Continente #180 - Nova alta gastronomia

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# 180

#180 ano XV • dez/15 • R$ 10,00

continente

sobre como o luxo à mesa passa a ter novos itens e valores

Nova

dez 15

ALTA GASTRONOMIA e mais geraldine chaplin | twin cities | sílvia pérez cruz woody allen | foto de moda | benicio dias | frank sinatra

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dezembro 2015

rafael medeiros

aos leitores Ambiente climatizado e sofisticado, com uma mesa bem-posta, toalhas de qualidade, pratos de porcelana francesa, taças de cristal e um jogo de talheres de prata, somados à presença de um bom maître e uma equipe bem-treinada. Era para um lugar nesse estilo que os comensais brasileiros se dirigiam pensando em conhecer a alta gastronomia, no início da década de 1980. Nesse período, o chef francês Laurent Suaudeau chegou ao país trazendo uma visão um pouco distinta do que seria esse conceito, preocupando-se em organizar a cozinha, manter a técnica, mas também trabalhar exclusivamente com produtos de qualidade. Nesses primeiros anos do século 21, essa ideia se consolidou, e a atenção dos chefs está mais na qualidade e procedência dos insumos utilizados do que na ambientação do restaurante, por exemplo. Não à toa, em agosto, o renomado Alex Atala declarou numa rede social que tinha degustado o seu melhor almoço de 2015 no Seu Luna Restaurante e Bar, situado no popular Bairro do Ipsep, no Recife, cuja cozinha é comandada por Cláudia Luna. Num dos comentários, escreveu: “Vocês não sabem o que essa mulher cozinha! Incrível! Alta gastronomia pura”. Nesse post, o chef deixa claro que a ideia de luxo e alta gastronomia foi ressignificada e não está diretamente ligada à sofisticação da cozinha francesa, como antes.

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Neste mês, o repórter Eduardo Sena ouviu chefes e profissionais da área gastronômica para compreender a alta gastronomia hoje. A maioria das fontes mostrou que a preocupação com a técnica segue como algo fundamental, mas o uso de ingredientes de qualidade e o conhecimento de sua procedência passam a ser essenciais. Nesse processo, os pequenos produtores têm encontrado um novo espaço, fechando parcerias com nomes importantes da cena gastronômica nacional. Helena Rizzo, por exemplo, trabalha em seu restaurante, em São Paulo, exclusivamente com os cajus produzidos por um agricultor do Rio Grande do Norte. Além disso, outra “tendência” da alta gastronomia brasileira é uma crescente valorização dos insumos próprios do país e suas regiões, o que pode ser comprovado nas “expedições gastronômicas” colocadas em prática pela chef Ana Luíza Trajano, para montagem do cardápio sazonal do seu Brasil a Gosto, e pelo chef Claudemir Barros, que trouxe a pouco valorizada macaíba para o menu do Wiella Bistrô, no Recife. Assim, fechamos o ano de 2015, que, para nós, foi marcado pelas comemorações aos 15 anos da revista. Que venham muitas outras celebrações e datas importantes para a Continente! Aos nossos leitores, desejamos boas-festas e um 2016 muito luminoso e feliz!

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sumário Portfólio Caio Lobo

6 Cartas

7 Colaboradores

Cartas

Online +

expediente

+

8 Entrevista

Geraldine Chaplin Veterana de 145 filmes, atriz fala sobre a trajetória no cinema e a influência do pai no seu trabalho

18 Balaio

Woodstock Casal da icônica capa da trilha sonora do festival permanece “em paz e amor”, 45 anos depois

34 Conexão

Video game Narrativas digitais estimulam jogadores a se sentirem mais protagonistas das tramas que em livros ou filmes

47 Tradição

Malambo Dança típica do Sul exige intenso preparo físico e retrata herança cultural do homem dos pampas

58 Entremez

Ronaldo Correia de Brito Amor para além da vida

60 Leitura

érgio Corrêa de Siqueira S Vencedor do Prêmio Nacional Cepe de Literatura, na categoria romance, fala sobre a concepção do livro O grande massacre das vacas

Tendo a madeira como principal matériaprima, designer de móveis cria utilitários com o objetivo de fugir da obviedade e de se aproximar da arte com bom humor

12

70 Palco

Ato e efeito Canal no YouTube registra performances de atores que interpretam trechos de suas peças prediletas

72 Matéria

corrida

José Cláudio Ganhando meu pão

82 Claquete

Califórnia Primeiro longa de ficção de Marina Person remonta a década de 1980 através de história de adolescente

88 Criaturas Frank Sinatra Por Cárcamo

54 Sonoras

Música de protesto Encabeçado por novo álbum de Elza Soares, este foi um ano marcante em obras que criticam o establishment

Perfil

Sílvia Pérez Cruz Cantora espanhola, influenciada pelo flamenco, vem sendo apontada como a maior intérprete da Península Ibérica na atualidade

44 Capa foto Rafael Medeiros Ceviche de chuchu com macaíba, criação de Claudemir Barros para o Wiella Bistrô.

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Capa

Viagem

Antes vinculado aos ingredientes importados da Europa e a pratos oriundos daquele continente, conceito de luxo volta-se para aspectos como o caráter nacional à mesa

Recentemente eleitas as melhores cidades para se viver nos EUA, Minneapolis e Saint Paul oferecem alta qualidade de vida a seus habitantes, como diversidade de área verde

Cardápio

Visuais

Surgida na região de Magrebe, ao norte da África, como prato tradicional dos berberes, iguaria espalhou-se pelo mundo. No Brasil, pode ser servida no café, almoço e jantar

Após Alcir Lacerda e Alexandre Berzin, agora é a vez de Benício Dias ganhar livro pela Cepe Editora, com imagens que documentam o Recife entre as décadas de 1930 e 1950

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Cuscuz

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Twin Cities

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Dez’ 15

Benício Dias

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neste mês BENÍCIO DIAS

sílvia pérez

Num importante projeto editorial, a Cepe tem publicado livros de fotografias que enfocam, ao mesmo tempo, o registro histórico de Pernambuco - especialmente o Recife e as cidades vizinhas - e a publicação de material inédito de nomes fundamentais da fotografia do estado. Depois dos títulos com obras de Alcir Lacerda e Alexandre Berzin, agora é a vez de Benício Dias, cujo livro é lançado este mês. Como complemento ao material trazido nesta edição sobre o assunto, veja galeria de fotos de Benício no site da revista e trecho da apresentação ao livro.

Assista ao vídeo completo da arrebatadora performance da cantora espanhola no festival Les Suds à Arles, realizado na França, em agosto de 2013.

sérgio corrêA Leia no nosso site entrevista com o vencedor do Prêmio Nacional Cepe de Literatura, que fala sobre a concepção do romance O grande massacre das vacas.

cartas alcione ferreira

AGRADECIMENTO

Você faz a Continente com a gente

Meu caro Marcelo (Abreu, jornalista), quero agradecer o envio da revista e o destaque da entrevista (edição nº 177, set/15). Excelente a publicação. Editorial e intelectualmente. Grande abraço e conte com a gente sempre.

O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões.

JÚLIO MEDAGLIA SÃO PAULO, via e-mail

DO INSTAGRAM Esse fim de semana, fui passear pela Livraria Cultura do RioMar. Me prometi algumas vezes, antes de entrar, que não iria fazer nenhuma aquisição, afinal o fim do ano se aproxima e a estante ainda está com alguns “títulos virgens”. Mas, além de não ter resistido à prateleira da black friday, também saí de lá com a nova edição da Continente. Eu amo essa revista e a matéria de capa sobre bibliofilia não poderia ser mais pertinente para nós, não é mesmo? Mais alguém se identifica? Amanhã, eu conto qual foi o livro que levei para casa. Por hoje, fiquem com essa dica: a Continente é maravilhosa, atual e cheia de cultura. Se você não a conhece, ótima oportunidade. Stéphanie Albuquerque Recife–PE

DO FACEBOOK Tenho um sentimento de que o artista se nega a efetivar seu papel preponderante na sociedade, atuando de forma mais incisiva no processo de desenvolvimento intelectual das pessoas. O artistaeducador é um mediador que vem se boicotando, ainda dependente do chamado mundo da arte: produção, instituição e galeria. (Comentário sobre a Conversa de Artes Visuais, setembro/2015.) Aluizio Camara Recife–PE

Participando dessa “máquina de fazer som” (capa de setembro), com o álbum Estância, que gravei

em casa, tenho que congratular os jornalistas envolvidos no processo de mapeamento dos nomes que estão fazendo essas engrenagens musicais girarem. Zeca Viana Recife-PE

ERRATA A informação correta sobre o artista Montez Magno, na matéria da edição de julho, nº 175 (Boa-aventurança temporã, mas justa), é que sua Série Morandi, de 1964, realizada em Milão, encontra-se atualmente no acervo do Museu de Arte do Rio (MAR). Foi adquirida através do curador e crítico de arte Paulo Herkenhoff, diretor da instituição.

A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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colaboradores

AD Luna

Eduardo Sena

Phelipe Rodrigues

Ricardo Nunes Viel

Músico e jornalista, foi repórter de música do Jornal do Commercio. É apresentador do programa de rádio PEsado

Jornalista, pesquisador gastronômico e analista de comunicação empresarial

Jornalista com especialização em Moda. Faz direção criativa em editoriais e campanhas. Dá aulas de história da moda brasileira

Jornalista, radicado em Portugal, colabora com diversas publicações brasileiras

E MAIS Carlos Gomes, escritor, editor e curador da Outros Críticos, mestrando em Comunicação pela UFPE. Daniela Nader, fotógrafa. Guilherme Novelli, jornalista. Lucas Colombo, jornalista gaúcho, editor do site Mínimo Múltiplo. Marcelo Miranda, jornalista, crítico de cinema e mestrando em Comunicação pela UFMG. Rafael Medeiros, fotógrafo. Rodrigo Casarin, jornalista, atua como freelancer escrevendo sobre literatura. Olívia Mindêlo, jornalista, mestre em Sociologia pela UFPE. Moema França, jornalista. Cárcamo, ilustrador, caricaturista e tradutor chileno radicado no Brasil.

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GERALDINE CHAPLIN

“Fiz filmes ruins, mas nunca tive uma experiência ruim” Atriz, a mais conhecida dos filhos de Charles Chaplin, esteve no Brasil para ser jurada da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e falou à Continente sobre o início de sua carreira, a influência do seu pai, os papéis que interpretou e seus diretores favoritos texto Luciana Veras

con ti nen te

Entrevista

A lista de filmes, minisséries e produções televisivas das quais consta seu nome é extensa: segundo o Internet Movie Database/IMDB, Geraldine Chaplin possui 145 créditos de atuação. E um sobrenome que a define sem limitá-la. Mais velha dos oito filhos de Charles Chaplin (1889– 1977) e Oona O’Neill (1925–1991), ela poderia ter sido batizada com uma controversa homenagem, se fosse feita a vontade do pai. “Nasci em 1944, quando os russos estavam avançando na Segunda Guerra Mundial. Meu pai era fã de Stalin e quis colocar meu nome de Staline. Ainda bem que minha mãe o convenceu, alegando que eu talvez tivesse alguns probleminhas na escola”, revelou à Continente durante uma agradável conversa em uma manhã de outubro. Era um dos raros momentos em que ela não estava dentro de uma das salas de exibição da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, da qual participou como membro do júri. “Vivo em Corsier, uma pequena cidade na Suíça, onde não existem cinemas. Na cidade mais próxima, só passam as

grandes produções americanas. Odeio ver filmes na televisão. Portanto, adoro ser jurada em festivais, para ver muitos deles”, comentava, entre um sorriso e outro, com um par de óculos escuros comprados em Miami, uma blusa das Tartarugas Ninja e meias coloridas que ela fez questão de mostrar ao término da entrevista, numa postura alongada de corpo. Tal elasticidade, herança dos anos dedicados à dança clássica, é equiparável à versatilidade que essa intérprete de icônicas figuras femininas demonstra em cena. Geraldine Chaplin foi Tonya, em Doutor Jivago (David Lean, 1965); a mãe e a protagonista adulta, em Cria cuervos (1975); a personagem de Elisa, minha vida (1977) e outras tantas mulheres escritas por Carlos Saura, com quem foi casada por 12 anos; senhora Welland, em A época da inocência (Martin Scorsese, 1993) e a professora Katerina Bilova, em Fale com ela (Pedro Almodóvar, 2002) – que profere a última frase do filme, “nada é por acaso”. De fato, nada foi por acaso na trajetória dessa filha, mãe, avó, talentosa e bem-humorada atriz.

CONTINENTE Você retornou ao Brasil para ser jurada na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Como se sente tendo esta missão? GERALDINE CHAPLIN Eu não gosto de julgar os filmes, mas amo vê-los. E a única oportunidade de assistir a bons de verdade é como jurado em algum festival. Primeiro, porque o único lugar para ver trabalhos bons, de fato, são os festivais. Mas, se você vai a um festival promovendo um filme, não vê nada. Como membro do júri, sim, você tem a chance de assistir a excelentes obras e depois surge o inevitável, a “morte”: você precisa julgá-las! Em São Paulo, foi muito bom, porque se tratava de primeiros e segundos longas – ou seja, você ia com o olhar virgem, sem saber o que encontrar. Adoro isso, pois não há ideias preconcebidas. Se você vai ver um filme de Atom Egoyan, ok, você sabe o que vai esperar. Mas, nesses casos, não, e é muito bom poder ser surpreendida. CONTINENTE O que levou você a querer se tornar atriz? A rotina de casa, talvez? GERALDINE CHAPLIN A preguiça!

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mário miranda filho/agência foto/divulgação

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(risos). Eu queria ser uma bailarina. Estudei dança clássica e era uma excelente bailarina – na minha cabeça, claro! O corpo, na verdade, não seguia, o que é apenas um “pequeno” problema se você dança (risos). Na minha mente, eu era Margot Fontaine. CONTINENTE Quanto tempo estudou? GERALDINE CHAPLIN Estudei e trabalhei como profissional da dança em Paris. Cheguei a participar de balés como Cinderella, mas aí a companhia quebrou, não foi por minha causa, pode ficar

CONTINENTE Mas lá você não é reconhecida? GERALDINE CHAPLIN Não, não muito. Sou reconhecida se quiser. Eu coloco minha maquiagem e minhas camisetas… Na verdade, todas as senhoras de Miami se parecem comigo: nós somos velhas, nós usamos muitas cores! Lá, descobri que todas as pessoas velhas se vestem sempre com muitas cores. Quando você é jovem, se veste de preto. Quando se é velho, se enche de cores. Então, em Miami, posso

Entrevista

divulgação

con ti nen te

provavelmente, nunca veria, exceto pelo fato de que estava num avião. Ele olhou e disse “hum, olhe para esse rosto, ela parece russa, talvez pudéssemos fazer um teste com ela… oh, é a filha de Charlie Chaplin!”. Lá fui eu e achei tudo tão fácil. Durante as filmagens de Doutor Jivago, fui me apaixonando pela profissão. Continuei me encantando, quando comecei a trabalhar com Carlos Saura. Vi que nada seria tão fácil, mas que seria sempre fascinante, pois era, como ainda é, o estudo dos seres humanos.

tranquila (risos). Arranjei um trabalho aqui, outro acolá, e me dei conta de que não queria voltar para casa. Pensei: bem, eu poderia ser atriz. Tenho um bom sobrenome, acho que vai ser fácil. E foi mesmo. Quando disse que queria ser atriz, no dia seguinte, já tinha um agente. E ele disse que meu primeiro filme tinha que ser com (Jean-Paul) Belmondo, uma grande estrela na época. Então, meu primeiro filme foi com ele (O preço de um resgate, de Jacques Deray, de 1965). CONTINENTE E, logo depois, você já era Tonya em Doutor Jivago? GERALDINE CHAPLIN É, mas aquilo ali foi mais sorte. David Lean viu uma foto minha na capa de uma revista feminina que ele, muito

CONTINENTE Você nunca deixa de ser atriz, não é? É um pouco como ser jornalista: a pessoa está sempre observando. GERALDINE CHAPLIN É isso mesmo, é completamente similar a ser jornalista. Eu tenho sorte de, vez por outra, passar um tempo nos Estados Unidos. Meu filho hoje mora em West Virginia, mas morou em Miami, então vamos sempre lá visitar o fantasma dele (risos). Bem, em Miami, se você tem mais de 24 anos, é invisível. Apesar disso, adoro aquela cidade, onde tudo é tão exagerado, tão falso, tão irreal. E, como na minha idade sou invisível, posso sentar e apenas observar. Assim, “roubo” coisas das pessoas – o modo como elas falam, gesticulam, interagem.

apenas observar e roubar atitudes, o gestual, a maneira de se expressar. Olho para o modo como um homem coça a sua cabeça e penso que posso usar aquilo em algum filme. Coloco tudo isso numa espécie de banco e, na maioria das vezes, devo dizer, esqueço tudo. Mas, algumas vezes, acesso esse cofre e uso o material para compor meu personagem. CONTINENTE Falando em roubar, tem algo que você roubou do seu pai? De que maneira se parece com ele? GERALDINE CHAPLIN Minha filha, Oona, tem uma resposta fantástica para essa pergunta. Como sempre indagam a ela “o que você acha que herdou do seu avô?”, ela

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normalmente responde: “o bigode, mas acontece que eu depilo o meu!” (risos). Acho que essa é a melhor resposta. Nunca poderia fazer melhor! Costumava responder “os dentes”, na verdade (risos). CONTINENTE De que maneira o cinema de hoje difere de quando você começou a atuar? GERALDINE CHAPLIN Eu acho que o embrião de um cinema realmente novo e fantástico está na América Latina. Vi tanto talento por aqui. E, sim, as coisas mudam. As locações são diferentes, os orçamentos ficaram menores, a linguagem se transformou – está muito mais rápida agora. Eu não percebo isso, mas, se eu for ao cinema com a juventude, eles vão dizer que um filme como Doutor Jivago é muito devagar. A linguagem mudou, mas o principal, o que não muda nem nunca mudará é que há bons diretores e péssimos diretores. E hoje tudo tem a ver mais com quanto dinheiro se consegue ter em uma semana, com essa indústria dos bilhões. Também acredito que existem poucos produtores com cojones para fazer algo porque querem fazer e não porque pode vender ou dar retorno. Faltam produtores assim. CONTINENTE Entre os cineastas com quem trabalhou, quais são os seus favoritos? GERALDINE CHAPLIN Bem, na Mostra de São Paulo, eu vi um filme que me impressionou muito: Limite, uma obra brasileira famosa, feita em 1930. Nunca tinha visto algo tão bonito. Saí daquela sessão pensando que não há mais nada para ninguém aprender. Está tudo lá. Como alguém consegue fazer um filme daquele com apenas 21 anos? Na verdade, eu queria estar nele, ter feito parte dele. Então, Mário Peixoto é o meu diretor favorito. Adoraria trabalhar com ele (risos). Existem, claro, alguns diretores que admiro muito: Robert Altman, Carlos Saura, Alan Rudolph, Pedro Almodóvar, que é um diretor maravilhoso… Mais recentemente, os incríveis dominicanos Laura Amelia Guzmán e Israel Cárdenas, com quem trabalhei em Dólares de areia (2014). CONTINENTE E seus papéis mais icônicos? Quais seriam seus personagens prediletos?

GERALDINE CHAPLIN Não saberia responder, porque não vejo tanto meus trabalhos. Eu fiz um monte de filmes ruins, mas nunca tive uma experiência ruim, sabe? Toda vez que faço um filme, tenho a impressão de que é o melhor a ser feito… Normalmente, estou errada! (risos). Mas isso ajuda muito. Eu fico acreditando totalmente que aquele filme vai mudar o mundo. Depois, não muda, mas tenho que acreditar nisso.

verdade, você tem que acreditar, pois assim pode trapacear a plateia. Tem uma grande história, que Ralph Richardson contou, que considero a melhor lição de atuação. Ele estava sentado no parque e viu um coelho e uma raposa. O coelho avistou a raposa e, quando a raposa começou a se aproximar, escondeu-se atrás de uma lâmina de grama. E a raposa não viu. Isso é atuar, segundo Richardson.

CONTINENTE Mas não seria essa crença fundamental para se trabalhar ou mesmo viver?

CONTINENTE E os papéis que mais a desafiaram? GERALDINE CHAPLIN Acho que o mais desafiador foi interpretar Madre Teresa de Calcutá (no filme Mother Teresa: In the name of God’s poor, de Kevin Connor, de 1997). Ela estava viva, todo mundo sabia como era, como se comportava, e a verdade é que eu não parecia em nada com ela. Mais recentemente, foi um desafio fazer Me and Kaminski, de Wolfgang Becker. Era um papel pequeno, mas estranho, porque não se sabe se a personagem tem Alzheimer ou se alguma outra condição clínica, mas o fato é que ela não se lembra direito das coisas. Parece um computador quebrado. Foi muito desafiador, porque não havia parâmetros. Tive que inventar tudo, claro que com o auxílio de um diretor extraordinário. Fora que o filme é falado em alemão e não falo nenhuma palavra de alemão. Aprendi tudo foneticamente. Mas aí chego no set e Wolfgang diz: “Está perfeito, um ótimo alemão, mas quero um sotaque francês” (risos).

“Durante as filmagens de Doutor Jivago(E), fui me apaixonando pela profissão. Continuei me encantando, quando comecei a trabalhar com Carlos Saura. Vi que nada seria tão fácil, mas que seria sempre fascinante, pois era, como ainda é, o estudo dos seres humanos” GERALDINE CHAPLIN Sim, claro. Uma vez meu pai disse para mim, quando eu era uma bailarina, e foi o único conselho que ele me deu – porque, como atriz, ele nunca me aconselhou, é bom lembrar. Mas, quando eu ainda dançava, ele me escutou reclamando da vida e me disse: “Escute, quando subir ao palco, você tem que acreditar que é Margot Fontaine. Se você não fizer isso, ninguém mais vai acreditar em você. Você não vai conseguir que ninguém acredite nisso. Acredite: você é a melhor bailarina do mundo”. E foi o melhor conselho que recebi. Porém, nunca pude colocá-lo em prática enquanto dançava, porque eu era realista demais. Mas, na

CONTINENTE Por último, e tenho certeza de que é uma pergunta que lhe fazem com frequência: qual é o seu filme favorito de Charles Chaplin? GERALDINE CHAPLIN Ah, não me incomodo com essa pergunta! Geralmente, o que mais gosto é o último que vi. Mas, com o passar do tempo, virou O garoto (1921). As pessoas diziam que era impossível misturar comédia-pastelão e drama. E meu pai disse “nada disso, é possível, sim”. E foi lá e fez O garoto. E Jackie Coogan, aquele menino, com aquele olhar… Amo aquele filme. Você sorri, se diverte, depois se emociona, se preocupa, aí chora… Como na vida.

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Estúdio Clicka/divulgação

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t f贸lio Revista_180_DEZ.indb 13

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Tiago Salguerio /divulgação

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Caio Lobo

A ARTE DE REUTILIZAR MATERIAIS TEXTO Maria Eduarda Barbosa

Pelas ruas de Olinda, o pernambucano Caio Lobo se deparou com uma madeira velha que, à primeira vista, poderia passar despercebida aos nossos olhos. Mas o “artista de móveis”, como prefere ser denominado, utilizou o objeto para construir uma luminária. Essa, digamos, epifania do artista é um bom exemplo de sua capacidade criativa. Caio produz móveis manualmente desde 2012, quando fez sua primeira cadeira “por hobby”, pois na época ainda não havia o foco no design. Sem formação na área, apenas com a bagagem de duas disciplinas eletivas em desenho e ergonomia, feitas durante sua graduação em Administração, o pernambucano nascido e criado em Garanhuns carrega as lembranças adquiridas na loja de móveis de sua mãe, localizada nessa cidade agrestina. A madeira é a matéria-prima encontrada na maioria dos seus trabalhos. Sua primeira cadeira foi um sucesso no Instagram e a repercussão deu impulso a que ele continuasse produzindo. Os anos se passaram e Caio foi aperfeiçoando sua técnica. Mudou-se para a capital paulista para fazer cursos e, agora, pretende tornar-se designer. “Quando fui pra São Paulo, me dediquei mesmo ao design”, conta. Ele ressalta que suas referências também estão nas artes plásticas. “Eu me considero mais artista do que designer. Tenho mais contato com essa área”, complementa Lobo. Entre suas obras, destaca-se um rack feito com uma placa de cimento utilizada na construção de um mezanino. Para o Festival de Inverno de Garanhuns de 2015, Caio produziu

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Fotos: Espaço em Branco /divulgação

3 Páginas anteriores 1 experimento

cadeira foi elaborada por A Caio Lobo, quando ainda morava em Garanhuns

Nestas páginas 2 Design Weekend

A Cadeira Marionete Clássica foi apresentada no evento

Contra 3 Os produtos da linha são feitos com matériasprimas consideradas inapropriadas pelo mercado

4 construção civil No rack, o design utilizou vergalhão e metal-moeda

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Fotos: Espaço em Branco /divulgação

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5-6 Mesa Dark Side Tem tampo de vidro e base triangular

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uma cadeira em uma semana e a expôs na Casa Galeria Galpão. “Não finalizei do jeito que eu queria”, conta. O móvel apresenta a mesma estética de outros produzidos pelo artista. Dessa vez, ele usou ferro enferrujado, madeira e lona reutilizada de caminhão. Já no Design Weekend, que ocorreu em agosto, em São Paulo, Caio expôs três cadeiras iguais, mas feitas com diferentes materiais. Um dos assentos foi produzido com uma grade que tinha a função de proteção de motor. “Uma é de couro com madeira e a outra, de madeira com palhinha”, completa. Outra vez, Caio estava andando pelas ruas da zona norte do Recife, quando encontrou uma placa de cimento e pensou em criar algo com aquele material. Ele conta que pegou a placa, mas não sabe ainda o que fazer, porque são necessárias outras dessas. “Eu gosto de trazer

madeira 7 É elemento central no seu trabalho, usualmente aliado a outro material, a exemplo do ferro

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peças diferentes, de dar outra função a elas”, ressalta Lobo, que mostra, durante a entrevista, um anel produzido com porca de parafuso comprada em loja de construção civil. Em entrevista à Continente, Caio fala que procura fugir do óbvio. “A quantidade de produção de móveis é muito grande. E, aí, para fazer

diferente, eu uso esses materiais”, explica. Para o futuro, ele pretende se dedicar à sua produção e viver dela. Um pouco tímido, conta que desejaria incentivar outras pessoas em Pernambuco. “Quero mostrar que é possível trabalhar com marcenaria e criar coisas diferentes. Que podemos ser artistas também de móveis.”

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8 peça nº 1 A luminária feita com madeira de demolição foi o primeiro objeto criado por Caio 9 NOVOS USOS Tacos de piso, madeira de cavalete e caibros de telhado foram usados na criação de uma escrivaninha

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Fotos: divulgação

“TEM GENTE QUE…”

45 anos de paz e amor Agosto de 1969. O festival mais emblemático da história da música acontecia nesse mês, nos dias 15, 16 e 17. No palco, se apresentavam alguns dos maiores artistas e bandas da época e, que futuramente, saberíamos também de outras: Joe Cocker, Jimi Hendrix, The Who, Crosby, Stills, Nash & Young, Jefferson Airplane, Janis Joplin, Joan Baez, Ravi Shankar, Grateful Dead, Santana, Sly and The Family Stone, Richie Havens, Creedence Clearwater Revival, The Band… Na plateia, milhares de jovens congregavam sentimentos de liberdade, paz, espiritualidade e amor. Dois deles, Bobbi Kelly e Nick Ercoline foram flagrados pelo fotógrafo Burk Uzzle se abraçando. Um ano depois, a imagem foi escolhida para virar a capa do álbum baseado na programação do evento e se tornou uma das mais icônicas do festival. Desde então, o mundo deu muitas voltas, artistas morreram, bandas acabaram, novas guerras surgiram… Mas uma coisa não mudou: Bobbi e Nick continuam juntos. Casaram-se dois anos depois do festival, tiveram dois filhos e hoje vivem num subúrbio de Nova York, ela trabalha como enfermeira, ele reforma casas. Outra coisa também não mudou: o desejo de paz e amor. DÉBORA NASCIMENTO

con ti nen te

A FRASE

“Os acontecimentos me aborrecem.”

