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# 181
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JAN 16
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Em média, o mosquito evolui do ovo à fase adulta em apenas uma semana. A partir daí já pode infectar as pessoas.
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PROGRAMAÇÃO
janeiro e fevereiro
Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2016
A programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco) inicia o ano de 2016 com muita música nas tardes de sábado em Recife, da bossa nova ao choro.
16/01 • SÁBADO• 17h SHOW COM WANDA SÁ
23/01 • SÁBADO • 17h SHOW COM GAFIEIRA DE BOLSO
20/02 • SÁBADO • 17h SHOW COM CANTO NEGRO com KARYNNA SPINELLI
27/02 • SÁBADO • 17h SHOW COM GILÚ AMARAL
30/01 • SÁBADO • 17h SHOW COM DUO AMPARO
PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
APOIO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. REALIZAÇÃO
INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,0 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sab e dom 14h as 17h
LEO CALDAS
JA N E I R O 2 0 1 6
aos leitores De vez em quando, nas nossas reuniões mensais de pauta, quando juntamos a equipe da redação para discussão de propostas de matérias, surgem ideias “nonsense”. “Baralho”? Como assim, uma matéria especial sobre “isso”?! (Um objeto sem relevância, seria mais ou menos o tom da interjeição.) Porém, leitor, não somente o jornalismo, mas a vida nos ensina que preconceitos nos levam muito frequentemente a erros. Veja você, um assunto tão simples, ou plano, nos rendeu uma bela reportagem de apenas 18 páginas! E observe que nos restringimos aos pontos de vista que nos concernem, trazendo para esta edição a história desse artefato, o fascínio que exerce sobre apreciadores e jogadores, sua relação com a arte e mesmo com o misticismo, deixando de lado aspectos sempre associados ao baralho, como o vício no jogo, que pode levar indivíduos a situações difíceis. A esse respeito, a jornalista Marina Suassuna – que conduziu essa reportagem – nos trouxe uma informação tranquilizadora, de que o brasileiro lida com o baralho de modo leve, como uma forma barata de lazer, uma prática relaxante, para ser jogada entre amigos, em casa, clubes, casas de praia. Isso nos lembrou os veraneios, as rodadas dos adultos acompanhadas a distância pelas
crianças, que não veem a hora de poder, elas mesmas, jogarem “uma partidinha”. O baralho que jogamos no Brasil foi introduzido na Europa via trocas com o mundo árabe no século 15. Tão nobre, que era artigo de luxo, reservado aos que podiam pagar altos preços pelas lâminas pintadas à mão. Nelas, além dos números de 2 a 10, se estampam valetes, damas, reis, o disputadíssimo e elegante ás, o matreiro curinga. Um estojo de baralho reúne, assim, 52 cartas, pois cada uma delas vem em diferente naipe: ouro, copas, paus e espadas. Não demorou para que tais elementos fossem dotados de significados simbólicos, e o baralho vertido em “cartas de tarô”, através das quais se fazem análises e conjecturas do passado, presente, futuro. Um dos nossos entrevistados, o historiador Cláudio Décourt, que é especialista no baralho de padrão internacional, afirma algo simples e sábio sobre ele: “O que mais me fascina no baralho é o fato de ser um objeto de criação popular há mais de seis séculos que até hoje é usado para prática de jogos ainda muito populares. Nem a tecnologia moderna dos computadores eliminou essas cartas fantásticas de suas telas”. Então, leitor, convidamos você a embarcar no encantador e rico universo das cartas de baralho.
