro no Museu da Língua Portuguesa (SP), que traz vários aspectos da vida e da obra do pesquisador e folclorista Luís da Câmara Cascudo. Todo trabalho do homem é para sua boca é o módulo que utiliza materiais inusitados para pontuar as influências portuguesas, indígenas e africanas na formação do nosso paladar, lembrando os conceitos de incorporação e substituição na culinária brasileira. As pesquisas de Cascudo também são a base de uma série documental para TV, que deve chegar ao público em 2017.
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ARTE SOBRE FOTOS DE ARQUIVO
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História
ARQUIVO Os que fugiam aos padrões
Jornalista Clarice Hoffmann lança, neste mês, site baseado na pesquisa O Obscuro fichário dos artistas mundanos, levantamento realizado a partir de fichas da DOPS datadas entre 1934 a 1958 TEXTO Luciana Veras
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Não se trata pois de dizer que a “História” é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente que a “razão das histórias” e as capacidades de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. (Jacques Rancière, A partilha do sensível)
A jornalista Clarice Hoffmann havia sido contratada para fazer pesquisa iconográfica para o livro Mulheres negras do Brasil, um projeto da Rede de Desenvolvimento Humano/Redeh, quando se deparou com o prontuário de uma deputada negra no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, no centro do Recife. Ficou curiosa, ao verificar que aquelas informações haviam sido arroladas a mando da Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco/DOPS-PE, e pensou em cascavilhar para ver se achava algo sobre sua avó, Gusta Gamer, uma atriz ucraniana que chegara ao Brasil entre a I e a II Guerras. Ela havia crescido com as histórias de que a matriarca teria sido fichada pelo governo por causa de sua ocupação. Era 2003, quase uma década antes da entrada em vigor da Lei 12.527/11, “que regulamenta o direito constitucional às informações públicas”. A Lei de Acesso à Informação passou a ser oficial em 16 de maio de 2012. Impressionada com a descoberta do documento sobre a deputada, Hoffman, uma carioca há muito radicada em Pernambuco, ouviu da historiadora Marcília Gama, então vinculada ao Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, que havia mais. “Ela trouxe duas gavetas que estavam guardadas no setor. Quando abri, não acreditei no que via: fotos 3x4 de pessoas como Dalva de Oliveira, Grande Otelo e outros artistas”, recorda Hoffmann. Plantava-se, ali, a semente d’O Obscuro fichário dos artistas mundanos, projeto idealizado e coordenado por Clarice Hoffmann, financiado pelo Rumos Itaú Cultural e pelo Funcultura e tornado público, em pequenas pílulas textuais e imagéticas numa página do Facebook, no primeiro semestre de 2015. Neste mês de novembro,
haverá o lançamento do site e da convocatória artística de criação de narrativas em mídia digital a partir do material reunido. Em números, esse material se alastra por 404 pessoas fichadas, 432 pastas consultadas e 612 recortes de jornal extraídos de período que se inicia em 1934 e se estende até 1958 – pouco antes da ditadura do Estado Novo e seis primaveras antes do golpe militar de 1964. A compilação do impressionante acervo que constitui O Obscuro fichário dos artistas mundanos se deu, de fato, muito tempo depois daquela visita de Hoffmann ao Arquivo Público. “Na época, como ainda não havia a Lei de Acesso à Informação, eu poderia até ver as fichas, mas não tinha acesso aos prontuários. Fiquei com aquele arquivo na minha cabeça por anos”, lembra. Escalada para trabalhar na pesquisa do longa-metragem Tatuagem, escrito e dirigido por Hilton Lacerda, e mergulhando novamente em memórias do tempo no qual o Brasil vivia sob o peso das Forças Armadas, ela resolveu voltar àquele fichário: “Quando retornei lá, já não havia problema em
A maioria das fichas eram de mulheres e de estrangeiros, obrigados a procurar a DOPS quando chegavam ao Brasil consultar todo o material. Perguntei à funcionária que me atendeu: ‘Alguém já veio perguntar por essas fichas?’ E ela respondeu: ‘Não, nunca’”. Era um tesouro – a ideia que lhe invadiu foi essa. Clarice passou três meses sistematizando as fichas, “por conta própria”. Percebeu, de imediato, que a maioria correspondia a mulheres – 60% – e que cerca de 40% era de estrangeiros – os únicos que, em tese, possuíam a obrigação de procurar a DOPS ao chegar ao Brasil, posto que precisavam ser identificados quando em passagem pelo país. Não demorou para a jornalista e pesquisadora observar, ainda, que os artistas eram as principais vedetes, por assim dizer, dos agentes da delegacia.
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1-2 FESTA DA MOCIDADE Boa parte das fichas catalogadas é de artistas que participaram desse evento, como a bailarina italiana Vitoria Copola 3-4 EUFEMIUS BRUSCKY Pai do artista visual Paulo Brusky fez parte de Os Cossacos de Kuban 5-6 SIXTO GALLO O anão se apresentou no Circo Hispano-Americano, armado no Parque 13 de Maio, em 1950
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7 MAPA Como parte do acervo, ele situa os locais de trânsito dos artistas fichados entre as décadas de 1930–50 8-9 MARGA Era a estrela do Imperial Casino, como uma “coupletista internacional”
FISIONOMIAS “AMEAÇADORAS”
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Mágicos, ilusionistas, contorcionistas, transformistas, cantores, dançarinas, músicos da Europa, das Américas e da Ásia vinham ao Recife e davam à capital pernambucana o status de uma metrópole efervescente. Foi essa constatação que levou Hoffmann a procurar o historiador potiguar Durval Muniz de Albuquerque
Jr. “Eu tinha lido A invenção do Nordeste e outras artes, em que ele fala do uso da palavra ‘Nordeste’ e da criação do imaginário de uma região obsoleta, rural, arcaica. As fichas que eu tinha em mãos, porém, me mostravam que o Nordeste também era urbano e cosmopolita. O Recife era um porto aonde chegavam esses artistas do mundo inteiro”, aponta ela. O professor do Departamento de História da UFRN não apenas aceitou o convite para participar, como se encarregou da assessoria histórica do Obscuro fichário.
Em entrevista à Continente, ele ratifica a tese que defende em texto a ser disponibilizado no site www. obscurofichario.com: a razão para o fichamento dessas pessoas residia na ameaça que suas fisionomias e características físicas representavam para a ordem política, social e cultural vigente. “O fichário começa um pouco antes da ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, um período em que volta a se fortalecer a relação com a Igreja Católica, pois esta havia ficado à margem do poder na Primeira República. Havia também a prevalência do pensamento eugenista do nazifascismo e, assim, o ideal de um corpo ‘oficial’ ou modelo. As pessoas fichadas pela DOPS eram o oposto disso. Eram corpos desprezíveis que desafiavam o ponto de vista da normalidade: as mulheres barbadas, os anões, os contorcionistas, as mulheres que trabalhavam na noite e não eram casadas, os negros. Juntava-se a ideia de um corpo moral, defendida pela Igreja, com a perspectiva de um corpo biológico estranho”, argumenta o professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. Havia ainda o que ele descreve como uma “aversão ao nomadismo”. “Um regime intolerante prefere a sedentariedade, pois a fixação em um determinado lugar facilita o ato de vigiar. Os artistas eram nômades, viviam em vários lugares e sob outros códigos sociais, às vezes mudavam
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ACERVO DA BIBLIOTECA PUBLICA DO ESTADO DE PERNAMBUCO
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de nome, tinham pseudônimos diferentes para cada estado”, prossegue o historiador e professor. Clarice Hoffmann atenta para o fato de que os elaborados relatos das atividades dessas pessoas na capital pernambucana, preparados por agentes da DOPS mediante tocaias e delações, são um conjunto de provas de como operavam as estruturas de controle e repressão: “É importante destacar que essas biografias presentes nas fichas nunca poderiam ser tomadas como verdades, e, sim, como peças de ficção em que se pode perceber a maquinaria discursiva do regime”. São as “ficções” a que alude o filósofo francês Jacques Rancière em A partilha do sensível e seus rearranjos entre
Essas pessoas eram fichadas pela ameaça que suas ocupações representavam para a ordem política, social e cultural vigente o que se vê e o que se diz. O Obscuro fichário dos artistas mundanos é, também, uma possibilidade de recombinação das noções de identidade, territorialidade e alteridade, um farol a iluminar um enigmático capítulo da história recente do Brasil e um resgate de pequenas trajetórias fadadas ao esquecimento. “O mundo virtual deu concretude ao
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passado. Se não fossem as hemerotecas digitais, nunca poderíamos ter acesso a essas vidas, muito menos relacioná-las ao que acontecia na época”, ressalta Hoffmann. No site, as passagens de Norberto Americo Aymonino, Sixto Argentino Gallo e Margarida Hernandez, por exemplo, pelos palcos recifenses são alinhavadas com os documentos extraídos da DOPS e por meio de trechos do noticiário.
IMPERIAL CASINO
O arquivo digitalizado do Diário da Manhã, disponibilizado ao projeto pela Companhia Editora de Pernambuco/ Cepe, foi “uma fonte preciosa”, nas palavras da pesquisadora. É assim que sabemos que o argentino Aymonino,
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o Aymond, era um transformista que, em 1938, esteve no Casino Grande Hotel precedido por anúncios como “Aymond, em suas curiosas e brilhantes apresentações – Homem ou mulher?” e “Aymond, artista de dupla personalidade, em apresentações e tipos variados”. Dois anos antes, Margarida Hernandez, nome artístico Marga, era estrela solo no Imperial Casino como uma “coupletista internacional”. Em 1950, Sixto Gallo era um anão que integrava as atrações do Circo HispanoAmericano armado no Parque 13 de Maio. Segundo o periódico, “em turnê pelas Américas, chegava para apresentar o mais moderno espetáculo circense já visto na capital pernambucana!”. Outros estrangeiros notáveis eram Os Cossacos de Kuban, que incluíam o ucraniano Leônidas Ordyngew e o russo Boris Popoff, donos do bar e “restaurante familiar” Tabu. O Tabu, aliás, é recorrente nos verbetes, assim como o Imperial Casino e o Casino Grande Hotel, tríade de excelência da “cartografia das delícias”. No site, o Recife dos anos 1930 aos anos 1950 aparece com seus mapas antigos, dividido nessa e nas cartografias da paranoia, da política, do nomadismo e das artes. Durante os anos 1940, o Tabu – localizado na Rua do Hospício, 65 – funcionou
10-11 GRANDE OTELO Em 1948, ele era fichado ao chegar para se apresentar no Circo Nerino
como uma encruzilhada geográfica a receber os artistas internacionais, os policiais infiltrados, os jovens que, décadas depois, seriam considerados “subversivos” e os protagonistas e coadjuvantes da cultura local. Entre eles, um membro dos Cossacos fichado como Eufemiuck Brucki ou Eufenyusz Brucki. Durante a pesquisa, a equipe do Obscuro fichário confirmou o que a grafia, posteriormente “aportuguesada” para Eufemius Bruscky, denotava: tratava-se do pai do artista visual Paulo Bruscky. Clarice Hoffmann conta que as irmãs da escritora ucraniana Clarice Lispector foram fichadas, assim como “famílias inteiras de esquerda”. Um dos achados mais simbólicos de seu notável trabalho de pesquisa é a certeza de que esse fichamento ostensivo e metódico serviu de esteio para as práticas de cerceamento de direitos e liberdades individuais advindas com a instauração da ditadura militar. “No período democrático, quando os partidos políticos voltaram a ser legalizados e as pessoas correram para se filiar ao PCB, aí é que se fichava mesmo”, diz Clarice. “A estrutura repressiva não foi desmantelada entre 1946 e 1964, ou seja, durante a democracia os fiscais da DOPS/PE continuaram a vigiar, agora com mais fantasias,
pois havia o temor da espionagem, do comunismo”, situa o professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. Em um país que permanece “muito atrás dos vizinhos de continente”, no que se refere à abertura total dos arquivos do regime militar e na própria maneira de lidar com o pós-ditadura (“fomos os únicos da América Latina a anistiar torturadores”, lamenta o historiador e professor potiguar), O Obscuro fichário dos artistas mundanos é mais do que admirável: é essencial, ainda mais em tempos nos quais “corpos estranhos” – vide os alarmantes índices de assassinatos de transexuais e travestis – seguem a ser hostilizados. “Estamos vivendo um tenebroso momento de uma regressão civilizacional da sociedade brasileira. Periodicamente, vem à tona a dimensão fascista dessas forças conservadoras que temem as mudanças e as transformações sociais. A extrema direita saiu do armário e perdeu a vergonha de, privilégios à parte, reivindicar um novo golpe. Vivemos ainda os ecos da escravidão e essa intolerância ao diferente, tudo isso com uma polícia militarizada, um dos braços auxiliares das Forças Armadas durante a ditadura, que segue a praticar torturas”, contextualiza o professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. Que outros fichários ressurjam e que possibilitem, pois, novas revisões da história contemporânea de uma nação que, talvez, ainda não saiba lidar com o que foge à ordem.
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Atrações preparadas para tocar você.
NOVEMBRO 5 – PROJETO PALCO PARA TODOS Karoline Maciel - Acordeon Local: Palco para Todos Horário: 18h 8 – PROJETO MÚSICA NO PALÁCIO Grupo ALLEGRETTO Local: Salão de Entrada – Palácio do Campo das Princesas Horário: 10h 11 – PROJETO QUARTAS MUSICAIS Grupo de Câmara da UFPE – Regência: Flávio Medeiros Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30 12 – PROJETO PALCO PARA TODOS Pandora Calheiros, show “ABRINDO A CAIXA” Local: Palco para Todos – Pátio do CPM Horário: 18h 13 – PROJETO CESTA DE MÚSICA Elizete Galvão, Jéssica Soares e Jetro Rodrigues – Negro Spirituals Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30
SEMANA DA MÚSICA DO CPM – 2015 De 16 a 20 de novembro
De 16 a 20/11 Ciclo de palestras com professores e pesquisadores do CPM Horário: 14h às 17h30 Local: Sala 18B Árcripo Neves, Climério de Oliveira, Elizete Félix, Ernandes Candeia, Hugo Leonardo, Hugo Pordeus, Janete Florêncio, José Renato Accioly, Keila Souza, Marco Antônio Barcellos, Maria Clara de Souza Tavares, Pedro Henrique Tavares, Rodrigo Leite e Sérgio Barza.
Dias 17 e 19 Minicurso Introdução à Etnomusicologia Climério de Oliveira, Keila Souza e Sérgio Cassiano Horário: 14h às 18h Local: Sala 19B 16 – Segunda-feira 17h – Missa em Homenagem a Santa Cecília Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM 19h30 – Fábio Zanon (UK/BR) e Emanuelle Baldini (SP) Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM 17 – Terça-feira 17h – Circulação de Música de Câmara Orquestra Vicente Fittipaldi Local: Sala 11 17h30 – Quinteto de Clarinetes - Sopros de PE Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM 19h30 – Orquestra de Choro da UFPE Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM 20h – “Show do ABRAÇO” Grupo SaGRAMA, Elba Ramalho, Alceu Valença, Santana, Jorge Du Peixe, Dengue, Quarteto Encore e a Cia de Dança Perna de Palco Show beneficente com a renda revertida para o Hospital do Câncer de Pernambuco. Informações: 3217-8025 (Hospital do Câncer de Pernambuco) Ingressos à venda no site: www.ingressoprime.com Local: Teatro Guararapes - Centro de Convenções Olinda 18 – Quarta-feira 17h – Bando de Violas - Direção: prof. Adelmo Arcoverde Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida – CPM 18h – Grupo de Trombones Recife Local: Sala 11 20h – Grupo Pau Brasil (SP) Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM 19 – Quinta-feira 15h – Banda Sinfônica do CPM – Regente: Marcos FM Local: Pátio do CPM
A programação dos 85 anos do Conservatório Pernambucano de Música prossegue com grandes atrações para o público recifense. Não é para menos. A instituição, desde que foi criada, vem sendo referência de qualidade para a música e a formação musical. Conheça as atrações de novembro e participe. Até dezembro, o CPM dá o tom. Revista 179_NOV.indb 51
17h30 – Orquestra de Frevo do CPM “Maestro Duda” – Regente: Maviael Junior (Nino) Local: Pátio do CPM 18h30 - Fernando Muller (piano) e Virgínia Cavalcanti (canto) Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida – CPM 20h – Orquestra de Rock do CPM e Grupo The Beat Beatles (SP) Regente: Sergio Barza Local: Parque Dona Lindú 20 – IX MARATONA DA MÚSICA DO CPM Tem início às 14h e as apresentações seguem sem intervalos até a noite. Os grupos são distribuídos em quatro palcos distintos e neste dia as apresentações têm duração de 30 minutos cada. Algumas atrações: 15h30 – Quinteto de Sopros ARRECIFE Local: Sala 11 16h30 – Brasilnambuco Orquestra Local: Palco Mangueira - Pátio do CPM 18h30 – Ciel Santos – Espetáculo “Livre” Local: Palco Mangueira - Pátio do CPM 20h – Cristina Amaral e Banda Local: Palco Mangueira - Pátio do CPM 26 – PROJETO PALCO PARA TODOS Romero Ferro e Banda Local: Palco para Todos Horário: 18h 27 – PROJETO CESTA DE MÚSICA Grupo de Câmara do prof. Árcripo Neves – motetos de Luís Álvares Pinto Geovânia Lopes, Mônica Muniz, Dilvan Ferreira e Henrique Braga (canto) Arcripo Neves (flauta), Lucas Barbosa (flauta), Jardel Souza (viola da gamba) e Andréia Rocha (cravo) Todos os eventos têm entrada gratuita.