Quem nunca leu uma indireta na timeline do Facebook precisa refazer o exame oftalmológico. Antes do advento da rede social, mandar um recado velado para alguém exigia mais tempo e criatividade do que posts começando com “Tem gente que…” ou “Certas pessoas…”, principalmente se partisse de algum compositor. Uma das indiretas mais famosas da música veio de Carly Simon: You’re so vain. O hit despertou o interesse do público e da crítica para saber quem seria o tal e tão vaidoso a ponto de achar que a canção era sobre ele. Finalmente, nesta semana, mais de 40 anos depois, a cantora revelou: Warren Beatty (à dir.). E foi bem específica: o ator teria inspirado a segunda estrofe. Ela garantiu que a composição não era destinada apenas ao então galã de cinema. As dúvidas agora pairam sobre Mick Jagger, Cat Stevens, Kris Kristofferson e Jack Nicholson. Tem gente que gosta de deixar os fãs e a imprensa curiosos… (Débora Nascimento)

Balaio BACTÉRIAS IMPRESSIONISTAS

É fato que Van Gogh é uma referência no impressionismo. O que talvez seja inimaginável é que sua arte também influenciou a microbiologia. Em vez do óleo sobre tela, bactérias! Um concurso norte-americano, intitulado Agar Art, mistura talento artístico com ciência, elegendo os microbiologistas mais artísticos. Dentre obras originais, também há recriações, sendo uma delas o famoso quadro, A noite estrelada, do pintor holandês. De longe, a recriação soa engraçada, mas cuidado! As bactérias utilizadas podem ocasionar algumas infecções. Nada de toque! Seja na recriação ou no quadro. (Maria Eduarda Barbosa)

Paul Valéry, poeta e ensaísta francês

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arquivo

CHÃO de estrelas A cidade de Nuenen, na Holanda, mantém uma trilha de bicicleta inspirada na obra de Van Gogh, O céu estrelado, criada pelo designer Daan Roosegaarde. A trilha possui uma tinta especial fluorescente que absorve luz solar durante o dia e brilha durante a noite. Esse método de iluminação, de acordo com o próprio designer, interfere de forma leve na paisagem e cria uma conexão com o passado histórico do país e da região onde a trilha se encontra, em Noord Brabant, lugar de nascença do impressionista. Assim, holandeses podem andar de bike “por cima” do famoso quadro do artista. (Victória Ayres)

Há cem anos, The Voice Muito antes do mulherio “endoidar o cabeção” por ídolos como Elvis e Os Beatles, um rapaz franzino que nem um faquir, mas com uma senhora voz, já deixava multidões de adolescentes, nos anos 1930/40, à beira da histeria com seu jeito de rechear de paixão as baladas que interpretava. Frank Sinatra, nascido a fórceps em dezembro de 1915, quase não soltava a voz ao nascer. Azulado e sem respirar, a avó o colocou em água fria. De repente, o pequeno Frank abriu o berreiro. Sem jamais ter estudado música, formalmente, ele deixou a escola para seguir carreira musical. O pai deu-lhe um chute na bunda por isso. Não tardou para que ele ficasse famoso. Seu estilo era informal, mas ao mesmo tempo muito requintado. Sua fama abriu o caminho para a política e as mulheres. Seu relacionamento com a linda Ava Gardner quase o endoidou, fazendo-o tentar o suícidio. Já na decadência, conseguiu emplacar ainda hits como My way e New York, New York. Como ator de cinema, ele não foi menos famoso, e conta em seu currículo com dezenas de produções, entre elas A um passo da eternidade, de 1953, que lhe rendeu um Oscar. Morto em 1998, dizia: “Só se vive uma vez e, do jeito que eu vivo, uma vez só é suficiente”. luiz arrais

NEY EM PERNAMBUCO FILME PARA 2115

De passagem pelo Recife, para participação no Coquetel Molotov, o cantor Ney Matogrosso disse à Continente que a “Nação Zumbi continua sendo a grande banda”. Perguntado sobre sua influência no trabalho do pernambucano Johnny Hooker, ele diz que não vê problema nisso, embora negue a possibilidade de vê-los juntos no palco. “Eu até gosto da composição dele, de algumas gosto muito. Uma que tocava numa novela aí, eu ouvia, ficava admirando aquela música e não sabia que era dele. Gosto de algumas coisas que ele compõe. Agora, as pessoas ficam querendo jogar um contra o outro, mas eu não entro nessa”, declara. O intérprete havia sido questionado sobre seu diálogo com as gerações mais jovens da música popular. “Pra mim é normal fazer esse diálogo de gerações. É como se eu tivesse em casa com eles.” (Ulysses Gadêlha)

Uma obra cinematográfica que retrate o século 22. Eis o mote do filme 100 anos – Um filme que você nunca verá, dirigido por John Malkovich (ao lado) e Robert Rodriguez. O detalhe é que a data de estreia da ficção científica está marcada para novembro de 2115. O filme foi rodado em segredo absoluto e, embora já tenham sidos divulgados três teasers, os criadores pretendem manter o clima de dúvida até que as gerações futuras possam assisti-lo e julgar a produção. O arquivo de 100 anos... está mantido em um cofre na França que não pode ser aberto com chave ou código – ele foi programado para ser desbloqueado automaticamente, daqui a exato um século. (Marina Moura)

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CONCEITOS

E o luxo

se refez O que há poucas décadas era considerado “alta gastronomia”, como o uso de insumos caros e importados, está hoje sendo rediscutido por cozinheiros e comensais, no que podemos chamar de uma pequena revolução à mesa texto Eduardo Sena

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Não faz tanto tempo que o mais celebrado chef de cozinha brasileiro, Alex Atala, em sua mais recente passagem pelo Recife, registrou no seu Instagram que acabara de ter o melhor almoço de 2015. A foto merecedora da representativa legenda é uma na qual o cozinheiro está envolvido em um abraço com Claudia Luna, sua colega de profissão e comandante do Seu Luna Restaurante e Bar, recinto gastronômico instalado no popular Bairro do Ipsep e espécie de embaixada da cozinha típica pernambucana. Era finzinho de agosto, portanto mais da metade do ano concluído e, para alguém que está no pódio entre os cozinheiros do Brasil e sustenta a 7ª posição entre os profissionais de cozinha do mundo, dizer que foi com porções de chambaril, dobradinha, rabada, sarapatel, buchada e galinha à cabidela que viveu seu melhor momento à mesa é algo minimamente simbólico. Ainda, na rede social, respondendo a outros dois amigos cozinheiros, Atala anotou “vocês não sabem o que esta mulher cozinha! Incrível! Alta gastronomia pura”.

2 tomas rangel/divulgação

KÁTIA BARBOSA Aconchego Carioca (Rio de Janeiro e São Paulo) Associar comida à paixão é um clichê tão usado, que já estamos cansados dele. Mas, no que mais pensar quando se vê o trabalho desenvolvido pela chef Kátia Barbosa nas unidades do Aconchego Carioca da Praça da Bandeira e Leblon (RJ) e Jardins (SP)? “Não adianta ser tecnicamente irrepreensível, comida para mim só faz sentido se me tocar”, diz a chef, que comanda restaurantes de legítima mistura do Rio com o Nordeste e cozinha movida pelo afeto. Carioca, filha de nordestinos (seus pais nasceram na Paraíba), a cozinheira, que começou em um pequeno bar na Praça da Bandeira, transformou seu restaurante Aconchego Carioca em uma referência em comida brasileira. Rainha dos bolinhos, é detentora da alcunha de “inventora-do-bolinho-mais-copiado-do-Brasil”, no caso, o de feijoada.

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ONILDO ROCHA

Chef francês foi pioneino no Brasil a utilizar insumos típicos nacionais, num universo ainda muito focado nas referências europeias

Roccia Cozinha Contemporânea (João Pessoa – PB) Com quase 10 anos de carreira, o chef paraibano Onildo Rocha não deixou de lado suas raízes ao firmar suas bases em João Pessoa. É, hoje, um dos principais nomes da gastronomia nordestina, sendo o principal precursor da alta gastronomia paraibana. Formado pela Universidade Anhembi-Morumbi, chegou a cursar a Escola de Artes Culinárias do chef Laurent Suaudeau e, ainda hoje, anos depois de formado, faz imersões em restaurantes ao redor do mundo, que lhe servem de fonte de inspiração e pesquisa. Onildo é o principal pesquisador do arroz vermelho da Paraíba. Também conhecido como arroz da terra, o ingrediente foi catalogado pela Arca do Gosto, projeto da Associação Internacional Slow Food que identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase esquecidos de produtos ameaçados de extinção, mas ainda vivos, com potenciais produtivos e comerciais reais.

2 ceviche de caju É um dos pratos elaborados pela premiada chef Helena Rizzo

Agora, corta para 1980. “‘Saint-Honoré, do Hotel Méridien, traz chef para fazer alta gastronomia’. Era mais ou menos essa a chamada de um jornal da cidade para anunciar a minha chegada ao Rio de Janeiro”, lembra o chef francês Laurent Suaudeau, indicado pelo grande cozinheiro mundial da época, Paul Bocuse, para vir ao Brasil e colocar a cozinha daquele restaurante nos eixos. Com apenas 24 anos, o jovem profissional estruturou uma ideia muito clara do que pretendia fazer. “Minha formação como cozinheiro na França tinha como pilar só trabalhar com produtos de primeira qualidade, ter dedicação total à cozinha e manter a ordem no serviço”, elenca. Numa época em que isso ainda não era lugar-comum, passou a utilizar na já chamada alta gastronomia os produtos brasileiros que aprendera a conhecer no contato com seus cozinheiros e ajudantes. Além de, claro, frequentar as feiras locais. “Mas as pessoas estranhavam, achavam que alta gastronomia era comer foie gras, molho bechamel, magret, caviar

“Achavam que alta gastronomia era comer foie gras, molho bechamel, magret” Laurent Suaudeau e toda uma cesta de ingredientes caríssimos que, inclusive, eram difíceis de serem encontrados no Brasil. Isso também é alta gastronomia, não discordo, mas nas regiões nas quais esses insumos são típicos e têm uma representatividade histórica”, opina Laurent. Foram necessários mais de 30 anos para esse ranço eurocêntrico começar a ser dissolvido e o termo alta gastronomia ser reconceituado. “Entre os principais cozinheiros do país, já há discursos e práticas uniformes de um novo modelo vigente dessa expressão. Já não mais sugere requinte, mas outros valores ligados justamente à territorialidade. Ao que seja peculiar de um determinado

lugar”, defende Marcelo Katsuki, crítico da Folha de S.Paulo, pioneiro do segmento de jornalismo gastronômico na internet. Em outras palavras, o chef que souber verter algo particular em uma receita cosmopolita, no sentido daquele prato ser compreendido e assimilado por qualquer comensal do mundo, praticará essa cozinha. Mas não se trata de um conceito tão contemporâneo assim. O pensamento de Laurent, lá no começo dos anos 1980, já apontava essa diretriz de terroir, mas precisou ser, aliás, ainda vem sendo, construída com muito esforço pela nova safra de cozinheiros tupiniquins (leia o perfil de alguns deles nestas e nas próximas páginas). “Nos anos 1980, uma vez fui servir abóbora num jantar para a alta sociedade nesse hotel, e fui interpelado pelo mâitre: ‘só porcos comem abóbora, chef’, tive que ouvir. Entretanto, terminei a noite aplaudido, e lembro que o chamei, apontei para as pessoas e disse ‘olha só como os porcos estão se comportando’”, lembra com orgulho o cozinheiro francês, que deu um novo sentido à gastronomia nacional.

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con capa ti nen te Luna Garcia/divulgação

“Mais do que nunca se fala nessa expressão. Entretanto, ainda é um cenário nebuloso, no qual os clientes tateiam as definições. Alta gastronomia continua sendo uma valorização de determinados ingredientes, como era antes. Mas os ingredientes mudaram. Se, antes, o legal era o foie gras, hoje é a formiga amazônica que tem gosto de capim-santo que Alex Atala serve”, sugere o chef Claudemir Barros, comandante da cozinha do Wiella Bistrô, restaurante de sotaque franco-italiano, que há um tempo vem se adaptando à nova perspectiva e destacando elementos da cultura pernambucana em seu cardápio. “Hoje, tem cliente que vem ao Wiella comer ceviche de chuchu com macaíba”, registra Barros.

MAIS PERTO, MELHOR

Para Hugo Prouvot, essa nova leitura da expressão gastronômica passa também pelo encurtamento entre o tempo de colheita e abate e sua chegada à mesa. “Quão mais perto estiver o ingrediente do cozinheiro, quão mais fresco ele chegar à mesa, isso é um valor. O que se entende por luxo gastronômico. Porque envolve três reconhecimentos: o produto, o preparo e o consumo. O cozinheiro e o cliente tendem a reagir diferentemente em relação ao preparo e em como comer algo evidenciado como especial pelo frescor”, registra. Apesar de, na teoria, o novo luxo gastronômico já estar bem-definido, na prática, é uma armadilha que gera confusão com o rótulo em si. “Se eu tenho dois restaurantes que trabalham uma gastronomia regional, mas um no subúrbio com um chef iniciante e outro em um bairro luxuoso com um cozinheiro já estabelecido, fica difícil determinar quem é alta gastronomia e quem não é”, polemiza Claudemir. Certeza mesmo é que o novo modelo exclui a ostentação material. “O conceito de luxo mudou. Restaurantes não tão decorados, sem taças de cristal, louças e talheres importados já são rotulados com essa distinção. Essa nova alta gastronomia tirou as toalhas da mesa. O conceito vale mais que a matéria. É uma cozinha intelectual”, expõe Claudemir. Na despensa, tudo também ficou mais barato, mas não menos

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MÔNICA RANGEL Gosto com Gosto (Visconde de Mauá – RJ)

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Meticulosa, estudiosa e dinâmica, Mônica representa a gastronomia brasileira há mais de 20 anos. Primeiro, no seu restaurante Gosto com Gosto, em Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, e depois na Associação Brasil à Mesa. Mineira de Juiz de Fora, deixou, há 18 anos, uma carreira de secretária-executiva bilíngue para comandar com sucesso os fogões de seu restaurante. Todas as linguiças, doces, queijos e pães servidos por lá são fabricados por suas mãos habilidosas. Viaja frequentemente pelo Brasil e mundo afora para dar palestras, fazer demonstrações e participar de eventos gastronômicos, como o Cruzeiro Gourmet, da Costa Crociere. Atua com o Instituto Brasileiro do Turismo para representar o Brasil em diversos eventos gastronômicos pelo mundo.

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João Schwartz/divulgação

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e torresmo

Mônica Rangel defende o protagonismo dos pratos nacionais

WANDERSON MEDEIROS Picuí e W. Gourmet (Maceió – AL) Esteta da cozinha nordestina, Wanderson Medeiros é daqueles cozinheiros que têm o Nordeste como prumo. No batente desde os sete anos, é um dos chefs mais atuantes da região. Não apenas por estar à frente do Picuí, mas sobretudo por seu trabalho de compreensão e inserção de suas origens culturais em alimentos trabalhados de forma contemporânea. Wanderson mantém o compromisso de fazer boa cozinha a partir de ingredientes até então desprestigiados. Transformou queijo de coalho e carne de sol em parte importante de pratos elegantes, que passam por intervenções nunca antes pensadas para eles. O chef alagoano deixa claro que o caminho não está fora dos limites de sua região, ao contrário, quase tudo o que precisa está lá.

4-5 nordeste Wanderson Medeiros trabalha os ingredientes regionais de forma contemporânea

glamouroso. Para a cozinheira mineira Mônica Rangel, que lidera o movimento pró-gastronomia brasileira há mais de 20 anos, o fato de o Brasil colocar vários chefs no mapa mundial elevou a autoestima do brasileiro, que passou a ter um novo entendimento do que significa comer bem. “Sinto essa realidade no meu restaurante, que tem 22 anos de existência. Hoje, não existe mais tanto preconceito com relação ao tipo de gastronomia que executo, brasileira de raiz”, comenta ela. A verdade é que o termo alta gastronomia é uma invenção nacional para designar restaurantes faustosos e cujo trabalho do chef seja relevante dentro do cenário. “Essa cozinha sempre foi interpretada, no Brasil, como a que custa caro e é realizada exclusivamente por chefes internacionais”, anota Mônica, que reconhece avanços. “Ainda há brasileiros que acham que restaurante caro é sinônimo de comida

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CLAUDEMIR BARROS Wiella Bistrô (Recife – PE) Um dos chefes mais experientes da cidade, só de Wiella já se vão mais de 15 anos, Claudemir ainda mantém vivo seu olhar perscrutante sobre os ingredientes típicos e o que está por trás deles. É um daqueles cozinheiros interessados em oferecer não apenas bons pratos, mas identidade ao que sai das panelas. Para isso, empreende, a cada bimestre, pesquisas em campo, quando se embrenha pelas matas, aldeias e sertões para acrescentar matérias-primas aparentemente prosaicas ao seu repertório de alta gastronomia. O cozinheiro é um transformador do status dos insumos, já que eleva itens completamente desconhecidos ou desprezados a itens de desejo gastronômico.

boa, o que nem sempre é verdade. Mas a grande maioria já identifica que a diferença está somente entre uma comida boa e bem-feita, e de uma preocupação holística. O fazer bem-feito envolve todas as áreas do restaurante, do atendimento à compra, tendo seu peso maior na cozinha, obviamente”, opina. “É interessante falar nessa reconceituação, porque é um movimento que só aconteceu no Brasil. No mundo todo, essa evolução se deu apenas em técnicas, estética, nunca com ingredientes. Nos anos 1980 – 1990, ninguém queria sair de casa para comer o que era comum em suas panelas”, diagnostica César Santos, patrono do movimento da cozinha contemporânea em Pernambuco. “Lembro que, quando abri o Oficina do Sabor, em 1993, vi de perto esse movimento. Era, e ainda é, um restaurante de comida típica, por pura opção, feita por uma profissional de cozinha de formação acadêmica”. Lá atrás, de forma involuntária, César dava início a uma, digamos, filosofia gastronômica que hoje movimenta o

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6 wiella bistrô Cardápio de sotaque franco-italiano do restaurante vem sendo adaptado para destacar elementos pernambucanos canudinho 7 Clássico das festas ganha versão com ovas de peixe e camarão

THIAGO CASTANHO Remanso do Bosque e Remanso do Peixe (Belém – PA) Junto ao irmão Felipe, Thiago Castanho é considerado um dos principais talentos da nova geração. Escreveu Cozinha de origem em coautoria com a jornalista Luciana Bianchi, autora do blog The World’s 50 Best Restaurants e uma caçadora de sabores do mundo. Não poderia ter melhor nome o livro do rapaz, já que seu começo foi na cozinha de casa com o pai, seu Chicão, e a mãe, dona Carmem. Segundo ele, é um diário da sua família e uma homenagem à cozinha paraense. Aos 27 anos, Thiago Castanho contabiliza conquistas. Em menos de cinco anos, tornou-se ícone da gastronomia nacional, é reconhecido internacionalmente – sua casa, o Remanso do Bosque, faz parte do ranking latino-americano da Restaurant – e é o único nome de peso na vastidão amazônica.

país, de forma política até, com líderes. Um movimento intitulado de “nova cozinha” que, ironicamente, bebe na fonte da tradição. Alagoano, o chef Wanderson Medeiros, do restaurante Picuí, em Maceió, é um desses nomes. “Em 2010, batizamos esse trabalho de valorização dos ingredientes típicos, das formas de se cozinhar tradicionais de Nova Cozinha Nordestina, por retratar um estilo em que o principal foco é mostrar os ingredientes do Nordeste de maneira mais delicada e cuidadosa. Para isso, utilizamos técnicas modernas no preparo desses pratos e tentamos ao máximo apresentá-los de um modo que valorize ainda mais a matéria-prima”, define o recém-eleito chef do ano por uma revista nacional de celebridades. A propósito, falando em território brasileiro, quando se deparou com a portaria nº 100 do Ministério do Turismo, que instituía o Sistema Brasileiro de Classificação de Meios de Hospedagem (SBClass), Mônica Rangel teve um arroubo de indignação. É que, entre outras providências, o documento definia

“Imagino que, daqui a dois anos, a gastronomia do Brasil só vai querer saber do próprio Brasil” Mônica Rangel que, para um hotel no Brasil receber quatro ou cinco estrelas, seria exigido um restaurante de cozinha internacional no estabelecimento. “Beira o absurdo um turista estrangeiro chegar ao Brasil e encontrar na mesa do café da manhã apenas croissant, pão italiano, geleia e queijos importados”, contestou a cozinheira. O ímpeto de inquietude levou Rangel a um contato direto com o Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur), que, após vários encontros, resultou num convite das instituições governamentais à cozinheira para colaborar diretamente na promoção e desenvolvimento da gastronomia brasileira, tanto aqui quanto em outros países. Foi então

fundada a Associação Brasil à Mesa, com o coro de 100 participantes, entre profissionais de cozinhas e entusiastas da cozinha nacional. “A Associação é a nossa ferramenta de representatividade no setor, tendo como principal foco preservar, desenvolver e promover, em diversos âmbitos, a cultura culinária brasileira e os seus atores”, explica a líder do movimento. “Imagino que, daqui a dois anos, a gastronomia do Brasil só vai querer saber do próprio Brasil, e esse é um caminho sem volta. E um excelente caminho, diga-se de passagem. Temos solo com capacidade de produzir – desde que cuidemos dele, com urgência –, e tendo cozinheiros com vontade de levar isso à mesa, em pouquíssimo tempo, seremos ainda mais brasileiros no prato”, aponta Wanderson, vicepresidente da instituição. Mas, para ele, uma questão deve ser a principal bandeira de todo cozinheiro ao tentar tornar sólido esse movimento: “pesquisar, pesquisar e pesquisar”.

CARDÁPIOS SAZONAIS

Isso é o que faz a cozinheira paulistana Ana Luíza Trajano. Pesquisadora copiosa da cozinha brasileira, ela já perdeu as contas de quantas cidades do país visitou para buscar registros sobre a cultura de cada lugar por meio da comida – e vice-versa. Só no primeiro ano desse projeto, intitulado de Brasil a Gosto, foram 27 distritos desbravados. Prestes a completar 10 anos da iniciativa, em janeiro de 2016, a cozinheira tem criado, ao longo desse tempo, cardápios sazonais com validade de três meses, que podem ser conferidos em seu restaurante Brasil a Gosto, na capital paulista. “Nunca entendi o motivo da culinária brasileira não ter sido valorizada ao longo dos anos da forma que deveria. Sou neta de

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8 brasil a gosto Canapé de milho com linguiça de charque e creme de queijo manteiga é um dos pratos já servidos nos cardápios sazonais do restaurante

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ANA LUÍZA TRAJANO Brasil a gosto (São Paulo – SP) Idealizadora do projeto Saberes do Brasil, Ana Luíza é reconhecida por verter suas pesquisas em expressões culturais. Livros, exposições, cardápios… Começou esse processo de forma empírica, quando acompanhava os festejos populares em sua cidade e observava sua avó cearense, que lhe revelou as possibilidades da gastronomia nordestina. Desde 2003, roda o país em busca de mais conhecimentos sobre as formas de preparo, ingredientes e a importância cultural de cada prato emblemático da cozinha brasileira – sempre acompanhada de um fotógrafo, um cinegrafista e uma ceramista para registrar todas as nuances da diversidade brasileira. No Brasil a gosto, a chef traz para o mundo de cores, aromas e sabores todo o conhecimento adquirido nas incursões culinárias pelo Brasil.

cearenses e de mineiros e carrego esse DNA concentrado, quando o assunto é comida. Quando fiz meu curso de gastronomia na Itália, uma das minhas preocupações enquanto futura cozinheira no Brasil era contribuir para que nossa culinária fosse mais valorizada. Via na Itália que cada cidadezinha tinha um livro de seus ingredientes, os nativos tinham orgulho de falar sobre os seus produtos”, relata Trajano, filha de uma das maiores empresárias do país, dona de uma grande rede de varejo, que abandonou a administração e optou pela cozinha profissional. Ana Luíza lembra que, há 10 anos, se alguém fosse receber uma pessoa importante em casa, era de bom-tom que essa comida fosse francesa ou italiana. “Por que não servir um baião de dois, um leitão à pururuca? Servir comida nacional em evento festivo tinha carga de menor valia”, problematiza. Ainda no século 17, o escritor Gregório de Matos definiu esse comportamento como síndrome do mazombismo, sendo o mazombo aquele sujeito que, não sendo genuinamente nativo, tampouco nascido na metrópole da elite política, estaria destinado a ser um estrangeiro em sua própria terra, dando preferência e valor a tudo internacionalmente consagrado. O contexto atual evidencia que essa síndrome foi a nocaute. “No meu caso mesmo, em meu casamento, há 10 anos, só servi pratos da cozinha brasileira e com doces regionais. Se os franceses têm mil folhas, temos nossa bolacha sete capas. Em Pernambuco, por exemplo, essa síndrome já não existe. As pessoas passaram a consumir mais o típico. É um movimento sinérgico mesmo, de chefes, academias, antropólogos e, claro, governo. Sem o apoio deste fica difícil as coisas andarem”, situa Ana Luíza Trajano.

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PRODUÇÃO A responsabilidade social em foco

Cada vez mais, os chefes e profissionais da cozinha buscam o diferencial dos seus pratos na procedência dos insumos utilizados

“A gastronomia é uma ferramenta política”, sustenta o jornalista e sociólogo italiano Carlo Petrini, nas primeiras linhas do prefácio da encíclica do Papa Francisco sobre natureza, terra e comida. Pioneiro no movimento do slow food nos anos 1980, o estudioso é um entusiasta da agricultura local, da comida com valor

e não apenas uma commodity. Para ele, longe de continuar sendo uma prática elitista, a gastronomia pode e deve se tornar uma ciência mais democrática. Dentro desse contexto, um dos pilares mais representativos é o do pequeno produtor, figura cada vez mais utilizada pelo chef de cozinha, praticante da alta gastronomia para

anexar valor ao seu trabalho. Seja do ponto de vista técnico ou social. “Com o mundo de hoje mais politizado, não no sentido partidário, mas de reconhecimento aos direitos humanos, é natural que alguns outros valores surjam em várias esferas da sociedade. Não seria diferente com a gastronomia. É como se ‘pegasse bem’ para o profissional ter uma preocupação que fosse além do alimento”, opina o chef paraense Thiago Castanho, representante da cozinha nortista no país. Entretanto, o cozinheiro refuta a ideia de que a prática seja mero marketing institucional. “Antes de qualquer coisa, trata-se de uma preocupação com a qualidade do que você vai servir, e de uma exclusividade que você terá”, defende o autor de Cozinha de origem. Em Belém, nos restaurantes Remanso do Bosque e Remanso do Peixe, junto ao seu irmão, Felipe, o cozinheiro faz fama pelo trabalho consistente

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1 yaguara

Além do café, a produtora Tatiana Peebles mantém uma criação de porcos orgânica

2 hugo provout

O chef tem preocupação especial com o ciclo produtor dos insumos

3 helena rizzo

Em seu restaurante, ela prioriza a compra de ingredientes a pequenos produtores

olhos, sobretudo, frescos. O agricultor familiar casa perfeitamente com essa cozinha minimalista, em que os detalhes são valorizados”, rubrica o paraibano.

SUFIXO YAGUARA

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que realiza com os ingredientes amazônicos de pequenos produtores – chocolate da Ilha do Combu, ostras de São Caetano de Odivelas, farinha de Bragança, queijo do Marajó. “Além de levantar a bandeira do meu estado, consigo comprar produtos diretamente ao produtor, sem atravessadores, colaborando indiretamente com a geração de renda e, muito mais importante que isso, a manutenção da tradição da agricultura”, pontua. É com essa filosofia que Onildo Rocha, nome da nova safra dos chefs que se destacam no cenário nacional, toca o seu restaurante Roccia Cozinha Contemporânea, em João Pessoa (PB). Há cerca de dois anos, trabalha em um esquema parecido com um fornecedor paraibano. Seu Dedé, que participou de um curso do Sebrae para aperfeiçoar sua técnica, fornece as folhas e os tubérculos para as casas de Onildo. “Fizemos um trabalho

junto com um agrônomo: eu passei as minhas demandas e ele preparou um escalonamento de produção. Assim, o produtor sabe a data em que vai colher e não deixa faltar nenhum item”, diz o cozinheiro, que não vê dificuldade em desenvolver esse tipo de iniciativa. “Encontrando o agricultor certo, que assuma o compromisso de entregar o produto, fica fácil. Precisamos multiplicar esse tipo de parceria para ter alimentos orgânicos e fazer com que a cadeia de produtores familiares cresça”. Junto ao Seu Dedé, Onildo Rocha desenvolveu um trabalho de revitalização do arroz vermelho, ingrediente que apresentou a grandes chefs do país, que se renderam ao grão e agora o chamam de “arroz do Onildo”. “Não é preciso atravessar fronteiras para fazer boa comida. Alta gastronomia e comida simples caminham juntas, basta extrair o melhor de ingredientes locais, aqueles que estão debaixo dos

Em Pernambuco, um dos nomes mais emblemáticos nessa conjuntura é a Fazenda Várzea da Onça, em Taquaritinga do Norte, onde a produtora Tatiana Peebles cultiva o Café Yaguara e tem feito experimentos com produtos suínos da sua própria criação orgânica. Não é raro se deparar com o sufixo Yaguara na descrição dos menus de alguns endereços mainstream da cidade, como Ponte Nova, Quina do Futuro e Prouvot cozinha.bar e Bistrô. “O ciclo do produtor, a qualidade da alimentação e o consumo artesanal dos ingredientes valorizam uma cultura. A relação com o agricultor familiar permite nova cozinha, novo gosto e o desenvolvimento de uma cadeia”, acredita o chef Hugo Prouvot. Os produtos da Yaguara têm feito tanta fama, que cruzaram divisas. O chef e apresentador de TV André Mífano, do festejado restaurante Vito, em São Paulo, foi ao interior de Pernambuco conhecer os produtos. “É obrigação da gente saber de onde a comida está vindo, essa ligação é importante, não só para conhecer e ter certeza de que é um produto de boa qualidade, mas pela responsabilidade social que o cerca. Como cozinheiro responsável, quero ver como o alimento é plantado, tratado, como as pessoas que colhem são tratadas. Quero me conectar completamente à comida. Fazer alta gastronomia também é isso, reconhecer tudo aquilo que passa pela sua mão como algo especial”, defende o paulista.