sumário Portfólio
Anabella López
6 Continente
Online + Cartas
7 Colaboradores
8 Entrevista
Expediente
+
Maria Esther Maciel Pesquisadora e escritora dedica-se à zooliteratura e zoopoética, pouco estudadas no Brasil
62 Cardápio
O Mundo Lá de Casa Família monta restaurante em apartamento para receber clientes como se fossem amigos
40 Conexão
HQs Aplicativos facilitam e barateiam a leitura de quadrinhos em plataformas virtuais
44 Viagem
Vulcões Visita ao Deserto de Atacama e ao Salar de Uyuni promove o encontro de aventureiros com a mais árida região do planeta
52 Acervos
Fonográficos IRB e Fundaj mantêm partituras e fonogramas raros, atualmente em processo de digitalização
14
66 Sonoras
Frevo Frevotron e A Troça FrevoAlternativo criam músicas em que o ritmo pernambucano se mistura a gêneros como rock e eletrônica
20 Balaio
Será arte? De quando o público fica confuso com o que presencia
Dona de uma paleta colorida e elegante, e de traços de exuberante grafismo, artista argentina, radicada em Porto de Galinhas, recebe Jabuti por seu trabalho de ilustração
72
Matéria corrida José Cláudio Minha Ode marítima
74 Claquete
Mulheres Desde que foi criada, a indústria cinematográfica norte-americana tem resistido a dar o protagonismo a atrizes negras
80 Entremez
Ronaldo Correia de Brito Assim na terra como no céu
88 Criaturas
Agatha Christie Por Cavalcante
Palco
Janeiro de Grandes Espetáculos Festival chega à 22ª edição com programação reduzida, mas com qualidade concentrada, apresentando encenações de peso no cenário nacional e internacional
57 CAPA ILUSTRAÇÃO Janio Santos e Karina Freitas
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Capa
Comportamento
Comumente associado aos “jogos de azar”, o baralho tem uma história cheia de lances insuspeitos, sendo suporte para brincadeiras, experiências artísticas e arte divinatória
Movimento que eclodiu nos anos 1950-60, e que reverbera em artistas atuais, traz fusão entre tradição e ficção científica na cultura negra, num gesto de utopia insurgente
Visuais
Leitura
Equipamento cultural localizado no centro do Rio de Janeiro, com projeto arquitetônico “arrebatador” de Santiago Calatrava, assenta-se no binômio ciência e tecnologia
Impacto das reformas empreendidas nas grandes cidades, como ocorre agora com o Rio das Olimpíadas, não tem se refletido de forma contundente na literatura atual
Baralho
22
Museu do Amanhã
70
Afrofuturismo
49
Urbanismos
82
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Jan’ 16
neste mês BARALHO
AFROFUTURISMO
Como extra ao conteúdo da matéria de capa, disponibilizamos no site o documentário 13/9 – O dia do baralho. Produzido pela Copag, para comemorar o que se tornou o carro-chefe da empresa – o modelo de n°139, no padrão francês internacional –, o vídeo traz depoimentos de historiadores e de pessoas que desenvolveram uma relação afetiva com as cartas. A produção mostra a origem do baralho, a sua evolução ao longo dos séculos e a sua influência no nosso cotidiano, muito mais forte do que suspeitamos.
Assista ao filme O irmão que veio de outro planeta (1984), de John Sayles, que narra de forma divertida a estada de um alienígena com a aparência de um negro no Harlem.
SONORAS Faça download gratuito do primeiro disco da Frevotron, projeto musical desenvolvido por DJ Dolores, Maestro Spok e Yuri Queiroga. Entre as participações no álbum, Otto.
cartas REPRODUÇÃO
NOVÍSSIMO CINEMA 1
cuscuz). Obrigada, Luciana Veras, pela matéria incrível sobre a simplicidade de cozinhar com amor.
Foi uma honra que não tem tamanho estar numa edição da Continente, numa matéria feita por Luciana Veras, que, como toda a equipe da revista, leva a sério e se dedica ao bom jornalismo. Muito bom falar sobre o cinema nacional e o que a änima tem feito para tornar esta arte e os seus produtos cada vez mais acessíveis e reconhecidos.