CONSERVATÓRIO PERNAMBUCANO DE MÚSICA Av. João de Barros, 594 – Santo Amaro – Recife – PE Facebook: Conservatório Pernambucano de Música Site: www.conservatorio.pe.gov.br Fone: 3183-3400
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PRISCILLA BUHR/DIVULGAÇÃO
KARINA BUHR Afiando o olhar sobre o mundo
Em terceiro álbum solo, Selvática, cuja capa rendeu polêmica, a artista aprofunda antiga relação com o rock em arranjos e letras mais pesados TEXTO Débora Nascimento
Sonoras É bastante simbólica a mudança
do olhar de Karina Buhr nas capas de seus três discos solo, lançados no curto período de cinco anos. Da estreia, Eu menti pra você (2010), depois por Longe de onde (2011), até o mais recente, Selvática, seu olhos passaram a mirar desafiadoramente a lente da câmera. Essa postura indômita não transparece somente num simples gesto impresso nas fotografias, mas também nas canções desse seu terceiro álbum, que aprofunda a sua relação com o mais longevo provocador dos gêneros musicais, o rock. Antes mesmo de seu lançamento, o novo disco de Karina Buhr já causara polêmica, exatamente por conta de sua capa, na qual a cantora e compositora aparece de seios à mostra. A postagem no Facebook foi banida pela rede social, assim como a conta da artista. Isso foi o bastante para suscitar uma reação em cadeia. Vários de seus seguidores
compartilharam a imagem, assinada por sua irmã, Priscilla Buhr. Alguns, inclusive, tiveram suas contas de perfis também bloqueadas – vale lembrar que, para acontecer a censura, é preciso que algum usuário faça a denúncia ao site. Toda a polêmica, se ajudou a projetar a divulgação do disco, pode ter colaborado também para ofuscar o fato de que este é o mais pesado dos três álbuns de Karina, do ponto de vista dos arranjos, menos elaborados que os anteriores. Produzido por Bruno Buarque (bateria), Mau (baixo), André Lima (teclados) e Victor Rice (violoncelo), Selvática começa ameno na melhor das 11 faixas, o reggae Dragão. Em seguida, despontam algumas canções inspiradas e bem intricadas, como Conta-gotas (destaque para o diálogo entre o baixo de Mau e o trompete de Guizado, coautor) e a ciranda Rimã. No entanto, a artista preferiu investir no rock mais cru, talvez para dar vazão a letras raivosas, como as
do pós-punk Pic nic (outra parceria com o trompetista) e do punk Cerca de prédio (feita com Canibal), na qual critica a intensa especulação imobiliária no Recife. Essas músicas vão contribuir para potencializar a performance de Karina, já bastante visceral, num estilo que não se assemelha ao de nenhuma cantora da música brasileira – lembra mais a presença de palco de Kathleen Hanna (Bikini Kill, Le Tigre), inclusive pelo teor feminista. “Legal ver uma cantora se descabelando e se atirando no chão do palco. Geralmente, elas têm muito pudor”, afirmou Lucas Santtana, no concorrido lançamento de Eu menti pra você, em 2010, quando o show no Sesc Pompeia (SP) reuniu uma constelação da nova música brasileira, confirmando o burburinho em torno da “novata”, que tinha Edgard Scandurra e Fernando Catatau como guitarristas de sua banda. Estavam na plateia Marcelo Jeneci, Tulipa Ruiz,
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Thiago Petit, Thalma de Freitas, Rica Amabis, entre outros. Ali foi o começo da brilhante carreira individual de Karina, numa trajetória similar à de Otto, que atuava como percussionista no Recife e cujo trabalho solo foi aclamado, principalmente em São Paulo. Ambos estavam na primeira incursão da cena mangue em terra paulistana: ele, o Bicho Que Pula, com a Mundo Livre S/A; ela, como uma das pastoras do Veio Mangaba – a percussionista participou de vários grupos, bandas e coletivos do Recife. Desde o lançamento de Eu menti pra você, a artista vem colecionando honrarias, de críticas positivas a prêmios. Assim como Otto em 1998, com a estreia solo Samba pra burro, ela também ganhou reconhecimento da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), sendo eleita, em 2010, Artista do Ano; esteve no Top 10 da Rolling Stone; foi contemplada
pelo edital Natura Musical, para gravação do segundo disco e turnê; indicada à Artista Revelação do Ano no Video Music Brasil e à Melhor Cantora no Prêmio Música Digital. Com Longe de onde, Karina recebeu um dos maiores elogios de sua carreira. Foi apresentada na MTV americana como “uma Patti Smith com olhos pintados e um monte de cultura brasileira a seu dispor”. E, pelo segundo ano consecutivo, entrou no Top 10 da Rolling Stone. No 45º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ganhou, com Tomaz Alves Souza, o prêmio de Melhor Trilha Sonora pelo filme Era uma vez eu, Verônica, de Marcelo Gomes, e foi finalista do Prêmio Bravo, listada entre os três melhores espetáculos, junto com as veteranas Gal Costa e Marisa Monte. Neste 2015, publicou a coletânea de escritos Desperdiçando rima, terceiro livro mais vendido na Flip, atrás apenas de Jóquei, da poeta portuguesa Matilde
Campilho, e Agora aqui ninguém precisa de si, de Arnaldo Antunes. Interessante Karina ter ficado bem próxima do ex-Titãs nesse ranking, pois algumas de suas letras lembram o estilo dele, como Cara palavra e A pessoa morre, ambas de Longe de onde. Em Selvática, ela volta aos temas prediletos, o amor, sob o ponto de vista irônico e pouco idealista, e as críticas sociais. Apesar de não se considerar cantora, não gostar de ser chamada assim, possivelmente pelo comprometimento que isso implica, Karina Buhr vem aprimorando sua interpretação. Embora não tenha uma extensão vocal típica de grandes intérpretes, possui um atributo nesse quesito, com sua voz cheia de sotaque baianopernambucano e que muitas vezes se assemelha ao timbre de uma menina, canta de maneira diferente cada uma dessas letras de quem está sempre curiosa, descobrindo o mundo.
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NUDEZ Muito além de embalar a música
Capa de Selvática está em consonância com movimentos em defesa da libertação do corpo feminino e da apropriação das imagens individuais Karina Buhr já havia sido censurada no Facebook, quando participou de uma campanha, em 2012, ao lado de outros artistas, em que aparecia de topless, num protesto contra a postura equivocada da maioria dos homens em relação ao Dia Internacional da Mulher. Agora, com a capa de Selvática, uma nova censura já seria esperada. Afinal, a rede
social tem, dentre suas regras, o veto claro à publicação de nudez. A artista, por sua vez, defende o direito das mulheres de exporem seus corpos como manifestação da liberdade da qual deveriam dispor, e não apenas serem objeto da manipulação das regras impostas pelo sexo masculino. O discurso de Karina entra em consonância com movimentos que vêm
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despontando no mundo todo, como o Free the Nipple, cuja hashtag circulou com frequência pelas redes sociais em 2014 e que rendeu filme homônimo, dirigido pela ativista Lina Esco, lançado em dezembro do ano passado. “As mulheres, na América, recebem 78 centavos por dólar que recebe um homem no mesmo posto de trabalho. No fundo, é uma questão bastante simples, apoiada em uma mercantilização do corpo. Há muito dinheiro que trata de esconder o mamilo: se permitissem o topless, chegaria um ponto em que as pessoas se cansariam de vê-lo, deixaria de ser um tabu e aí perderia todo esse valor sexual de coisificação feminina que há na indústria. Por isso, o mamilo é um símbolo que a América necessita. Ver um montão de tetas por todo lado para que superem esta merda de uma vez. Não é só fazer topless para conseguir igualdade em relação aos corpos, há muito mais por trás”, defendeu a diretora, à época. A campanha Free the Nipple começou a partir da reclamação da garantia básica do direito das mulheres amamentarem seus filhos em público, sem sofrerem retaliações ou preconceitos, e acabou sendo ampliada. A iniciativa angariou o apoio de artistas como a atriz, roteirista e diretora Lena Dunham (Girls) e as cantoras Miley Cyrus e Soko – que se despiu para a ação. Além do uso da nudez feminina em manifestações nas ruas e no cenário das artes plásticas, a exemplo do trabalho da artista visual sérvia Marina Abramovic e de Yoko Ono – que, ao lado de John Lennon, apareceu nua (em frente e verso) na famosa capa de Two virgins (1968), lançado em novembro, um mês depois de 19 mulheres despidas estamparem Eletric ladyland, de Jimi Hendrix –, ela,
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TWO VIRGINS Capa e contracapa exibiam nudez de Lennon e Yoko
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ÍNDIA Imagem de LP de Gal Costa de 1973 chegou a ser censurada
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MILEY CYRUS Promete nudez em show e videoclipe com Flaming Lips
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MADONNA Em notória foto do livro Sex, lançado em 1992
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KARINA BUHR Cantora (C) em campanha feminista no Dia da Mulher
a nudez, volta agora a público através de discos de cantoras pop. Embora não fique claro quando o intuito tem a ver com protesto, ação de marketing ou apenas exibicionismo. Rihanna, vez ou outra, aparece de topless, como no seu último álbum, Unapologetic (2012). Outras estrelas, em fotos menos evidentes, também surgiram sem blusa, mas sem exatamente mostrar os seios, como Beyoncé, na sua estreia Dangerously in love, em 2003, e Janet Jackson, em Damita Jo, de 2004, mesmo ano do polêmico episódio do mamilo à mostra na performance com Justin Timberlake no Super Bowl, o tal nipplegate ou wardrobe malfunction. Para este ano, já foi anunciada uma nudez insinuante (sem mostrar nada) na capa do próximo disco de Selena Gomez. A supracitada Miley Cyrus, que se mostrou sem roupa em Wrecking ball (2013), clipe com mais de 800 milhões de visualizações no YouTube, anunciou que vai realizar show com a The Flaming Lips, em que ela, os músicos e a plateia, todos, estarão nus. Há 15 anos, Björk lançou o clipe Pagan poetry, que também rendeu bastante polêmica com a exibição de seus seios. Quatro anos antes, Alanis Morissette se despiu no videoclipe de Thank you, mas com efeitos especiais para cobrir as partes íntimas. Enquanto algumas cantoras usam artifícios para
disfarçar a nudez, Madonna a explorou destemidamente, e por dois motivos: dinheiro e polêmica. O primeiro, no começo da carreira, o segundo, sempre. Em 1992, quando já havia lançado hits suficientes para toda uma vida na música pop, publicou o livro Sex, com fotos de Steve Meisel. Na mais famosa delas, está nua pedindo carona. Em dezembro do ano passado, realizou um ensaio sensual para a Interview, em que mostrava os seios, esbanjando a ótima forma aos 57 anos. Em suma, botar o peito para fora não é exatamente uma novidade entre as cantoras. Mas o Brasil, mesmo com a Marquês de Sapucaí, tem poucos exemplos nessa área. Até a chegada de Selvática, as mais marcantes tinham sido Gal Costa, que mostrou os seios em Índia (1973), tirou a roupa para a revista Status, em 1985, e abriu a blusa ao interpretar Brasil (Cazuza), em 1994, influenciada pelo diretor Gerald Thomas, e Cássia Eller, que subia a camiseta ao cantar Smells like teen spirit, de Kurt Cobain, em 2001 – gesto marcante que rendeu uma homenagem à intérprete no último Rock in Rio, em que diversas artistas, como Zélia Duncan e Mart’nalia, levantaram suas blusas. O controverso episódio Karina Buhr x Facebook dividiu a opinião pública, mas a artista conquistou uma adesão na própria rede social, de fãs, amigos e de sua mãe, que postou foto com um seio à mostra. No mesmo período, foi lançado o ensaio Selváticas, de Beto Figueirôa, que contou com a participação de 13 mulheres, além da cantora, que se despiram e deram a sua colaboração para um possível novo rumo da história. DÉBORA NASCIMENTO
POP
ALTERNATIVO
Interscope/Polydor
Independente
LANA DEL REY Honeymoon
MUTA Chego perto
A cantora americana Lana Del Rey parece incompatível com seu tempo. Sua voz de mulher amadurecida aliada à sua música que remonta Hollywood dos anos 1940-50 concebem uma intérprete digna da Era de Ouro. Em seu novo álbum, Honeymoon, Lana compõe canções melancólicas, de ritmo arrastado, em histórias de amor que mais parecem duelos entre uma mulher (eu lírico) e seu amado. Em alguns momentos, as letras oferecem leveza, sem abrir mão da sonoridade com a característica atmosfera triste.
O cantor e músico Juliano Muta é notável no samba, desde suas passagens por Inferninho Samba Orquestra, Ínsula e Chocalhos e Badalos. Agora, como Muta, ele lança o primeiro disco solo, abrindo o horizonte da sua sonoridade. A música que dá título ao disco, Chego perto, é cria do manguebeat. O single Domingo é um brega, com uma guitarra bem expressiva, fala da angústia e do sentimento dos dias. Este é um disco de compositor, no qual o autor assina 10 das 11 faixas, todas elas com melodia marcante.
MPB
SAMBA
Rosa Celeste
Som Livre
ARNALDO ANTUNES Já é Para a vida, não é preciso pressa. Foi assim que Arnaldo Antunes compôs seu novo disco, o 16º, durante férias. Sempre imagético, Arnaldo é sofisticado nas letras e simples nas melodias e arranjos, embora tenha à disposição músicos virtuosos, como o tecladista Marcelo Jeneci e o guitarrista Pedro Sá. Entre os parceiros, ele conta com os tribalistas Carlinhos Brown e Marisa Monte, sem falar na produção de Kassin, que participou da escolha do repertório e timbragens. O disco tem uma pegada indie, mas sem se resumir a um único ritmo.
ROBERTA SÁ Delírio Delírio é um álbum sentimental, que fala de paixão. Roberta Sá canta canções de Ataulfo Alves (1909 – 1969), Baden Powell (1937 – 2000), Martinho da Vila e Adriana Calcanhoto, além do parceiro Chico Buarque. Entretanto, neste trabalho, ela se afirma como artista do seu tempo. O samba é uma linguagem muito própria para o diálogo, como ocorre na música Amanhã é sábado, num dueto com Martinho da Vila. Nos seus discos, tem intercalado canções inéditas com títulos consagrados, contando com os melhores nomes no diálogo geracional.