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CLIENTES ATENTOS

Mas essa não é uma preocupação exclusiva dos bastidores. Nos salões, os clientes também já procuram se familiarizar com as histórias por trás dos ingredientes. “É uma marca do consumo contemporâneo. Consumidores desejam envolvimento emocional, criando experiências gustativas que vão além dos atributos e benefícios dos produtos e serviços. E como vivemos esse zeitgeist de consciência social, que se aplica ao mercado gastronômico, urge essa procura por saber de origens para dar um valor pessoal ao ingrediente”, diagnostica Billy Nascimento, biomédico carioca pioneiro no conceito de neuromarketing, que estuda cientificamente a influência da publicidade no cérebro humano. Do Wiella Bistrô, Claudemir Barros concorda com o estudioso. “Claro que ainda não é a maioria. Mas parte dos clientes já pergunta ao garçom a história daquilo que ele está comendo. Se antes tínhamos um problema de ‘não como frango em restaurante porque frango eu como eu casa’, se esse frango mudou a trajetória de vida de alguém, será o prato escolhido do menu”, afirma o cozinheiro. Na despensa do seu restaurante,

André Nery/divulgação

divulgação

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Hoje, os clientes também estão mais interessandos em conhecer as histórias por trás dos ingredientes por exemplo, o insumo que causa comoção, acredite, é o chuchu, que vem da comunidade de Prata Grande, no agreste pernambucano, de uma comunidade que vive do plantio do legume e da macaxeira. “Lá, uma saca com 50 chuchus custa R$ 6, o que desestimula o plantio. E os agricultores já querem abandonar o ofício em busca de empregos formais. Este tem sido meu objeto de trabalho em palestras de que participo. Alta gastronomia é se preocupar com isso, sim, mas, diferentemente de países que fazem isso há séculos, estamos começando agora”, explica Claudemir, que, com muita técnica, transforma o ordinário ingrediente em um apetitoso ceviche. Eleita a melhor chef mulher do mundo, segundo os jurados do ranking Os 50 Melhores Restaurantes, realizado pela revista inglesa The Restaurant, a paulista Helena Rizzo também faz coro a essa

relação com o pequeno produtor. “Quase tudo o que meu restaurante usa vem deles. Mas não vou falar que é uma questão minha, é o movimento de quem trabalha com gastronomia. O caminho é se envolver cada vez mais com o alimento. Para a gente que cozinha, esse contato com a terra, com a agricultura, é vital. Penso que esse movimento acontece de maneira natural e há ganas de todos os lados: da turma do campo que quer crescer e do cozinheiro que precisa dos melhores insumos”, expõe a chef do Maní. Do Nordeste, Helena Rizzo trabalha com a araruta do “seu Pedro”, no Recôncavo Baiano, e com um produtor de caju de Natal (RN), que envia a cada três dias o fruto para a capital paulista. “Uso muito caju. No Maní, faço um ceviche de caju e o caju amigo, que é um bombom de cajuína com cachaça e manteiga de cacau envolto em sal”. Para ela, a cozinha é um elo entre o homem e natureza. Relação que começa no próprio restaurante. “Empregamos pessoas, trocamos conhecimento, ensinamos, recebemos de volta. À parte isso, tem toda essa questão do alimento, do valor dele, de como trabalhar, começa ali e vai pra fora com a relação com os produtores. Cozinha é um abraço entre gentes para gentes”, reflete. EDUARDO SENA

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con capa ti nen te fernando silveira - faap/divulgação

força ainda, uma vez que parece agregar sensações típicas do que é entendido como luxo. “As pessoas que recorrem à alta gastronomia para fazer uma refeição não querem apenas saciar a fome. Estão pagando para experienciar sensações, serem levadas a algum lugar, sentirem algo diferente”, pontua Silvio Pasarelli, diretor do MBA Gestão de Luxo da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo, com quem conversamos sobre os novos aspectos da alta gastronomia. CONTINENTE A palavra experiência agora é utilizada para descrever um conjunto de valores abstratos. Por que, na alta gastronomia, experienciar é um valor? SILVIO PASARELLI No mundo de hoje, valorizam-se as sensações. Estamos vivendo um momento de volta do culto ao hedonismo, corrente filosófica que bebia na fonte da experiência do prazer. E o prazer não é abstrato, é concreto, ele depende da realização. É um ato ligado ao fazer. Como consequência, se vivemos um novo hedonismo, teremos a valorização do fazer, do experenciar. E não seria diferente com a alimentação. Estar conectado com os prazeres que a comida pode oferecer é um dos símbolos da modernidade.

Artigo

SILVIO PASARELLI “EXPERIENCIAR A ALTA GASTRONOMIA É UM VALOR QUE ARREFECERÁ” Experiência. O termo, que vem do latim experientia (“prova”, “ensaio”, “tentativa”), é tão antigo quanto

nosso idioma — segundo o Vocabulário do português medieval, do lexicógrafo Antônio Geraldo da Cunha. É bem verdade que nunca esteve em desuso, mas costumava ser mais utilizado para designar o trabalho científico ou o que você acumula após algum tempo fazendo a mesma coisa. Porém, no contemporâneo, experiência assumiu a função de representar um conjunto de valores abstratos que compõem e qualificam algo. No universo alimentício, sobretudo no que rege a dita alta gastronomia, ganhou mais

CONTINENTE O pesquisador cultural canadense Will Straw sustenta que “comida é a nova música”, no sentido de que as experiências presenciais (no caso, um show, indo além do disco) são importantes na formação de um repertório cultural. Você concorda? SILVIO PASARELLI Música sempre esteve como um fator essencial à corte, leia-se à elite. E em todos os momentos da história. Onde funcionou monarquia ou império, a figura do músico sempre pertenceu ao poder. E, sim, pode-se dizer que o ato de comer vai ganhando uma importância social cada vez maior, sobretudo nas metrópoles, onde os encontros sociais se dão boa parte em torno da mesa. O programa do paulistano, por exemplo, é sair para jantar. Sair para comer é entretenimento, um acessório que consagra os valores culturais e sociais em que estão envolvidos.

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CONTINENTE Vivenciar a gastronomia (ir aos restaurantes mainstream, saber quem são os principais chefs, estar por dentro das potencialidades de novos ingredientes) é um valor cultural importante na sociedade brasileira? SILVIO PASARELLI Por enquanto, é um novo modismo, uma expressão de comportamento coletivo, imitativo até. No fundo, por trás disso tudo está a ideia de pertencimento. É como se não dominar a alta gastronomia me trouxesse desvantagens no conviver social. Para ser parte da norma culta, de forma racionalizada, eu preciso de repertório. Preciso de pertencimento. É necessário dominar conteúdos para ser entendido em certos círculos sociais. E o que está em voga é a comida, e se for feita por um chef famoso, trouxer uma tendência, for representativa dentro de alguma lógica cultural local, mais ainda. CONTINENTE Você trata esse fenômeno como efêmero? SILVIO PASARELLI Sim! Vai passar! É o inexorável círculo da dialética de Hegel. Estamos no momento de síntese da febre gastronômica, e os que estão tentando dominar esse discurso semiótico mais profundamente e sentem efetivamente prazer, estes, permanecerão. Porém, os imitadores, que não fazem parte legitimamente, lenta e gradualmente vão se dissolver. Experienciar a alta gastronomia é um valor que arrefecerá. CONTINENTE Você fala que, no contemporâneo, experiência é uma celebração da imaterialidade. O que uma receita gastronômica, tão material, pode trazer de imaterial? SILVIO PASARELLI Eu já ouvi uma discussão, inclusive num restaurante, entre supostos especialistas em gastronomia que tratavam os cozinheiros e os apreciadores de comida em dois grupos: o das receitas e o dos novos caminhos. Há uma área da gastronomia que é lógica, o livro da receita, mas há a parte do ir além. Conheço chefs de cozinha que

vão pela manhã ao restaurante e não sabem nem o que vão servir. Cozinha é um ato de inspiração artística também. E esse é o segundo grupo, os experimentais, que vão levar à mesa coisas que não são quantificáveis enquanto matéria. Um cheiro diferente, um perfume, uma situação de tato. A imaterialidade da comida está na sinestesia. CONTINENTE O mundo da moda trata as suas tendências com os conceitos de desaguamento e borbulhamento. A primeira, quando a moda sai das passarelas e ganha as ruas; a segunda, quando ela sai das ruas e ganha as passarelas – mais popular, portanto. Como você percebe essa situação na alta gastronomia? SILVIO PASARELLI Há um borbulhamento. Há coisas percebidas como de menor valia, de domínio popular, mas que são reapresentadas pelos cozinheiros.

“Há uma área da gastronomia que é lógica, mas há a parte do ir além. Cozinha é um ato de inspiração artística também” Existe uma linguiça portuguesa feita de pão, alho e porco, a alheira, bastante popular em Portugal. Quando é frita, é esteticamente horrorosa, rasga, ficam os pedaços dos recheios expostos… Um horror. Mas o sabor é maravilhoso. Certa vez, comi num restaurante um pedaço de alheira servido em uma linda massa folhada. E aí percebi que a essência da linguiça é o gosto, e a essência do prato estava no recheio. Ou seja, houve o borbulhamento, mas coube a estetização para tornar o ingrediente cosmopolita. Os pratos precisam ter uma relação estética com o comensal, isso é característico da alta gastronomia. CONTINENTE Experienciar é buscar algum status? De que tipo? SILVIO PASARELLI É aquela dicotomia: não há nada mais prático do que uma boa teoria. Afinal,

para construir uma teoria é preciso experimentar várias vezes. O teórico veio da prática, e o mundo é dela. Experenciar é buscar algo que tenha um valor, material ou simbólico, dentro do que fazemos no cotidiano. CONTINENTE Como você percebe o brasileiro cada vez mais se descolando do eurocentrismo e se rendendo a um Brasil comestível? SILVIO PASARELLI Isso é um subproduto da percepção nacional da importância do país. O brasileiro tinha vergonha de ser brasileiro. Gregório de Matos falava da síndrome do mazombo, do não pertencimento. E o valor cultural brasileiro, de fato, remetia à Europa. A partir dos anos 1980, também aos EUA, por conta da influência do cinema americano. Mas, ali, no começo dos anos 1990, já com a democracia gritando, fomos percebendo que podemos construir algo novo. Mais recentemente, o que víamos com ar blasé, agora damos valor. Mas foi preciso o estrangeiro valorizar o Brasil para nos tornarmos cientes de nossa capacidade. Começamos a nos surpreender e a nos tornar mais generosos com os atrativos culturais do nosso país: literatura, cinema, artes plásticas, música e, claro, comida. Hoje, o brasileiro médio está mais ufanista, tem orgulho de redescobrir o Brasil. A cozinha brasileira, que é maravilhosa, agradece. CONTINENTE Então o brasileiro já tem outro entendimento do que é o luxo à mesa? SILVIO PASARELLI Sim, e não só no ingrediente. Ele já não se importa se a louça do restaurante é de boa procedência. Esse novo modelo de alta gastronomia desenvolvida pelos chefes, em que até uma lata de sardinha pode ser uma louça, contribui para isso. A experiência do ineditismo, do inusitado. Talvez, chique seja ser surpreendido. A experiência gastronômica em tudo o que a cerca está em alta. Há quem faça jantares em que os clientes são vendados. A mesa passou a ser um espaço valorizado. Luxo para o brasileiro é quando a sua refeição repara as perdas da vida cotidiana. (ES)

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VIDEO GAME Uma metáfora para a vida

Boas narrativas digitais proporcionam experiência imersiva que se assemelha à emoção e à aventura de ler um livro, com a diferença de o jogador se apropriar dela TEXto Moema França

Conexão

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São 8h no meu celular. Na tela do Nintendo DS, o herói Link segura uma espada enquanto corre por diversos mundos em busca da Princesa Zelda. O jogo Legend of Zelda: Phantom Hourglass, lançado em 2007, conta a história do jovem Link que vai salvar a Princesa Zelda, sequestrada no reino de Hyrule. Quando me dou conta de mim, me dou conta de Link: deitada na cama, eu sou eu, de pijamas, com o gato do lado; mas também sou o menino loiro vestido de verde acompanhado de uma fada que dá dicas. Se o filósofo alemão Eugen Fink, seguidor de Heiddeger, afirmou que o jogo pode ser entendido como uma metáfora especulativa do mundo, então Link é uma das infinitas especulações da minha vida. Fink, o filósofo, dizia ainda que é no jogo que a relação entre a pessoa e o mundo se dá de uma maneira peculiar, pois ela também perde o controle e passa a ser jogada. Em outras palavras, para o filósofo, posso até estar jogando um jogo, mas Link, o herói, também está me jogando. Ainda estava jogando dentro de Link, quando meu celular tocou e o storyteller Leo Falcão, professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), pediu para mudar o local da nossa entrevista, cujo tema era justamente o potencial das narrativas digitais dentro do video game. Mais tarde, tomando café, Leo Falcão falaria que, “como Paul Ricoeur diz, o ser humano percebe o tempo como uma narrativa, comparando o antes e o depois”. E continuaria: “Então, você chegou, estava pronta para ir à Fundaj, quando eu lhe liguei. Disse que a Fundação estava fechada e a gente combinou de se encontrar no Bogart Café. Estava perto da sua casa, aí você reconfigurou e veio pra cá. Então, comparou o estágio antes e o depois a partir disso. É uma percepção narrativa que temos dos eventos. Da mesma forma, comparo a tela do jogo Tetris vazia com a tela do Tetris cheio. O que tenho que fazer para diminuí-la é a partir dessa percepção narrativa também. Uma história se constituiu para chegar até ali e agora uma outra tem que se constituir para que a tela do Tetris volte a baixar”. Doutor em Design pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Leo Falcão se define como storyteller,

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1 link Personagem de Legend of Zelda, game lançado em 2007 2 heavy rain Para muitos críticos, jogo também tem elementos cinematográficos

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apesar de “no Brasil, contador de histórias ter outra conotação”. Ele estuda narrativas digitais aplicadas ao video game, mas não se considera um jogador. “Eu jogo Tetris, Sudoku, Candy Crush também… Mas é curioso que são jogos casuais, não exploram tanto a narrativa. Até tenho curiosidade de jogar um jogo com narrativa (mais aprofundada), mas é que eu não tenho muita paciência”, fala. Seja o Tetris jogado por Leo Falcão, Legend of Zelda ou um game como Heavy rain: The origami killer, de PlayStation 3, os jogos possuem algo em comum: o poder de criar uma bolha com a narrativa, seja ela complexa ou simples, em torno do jogador. Essa bolha o transporta da realidade em que vive e o deixa imerso em outro mundo, tal qual a literatura e o cinema costumam fazer. Por também não ser uma jogadora regular, foi apenas depois de ouvir muitas histórias de amigos sobre jogos, como Okami (lançado em 2006 para PS2, Wii e PS3), Shadow of the Colossus (2005, PS2), Fable (2004, Xbox, Xbox 360 e PC), Red dead redemption (2010, PS3 e Xbox 360) ou Mass Effect (2007, Xbox 360, PC e PS3), que percebi que a narrativa de um video game consegue, muitas vezes, proporcionar uma experiência imersiva que se assemelha à emoção e à aventura de ler um livro.

JOGO MENTAL

Explico: ler um livro é estar dentro de uma cabeça que não é a sua, mas que você ganhou a chave para entrar. Com essa chave, você pode abrir as portinhas daquela cabeça. Pode chegar entre o cérebro e os olhos e usar a chave para abrir as pálpebras. É pelas pálpebras que vai enxergar a história que este coletivo de cabeça, cérebro, olhos e outras partes têm para lhe contar. Quando lemos um livro, vemos através do personagem ou do narrador – somos guiados pelo autor a imaginar pessoas, cenas, lugares, emoções. “Na literatura, como não tem as imagens de suporte, então você as cria na sua cabeça. No jogo, estabelece uma narrativa mental. Apropria-se dela. É como se esse caráter de apropriação da história estivesse mais presente na literatura e no jogo do que no cinema, porque, no cinema, você tem uma imagem objetiva, salvo alguns níveis de cinema”, explica Falcão. Jogar um jogo significa que, mesmo com as ordens preestabelecidas e limitações no desenvolver da narrativa, nós podemos mudar a linha da história, o desenrolar dos acontecimentos, de acordo com nossas ações. Não apenas estou vendo Link fazer as coisas, como também decido o que ele fará, porque, até que se prove o contrário, eu sou ele.

O jogo só começará se houver um jogador para a interação, assim como o livro não começa nem termina em si mesmo. Os filmes, por sua vez, também apresentam mecanismos de interatividade específicos, dado que o espectador vai receber, interpretar e incorporar determinada obra da maneira que quiser. “Temos uma interatividade subjetiva, na qual interpretamos aqueles códigos que estão à nossa frente, principalmente se houver um apelo narrativo envolvido. E há uma interatividade objetiva, em que manipulamos o conteúdo, modificando-o”, comenta Leo Falcão. Com o ponto de vista do sujeito, os meios se tornam extensões do corpo com o qual interagem, formando um diálogo orgânico entre a pessoa e a obra. Assim, jogador e jogo são uma só “pessoa”. Como Legend of Zelda não é um game que oferece um grande arcabouço de escolhas dentro da narrativa, foquemos em outro jogo, Heavy rain: The origami killer, lançado pela Quantic Dreams em 2010. Heavy rain se situa entre jogo e filme para muitos críticos, como se ser “só um jogo” diminuísse a obra. Possui 27 finais, que variam de acordo com as escolhas do jogador, mas nenhum é o principal. A premissa, porém, é sempre a mesma: o filho do arquiteto Ethan Mars morre, após ser atropelado em frente

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3 sentido Embora haja ordens pré-estabelecidas, podemos mudar a linha da história

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“O jogo nos conduz e a consciência que temos de nós se esvai, é o jogo que nos controla” Arlete Petry

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a um shopping. Dois anos depois, seu segundo filho, Shaun, é sequestrado. A trama consiste na busca e nos sacrifícios de Ethan para encontrar Shaun. Nós controlamos Ethan, junto a mais outros três personagens que investigam o desaparecimento – Scott Shelby, o detetive, Madison Paige, a jornalista, e Norman Jayden, o agente do FBI.

IMERSÃO

A pesquisadora de narrativas digitais Janet H. Murray explica que o leitor/ jogador/espectador passa a assumir uma função mais ativa na história, quando o autor/designer nela inclui diversas possibilidades, fazendo uma expansão na narrativa. Essa liberdade é somada à experiência de ser transportado a uma realidade simulada, e daí vem o termo imersão. Imersão deriva da sensação física de

estar submerso na água, envolvido por um universo que é estranho à nossa realidade. Quando mergulhamos no mar ou na piscina, o fato de estarmos em um ambiente tão alheio ao que nos é peculiar passa a reger todas as nossas sensações. Temos que aprender a nos movimentar naquele meio, a entender como ele funciona, ao mesmo tempo em que saboreamos a experiência de uma nova realidade. Em Heavy rain, mergulhamos em cada um dos personagens que controlamos – será que Ethan alguma vez será feliz de novo? Como posso ajudar para que ele encontre seu filho e supere os traumas do passado? Como ajo para que Jayden, o agente do FBI, se recupere do vício nas drogas? O que posso fazer para que eles não morram? O que eu faria no lugar deles? Será que, assim como o herói Link, estou sendo jogada por Ethan e outros personagens ao mesmo tempo em que “os jogo”? Mandei um email para a PhD em Jogos Digitais Arlete dos Santos Petry, perguntando sobre se é possível ser “jogada por um jogo”. Segundo Arlete, “o jogo nos conduz e a consciência que

4 Leo falcão Professor estuda narrativas digitais aplicadas aos games

temos de nós, de nossa subjetividade se esvai, revelando facetas de nós mesmos que desconhecíamos; ou então, comportamentos que só adotamos pelo fato de ‘encarnarmos’ um determinado perfil de um personagem. É nesse sentido que logo percebemos, quando achamos que estamos jogando um jogo, dele tendo controle, que é o jogo que nos controla, e, em vez de estarmos exteriores a ele, estamos dentro dele”. Encarnados em Heavy rain, escolhemos se Ethan se envolverá sexualmente com outra personagem. Esvaídos de subjetividade e consciência de nós mesmos, decidimos se Ethan vai brigar com o filho antes de levá-lo à escola, se vai sair de casa na chuva porque está triste. A construção de personalidade do nosso personagem, somada às ações que praticamos, nos envolve na narrativa e nos “revela” as tais facetas de nós mesmos que desconhecíamos. É assim que o controle do video game se incorpora à nossa pele, nos projetamos no personagem e pensamos por ele. Há uma interação entre o “eu” e o “outro”, visto que estamos nos colocando no lugar de outra consciência que não a nossa. Por mais que consigamos ter experiências íntimas com personagens e sentir epifanias, como a Macabéa de Clarice Lispector, não somos nós que decidimos, de fato, o que o personagem pode fazer. Em Zelda, eu poderia não falar com as pessoas que me sorriem nas casas da vila Hyrule, assim como ter escolhido ser violento com Shaun, o filho de Ethan, em Heavy rain. Do mesmo modo, optaria por não mentir, no início desse texto, dizendo que meu gato estava no pé da minha cama enquanto eu jogava Zelda. Mas o que você, leitor, ficaria sabendo, seria apenas a minha visão dos fatos. Para você, o gato estaria lá, mesmo sem estar – e a autora dá o ponto final. No jogo, você poderia ter escolhido, dentro do possível, a sua visão – o ponto final é seu. E é aí que mora a grande magia.

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andanças virtuais

IBERÊ CAMARGO Obras e documentos do artista gaúcho, um dos grandes nomes da arte nacional, são reunidos em acervo digital iberecamargo.org.br/acervodigital

O artista gaúcho Iberê Camargo, falecido em 1994, foi bastante lembrado em 2014, ano que marcou seu centenário. Ainda dentro das comemorações, a Fundação

Iberê Camargo lançou, recentemente, seu acervo digital, no qual disponibiliza mais de 4 mil obras e centenas de documentos, como catálogos, recortes

de jornais e revistas, correspondências, cadernos e fotografias. Três mil obras estão disponíveis em alta resolução e são acompanhadas por fichas técnicas e histórico. A página dedicada a cada peça apresenta sua relação com outros trabalhos do artista, documentos nos quais ela é citada, fotografias e exposições por onde a obra já passou. Além do bloco dedicado às obras, há outro, mais documental. Nele, é possível encontrar um cartão de Natal que Iberê recebeu de Jorge Amado e Zélia Gattai, a troca de correspondência com o artista Alberto da Veiga Guignard, e mesmo um abaixo-assinado organizado por Iberê e enviado ao presidente das Organizações Globo na época, Roberto Marinho, criticando o fato de o jornal O Globo dar cotações “bom”, “razoável”, “sofrível” às exposições de arte. O projeto Digitalização e Disponibilização dos Acervos da Fundação Iberê Camargo deve seguir, segundo o coordenador Gustavo Possamá, em constante atualização. MARIANA OLIVEIRA

CULTURA

SUSTENTÁVEL

FEMINISTA

MÚSICA

Revista Cardamomo lança sua primeira edição em versão online

Rede traz informações e listas de feiras agroecológicas do Brasil e do mundo

Site reúne para download livros de ficção científica que abordam a diversidade

Blog levanta discografias de bandas e artistas do rock e do metal mundial

revistacardamomo.com

agrisustentavel.com/index.htm

universodesconstruido.com

A cultura ganhou novo espaço para discussão e reflexão na revista Cardamomo. O veículo estreou sua primeira edição de outubro/ novembro em versão online e em PDF. Nesta edição, a revista lança a indagação: “A democracia está em crise?”. Além disso, podemos encontrar no site informações, resenhas e entrevistas sobre teatro, design e cinema. Nesta seção, há várias matérias realizadas durante o VIII Janela Internacional de Cinema do Recife, inclusive com registro de um tour realizado pelos cinemas de rua da capital pernambucana. Também existe uma seção intitulada Hora do Chá e um espaço para agenda cultural.

Pensar a agricultura de forma sustentável é o objetivo desta rede, que agrega diversas informações sobre o assunto. Nela, encontramos notícias, artigos científicos, e-books e programas de rádio para download, entre outras seções. A Rede Agricultura Sustentável também disponibiliza um espaço para quem deseja enviar artigos acadêmicos, monografias, dissertações e teses sobre o assunto, com a proposta de ampliar a discussão acerca da temática. O site destina ainda um espaço para divulgação de feiras que comercializam produtos orgânicos, agroflorestais e agroecológicos.

Por uma ficção científica diversificada. Sem machismo, racismo e homofobia. Essa é a proposta do Universo Desconstruído. O site traz livros para downloads gratuitos, em um esquema de troca. Você posta uma mensagem em alguma rede social e o livro fica disponível para baixar. Até o momento, duas obras encontram-se cadastradas: O Universo desconstruído #1 e O sonho da sultana. A primeira é uma coletânea de contos com questionamentos acerca da desigualdade de gênero. Já a segunda, escrita por Roquia Hussain, inaugurou o subgênero de ficção científica feminista.

warriorsofthemetalhorde.blogspot. com.br

A lista de títulos para download é extensa, atendendo a todos os gostos da música pesada. O único critério é a presença da guitarra distorcida. Dos clássicos Rolling Stones, Pink Floyd e Led Zeppelin, aos pernambucanos do Cangaço, além de bandas divulgadas pelo próprio blog. Os organizadores do endereço – Walker Marques, Rudão e Cláudio Miranda – atualizam constantemente o acervo discográfico, com uma pesquisa apurada. Não aceitam pedidos, pois postam por prazer. Cada discografia é acompanhada de uma resenha, que se aproxima do gosto pessoal de cada organizador.

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con ti nen te#44

Viagem

TWIN CITIES Lugares com espírito de lar 1

Localizadas no Minnesota, Saint Paul e Minneapolis destacam-se pelos espaços verdes, senso de coletividade e ampla programação cultural texto AD Luna

Miami, Nova York, Chicago, Las Vegas, Los Angeles, Washington, San Francisco. Em geral, são esses os lugares que aparecem como primeiras opções na cabeça de brasileiros e estrangeiros que pretendem viajar para os Estados Unidos. Mas, que tal tentar algo diferente? Que tal, por exemplo, as Twin Cities? O termo se refere às cidades de Saint Paul e Minneapolis, separadas pelo famoso Rio Mississipi, e localizadas no Minnesota, estado situado na região centro-oeste dos EUA, na divisa com o Canadá, ao norte. Foi lá que surgiram os músicos Bob Dylan e Prince, os irmãos e diretores de cinema Joel e Ethan Coen, o cartunista Charles Schulz, o escritor F. Scott Fitzgerald.

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1 minneapolis

cidade, assim como A sua vizinha Saint Paul, é recortada por áreas verdes

à qualidade de vida e ao retorno financeiro que obteriam. “A cidade é muito limpa, o ar não é poluído. Há muitos parques, lagos, museus, teatros, cinemas e eventos, bons restaurantes e cafés”, destaca o engenheiro mecânico. “Quando vamos a uma cidade grande, me sinto meio caipira, mas gosto de morar aqui. Os americanos de outras cidades pensam que viver no Minnesota é o fim do mundo. Acham que aqui é uma grande fazenda e que somos todos meio fazendeiros, usando chapéus e vivendo ao redor de bichos. Também falam muito sobre o frio. Como aguentamos?”, observa Valéria. De fato, o frio é um dos grandes poréns de se viver nas Twin Cities: as baixas temperaturas podem chegar a incríveis 40 graus negativos. “O verão é curto e o inverno é longo. Tirar neve da frente de casa todo dia, limpar o carro na hora de sair do trabalho para voltar para casa são hábitos a que não estamos acostumados”, conta Paulo Telles. Teoricamente, o inverno começa em dezembro e segue até fevereiro. “Mas, na prática, a neve começa a cair em novembro e vai até abril”, situa.

Schulz e Fitzgerald nasceram em Saint Paul, a bela e tranquila capital do estado. Com seus vastos e aprazíveis espaços verdes, alto nível educacional, senso de coletividade, ampla programação cultural e opções de lazer, inúmeras bibliotecas, trânsito civilizado, baixos índices de criminalidade e desemprego, as Twin Cities se destacam em qualidade de vida. No mês passado, foram consideradas as melhores cidades para se viver nos EUA. “Morar nas Twins Cities é muito agradável. O principal ponto positivo é a boa vontade das pessoas daqui. São muito receptivas. O jeito ‘Minnesota nice’ de ser não se baseia apenas na educação, ele realmente vem de

dentro”, expõe a arte-educadora recifense Goretti Aamott. Por motivos pessoais e profissionais, ela se mudou há 15 anos para Bloomington, na região metropolitana de Minneapolis. Tratar pessoas próximas ou desconhecidas com real interesse, atenção e sorriso no rosto é uma das características do “Minnesota nice” citado por ela. Para Goretti, um aspecto negativo é o excesso de formalidade nas relações sociais. Depois de passar um tempo morando na Dinamarca, o casal de cariocas radicado em São Paulo, Valéria Figueiredo e Paulo Telles, se instalou em Minneapolis, no início de 2007. A decisão partiu da boa avaliação que fizeram em relação

CIDADES VERDES

Em tempos de verticalização extrema e diminuição de áreas verdes, chama a atenção o modo como as Twin Cities foram projetadas – com suas vastas vegetações e poucos prédios residenciais gigantescos. Este ano, a dupla Saint Paul-Minneapolis conquistou o título de melhor sistema de parques dos Estados Unidos pela organização não governamental Trust for Public Land. Para moradores, governantes e empresários locais, a ideia central é que as duas cidades devem se desenvolver em torno dos parques e jardins, e não o contrário. Indagada sobre que lições habitantes e autoridades do Recife – agora em momento de intensa

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Fotos: divulgação

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Viagem

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2 c atedral de saint paul

Seu órgão é uma das muitas atrações culturais da cidade

3 ruins park

Os parques e lagos recebem cuidados das prefeituras, de empresas e também de voluntários 2

verticalização – poderiam aprender com a experiência das cidades americanas em questão, Goretti Aamott responde: “O Recife precisa aprender que prédios históricos e os ultramodernos podem conviver. Planejar a cidade para a população e não para os carros seria a segunda lição”. E o contrário? “O pessoal daqui poderia aprender com o recifense a caminhar mais, passear pelos grandes centros comerciais. Isso é bom”, pondera Goretti. Além das prefeituras, os parques e lagos são cuidados por empresas e milhares de voluntários. De acordo com dados da prefeitura, só em Saint Paul, cerca de cinco mil pessoas se inscrevem anualmente em programas de voluntariado para cuidar de áreas verdes da cidade. Nos parques e lagos, além de estrutura para piqueniques, churrascos, caminhadas, corridas, passeios de bicicleta, há realização

No mês passado, Minneapolis e Saint Paul foram consideradas as melhores cidades para se viver nos EUA de shows teatrais e musicais – boa parte deles gratuita. Somados a tudo isso, os baixos registros de obesidade e tabagismo levaram as Twin Cities a conquistar a segunda colocação, em maio deste ano, entre as áreas urbanas mais saudáveis dos Estados Unidos. O título veio a partir de pesquisa desenvolvida pela American College of Sports Medicine (ACSM) e pela Anthem Foundation. A capital nacional, Washington, ficou em primeiro lugar. San Diego, na Califórnia, ocupou a terceira posição.