KIKA COSTA RECIFE – PE
COM ORGULHO
FERNANDO LIMA RECIFE – PE
NOVÍSSIMO CINEMA 2 Linda matéria e linda/necessária revista. Ainda bem que temos a Continente circulando! REGINA CINTRA SÃO PAULO – SP
NOVÍSSIMO CINEMA 3 Excelente a matéria sobre o novíssimo cinema brasileiro na Continente #178. Fiquei feliz em estar ao lado de Marcelo Gomes, Gabriel Mascaro, Edgard Navarro, e outros cineastas. Reportagens assim dão um gás maior para continuarmos, apesar das dificuldades de que Navarro
fala bem no texto. Agradeço à revista pela oportunidade de participar da discussão. FREDERICO MACHADO SÃO LUÍS – MA
CUSCUZ Se você consegue fazer o simples ficar bom, todo o restante será maravilhoso. Fiquei muito feliz por ter participado da seção Cardápio da revista Continente de dezembro (matéria sobre
Muito feliz de ver que a Cepe Editora está completando 100 anos de existência, através do seu trabalho com a Imprensa Oficial do Estado de Pernambuco! Uma das editoras mais bacanas daqui, não só publica livros e o Diário Oficial, mas também edita a revista Continente e o suplemento Pernambuco, duas das melhores leituras que podemos encontrar em todo o país. E fico orgulhoso, não nego, ao ver meu livro À francesa aparecer como destaque na matéria e (nem eu sabia disso até recentemente) única obra da casa a vencer um Jabuti. FREDERICO TOSCANO
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RECIFE – PE
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, RecifePE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone
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Claudia Cavalcanti
Gianni Paula
Marina Suassuna
Jornalista e escritor, autor do romance Não muito (7Letras)
Pernambucana e paulista, germanista, editora, tradutora e viajante apaixonada
Jornalista e graduanda em Licenciatura em Língua Portuguesa na Universidade Federal de Pernambuco
Jornalista com especialização em Estudos Cinematográficos. Foi repórter de cultura da FPE, escreve para Outros críticos
E MAIS Carlos Eduardo Amaral, jornalista, crítico de música erudita, pesquisador com mestrado em Comunicação pela UFPE e compositor. Daniela Nader, fotógrafa. Leo Caldas, fotojornalista. Márcio Bastos, jornalista. Marco Carvalho, fotógrafo. Paulo Cavalcante, ilustrador e caricaturista, trabalha no jornal O Globo. Paulo Floro, jornalista, escreve para a revista digital O Grito. Renata do Amaral, jornalista, professora, doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural.
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MARIA ESTHER MACIEL
“O interesse por um novo enfoque dos animais na literatura é recente” Com uma produção acadêmica diversa, pesquisadora e escritora tem se dedicado a um tema ainda pouco estudado no Brasil, a zooliteratura e a zoopoética TEXTO Gianni Paula de Melo
CON TI NEN TE
Entrevista
Ao contrário dos acadêmicos que
optam pelo caminho rigoroso da especialização única, a professora Maria Esther Maciel aposta em um rigor errante e, no decorrer de sua carreira, já se debruçou sobre diferentes interesses e abordagens da literatura. Conhecida não só pela sua atuação acadêmica, mas também por sua produção literária, Maria Esther publicou livros de poesia, prosa e ensaios. Durante muitos anos, dedicou-se ao estudo dos poetas críticos, com foco na produção do mexicano Octavio Paz. Desenvolveu ainda pesquisa sobre literatura e cinema, com atenção especial para obra de Peter Greenaway. Recentemente, no entanto, a escritora abraçou uma temática da qual se pode dizer que é pioneira nas universidades brasileiras. Maria Esther iniciou, na pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, suas pesquisas sobre zooliteratura e zoopoética, que estuda não só os animais na literatura, mas a questão da animalidade e do limite do humano, como vemos nesta conversa concedida à Continente.