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
Claquete HORROR QUEER O vilão como metáfora
Filmes clássicos, como A hora do pesadelo, servem como alegoria para expor a condição “monstruosa” do homossexual na sociedade heteronormativa TEXTO Olivia de Souza
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1 ANIVERSÁRIO Sequência de A hora do pesadelo que completa 30 anos neste novembro 2 LEITURA QUEER Presença do vilão Freddy Krueger está ligada à sexualidade do protagonista (E)
No livro Monsters in the closet: Homosexuality and the horror film – publicação de 1997 e pioneira ao analisar o cinema de horror através de uma perspectiva queer –, Harry M. Benshoff argumenta que histórias de terror e filmes de monstros, mais do que qualquer outro gênero cinematográfico, podem servir de alegoria para expor a condição “monstruosa” do homossexual diante de uma sociedade heteronormativa e restritiva. A epidemia da Aids, na década de 1980, por exemplo, ajudou a espalhar consideravelmente discursos equivocados, que comparam o homossexual a um predador terrível e contagioso que, “com uma simples gota de sangue”, poderia condenar à morte a mais pura e inocente das vítimas. “Algumas pessoas sempre consideraram intrinsecamente monstruoso e não natural tudo que esteja fora ou que seja oposto ao status quo. Talvez, uma abordagem ideológica de monstros fictícios frequentemente seja perpassada por um reconhecimento dos horrores da vida real, tal como a Aids”, explana Benshoff. Nesse sentido, ainda que não seja explicitada a intenção de alguns cineastas em abordar questões de gênero e sexualidade de uma forma direta, a teoria queer possibilita que
certos filmes sejam analisados sob esse ponto de vista. É o caso da sequência do clássico A hora do pesadelo, A hora do pesadelo 2: A vingança de Freddy (1985), que neste novembro completa três décadas desde o seu lançamento, sendo cultuado como um dos filmes de horror “mais gays de todos os tempos”. Na mitologia do personagem, construída no primeiro longa de Wes Craven (1939-2015), Freddy Krueger é uma entidade que persegue um grupo de jovens dentro de seus sonhos, sobretudo a jovem Nancy, atormentada até a beira da loucura pelo estranho indivíduo de garras e suéter verde. Na sequência dirigida por Jack Sholder, com roteiro de David Caskin, o garoto Jesse Walsh e sua família se mudam para a antiga casa de Nancy, localizada na famosa e maldita Elm Street, e se tornam, automaticamente, alvo da obsessão do assassino – o que já quebra uma das primeiras “regras” dos filmes de terror slasher: a presença de protagonistas femininas, as chamadas scream queens. No filme, Krueger deseja mais do que simplesmente atormentar e assassinar suas vítimas em seus pesadelos. Agora, ele quer tentar chegar ao mundo real e, para tal, utilizará o corpo de Jesse, dando continuidade à matança. Em Monsters
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INDICAÇÕES
Claquete in the closet, Benshoff cita o trabalho do crítico Robin Wood, que, em uma série de ensaios produzidos na década de 1970, sugere que a temática cerne do gênero horror estaria exatamente na relação entre a normatividade (patriarcal, heterossexual, capitalista) e o Outro (encarnado na figura do monstro, o ser estranho que surge para desestabilizar o status quo). O monstro seria para a “normalidade” a ameaça que o homossexual é para o hétero. “Dessa forma, histórias de horror e filmes de monstros, talvez mais que qualquer outro gênero, suscitam interpretações queer, por causa das suas formas metafóricas, e dos seus formatos de narrativa que quebram com o status quo heterossexual”, escreve Benshoff. O subtexto presente em A hora do pesadelo 2 oferece pistas de que a presença de Krueger no filme estaria intrinsecamente relacionada à sexualidade do protagonista (foi confirmado há pouco pelo roteirista e por parte do elenco que a homossexualidade latente do filme era intencional). Jesse tem um “mal” dentro de si, tentando a qualquer custo vir ao mundo real que ele faz de tudo para esconder das pessoas que o rodeiam. Além disso, ele é diferente e incompreendido por sua família, que o ignora solenemente durante suas crises – conflitos que podem muito bem ser trazidos para a realidade de um jovem gay nãoassumido. Há também o
ANIMAÇÃO
DRAMA
Dirigido por Isao Takahata Com Aki Asakura, Kengo Kora, Takeo Chii California Filmes
Dirigido por Anna Muylaert Com Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsas Pandora Filmes
O CONTO DA PRINCESA KAGUYA (des)interesse amoroso de Jesse por uma garota, ao passo que sua curiosidade recai principalmente em seu melhor amigo. Enquanto no longa de estreia da franquia Freddy Krueger é o pesadelo do adolescente hétero suburbano e sexualmente ativo, no filme seguinte, ele se torna o símbolo do horror que ronda a sexualidade de Jesse, o medo de se descobrir (e ser descoberto) e sofrer o “pesadelo gay” dos anos 1980. Para Benshoff, é equivocado relacionar homossexualidade e monstruosidade de forma negativa. Pois assumir-se como “monstro” (queer, que em tradução direta significa “estranho”, “ridículo”) é, em si, uma estratégia de empoderamento, a partir do momento em que um grupo marginalizado toma para si um termo que a cultura heterossexual dominante utilizou como rótulo depreciativo ao longo dos tempos. O que não significa dizer que o horror produz, necessariamente, leituras queer – nem todos os espectadores desses filmes, héteros ou homossexuais, fazem esse tipo de interpretação (e às vezes nem mesmo é a intenção dos produtores). Mas vale ressaltar a importância desses cenários fantásticos em que um Freddy Krueger pode – mesmo que de forma aterrorizante e debochada – dar voz e espaço a comportamentos não normativos, estimulando audiências e sensibilidades.
QUE HORAS ELA VOLTA?
Baseado num tradicional conto japonês, o diretor de O reino dos gatos e cofundador do Studio Ghibli recriou a história de Kaguya, uma princesa achada dentro de um caule de bambu e criada por camponeses. O filme, que passou por diversos festivais, como os de Cannes e Toronto, sendo também indicado ao Oscar de melhor animação, apresenta um traço distinto da maioria dos filmes do estúdio, e cria nova estética do anime japonês.
Regina Casé vive a empregada doméstica Val, que saiu de Pernambuco para São Paulo a fim de conseguir dinheiro e manter sua filha, Jéssica, que permaneceu no Nordeste. Durante 13 anos, Val mora na casa dos patrões e cria uma relação subalterna com a dona da casa, explicitando problemáticas relações de classe. As tensões aumentam quando Jéssica, quase adulta, vai para São Paulo para prestar vestibular.
ANIMAÇÃO
ERÓTICO
Dirigido por Michel Ocelot Com Awa Sene Sarr, Romann Berrux Imovision
Dirigido por Gaspar Noé Com Karl Glusman, Aomi Muyock, Klara Kristin Imovision
No último filme da trilogia, iniciada com Kiriku e a feiticeira, Ocelot conta pequenas aventuras de Kiriku, o menino superdotado que pediu para nascer e se pariu sozinho, já falando. No primeiro filme, baseado num conto guineense, Kiriku derrota a feiticeira que atormentava a sua vila, da qual tinha roubado todos os homens. Nesta animação que encerra a trilogia, histórias paralelas à luta de Kiriku pela segurança da sua aldeia são trazidas à tona por um narrador místico, seu avô.
Murphy, personagem principal e narrador do filme, tem uma relação amorosa com Electra e, na tentativa de resolver frustrações entre os dois, decide explorar de forma mais livre a sexualidade do casal, mas as amarras da monogamia compulsória e da incompreensão do que seria um amor livre levam a diversas frustrações, causadas pela postura ciumenta e machista do protagonista. O filme ganhou notoriedade pela exibição em 3D nos cinemas.
KIRIKU, OS HOMENS E AS MULHERES
LOVE
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OLGA WANDERLEY/DIVULGAÇÃO
Palco ACESSIBILIDADE Novos passos para propagar a arte
Depois do bem-sucedido espetáculo Leve, Coletivo Lugar Comum promove oficina de iniciação em dança para pessoas cegas TEXTO Maria Eduarda Barbosa
Tudo começou em 2011, quando
as integrantes do Coletivo Lugar Comum – Renata Muniz e Maria Agrelli – encenaram Leve, durante o festival Palco Giratório no Recife. Além de ser o primeiro trabalho do coletivo, o espetáculo de dança foi precursor por ser o primeiro grupo pernambucano a proporcionar recurso de audiodescrição, que propõe a inclusão de pessoas cegas e com baixa visão em atividades voltadas aos meios de comunicação visual. A apresentação de Leve desencadeou uma série de iniciativas do Lugar Comum envolvendo acessibilidade comunicacional. No ano seguinte à encenação no Palco Giratório, Leve manteve-se em temporada com audiodescrição e intérprete de Libras. Embora houvesse a disponibilização diária de 30 equipamentos de audiodescrição, a plateia tinha um, dois, às vezes nenhum espectador cego,
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SÍLVIA GÓES/DIVULGAÇÃO
Palco
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exceto pelo último dia da temporada, quando o Instituto dos Cegos levou público à apresentação. Nesse dia, o número de espectadores com deficiência visual chegou a 20. O coletivo passou, então, a questionar o motivo da ausência desse público, mesmo com a disponibilidade de recursos de acessibilidade comunicacional no espetáculo. Em 2013, a audiodescrição também foi inserida em apresentações de artistas do Lugar Comum, mas a ausência do público cego em alguns momentos levantou novas questões e iniciativas para aproximar-se dele. Um tempo depois, quatro integrantes do coletivo realizaram duas oficinas no Instituto dos Cegos de Pernambuco, com uma média de 15 alunos em cada. Agora, em 2015, o grupo artístico possui um projeto maior, de iniciação em dança, com metade das vagas voltada para pessoas cegas que, junto
a outros participantes, aprendem e compartilham experiências através da concepção do corpo e espaço. Com apoio do Funcultura, a oficina Multiplicando olhares sobre o corpo que dança teve início em agosto e segue até dezembro, sendo ministrada pelas artistas Silvia Góes, Maria Agrilli e Renata Muniz. As aulas acontecem uma vez por semana, mais precisamente às quartasfeiras, na sede do Coletivo Lugar Comum, que fica no Bairro de Santo Amaro, no Recife. Durante a oficina, desenvolve-se a conscientização e o autoconhecimento do corpo em um trabalho que desperta ações corporais, desafiando o participante a sair da zona de conforto e descobrir o potencial que existe dentro de si. “Isso tudo relacionando a autopercepção corporal e a percepção também do corpo do outro, através de sentidos potencializados para o corpo em estado de dança”, afirma Silvinha Góes.
São diversos exercícios de ampliação da audição, sensibilidade da pele, olfato, emissão de sons, respiração, tudo desenvolvido em dinâmicas algumas vezes realizadas de olhos vendados. “A direção do olhar, o virar de cabeça são também movimentos de dança, e isso será trabalhado com os alunos cegos e com aqueles sem deficiência aparente que vão vivenciando juntos esse encontro”, destaca Góes. No momento da reportagem da Continente, havia 20 vagas na oficina, com três alunos cegos inscritos. A quantidade esperada pelas instrutoras seria de 10 alunos com deficiência. Informações sobre a oficina, relatam as responsáveis, foram divulgadas em escolas, instituições. Ao longo das aulas, Silvinha, Renata e Maria informam que as mudanças nos alunos já são perceptíveis, como a superação de alguns gestos de retração e introspecção. No final de setembro, o projeto contou com uma aula especial ministrada pela bailarina Joselma Soares, da companhia Giradança, de Natal (RN). Jô, como é chamada pelos alunos e integrantes do coletivo, mostrou que dançar vai além da movimentação do corpo. A bailarina perdeu a visão aos 24 anos de idade, quando teve uma inflamação rara chamada Doença de Coats. Desde então, seu trabalho volta-se inteiramente à dança. Inicialmente, ela procurou o balé clássico. “Eu queria ser bailarina e só tinha como referência a bailarina da caixinha de música”, conta Jô, que depois migrou para a dança contemporânea. “Fui meio temerosa, mais pelo fato de, visualmente, eu não saber o que é a contemporânea. Está sendo boa a experiência na Giradança. Aprendo todos os dias.” A companhia potiguar é referência nacional e internacional na busca de uma linguagem própria na dança contemporânea. Em sua aula, Jô trouxe uma concepção diferente sobre o que é dançar e olhar, proporcionando uma experiência de audiodescrição não como um recurso, mas como parte da encenação. Na ocasião, duas pessoas compunham a cena em conjunto, uma dançando e outra descrevendo. Às vezes, havia duas descrições ao mesmo tempo e, assim, as percepções
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ACERV0 C0LETIVO LUGAR COMUM
1 LEVE O espetáculo foi o primeiro de um grupo pernambucano a proporcionar o recurso de audiodescrição 2 PROJETO Em 2015, o coletivo deu início às oficinas de iniciação à dança, com metade das vagas voltadas para cegos
em torno da dança eram multiplicadas. “O meu pescoço está falando para alguém, a minha respiração está falando, então tudo isso também se transforma em olhar”, enfatiza Jô. Sobre dançar, a bailarina caracteriza a ação como o todo: voz, respiração, gestos, ação e estado de presença. “Dançar não é só movimento e ritmo, mas tudo o que se move dentro de mim.”
ENSAIO ABERTO
Como parte do projeto Multiplicando olhares sobre o corpo que dança, o Coletivo Lugar Comum promove uma vez ao mês, até dezembro, um ensaio aberto de espetáculos que trabalham com a audiodescrição como recurso comunicacional. O primeiro aconteceu no início de outubro e a encenação ficou por conta de Renata Muniz e Maria Agrelli, que colocaram Leve novamente em cena. A encenação possui a perda como temática e seus movimentos são metáforas concebidas através de pesquisas sobre sentimentos. O momento do ensaio aberto contou com uma ajuda oportuna da natureza: o calor do entardecer tomava conta da sede do coletivo, levando ao maior acolhimento do público àquele ambiente simples. A audiodescrição ficou a cargo de Marcella Malheiros,
As oficinas trazem exercícios de ampliação da audição, sensibilidade da pele, olfato, emissão de sons e respiração da equipe VouVer Acessibilidade, que proporcionou novas percepções sobre a encenação das bailarinas. Após a apresentação, foi realizado um debate acerca da acessibilidade. Em meio aos espectadores, Girlane Balbino, de 22 anos, disse que ficou com a sensação de estar inserida na cena de Leve. “A audiodescrição me oferece possibilidades de participar e entrar na cena. Me emociono muito.” Já Vinicius Passos, que também é aluno da oficina, conta que sentiu dificuldade em alguns momentos. “Na minha mente, foi difícil absorver tantas informações ao mesmo tempo. Mas o que seria de mim e de nós, cegos, sem alguém para descrever? Havia muitas cenas em que não dava para ter uma percepção, e a pessoa que estava descrevendo me fez enxergar”, destaca Vinicius. É a partir dessa troca de experiências que o projeto consegue ampliar os
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olhares sobre a dança e dar voz a esse público, possibilitando que surjam propostas de espetáculos de dança com acessibilidade. Para a bailarina Silvinha Góes, há o desejo do grupo de que as aulas e os eventos se consolidem como espaço aberto para o intercâmbio de saberes: “Entre pessoas cegas, pessoas sem deficiência aparente que também estão iniciando o mergulho na dança, profissionais das artes cênicas que têm interesse em investir em acessibilidade, profissionais da área da acessibilidade propriamente dita, criando um território onde dar e receber se misturem”, completa. Relatos, fotografias e vídeos realizados para o projeto podem ser encontrados no blog Multiplicando Olhares (multiplicandoolhares.wordpress. com), que busca servir como um instrumento para artistas, produtores, grupos ou entidades públicas e privadas que pretendam garantir a acessibilidade aos espetáculos como direito do público cego e ampliar a presença dele nas encenações. “Fazendo com que o desejo da troca se realize e os equipamentos de audiodescrição nos espetáculos sejam mais do que recursos silenciosos esperando ansiosamente por um público que não chegou ainda”, afirma Silvinha Góes.