O uso de bicicletas é incentivado nas Twin Cities. Tanto nos trens do novo e moderno metrô que corta as duas cidades, quanto nos ônibus, há espaços reservados para se guardar os veículos de duas rodas gratuitamente e a qualquer hora. O trânsito é tranquilo, longe do caos vivido em metrópoles do Brasil e de outras cidades dos Estados Unidos. Ciclistas e pedestres são bastante respeitados, ao ponto de até existir gente que cola adesivos em seus carros com dizeres do tipo “Eu paro para o pedestre”, demonstrando orgulho por esse simples gesto de civilidade. Até junho deste ano, a prefeitura de Minneapolis havia gasto cerca de 750 mil dólares na implementação de ciclovias. Isso contribuiu para que o município fosse o único dos Estados Unidos a ser incluído na lista das 20 cidades mais amigáveis do uso de bicicletas do mundo pela Copenhagenize Design Co. Além da capital dinamarquesa, a empresa de consultoria urbana tem escritórios em outros países. Ela elabora e divulga esse ranking desde 2011. Apesar de Minneapolis ter ficado na 18º posição, a conquista foi comemorada por moradores e pela imprensa do Minnesota. Buenos Aires foi a única cidade da América do Sul a entrar na listagem, ocupando a 14º colocação.

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4 Minneapolis Central Library

Fundada em 1885, passou por reformas e foi reaberta em 2006

hábitos Uma população letrada e educada

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As Twins Cities garantem aos seus habitantes um sistema de bibliotecas muito bem-equipadas, disponibilizando mais de cinco milhões de livros

Bookworms – algo como “vermes de

livros”, em português – foi como o site Huffpost denominou os moradores de Minneapolis, em artigo sobre as lições das Twin Cities sobre o viver bem. A expressão se explica em razão de as cidades abrigarem uma das populações mais letradas e educadas dos EUA, de acordo com pesquisa conduzida pela Universidade Estadual Central de Connecticut (Central Connecticut State University), divulgada em 2013. O estudo registrou que 46,5% dos moradores de Minneapolis possuem diploma universitário. Em Saint Paul, esse número é de 36,5%. Também foram levados em consideração dados como tamanho e eficiência de sistemas públicos de bibliotecas, número de

livrarias, circulação de jornais e outras publicações. Para se ter uma ideia, a capital Saint Paul tem menos de 300 mil habitantes, mas possui 17 jornais com mais de 500 leitores em circulação. Na lista, encabeçada por Washignton DC, e seguida por Seattle, Minneapolis ficou em terceiro lugar, e Saint Paul, em sexto. O Melsa (Metro Public Libraries) é o sistema regional que funciona nas Twin Cities, dividido e interligado em sete subsistemas, num total de 100 bibliotecas muito bem-equipadas. A Hennepin County Library é um desses subsistemas. Ela engloba um total de 41 unidades, que disponibilizam mais de cinco milhões de livros, CDs e DVDs em 40 línguas diferentes. A Minneapolis Central Library é a principal biblioteca

do Hennepin County. Fundada em 1885, na região central, ela passou por várias reformas, até ser reaberta em 2006, com design projetado pelo arquiteto argentino César Pelli. Nas dezenas de bibliotecas públicas das Twin Cities são oferecidas oficinas de escrita, publicação e leitura, além de cursos de informática e outras habilidades. Para aqueles que desejam praticar inglês e conhecer pessoas de vários locais do mundo, muitas das bibliotecas oferecem encontros semanais (e gratuitos) de conversação. As atividades são, geralmente, coordenadas por voluntários e costumam reunir pessoas de países como México, China, Turquia, Somália, Iraque, entre outros. “O conceito de biblioteca aqui é interessante, pois é um local de visita regular. Da mesma forma que se vai ao cinema ou shopping, no Brasil, aqui se vai à biblioteca. A gente gosta muito de ler e aprender, talvez movido pelo conceito do ‘faça você mesmo’, que se aplica para tudo na vida”, diz o engenheiro mecânico Paulo Telles, radicado desde 2007 na cidade. Algumas dessas bibliotecas, além de cafés e restaurantes, têm recebido, desde fevereiro de 2006, o Portuguese Meetup Group – grupo de estudos do português brasileiro. Os encontros ocorrem todos os sábados, pela manhã, e reúnem uma média de 15 pessoas, nos dias de estudo, e outras dezenas em eventos como a festa de São João, realizada anualmente, e que agrega famílias e amigos norte-americanos, latinos e brasileiros. “O grupo é formado por 50% de americanos, 20% de gente de países da América Latina e 30% de lusófonos”, detalha Maria Andrade, equatoriana que mora em Minneapolis há 34 anos, e uma das organizadoras das reuniões. “Costumamos usar algum texto que enfoque um tema atual, para ler e traduzir. Também assistimos a vídeos curtos, aprendemos gramática em livros educacionais e ouvimos canções para exercitar nossa compreensão.” Maria decidiu estudar português, em 2007, para poder se comunicar

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Gay friendly

AVANÇOS DESDE OS ANOS 1970 5

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Viagem melhor quando em viagem para países onde a língua é falada. Fã de Tom Jobim, Chico Buarque, João Gilberto, Vinícius de Morais e Caetano Veloso, Maria diz gostar do português brasileiro por ele “possuir uma bonita sonoridade, ser melódico e fácil de expressar emoções”. A mesma impressão tem a professora Marisue Gleason. Por já falar e ensinar espanhol, para ela foi fácil aprender a outra língua. “O português brasileiro possui uma musicalidade natural, cadenciada e melodiosa”, expõe. Norte-americana e moradora de Saint Paul, Marisue diz já ter perdido a conta das vezes que foi ao Brasil. “Acho que sete ou oito”, sugere. A primeira vez foi em 1999, quando veio a serviço da ONG Amigos das Américas e morou na cidade de Rui Barbosa, interior do Rio Grande do Norte. Nas outras vezes, visitou São Paulo, Belo Horizonte, Chapada Diamantina, São Luís, Salvador, Recife,

5 maria andrade

A equatoriana, que mora em Minneapolis há 34 anos, participa do grupo de estudos do português brasileiro

Ouro Preto e Olinda. Estas últimas a deixaram encantada por conta da arquitetura. Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso são os artistas que ela aprecia. “Não apenas pela beleza das músicas, mas também pelas letras”, reforça. De Pernambuco, ela cita Mestre Ambrósio, Mundo Livre S/A, Eddie, Nação Zumbi, Querosene Jacaré, entre outros. Marisue Gleason dá aulas para crianças e adolescentes na Mounds Park Academy, escola privada de classe média que procura despertar uma consciência global na mente dos alunos. Segundo a professora, além do espanhol, ela estimula o desejo nos estudantes em conhecer e aprender sobre outros lugares e povos do planeta. “Espero que eles enxerguem que todos nós fazemos parte deste mundo que está sempre em constante transformação”. Além do Brasil, Marisue conhece o Peru, Equador, Espanha, Costa Rica, Colômbia e Cuba. (AD LUNA)

Minneapolis e Saint Paul estão entre as mais gay friendly do território norte-americano. Em junho deste ano, a Suprema Corte dos EUA reconheceu a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Dois anos antes, o governador do Minnesota, o democrata Mark Dayton, assinava a lei que reconhecia o direito de gays e lésbicas se casarem. No dia 3 de setembro de 1971, a cidade de Minneapolis já havia atraído a atenção do país, quando o casal homossexual Jack Baker e Michael McConnell teve sua união celebrada pelo pastor da Igreja Metodista Roger Lynn. Saltamos para 2015. Realizada no dia 27 de junho, a parada gay das cidades gêmeas reuniu milhares de pessoas. Na Pride Twin Cities podia-se observar no desfile da avenida crianças, velhos e até carros da polícia com agentes empunhando a bandeira do arco-íris.

Imigrantes

ATENDimento a REFUGIADOS Todos os anos, as Twin Cities recebem refugiados estrangeiros, em especial de nações como Butão, Irã, Iraque, Somália, Etiópia e até da Rússia, incluindo famílias muçulmanas – as quais podem ser vistas andando pelas ruas sem sofrer hostilidades. Fundado em 1919 e localizado em Saint Paul, o International Institute of Minnesota (www.iimn.org) é uma das instituições que trabalham no acolhimento a pessoas que tiveram de deixar seus países por conta de perseguições religiosas e políticas, e guerras. Atualmente, o IIMN atende cerca de mil imigrantes, os quais recebem apoio no processo de regularização do visto de permanência, aprendizado de inglês e espanhol, aulas de computação e enfermagem.

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Lurdes R. Basolí/divulgação

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Perfil

SÍLVIA PÉREZ CRUZ A voz da sonhada Ibéria Influenciada pelo flamenco, cantora espanhola angaria críticas positivas à sua interpretação vigorosa, sendo apontada como a maior intérprete da Península Ibérica, na atualidade, por críticos da região texto Ricardo Viel, de Portugal

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Calella de Palafrugell é uma

pequena praia da Catalunha a meio caminho entre Barcelona e Girona, uma antiga vila pesqueira de casinhas simples, todas pintadas de branco, que no verão se enche de turistas à procura de sol, da bela paisagem e das águas quentes e tranquilas do Mediterrâneo. Nos anos 1990, nesse paraíso da Costa Brava, surgiu a lenda de uma menina que fazia chorar quando cantava. Seu nome é Sílvia Pérez Cruz, mas era conhecida por aquelas bandas como Alfonsina, por causa do clássico latino-americano consagrado na voz de Mercedes Sosa (Alfonsina y el mar) que a pequena, acompanhada do pai, costumava interpretar nas tabernas de Calella. O progenitor, Castor Pérez, foi um destacado impulsor das habaneras (ritmo nascido no Caribe, no século 19, e trazido para a Espanha pelos marinheiros), uma figura conhecida e respeitada no ambiente cultural catalão, e uma referência musical para a filha. Quando começou a cantar com o pai, Sílvia tinha 12 anos, mas desde os quatro estudava música clássica. Ainda na infância, aprendeu a tocar piano e saxofone. Fez parte de um coral e de alguns projetos artísticos (a mãe é professora de arte e cantora), até que, aos 18 anos, rumou a Barcelona para continuar os estudos. Foi por essa altura que o jornalista e escritor Luís Troquel a conheceu num concurso de teatro amador. “Eu fazia parte do júri. Era uma tarde de domingo, acho que no começo do ano de 2002, não tenho certeza. O que tenho certeza é do impacto revelador que me gerou aquela voz. Porque foi literalmente assim: uma voz inesperada no escuro.” É que Sílvia vinha caminhando do fundo do teatro, por trás do público, que a ouvia sem vê-la. “Não preciso dizer que ainda faltava um longo caminho para ela ser a enorme cantora que é hoje, mas já tinha sua marca, tão ancestral como atual.” No final da apresentação, Troquel pediu para conhecer a garota. “Encontrei uma menina com óculos, muito tímida, visivelmente desconcertada diante do meu entusiasmo.” Ainda demoraria mais

de uma década para que aquela moça dos cabelos longos e encaracolados, dona de uma voz inesquecível, se tornasse conhecida, mas Troquel sabia que era uma questão de tempo para que isso acontecesse. O caminho foi demorado, mas bem-trilhado. Em Barcelona, Sílvia estudou canto e começou a namorar com o jazz. Também teve contato com vários outros ritmos, como o flamenco, a bossa nova e o folk. Participou de mais de uma dezena de coletivos e gravou com vários deles. Os mais conhecidos, o grupo de flamenco As Migas e o trio de jazz do contrabaixista Javier Colina – com quem gravou um disco de boleros. “Fui formando o meu discurso musical, respeitando a base de sempre, mas com os recursos que adquiri de cada estilo. Não domino nenhum profundamente, mas domino essas linguagens. Se quisesse

Em 2012, lançou o seu primeiro álbum solo, 11 de novembre, com composições próprias, no qual canta e toca vários instrumentos ter sido cantora de flamenco, não teria futuro, mas encontrei o meu lugar porque cantava flamenco à minha maneira”, explicou a cantora, numa entrevista recente. Antes mesmo de fazer um disco próprio, Sílvia Pérez Cruz enchia teatros e salas de espetáculo na Catalunha. Nas apresentações, alternava canções mais conhecidas com algumas suas, e assim viu crescer o número de admiradores do seu trabalho – e também a cobrança para que gravasse essas músicas. Em 2012, lança o esperado álbum solo 11 de novembre (data de aniversário do pai, que faleceu em 2010 e a quem o disco é dedicado), no qual, além de cantar, toca vários instrumentos. Sílvia também fez os arranjos das canções (todas, composições próprias) e coproduziu o disco. Em 2014, acompanhada do violão do produtor catalão

Refree (Raul Fernández Miró), a cantora lançou o álbum Granada, uma viagem musical que começa na Alemanha de Schumann, passa pela França de Edith Piaf, percorre a América Latina de Violeta Parra, Novos Baianos (numa preciosa versão de Acabou chorare) e Simón Díaz (autor de Tonada de luna llena), faz referência a David Bowie (The man who sold de world) e chega à Península Ibérica, com músicas populares de distintas épocas – e cantadas em vários idiomas. Durante mais de uma década, Sílvia Pérez Cruz foi o que Luís Troquel define como “a musa da alta cultura” espanhola. Era conhecida e venerada na Catalunha, mas demorou muito tempo para que começasse a ser falada nas outras partes do país. “Ela nunca teve pressa para fazer sucesso. Durante anos, alternou projetos; houve um tempo em que ela cantava praticamente todos os dias, mas cada dia um repertório completamente diferente, com músicos diferentes. Na Catalunha, já faz muito tempo que, sem publicidade, a não ser o boca a boca, ela lota salas.” Para o crítico musical, o que Sílvia vem fazendo é uma carreira sólida, passo a passo. “Ela tinha, na Espanha, um público que esperava por esses discos, e esse público agora cresce de concerto para concerto.”

ESTREIA LUSA

O pianista português Júlio Resende tem fresca na memória a primeira vez que escutou a voz de Sílvia Pérez Cruz, era 2012. Navegando na internet, abriu um vídeo da espanhola cantando a canção Pare meu (que em catalão significa “meu pai”), música que integra o primeiro álbum solo da moça. “Escutei aquilo e percebi que ali havia algo muito intenso e bemdelineado”, diz o músico. Um ano depois, Resende assistiu a um concerto de Sílvia num festival de músicas do mundo que acontece em Portugal. Entregou-lhe um disco e, meses depois, fez o convite para que tocassem juntos em Lisboa, num projeto do português chamado Fado and Further. Foi um concerto

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xavier vila/Divulgação

1 a intérprete Frequentemente elogiada, é capaz de transformar tudo o que canta em algo seu

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Perfil 1

no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, um lugar conhecido por receber um público tão conhecedor de música, como exigente. Ainda assim, já na terceira música, a plateia passou a aplaudi-los de pé. “Eu sabia que, se não houvesse algum problema de som ou se ninguém esquecesse a letra ou a melodia, aquilo ia funcionar bem”, diz Resende. Naquela noite, além de uma canção de Sílvia e do clássico mexicano Cucurrucucú Paloma, tocaram um fado. “Foi uma sugestão minha, eu queria mostrar às pessoas que o fado pode ser sentido em outro idioma, e pode até ser dito em outro idioma.” Depois dessa marcante estreia, a cantora já tem agendado dois concertos na capital lusa para os próximos meses. Um dos elogios mais frequentes que se escuta em relação a Sílvia é o de ser capaz de transformar

Suas influências musicais são variadas. Vão do clássico às canções regionais, do fado ao samba, do som caribenho ao rock tudo o que interpreta em algo seu. Como se tivesse se apropriado de tudo o que escutou e estudou para construir o seu estilo. “Ela tem formação musical e é capaz de juntar o erudito e o popular com uma assustadora naturalidade”, define Troquel. Suas influências musicais são variadas. Vão do clássico às canções regionais, do fado ao samba, do som caribenho ao rock. Esse estilo único se explica não só pelo domínio da técnica musical, mas também pela história da sua vida.

A família tem raízes na Galícia e em Múrcia, dois universos totalmente diferentes da Espanha e que têm características musicais próprias. Os sons do Caribe, que tanto interessavam ao pai, estão no seu sangue, assim como a música portuguesa, país que Sílvia frequenta muito porque tem uma irmã que mora lá. “Sou do mar e isso forma parte da minha música, mas me sinto em sintonia com as cantoras galegas ou andaluzas, ou de Mallorca e Portugal. Minha maneira pura de cantar tem muito a ver com as cantigas populares, a minha poderia ser a voz das avós da Península”, explicou Silvia, recentemente, ao jornal El País. Essa “menina velha”, como também era chamada na infância, é daqueles raros casos em que há unanimidade de crítica. Por onde passa, ganha elogios de músicos, especialistas e público. Refree, produtor de um disco, parceiro em outro e amigo de Sílvia, diz que ela é a “pessoa com mais talento musical” que viu na vida. Para Luis Troquel, é dona da voz mais “pessoal e intensa” que apareceu na música espanhola nas últimas décadas. Júlio Resende vai mais longe: “A Amália (Rodrigues) foi a maior voz da Península Ibérica, acho que não há dúvida quanto a isso. Ela possuía aquela força que entrava nas pessoas. E acho que a Sílvia também tem essa centelha. Se a sua carreira seguir o caminho que se imagina, tem todas as possibilidades de se tornar a cantora mais importante da história da Espanha”. Algumas das cabeças mais lúcidas da Península Ibérica, como o filósofo e escritor espanhol Miguel de Unamuno e o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago, advogaram pela criação de uma pátria supranacional, que integraria Portugal e Espanha, uma união ibérica. Um espaço em que caberia a melancolia portuguesa, a força vital da Andaluzia, o brilho da Catalunha, o mistério da Galícia; enfim, um lugar como a voz de Sílvia Pérez Cruz.

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Tradição

malambo O sapateado gaúcho Desafio de dança típica do sul brasileiro, da Argentina e Uruguai retrata herança cultural do homem do campo dos pampas, ligado à criação do gado texto Guilherme Novelli

Malambo é uma dança tipicamente

argentina. Foi criada nos anos 1600 na planura, no pampa. Existem dois tipos: o norteño, do norte da Argentina e o sureño, do sul argentino, em que as roupas tradicionais diferem. É uma

dança de desafio de sapateado que procura imitar todos os movimentos do homem do campo, a cavalo, já que esse andar é a principal característica da cultura gaúcha ou gaucha, no caso dos argentinos e uruguaios.

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Também é dançado no Uruguai, país que reivindica sua autoria, e no Rio Grande do Sul, em meio a outras tantas da tradição do sul do Brasil. “A dança foi desenvolvida pelos tropeiros. Quando tocavam o gado, apenas entre homens, costumavam apostar, no sapateio, bens materiais, dinheiro, pedras preciosas, charque… Ela se assemelha muito à chula, a mais gaúcha de todas as danças, tendo esse mesmo sentido do desafio de sapateio. Para não acertarem as contas na garrucha ou na espada, partiam para o malambo, um símbolo de virilidade, destreza”, conta Norton do Carmo, coreógrafo do grupo Tche Malambo. Uma história simples, livro da jornalista argentina Leila Guerriero, lançado no Brasil pela editora Bertrand, conta a história da mais importante competição de malambo argentina, realizada anualmente em Laborde, cidadezinha da província de Córdoba, a 500 km de Buenos Aires. “É em Laborde,

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imagens: divulgação

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esse povoado do pampa liso, onde o malambo conserva a sua forma mais pura: lá, acontece, desde 1966, uma competição de dança prestigiosa e temível, que dura seis dias, exige de seus participantes um treinamento feroz e termina com um ganhador que, como os touros, os animais de uma raça pura, recebe o título de campeão”, descreve a jornalista argentina no livro. Os principais movimentos que influenciaram os gaúchos foram os de doma do cavalo: esticar e suspender as pernas, firmar-se na barriga do animal etc. Cada conjunto de movimentos e batidas do sapateado é chamado de mudança. Precisão, força, velocidade, elegância. “Batidas da sola dos pés, batidas da ponta, batidas do salto, apoios de meia-ponta, saltos, flexões dos tornozelos. Um malambo profissional inclui mais de 20 mudanças, separadas umas das outras por repiques, uma série de batidas”, continua a jornalista. O malambo sureño exige mais da musculatura do joelho para baixo, porque são movimentos com botas garrão de potro, um calçado feito do couro da perna do cavalo. “Eles cortavam a perna do cavalo do joelho para baixo, viravam o couro para dentro, por causa dos pelos e do frio. Essas botas não têm salto, muitas delas ainda eram cortadas nas pontas dos pés para os

O malambo é um desafio de sapateado tradicionalmente masculino que imita todos os movimentos do homem do campo ginetes poderem se segurar no cavalo, já que não havia o estribo, ainda”, detalha Norton do Carmo. Então, como a dança se desenvolveu com uma bota que não fazia muito barulho, os malambistas realizavam os movimentos muito velozmente. Já que não podiam usar tanto o repique, tinham de trabalhar muito com pernas e poses. “Depois, a dança foi se propagando até o norte da Argentina, onde se desenvolveu o malambo norteño, com botas de salto, técnica do sapateio vibrante, mais ritmado. O corpo também entrou numa outra dimensão de teatralidade”, continua.

TRAJES

O desafio de Laborde é técnico. A dança retrata nas roupas o tradicionalismo tanto do malambo norteño quanto do sureño. No povoado, há o desafio do malambo individual e o de quarteto. “No estilo sul, o gaúcho usa chapéu

coco ou galera, camisa branca, gravata borboleta, colete, paletó curto, um cribo – calça branca larga, com bordados e franjas na barra – sobre o qual se coloca um poncho com franjas (chiripá) preso à cintura, uma rastra (cinturão largo com adornos de metal ou prata) e botas de potro”, descreve Leila Guerriero. O chiripá, peça retangular colocada por cima da calça branca, uma espécie de fralda, era usada pelos índios guaranis antes de ser incorporada nessa cultura. O chiripá é a primeira roupa do malambo sureño. “No estilo norte, o gaúcho usa lenço no pescoço, camisa, paletó, bombachas – calça muito larga e plissada – e botas de couro de cano alto”, continua a descrição no livro. Os gaúchos brasileiros têm a mesma vestimenta que os gaúchos argentinos e uruguaios. “Cultura, na realidade, não tem fronteira. Na região dos pampas, era uma mescla só. A bombacha, calça larga que nós usamos aqui no Rio Grande do Sul, chegou através da Guerra do Paraguai para os três países de uma vez só”, explica Norton. Reza a lenda que essa roupa começou a ser usada pelos gaúchos do norte da Argentina porque lá o terreno é mais acidentado, então, não tinham como usar apenas chiripá com cribo, porque enroscavam no mato.

TREINAMENTOS E PRIVAÇÕES

O campeonato de Laborde é a meca do malambo. Os malambistas têm de se submeter a um treinamento físico intenso e a inúmeras privações, como dormir cedo, não beber, não fumar, para ter chances de se sagrarem campeões. Muitos deles recusam contratos para shows no exterior, em cassinos e cruzeiros, apenas para competir na cidade cordobense. Ganhar naquele lugar vale qualquer sacrifício. Esse espírito representa muito do amor à tradição e ao modo de vida do homem do campo argentino. “O verdadeiro prêmio de Laborde é tudo o que não se vê: o prestígio e a reverência, a consagração e o respeito, o destaque e a honra de ser um dos melhores entre os poucos capazes de dançar essa dança assassina. No pequeno círculo majestoso dos dançarinos folclóricos, um campeão de Laborde é um eterno semideus”, descreve a jornalista. A “dança assassina” a que ela se refere faz menção ao desgaste físico

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dos movimentos, os cinco minutos de apresentação num virtuosismo atlético que poucos dão conta, como explica no livro Ariel Ávalos, campeão da edição de 2000 pela província de Santa Fé: “Precisamos da mesma capacidade de rendimento que a de um jogador de futebol de primeira divisão, só que nenhum jogador corre intensamente durante cinco minutos. Corre 100 metros e para. Manter esses cinco minutos é o que faz o malambista. E é uma barbaridade. Depois de um minuto e meio de malambo, o quadríceps começa a queimar, a respiração muda. E, quando muda a respiração, se não estamos preparados, temos de parar”. Existe um pacto entre os campeões de Laborde. Após a conquista, ninguém compete em mais nenhum campeonato. Uma ou duas vezes esse tabu foi quebrado, mas quem não respeita essa proibição cai em descrédito entre os concorrentes e o público. Como campeão, começa a dar aulas e é recompensado com o respeito e a admiração. Pablo Sanches já preparou seis campeões e dois vice-campeões. Ele, além de preparador, é o patriarca de uma família de malambistas da cidade de Tucumán e descreve, no livro de Guerriero, o fascínio do malambo: “O poder da dança está no espírito, no coração. Tudo mais é técnica. O repique tem de ser perfeito, precisa-se saber levantar, cravar o peito do pé, ir subindo em energia, em atitude. Mas o malambo é uma expressão muito mais forte do que outras danças; então, além de saber a técnica, é preciso apalpar a madeira, senti-la, enterrar-se no palco. No dia em que se perde isso, perde-se tudo. É preciso sentir batida por batida. A mensagem precisa chegar com clareza às pessoas”. Segundo ele, a mensagem que se quer passar é: “Aqui estou, venho dessa terra”. O personagem principal do livro de Leila Guerriero é Rodolfo Gonzalez Alcántara, campeão da edição de 2012. Seu virtuosismo impressiona, mesmo se só tivermos acesso à sua performance numa precária gravação de celular disponibilizada no YouTube. Leila, após assistir à apresentação do vice-campeonato de Rodolfo na edição de 2011, o descreve: “Ele era o campo,

Página 47 1 tche malambo

Grupo dirigido por Norton do Carmo trabalha com ritmos típicos do sul do Brasil

Nestas páginas 2 indumentária

Tradicionalmente, usa-se calça branca larga, com bordados e franjas na barra – sobre a qual se coloca um poncho com franjas (chiripá)

campeonato de 3 laborde

Rodolfo Gonzalez Alcántara foi o grande vitorioso da competição e tornou-se personagem principal do livro de Leila Guerriero

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era a terra seca, era o horizonte tenso dos pampas, era o cheiro dos cavalos, era o som do céu de verão, era o zumbido da solidão, era a fúria, era a enfermidade e era a guerra, era o contrário da paz. Era a faca e era o talho. Era o canibal. Era uma condenação. Ao terminar, bateu na madeira com a força de um monstro e ficou ali, olhando através das camadas de ar folhado da noite, coberto de estrelas, puro fulgor. E, sorrindo de lado, como um príncipe, como um rufião ou como um diabo — tocou a aba do chapéu. E se foi”.

MALAMBO PROIBIDO

A dança surgiu na Argentina, mas existem muitos malambistas uruguaios e brasileiros, por causa desse processo histórico de divisão de terras entre estes três países. Na parte do Rio Grande do Sul, é uma dança que foi adotada para espetáculos. Não convive no meio tradicionalista,

em forma de competições, pois nos concursos tradicionais de danças do Rio Grande do Sul é proibido dançar malambo. Não se pode misturar na chula elementos do malambo, por exemplo. O gaúcho é uma mistura do índio com o português ou espanhol, dependendo da região. O gaúcho brasileiro também é chamado de bugre, pois tem a pele mais escura. Tomam o mesmo chimarrão e vestem a mesma roupa nos três países. Também fazem o mesmo churrasco, mudando apenas a forma do preparo. “Nós usamos o espeto, os argentinos e uruguaios usam a grelha. Eles chamam o churrasco de assado. O churrasco está intimamente ligado à doma do cavalo. Entre um malambo e outro, sempre há churrasco com chimarrão. O mesmo gaúcho que come a carne sobe ao palco para o sapateio”, compara Norton.

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CUSCUZ Amarelo, ocre ou branco, ele é sempre democrático

De origem magrebe, difundida pelos muçulmanos e adotada pelos ocidentais, iguaria é barata, nutritiva e de fácil combinação, em versões doce e salgada texto Luciana Veras fotos Daniela Nader

Cardápio

No Brasil, é prato de café da manhã, almoço e jantar, assumindo composições diversas, a depender do gosto e da hora do dia: servido puro e seco ou com manteiga, ovos mexidos e queijo coalho assado, no desjejum; como uma farofa ou na versão africana, ao meio-dia; e mergulhado no leite, doce ou salgado, para abrir a refeição da noite. Em Paris, apareceu pela primeira vez no século 17 e, hoje, é o segundo prato predileto dos franceses. No Marrocos, vende-se em qualquer lugar, das barracas ao redor da Praça Jemaa ElFna, coração da medina em Marrakech, aos restaurantes mais sofisticados, passando por acampamentos no deserto e pequenos restaurantes à margem de estradas. Ricos e pobres se deliciam, brancos e negros lambem os beiços, africanos e seus colonizadores repartem o apreço pela iguaria. É fato: não se pode nem se deve contestar a universalidade e a popularidade do cuscuz.

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A palavra surge do árabe kuskus, o que significa, segundo o dicionário Houaiss, “alimento preparado com sêmola”. Há grafias como a espanhola alcuzcuz e a francesa couscous – essa datada de 1505. A comida é antiga e tem origem no norte da África, no território conhecido como o Magrebe. “O cuscuz é um dos pratos mais tradicionais dos berberes, os povos nativos dessa região do continente africano, que vai do Marrocos até o Egito, compreendendo Argélia, Tunísia e Líbia. É um preparo feito como farinha, principalmente a sêmola do trigo sarraceno, mas também farinha de arroz e de milheto, que é diferente do milho”, explica o antropólogo e pensador da comida e da alimentação Raul Lody. Lody, um carioca de nascença, idealizador do Museu da Gastronomia Baiana e morador de Pernambuco, acrescenta que o cuscuz pode ser

considerado “a base do sistema alimentar do Magrebe”, por vários fatores. “Primeiro, por se tratar de uma comida rápida e prática, feita com a mistura da água com a farinha de sêmola. Segundo, por não precisar ser conservado. Terceiro, por ter valor nutritivo. Ele pode ter os acréscimos como carne, em especial de carneiro, ou mesmo ervas terapêuticas, o que o faria um condutor de profilaxia contra doenças. Ainda tem o cuscuz de festa, com tâmaras e passas, as frutas nativas daquela região.” A primeira transcendência geográfica do alimento ocorreu no século 10, a partir da expansão do Islã.“O Magrebe passou a ser ocupado por mercadores e religiosos que vieram do Oriente Médio e introduziram o Islamismo. A própria palavra magreb quer dizer ocidente, em árabe. Então, nessa expansão do Islã do Oriente para o Ocidente, a Península

Ibérica foi civilizada pelos magrebinos, pelos mouros e muçulmanos”, situa Raul Lody. Foram oito séculos de presença muçulmana na Espanha e em Portugal, o suficiente para deixar indeléveis marcas arquitetônicas, como os azulejos, e perenes hábitos alimentares, como o consumo de folhas, olivas e, claro, do cuscuz. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, no século 16, trouxeram consigo a herança moura. Nesse balaio de referências, vieram também “vários fundamentos do Magrebe”, como lembra o antropólogo. Tais fundamentos foram adaptados às condições locais. Ante a ausência do trigo sarraceno, saiu a semolina e entrou a farinha de milho. Permaneceu a etapa inicial do modo de fazer – a hidratação da farinha – e, com o passar das décadas e o aumento exponencial no consumo, entrou em cena uma panela específica e própria para a cocção do cuscuz. É impossível, quase improvável até, encontrar uma casa, principalmente no Nordeste, sem cuscuzeira.

BOM DE PREÇO

Na residência da antropóloga e pesquisadora Júlia Morim, por exemplo, cuscuz é item obrigatório do cardápio diário. Inclusive, as diferentes formas de apreciação são um indicativo de como a criatividade brasileira foi incorporando outros elementos para fazer surgir, assim, novas receitas. “Meu cuscuz predileto é com leite, açúcar em cima e com ovo. Passei a vida ouvindo piadas por causa disso, mas foi assim que minha mãe me ensinou. Meus dois filhos adoram. Vicente, o mais novo, gosta de comer com requeijão e ovo. Maria, a mais velha, prefere comer a farofa de cuscuz, com verdurinhas. Aliás, quando eu estava grávida dela, há 10 anos, o meu maior desejo era de comer cuscuz. Hoje, se colocarem um cuscuz de coco na minha frente, sou capaz de comer inteiro, sem dividir com ninguém”, confessa. Na casa da psicóloga aposentada Margarida Gonçalves, cuscuz é sagrado – tem dia sim, dia não – e múltiplo. O clássico “amarelinho” é o preferido do neto, que come com manteiga e gema de ovo. Quando o

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Cardápio CUSCUZ COM FRUTOS DO MAR Pela chef Kika Costa Ingredientes 2 xícaras de cuscuz de milho 3 xícaras de caldo de camarão (obtido a partir do refogado da casca do crustáceo) 100g de camarão com casca 50g de lula 50g de polvo 50g de marisco 2 tomates 1 cebola 2 cabeças de alho 1 pimentão verde Uma colher de sopa de coentro e cebolinho Sal, limão e pimenta do reino Preparo O primeiro passo é descascar o camarão. Pique a cebola, os tomantes, o pimentão e uma cabeça de alho, adicione o coentro e o cebolinho, e jogue numa panela com as cascas do camarão. Vá mexendo até que tudo fique bem refogado. Em seguida, adicione três xícaras de água. Continue mexendo por 20 minutos no fogo brando. Desligue o fogo e passe o conteúdo da panela no liquidificador. Bata por alguns minutos e depois coe. O que sobrar é o caldo de camarão a ser misturado na massa do cuscuz. Para prepará-la, primeiro coloque todos os frutos do mar numa frigideira, tempere com limão, sal e pimenta do reino e refogue com alho. Depois, acrescente a massa de milho, coloque o caldo de camarão e misture tudo. Deixar descansar de 10 a 15 minutos. Em seguida, coloque a massa na cuscuzeira e leve ao forno por outros 15 minutos, “o mesmo tempo de um cuscuz básico”, explica a chef Kika Costa. O ideal seria tirar da cuscuzeira e dispor em pequenas panelas. Pode servir como um tira-gosto ou mesmo com uma refeição principal.

filho mais velho vem passar férias, pede o “clássico” com queijo coalho assado. Já ela prefere a versão adocicada. “Gosto muito do cuscuz ensopado com leite de coco, mas, para ficar bom, tem que ser o leite do coco mesmo, e não o engarrafado. Como a minha mãe adora também, virou um prato da família. Mas gosto de deixar

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Um bom aspecto econômico deve ser lembrado quanto a este insumo, pois um saco de flocão custa entre R$ 4 e R$ 6

mais de uma opção de cuscuz, porque sempre tem alguém que chega para jantar, às vezes minha filha, outras vezes minha irmã e meus sobrinhos. Então, também costumamos fazer o cuscuz branco, preparado com a goma de tapioca”, comenta. Na sua despensa, o mínimo, em estoque, são quatro sacos de flocão de milho. Para adquirir quatro sacos de flocão, a depender do supermercado e com pouca variação entre as marcas, os gastos vão de R$ 4 a R$ 6 – um valor bastante acessível. Esse aspecto econômico sempre deve ser ressaltado, de acordo com o antropólogo Raul Lody, cujo livro mais recente, A virtude da gula - Pensando a cozinha brasileira (Editora Senac), tem um capítulo inteiro dedicado ao cuscuz. “Não é por acaso que o cuscuz passou a ser um prato muito popular. Além da tradição, da herança histórica, é bom lembrar que a farinha

mais básica custa menos de R$ 1. Esse dado econômico e social é relevante. Trata-se de um prato fácil, nutritivo e, acima de tudo, barato”, sustenta.

RECEITA DE CHEF

Ou seja, é uma matéria-prima saborosa, funcional e de baixo preço. Natural, pois, que seja usada, assimilada e reinventada por chefs de cozinha. A pernambucana Kika Costa, por exemplo, é adepta inveterada do cuscuz “desde sempre”. “Com manteiga, com leite de coco, com ovo, queijo coalho e café, de qualquer jeito. Aliás, não tem jeito: sempre acho bom demais”, diverte-se. Com 20 anos de experiência em gastronomia, e uma década de trabalho em concepção e consultoria de menus, ela criou um cuscuz com frutos do mar. “É uma receita exclusiva de um restaurante local. Como a casa fica na praia e tem muitos pratos com crustáceos, pensei em trazer o sabor do mar para o gosto bom do cuscuz. Virou febre. De vez em quando, meus amigos pedem para eu fazer”, diz. Um outro caminho para os chefs são as propostas de inserção do que hoje se convencionou chamar de “cuscuz marroquino” – a genuína tradição berbere acoplada aos hábitos locais. A chef olindense Carol Medeiros

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Ceviche

A MODA DEPOIS DO SUSHI

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elaborou uma versão em que o cuscuz é servido como acompanhamento, tanto para vegetarianos (servido, então, com uma salada de grão-de-bico) como para apreciadores de carne. “Uso o grão de sêmola, misturo com azeite, sal e pimenta e hidrato com água quente. Depois de hidratar, é só temperar com cebola roxa, tomate e vinagre de maçã”, detalha. Nos sete anos em que se especializou, primeiro em São Paulo, depois na França, ela constatou como o cuscuz é diversificado e onipresente. “Na minha infância, eu sempre comia com açúcar e leite. Mais velha, já preferia o cuscuz salgado, com ovo. Quando cheguei em São Paulo, conheci a versão temperada, com palmito, camarão, ervilha e milho. Lá na França, o cuscuz de sêmola é encontrado em todo supermercado. É parte da dieta deles. Muitas vezes, nos restaurantes em que trabalhei, era servido como

1 frutos do mar Receita é servida em restaurante do Recife marroquino 2 De tradição berbere, foi adaptado aos gostos nacionais

o almoço dos funcionários, inclusive com merguez, uma linguiça que os muçulmanos comem muito”, relata Carol Medeiros. Talvez, em um mundo não tão cindido pela intolerância religiosa ou não tão regido pelo capitalismo excludente, o cuscuz pudesse ser o prato principal na ceia da (re)integração. De origens magrebinas, difundido pelos muçulmanos e adotado pelos ocidentais, o cuscuz existe no sertão nordestino, nas mesas dos restaurantes com estrelas no Guia Michelin e nas cabanas africanas. Amarelo, ocre ou branco, como o bolo de tapioca vendido aos berros de “olha o cuscuz” pelos ambulantes nas praias do Rio de Janeiro, é um verdadeiro alimento inclusivo e democrático.

Na matéria de capa desta edição, você deve ter visto, leitor, a reincidência de duas versões deste que é o acepipe da vez: o ceviche. Na matéria, são citados dois preparos exóticos, um com caju, o outro, com chuchu. Na versão original, que nos vem das cozinhas peruana e equatoriana, o ingrediente central é o peixe cru, que passa por amaciamento por conta do tempo que fica marinando no suco de limão, acompanhado de frutos do mar, cebola, tomate, milho e temperado com gengibre, salsa, cebolinha, coentro, alho, numa saborosa composição ácida e picante. Podem entrar outros ingredientes, dependendo da região.

Chez Briggite

A VOLTA PARA OLINDA A belga Briggite Anckaert fechou o Chez Briggite nas Graças (zona norte recifense) para abrir um novo espaço. Este mês, a chef começa a receber comensais em casa, à beira-mar de Olinda, num esquema tables d’ hôtes, com proposta personalizada e intimista. O novo estabelecimento funciona mediante reservas, mantendo alguns dos pratos clássicos e trazendo criações da chef. Ao voltar para Olinda, ela resgata o cenário do seu primeiro restaurante em terras pernambucanas, o Kwetú, que funcionava na Praça do Jacaré, a poucos metros da sua casa, agora também restaurante. Informações e reservas: 81 98873-6622.

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fotos: divulgação

Sonoras 1

CRÍTICA Os protestos sonoros

O ano em que a música brasileira cantou os corpos, identidades, cidades, violência, política. Artistas inventaram o próprio espaço, tempo e vocabulário TEXto Carlos Gomes

Cinelândia, Rio de Janeiro, A mulher

do fim do mundo. Em meio a uma multidão que protestava contra as pautas retrógradas do parlamento brasileiro, especificamente os projetos de lei que dificultam o atendimento às mulheres que sofreram estupro ou abuso sexual e na restrição ao uso da pílula do dia seguinte, os versos de uma canção que dá nome ao primeiro disco totalmente inédito de Elza Soares, destaca-se estampado num cartaz, diante da imensidão de corpos, lutas e mulheres que cantavam em coro ao fim do ato no Rio de Janeiro: “Mulher/ Do fim/ Do Mundo/ Eu sou/ Eu vou/ Até o fim/ Cantar”. As vozes, quando em coro, têm uma potência e alcance bem específico.

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Sendo essa voz uma vibração sobre as violências postas cotidianamente sobre as mulheres, a rouquidão, ao mesmo tempo como súplica e promessa, do canto de Elza Soares ao final da canção Mulher do fim do mundo, ecoa como uma reverberação das vozes da Cinelândia. “Eu quero cantar/ Até o fim/ Me deixem cantar/ Até o fim/ Eu sou a mulher do fim do mundo”, suplica Elza. As que lá cantam, carregam nas cordas memória e história que a própria vida de Elza revela. Todo canto, toda a trajetória da cantora, das mulheres do fim do mundo da Cinelândia, estão contidos estética e politicamente nesses versos, incrivelmente concisos, da compositora Alice Coutinho, com música de Romulo Fróes. Se Alice carrega em tão poucas palavras essa história, Romulo põe na melodia o movimento necessário para que a voz de Elza crie uma narrativa verossímil com sua trajetória artística e pessoal, repleta de curvas, altos e baixos, quebras, belezas e tormentas. Tudo que cabe na vida está ali, naquele pedaço de canção. O produtor e músico, responsável pela concepção e direção desse álbum, Guilherme Kastrup, sintetizou a emoção de ver esse disco/canção multiplicado pelo ato no Rio de Janeiro, ao compartilhar em seu perfil do Facebook a fotografia em que se estampa o cartaz com a frase “Mulheres do fim do mundo”. “Em momentos como esse, a gente sente o poder das ideias e da arte chegando às pessoas, e contribuindo para o que realmente acreditamos! Salve todas as Mulheres do Fim do Mundo!!”. Nascido do encontro de Elza Soares com uma geração de músicos de São Paulo, acostumados ao corte-da-canção, devaneio-das-palavras e à distensão dos gêneros musicais, sobretudo pela ressignificação do patrimônio musical brasileiro, o samba, sob a corrosão que suas sonoridades impõem, na voztormenta de Elza, parece caótico e belo. Pois bem, são partes desse encontro Romulo Fróes e Alice Coutinho, da já citada canção-título; Kiko Dinucci, do corpo libertário que é ser/estar no grito-canto da faixa Pra fuder; Rodrigo Campos, da prosa-canção na conversa ligeira de falares e gírias com Elza em Firmeza; Celso Sim, da Benedita identidade de quem tem “uma dupla caceta”, de quem é “da zona”, e “morre”, “mata”, “é craque”; Douglas Germano, da

1 ELZA SOARES Em elogiado álbum, artista interpreta letras contundentes 2 ava rocha Segundo disco da filha de Glauber discute a política do corpo 3 negro leo Compositor tece suas críticas em 22 canções verborrágicas

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canção Maria da Vila Matilde, que na voz de Elza soa como um trovão contra a violência doméstica, quando avisa: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Nela, vozes emulam cães, sambas, guitarras, violências que dançam. Por fim, posto sob a condução de Kastrup, fazem parte do álbum Marcelo Cabral, Felipe Roseno, Cuca Ferreira, Cacá Machado e um poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik, na abertura do disco, não menos improvável, apenas n’A voz, n’A voz de Elza, como “navio humano, quente, negreiro do mangue/ navio humano, quente, guerreiro do mangue”, no que a traduz.

SANGUE NOS OLHOS

Neste ano, outras vozes tornaram a música muito mais que a reprodução de padrões. Em seus álbuns, a expressão sangue nos olhos pôde ser traduzida, ou reinscrita, no todo que compreendem suas obras, desenvolvidas no embaralhamento das canções, performances, narrativas, biografias,

imagens e demais aparatos que fundemse-confundem-se em suas próprias personas-criações: Ava Patrya Yndia Yracema, de Ava Rocha. Língua, de Alessandra Leão, e Selvática, de Karina Buhr são representações dessas vozes. Suas obras abriram muitas frestas – ainda que o tempo presente dificulte essa impressão – sobre a voz da mulher, numa espécie de performance sobre a performance da canção. Esse duplo se apresenta na escolha das artistas por desnudar nas letras suas dicções, angústias, críticas, modos de linguagem. Enquanto o corpo de Ava se ilumina no escuro e na sobreposição de máscaras, literais ou não, Alessandra e Karina desnudam e incorporam em suas próprias personas o que as canções inferem, refletem, conquistam. De maneiras distintas, porém, através dessa conexão possível entre vozes, corpos e narrativas presentes em todo o aparato que envolve o lançamento de suas obras, ou seja, projeto gráfico, shows, performance, canções, debates, entrevistas etc., Ava, Alessandra – é

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divulgação

Sonoras preciso lembrar que Língua fecha uma trilogia, iniciada em 2014 – e Karina se impõem como artistas críticas de extrema importância para o tempo nebuloso e, ao mesmo tempo, instigante para quem lida com arte nesse começo de século 21.

MODOS DE SER/ESTAR

Outras vozes que conectam a música nos planos críticos sonoros, em que há esmero, experiência e relações muito próximas entre arte e vida, são os discos Ninõs heroes, de Negro Leo, e Fortaleza, da banda Cidadão Instigado. Como recortes, os álbuns aqui retratados tratam de fincar numa memória sonora, política e cultural, os seus modos distintos de ser/estar nesse “mercado de expectativas”, como canta Negro Leo, ou na diluição de uma cidadeFortaleza-demais-capitais sob, mais uma vez, uma “nova ordem”. Essas canções, artistas e discos alargaram as possibilidades da música através de um discurso crítico rodeado da potência dos sons. Os sons como política. No entanto, há uma relação entre outras vozes contemporâneas a eles, mas, ao mesmo tempo, extemporâneas, porque parecem numa mesma medida territorializar e desterriorializar modos de construção estética. Mesmo nesses recortes heterogêneos que buscamos traçar, comparar, refletir sobre as produções musicais deste ano, artistas e obras como as lançadas por Rodrigo Campos, em Conversas com Toshiro, Zé Manoel, em Canção e silêncio, Passo Torto e Ná Ozzetti, em Thiago França, dentro do ambiente da canção brasileira permaneceram pairando num entrelugar estético. Rap, funk, música eletrônica, instrumental, noise e demais gêneros e desconstruções de gêneros certamente fizeram de 2015 um ano profícuo para a música brasileira. Será preciso uma infinidade de outros concisos recortes críticos para darmos conta da multiplicidade de vozes que compõem o universo da música contemporânea brasileira.

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VIRTUOSI Expansão horizontal e vertical da música

Nesta 18ª edição, festival apresenta concertos na Argentina e no Uruguai e sobe, pela primeira vez, ao Alto José do Pinho TEXto Ulysses Gadêlha

O Festival Internacional de Música de Pernambuco – 18º Virtuosi – fez uma expansão horizontal e vertical da programação, subindo para o Alto José do Pinho, no Recife, e visitando casas de concerto na Argentina e no Uruguai. Abrem-se de vez as portas para a América Latina, como desejavam seus realizadores, Rafael Garcia e Ana Lúcia Altino. O evento começa no dia 9 de dezembro e se desdobra até dia 20. Além do Recife, Montevidéu e Buenos Aires, estão incluídas na agenda as cidades de Olinda, Fortaleza (CE), João Pessoa e Campina Grande (PB). Entre as principais atrações, estão o Harlem Quartet (EUA), Quatuor Caliente (FRA), a pianista Marianna Shirinyan (ARM) e a violinista Priya Mitchell (ING).

Lançado há 45 anos, o movimento Armorial será homenageado pelo Virtuosi no Brasil, na Argentina e no Uruguai. O regente paraibano Eli-Eri Moura foi incumbido de compor uma obra em deferência ao movimento. “Eli é nosso parceiro. Nós lhe pedimos que fizesse uma obra para viola, violoncelo e orquestra de cordas, como ocorreu na Orquestra Armorial. Ele escreveu a música Armoriatika. A estreia mundial acontece na Usina Del Arte, em Buenos Aires”, conta Ana Lúcia Altino. Os realizadores descrevem-na como um caleidoscópio musical envolvendo recorrentes paisagens sonoras baseadas em materiais do cancioneiro brasileiro e da região nordestina em particular.

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INDICAÇÕES 1 harlem quartet Grupo é formado por instrumentistas negros e latinos

Essa ida a Buenos Aires reflete um movimento antigo ocorrido nas décadas de 1940 e 1950, quando a capital argentina era o maior polo de música de concerto na América Latina. Oriundos da Europa, os artistas atracavam no Recife para abastecimento do navio e aproveitavam a oportunidade para se apresentar no Teatro de Santa Isabel, um dos palcos do Virtuosi. “Lembro, quando ainda era pequena, desse fluxo de músicos, como Isaac Stern e Brailowsky, que paravam aqui antes de seguir para Buenos Aires. A cidade mantém essa tradição até hoje, com o Teatro Cólon recebendo óperas e balés famosos”, afirma Ana Lúcia. O Virtuosi também terá atrações na Sala Nelly Goitiño, que faz parte do Sodre, uma das referências culturais da capital uruguaia. Entre as atrações, destacase o Harlem Quartet, formado pela Sphinx Competition, concurso voltado para instrumentistas de cordas negros e latinos. “Eles executam música clássica, música de compositores dessas minorias, como negros americanos ou cubanos, além de nomes do jazz, como Dizzy Gillespie e Chick Corea”, conta Ana Lúcia. “É a segunda vez que trazemos uma atração formada na Sphinx Organization. Há muito tempo trouxemos a violinista mexicana Elena Urioste. Através dela conheci essa sociedade e cheguei até o Harlem Quartet. Fazia tempo que queríamos trazêlos. Neste ano, com a ajuda do Consulado Americano, a vinda deles foi possível”,

relata a realizadora. O grupo, que visita o Brasil pela primeira vez, passa pelo Recife, Olinda e Fortaleza. Já a pianista armena Marianna Shirinyan visita Pernambuco pela segunda vez. Em 2008, também pelo Virtuosi, ela participou da apresentação de dois quintetos para piano – Schumann & Dvorak –, junto a Ilya Gringolts, Anahit Kurtikyan, Rafael e Leonardo Altino. Aos 37 anos, ela figura na lista dos “Steinway artists”, instrumentistas apoiados pela maior marca de piano de todos os tempos, além de ser solista das orquestras de Oslo, Helsinki, Copenhagen, Tapiola, Göteborg e Norrköping. Nesta edição, apresentase ao seu lado a violinista inglesa Priya Mitchell, aluna de Zakhar Bron, referido como um dos melhores professores de violino do mundo. Priya se apresenta na Ordem Terceira de São Francisco, em Olinda, junto com músicos da Orquestra Jovem de Pernambuco. Ela toca com Shirinyan no Teatro Santa Isabel e em João Pessoa. O projeto A música clássica sobe o morro, segundo Ana Lúcia Altino, teve como intermediário o músico Cannibal (Devotos). “Segundo Cannibal, é a primeira vez que música clássica sobe o morro, de fato. Ele pediu que fosse um concerto bem formal, para que houvesse essa identificação do público. Então foi muito bom, uma saída do festival, que precisa inovar, respirar”, afirma Ana Lúcia. Em projetos paralelos, o Virtuosi também passa por Gravatá e Belo Jardim, no agreste pernambucano. Confira a programação do evento no site da Continente e no http:// www.virtuosi.com.br/.

ERUDITA

MÚSICA DE CÂMARA

Independente

Independente

ANDREIA LIRA Quebra o coco Demonstrando preparo vocal irrepreensível em seu primeiro CD, a soprano carioca Andreia Lira primou por um repertório de canções leves e bem-ritmadas de compositores consagrados do canto lírico nacional: Camargo Guarnieri, Chiquinha Gonzaga, Alberto Nepomuceno, Luciano Gallet, Waldemar Henrique, Villa-Lobos, Lorenzo Fernández e Francisco Mignone, além dos jovens Jorge Santos e Leandro Renò. A solista conta com a companhia do pianista Marcos Paulo e da percussionista Flavia Lima.

ALTERNATIVA

BANDAVOOU Nó Independente

As 15 faixas de Nó reúnem diversos ritmos e parcerias. É um exemplar importante da música pernambucana feita em 2015. Entre os parceiros, constam Elomar, Zé Manoel, Grupo Bongar, Juliano Holanda e Luiza Magalhães, que já foi vocalista do grupo. Os ritmos, também emblemáticos, variam entre samba, bolero, pop e rock. As letras cantadas com forte sotaque nordestino falam bastante de filosofia cotidiana. Além de tocar violão e guitarra, respectivamente, PC Silva e Carlos Filho assinam a maioria das canções.

RAFAEL ALTINO Viola à Rafael A seleção de obras feita pelo violista recifense para o álbum desponta pela absoluta variedade estilística, tanto técnica quanto estética – desde o neoclassicismo da Sonata de Marlos Nobre a uma hermética e complexa peça de Henrique Vaz, ambos pernambucanos. O único recorte aplicado por Rafael Altino foi o da origem dos compositores, todos do Nordeste: além dos dois citados, estão Nelson Almeida (PE), Liduíno Pitombeira (CE), Danilo Guanais (RN) e Marcílio Onofre (PB).

ROCK PSICODÉLICO

BOOGARINS Manual (Guia Livre de Dissolução dos Sonhos) Other Music Recording

Avalanche é o nome do single que conduz o novo disco do Boogarins, rock psicodélico goiano que está sendo comparado aos australianos Tame Impala e aos brasileiros Os Mutantes. Como legitimação do ser, a poesia da canção fala do poder do eco, do grito para derrubar prédios que impedem a visão. É a crítica à verticalização da cidade, do movimento Ocupe Estelita. Assim, Boogarins consegue amarrar o devaneio dentro de acordes consistentes, adquirindo substância psicodélica nas melodias e letras.

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Ronaldo Correia de Brito escritor

entremez

AMOR PARA ALÉM DA VIDA Minha avó materna relatou a morte de seu marido Pedro Zacarias de Brito 1001 vezes, como se fosse a Sherazade de uma única história. Considerando os dias e horas de nossa convivência, esse número pode ser bem maior. A perda do esposo tornou-se um marco na vida de Dália Nunes de Brito. Nos primeiros anos de viuvez ela cobriu-se de negro, um figurino que poderia incluir mantilha sobre a cabeça, mangas compridas e meias até os joelhos. Os vestidos chegavam aos tornozelos e seguiam um padrão único de costura. Apenas no final da vida, que durou quase um século, ela aceitou amenizar o luto. Tamanha rigidez na expressão de uma perda faz imaginar uma pessoa amarga, dura e até cruel. O oposto do que sempre foi Dália Nunes, a mais alegre, doce e brincalhona das criaturas, uma quase maluca nas suas invenções e fantasias. Meu avô tinha apenas 42 anos quando foi encontrado morto às margens do riacho Jardim, afluente do Carás, que deságua no Salgado, que corre para o Rio Jaguaribe, que desemboca no oceano Atlântico, bem

longe, em Aracati. Dália contava que o Jardim estava de cheia, a correnteza aumentando, e faltaram apenas dois palmos para o corpo de Pedro ser arrastado. Nessa parte da história ela traçava com a mão calosa a medida exata entre a firmeza da terra e a fluidez perigosa da água. Chorava e nós, seus netos sensíveis, também enchíamos os olhos de lágrimas. – Pedrinho saiu de casa bem cedo, ia visitar um afilhado doente, lá no Enxu. Na volta, ficou de passar na vazante, tirar um cacho de banana e trazer pra casa. Tinha chovido nas cabeceiras do Jardim e o riacho botou água. Me despedi dele na calçada. Ele me beijou primeiro, depois beijou o caçula de seis meses. Nove filhos de cobrir com um balaio, o mais velho com 13 anos. Perguntei se voltava pro almoço e ele garantiu que sim. Segurava um bolo de massa puba na mão esquerda, pra comer no caminho. Nunca foi homem de fatias, só comia bolos inteiros. É verdade que eu assava os bolos em formas pequenas, latas de goiabada. Nessa passagem do drama ela voltava a chorar e nós esperávamos

em silêncio ou pranteando, coniventes com a dor. A avó nunca alterava uma vírgula, uma pausa ou marca de choro do seu relato. Era de uma precisão matemática, como se tivesse fixado em escrita a história elaborada durante anos, até chegar ao texto definitivo, aquele que decidira fixar como verdadeiro. Memorizou-o e repetia as cenas disciplinada, atenta em não introduzir cacoetes ou falas estranhas ao papel. Deu nove horas e ele não chegou pro almoço. Eu olhava da janela e via o céu ameaçando chuva. Vai ver tinha aceitado o convite dos compadres, sempre matavam galinha pras visitas, Pedrinho era homem guloso. Às dez meu coração apertou-se. Um vim-vim cantou no pé de cajarana e pressenti coisa ruim. Esse pássaro agourento não traz notícia boa. Às onze mandei chamar João Leandro, o cunhado. Ele chegou com sessenta homens, os trabalhadores do engenho. Pararam a moagem, apagaram o fogo dos tachos. Quando olhei o rosto dele, estava branco da cor de um capucho de algodão. Me contou que tinha deitado

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reprodução

copiado das feições do pai, se repetiu em gerações de filhos, netos, bisnetos e tataranetos. O retrato emoldurado ocupou o lugar de honra da casa grande de nossa avó, a parede principal da sala, abaixo da imagem do Coração de Jesus, uma litografia suíça do século XIX, parecendo um ícone russo. Um lugar justo, precioso na vida de Dália, que amou o marido tanto como ao próprio Deus, para quem ela rezava três rosários: um de madrugada, um ao meio dia e outro ao anoitecer. Lugar tão definitivo que a fez escolher nunca mais casar, mesmo tendo apenas 30 anos quando enviuvou, mesmo sendo proprietária de terras, possuidora de rara beleza e carecendo dar um novo pai aos nove filhos. O amor de Pedrinho foi tanto que me bastou. Ainda agora, se fecho os olhos, sinto o gosto dos beijos dele. Digo a vocês: casem, beijem, porque não tem coisa melhor na vida do que beijar. Talvez apenas narrar, narrar sempre, num recurso da oralidade em que se empregam os lábios, a língua e o palato. Através da repetida história do marido, Dália manteve Pedrinho vivo, onipresente como o Todo Poderoso de coração sangrante e coroado de espinhos, os olhos virados para o céu, os dedos das mãos apontados para cima. Foi a Sherazade de uma

Através da repetida história do marido, Dália manteve Pedrinho vivo, onipresente como o Todo Poderoso no quarto, dava um cochilo depois do comer, quando escutou a voz chamando João, João. Reconheceu ser do cunhado, que ele tanto estimava. Abriu a janela e não viu ninguém, saiu no terreiro, chamou compadre Pedro, chamou, chamou e nada. Gritou por Eufrásia. Eufrásia! Alguma desgraça aconteceu ao teu irmão. Nessa hora o portador bateu palmas e deu meu recado. Eufrásia acendeu vela benta, queimou ramo, mas de nada valeu. Eu chamava Pedrinho pelo meio das roças, as meninas chamavam papai, papai,

e nada. Os homens se espalharam feito um enxame de abelhas, quando botam fogo na casa. Vi de longe os trabalhadores carregando o corpo, deitado numa tábua. Nem sei onde arranjaram aquela porta. Precisavam de madeira fornida. Pedrinho era homem grande, pesado. Na foto em que aparece deitado no interior de um caixão, elegantemente vestido num paletó, as mãos cruzadas sobre o peito, barba por fazer, olhos bem fechados, não se avaliam a altura e o peso do homem cujo rosto sereno,

única história. Graças a sua narrativa viveu lúcida, serena e cativante, arrancando à morte seu amor eterno, não permitindo que ele a abandonasse, nem largasse a casa ou os roçados. No casarão, dividido ao meio por parede, havia uma ala interditada, onde se guardaram os pertences de Pedrinho, celas, estribos, arreios, roupas e sapatos. Bastava aos netos entrarem naquele mundo à parte que escutavam a voz sem lamento. Para Dália não existiam paredes, Pedrinho estava em toda parte e não parava de falar.