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MANUEL PIÑA/DIVULGAÇÃO
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CASA DAROS Exposição com cubanos encerra atividades
Cuba – Ficción y fantasía traz ao Rio de Janeiro mais de 130 trabalhos de 17 artistas, produzidos entre 1975 e 2008, que compõem o acervo particular da instituição TEXTO Luciana Veras
A ilha dos irmãos Fidel e Raúl Castro e da revolução de Che Guevara, a Havana da trilogia suja e literária de Pedro Juan Gutiérrez, o Malecón dos morangos e chocolates cinematográficos de Tomaz Gutíerrez Alea, o país que se fez morada do escritor Ernest Hemingway por mais de duas décadas… Qualquer que seja o enfoque, qualquer que seja o debate
ou mesmo uma pequena reflexão propiciada pelo noticiário recente, há não apenas uma Cuba, mas várias delas. É sob essa perspectiva que se ancora Cuba – Ficción y fantasía, exposição que a Casa Daros elegeu para encerrar suas atividades no Brasil. Trata-se de uma seleção de mais de 130 obras de 17 artistas
cubanos, produzidas entre 1975 e 2008 e pertencentes à Coleção Daros Latinamerica – o maior acervo particular europeu de arte contemporânea da América Latina, criado em 2000 pela colecionista Ruth Schmidheiny em Zurique, na Suíça. Inaugurada em março de 2013, em um casarão do século 19, no Bairro de Botafogo, submetido a anos de reforma, a Casa Daros anunciou seu fechamento em maio deste ano – para muito espanto, cumpre dizer. O imóvel será vendido para o grupo Eleva Educação. A despedida da instituição dá-se em 13 de dezembro, data em que se encerra a temporada de Cuba – Ficción y fantasía e da instalação Nada absolutamente nada, da dupla suíço-brasileira Maurício Dias e Walter Riedweg. De um lado, Dias e Riedweg, com um trabalho que resulta de oficinas realizadas com pacientes do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a partir da leitura de contos do suíço Robert Walser (1878–1956). Do outro, Juan Carlos Alom, Belkis Ayón (1967-1999), José Bedia, Tania Bruguera, os irmãos Ivan e Yoan Capote, Javier Castro, René Francisco, Los Carpinteros, Ana Mendieta (1948–1985), Marta Maria
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1 MANUEL PIÑA O mar que cerca a ilha é um dos elementos da série Aguas baldías
ZOE TEMPEST/DIVULGAÇÃO
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1 ANA MENDIETA Siluetas traz impressões dos contornos do seu corpo no solo
Pérez Bravo, Manuel Piña, Santiago Rodríguez Olazábal, Lázaro Saavedra e Tonel. Encarregados de entreter e intrigar os últimos visitantes da Casa Daros, os artistas formam um diagrama heterogêneo, assim como o conjunto das peças – fotografias, vídeos, desenhos, telas, instalações e objetos. Sobre o recorte cubano, pode-se dizer que não há cunho didático algum. “A seleção não é enciclopédica”, diz Hans-Michael Herzog, diretor artístico da Coleção Daros Latinamerica e curador da mostra, ao lado de Katrin Steffen. Não vigora, pois, a proposta de condensar as vertentes artísticas das três últimas décadas em Cuba, mas, sim, o intuito de reunir trabalhos que dialoguem entre si, ao pensar as contradições e as precariedades de uma sociedade peculiar. “São obras que olham para a situação de Cuba como uma ilha em que convergem futuro, ficção e utopia. A ideia de uma utopia – a utopia de Fidel, do socialismo – traz, dentro de si, um outro lado, que você nunca vai poder realizar. A impossibilidade está presente”, acrescenta Herzog. E não poderia se ausentar ante as adversidades econômicas e políticas que atravessaram a ilha caribenha desde a década de 1950. Tome-se como exemplo El bloqueo (1989-1993), de Tonel, uma instalação de blocos de concreto dispostos no chão no formato do mapa da ilha. Herzog preferiu montá-la em uma ala inteira da Casa Daros que ainda não havia sido revelada ao público – também bloqueada, como Cuba fora desde 1982 pelos seus vizinhos norte-americanos. “É uma obra que fala do embargo econômico e político dos Estados Unidos, que seria a melhor razão para Fidel Castro explicar a falta de tudo”, comenta o curador. Antonio Eligio, o Tonel, participa com outras obras – “desenhos mais antigos, feitos entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980” – em que também investiga os vínculos entre as linguagens. “Minhas obras trazem relações entre a palavra escrita e a imagem. Gosto de pensar na dinâmica que a palavra assume diante da
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PETER SCHÄLCHLI/DIVULGAÇÃO
ZINDMAN FREMONT/DIVULGAÇÃO
Visuais
4 PETER SCHÄLCHLI/DIVULGAÇÃO
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imagem e na reflexão que a imagem consegue trazer à palavra”, diz à Continente. Além de reflexões, há provocações políticas, ironia, considerações sobre a violência, manifestos feministas, sutis críticas sociais e reapropriações dos símbolos do imaginário religioso nas obras. “Liberdade, sonhos, histórias pessoais, problemas, cultura, esperança, o mundo das religiões afro-cubanas e questões relativas à insularidade se encontram nas obras”, acrescenta HansMichael Herzog.
O mar, signo preponderante, surge na fotografia sem título de Manuel Piña, da série Aguas baldías, (1992-1994), em que um garoto mergulha no oceano – mero deleite ou fuga do confinamento da ilha? Destierro (1998), de Tania Bruguera, oferece o registro audiovisual da performance e o assustador traje com que a artista percorreu ruas de Havana sob a égide de Nkisi-Nkonde, uma divindade africana a que se atribui o poder de julgar transações financeiras. Vodu ou tradição? As indagações se
multiplicam. Lázaro Saavedra suspende facas do teto por fios de nylon e as contrapõe a pregos enfiados no assoalho de madeira. Existe escapatória de uma instalação sugestivamente intitulada El espectador y la obra (1998)?
CORPO E SANTERÍA
Em um cômodo próximo, vídeos e fotografias apresentam a performer Ana Mendieta, cujo legado, por anos, foi eclipsado pelas circunstâncias de sua morte, em setembro de 1985 – ela teria pulado da janela do 34º andar de um edifício em
Manhattan ou sido jogada pelo marido, o escultor minimalista Carl Andre, que foi julgado e absolvido. A série Rape scene, de 1973, traz a artista nua sobre uma mesa, sua pele melada de sangue, suas nádegas expostas ao escrutínio do público – como, de regra, estão boa parte das vítimas do crime que ela reinventa. Suas Siluetas, impressões dos contornos do seu corpo no solo, atestam o que ela descrevia como earth-body. O corpo feminino entra em evidência também nas imagens de Marta María
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MARIO GRISOLLI/DIVULGAÇÃO
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Pérez Bravo, a única viva entre as três mulheres a integrar a exposição. São trabalhos construídos com delicadeza e coragem em uma transparente associação à santería, a religião cubana que em muito se assemelha ao candomblé brasileiro. No zozobra la barca de la vida (1995), na qual braços se transformam em remos, é entendida pelo curador cubano Juan Antonio Molina, no texto do catálogo, como uma representação de Yemayá, a versão caribenha de Iemanjá, a rainha do mar. Para o poeta, escritor e crítico de arte cubano Orlando Hernández, são obras como essa que ratificam um dos principais feitos de Cuba – Ficción y fantasía: “Esse é um recorte importante de artistas que buscavam um caminho reflexivo. A exposição faz as obras circularem e leva o público brasileiro a perceber como Brasil e Cuba têm uma cultura muito mais próxima das tradições africanas do que se pode imaginar. A África que nos chegou, através de Portugal e da Espanha, está nas fotografias de Marta María, nas figuras obscuras de Belkis Ayón, e no Ifá e nos orishas de Santiago Rodríguez Olazábal, por exemplo, trabalhos de uma força alegórica importante”. Os seres indecifráveis, sobrenaturais e cabalísticos, estampados nos quadros de Belkis Ayón e Santiago Rodríguez
Olazábal parecem hipnotizar o espectador. Ayón mergulhou no universo da sociedade secreta Abakuá, fundada no século 19 em Cuba por imigrantes africanos trazidos ao Caribe como escravos. Seus quadros são desenhos divididos geometricamente em quadrados – ela coloria uma parte de cada vez, com nuances entre branco, preto e cinza –, em que as figuras, como em La familia (1991), parecem falar com os olhos, ora buracos vazios, ora expressivos aros negros. Já Santiago Rodríguez Olazábal, um dos artistas convidados pela Casa Daros para vir ao Brasil, retoma o vínculo com a santería. “O fio condutor da minha obra é o tema da santería, que prefiro chamar de religião orisha, procedente da Nigéria. Meus trabalhos dialogam sobre a dualidade vida/morte, sobre a reencarnação e, essencialmente, sobre a presença do homem, sem distinção de gênero, no culto. La conversación fala do culto ao deus Ogum; La eficacia de la palavra, da importância do verbo, das conjurações na medicina tradicional popular”, explica à Continente. Em setembro, quando Cuba – Ficción y fantasía foi aberta, muito se indagou sobre o impacto que a retomada de relações comercias com os Estados Unidos teria na arte cubana contemporânea. A maioria dos
3 LA FAMILIA Belkis Ayón compõe figuras sobrenaturais
5 OLAZÁBAL O artista traz elementos da santería
4 FEMININO Marta María utiliza o corpo como suporte
6 EL BLOQUEO Obra do artista Tonel fala de questões políticas
artistas preferiu não profetizar o futuro, tampouco demonizar o passado. Outros, como René Francisco, apreciavam a oportunidade de intercâmbio: “Me alegro muito de poder conectar meu trabalho com o contexto do Brasil e de conhecer a arte e a cultura brasileiras e a forma de pensar dos artistas nacionais. Fico contente de ter uma parte do meu trabalho nesse adeus à Casa Daros”. Sobre o “adeus à Casa Daros”, o diretor da instituição no Brasil, o suíço Dominik Casanova, resumiu: “É uma reorientação estratégica dos donos da coleção”. Não houve entraves financeiros, não houve sanções da matriz à filial, não houve desmanche da Coleção Daros Latinamerica, garantia Casanova. A coleção, “uma joia em si”, nas palavras de Casanova, com cerca de 1,2 mil peças, seguirá a ser emprestada a museus. O Brasil, no entanto, perde uma instituição particular que parecia sólida em meio ao enfraquecimento de seus congêneres públicos. Desaparece mais um lugar expositivo. “Isso nunca é bom”, sintetizou o cubano Tonel.
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REPRODUÇÃO
Visuais
GEOPOLÍTICA Festival de arte discute o Sul como região simbólica
Mostra que acontece até dezembro em São Paulo reúne trabalhos de artistas e coletivos de 22 países localizados num contexto mundial de pós-colonizações e diásporas TEXTO Luciana Veras
“Quem andou a curva do mundo/
Cujo osso raspou/ Cuja carne desfraldou/ Quem não chora qualquer um que se foi para cumprimentar o imperfeito/ O céu inspirado maravilhado a tropeçar/ Onde os deuses se perdem/ Abaixo do Cruzeiro do Sul”, canta Patti Smith, a artista, performer e poeta do rock’n’roll, em Beneath the Southern Cross. Não seria desatino usar essa canção do disco Gone again (2011) para aludir ao 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, cujas três exposições e mostra paralela encontram-se abertas à visitação até 6 de dezembro, em São Paulo. O subtítulo do festival, uma realização da Associação Cultural Videobrasil e do Sesc São Paulo, é
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Panoramas do Sul. Trata-se de uma cartografia meridional não balizada por fronteiras; a latitude é geopolítica e, portanto, mais ampla e abrangente. Ao todo, espalham-se pelo Sesc Pompeia e pelo recém-inaugurado Galpão VB, na sede do VideoBrasil, na Vila Leopoldina, os 56 trabalhos de 53 coletivos e artistas oriundos de 22 países, selecionados por dois editais (um de obras, outro de projetos comissionados); e as obras dos cinco artistas convidados – os brasileiros Sônia Gomes e Rodrigo Mateus, o português Gabriel Abrantes, a marroquina Yto Barrada e o malinês Abdoulaye Konaté. Todos surgem enfeixados pela noção de um “sul geopolítico”. “Foi um caminho natural pensar nesse eixo não só conceitual, mas político, do próprio festival, depois de quase 20 anos a mapear, dar estímulo e criar estratégias de visibilidade para essa produção da América Latina, da África, da Oceania, do Oriente Médio, do Caribe e de alguns países da Europa e da Ásia. Ao longo desse tempo, fizemos um trabalho eficiente de descobrir outros artistas com a mesma potência nesses lugares do mundo, apenas não tão reconhecidos por se situarem à margem das possibilidades do eixo hegemônico”, expõe Solange Farkas, curadora geral do festival e diretora da Associação Cultural Videobrasil. “O Sul é essa região simbólica composta por suas múltiplas questões, decorrentes dos processos coloniais e pós-coloniais, da diáspora e dos trânsitos migratórios que vão redefinindo o tecido social e reverberando em embates macro e micropolíticos nessa importante plataforma de articulação do festival. Diferentes contextos políticos, narrativas pessoais e suas distintas paisagens compuseram um potente conjunto de propostas poéticas sobre as quais nos detivemos durante um longo período”, condensa o curador cearense Bitu Cassundé. Ao lado do gaúcho Bernardo José de Souza, do português João Laia e da sergipana Júlia Rebouças, ele integrou a equipe escalada por Solange Farkas para dividir o exercício da curadoria. Duas essenciais diferenças desse 19º Festival são, pois, o maior
envolvimento dos curadores e a criação de um edital específico para projetos, cujo resultado foi a seleção dos artistas Carlos Monroy (Colômbia), Cristiano Lenhardt (Brasil), Keli-Safia Maksud (Quênia) e Ting-Ting Cheng (Taiwan), acompanhados, ao longo de um ano, por membros do grupo curatorial. “Pensamos em que lacunas poderíamos preencher e esse edital surgiu para que artistas, principalmente em países como o nosso, com pouquíssimas possibilidades de produzir seus trabalhos e, por vezes, sem a chancela do mercado, pudessem desenvolver um projeto desde a sua gênese. Por outro lado,
Cristiano Lenhardt, gaúcho radicado em Pernambuco, apresenta o vídeo Superquadra-Saci (foto à esq.) no passado recente, os curadores convidados entravam no processo de selecionar as obras. Fizemos diferente: foi um ano de trabalho conjunto, na perspectiva de atender às demandas de cada região e de ter os curadores desde o início pensando juntos”, explica Farkas. Artista gaúcho radicado em Pernambuco, Cristiano Lenhardt apresenta o vídeo Superquadra-Saci, no qual evoca, ao mesmo tempo, a racionalidade da organização urbana de uma metrópole como Brasília e o conflito com a mitologia tupiniquim, personificada na figura do Saci. A respeito da obra, ele comenta: “O título remete a um sonho de país, que ora encontro, ora desencontro. O filme fala da coexistência entre mundos, de uma tentativa de ordenar o mundo ou, ainda, de como a vida normal se dá dentro dessa ordenação”. O pernambucano Carlos Mélo participa do festival com Emissão, em que lê o Manifesto do Rio Negro, escrito pelo francês Pierre Restany em 1978. A conceituação do que seria o “naturalismo integral” ganha ares de
performance. Mélo, sentado em uma mesa e com um microfone à frente, entoa frases como “no espaço-tempo da vida de um homem, a natureza é a medida de sua consciência e de sua sensibilidade” ou “o naturalismo integral é alérgico a todo tipo de poder ou de metáfora de poder; o único poder que ele reconhece é o poder purificador e catártico da imaginação a serviço da sensibilidade, e jamais o poder abusivo da sociedade”. O áudio, no entanto, não reproduz a voz de Carlos, mas da atriz Renata Sorrah, que gravou o texto a pedido do artista. Entre os selecionados brasileiros estão o paraense Armando Queiroz, as paulistanas Débora Bolsoni e Letícia Ramos, a cearense Waléria Américo, a carioca Louise Boutkay e o mineiro Pablo Lobato. As obras variam de esculturas a fotografias, passando por curtas e videoinstalações e trazendo a “dinâmica, a urgência e a diversidade que um festival de arte contemporânea deve propor”, conforme defende a curadora geral Solange Farkas. Há preciosidades como Mil vezes um, de Lobato, em que a fotografia de um relâmpago é esquadrinhada em mil fotogramas, exibidos na precariedade e na raridade do 16 mm. “É um contínuo em que, depois de um certo tempo, quando o espectador perceber que nada acontece, passa a sentir o espaço, o feixe de luz que o atravessa, o som do projetor, o pulso da película, a iminência e a antecipação. O sentido aflora”, descreve o artista mineiro. No início de outubro, o 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil anunciou seus vencedores (informações no www.19festival. com). O grande prêmio foi outorgado ao chinês Hui Tao, por Talk about body. Dos nove prêmios de residência, ofertados junto com instituições estrangeiras parceiras do evento desde 1990, quatro saíram para artistas nacionais: Aline X e Gustavo Jardim (MG), Clara Ianni (SP), Luciana Magno (PA) e Paulo Nazareth (SP). Ágil como o minuano, vento típico do Sul brasileiro, a arte segue a circular, ajudando a inverter “as relações de poder da globalização”, nas palavras de Solange Farkas, e “a mostrar a força que vem da região”.