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ana páula rosa/divulgação

Leitura INÉDITO Como ganhar concurso sendo fiel a si mesmo

O mineiro Sérgio Corrêa largou o birô para se dedicar às letras e teve seu romance como o vencedor do Prêmio Cepe Nacional de Literatura texto Olívia Mindêlo

Ele vem de longe, das Minas Gerais, do Arraial de Santo Antônio da Casa Branca, onde vive, embora tenha nascido na cidade grande, Belo Horizonte, em 1961. Passou muitos anos nas minas, como engenheiro, e no birô, como jurista. Hoje, contudo, este é o seu veredito: “Morreram o engenheiro e o promotor, sobraram o fazendeiro e escritor”. E é sobre este último que estamos precisamente falando, sem perder de vista o quanto essa trajetória faz da sua vida, ou melhor, das suas páginas o que elas são. Sérgio Corrêa ainda é pouco conhecido no ofício das letras, mas já tem um percurso razoável para quem começou tarde – só há três anos, “à vera”. Desde 2012, quando resolveu, aposentado e morando em uma fazenda herdada do pai, se dedicar à literatura, ele publicou três livros, sendo um infantojuvenil. Tem também outros na gaveta, um deles está no Recife, à espera de publicação: o romance O grande massacre das vacas, vencedor, na sua categoria, da primeira edição do Prêmio Cepe Nacional de Literatura, da Companhia Editora de Pernambuco. A história do livro é interessante. Na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, um sujeito chamado Capitão de Corveta Horácio Aubrey Trombeteiro recebe das forças armadas brasileiras a missão mais bizarra da qual já teve notícia: “viajar milhas e milhas num navio de guerra da Marinha do Brasil, só para matar duas centenas de vacas”. Sobre as vacas do enredo e do título ficamos sabendo nas páginas seguintes: são zebus trazidos da Índia para a Bolívia e cuja entrada em solos brasileiros foi proibida pelo governo, por conta do risco “de transmitirem febre aftosa ou peste bovina”, assim nos conta o romance. É justamente tarefa do navio Parnamirim, e sua tripulação de “74 homens” chefiada pelo Capitão Trombeteiro, vigiar a passagem dos bichos na região limítrofe do país. Embora pareça, o romance não é do tipo histórico ou documental, mas ficcional, ainda que tenha como ponto de partida um acontecimento real. Segundo Corrêa, no posfácio de seu volume, “em 1955, um zebueiro chamado José Roberto Rodrigues da Cunha trouxe um lote de gado da Índia, mesmo com a importação proibida. Perseguido pela Marinha, e sabendo que o gado seria apreendido e abatido, desembarcou

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o gado em Puerto Bush, na Bolívia, e foi substituindo as reses por outras semelhantes, trazidas do lado brasileiro, e vice-versa” – um truque comum. “A entrada do zebu no Brasil sempre me fascinou, deve ser a melhor experiência de melhoramento genético do mundo – e foi feita por acaso”, conta o autor. Nas suas palavras, “o zebu chegou aqui como animal de circo ou de carga”. Antes, o escritor havia pensado em produzir um romance histórico ou uma narrativa sobre os pioneiros, “talvez para vender para a ABCZ” (Associação Brasileira dos Criadores de Zebu), mas viu que havia muitos livros desse tipo. “Soube da história do José Roberto Rodrigues da Cunha por um vídeo, mas não consegui encontrar detalhes, como: qual o nome do navio brasileiro que o perseguiu? Daí, veio a ideia: pare de pesquisar a história dele e invente uma que seja plausível – como faz, por exemplo, o Giles Foden, um escritor escocês que aprecio, misturando personagens reais à ficção, disfarçando outros etc. Foi melhor assim, porque Minas é uma grande roça e todos se conhecem”, comenta Corrêa, em entrevista à Continente (leia entrevista completa no site da revista). Assim os personagens do romance foram criados. O Capitão Trombeteiro, por exemplo, é “100% imaginário”, tendo “nascido” de um híbrido dos heróis ficcionais Jack Aubrey e Horatio Hornblower, criaturas de Patrick O’Brien e C.S. Forester, respectivamente, que fazem parte da juventude do autor. Como nos conta o romance, o capitão descendia dos ingleses pelos dois lados e “o ‘trombeteiro’ do sobrenome era o aportuguesamento” do nome de família de um de seus trisavós, o Hornblower. Falando sobre os heróis que o inspiraram, Corrêa acredita ser Horatio Hornblower “mais seco, com menos senso de humor, mais preconceituoso, bem caxias”, enquanto Aubrey “é um cara mais dotado de senso de humor, mais humano”. A despeito do nome, ele defende que “se o Capitão Trombeteiro tem os genes de algum, é do Aubrey”. De fato, é no mínimo curioso, ou tragicômico, que um chefe militar vá parar na Amazônia para despender tamanha “seriedade” observando o movimento de vacas inimigas, enquanto o dinheiro público vai para

o brejo e questões políticas rondam os gabinetes da União sobre se os bois devem ou não entrar no Brasil. Os demais marinheiros da trama também foram inventados, enquanto outros personagens não são tão fruto da imaginação assim. É o caso de dois tios-avós do autor que foram parar na história: o Capitão Marildo e o Dr. Clóvis Junqueira. Ele, aliás, conta de suas influências familiares: a maior delas, o avô Merolino Corrêa, que foi jornalista e poeta bissexto. O tio-bisavô era o parnasiano Raimundo Corrêa (ou Correia), da poesia As pombas. Afora eles, o tio Luís Antônio Villas Boas Corrêa é escritor e jornalista, assim como o filho, primo do romancista, Marcos de Sá Corrêa. O autor premiado diz que as letras estão no “DNA dos Corrêa”. Poderíamos dizer ainda que o mundo da pecuária e dos cavalos também está neste gene. O próprio Sérgio descende de uma família (materna) de pecuaristas

Autor diz não “escrever a sério”, mas como “meia farsa”, a exemplo deste O grande massacre das vacas e um dos tios – o que aparece no livro – era justamente zebueiro. “Cresci ouvindo as histórias deles e dando palpites, também tínhamos terras. Fui atirador muitos anos e fiz tudo o que se pode fazer em cima de um cavalo: polo, long riding, hipismo clássico…”, conta ele, que já teve insights literários cavalgando. Além disso, é também amante e curioso da cultura indiana, referência no romance. Apesar da bagagem, diz não “escrever a sério”, que faz história de humor escrachado ou “meia farsa”, como no caso de O grande massacre das vacas. “Eu sou quem eu sou, não adianta fingir. Tentei escrever sobre pobreza, favelas etc., para vender e agradar. Ficou uma merda ilegível. Gosto mesmo é de ganhar concursos sendo eu mesmo, sem disfarçar. Quero ser lido”, diz o autor, cuja estratégia parece vir dando certo. Em 2014, ele já havia ganho o segundo lugar no Concurso de Contos Paulo Leminski, com o texto Eu odeio Vinícius.

trecho “Caminhando a passos largos, Kamadhenu foi a primeira a chegar à beira do rio. Não tinha pressa: a água era farta e estava bem ao alcance da vista, o tempo inteiro. Mas o calor dava sede, e ela e as outras interrompiam de quando em quando o seu vagar para refrescarem a garganta. Parou na margem e, antes de abaixar a cabeça, mirou através do rio: do outro lado, muito distante, podia ver o navio cinzento ancorado e os marinheiros na sua labuta: lavando o convés, examinando os equipamentos, engraxando as enxárcias. Uma fumaça tênue saía da cozinha: o almoço sendo preparado, decerto. As outras foram logo chegando: Surabhi, Indira com o filho Bahadur, Aditi, Chandra, Prasanna, Madhuri, Rati, Ojaswini, todas elas. Rohana e a pequena Urmila fecharam a fila, porque Urmila ainda tinha pouco tempo de nascida e não conseguia acompanhar os adultos. Khamadenu foi a primeira a abaixar a cabeça e beber, porque era a mais velha e tinha nome de deusa; Surabhi foi a segunda pelas mesmas razões, ainda que como estivesse um pouco abaixo no panteão devia respeitar a superiora. O resto se acomodou com facilidade, porque as margens eram extensas e nenhuma turvava a água das outras. Do outro lado do rio, o Capitão de Corveta Horácio Aubrey Trombeteiro limpou com as costas da mão o suor da testa e das sobrancelhas, antes de pôr novamente os olhos no visor do seu velho binóculo Zeiss: a umidade e o calor condensavam a transpiração, e embaçavam as lentes. Estava agindo errado, pensou: não devia observar o inimigo tão de perto, e nem por tanto tempo. Como leitor e estudioso de História, sabia que a inércia e a excessiva observação mútua levavam à familiaridade, e daí para a traição era um curto passo. Acontecera na Primeira Guerra entre britânicos e alemães: bastou chegar o Natal e inimigos se confraternizaram, com jogos de futebol e ceias de Natal, pelo menos até que a razão militar prevalecesse e trouxesse a normalidade, e começassem as transferências, as cortes marciais e uma ou duas execuções, pour encourager les autres (…) Trecho que abre o livro O grande massacre das vacas (Parte 1, capítulo 1).

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POLÍCIA A realidade como fonte

FABIO TEIXEIRA/UOL/Folhapress

A literatura que retrata e redimensiona a violência nas ruas do país – vigiadas por personagens que comumente se equivocam sobre seus papéis texto Rodrigo Casarin

Leitura

“O menino ouviu outros estampidos. E, antes que os policiais sumissem morro acima, sentiu algo lhe beliscar o peito. Encostou-se na parede de madeira do barraco, inesperadamente fraco, uma estranha queimação nas costas. O caderno lhe escapou da mão e caiu sobre o peito. De um instante para o outro, os olhos lhe pesavam, estava com sono, cansado de ter corrido até a venda, o estômago rumorejando de fome. A boca começou a lhe saber à ferrugem. O peito ardia, e ele suava, suava tanto, que o corpo ensopara. As vistas se escureciam; mas ainda há pouco era tarde, o sol fulgurava, como a noite chegara tão depressa? O que estava acontecendo? Um vulto se inclinou sobre ele, não conseguia distinguir seu rosto, mas sabia: era a mãe.” A cena acima poderia descrever o assassinato do garoto Eduardo de Jesus, morto aos 10 anos, em abril deste 2015, no Complexo do Alemão. Também poderia descrever o assassinato do menino Herinaldo Vinícius da Santana, morto aos 11 anos, em setembro, na Favela Parque Alegria, no Caju. Policiais cariocas tiraram a vida de ambos. Mas a narrativa faz parte de No morro, escrito em 2001 por João Anzanello Carrascoza, que, na época, se inspirou em uma

outra criança morta dessa maneira para escrever o conto, publicado originalmente no livro Duas tardes. Ao vermos como a polícia brasileira está retratada em nossa literatura, é fácil constatarmos que quase sempre ela se aproxima mais dos bandidos do que de corretos defensores públicos. Hoje, escritores como Ferréz, Edyr Augusto e Marcelino Freire, em livros como Capão pecado, Moscow e Contos negreiros, transformam em ficção os descalabros, comumente noticiados nos jornais, promovidos por policiais. Levam à literatura as chacinas, as farsas, o abuso de poder e a corrupção, que afastam cada vez mais o braço armado do estado de boa parte da população. “Na nossa literatura, a polícia aparece como bandido. Isso tem muito a ver com o fato de termos uma polícia militarizada, herança da nossa ditadura. A polícia militar, com sua filosofia de guerra, não cabe numa sociedade democrática. Ela é vista pela população não como segurança, mas como ameaça. Por muito tempo, boa parte da nossa sociedade manteve um ethos ‘infrator’ de não respeitar leis, de subornar guardas de trânsito, de achar que prisão e regras são para os pobres. E, claro, a polícia é um reflexo dessa sociedade. Não é por acaso que temos visto tantos policiais sendo presos. A

verdade é que nossa democracia ainda está em construção, e a corporação policial tem que acompanhar esse movimento, vai ter que se adequar ao clamor ético da sociedade, vai ter que sofrer uma reforma estrutural. Enquanto isso não acontece, enquanto a massa policial continuar insatisfeita e malpaga como é, seu retrato será esse”, analisa a escritora Patrícia Melo. Em Fogo-fátuo, seu último trabalho, no entanto, Patrícia cria a investigadora Azucena, personagem que procura mostrar um outro lado da polícia, aquela correta, que, apesar dos percalços, mantém-se conforme os princípios que a profissão exige. “Queria mostrar a dificuldade que é, para um policial sério, trabalhar sem equipamentos, sem estrutura, numa corporação viciada e corrupta.” A autora conta que se inspirou no trabalho de uma perita para compor o ethos profissional de Azucena. “Há na

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polícia gente muita séria, como ela, que se dedica de corpo e alma ao trabalho. São pessoas assim que fazem com que a instituição mude para melhor. Conheci muita gente boa durante a fase de pesquisa. O problema é que nossa violência acontece em escala industrial. Não temos força, equipamento, nem inteligência que dê conta desse volume de violência”, opina.

NÃO FICÇÃO

Se a escala da violência é industrial, o impacto disso fica mais evidente nas obras de não ficção, segmento no qual é ainda mais difícil de se encontrar representantes edificantes da polícia. Em 2012, Rodrigo Nogueira Batista, ex-soldado da PM carioca, lançou o livro Como nascem os monstros, em que revela o processo de desumanização ao qual os policiais são submetidos, quando passam a fazer parte da corporação. Na obra, detalha como

A polícia na literatura brasileira quase sempre se aproxima mais dos bandidos do que dos defensores da lei e da ordem pública jovens que recebem a farda sonhando em servir a população são engolidos pelo sistema vigente e transformados em criminosos; ou, ao menos, em coniventes e atemorizados cúmplices. Batista foi preso em 2009, após ser condenado por crimes como atentado violento ao pudor e tentativa de homicídio triplamente qualificado. “No militarismo, não tem como uma coisa, seja ela boa ou errada, continuar sem a anuência de quem está no comando. Se eu e você estamos na patrulha, trocando tiros,

matando gente, e a gente continua na patrulha, é porque o comando quer que a gente continue. Toda área de batalhão no Rio de Janeiro tem ponto de táxi, tem clínica de aborto, tem tráfico de drogas, tem oficina de desmanche, tem jogo do bicho. Essas atividades só podem ocorrer enquanto o policial não vai lá e manda parar. Por que o policial não vai lá pra impedir? Porque ele tem determinação pra não ir. Posso garantir pra você que qualquer policial do Rio de Janeiro que fechar uma banca de bicho na área do batalhão dele, no outro dia, ele tá em outro batalhão. Isso, se não estiver em outra cidade. E ainda pega fama de ‘rebelde’, de ‘problemático’ ”, denunciou, este ano, em entrevista ao site A pública, que serve como um pequeno exemplo do que trata em seu livro. Da prisão, escreveu seu trabalho, e também dela acompanhou os desdobramentos da publicação, que, como era de se esperar, desagradou a corporação. Sua mulher foi impedida de entrar com 30 exemplares da obra no antigo batalhão em que Batista atuava; ela distribuiria os volumes entre os ex-colegas do marido. A partir do episódio, a esposa fez uma denúncia de censura no Ministério Público, o que, segundo o autor, valeu-lhe uma sessão de tortura, com direito a choques, para que a acusação fosse retirada. Quem também já teve que conviver com ameaças da polícia por conta de seu trabalho publicado em livro foi o jornalista Caco Barcellos. Em 1992, ele lançou Rota 66, no qual denuncia o modus operandi por trás de muitas execuções da Rota, braço mais truculento da polícia paulistana. Revelar e detalhar a prática de oficiais assassinarem pessoas e, em seguida, forjarem que houve troca de tiros que justificaria o ato rendeu a Caco, além do Prêmio Jabuti na categoria Reportagem, juras de morte. O autor voltaria a tratar de questões relativas à polícia em Abusado, no qual conta a história do traficante Juliano VP. O olhar complexo e humanizado que destinou ao criminoso fez com que o autor passasse a ser visto por muitos como defensor de bandidos.

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legenda à esquerda o nome da rosa

1 João Anzanello Carrascoza

Inspirou-se na morte violenta de uma criança em conto do livro Duas tardes

Inspiração 2 Edyr Augusto ficcionalizou casos noticiados nos jornais corporação 3 No livro, exsoldado da PM carioca revela o processo de desumanização a que os policiais são submetidos

Leitura 1

3

JORNALISMO

Já no trabalho do também jornalista Kléster Cavalcanti, a importância da polícia na sociedade fica evidente justamente pelo que pode acontecer onde ela não está ou está de maneira enfraquecida e corrompida. Três obras de Kléster escancaram como a ausência do estado e de seu braço armado cumprindo sua função original, no caso, podem levar a situações inaceitáveis. Em O nome da morte, o jornalista traça um perfil de Júlio Santana, matador profissional que já tinha tirado a vida de quase 500 pessoas. Em Viúvas da terra, ele mergulha na violência agrária brasileira, revelando um campo com gente cruel e sanguinária. Já em Dama

2

Em Rota 66 (1992), Caco Barcellos denunciou o modus operandi do braço mais truculento da polícia paulistana da liberdade, seu livro mais recente, narra a história de Marinalva Dantas, advogada cuja atuação no Ministério do Trabalho e Emprego já levou à libertação de mais de 2.300 pessoas que, mesmo no Brasil do século 20 e começo do 21, viviam como escravas. “É óbvio que, se o estado funcionasse, muitos dos nossos problemas seriam menores. No caso da segurança, vemos que a situação só piora. Nos três livros, fica evidente que há muitas situações que acontecem no Brasil pela ausência da polícia, do estado. E há situações em que o problema é a presença podre da polícia, o que é pior ainda. Pior que não tê-la, é ter a polícia que trabalha como bandido”, diz Kléster. Para exemplificar essa última possibilidade, lembra quando esteve na delegacia de Porto Franco, no Maranhão, onde o matador de O nome da morte morava. Lá, conversou com policiais e percebeu que todos conheciam o pistoleiro, mas, para se manterem acomodados e tentarem despistar o jornalista, garantiram que o assassino era

de um lugar longe dali. Pior: recorda que, na única vez em que prenderam o bandido, o delegado o soltou em troca de uma moto. Nos outros dois trabalhos, situações semelhantes também ocorreram. Reconstruindo a história de Marinalva, por exemplo, viu que em muitos casos a juíza se deparava com a polícia atuando para os fazendeiros que mantinham escravos em suas fazendas. “Tanto que, quando escravos fogem, nunca vão ao posto da polícia, não confiam. Os caras são vítimas de um dos crimes mais bárbaros do mundo atual, mas não conseguem confiar na polícia. É a mesma sensação que o povo em geral tem, no Brasil todo, as pessoas não confiam na polícia.” Na visão de Kléster, essas situações deveriam ser mais denunciadas na literatura contemporânea. “Acho que nós, jornalistas e escritores, deveríamos tratar de assuntos mais atuais. Não vejo problema em quem faz livro sobre nosso passado, mas precisamos olhar mais pro hoje, para o lado humano”, afirma. Sobre a literatura que, mirando na realidade, traça o retrato de policiais como indivíduos que matam impunemente, o jornalista afirma: “São caras malpreparados, sem educação, a quem, na academia, ninguém ensinou que estão na rua para servir, para proteger; acham que estão ali para mandar”.

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A C a a d m e


Atrações para você aplaudir de pé.

P R O G R A M AÇ ÃO D E D E Z E M B R O 06 - CANTATA NATALINA Orquestra de Câmara de Pernambuco Coro de Câmara do Conservatório Pernambucano de Música Coro Infantil do Conservatório Pernambucano de Música Coral Vozes de Pernambuco - ALEPE Orquestra e Coro Criança Cidadã Banda Sinfônica Cidade do Recife Local: Praça da República Horário: 18h 13 - PROJETO MÚSICA NO PALÁCIO Recital de Piano Pianistas: Ariany Oliveira e Raíra Cavalcanti Local: Salão de Entrada - Palácio do Campo das Princesas Horário: 10h

As comemorações dos 85 anos do Conservatório Pernambucano de Música chegam ao fim em grande estilo, com novas e tocantes atrações para o público recifense. Tudo com a qualidade de uma instituição que, desde o início, é referência para a música e a formação musical. Conheça as próximas atrações e participe. Até este dezembro, o CPM dá o tom. Revista_180_DEZ.indb 65

16 - LANÇAMENTO DO CD SACRIFÍCIO PELA FÉ Fred Andrade Local: Estúdio/Auditório Cussy de Almeida - CPM Horário: 19h30 17 - LANÇAMENTO DOS LIVROS - Conservatório Pernambucano de Música, 85 anos: Uma Apreciação - Orquestra Armorial de Câmara de Pernambuco, 45 anos - Partituras Editadas Autor: Sérgio Barza e colaboradores Local: Conservatório Pernambucano de Música Horário: 19h30 Todos os eventos têm entrada gratuita. Conservatório Pernambucano de Música Av. João de Barros, 594 – Santo Amaro – Recife – PE Facebook: Conservatório Pernambucano de Música Site: www.conservatorio.pe.gov.br Fone: 3183-3400

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janio santos

Leitura

CENTENÁRIO A (in)feliz permanência de Policarpo Quaresma

Completa 100 anos o romance de Lima Barreto, conhecido por ter dedicado sua obra ao contexto sociopolítico da época em que viveu texto Lucas Colombo

É uma coincidência riquíssima que Triste Fim de Policarpo Quaresma, um dos principais romances da literatura brasileira, complete 100 anos de publicação neste 2015. O livro não poderia estar mais atual, no retrato que traça dos políticos ineficazes, corruptos e autoritários que nos governam (ou acreditam governar) e no desencanto a que chega o protagonista, no fim da história. O espírito de grande parte dos brasileiros de hoje está ali, representado pelo major Quaresma, um patriota ardente que, no decorrer da narrativa, vai se frustrando com o Brasil – processo similar ao que vimos acontecer na sociedade, nos últimos anos, mais uma vez… Seu autor, Lima Barreto (1881–1922), é usualmente classificado como “o romancista da República Velha”, por ter dedicado quase toda a sua obra ao contexto político-social em que viveu. Isso é uma verdade – assim, com artigo

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indefinido. “A” verdade é que, mesmo com os pés bastante fincados em sua época, ele é um escritor atemporal, pois as situações, comportamentos e vícios que apreendeu em seus romances e contos não pertencem ao passado do país, e, tendo em vista os fatos que presenciamos agora, não pertencerão tão cedo. A cultura oligárquica, o fisiologismo, o patrimonialismo e os tipos que descreveu ainda estão muito presentes no cenário brasileiro. Obra-prima de sátira política, Triste Fim de Policarpo Quaresma é daquelas histórias que vamos lendo com um sorriso de canto de boca. À maneira de Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert (de quem Lima era leitor), Quaresma fracassa em todos os seus projetos nobres. A realidade sempre se interpõe aos seus ideais. Cada projeto pelo qual deseja comprovar a grandeza do Brasil falha, por obstáculos que o próprio país coloca no caminho. Governo Floriano Peixoto, primórdios da República. Funcionário do Ministério da Guerra, Quaresma vai para casa no mesmo horário, todo dia, para estudar a geografia do Brasil, ler José de Alencar, Gonçalves Dias e outros autores nacionalistas e aprender modinhas de violão, “a mais genuína expressão da poesia nacional”. É tão patriota, que proíbe, em casa, que se coma petit-pois e propõe ao Congresso, a “emancipação idiomática” do Brasil, pela implantação do tupi-guarani como língua oficial, em vez do “emprestado” português. Por isso, é considerado louco e internado em um hospício. Decepção. Ao sair, resolve viver em um sítio e voltar-se à agricultura – até porque o Brasil, na sua apaixonada visão, tem o solo mais fértil do mundo. Nova decepção: as saúvas destroem a plantação, a infraestrutura precária o faz ter perdas financeiras (“Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos?”) e sua recusa em participar de uma manipulação da eleição local rende-lhe multas e embaraços. Quando, contudo, sabe do estouro da Revolta da Armada (1893), o levante da Marinha contra Floriano, em quem acreditava, seu ufanismo encontra outro espaço, maior, para manifestarse: a política, o governo. Aí, como o

leitor já suspeita, é o fim. O triste fim. E a última decepção: Quaresma, após apresentar-se para servir nas forças governistas, contra os marinheiros que bombardeavam a capital e exigiam a convocação de eleições, depara-se com a ignorância e a truculência do marechal-presidente e seus homens no trato com os revoltosos. Espantado com os fuzilamentos, redige uma carta de crítica a Floriano e é preso por traição. Termina seus dias no cárcere, a concluir que a pátria, à qual dedicara a vida inteira, é uma ilusão: “A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. (…) Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser revista”. Quaresma, em atitude que os psicanalistas chamariam de “negação”, passa a vida rejeitandose a ver os problemas do país, pondo uma fantasia no lugar deles.

Pouco antes dos 30 anos, Lima Barreto publicou a obra em folhetim no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, em 1911 Faz isso simplesmente por crer que as deficiências não existem, até senti-las na pele. Na parte em que o personagem vira agricultor, sua reação a amigos que tentam convencê-lo a usar adubo na lavoura ilustra muito bem o apego a ilusões que o – e nos – caracteriza: “– Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal ideia! Pois se temos as terras mais férteis do mundo! – Mas se esgotam, major. (…) se eu fosse o senhor, aduziu o doutor, ensaiava uns fosfatos… – Decerto, major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar violão, não queria aprender música… Qual música! Qual nada! A inspiração basta!… Hoje vejo que é preciso… É assim, resumia ele. (…) O major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou triunfante: – O senhor não é patriota! Esses moços…”

A fantasia, porém, acaba logo. Com todas as desventuras que lhe acontecem, Quaresma vai da euforia ao desalento com o país. Soa familiar? Cem anos depois, Triste Fim associa-se perfeitamente a este momento em que, depois de um entusiasmo geral com crédito farto, Copa e Olimpíada, muitos brasileiros afirmam – às vezes, de modo agressivo – terem sido enganados e estarem desencantados com a nação, imersa em corrupção e crise.

INDIFERENÇA

Lima Barreto já havia lançado Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), quando, pouco antes de fazer 30 anos de idade, escreveu Triste Fim de Policarpo Quaresma, para publicação em folhetim no Jornal do Comércio do RJ, em 1911. Quatro anos depois, finalmente, a narrativa saiu em livro. Ótimos contos como A nova Califórnia e O homem que sabia javanês, hoje apreciados, constavam em um apêndice da edição, a qual – fato que diz muito sobre o senso comum cultural brasileiro – foi recebida com indiferença. Em vida, Lima nunca foi muito considerado pela crítica e pelos colegas. De trajetória sofrida, marcada por alcoolismo e internações no hospício, tentou entrar duas vezes na Academia Brasileira de Letras, mas não conseguiu. Só após sua morte, nos anos 1920, sua obra começou a ser mais lida e valorizada, pelas mãos do grupo modernista, defensor de uma literatura coloquial e voltada ao cotidiano brasileiro, como a dele. Observador arguto do país, Lima foi um autor revoltado com o Brasil feito nenhum outro depois. Na geração atual de escritores, não tem “herdeiro”. Aliás, a ausência, nessa geração, de uma “agenda” política é uma das razões por que a crítica a tem saudado. A despreocupação em debater a sociedade brasileira é vista como sinal de maturidade. Sim, é bom mesmo haver mais diversidade, sutileza e fuga do mero panfleto. Mas umas cutucadas literárias bem-dadas no país, como as que Lima deu e como as que, por exemplo, autores americanos contemporâneos dão nos EUA, às vezes fazem falta por aqui. Motivos para cutucar proliferam. Lima sabia disso, seu personagem centenário termina sabendo, e os brasileiros, enfim desiludidos, agora também sabem. De novo.