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GEYSON MAGNO/DIVULGAÇÃO
Visuais
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TRABALHO Consciência e engajamento
Ainda que tenha abrigado
Em livro organizado pelo MPT, fotógrafos e escritores reúnem impressões sobre as dificuldades enfrentadas por trabalhadores TEXTO Marina Moura
produções heterogêneas, parte do modernismo brasileiro se concentrou em refletir sobre o indivíduo oprimido pelas circunstâncias. As décadas de 1930-40 experimentaram um surto industrializante que, além do progresso, expôs desigualdades, exploração e subdesenvolvimento, ao menos para uma parcela da população. Casos como o do escritor Graciliano Ramos e do artista plástico Candido Portinari ilustram bem a necessidade de determinados artistas em produzir com consciência e engajamento social uma realidade áspera e marginalizada, da qual, agora no século 21, ainda não nos libertamos totalmente. Para tratar do universo dos trabalhadores de maneira lúcida, o Ministério Público do Trabalho (MPT) concebeu um projeto que aborda o
cotidiano laboral sem um viés jurídico, mas sob visão de fotógrafos e escritores ou jornalistas. Assim surgiu o livro O verso dos trabalhadores (editora Terceiro Nome), financiado com dinheiro arrecadado pelo MPT de multas trabalhistas e lançado no último mês de outubro. A obra será distribuída gratuitamente para escolas e bibliotecas públicas. Todo o conteúdo do material e informações complementares estão disponíveis no site www. oversodostrabalhadores. com.br. O verso dos trabalhadores, organizado por Rodrigo Fahrat e Alessandro Soares, conta com sete ensaios realizados por cinco fotógrafos: Avener Prado (Imigrantes), Geyson Magno (Gesseiros e Vaqueiros), Marlene Bergamo (Bolivianos), Tibério França (Carvoeiros e Lavradores)
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WALTER FIRMO/DIVULGAÇÃO
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e Walter Firmo (Portuários). Intercalados às imagens, há textos inéditos, entre cartas, matérias, artigos e ficção, de oito autores: Eliane Brum, Mia Couto, José Rezende Júnior, Clara Arreguy, Xico Sá, José Luiz Passos, Marcelo Rubens Paiva e Lya Luft. O escritor amazonense Milton Hatoum escreve o prefácio. Segundo Alessandro Soares, os autores tiveram liberdade de abordar a problemática do trabalho de acordo com suas vivências e pontos de vista. Assim, as fotografias não estão a serviço dos textos ou vice-versa, dando ao leitor a possibilidade de estabelecer suas próprias articulações. É verdade, também, que essas representações escritas e visuais formam uma unidade temática que acaba por fixar a imagem de umas nas outras, com o mesmo compromisso crítico e de solidariedade para com aqueles trabalhadores de algum modo desmoralizados ou embrutecidos pelos seus ofícios. As fotografias de O verso dos trabalhadores possuem em comum um caráter documental e se aproximam do fotojornalismo, numa tentativa de “conviver sem se fazer presente”, nas
palavras do fotógrafo pernambucano Geyson Magno que, como mencionado acima, contribuiu para o livro com dois ensaios. Vaqueiros foi realizado entre os anos de 2003 e 2006, período no qual Magno percorreu todas as cidades do Nordeste, produzindo em torno de 21 mil fotos referentes à lida com o boi. Por sua vez, o escritor cearense Xico Sá fez questão de rememorar os vaqueiros de sua infância, no relato Vaqueiro, um homem marcado como gado, e lembrar que apenas em 2013 esta profissão foi regulamentada no Brasil. Nos textos, que transitam entre vários gêneros, há diversos temas envolvidos — desde as semelhanças e precariedades presentes em solos brasileiro e moçambicano, dificuldades de imigrantes para se estabelecer, a morte de centenas de trabalhadores causada por amianto (espécie de mineral altamente tóxico e asfixiante), escravidão moderna, o racismo de um país miscigenado, até as relações ambíguas entre uma empregada doméstica e seus patrões e condições de trabalho em redes de fast food. Os escritos possuem, desse
1 GEYSON MAGNO Fotógrafo registrou a realidade dos gesseiros em Pernambuco
2 WALTER FRANCO Carioca documentou o universo dos portuários
modo, uma carga de denuncismo. “O enorme sofrimento físico e moral de milhões de trabalhadores brasileiros ainda é a maior indignidade de um país que se pretende democrático”, avalia Hatoum, no prefácio. Em uma das cartas endereçada a amigos, Graciliano Ramos rebatia a acusação de que privilegiava as misérias e deformações como tema de suas obras afirmando que, se elas estavam presentes fora do campo da arte, nada mais justo do que serem incorporadas ao fazer artístico. O verso dos trabalhadores, enquanto projeto coletivo, trilha o mesmo caminho, mas sem apresentar uma realidade incontornável. O livro extrapola sua intenção político-social na medida em que se coloca como exercício contra o esquecimento e sugere (melhores) condições de futuro, quando dá visibilidade a pessoas geralmente muito distantes do protagonismo na arte.
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José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
ARTE LOCAL
Terminei a última crônica falando em “arte local”, coisa há muito considerada heresia, desde o séc. 16, quando a Renascença dominou a arte ocidental. Mas mesmo aí, embora o ideal fosse aprender a arte italiana, começaram a distinguir a arte de alguns países, como Renascimento Alemão ou Francês. Na própria Itália notavam-se tendências locais, como a pintura de Veneza, Florença ou Roma. E nunca, ao longo do tempo, deixou de haver designações locais, como pintura cusquenha, escolas de Fontainebleau ou de Barbizon e até se discutiu se haveria uma escola pernambucana. Quando comecei, aqui, na década de 1950, a bola da vez era, correndo por fora o muralismo mexicano, a escola de Paris, que passou o bastão à escola de Nova Iorque, não sabendo eu se tais designações têm mais relação com a bolsa de valores ou com manifestações artísticas. De fato, o grande marchand Daniel-Henri Kahnweiler, mandado pelo pai, banqueiro alemão, para ganhar traquejo na bolsa de valores de Paris
com vistas a abrir um banco na África do Sul, franqueando para isso uma certa quantia, viu, para seu desespero, o maluco do filho em vez disso, abrir uma galeria em Paris, onde fez a primeira exposição cubista. De uns tempos para cá, um grupo muito promissor tem saído para pintar, isto é, fazendo pintura ao ar livre, ou pintura do natural, para o que não tenho mais preparo físico, mas continuando a achar grande fonte de consulta e aprendizado, grande fonte de inspiração, o diálogo direto com a natureza. Seria injusto não falar de Mané Tatu, meu filho: não conheço quem tenha mais tarimba nesse mister. Com seis ou sete anos me acompanhou para ajudar quando ainda precisava levantar os braços para segurar cavalete e tela numa chuva de vento que nos pegou no alto dos maristas em Apipucos, eu no maior desespero, trabalhando na Sudene, só podendo pintar fim de semana, não querendo desperdiçar a oportunidade, com chuva e tudo, e efetivamente só saí depois de pintar o açude lá embaixo,
quadro que gostaria de rever: será que seu atual proprietário dará o devido valor a essa pequena tela que nos custou tanto sacrifício? A arte local atende a um público local, residindo aí a primeira dificuldade. Certa vez, numa exposição de desenhos promovida pela galeria Artespaço de Nara Roesler e Renato Gouvêa, um rapaz bemapessoado, vestido de paletó, queria se inteirar o mais pormenorizadamente possível de questões de preço, percentagem, custos, lucro enfim, levando Renato a pensar tratar-se de um desenhista, e interessou-se em ver seu trabalho, respondendo o rapaz que não, que nunca tinha desenhado, mas se o ganho compensasse, dispunha-se a tentar. Não há nada de errado nisso: João Martins de Athayde editava folhetos dos outros até ver que, escrevesse ele próprio os versos, o lucro seria maior, virando um dos maiores poetas. Muitos vislumbrariam na arte a possibilidade de ficar rico a curto prazo, imitando a pintura dos que ganham fortunas em euros ou dólares, e agem como se o “público
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REPRODUÇÕES: RAFAEL GOMES
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ADRIANO CABRAL
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FELICIANO DOS PRAZERES
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Haras Vale Imperial Acrílica sobre tela, 40x50cm, 2015
Pau Santo Acrílica sobre duratex, 60x80cm, 2015
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alvo” fosse o dos colecionadores que frequentam galerias e leilões de Londres ou Nova Iorque, pintura essa produzida por pintores nativos daqui que se destina, o que existe também aqui, aos que se sentem afinados com o gosto dos artistas que fazem sucesso nesses grandes centros, pagando mais barato, isto é, os clientes, ou apostando em serem descobertos por algum caça-talentos, os artistas. Isso também é arte local. E devo ter escrito esse parágrafo todo para dizer que não sou contra nada e de onde menos se espera pode sair um artista extraordinário. Mas voltemos à pintura do natural. Vamos fazer um pouco de história. Morando na Rua do Bonfim, Olinda, onde cheguei em 1967, certo dia, assim que o dia começou a clarear, ainda os notívagos voltando para casa, na esquina entre o colégio estadual e a Igreja do Bonfim, casa onde
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De uns tempos para cá, um grupo muito promissor tem saído para pintar, isto é, fazendo pintura ao ar livre, ou pintura do natural morávamos eu, Léo, dois filhos, Mané que hoje se assina nos quadros Mané Tatu, e Maria Júlia, hoje professora de música nos Estados Unidos, resolvi sentar no meio-fio, instalei um pedaço de eucatex em cima de um caixão de sabão e comecei a pintar o pequeno largo ali em frente, Largo do Bonfim, quadro adquirido por Renato Carneiro Campos. A última vez que tinha acompanhado alguém a pintar do natural tinha sido na Bahia em 1953 como ajudante de Jenner Augusto, pintando ele uma vista da lagoa do
ANTONIO MENDES
Haras Vale Imperial Acrílica sobre eucatex, 60x80cm, 2015
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SANDRO MACIEL
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MANÉ TATU
ANDRÉ VALENÇA
Haras Vale Imperial no inverno Acrílica sobre duraboard, 62x92cm, 2015
FÁBIO RAFAEL
Caruaru Acrílica sobre tela, 50x80cm, 2015
Haras Vale Imperial Acrílica sobre tela, 60x80cm, 2015 Sítio Camaçari Acrílica sobre duratex, 60x80cm, 2015
Pau Miúdo, uma casinha de taipa num istmo, bem no meio da lagoa (Viagem de um jovem pintor à Bahia, p. 43). Aos que acham que pintura do natural é coisa do séc. 19, justamente aí é que está a diferença, como naquela história de Jorge Luís Borges do cara que de tanto curtir o Dom Quixote e querendo fazer um outro de sua autoria, purificando-o e reescrevendo-o vezes sem fim, chegou ao ponto máximo de igualar o original vírgula a vírgula, palavra por palavra. A grande diferença é que escreveu em plena Buenos Aires no séc. 20 entre arranha-céus, barulho de automóveis, rádio e televisão. É como pintar do natural, sabendo da bomba atômica, Picasso ou Saburo Murakami. Depois do quadrinho do Largo do Bonfim, tomei gosto na parada e passei a sair geralmente sozinho a princípio, com o taxista Everaldo, ou com Guita Charifker e Eduardo Araújo, que nos carregava num jipe. Foi como se, nesta nova geração, passasse a bandeira a Mané Tatu, que tem convidado outros pintores a saírem com ele: André Valença, Antônio Mendes, Feliciano dos Prazeres, depois Sandro Maciel, Adriano Cabral e Fábio Rafael.
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KARINA FREITAS
Leitura CAFÉ AMSTERDÃ A segunda invasão holandesa Evento literário trouxe a São Paulo e ao Rio de Janeiro autores contemporâneos de várias dicções dos Países Baixos TEXTO Ronaldo Bressane
“Aqui não é Amsterdã!”, disse o motorista ao lançar ameaçadoramente seu SUV sobre a bicicleta da moça que pedalava por uma avenida de São Paulo. O embate carros X bicicletas que dominou a implantação de 400 km de ciclovias pela atual prefeitura paulistana usa o argumento de que uma cidade de 10 milhões de habitantes e muitas ladeiras não pode se comparar a uma cidade de 800 mil pessoas que circulam em um trânsito bem mais gentil. Embute, em sua série de preconceitos, a ideia de que a sociedade holandesa é perfeita – e a ideia de que nossa sociedade jamais deixará o estágio do complexo de vira-latas. Uma série de lançamentos de autores holandeses demonstra o quão imperfeita
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participaram de diversos encontros em São Paulo e no Rio de Janeiro — bem como das mesas pós-debates, adequadamente banhadas por cervejas vindas diretamente dos Países Baixos. Tanto Werneck quanto Daniel Galera e Michel Laub – alguns dos escritores brasileiros convidados a mediar as conversas com os neerlandeses – lembraram que as literaturas de línguas holandesa e portuguesa têm em comum o fato de serem periféricas em um mundo dominado pelo inglês, o espanhol, o mandarim e o francês; somente 25 milhões de pessoas se expressam em holandês. Romper o isolamento cultural é uma política de Estado para os neerlandeses: a Fundação Holandesa de Letras investiu 100 mil euros apenas na edição brasileira do Café Amsterdã, que já passou por China e República Tcheca, e frequentemente oferece bolsas para tradutores, além de residências literárias para escritores estrangeiros, favorecendo o intercâmbio. “Além disso, o governo holandês investe, através de entidades como a Nederlands Letterenfonds e Nederlandse Taalunie, na divulgação da literatura
neerlandesa nas grandes feiras do livro pelo mundo afora e em paísesalvo como China e Brasil”, conta Arie Pos, tradutor de Cristóvão Tezza. “As instituições holandesas e belgas investem na formação de tradutores literários; antes de começar a traduzir profissionalmente, participei de três cursos, e eles foram de enorme valia, porque não basta conhecer bem um idioma para ser tradutor. Talvez isso também pudesse ser feito por instituições brasileiras”, cutuca a tradutora Mariângela Guimarães.
Ocidentais — qualquer turista que tenha passado pelos coffee shops de Amsterdã se encanta (e se conforta) ao notar que o inglês é praticamente uma segunda língua, embora seja mais praticado oral do que literariamente. E mesmo a literatura contemporânea brasileira tem recebido olhares interessados, conforme atesta o sucesso de crítica de livros como Diário da queda, de Michel Laub, e Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera (além de, bem, Paulo Coelho — ninguém é perfeito). Mas ainda não há uma imagem que marca a literatura brasileira na Holanda, comenta Pos. “O público está aquém do esperado por quem conhece a riqueza da literatura brasileira. Não há autores brasileiros com grande projeção na Holanda”, critica o tradutor. No entanto, Mariângela Guimarães, que vive em Amsterdã, se diz impressionada com o interesse local pelo Brasil (que, lembre-se, exportou para o país talentos como Romário e Ronaldo, ambos centroavantes com passagens marcantes pelo PSV Eindhoven). “Circulam por aqui Machado de Assis, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Drummond, João Ubaldo Ribeiro, Autran Dourado, Dyonélio Machado, Verissimo, Cristóvão Tezza e João Cabral de Melo Neto. Mas, mesmo com essa boa recepção, best-seller mesmo só o Coelho…”, lamenta a tradutora. Para o leitor afeito à alta literatura de um Cees Nootteboom (Paraíso perdido), sempre lembrado para o Nobel, ou surpreendido pela segurança narrativa da novata Franca Treur, cujo Confetes na Eira foi recentemente traduzido no Brasil, é difícil captar se há uma corrente literária dominante na atual escrita holandesa. “Não tem havido um movimento dominante na literatura holandesa. Os autores são individualistas”, diz Arie Pos. “Mas há uma tendência bastante generalizada em que a literatura tem de ser biográfica e ‘verdade’ – em detrimento da ficção e da imaginação, resultando em muitos romances sobre doenças e sobre as dificuldades de lidar com a perda de um filho, a mulher, os pais etc.”
ROMÁRIO OU MACHADO?
ANNE FRANK & VAN GOGH
Tanto a literatura de língua holandesa quanto a portuguesa são periféricas em um mundo dominado pelo inglês é a sociedade holandesa e quão próximos os brasileiros estão do país de Maurício de Nassau – e não falamos dos pernambucanos descendentes da invasão de 1630. O incidente envolvendo o motorista e a ciclista foi lembrado pelo jornalista Paulo Werneck ao abrir os trabalhos do Café Amsterdã, evento que durante algumas semanas de agosto aproximou a literatura holandesa da brasileira, com nada menos que 16 lançamentos. “Ao contrário do que disse o alterado condutor, aqui bem poderia ser Amsterdã”, sugeriu Werneck, convidando o público a conhecer os autores Arno Grunberg, Toine Huijmans, Barbara Stok, Arjen Dunken, Janny van der Molen e Tommy Wieringa, que
Comércio com o mundo é forte ingrediente da cultura neerlandesa, desde a Companhia das Índias
De fato, três dos romances “invasores” podem passar a impressão de que participam desta corrente — mas
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visita de Heijmans ao Brasil e ele ficou impressionado como as livrarias estavam cheias. “Parece que os livros estão realmente vivos no Brasil! Foi muito legal sentar no meio da Livraria Cultura e falar sobre livros. Tenho que voltar: meu irmão é um professor de capoeira em Amsterdã, ele me diz o tempo todo que eu tenho de ir pro Nordeste, então na próxima vez eu irei pra aí”, promete.
Leitura Entrevista
TOINE HEIJMANS “É A HISTÓRIA DE UM PAI QUE ESTÁ PERDENDO O RUMO DE SUA VIDA” “Sendo um pai de três crianças,
não consigo imaginar como é esquecer um filho dentro do carro: quando estou com meus filhos, estou esperto como uma águia – e acho que a maioria dos pais é assim”, contava Toine Heijmans, ao ser confrontado com o tema de seu livro com um drama infelizmente contemporâneo. Em No mar, o protagonista, um experimentado velejador, vai fazer uma viagem com a filha entre Dinamarca e Holanda – e, pesadelo, perde a menina em altomar. O elemento é tema recorrente na obra deste conhecido jornalista holandês, cujo livro de cabeceira, é Moby Dick, de Herman Melville. Depois de publicar o segundo romance, o elogiado Pristina, Heijmans escreveu uma série para a TV holandesa e já começou a pensar em um novo livro. “Na vida diária trabalho em um jornal, então tenho pouco tempo. Mas escrever ficção é algo que nunca vou parar de fazer”, diz. Esta foi a primeira
CONTINENTE Perder sua própria filha em mar aberto é uma das piores experiências que um pai pode ter. Já te aconteceu algo parecido a esse horror? TOINE HEIJMANS É pura ficção, apesar de eu de fato ter um veleiro (escrevi o livro dentro do barco) e ter uma filha. Velejamos às vezes, mas nunca no mar aberto. Tive a ideia para o livro no deserto do Marrocos; fui pra lá quando minha filha tinha seis anos. Ela gostava de subir as enormes dunas vermelhas, e quando estava no topo de uma, pulou, e desapareceu. Quis escrever sobre esse sentimento, sentir o sumiço. Mas não sei muito sobre o deserto, e bastante sobre o mar, então mudei o cenário para o Mar do Norte. O único horror que me aconteceu foi um acidente enquanto fazia windsurf perto de Amsterdã: quebrei minha perna esquerda e por duas horas fiquei totalmente sozinho na água gelada. Então fui salvo por um barquinho que passava. Assim, na parte em que Donald está na água, congelado e assustado, eu lembrei de mim mesmo. CONTINENTE O apagão de seu personagem é de ordem bem esquisita. De onde você tirou essa ideia? TOINE HEIJMANS Velejar sozinho no mar aberto não é só fisicamente muito difícil, é também um jogo mental. Li um monte de livros sobre velejar em solitário, e conheço alguns velejadores solitários, sei que todos eles tiveram difíceis momentos em que não pareciam eles mesmos. Escutam vozes, veem coisas — estar sozinho em um barquinho, com todas aquelas ondas, o sol queimando, a chuva batendo em você, isso mexe com o cérebro humano. Por isso escolhi a citação de Donald Crowhurst
como epígrafe (“Não há razão para arriscar…”): ele participou da primeira corrida em solitário ao redor do mundo e ficou maluco. Acho que o Donald de No mar é um cara bem simples, que está estressado por causa de seu trabalho e de sua vida em família. Ele tem que ser –um homem moderno tem que ser – bom em tudo: trabalho, família, paternidade, relações… Assim ele tem de ser um superhomem, ou sente que tem de ser. Mas ninguém é um super-homem. Você tem que sempre desconfiar dos super-homens (e mulheres). São apenas gente normal atuando como se fossem mais do que o normal. CONTINENTE Gosto da frieza de sua linguagem, que, de em algum modo, reflete a apatia de Donald. Curiosamente, estou lendo outro livro holandês, Tirza, que tem um outro personagem “cinza”, também um pai amoroso que tem uma vida chata. Comecei a pensar que o tédio pode ser um problema central em sociedades como a Holanda (o mesmo me ocorre lendo Karl Ove Knåusgard quando se refere à Noruega e Suécia). Você acha que a apatia ou a anedônia podem ser grandes temas literários? TOINE HEIJMANS Existe, sim, uma ressonância com o romance do Arnon, no sentido de que é a história de um pai que está perdendo o rumo de sua vida. Acho que ambos são personagens bem interessantes. Agora, quanto ao tédio… Humm… sei não. Claro que a apatia pode ser um grande tema, mas não acho que tem muito a ver com a sociedade holandesa. Como romancista, você tem que sempre procurar por personagens e histórias que se confrontem com outros personagens e histórias. Donald de fato é um bom homem, sua apatia é mais uma maneira de não saber o que fazer. Ele quer ser forte, mas não é, assim como a maioria de nós tenta parecer forte, mas não é. De fato, eu penso mesmo que a maioria das pessoas é um pouco apática. Não seria bom se todos quisessem ser líderes… No alto-mar, e nas famílias, ser apático se vira contra você no fim – e é isso que acontece com Donald. RONALDO BRESSANE
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atenção, é só impressão, pois são extremamente imaginativos. O saboroso, divertido e comovente Joe Speedboat, best-seller de Tommy Wieringa (Rádio Londres), tem um narrador adolescente que ficou quase um ano em coma depois de um acidente em que perdeu a fala e a locomoção. O terrível e belo No mar, romance curto de Toine Heijmans (Cosac Naify), conta a história de um pai que vai viajar com a filha pequena e tem a manha de perdê-la em pleno oceano. E a obra-prima Tirza, de Arnon Grunberg (Rádio Londres), trata da obsessiva relação de amor e poder entre um homem apático e conservador e sua filha caçula (confira as entrevistas com Grunberg e Heijmans). A literatura infantojuvenil, gênero dominado por Annie M.G. Schmidt (“a grande dama da literatura holandesa, por vezes chamada ‘verdadeira Rainha da Holanda’, escritora que, em popularidade, humor e estilo, lembra Monteiro Lobato”, diz Arie Pos), também deu as caras no Café Amsterdã. “O diferencial da literatura infantil holandesa é que o linguajar e as crianças/jovens não são ‘infantilizados’”, relata a tradutora Alexandra de Vries.
1 ARJEN DUINKER Foi um dos autores que esteve no Brasil 2 JOE SPEEDBOAT Best-seller de Tommy Wieringa tem um narrador adolescente 3 LÁ FORA, A GUERRA Janny Van der Molen escreveu um romance sobre os dias vividos no esconderijo pela jovem Anne Frank
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“As crianças são tratadas como pessoas, com opinião e atitudes bastante independentes — por isso tendem a ser bastante independentes”, afirma. Alexandra traduziu Lá fora, a guerra (Rocco), que Janny Van der Molen escreveu sob encomenda para a Casa de Anne Frank. O fantástico romance é resultado de extensa pesquisa sobre a jovem Anne Frank e relata os dias vividos num esconderijo em Amsterdã com a família durante a Segunda Guerra Mundial, de forma acessível, a partir de informações históricas, fotos,
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ilustrações, bem como seu famoso diário — talvez o mais conhecido exemplar da literatura holandesa no mundo. Maior ícone dos Países Baixos, o pintor Vincent Van Gogh também foi lembrado no evento por ser protagonista de Vincent, deliciosa biografia em quadrinhos criada por Barbara Stok (L&PM). Ao final do Café Amsterdã – infelizmente não tão nevoento quanto seus congêneres da capital neerlandesa –, leitores e autores relaxavam sob o efeito do lúpulo dourado. Lá de seu navio fantasma, Maurício de Nassau mandava um sorriso.
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Amsterdã, onde cria experimentos neurocientíficos para compreender o fenômeno da criação, o prodigioso Arnon Grunberg, 44, é o nome central da nova literatura holandesa – embora more em Nova York, onde trabalha como jornalista, produzindo reportagens em que se infiltra entre tropas norte-americanas no Iraque e no Afeganistão, visita Guantánamo, retrata massagistas romenos, garçons suíços ou pacientes de um hospício belga. Mal aproveitou sua visita ao Brasil – estava com terríveis dores de dentes e só saía dos dentistas para ir a palestras ou comer em restaurantes japoneses (“pensar no Brasil me dá dor de cabeça”, lamentou), papeou com a Continente sobre como usou sarcasmo e melancolia em cada linha desta verdadeira bomba-relógio, cujo engenhoso clímax deixa qualquer leitor estatelado na poltrona.
Leitura Entrevista
ARNON GRUNBERG “PODE-SE PENSAR QUE A SEGURANÇA CEDO OU TARDE LEVE AO TÉDIO” Além da escrita implacável, que encadeia de modo sagaz cada frase na direção da seguinte, a narrativa de Tirza, romance de 2006 de Arnon Grunberg, trata de temas problemáticos da atualidade: colonialismo, crise conjugal, hiato entre gerações, racismo, transformações na família,
esgotamento do capitalismo, limites do sexo, pedofilia… e até distúrbios alimentares. O eixo é o editor Hoffmeester, um dos personagens mais desagradáveis já surgidos – foi abandonado pela mulher, que não suporta o modo insosso como ele encara o sexo e o amor, e é desprezado pela filha primogênita, que o considera um conservador avarento e repulsivo. Seu drama: apesar de detestar a humanidade, ama obsessivamente a filha caçula, Tirza, e ela está para deixar seu perfeito lar, na companhia de um odioso, na visão dele, homem de ascendência árabe. Autor de sete romances, entre outros livros de poesia e não ficção, fã de Coeetzee, Joseph Roth e Isaak Babel, professor em universidades de
CONTINENTE Estou lendo outro livro holandês, No mar, de Toine Heijman, em que outro personagem “cinza”, também um pai amoroso que tem uma vida tediosa (no livro de Heijman a aventura é o mar; no seu, é o hedge fund). Pensei que talvez o tédio pudesse ser um problema central em sociedades bem organizadas como a holandesa (o mesmo me ocorre quando estou lendo Knåusgard, em relação a Noruega e Suécia). Você acha que a apatia ou a anedônia podem ser temas literários? ARNON GRUNBERG Não li o livro de Heijman ainda, então fica difícil, senão impossível, falar sobre ele, mas não concordo que Hofmeester tenha uma vida chata. Ele tem uma vida superempolgante: não apenas perdeu todo o seu dinheiro, ou a maior parte dele, perdeu seu emprego, mesmo que ele receba um salário até sua aposentadoria, perdeu sua mulher, e sente que vai perder sua filha caçula também. Claro que Hofmeester é um sujeito de classe média, diria que ele é a quintessência da classe média, e a segurança é uma das grandes obsessões da classe média, e pode-se pensar que a segurança cedo ou tarde leve ao tédio, mas o problema é que, de um jeito certo ou errado, Hofmeester sente que não há segurança alguma em sua vida. Em relação a Knåusgard,
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INDICAÇÕES não posso falar sobre ele, deveria voltar aos seus livros. Só preciso dizer que, até onde sei, o romance Tirza não fala sobre o tédio. Mas é claro que o leitor está sempre certo. CONTINENTE Hofmeester é um dos mais desprezíveis personagens que eu li – e, apesar disso, durante a leitura nós torcemos por ele, odiamos e sofremos com ele. Quem ou o que inspirou você em criar um sujeito desses? ARNON GRUNBERG Desprezível… sim e não: ele é muito humano. Sua violência é de fato muito humana, ele não é um personagem violento, ou ao menos não é mais agressivo que a maioria dos homens. Mas está perdendo o controle. Acho que muitos de nós conseguem se identificar mais ou menos com uma pessoa que está perdendo o controle. Não perdemos o controle nós todos? Mesmo que não de uma forma violenta como Hofmeester, mas ainda assim… CONTINENTE Controle e perfeccionismo são alguns dos conflitos de Hofmeester. É um idealista, porém também um típico homem de seu tempo. Mas ele é do mal… Se eu dissesse que retratou um homem no exato momento em que se descobre um nazista, estaria errado? Se ele é um nazista? ARNON GRUNBERG Não, nem um pouco! Ele é muito civilizado. Não é um fascista, não consegue escapar da autoindulgência e da ideia de que está cercado por inimigos. Para o nazismo ou o fascismo precisamos de mais do que isso. Ele tem uma consciência.
Ele é um homem que descobre que seu autoconhecimento, mesmo depois de tantos anos, permanece muito limitado. CONTINENTE Colonialismo, lucro, inferno conjugal, crise de meia-idade, hiato geracional… alguns dos temas de Tirza me lembram Roth e Houellebecq. Mas reside alguma sinceridade no seu sarcasmo. Ironia e sarcasmo são lentes para filtrar a realidade? ARNON GRUNBERG Claro que sou sincero – no fim das contas, sou só um romancista, não um satirista. E amo profundamente meus personagens.
ENSAIOS
ROMANCE
Scriptum
Record
FABRÍCIO MARQUES Uma cidade se inventa
FERNANDO BONASSI Luxúria
“De que forma a capital mineira está presente na obra de escritores e poetas? Que caminhos percorreram?” Com essa motivação, o jornalista Fabrício Marques propôs este livro, que reúne fotografias, entrevistas e um levantamento de mais de 160 obras que se referem a Belo Horizonte. Uma obra de reconhecimento, memória e conhecimento sobre a cidade.
Praticante do realismo literário, Fernando Bonassi chega a mais um romance ambientado na urbe. O recorte social é o da baixa classe média. Em tom amargo, negativo e irônico, em que a linguagem sincopada e rítmica acelera a sensação de opressão, o autor leva o leitor a acompanhar a rotina de um operário que quer construir uma piscina na sua casa suburbana.
REVISTA
POESIA
CONTINENTE Quais são seus autores favoritos? ARNON GRUNBERG Coetzee é muito importante para mim, por sua sinceridade. Joseph Roth, por causa de sua melancolia. E Isaak Babel, por causa de sua ironia. CONTINENTE Fale sobre suas impressões do Brasil… ARNON GRUNBERG Infelizmente não vi muito do Brasil, não o suficiente. Tive problemas com os dentes, como você sabe. Minha visita foi preenchida por muitas visitas a dentistas. Dentistas muito gentis. Quando penso no Brasil, penso em dor de cabeça. Mas voltarei, para ter uma impressão melhor do seu país. CONTINENTE Está escrevendo um novo livro? ARNON GRUNBERG Sempre. Um novo romance.
VÁRIOS AUTORES Graciliano
Imprensa Oficial Graciliano Ramos
Publicada desde 2008, a Graciliano é uma revista temática de periodicidade bimestral, publicada pelo governo alagoano, buscando sempre a ênfase nos assuntos de interesse local. Na sua mais recente edição (nº23), o objeto de interesse é o cangaço, com abordagens que vão da motivação ao banditismo, a trilha dos cangaceiros na região até uma bibliografia sobre o tema.
FRANCISCO ALVIM E MARIANO MAROVATTO Vinte e cinco poemas Luna Parque Edições
Vinte e cinco poemas resulta do diálogo entre dois poetas de diferentes gerações: o mineiro Francisco Alvim (1938) e o carioca Mariano Marovatto (1982). A obra divide-se em Treze poemas não comprometidos, de Alvim, e Doze poemas de amor e geografia, de Marovatto.
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Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
A ROSA PÚRPURA DO RECIFE 1965. Nem me lembro se já havia
completado 14 anos. Deixo a sala quente do Cine Moderno, no Crato, após a sessão das 16h30. Escureceu e a temperatura amena do lado de fora causa alívio. Estou sozinho, sintome perturbado e sem condições de compreender o que vi. Habituara-me às referências do cinema americano, à Igreja Católica, aos rituais da Semana Santa, quando as rádios tocavam música clássica e as salas de projeção exibiam filmes antigos e precários sobre a Paixão de Cristo. O Evangelho segundo São Mateus fugia aos meus padrões cinematográficos, parecia diferente até mesmo de O leopardo, que eu assistira numa sessão noturna de domingo, no mesmo cinema superlotado e sufocante. Ainda não me ligava em nomes de diretores, sentia-me atraído por astros e estrelas. Mas, no Evangelho atuavam apenas artistas amadores e pessoas do povo, um choque para os padrões da época. Descobri afinidades com o teatro popular da tradição caririense. Pela primeira vez constatava que os bens de cultura eram comuns a todos os povos.