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apicius/reprodução

Leitura

APICIUS Crônicas de um comensal filosófico

Em reedição digital, textos do colunista carioca evidenciam a mudança de ética ocorrida nas relações entre jornalistas e produtores gastronômicos texto Adriana Dória Matos

Hoje, você abre os cadernos culturais de final de semana e lê matérias muito favoráveis a restaurantes de chefs renomados. Tanto a casa comentada quanto o jornalista setorizado – muitas vezes alçado a crítico gastronômico – são estrelas conviventes. Mesmo que as publicações tradicionais – jornais e revistas – tenham perdido algo do seu poder persuasivo (uma palavra final sobre as coisas do mundo), ainda é verdade que a opinião neles publicada importa. Isso significa que o público lê esses textos e sofre a influência, acorrendo, quase sempre, aos lugares indicados, ávido, ele também, por ser uma dessas estrelas conviventes. Aliás, bem sabemos, a sociedade brasileira de agora está repleta de gourmets, entendedores de vinhos, de cervejas artesanais, de sais do Himalaia e mil coisinhas afins que se compram na delicatéssen mais próxima. Embora as afetações à mesa sejam históricas, houve um tempo em que não havia tanto profissionalismo e, digamos, cumplicidade nas relações entre cozinheiros, donos de restaurante e jornalistas, sendo também o público mais desinformado sobre o assunto, embora não menos ávido por demonstrações de status e diferenciação social pelo que levava à boca. É nesse contexto que se apresentam as crônicas de Apicius, pseudônimo do jornalista Roberto Marinho de Azevedo Neto, que militou no carioca Jornal do Brasil, entre os anos 1975 e 1997, assinado a coluna À mesa, como convém. (Somente lembrando que o JB foi o jornal de circulação nacional mais respeitado nos anos 1960/80.) Ler Apicius na reedição de Confissões íntimas (José Olympio, 1986) empreendida pela editora digital Cesárea nos esclarece quanto a uma ética profissional que se modificou, pois que ele fazia questão do anonimato, de não se apresentar como estrela convivente ao chegar aos estabelecimentos, gozando, assim, de liberdade de escolha e expressão. Só uma pausinha, leitor, para comentar os acasos desta reedição. A jornalista e professora Renata do Amaral, colaboradora da revista Continente e pesquisadora em gastronomia, achou um exemplar da coletânea num sebo, fato que colaborou para uma guinada

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INDICAÇÕES Texto-degustação

POESIA

Intrínseca

Cosac Naify

VANESSA BÁRBARA Operação impensável

na vida fácil A pizza é uma praga. Como as pragas, chegou de repente e se espalhou tanto, que engoliu o jardim. No caso, o da cozinha italiana que pode ser leve, saborosa, imaginativa e requintada. Mas que, hoje, para muitos, não passa de uma sucessão de massas pesadas em meio às quais, qual pérola obesa e engordativa, cintila a pizza oleosa. A culpa não é sua. Mas das mãos cobiçosas que a fazem. E que a fazem com tal prolixidade, que o que era para ser um prato regional, reservado a algumas mesas, em algumas horas, virou lugar-comum. Como todos eles, insuportável. No entanto, a pizza pode ser coisa das mais satisfatórias. Tem a vantagem de, quando feita em condições decentes, ser facilmente agradável. O suporte de massa, gordo ou fino é, também, uma bandeja complacente para todos os devaneios da imaginação culinária. Nela, há lugar para tudo. (Basta ir a um restaurante especializado para ver que “tudo” é muito mais vasto que a bota da Itália.) Ameaçada pelo excesso de imaginação e por sua falta, a pobre pizza caiu na vida fácil. Exibindo-se em todas as esquinas, perdeu a reputação para enriquecer outros. Não merece censura, mas piedade. Em algumas (poucas) casas, é possível encontrá-la decente. Mas é coisa tão rara, que não vale a pena encetar longa procura para um achado que, quando muito, será apenas razoável. Tal como, no entanto, aparece no Rio e pelo mundo afora, a pizza só encontra justificativa na conjunção de três fatores odiosos: fome, pressa e miséria. Sabendo disso, dizem os pessimistas que é o prato do futuro.

acadêmica: “Meu encontro com a obra de Apicius foi tão impactante, que sua análise responde por boa parte de minha tese Virada gastronômica: como a culinária dá lugar à gastronomia no jornalismo brasileiro”, escreve ela, no prefácio que produziu para esta edição, que é, na verdade, fac-similar, pois reproduz a da José Olympio, ilustrada divertidamente pelo próprio Apicius (o desenho aqui estampado, por exemplo, compõe a crônica Adegão português). Então vamos um pouquinho ao comentário dos textos. Primeiro que não são matérias, coberturas de eventos, críticas propriamente ditas, mas crônicas, na sua mais pura acepção. Porque, nesta seleta realizada por ele mesmo, Apicius parece estar sempre de passagem pelos

ROMANCE

lugares, em despropósito, tal qual o flâneur que descobre coisas ao acaso. Também há um ponto de vista subjetivo, melancólico, irritadiço, irônico em todos os textos, que nunca partem de uma motivação pragmática – a abertura de um novo restaurante, por exemplo –, mas de sensações, impressões, de estados de alma. Apesar da variedade de situações – desde a propagação da pizza (leia no box) a pequenas viagens –, há uma opinião subjacente ao conjunto: a de que a simplicidade e a honestidade fazem as melhores casas, a melhor refeição. Apicius abomina as falsificações e a afetação que, quase sempre, escamoteiam incompetências e – o que é pior – o desejo vil de ganhar dinheiro às custas da ingenuidade alheia.

JOÃO BANDEIRA Quem quando queira

Com uma narrativa de gêneros variados, que emulam trocas de e-mails, notícias, anotações, pequenas resenhas cinematográficas e uma história de um casal moderninho, mas de pendor psicopata, Vanessa Bárbara chega ao seu sexto livro, com a história de um casal de historiadora e programador que vivem um idílio, até a coisa não ficar tão boa assim.

Um livro diante do qual, antes mesmo da leitura, percebe-se a inquietação formal do autor, que experimenta várias formas poéticas, do poema-síntese, ao poemaprosa e ao poema-visual. Quanto ao temas, João Bandeira olha para o cotidiano e o critica, dialoga com o campo da arte – em especial com a literatura e as visuais –, escreve sobre relações, reflete.

TEATRO

ROMANCE

CARLA DENISE Algodão doce para teatro Cubzac

Algodão doce é um livro completo, ao unir elementos importantes à preservação da memória teatral: bibliografia, registro imagético e o próprio texto teatral. São três episódios dramáticos baseados na tradição popular nordestina, sistematizados com esmero por Carla Denise: Comadre Fulozinha e Simião, As desventuras de Ioiozinho e Negrinho do Pastoreiro.

FREDERIGO TOZZI Memórias de um empregado Carambaia

“Estaria me aproximando, quem sabe, daquela malícia que dizem impensável ao aprendizado?”, reflete o jovem Leopoldo diante da experiência do primeiro trabalho. Publicado na Itália em 1920, romance chega ao Brasil agora e permanece atual. Em um exercício que prima pela concisão, Tozzi escreve um romance em formato de diário.

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FOTOS: ATO E EFEITO/DIVULGAÇÃO

ATO E EFEITO Memória afetiva da experiência teatral

Canal no YouTube abriga vídeos inéditos e de curta duração que registram trechos de peças representativas na carreira de atores TEXto Ulysses Gadêlha

Palco 1

O teatro é, essencialmente, a arte

de contar histórias ao vivo, um jogo perigoso entre público e elenco, como caracterizou Ricardo Darín, em Sangue latino. Contudo, é legítimo para o aficionado guardar essa memória afetiva. Essa ideia de registro origina o canal do YouTube Ato e efeito, no qual atores sobem ao palco e interpretam trechos de peças representativas em suas vidas, tendo por base a leitura do próprio texto, em sessões registradas em filmes de curta duração. Na concepção dos realizadores, Ato e efeito não é montagem, não é leitura dramatizada. Causa estranhamento pelo seu valor estético e artístico diferenciado, mas é construído com elementos comuns do próprio teatro. Trata-se de um perfil e um olhar sobre a arte dramática. O projeto foi idealizado pelo crítico teatral Rafael Teixeira, junto aos sócios da produtora Tocavideos, Fernando Neumayer e Luís Martino. O estúdio

Radiográfico é responsável pela identidade visual do projeto, desde a fonte e a logomarca até a vinheta com as mãos simbolizando a dualidade – ato e efeito. “Não houve patrocínio algum. Nós tiramos do nosso bolso. Sem um minuto de vídeo filmado, nós apresentamos a ideia ao estúdio Radiográfico e eles toparam na hora, ficaram entusiasmados. Os teatros também nos foram cedidos sem custo. Ficamos surpresos, porque eles ofereceram operadores de luz, alguém pra operar a mesa. Foi lindo”, conta Rafael Teixeira, em entrevista por telefone. O lançamento do canal ocorreu no Tempo_Festival, em outubro, no Rio de Janeiro, com a exibição da primeira temporada do Ato e efeito, dividida em sete vídeos (atos) de até seis minutos. Cada ato é iniciado por um comentário introdutório à leitura, para situar o espectador. Nesse momento, ouve-se apenas a voz do ator em off, coberta por

imagens de um Rio de Janeiro banal, seu trânsito, ruas anônimas, transeuntes. Em seguida, à paisana, com o papel na mão, surge o intérprete no centro do palco, ora sentado, ora em pé, dando vida à fala do personagem. “Tentamos colocar o ator numa situação que não é a da peça, para causar uma sensação diferente. Eles ficaram muito desnorteados num primeiro momento, porque só tinham usado o texto impresso nos ensaios. Não é uma leitura branca, desprovida de emoções. Queríamos que as pessoas interpretassem”, esclarece Teixeira. A primeira aparição é do ator Gregório Duvivier, integrante do canal Porta dos Fundos, recitando um trecho do monólogo Uma noite na lua, do pernambucano João Falcão. O segundo vídeo é protagonizado por Charles Fricks, que lê a adaptação de Um filho eterno, escrito por Cristóvão Tezza. A atriz Débora Lamm, que faz parte do Zorra Total, evoca uma personagem do espetáculo Os mamutes,

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do jovem autor Jô Bilac. O quarto ato é de Gustavo Gasparini, com a peça Ricardo III, do clássico William Shakespeare. A quinta faixa é do ator Michel Blois, no texto do autor americano Nicky Silver, Adorável garoto. A peça Uma vida boa, do paulista Rafael Primot, é lida por Amanda Mirasci, que já recitou um poema de Eugênio Andrade no canal Toda Poesia. A temporada é fechada com mais um texto de Jô Bilac, Conselho de classe, interpretado por Leonardo Netto.

CURADORIA

A escolha dos atores e textos ficou a cargo de Rafael Teixeira, que prezou por uma variedade geográfica e temporal. “Queria ter autores estrangeiros clássicos e contemporâneos, como Shakespeare e Nicky Silver. Temos autores brasileiros contemporâneos, como Jô Bilac e Rafael Primot. Agora, realmente ficou faltando um clássico, como Nelson Rodrigues, que pode vir numa próxima temporada”, relata. Para os atores, pensou-se em homens e mulheres de gerações distintas. “Pra ser sincero, fui em atores que eu conhecia, pessoas que presumia que fossem topar. É muita gente pra casar, mas houve uma adesão muito grande. Nosso elenco é irrepreensível”, afirma Rafael. Na produção, as imagens sofreram cortes de edição, mas os áudios eram

gravados de uma vez, prevalecendo a tentativa que o ator escolhesse. A seleção das peças trouxe um recorte emblemático dos personagens para Ato e efeito. Havia narradores excêntricos, como os dois escritores, a criança, o transexual ou a professora, comungando de um discurso incompatível com a realidade deles. “A gente não pensou em unidade temática de personagens. A minha ideia sempre foi de tentar diversificar. O que a gente pretendia, enquanto projeto, era ter falas. Não existe uma que sintetize a peça, mas não precisa entender tudo. São falas que fazem sentido em si mesmas”, aponta o organizador. Com poucas visualizações para o parâmetro de sucesso do YouTube, Ato e efeito ganhou o conhecimento da cena cultural pelo esforço coletivo de seus realizadores em espalhar os vídeos, semelhante à ideia de “viralização da internet”. “O Gregório é o primeiro vídeo pelo potencial que ele tem, pela sua inserção no próprio YouTube. Nós não o chamamos para o projeto por isso, mas qualquer pessoa o colocaria na frente. Pra você ter uma ideia, nós estamos nas redes sociais e, quando o Gregório colocou o cartaz do Ato no Instagram dele, nosso número de seguidores quintuplicou”, afirma Rafael.

1 michel blois

Leu texto de Adorável garoto, do autor americano Nicky Silver

2 débora lamm Atriz do Zorra Total, da TV Globo, participa com um personagem do espetáculo Os mamutes

A gravação da segunda temporada está prevista para o início de 2016, embora a produção dependa da agenda pessoal de cada realizador. “Tenho intenção de colocar um autor brasileiro clássico na história, já estou com um texto do Nelson Rodrigues em mente. Penso num texto desbragadamente cômico, a exemplo de Oscar Wilde. Entre os atores, queremos alguém com 50 anos de carreira, por aí. Ter a Fernanda Montenegro é um sonho dourado. Quando a gente gravá-la lendo até bula de remédio, já pode parar”, brinca. Afastando-se da ideia de educar o espectador, Teixeira deseja que o projeto leve mais pessoas ao teatro. “Parece uma utopia achar que o número significativo de pessoas vai passar a ir ao teatro devido ao canal. A gente fez de tudo pra que não fosse um projeto de nicho. Por isso que a duração é curta, por isso ele é bonito, agradável de ver, atraente, aliciante. Queríamos que qualquer pessoa visse e achasse legal”, diz. Para ele, o mais importante, além da estética, é a “pegada documental” do projeto, para que o teatro feito hoje seja lembrado pelas futuras gerações.

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José Cláudio

artista plástico

matéria corrida

ganhando meu pão

Peço licença a Moacir dos Anjos,

muito sério estudioso das artes, como tem demonstrado nas árduas tarefas que lhe têm sido confiadas, para meter meu bedelho onde não fui chamado, curioso que sou desses assuntos, mais por tempo de serviço, por força do ofício, do que outra qualificação. O título do seu livro Local/Global: Arte em trânsito me chamou atenção antes de mais nada pela oportunidade de aprender alguma coisa sobre o assunto, já que eu havia tratado dele, completamente de oitiva, sem maiores ambições, como na crônica Comer e descomer (Continente, outubro/2015). Tomei conhecimento do título do livro de Moacir dos Anjos pelo número de set./2015 da mesma Continente aqui vale uma pequena explicação. Perguntei ao amigo pintor Gil Vicente, um dos entrevistados juntamente com Moacir e outros (Artes Visuais/O papel das instituições, Luciana Veras e Mariana Oliveira) como poderia adquirir o Local/Global: Arte em trânsito. Prometeu-me então o amigo trazerme um exemplar do livro, o que somente ocorreu depois de a minha

matéria já ter sido entregue à revista, coisa que faço habitualmente no dia 1º do mês anterior; pretendo eu aqui explicar ter escrito o artiguete Comer e descomer antes de saber da existência do Local/Global: Arte em trânsito, e isso para mostrar que o assunto está no ar e assim as coincidências se sucedem. Aliás já escrevera uma outra crônica, Arte local, que está para sair (Continente, nov./2015). Talvez fosse oportuno declarar logo os dois temas que mais me interessavam e não posso dizer sejam os assuntos a que o livro de Moacir se dedica: meios de subsistência do artista e a arte engajada; quanto a este, cito aqui para maior compreensão do tema, o extraordinário Arte para quê?/a preocupação social na arte brasileira 19301970 de Aracy Amaral. Só por esse livro Aracy deveria estar no mínimo na Academia Brasileira de Letras. No dia que recebi o livro trazido por Gil, chegou o belo catálogo da exposição Pernambuco Experimental. Museu de Arte do Rio, MAR, 10/ dez./2013-30/mar./2014, organizada por Clarissa Diniz, mostra a que

compareço, entre outras coisas, com o quadro-letreiro Primeiro a Fome Depois a Lua, óleo sobre eucatex, 82x62cm, 1968. Aliás, nesse quadro eu referiame à fome do mundo inteiro, às “vítimas da fome” como tem no hino da Internacional, enquanto no Comer e descomer trato da subsistência do artista, do pintor de quadro, do escultor, nos dias atuais. A crônica Comer e descomer termina assim: “Quando Sócrates perguntou a um menino qualquer na rua onde encontrar os bens necessários à vida, o menino, que se chamava Xenofonte, respondeu sem titubear: no mercado. Sei que mercado hoje pode ser o mundo todo. Dizem que um ricaço na Grécia tinha avião para comprar pão em Paris. Mas mercado de que falou Xenofonte dá para ir a pé. Fica bem ali na esquina. E, decorrência disso, de se viver uma vida local, é o surgimento de uma arte local, sem alarde, sem patrocínio, sem preconceito, sem manifesto”. A coincidência que eu achei é ter sido ilustração da capa e motivo de comentário no interior do livro

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imagens: reprodução

1 josé cláudio rimeiro a fome P

depois a lua. Óleo sobre eucatex, 82 x 62 cm, 1968, Coleção Museu de Arte do Rio (MAR)

2 marepe T udo no mesmo

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Local/Global: Arte em trânsito a obra do baiano Marepe, natural de Santo Antônio de Jesus, no recôncavo, que “transportou um enorme muro de sua cidade (dois metros de altura e seis de extensão) para o prédio da Bienal de São Paulo, situado a quase dois mil quilômetros de distância. Sobre essa parede feita de tijolos e cimento, se destacava, em amarelo e azul, a propaganda de um antigo e conhecido armazém local — Comercial São Luís —, oferecendo ‘tudo no mesmo lugar pelo menor preço’. (...) Sem intenção irônica, o slogan pintado no muro afirma, ademais, o quanto o local está embebido de toda parte no mundo contemporâneo”. “Tudo no mesmo lugar pelo mesmo preço”: isto é, no mercado, como respondeu Xenofonte, ontem na Atenas de Sócrates ou hoje no Comercial São Luís em Santo Antônio de Jesus. Outro tema de que pouco se fala é de arte engajada. No meu tempo, arte tinha ideologia. Nem se fala nem se pratica e sendo assim a série de Gil Vicente dos assassinatos é pioneira.

lugar pelo menor preço. Alvenaria, tinta, tijolos e estrutura de ferro, 225x 600x25 cm, 2002

Quando comecei, em 1952, o Brasil de norte a sul, a intelectualidade brasileira na arte e na literatura era de esquerda Toda arte tem ideologia, mesmo que o artista que a produz não saiba nem queira saber disso. Feliz ou infelizmente fui recrutado pelo Atelier Coletivo de Abelardo da Hora e carrego desde sempre esse compromisso. Os adeptos da arte pela arte combatiam o menor vestígio de “engajamento” ou “participação”. Quando comecei, em 1952, o Brasil de norte a sul, a intelectualidade brasileira na arte e literatura era de esquerda e boa parte militante do Partido Comunista, embora na clandestinidade, no exílio como Jorge Amado ou na cadeia como Graciliano Ramos. Eu era contra Miró e briguei com um cara na esquina da Sertã, só faltamos ir às tapas, exaltando

ele um livro de João Cabral de Melo Neto sobre o pintor. É inimaginável que daquela época para cá, no trajeto de uma vida, o panorama seja totalmente outro, como se todo o acervo riquíssimo tivesse sido soterrado, sem deixar rastro. Éramos contra o formalismo e o cosmopolitismo. Nos causavam horror os alienados, os narcisistas, trotskistas e contrapúnhamos à escola de Paris os muralistas mexicanos. Quando saiu Arte para quê? de Aracy, 1984, tomei até um susto, da eternidade que fazia que esse assunto não vinha a tona, como se todos se envergonhassem de algum dia ter falado nisso. Talvez fosse preciso hoje explicar aos mais jovens ou já não tão jovens que tipo de arte era essa, mostrar-lhes o informe Zdanov, falar de arte e alienação. Stalin era “o guia genial dos povos”. Eu até hoje sigo um dos seus ensinamentos, qual seja o de pintar o que conheça profundamente; ele disse isso sobre escrever, que se fosse escritor escreveria sobre o que conhecesse profundamente. Como Máximo Gorki em Ganhando meu pão...

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fotos: benicio dias/reprodução

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MEMÓRIA A poesia contida no documento

Fotografias produzidas por Benicio Dias, entre 1930 e 1950, documentam o Recife e arredores em momento de radical transição urbanística TEXTo Adriana Dória Matos e Maria Eduarda Barbosa

Fotografias podem ser como

crônicas escritas com luz, uma mistura de documento e poesia. Em sua Evocação do Recife, Manuel Bandeira “documenta” com saudosismo o Recife do cotidiano, das ruas e da natureza, numa construção na qual memória e imaginação tomam conta do leitor. As fotografias, mesmo aquelas feitas com fins documentais, podem também ser habitadas pela poesia, ao trazer histórias sobre os elementos retratados. Contribuem à formação da nossa identidade, fortalecem nossa imaginação e nos emocionam. Ao fotografar o cotidiano, Henri CartierBresson realizou crônicas visuais sobre situações banais que se tornaram ícones de sua época.

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1 passeio Em 1940, calçada e parte da fachada do elegante Grande Hotel, que hospedou artistas e figurões duarte coelho 2 Obras da construção da ponte também ocorreram na década de 40

Numa frase colhida pelo seu filho Sergio Benicio Whatley Dias, o fotógrafo recifense Benicio Dias (1914 – 1976) afirma que “ao longo da vida existem coisas das quais tomamos conhecimento e outras as quais reconhecemos” e que, estas últimas, “já habitam nossa alma desde sempre”. Suas imagens, assim como tantas que hoje fazem parte do nosso repertório visual, podem ser lidas de modo poético, imbuídas que estão da passagem do tempo. Diante de suas fotografias, contemplamos aquilo que reconhecemos – no caso, o Recife e seus arredores – como coisa que “habita a nossa alma desde sempre”, ainda que muito do que se inscreve nas imagens tenha desaparecido irremediavelmente. Com o lançamento de Benicio Dias – Fotografias (Cepe Editora), que ocorre no dia 10 deste mês, no campus de Casa Forte da Fundação Joaquim Nabuco, os leitores terão oportunidade de observar um conjunto mais adensado do acervo do fotógrafo e aferir o caráter ao mesmo tempo documental e artístico de sua produção. A seleção das imagens – que abrangem duas décadas, de 1930 a 1950 – foi feita em parceria por Albertina (Betty) Lacerda Malta e Rita de Cássia Barbosa de Araújo, historiadoras e

Lançamento do livro, que é composto de cerca de 150 imagens, ocorre no dia 10, no campus de Casa Forte da Fundaj pesquisadoras da Fundação Joaquim Nabuco, que salvaguarda um arquivo de 2.392 documentos doados pelo próprio Benicio Dias (entre cópias fotográficas impressas, negativos em nitrato, acetato e vidro, documentos bibliográficos e textuais). Além de fotos de sua autoria, o acervo doado por ele à instituição abrange imagens de várias épocas (situadas entre 1870 e 1950), inclusive de fotógrafos como Constatino Barza, J.J. de Oliveira e Francisco du Bocage (e mesmo de autores não identificados), conjunto que aponta para o seu perfil colecionista e seu interesse pela memória iconográfica do Recife. “A cidade é sempre objeto de interesse na fotografia”, comenta José Afonso Jr., fotógrafo e professor da UFPE, ao analisar as obras de três grandes profissionais que fazem parte da história da fotografia de Pernambuco: Alcir Lacerda,

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Alexandre Berzin e Benicio Dias. As obras deixadas por eles se constituem em verdadeiros documentos-poesias acerca do Recife. “Seu Alcir tem um acervo maravilhoso, que registra a praia, o Bairro de Boa Viagem, a modernidade chegando à cidade. Benicio apresenta uma linha mais do planejamento urbanístico na primeira metade do século 20 e Berzin traz a questão do estranhamento, no sentido de estar se encontrando com algo inédito para ele”, compara Afonso. Parte do trabalho de Alcir Lacerda e do letão radicado no Brasil Alexandre Berzin encontra-se em dois livros publicados pela Cepe, sendo o lançamento agora deste volume dedicado a Benicio Dias uma continuação do projeto da editora de organização de obras acerca de importantes acervos de Pernambuco. Mais do que as fotografias de Lacerda e Berzin, as imagens de Benicio explicitam o momento de grandes reformas urbanísticas por que passava o Recife. O cenário registrado por ele aponta os contrastes de uma província buscando tornar-se urgentemente uma metrópole, assim como vinha ocorrendo em outras cidades do Brasil, sendo a capital federal de então, o Rio de Janeiro, a síntese desse projeto de desenvolvimento nacional, cujo modelo

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fotos: benicio dias/reprodução

Visuais 3

era a Paris das grandes avenidas e bulevares idealizada por Haussmann ainda no século 19. (A história nos conta, lembremos, que a reconfiguração da Île de la Cité, o “miolo” de Paris, respondia sobretudo a estratégias militares de debelação de barricadas e outras insurgências populares.)

FOTOS CONTRATADAS

Na apresentação que escreveu para Benicio Dias – Fotografias, a historiadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo faz apontamentos significativos sobre a motivação à produção desses registros por parte de Benicio, que trabalhou – como fotógrafos de várias gerações até hoje – sob demanda de órgãos do governo, o que acaba por direcionar uma interpretação de mundo por parte deles, já que estão a serviço de, e não fotografando livremente, quando se é possível expor subjetividades e eventuais críticas. No caso de fotógrafos contratados institucionalmente, o que prevalece, na maioria dos casos, são o virtuosismo técnico e a capacidade de realização e execução de tarefas com competência, vindo em segundo plano o valor artístico do material produzido. Um dos contratantes de Benicio Dias, por exemplo, foi a Diretoria de Estatística, Propaganda e Turismo da prefeitura do Recife, criada em

1939, como nos relata Rita de Cássia, “em consonância com os princípios do Estado Novo de dar agilidade, tecnicidade e racionalidade à máquina estatal – mas também, tornemos claro, de produzir informações e de exercer o controle sobre os conteúdos, os meios e as formas de expressões da população em geral –, a Dept visava,

Sob o Estado Novo, quem fotografava a cidade estava exposto à vigilância policial. Podia ser preso quem registrasse o “feio” entre outros objetivos, produzir, acumular e divulgar dados estatísticos sobre a cidade, como também estimular o desenvolvimento do turismo e produzir, acumular e tornar acessível aos ‘amigos do Recife’ um significativo acervo histórico-documental sobre a capital pernambucana”. Essa estética visual mais propagandística se evidencia em fotografias como as que compõem o capítulo Velhas e novas visões do Recife, em que Benicio fotografa escolas, salas de aulas, laboratórios, alunos em filas

recebendo merenda. Nesse conjunto, entretanto, as imagens das reformas urbanísticas por que passou o Recife, quando partes inteiras de seu patrimônio construído foram ao chão para “dar vez ao progresso”, estabelecem um embate entre aquilo que está sendo destruído e o “vazio” deixado. É possível que a edição das imagens nos leve a esse tipo de interpretação, mas não há como não supor o conflito vivido pelo próprio Benicio Dias diante de tantas ruínas e desaparecimentos. Para o professor José Afonso Jr., “toda fotografia é uma ruína, no sentido de que ela dispara um aspecto de memória. Alegoricamente, podemos dizer que a fotografia documental é uma ruína”. Esse conjunto de fotos de Benicio sobre as demolições nos remete imediatamente às discussões contemporâneas sobre as novas configurações do Recife, sobre as ruínas de hoje. Num outro trecho de sua apresentação, Rita de Cássia assim descreve a tarefa empreendida pelo fotógrafo: “Benicio Dias fotografou paciente e cuidadosamente os passos que iam sendo dados para a execução da reforma no Bairro de Santo Antônio. (…) Capturou os inquietantes vazios deixados pelas demolições de tantos e diversos artefatos urbanos e

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3 demolições Benicio Dias registrou o desaparecimento de vários trechos do Recife 4 cais do apolo Retrato do estivador Nascimento, anos 1940 5-6 gentes O fotógrafo documentou trabalhadores urbanos e rurais, feirantes e artistas populares

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arquitetônicos. Não deixou escapar aos olhos os gritantes contrastes que surgiram na paisagem recifense. Deixou testemunhos visuais do progresso que se acreditava haver, enfim, aportado na capital regional do Nordeste. (…) Não documentou, porém, a vida de miséria dos ‘homens caranguejos’ nem as ações governamentais de derrubada dos mocambos. Esses aparecem distanciados nas fotos”. A respeito dos limites impostos a quem saía fotografando pelo Recife naquela época, a historiadora ressalva que fotografar sob a repressão e o autoritarismo do Estado Novo podia ser um ato de vulnerabilidade, pois se estava sob vigilância e controle policial. Citando A construção da verdade autoritária, de Maria das Graças Andrade Almeida, Rita de Cássia lembra que se tornou comum, naquelas décadas, a prisão de turistas que fotografavam aquilo considerado abjeto, como ambientes “feios e sem higiene”. Além de fotografar situações arquitetônicas e urbanísticas – sob as quais podem se ocultar, como vimos, pressões não reveladas pelo simples contemplar poético ou crítico das imagens –, Benicio Dias também fotografou gentes. O último capítulo do livro, Tanta coisa de sim para quem vive do não, leva o leitor às feiras públicas, aos produtores artesanais, aos artistas populares. Assim como nas demais imagens que compõem este título, está ali exposto o apuro técnico e composicional do fotógrafo, que dominava o equipamento e a linguagem fotográfica, com belos enquadramentos e iluminação. Benicio Dias foi, portanto, um fotógrafo moderno, que nos traz hoje, com sua fotografia bem-realizada, uma leitura poética e algo nostálgica de um Recife gravado na memória da alma, já que boa parte dele desapareceu com os escombros das reformas.