1968. Buscava filmes de impacto, mesmo incompreensíveis. Às vezes era derrotado pelo cineasta ou pelo público, como aconteceu na sessão do filme A chinesa, do francês Jean Luc Godard. Profundamente irrealista, supostamente tratando do racha entre o comunismo chinês e o russo, o filme provocou curto circuito nos cérebros prosaicos dos cinéfilos cratenses. Depois de meia hora de projeção, no Cinema Cassino, todos abandonaram a sala e ocuparam o hall do velho sobrado. Uma chuva forte interditava a praça Siqueira Campos, em frente, e o Café Líder, à esquerda. As pessoas preferiam olhar a chuva e os relâmpagos cortando o céu, a assistir a película projetada. Era uma quartafeira, sessão única das 19h30. Sozinho na sala, sem compreender nada do que via, fui abordado pelo bilheteiro. – Vamos desligar o projetor. – Por quê? – Todo mundo foi embora. Levantei-me aliviado. Ainda não conhecia Jorge Luis Borges, nem
sua declaração de que abandonava os livros, se não gostasse deles. Eu não alcançava a linguagem do filme, mesmo assim teimava em continuar assistindo. Saí para o tumulto do hall e engrossei o número de espectadores dos fenômenos naturais. Parecíamos felizes com nossa escolha, lamentando apenas não termos um bom café. A noite ficou célebre pela recusa cratense ao cinema de Godard, pelo cataclismo que arrasou a cidade e por uma tragédia. Ao atravessar a rua da Vala, uma jovem caiu dentro do canal e foi arrastada pelas águas turbulentas. Seu corpo encontrado no meio de um canavial tinha sido destroçado pelos choques com as pedras e os troncos das árvores. 1969. No Recife, onde me preparo para o vestibular de medicina, leio e coleciono os suplementos culturais do Jornal do Comércio. Celso Marconi enche minha cabeça de cinema novo, neo-realismo e nouvelle vague. São tempos de iniciação. A cidade só falava no filme Teorema, do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Descubro ser o mesmo que havia inquietado
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REPRODUÇÃO
suas bases e, através da contracultura, ensaiava-se uma revolução sexual. Terreno fértil às ideias de Pasolini, um mundo dicotomizado em fascismo e comunismo, direita e esquerda, deus e diabo, bem e mal. Explosivo para o Recife socialmente desigual, colonialista, escravocrata, machista, de economia calcada no modelo falido dos engenhos e usinas de açúcar. Os cinemas exibiam a bomba Teorema e a radioatividade se propagava em ondas, contaminando até os que não assistiam ao filme. 1975. Pasolini é assassinado. Ninetto Davoli, o ator que interpretara o anjo da anunciação em Teorema, reconhece o corpo destruído. Durante 40 anos a trágica história se reconta em diferentes versões. Giuseppe (Pino) Pelosi, o assassino confesso, negará, anos depois, que tivesse sido o único executor. Surgem teorias conspiratórias. Pino se confessa vítima. Antes de morrer, Pasolini renegara sua Trilogia da vida – Decameron, Os contos de Canterbury e As mil e uma noites –, por sentir-se vítima do capitalismo e da indústria cinematográfica. Em
A cidade só falava no filme Teorema, do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Nesse tempo, ia-se ao cinema por devoção
o adolescente provinciano com sua leitura do Evangelho de São Mateus. Nesse tempo, ia-se ao cinema com devoção. O Recife possuía salas para filmes de arte – Coliseu e AIP – e sessões exclusivas no São Luiz, Veneza, Art Palácio, Ritz e Astor. As filas desceram a conde da Boa Vista quando foram exibidos no cinema São Luiz, em temporada de semanas, Roma e Morte em Veneza, e até o Satyricon, de Fellini. Mas, poucos filmes causaram tanto estupor na sociedade recifense como Teorema. Talvez, O último tango em Paris ou
O império dos sentidos, com abordagens sexuais escandalosas para a época. Em Teorema, o núcleo de conflitos é uma família burguesa. Pai, mãe, filhos e empregada não serão os mesmos, depois que um visitante anunciado por um anjo atravessa suas vidas. De forte conotação simbólica, cada personagem representa um segmento da sociedade italiana, exposta em suas fragilidades. Vivíamos no Brasil o período mais repressivo da ditadura militar, a Igreja Católica pregava a teologia da libertação, o feminismo assentava
alguns países e em algumas telas projetam a derradeira criação, a mais censurada de todas: Saló ou os 120 dias de Sodoma, apontamentos sobre os requintes mais perversos do sadismo e do masoquismo. Nesse filme preferido por Glauber Rocha estão indicações para o futuro martírio de Pasolini. Nunca assisti Saló. Os cinemas do Recife se transformaram em supermercados e não consigo ver filmes em shoppings. Preciso de alguns encantamentos que já não existem nas salas de cinema. Sou igual à ingênua Cecília, heroína do filme A rosa púrpura do Cairo, de Wood Allen. Sempre me perco dentro dos enredos e me transformo nos personagens projetados nas telas.
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CON TI NEN TE
Conversa
ARQUITETURA
A perda de protagonismo
Arquitetos de vários segmentos observam que decisões importantes da urbanização foram outorgadas pelo poder público ao mercado FOTOS Alcione Ferreira
Agradecemos ao Instituto de Arquitetos do Brasil em Pernambuco (IABPE) por nos ceder seu espaço para a realização desta Conversa.
Aqui estamos: na sexta e última Conversa deste ciclo de comemorações aos 15 anos da Continente. Ao longo do ano, convidamos cineastas, artistas visuais, artistas cênicos, músicos e escritores para sentaram ao redor de uma mesa e discutirem tópicos que consideram prementes nas suas atuações. Foram encontros ricos e significativos para sugerir, tanto ao público específico (no caso presente, outros arquitetos e urbanistas) quanto ao geral, quais as inquietações que perpassam as várias
categorias profissionais artísticas. Encontramos em todas as falas – com exceção da cadeia de produtores de cinema – um desprestígio do poder público, sobretudo por um tipo de atuação que pode ser sinteticamente classificada como negligente. Essa opinião é depreendida do debate a seguir, bem como a ideia de que os profissionais se sentem hoje desprestigiados quanto ao papel decisório que já tiveram no planejamento das cidades, atualmente oferecido – não sem prejuízos – ao mercado imobiliário.
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ADRIANA DÓRIA Agradeço a presença de todos vocês nessa última conversa que a gente faz este ano, em homenagem aos 15 anos da revista. Eu queria, para iniciar, que cada um expressasse como é que vê a pluralidade no campo da arquitetura, hoje, tanto no que diz respeito à atuação profissional, como nas diferentes formas de se compreender a arquitetura, nas suas confluências e também nos seus conflitos. LÚCIA LEITÃO Do ponto de vista da atuação profissional, sempre achei que ela é rica. Eu digo aos alunos: uma vez arquiteto, você pode atuar em diversos campos,
todos criativos. Isso tem seu lado positivo e negativo. Às vezes, essa pluralidade pode dispersar o foco e, às vezes, é possível que se perca, do ponto de vista até da sociedade, a consciência desse papel de uma forma mais consistente, digamos assim. Por exemplo, acho que, com a ascendência de uma classe média ou o surgimento de uma classe C, a profissão emergiu do ponto de vista da decoração, da arquitetura de interiores. É interessante como você, nos primeiros anos da escola, recebe uma quantidade grande de alunos interessados nisso. Se, do ponto de vista do mercado, isso é uma coisa interessante, do ponto de vista da arquitetura como um fato cultural é um empobrecimento enorme. Cada vez me interessa mais a arquitetura como um fato cultural, como expressão de humanidade, como habitação do mundo, se a gente for pela filosofia. E penso que isso a gente perdeu. De novo, pra dar um exemplo, eu acho que, notadamente no Brasil, mas talvez não só neste país, como na modernidade ou ainda mais precisamente no que se chama de pósmodernidade, a gente perdeu o senso do arqui, na arquitetura, dando excessiva ascensão à tectônica. A chamada arquitetura de espetáculo, hoje em dia, para mim, não é nada mais do que isso. Talvez seja menos. É o excessivo encantamento com a técnica, com o que a tecnologia possibilita, e com a beleza da forma, mas com isso a gente perdeu a relação, a noção de casa. Perdemos a noção de habitar o mundo. De se apropriar do que é essa condição humana que se expressa na materialidade do habitar. Hegel diz isso muito claro:
Convidados CLARISSA DUARTE Arquiteta e urbanista, mestre em Planejamento Urbano e Dinâmica dos Espaços pela Universidade Paris 1 – Sorbonne. Sócia-fundadora do Escritório CD Arquitetura e Urbanismo e professora da Unicap. Atualmente, integra a equipe de coordenação do Plano Centro Cidadão.
JOÃO DOMINGOS AZEVEDO Arquiteto e urbanista formado pela UFPE. Sócio-fundador do escritório Metro Arquitetura. Conselheiro estadual do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco – CAU/PE, exercendo segundo mandato. Atual presidente do ICPS – Instituto da Cidade do Recife – Pelópidas Silveira.
LULA MARCONDES Lula Marcondes é sócio-diretor do escritório O Norte – Oficina de Criação, fundado em 1998. É arquiteto pela UFPE (1997), mestre em Arquitetura pela Universidade do Texas em Austin/EUA, professor do Departamento de Arquitetura da Unicap, músico e artista plástico.
LÚCIA LEITÃO Arquiteta, doutora em Arquitetura, com pósdoutorado na Universidade Paris-Descartes, Sorbonne. Professora do Departamento de Arquitetura da UFPE, pesquisadora do CNPq desde 2006. É autora de vários livros, entre os quais Quando o ambiente é hostil (2014).
VITÓRIA RÉGIA ANDRADE Arquiteta e urbanista formada pela UFPE, diretora da Cardus Estrategias Urbanas e Arquitetura e atual presidente do IAB-PE. Dentre seus principais trabalhos, destaca-se a realização e coordenação do primeiro Workshop de Desenho Urbano do Brasil – Recife Utopia Viva.
Mediação ADRIANA DÓRIA MATOS Editora-chefe da revista Continente, professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, mestre em Teoria da Literatura (UFPE), com estudo comparativo entre as crônicas de João do Rio e Fernando Bonassi.
LUCIANA VERAS Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco, com especialização em Estudos Cinematográficos pela Universidade Católica de Pernambuco, e repórter especial da revista Continente.
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que tem o arquiteto talentoso, o mais consciente do seu papel, que avança nessa direção, mas se a gente pensar profissionalmente, estamos a serviço de. E é outra coisa que nós não podemos perder, porque senão nós construiremos para nós mesmos, paras revistas, paras socialites, quando, na verdade, o ofício é para a sociedade, para a comunidade, para as experiências do mundo.
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Conversa nós não habitamos porque construímos, nós construímos porque habitamos. É uma inversão importante do que a gente percebe contemporaneamente. E daí a gente tem um campo vasto para se perder no sentido até de se apropriar mais adequadamente, mais significativamente e mais felizmente, no sentido de felicidade, do que é ou do que pode ser a arquitetura para a condição humana, para a vida cotidiana das pessoas. Essa apartação é uma perda na arquitetura contemporânea. ADRIANA DÓRIA E você acha que isso diz respeito só ao arquiteto ou à própria concepção da sociedade? LÚCIA LEITÃO É uma pretensão, de novo do meu ponto de vista, pensar que o arquiteto comanda a sociedade. Não é verdade. A arquitetura nunca foi neutra. Ela está sempre a serviço de. Ela está a serviço não só hoje, na
“A arquitetura nunca foi neutra. Ela está sempre a serviço de. A serviços dos mecenas, da classe dominante” Lúcia Leitão cidade contemporânea, do mercado imobiliário, evidentemente, mas ela sempre esteve a serviço dos mecenas, a serviço da classe dominante. Outro dia, um aluno me disse: nós somos deuses, criamos o mundo. Em cima da noção demiúrgica, de Platão. Mas não é nada disso, nós somos artífices; aliás, o tectônico remete justamente ao operário da arquitetura, aquele que manuseia esse ofício de edificar melhor do que outras categorias profissionais. Então, mudanças sociais, evidentemente, estão na prancheta também. Claro
CLARISSA DUARTE Quando a gente fala de arquitetura social, costuma associar a uma arquitetura de baixa renda. Concordo com Lúcia, somos, antes de tudo, prestadores de serviço para um número gigantesco de pessoas dos diversos tipos. E arquitetura social não é apenas arquitetura das Zeis. É a arquitetura do dia a dia, a que a gente trabalha pensando no homem como um ser social. Quando estão perto de se formar, os alunos costumam perguntar: “Depois de tudo que foi visto na faculdade, tantas disciplinas diferentes, como é que a gente escolhe um caminho específico?”. Costumo dizer que não precisam ter pressa. A vida vai mostrar, o mercado, o rumo da sociedade naquele momento vai apontar um caminho. Contudo, naturalmente, é importante que a gente identifique determinadas identidades, habilidades e desejos profissionais que carregamos e que, normalmente, estão no início do curso, mesmo que invisíveis. VITÓRIA RÉGIA ANDRADE Gostaria de colocar mais dois elementos para abrir essa discussão. Acho que Lúcia falou um pouco, mas eu gostaria de fortalecer. Arquitetura é abrigo. Ela é abrigo do ser humano, da sociedade, do homem. Então, por que arquitetura? Porque o homem precisou se abrigar. Esse é o ponto de partida. O arquiteto é, por si, o formador desse abrigo. E essa compreensão vai se ampliando. O projeto é uma hipótese – porque, na hora em que o lançamos, ele é uma hipótese de trabalho que vai se concretizar pela obra. Temos que ter todo um arsenal de conhecimentos científicos para fazer escolhas, e o que é que as define? A criatividade, a maneira com que você manipula essas variáveis que estão à disposição através do conhecimento da sociedade como um todo. Então, a capacidade de fazer essa escolha e de
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antever o futuro é o nosso calcanhar de Aquiles, e o que nos apaixona por esse fazer arquitetura. Todos nós procuramos essa profissão porque temos vontade de fazer uma proposta. Essa palavra – proposta – é uma chave para pensarmos, diferente das outras ciências. Os cientistas vão analisando fatos e acham uma solução dentro deles. O arquiteto não, ele tem a capacidade de inventar, de fazer algo para dar uma resposta. A resposta de Lúcia vai ser uma, a de Clarissa vai ser outra, a de João, outra. Então, cada arquiteto tem essa individualidade e, ao mesmo tempo, um olhar que nos rege, que é a realidade. E aí vem esse dilema ao qual a gente assiste. Um momento de profunda transformação, que é: como planejar diante dessa realidade de uma sociedade líquida, que só pensa no imediato, no presente, no seu prazer? O grande dilema na arquitetura, atualmente, é conseguir se reinventar na maneira de planejar diante de uma realidade que, depois que a gente acaba de falar, já não existe mais, porque ela está em profunda transformação. Como planejar a longo prazo, se as respostas que se pedem são a curto prazo? Acho que esse é, talvez, um bom caminho para explicar os dilemas do arquiteto hoje, frente ao mercado e à sociedade. CLARISSA DUARTE Eu acrescentaria a esse seu comentário, Vitória, que é muito pertinente, uma outra pergunta. Como planejar tentando atender a essas demandas de curto prazo e essas demandas políticas, sociais etc., com a participação ou colaboração social, que é uma outra demanda latente que a gente está vivendo atualmente? Existe um mito que, para você planejar a curto prazo, não dá tempo de escutar a opinião da sociedade. Acho que esse reinventar de que Vitória está falando é justamente isso, porque estão surgindo formas de experiências de urbanismo muito interessantes no mundo todo. Acho que Lula Marcondes pode falar um pouco da experiência dele com o seu ateliê. A gente tem escutado falar do urbanismo tático, uma espécie de urbanismo experimental, feito no curto prazo, para testar a opinião e comportamento da sociedade; de determinadas intervenções feitas com baixo custo e um prazo bem curto, que não impedem,
“Temos manejo com proporção, escala, ritmo, sentimento, materialidade e imaterialidade” Lula Marcondes necessariamente, de se tomar algumas decisões com não tão longo prazo, mas que sejam mais conscientes e estejam em mais sintonia, de fato, com as necessidades sociais. LULA MARCONDES Se olharmos o arquiteto como um criador, como um inventor, se a gente pega esse eixo, tanto a nossa formação como a atuação vão ter um espectro muito grande de ação. O nosso olhar é construído com o tempo, e a gente absorve muitas subjetividades. Temos manejo com proporção, escala,
ritmo, sentimento, materialidade e imaterialidade. Nessa troca, a gente maneja essas subjetividades. E, com a prática, você vê que é algo muito complexo, nós construímos a cidade. Nesse todo tão complexo, se você se debruça, se o arquiteto coloca o olhar sobre outra coisa mais simples, vai ter possibilidade, por exemplo, de trabalhar com design, com moda, fotografia, cinema etc. Penso que a arquitetura trabalha com espaço. Onde tem espaço? Em tudo. Não é dizer que a gente vai salvar o mundo, mas o nosso olhar está treinado para pegar esses desafios. Então, em relação à formação, precisaríamos voltar nessa linha de que o arquiteto é um criador, um artista, um técnico, um pouco de sociólogo e antropólogo. Acho que, dentro dessas ações, se abre um leque de atuação imenso, e também a formação precisaria estar se abrindo dentro dessa ótica. O que vemos hoje é a questão da tectônica estar pegando
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designer, é uma coisa dessa sociedade contemporânea autocentrada. Nós estávamos conversando sobre a questão, por exemplo, dos quadros. Você não escolhe uma obra de arte porque gosta dela, você vai escolher se ela é tendência desse ou daquele arquiteto renomado. Fica tudo muito falsificado, muito massificado. A gente não anda na cidade pelo prazer de andar e pelo reconhecimento de andar, mas porque alguém diz que andar é bom. Por exemplo, uma tendência – odeio essa palavra – contemporânea: quantas vezes uma família se muda hoje? E se muda por quê? Antes, as condições econômicas e técnicas eram outras e a gente tinha uma habitação conectada com a vida. Tanto que, até hoje, vemos as pessoas mais idosas com uma reação muito forte a sair da sua casa, porque casa não é caixa, não é máquina, é um pedaço da vida. Dizer “minha casa, minha vida”, para
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“A gente precisa fazer uma reforma humana. A reconstrução da cultura urbana da nossa cidade”
Conversa um lugar em que, muito antes, a gente devia formar um olhar, antes de chegar e ir na materialidade, em si, direto. Precisaria estar com essa formação de espírito. Hoje, mais do que nunca, falta espiritualidade na arquitetura. JOÃO DOMINGOS AZEVEDO Eu queria pegar vários ganchos que lançaram aí. Tenho estado mais afastado da academia do que vocês três. Eu sempre vi o arquiteto como o ser capaz de analisar uma série de variáveis, das mais diversas, e conseguir transformar isso em realidade. Acho que, nesse processo, pensando numa perspectiva de planejamento da cidade, a gente perdeu muito das estruturas de planejamento. O governo militar, na época da ditadura, por mais que tenha questões negativas, teve um peso de planejamento muito grande. Havia uma situação de controle por trás, mas você via estruturas de planejamento e a tentativa de pegar essas
Clarissa Duarte variáveis e chegar a uma solução. Não sei se numa coisa também de querer ser o Deus e controlar as dinâmicas das cidades, mas a gente terminou por perder isso, e, só recentemente, temos conseguido perceber, talvez pela situação de caos a que a gente chegou. Temos a necessidade de voltar a planejar. Dentro de uma perspectiva da atuação do arquiteto, nas décadas de 1970 e 1980, você tinha muitos urbanistas; hoje, muita gente não se apresenta como arquiteto e urbanista ou urbanista, só como arquiteto. O arquiteto de interiores talvez tenha relação com isso. Nessa perda que houve das estruturas de planejamento, abriu-se um campo para a arquitetura de interiores. LÚCIA LEITÃO Acho que não é por aí não. A questão da arquitetura de interior, ou menos do que isso, da decoração que, a rigor, nem precisaria de um arquiteto, bastaria um
além do slogan, é fato, é o que está mais conectado ou deveria estar. Como vivemos uma sociedade irresponsável, na qual a gente não sabe mais o que é valor, a efemeridade é criada a partir de tendências de consumo, a gente resolve se mudar. A casa virou objeto de consumo. Eu me mudo para um prédio tido como mais importante, num bairro melhor etc., e não pela minha relação humana com esse espaço de viver. O arquiteto vive essa necessária e, até certo ponto, positiva contradição; como ele não é o dono da sociedade, expressa isso, também se deixou levar por esse movimento. Não são todos os arquitetos que vão parar para pensar na hora de projetar nessa condição. O projeto se torna uma resposta a uma demanda de mercado, um produto como outro qualquer. Eu vendo uma casa como eu vendo um carro. Teve um pensador que escreveu um manifesto aos arquitetos, urbanistas e planificadores do pós-
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guerra, na Alemanha. Ele se inquietou profundamente com a construção em série das cidades que tinham sido destruídas no pós-guerra. Dizia assim: você não sabe, mas quando uma pessoa lhe pede o projeto de uma casa, está lhe pedindo um projeto de vida. Evidentemente, o arquiteto não tem como responder pelo projeto de vida de ninguém, mas essa frase dá essa medida, que a gente aparentemente perdeu por completo. Se não tivéssemos perdido, não viveríamos essa realidade do Recife contemporâneo, que é de autodestruição compulsiva. O Recife perdeu a medida das coisas e confunde tecnologia com progresso, tecnologia com desenvolvimento. Vou construir 40 andares porque eu posso construir, ou seja, a engenharia tem elementos tecnológicos para colocar de pé, isso é confundido com uma cidade moderna, contemporânea. ADRIANA DÓRIA Somos levados a pensar que, de certa forma, as cidades espelham o que nós somos. Porque a gente não pode dizer que o Recife hoje não é responsabilidade dos recifenses. Nós somos responsáveis pelo que está acontecendo. Se é pequeno o impulso de repúdio a esse tipo de cidade que a gente não quer, se é uma minoria que se comporta assim, a maioria é aderente, ela quer um shopping grande, climatizado, com muitos
“A tectônica, os selos e as certificações estão se sobrepondo a uma decisão projetual. O projeto vale pouco” Vitória Régia Andrade corredores, com muitas lojas internacionais. Quer dizer, a gente supõe que o nosso morador também não tem a noção do habitar. LULA MARCONDES É preciso reeducar as pessoas. CLARISSA DUARTE Eu costumo dizer que, antes de fazermos uma reforma urbana, a gente precisa fazer uma reforma humana. Uma reconstrução da cultura urbana da nossa cidade. LÚCIA LEITÃO O pior é que não é a maioria. É como o carro. Outro dia, eu ouvi um técnico dizendo que o engarrafamento do Recife é causado por 13% da população. É a maioria da classe média e média alta. Não é a maioria da população que cria. A mesma coisa com relação a esses elementos. Não é a maioria, é uma minoria que tem poder econômico e decisório para implantar esse modelo.
JOÃO DOMINGOS AZEVEDO Mas eu acho que a causa está na minoria, digamos assim, mas o modelo termina contaminando a mente da maioria. Propõe-se algum tipo de restrição, como por exemplo, o pedágio urbano. Mas vão lembrar o cara que acabou de comprar o carro e agora vai ser punido; e o cara que tem dinheiro, que causou tudo isso, vai pagar e não vai sentir nada no bolso. A gente precisa ter uma mudança maior, de educação, de mostrar claramente que esse modelo de crescimento de cidade não se sustenta mais, está esgotado. Voltando um pouco à minha fala inicial, acho que tivemos um momento de hiato de planejamento que permitiu legislações que resultaram no que está aí. VITÓRIA RÉGIA ANDRADE Voltando para essa questão do arquiteto, da arquitetura. A gente sempre achou estranha a palavra sustentabilidade, porque a escola de arquitetura em que nos formamos era sinônimo de sustentabilidade. Habitar, criar uma habitação em um sítio, é ser sustentável. Armando Holanda, em 1970, fez aquele Roteiro para construir no Nordeste, que tem todas as lições para se fazer um projeto. O que é que faltou ao arquiteto? Nós perdemos um discurso. E o que a gente vê hoje? A tectônica, os selos e as certificações estão se sobrepondo a uma decisão projetual. O projeto começou a valer muito pouco. Já tem colegas que dizem, como Gentil Porto, que a arquitetura hoje não existe mais. Arquitetura está no espaço público. São as pessoas. A relação da pessoa com o território até dispensa a tectônica, se esse território é habitável, se a pessoa consegue se enxergar, se tem árvores, se anda na rua. Então, a não forma, numa sociedade líquida, também é uma ação de um arquiteto. Existem muitas correntes que atentam para isso, para que o ofício do arquiteto, hoje, está mais em promover encontros do que em promover paredes.
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Conversa LUCIANA VERAS A Continente teve o prazer, digamos assim, de poder trabalhar arquitetura em várias vertentes nos últimos dois anos. Um dos nossos entrevistados, Carlos Fernando Pontual, disse que acreditava que o arquiteto já não tem mais a mesma força. Antes ele era um ator preponderante na sociedade. Guilherme Wisnik, arquiteto e urbanista de São Paulo, foi na mesma linha, inclusive questionando como o Brasil passou de uma condição de vanguarda, de um país que construiu uma capital do nada, para um país em que a arquitetura perdeu a força a ponto de se tornar cosmética. Ele defende que não se projeta mais, não se planeja, não se tem proposta. Qual é o desafio para vocês, arquitetos e urbanistas, pensadores da arquitetura, nesse aspecto? A gente está falando aqui de uma sociedade líquida, de uma contemporaneidade que traz uma perda de força do arquiteto, mas, ao mesmo tempo, de uma cidade que obriga o arquiteto, seja ele professor, gestor ou executor, a agir, porque a cidade está crescendo. LÚCIA LEITÃO Só se procura o planejador, no caso, o urbanista, quando os problemas estão criados. Não antes de criar. Essa lógica não é simples de inverter, porque ela tem a ver com o modo como a gente se organiza socialmente, e eu estou falando bem da cidade brasileira. Não é toda cidade no mundo que não tem planejamento. Algumas são muito bem planejadas. Nós, profissionais de arquitetura e urbanismo, sabemos planejar bem uma cidade, mas de novo aquela história, se a sociedade reconhece isso como sendo um valor. Aí a gente chega à questão política. Quando as pessoas elogiam Curitiba como tendo sido um modelo de planejamento urbano no Brasil, eu sempre lembro que, no momento em que isso aconteceu, Curitiba tinha um prefeito que era um urbanista, e criou uma equipe para fazer isso. Ou seja, ele associou o poder técnico do projetista com o poder político do decisor. E o que a gente tem? Eu trabalhei na URB Recife, com a Secretaria de Planejamento, e a última gestão que a gente teve de urbanismo,
“A gente precisa se colocar como ator, mas, ao mesmo tempo, tentar agora não ser tão servil ao poder” João Domingos Azevedo de alterar a legislação de uso do solo e tal, foi feita por essa equipe. Primeiro, lembro que a gente participou da discussão de um plano diretor aqui, no final da década de 1990, e, quando chegou à Câmara dos Vereadores, esse projeto foi trucidado. Entraram com um substitutivo. Na época, a gente propunha um nível zero de crescimento em determinadas áreas da cidade que não suportavam mais, não tinham mais infraestrutura. Naquela ocasião, os planejadores do Recife já diziam que essa área ficaria estrangulada – foi o que aconteceu depois, e levou, inclusive, a prefeitura a fazer a lei dos 12 bairros, que é um arranjo. Quando você propõe para alguns bairros, numa emergência, estoura para os marginais.
Não deu outra: Torre, Madalena, Rosarinho, estouraram completamente. Mas isso não foi falta de planejamento, foi uma decisão política. Porque não interessava a quem? Ao mercado imobiliário. A gente tem prefeitos – e não estou falando do prefeito atual, mas de gestores públicos no Brasil – cuja lógica é desfazer o que o antecessor fez. Um plano diretor não é feito por uma gestão, precisa de tempo para ser implantado. Os prefeitos brasileiros, em sua esmagadora maioria, engavetam o plano e fazem o seu plano de governo. Porque um plano diretor, assim como uma lei, constrange interesses, diz onde pode e onde não pode, e esse poder e não poder deve ser em benefício do interesse coletivo, da cidade, e não do interesse particular. JOÃO DOMINGOS AZEVEDO Eu acho que são, na verdade, dois movimentos. O que eu estava falando da ditadura é que não só foi criada uma estrutura de planejamento, como também se empoderava essa estrutura de planejamento para poder fazer com que os objetivos acontecessem.
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Quando a gente perdeu essa mão forte, terminou gerando uma situação em que essa estrutura de planejamento gerava incômodos a quem estava ali, eventualmente, no poder como gestor. A oportunidade que nos avizinha é que, diante de uma situação de caos, na qual os arquitetos perderam tanto assim a sua influência, de alguma forma somos chamados de novo a ser protagonistas. Precisamos nos colocar como atores, mas, ao mesmo tempo, tentar agora não ser tão servis ao poder, mas buscar essa servidão na sociedade. LÚCIA LEITÃO Nesse ponto, a gente tem uma novidade. Quando comecei minha vida como professora, e antes até, quando comecei a estudar arquitetura, quem era o estudante dessa área? Era a classe média alta. Sempre foi um curso elitizado e elitizante. Então, claro que esses alunos vinham com essa herança cultural de identidade com o poder. Hoje, não tem isso. Temos um grupo importante de alunos que vem das camadas mais pobres. E, quando você vê movimentos que temos vivido no Recife de reação da população, vê que os estudantes de arquitetura estão se colocando, criticando de outro ponto de vista. Não são apenas os filhos da classe média e alta que estão pensando a cidade. LUCIANA VERAS Acho que a gente pega um pouco o exemplo da própria personagem Jéssica, do filme Que horas ela volta?, da Anna Muylaert. É uma jovem que sai de Pernambuco e vai a São Paulo tentar fazer vestibular para a FAU, o que causa certo estranhamento na família para a qual Val trabalha. Tem até uma fala. O personagem do pai pergunta “por que arquitetura?”, e ela diz que a arquitetura é uma ferramenta para transformar a sociedade, transformar o mundo. LULA MARCONDES Interessante. Acho que os alunos, independentemente de terem um background mais aberto, se não tiverem vivências mais amplas na cidade, têm um obstáculo imenso. Se a gente observa os arquitetos que estão se formando hoje, sabe que eles convivem com um cenário muito diferente daqueles que estão com 30 anos para cima e que viviam numa cidade de mobilidade muito mais tranquila. Vivíamos a possibilidade de
ir aonde a cidade estivesse pulsando, muito mais que hoje. Porque, além disso, hoje existe a cultura do medo, que está engessando lares e dinâmicas de vida. Porque alunos, hoje, de arquitetura, que serão cirurgiões da cidade, e precisam conhecê-la, se mantêm numa vidinha que é casa, faculdade, estágio. Quando você se familiariza com a cidade, traz lições. Sempre digo aos alunos: vão para a rua, aqui é um pit stop; vão para a rua, porque lá é o grande laboratório. LUCIANA VERAS Essa cultura do medo também não está, de certa forma, alicerçada numa arquitetura do medo? LÚCIA LEITÃO Tenho que discordar bem fortemente. Essa arquitetura do medo não é uma arquitetura do medo. Escrevi um livro inteirinho para mostrar que não é assim. A gente diz isso porque é bonito dizer. Em qualquer ambiente social, posso chegar e dizer que moro nesse edifício semiprisional porque a cidade é muito violenta. E a gente consegue dar 250 exemplos do que aconteceu ontem, e dizer que é por isso que eu moro aqui. Não é verdade. Moro ali por uma questão de distinção, para dizer que sou mais importante do que o outro. CLARISSA DUARTE Tem uma questão que eu queria retomar aqui, que surgiu na fala de todos nós. É a questão da cultura. Aí cito mais particularmente a cultura urbana do cidadão recifense. Nesse cidadão, estou incluindo todos os produtores de cidade, que somos nós, arquitetos e urbanistas, políticos, empreendedores, poderes público e privado. Esses construtores de cidade estão vendo que não podem mais ser um grupo menor que está planejando. A gente tem de entrar na questão da importância da colaboração social ativa, porque cidadania não é só ter direitos, mas responsabilidade com a cidade. Estou na academia, atualmente, criticando e exigindo melhoras na qualidade de vida urbana dos cidadãos e, de outro lado, estou tentando, com a Prefeitura do Recife, produzir uma cidade melhor. E a gente está se esforçando no sentido de ter uma maior colaboração social, que não seja só criticar, mas colaborar e propor.
ADRIANA DÓRIA É, acho que precisamos religar o profissional de arquitetura à cidade, porque ele ficou muito ligado ao mercado e às demandas acadêmicas. VITÓRIA RÉGIA ANDRADE As instâncias de planejamento precisam ser renovadas. O arquiteto funcionário público precisa reocupar esses espaços e essas equipes, porque não adianta produzir projetos se não houver continuidade. O planejamento também tem um monitoramento e quem faz o monitoramento são equipes. Por que, antes, os arquitetos tinham mais poder sobre as legislações? Porque formavam-se corpos técnicos. A URB tinha um grande corpo que executava e planejava, a Fidem era um lugar de pesquisa. Então, o poder público deixou de ter esses técnicos. Porque, lá, você está num embate direto com o prefeito, direto com quem faz as leis. E o arquiteto perdeu isso. Você concorda, Lúcia? LÚCIA LEITÃO Em parte, Vitória. O arquiteto não perdeu esse lugar que você está falando no setor público, porque a gente tem tido concursos, tem gente trabalhando. A gente perdeu foi respeitabilidade, a condição de ser ouvido. Mas acho que se perdeu isso como parte da perda do poder público, no momento em que o poder público abriu mão de ser o grande articulador do planejamento da cidade. O poder público, pelo menos municipal, no Brasil contemporâneo, deu essa tarefa, de bandeja, ao mercado imobiliário. Por que o poder público abriu mão? Algum ganho ele está tendo. A gente está vendo, no momento contemporâneo, como são as relações fraudulentas da construção civil. E ninguém é ingênuo de pensar que essa relação corrupta ocorre apenas nos grandes empreendimentos de petróleo etc. Tinha um cidadão chamado Giulio Carlo Argan, que inclusive foi prefeito de Roma, mas era antes de tudo um grande teórico. Ele dizia que o grande papel do urbanista era ser um educador de cidades. Eu acho que é isso que a gente precisa retomar. O que cabe a cada um no papel de urbanista é desempenhar ou desenvolver todos os métodos e metodologias possíveis de educar.
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CON TI NEN TE
Criaturas
Alain Delon por Cau Gomez
O ator francês Alain Delon chega aos 80 anos com problemas de saúde e “medo de morrer sozinho”. O galã, sonho de nove entre 10 mulheres nos anos 1960/70, estreou nas telas com Uma tal condessa (1957), o que o fez sair do anonimato. Atuou em filmes de sucesso como O leopardo, Rocco e seus irmãos, ao lado de beldades como Virna Lisi e Romy Schneider. E aí, com o uso excessivo da sua beleza em filmes chinfrins, veio a decadência.
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