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cecil beaton/divulgação

Visuais

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MODA Os sonhos mais lindos, e alguns nem tanto

Desde a fotografia de revistas no pós-guerra até as campanhas de marcas de luxo nos dias de hoje, os fotógrafos de moda conduzem um universo onírico variado e muito bem-calculado

1 c ecil beaton Usou como ponto de partida para fotografar os vestidos de Charles James o quadro A imperatriz Eugênia rodeada por suas damas de honra, de Franz Winterhalter 2 dovima e os elefantes Foto provocadora de Richard Avedon apresentou roupa de noite da Christian Dior

TEXto Phelipe Rodrigues

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richard avedon/divulgação

No livro A imagem mágica, de 1975, o fotógrafo, cenógrafo, escritor, ilustrador Cecil Beaton fez, em parceria com Gail Buckland, um dos melhores retratos de sua carreira. Ele sintetizou a fotografia de moda. “Uma profissão traiçoeira, na arte, representa o que o sex-appeal é para o amor. A astúcia pode ser uma coisa perigosa, quando malaplicada; os resultados são grosseiros e espalhafatosos. O uso correto depende do instinto. Cabe ao fotógrafo da moda criar uma ilusão, fazendo isso ele não está agindo com desonestidade, e, quando adequadamente invocada, o resultado não é somente uma ilusão; mais do que isso, faz o observador enxergar o que ele deseja ver.” Essa opinião é de quem preencheu as páginas da Vogue USA com seu estilo elegante e pictorialista nos anos 1940. A clássica cena dos vestidos de baile do estilista anglo-americano Charles James, publicada pela editora Condé Nast, em junho de 1948, traz cada um desses elementos levantados por Beaton, com o controle e o cálculo matemáticos que o próprio James usava em seus vestidos-escultura. O ponto de partida para aquela foto foi o quadro de Franz Winterhalter, intitulado A imperatriz Eugênia rodeada por suas damas de honra. Vestidas com cores e texturas que remetem a uma luxuosa vitrine de doces, diante delas, o espectador recorda cenas da realeza europeia do século 19. Mas tudo ali era o presente, o estilo de 1948, com corpos, gestual, formas e iluminação que funcionam até hoje como caminho estético para fotógrafos de moda e stylists. O imbricado jogo de referências de Beaton nos mostra que o acervo da fotografia publicitária no pós-guerra trouxe para os editoriais das revistas e as campanhas de grifes caras algo mais interessante que a imagem utilitária. Não se tratava apenas de apresentar um vestido para dias de calor ou trajes de momentos invernais com a finalidade óbvia de vender tecido, linha ou mão de obra. Surgia um convite para admirar. E também a criação de expectativas que cada um pudesse ter para se encaixar como personagem de um enredo sedutor. Assim, as fotos trabalham no campo do sonho de maneira mais eficiente. “O discurso chega carregado de aspectos subjetivos

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como identificação, pertencimento e códigos de vestir, ou maneiras de portar-se. A pessoa que fez a roupa e quem decidiu estampá-la em uma publicação parecem saber quase tudo sobre aqueles que vão consumir as páginas das revistas”, reflete José Afonso Júnior, professor e pesquisador da pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Mas, para que exista uma boa fotografia, mesmo na moda, em que as intenções de mercado são explícitas e o controle é operado em seu nível mais alto, é necessária uma brecha para o acaso. “Um exemplo muito bom seria Richard Avedon, com Dovima e os elefantes, uma foto de publicação massiva; algo que deveria só mostrar as roupas de noite da Christian Dior nas páginas da Harper’s Bazaar, em 1955, tem uma capacidade de provocação tão grande, que entra para a história”, aponta Afonso. Até virar obra de arte, vendida por R$ 2 milhões em leilão da Christie’s, há várias tentativas de explicar o sucesso dessa imagem. “A modelo tão frágil parece capaz de dominar elementos incontroláveis, como os elefantes do

Cirque d’Hiver. Os superpoderes de Avedon sobre o preto e branco também fazem uma escola”, avalia Carol Garcia, coordenadora da graduação em Mídias Sociais Digitais do Centro Universitário Belas Artes, de São Paulo, e fundadora da Agência NAU, que trabalha com branding de aculturação. Por força do universo que investiga, as mídias digitais, Carol Garcia explica que passou a olhar para a fotografia de moda de uma maneira mais ampla. “Vejo que uma foto de e-commerce é tão importante quanto as imagens sofisticadas de um editorial. Todas precisam existir. Isso nos obriga a pensar de outras formas sobre o que consideramos fotografia de moda para os dias atuais”, provoca Carol Garcia. Ela cita o trabalho dos profissionais que registram o street style, o desfile que se faz nas ruas por gente que estaria no time das pessoas “normais”, como um campo que também merece atenção. “Alguns deles conseguem levantar questões interessantes, colocando o que seria um registro corriqueiro na esfera da arte. O artista holandês Hans Eijkelboom, que teve seu trabalho

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corinne day/divulgação

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hans eijkelboom/divulgação

jamie hawkesworth/divulgação

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apresentado na 30ª Bienal de São Paulo, em 2012, faz isso. Ele trabalha com a similaridade da roupa que vestimos, mostrando que existem vários clones por todo o planeta”, aponta. Em vez de documentar o quanto as pessoas em várias capitais do mundo são ousadas e distintas, ele aposta nas imagens que reforçam o quanto os códigos sociais do vestir são limitadores.

LUZ NATURAL

Na trilha de uma nova safra de profissionais e de ideias, o artista plástico e fotógrafo carioca André Batista defende sua maneira menos complicada de criar sonhos. “Estou no time dos profissionais que, muitas

vezes, dispensam maquiadores e até stylists. O clima da imagem pode ser inteiramente controlado por mim. Fiz um editorial para a versão brasileira da Glamour na Place des Vosges, em Paris, usando só a luz natural, sem rebatedor e sem retoque. O fundo era só um detalhe, porque o foco estava no primeiro plano e no rosto da modelo”, recorda André. Essa forma de construir histórias, segundo ele, é uma maneira sutil do europeu dizer que está com orçamento apertado. Sem perder a elegância jamais. “Mesmo na indústria do luxo, há os que detestam estúdio e descartam ambientes muito controlados. Posso citar o inglês Jamie Hawkesworth e

sua campanha para o verão 2015 da Loewe. Dele também são as fotos da linha resort deste ano na Miu Miu.” Em comum, ele e Hawkesworth têm a preferência pelo filme e muita atenção pela fotografia documental. “Vejo uma influência forte de Corinne Day, a inglesa que revelou Kate Moss na capa de The Face para uma geração inteira que desponta agora”, opina André. Corinne, falecida precocemente em 2010, era criticada por quem a considerava simplista demais. O rótulo foi rebatido pelo diretor de arte Phil Bicker, que a convidou para participar dos trabalhos iniciais em The Face. “Ela era ótima em capturar o momento, mas a realidade

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bob wolfenson/divulgação

3 J. Hawkesworth Fotógrafo, que não gosta do estúdios, prefere ambientes livres, como os dos registros da campanha da Loewe 4 Kate Moss Modelo revelada pela fotógrafa inglesa Corinne Day na capa da The Face Hans Eijkelboom 5 Reflete sobre a similaridade da roupa que se veste, mostrando que existem vários clones por todo o planeta

6 Bob Wolfenson É um dos maiores nomes brasileiros no campo da fotografia de moda

REVISTAS NACIONAIS

7 Otto Stupakoff Primeiro grande fotógrafo de moda do país, desobedecia padrões para criar sua estética autoral 6

otto stupacoff/divulgação

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é que tudo era orquestrado, repetido, construído. Existe muita contradição a respeito de Corinne e seu trabalho, e um dos maiores desserviços foi que ela tentou chamá-los de momentos. Ela poderia ter sido vista como artista, em vez de uma fotógrafa de moda”, explica Bicker, numa entrevista publicada no site FFW.

onírico ou uma foto documental, e mais crua. Essa orientação do discurso visual para um determinado segmento reduz estranhamentos”, observa Afonso Júnior. Para exemplificar, vale mostrar cenas de Helmut Newton, com suas camadas de fetiche e misoginia. Observadas por leitores da Vogue Itália ou da brasileira FFW, o leitor ávido por experimentos e novas linguagens vai concordar com a colocação de Beaton trazida no início deste texto: “Quando adequadamente colocada, a ilusão faz o observador enxergar o que desejava ver”.

Entre os sonhos faustuosos de Cecil Beaton e a assepsia de recursos e cenário que parece existir em Jamie Hawkesworth, há uma sondagem qualitativa bem- apurada antes de publicar cada foto. “A marca ou a revista que elegeu o universo estético de um fotógrafo não baseou sua decisão em achismos. Há espaço para o universo

No mercado brasileiro de revistas, acusado de copista e careta em vários momentos, há muitos episódios que saem dessa curva de conformidade. “Otto Stupakoff, o primeiro grande fotógrafo de moda no nosso país, desobedecia padrões para criar sua estética autoral. O mesmo aconteceu com as produções que J.R. Duran e Bob

Mesmo para uma boa fotografia de moda, onde há um controle, em seu nível mais alto, é necessária uma brecha para o acaso Wolfenson faziam no período de duas revistas lendárias, a Moda Brasil e a Claudia Moda, que circularam até o início da década de 1990”, lista André Batista. Dos nomes escolhidos por ele, talvez seja Wolfenson o mais longevo e corajoso, assinando desde uma matéria da FFW inspirada no livro O crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz, construindo o “nu artístico” em títulos masculinos e criando campanhas para marcas do mainstream. O livre trânsito por vários territórios é, além de necessidade de sobrevivência, um fundamento nessa área de atuação, que exige instinto e uma capacidade contínua de renovação. A moda e o fotógrafo de moda precisam renovar o tempo inteiro – e de maneira muito acelerada – seu estoque de referências e de sonhos, que o espectador ainda nem sabia que existiam.

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Claquete

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CALIFÓRNIA Sobre aquilo que não se concretiza

Primeiro longa-metragem de ficção da cineasta Marina Person traz a história de uma adolescente paulistana no início da década de 1980

1 clara gallo Atriz tem sua estreia como protagonista do longa-metragem enredo 2 Doença do tio (Caio Blat) frustra o desejo de Estela de conhecer a Califórnia

TEXto Luciana Veras

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Califórnia gira em torno da vivência do inédito, das experiências que inauguram fases da vida

Entre o estalo inicial para contar uma história centrada na juventude do Brasil, nos anos 1980, e as filmagens de Califórnia, 10 anos se passaram na vida da cineasta paulista Marina Person. “As ideias começaram a surgir em 2004, quando passei a me reunir com amigas que haviam estudado comigo no colégio, com mil ideias, mas sem estrutura alguma. Uma coisa, no entanto, nunca mudou: seria sempre a história da Estela, começando na primeira menstruação e terminando com a primeira transa”, relata Marina à Continente, a respeito do

seu primeiro longa-metragem de ficção, com estreia nacional no início deste mês. Portanto, para a diretora e para seus personagens, Califórnia traz, na essência e desde a gênese, essa vivência do inédito, essa compilação das experiências que inauguram novas fases da vida. Estela (Clara Gallo) é uma adolescente paulistana que, em 1984, aos 17 anos, prepara-se para fazer vestibular. Seu maior sonho, contudo, não é ser aprovada e, sim, empreender uma jornada a partir de Los Angeles com o tio Carlos (Caio Blat), que lhe envia fitas gravadas com relatos de shows, fazendo, assim, a distância, a educação sentimental, musical e cinematográfica da sobrinha. Dois anos antes, combinara com os pais (Virginia Cavendish e Paulo Miklos) a troca da festa de debutante pela viagem préuniversidade. Quando o espectador a conhece, tudo que a protagonista faz é marcar os pontos que pretende visitar

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num gigantesco mapa da Califórnia na parede do seu quarto. “Não é um filme autobiográfico”, diz Marina Person, “mas tem muita situação que eu vivi mesmo”. “Queria contar um pouco como foi ser adolescente em São Paulo, no ano das Diretas Já, algo muito marcante para mim, e com a chegada da Aids. Nós somos os filhos da geração dos anos 1960, que queimou sutiã, que emancipou a mulher e, quando as coisas pareciam que iam melhorar, na nossa vez de aproveitar, veio a Aids”. Tio Carlos, o ídolo de Estela, não consegue esperá-la nos Estados Unidos; doente, ele regressa ao Brasil e, sob o olhar cuidadoso da sobrinha, hospeda-se na casa da irmã. Sua volta coincide com a chegada de JM (Caio Horowicz), um jovem que só se veste de preto, lê Albert Camus e ouve Echo and the Bunnymen. Ele é o oposto do surfista Xande (Giovanni Gallo), por quem Estela tem uma queda. As dúvidas, as contradições, as ansiedades da adolescência e, claro, a possibilidade concreta da iniciação sexual permeiam Califórnia. São fios que a narrativa ata com naturalidade, sem nada escamotear ou forjar situações de um didatismo excessivo. A vida não vem com bula, afinal. “O primeiro título era A vida não é filme. Quase no final, Gustavo Rosa de Moura, meu marido e parceiro na Mira Filmes, sugeriu Califórnia, que acaba sendo

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IMAGENS: ALINE ARRUDA/DIVULGAÇÃO

Claquete 3 marina person Longa dirigido por ela é marcado pela chegada da Aids e pelas Diretas Já 4 Caio Horowicz Ator está envolvido em outros projetos com a diretora

o idílio, a utopia. O filme é sobre como aprender a lidar com tudo que você não concretiza”, sintetiza a diretora.

ELENCO

Aprendizado é uma palavra-chave que Marina Person usa para descrever a relação que estabeleceu com o elenco. “Eu testei quase 300 jovens para todos os papéis. Na hora em que encontrei, tive sorte. A Clara, por exemplo, nunca tinha feito nada, era totalmente inexperiente. Fiquei superintrigada com ela, com seu jeito de quem quer, mas parece que não consegue falar. Já o Caio Horowicz, quando entrou no teste, me deu um arrepio. Uma aparição, esse menino. Depois, não quis testar mais ninguém. E hoje não quero fazer mais nada sem eles. Estou desenvolvendo dois projetos, um com a Clara, outro com o Caio. Fico inspirada por eles. São meus musos”, relata. Clara, Caio, Giovanni, Lívia Gijon e Letícia Fagnani, que interpretam Joana e Alessandra, as melhores amigas de Estela, passaram por “um super trabalho de preparação”. A ideia não era apenas criar uma intimidade entre

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eles, mas prepará-los para evocar uma época que não viveram. “Conversamos bastante sobre as referências dos anos 1980, principalmente sobre a comunicabilidade. Não havia internet ou mesmo computador em casa. Para fazer um trabalho da escola, a gente tinha que ir atrás das enciclopédias e das revistas. A Clara, por exemplo, não sabia mexer no gravador. Todos eles foram rápidos em absorver tudo, até porque essas coisas são o entorno. A questão da adolescência, esses hormônios explodindo, as indagações todas na cabeça deles, todo mundo passou por isso. Eles imediatamente se conectaram com o principal”, resume. Califórnia, por sua vez, também se conecta com o público a partir das músicas que ajudam a compor o retrato daquele grupo de jovens e, por conseguinte, dessa geração. New Order, The Cure, Joy Division, Blitz, Titãs, Kid Abelha e Metrô são ouvidas em cena, transportando Clara e sua trupe para uma pista de dança imaginária, e a plateia mais velha para todas as festas já vividas. Na sessão da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na qual a Continente assistiu ao filme, não eram poucos os espectadores, de diferentes faixas etárias, a cantarolar e bater o pé quando irrompiam os acordes de Caterpillar, Transmission ou Ceremony.

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Outros grupos, como The Smiths e Camper Van Beethoven, são apenas citados. “Essas autorizações dão um enorme trabalho e custam caríssimo. Queríamos botar The Smiths numa cena da loja de discos, mas ficou muito caro para liberar. Também queria muito usar o Talking Heads, mas pediram 40 mil dólares para licenciar Psycho killer. Pensei em usar Dear prudence, dos Beatles, mas seria algo em torno de 60 mil dólares. Impossível. Tudo tem que pagar, até quando o Xande toca De repente, Califórnia no violão. No final, entraram as bandas brasileiras e só as inglesas”, conta Marina Person. E, no final, há muito dela na protagonista Estela e nesse que se tornou seu primeiro filme após o documentário Person (2006), em que resgatava a trajetória do pai, o cineasta Luiz Sérgio Person (1936-1976). “Quase todos os discos, 80% deles, que aparecem no filme, são meus. Eu também ouvia essas bandas, era fã do David Bowie. Guardo muita coisa daquela época ainda. A gente é meio a soma de tudo que viu, ouviu e leu na vida: filmes, discos, livros, obras de arte… Califórnia é também sobre como você planeja tanto uma coisa, como a Estela com sua viagem, mas nada acontece conforme o imaginado. Um pouco como a vida mesmo.”

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DIVULGAÇÃO

WOODY ALLEN Incansável máquina de fazer filmes

Diretor chega aos 80 anos adorado pelo público, respeitado pela crítica e marcado por, como afirma, “uma brilhante ilusão que já dura 50 anos” TEXto Marcelo Miranda

“É difícil saber qual é o seu próprio estilo. Se eu pintasse um quadro e não pusesse o meu nome nele, você saberia que era meu? Claro que, se estou no filme, é uma pista importante. Mas, se não estou no filme, você saberia que era meu? Não sei dizer.”A declaração, dada por Woody Allen ao jornalista Eric Lax, em 1987, vinha de um cineasta que, àquela altura, já tinha se tornado referência de si mesmo, ao assinar títulos como O dorminhoco (1973), Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), Manhattan (1979), A rosa púrpura do Cairo (1985),

entre outros. Ao longo de quase 50 anos de carreira como diretor – iniciada em 1966, com o longa O que há, tigresa?, e já acumulando 45 filmes –, Allen fincou várias marcas na produção estadunidense e ganhou um tipo raro de status e reconhecimento. O baixinho, esquisito e tagarela artista nascido em Nova York, no dia 1º de dezembro de 1935, e registrado como Allan Stewart Königsberg, chega aos 80 anos de idade em plena ação, com a notável marca de um filme por ano e o interesse constante do público.

A longevidade de Allen foi absorvida por um ritmo de trabalho próprio. Pouca gente parece pensar no fato de ele agora ser um octogenário, mas quem o admira fica no aguardo do próximo filme. Nem sempre vem a melhor das recepções (o mais recente, Homem irracional, passou um tanto batido), mas desde o enorme sucesso de Meia-noite em Paris (2011), até os exibidores – tantas vezes relutantes em mostrar alguns filmes assinados por Allen (a ponto de o pôster de Vicky Cristina Barcelona, em 2008, esconder seu nome) – ficam ansiosos pelo que vem a seguir. “O que me parece é que o público adotou Allen e procura seus filmes automaticamente. Ele é uma assinatura”, diz a crítica de cinema Neusa Barbosa, editora do portal CineWeb e autora do livro Gente de cinema: Woody Allen. “Ele funciona como um ‘reloginho’, anotando ideias o tempo todo e pensando em filmes. Já acumulou uma grande plateia internacional, é famoso e popular, e não faz nada por encomenda. Bons ou maus, fracos ou fortes, seus trabalhos atendem só a seus interesses, àquilo que ele acha que pode e sabe fazer. As histórias sempre

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

1 manhattan Esse é um dos filmes no qual o diretor declara seu amor por Nova York 2 vicky cristina barcelona Gravado na Espanha, faz parte de uma sequência de longas ambientados na Europa

Claquete

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têm certo charme, ironia e elegância. E esta é uma arte em extinção, num tempo de tanta superexposição, de tanta celebridade instantânea.” Para Sérgio Alpendre, editor da revista eletrônica Interlúdio e professor de cinema, o cineasta “nunca se encaixou em tendências, mesmo as mais prolíficas e duradouras”. Integrado à geração denominada de Nova Hollywood (cuja ascensão se deu no começo dos anos 1970, quando jovens realizadores como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e William Friedkin reconfiguraram o modo de produção do cinema norteamericano), Woody Allen não pode ser vinculado diretamente às características do período, tanto por diferenças de estilo quanto por, na época, já ter criado seu jeito modesto e único de trabalhar. “Allen parece se mover ao largo dos movimentos, seus filmes existem num mundo bem particular e reconhecível”, destaca Alpendre.

TRAJETÓRIA

Woody Allen começou a carreira aos 15 anos, escrevendo para jornais e programas de rádio nos anos 1950. Na década seguinte, subiu aos palcos em shows cômicos de stand up e chamou a atenção de produtores e financistas de Hollywood, que logo o escalaram para papéis no cinema. A primeira aparição nas telas se deu aos 29 anos, em O que é que há, gatinha? (1965), de Clive Donner. Após o experimento de O que há, tigresa? (no qual Allen redublou inteiramente um filme japonês e criou uma comédia por conta própria) e a pequena participação na paródia dos filmes de James Bond Cassino Royale (1967), o cineasta efetivamente assinou e protagonizou o seu primeiro trabalho autoral com Um assaltante bem trapalhão (1969). Essa fase inicial, seguida por outras comédias amalucadas, como Bananas (1971), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar (1972) e

A última noite de Boris Grushenko (1975), dá continuidade à experiência nos palcos e nas piadas aceleradas de um cronista atento às idiossincrasias da sociedade. Para Neusa Barbosa, a tradição do humor judaico, inspirada nos irmãos Marx, tornou-se elemento forte em Allen, marcado ainda pela hiperexposição do comediante, sempre atuando como protagonista de cada filme. A partir da segunda metade dos anos 1970, o cinema de Allen passa a lidar com questões mais pessoais, principalmente com os relacionamentos íntimos e a vivência urbana. “Acho muito luminosa a fase em que ele, jovem, retrata suas paixões, como Nova York, o próprio cinema e as mulheres, em Noivo neurótico, noiva nervosa, Manhattan, Memórias (1980), Zelig (1983). Estão aí alguns dos seus melhores filmes e o período em que ele conquista respeito crítico”, afirma Neusa Barbosa. O crítico Sérgio Alpendre identifica, na mesma época, a mudança de tom no cinema de Allen e a relaciona à parceria com o diretor de fotografia Gordon Willis (1931-2014), iniciada em 1977. Willis é considerado pelo próprio cineasta como o profissional que o ajudou a elaborar a linguagem nos filmes para além do humor rasgado. O fotógrafo vinha da experiência de iluminar dois exemplares de O poderoso chefão (1972 e 1974), de Coppola, e Todos os homens do presidente (1976), de Alan Pakula. “Eu sabia que era engraçado e que minhas piadas eram engraçadas. Quando ganhei segurança, quis encontrar jeitos mais gráficos, mais cinemáticos de contar uma história, sem tanto medo de fazer alguma coisa que pudesse atravancar as piadas. Fiquei interessado em arriscar mais”, contou Allen a Eric Lax, em entrevista registrada no livro Conversas com Woody Allen. Considerado altamente sofisticado no que escreve e poucas vezes olhado com atenção na forma como delineia os filmes, Allen tem um jeito discreto de desenvolver a estética. Sérgio Alpendre diz admirar nele o uso dos planos longos como forma de valorizar o espaço e

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INDICAÇÕES a presença dos atores na cena. “Hannah e suas irmãs (1986) e Tiros na Broadway (1994) são meus preferidos, justamente porque neles Allen realiza com maior habilidade a tendência ao plano-sequência”, afirma. “Seus filmes costumam tanto passear pela decupagem clássica quanto pela moderna, com resistência ao contracampo, por exemplo. Até um pouco de maneirismo aparece em alguns títulos.”

VIRADA

No início dos anos 2000, Allen retornou à comédia escrachada de começo de carreira, em filmes de repercussão mediana que ameaçaram, inclusive, a crença na sua inventividade, como Trapaceiros (2000), O escorpião de Jade (2001), Dirigindo no escuro (2002) e Igual a tudo na vida (2003). Num período de vários fracassos de público e de crítica, o cineasta parecia patinar, refém de autoindulgência e a reverência do passado. O tensionamento durou até a estreia de Match point (2005), considerado o marco de uma fase que segue até hoje. Sombrio e irônico, o filme abriu novos flancos para o diretor transitar, permitindo-lhe retomar, em trabalhos posteriores, alguns antigos temas, agora vistos novamente com admiração por centenas de espectadores. Match point também iniciou o périplo de Allen por outros países. Ele deu um tempo da amada Nova York e foi filmar na Inglaterra, na Itália, na Espanha e na França, num misto de frescor de criação e maior liberdade artística, vistos principalmente em O sonho de Cassandra (2007), Vicky Cristina Barcelona e Você vai conhecer o homem dos seus sonhos (2010), culminando na explosão de Meia-noite em Paris.

“Ele se tornou uma celebridade à própria revelia, embora, é claro, desfrute de sua fama para continuar fazendo o que faz”, comenta Neusa Barbosa, que acredita num Allen mais amadurecido depois de sua fase europeia. “Ele voltou para casa com tom mais sombrio, no meio da ironia que nunca cede, em Blue Jasmine (2013), Magia ao luar (2014) e Homem irracional”. O favorito de Neusa na fase recente, aliás, é Blue Jasmine, que deu o Oscar de melhor atriz à australiana Cate Blanchett. “O filme é uma das críticas mais ácidas ao arrivismo de nossos tempos, traduzido por uma personagem feminina magnífica”, exalta ela. Para 2016, Allen segue cheio de projetos. Ao mesmo tempo em que finaliza seu próximo filme (ainda sem título), ele está envolvido na sua primeira série de TV. Perguntado por Eric Lax sobre quais os motivos de sua longevidade, Allen deu a resposta que parece definitiva. Vale reproduzila: “Então, você me pergunta como eu durei – principalmente com todos os meus defeitos, as minhas limitações, tanto artísticas como pessoais, as minhas fobias, idiossincrasias, as minhas pretensões artísticas e exigências artísticas absolutas numa indústria venal, implacável – funcionando apenas com um talento menor? A resposta é a seguinte: quando era criança, eu adorava mágica e poderia ter sido mágico, se não tivesse tomado um desvio. E assim, usando toda a minha habilidade manual, dissimulação, meus sutis subterfúgios e talento cênico, consegui produzir uma brilhante ilusão que já dura 50 anos”.

DOCUMENTÁRIO

DRAMA

Dirigido por Andrew Morgan Com Vandana Shiva, Safia Minney, Stella McCartney, Richard Wolff Life is my Movie Entertainment

Dirigido por Cary Fukunaga Com Idris Elba, Abraham Attah Netflix

THE TRUE COST

BEASTS OF NO NATION

Disponível na Netflix, aborda a indústria da moda e seus impactos na população e no planeta. O documentário traz reflexões econômicas e sociais sobre o consumo de roupas. Lojas surgem com preços baixos, mas trazem consequências devastadoras para quem trabalha na fabricação das peças, principalmente na Ásia. O filme também chama a atenção para o cultivo de algodão, que recebe agrotóxicos, prejudicando a população local.

Além de ser o primeiro longametragem da Netflix, o filme é uma forte aposta para concorrer ao Oscar 2016. Nele, uma guerra civil em um país africano é vista pelos olhos de uma criança, o pequeno Agu. Ele perde seu pai e seu irmão e é encontrado por um grupo de guerrilheiros, que o treinam para enfrentar a guerra. O comando desse grupo fica a cargo do personagem de Idris Elba, cuja atuação é excelente. Agu perde sua infância para a guerra.

ANIMAÇÃO

DRAMA

Dirigido por Satoshi Kon Com Megumi Hayashibara, Toro Emori e Katsunosuke Hori Mad House Ltd.

Dirigido por Andrew Haigh Com Charlotte Rampling, Tom Courtenay e Geraldine James Imovision

PAPRIKA

No futuro, é inventado um aparelho que torna possível mergulhar dentro dos sonhos das pessoas. Atsuko Chiba é uma psicoterapeuta que desenvolve um tratamento revolucionário a partir do uso do aparelho, mas ele é roubado e vários pesquisadores do laboratório começam a enlouquecer dentro dos seus sonhos. Atsuko assume então seu alter ego, Paprika, para investigar o roubo do aparelho, passando por mundos surreais.

45 anos

Kate Mercer está planejando sua festa de 45 anos de casamento, quando seu esposo é informado que o corpo de sua antiga companheira foi encontrado congelado nos Alpes suíços. Mesmo que, pragmaticamente, isso não queira dizer nada, Kate começa a perceber que as memórias da falecida fazem parte da vida dos dois mais do que ela pensa e a relação começa a entrar em crise, na medida em que a festa se aproxima.

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con ti nen te

Criaturas

Frank Sinatra por Cárcamo

Frank Sinatra é um dos artistas que vão carregar para sempre o adjetivo “insubstituível”. Sua história é única. Para fugir da Primeira Guerra, veio, com a família, da Itália aos Estados Unidos. Em Nova York, enfrentou o preconceito contra os italianos. Virou estrela do rádio e do cinema. Namorou incontáveis beldades. Casou-se com Ava Gardner. Foi alvo de elogios, boatos e fofocas. Mas, fora tudo isso, tinha algo insubstituível: ele era The Voice.

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