CONTINENTE Suas pesquisas mais recentes são identificadas como zooliteratura ou zoopoética. A que se propõem esses estudos? MARIA ESTHER MACIEL Existe um campo de estudos mais amplo e de caráter transdisciplinar, chamado Estudos Animais, que surgiu nos países de língua inglesa, com uma forte presença na Austrália e nos EUA. Hoje, esses estudos se disseminaram em diferentes países. É um campo que acolhe áreas como Zoologia, Ecologia, Etologia, Filosofia, Ciências Políticas, Antropologia, Direito, Artes e Literatura, entre outros. E que conta com a presença também de ativistas pelos direitos animais. São dois os eixos que sustentam os Estudos Animais: o que concerne ao animal propriamente dito e à chamada “animalidade”, e o que se volta para as complexas e controversas relações entre homens e animais não humanos. No caso da “zooliteratura”, seria um ramo desse campo mais amplo. O termo é bastante recente, tendo sido usado nos estudos que temos realizado aqui nos últimos sete anos. Derrida já havia utilizado o termo “zoopoética” para designar
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o conjunto dos animais literários disseminados na obra de Kafka. Já o termo “zooliteratura”, embora guarde afinidades inegáveis com o termo derridiano, tem uma abrangência maior, visto que não se circunscreve a um autor e pode designar um conjunto de obras literárias (de um autor, de um país, de uma época) que privilegiam o enfoque de animais. CONTINENTE Pensar os animais enquanto objeto de estudo literário inscrito em um campo específico parece algo recente. Quando começaram esses estudos regulares? MARIA ESTHER MACIEL Sim, o interesse por um novo enfoque dos animais na literatura é recente. No Brasil, só há poucos anos essa abordagem passou a ser explorada a partir de um viés mais contemporâneo, afinado com as demandas do mundo de agora. Antes, só havia trabalhos esparsos, que se circunscreviam à visão do animal como símbolo, metáfora ou alegoria do humano. Hoje, felizmente, já existe um enfoque mais multifacetado da questão, que incorpora saberes advindos de outras áreas do conhecimento. Cada
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vez mais, a questão dos animais na literatura se afina com as discussões contemporâneas sobre os conceitos de humano, humanidade, animal e animalidade, à luz dos problemas ecológicos, filosóficos, políticos e econômicos do nosso tempo. Antes, o interesse pela presença do animal na literatura era predominantemente voltado para a análise textual.
DIVULGAÇÃO
CONTINENTE Quais estudiosos já haviam se ocupado desta temática e servem de embasamento para as novas reflexões literárias?
como para escritores como Machado de Assis e o sul-africano J.M. Coetzee, que escreveu romances magníficos em torno dessas questões, como Desonra e A vida dos animais. No Brasil, podemos citar Benedito Nunes, que foi um dos primeiros a articular, de forma interessante, literatura, filosofia e antropologia para a abordagem da relação entre humanos e animais. Outro nome é Eduardo Viveiros de Castro, que inaugurou uma instigante linha de pensamento no trato do tema da animalidade, sob o prisma das culturas
CON TI NEN TE
“Em Desonra e A vida dos animais, Coetzee (esq.) trata do tema dos animais e das relações entre humanos e não humanos por meio de inventivas estratégias narrativas, levando a discussão também para os campos da ética e da política”
Entrevista MARIA ESTHER MACIEL Estou certa de que Michel de Montaigne foi o pioneiro, ainda no século 16, dessa visão mais avançada sobre a questão dos animais, embora um ou outro filósofo anterior tenha tratado disso de forma mais esparsa. Os ensaios Da crueldade e Apologia de Raymond Sebond, de Montainge, são uma referência inicial importante, não apenas para as tentativas recentes de reconfiguração do conceito de humano, como também para o debate contemporâneo sobre as políticas da vida. Ele questionou a superioridade do homem em relação às demais espécies, além de ter discutido as relações éticas entre homens e animais. Suas ideias foram fundamentais para filósofos como Jaques Derrida, assim
discussão também para os campos da ética e da política. No romance Desonra, por exemplo, ele evidencia de forma explícita a condição “à margem da margem” ocupada pelos animais na África do Sul pós-apartheid, um país com graves problemas de desigualdade social e conflitos raciais, onde os viventes não humanos representam o último grau na escala de relevância para a nação e, portanto, podem ser submetidos a todas as atrocidades possíveis por todos os homens. São seres radicalmente desgraçados, que vivem em extremo
ameríndias. Contos como Meu tio, o Iauretê, de Guimarães Rosa, ganham uma nova leitura à luz dessas contribuições do pensador brasileiro. CONTINENTE Quais as contribuições específicas que a literatura pode oferecer para este debate contemporâneo? MARIA ESTHER MACIEL As contribuições da literatura são enormes. Basta citarmos a obra de Coetzee para que isso se justifique. É o autor contemporâneo mais empenhado em empreender, por vias complexas e sem dicotomias, esse debate. Nos livros que mencionei, ele trata do tema dos animais e das relações entre humanos e não humanos por meio de inventivas estratégias narrativas, levando a
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estado de penúria, ao mesmo tempo em que recebem de alguns personagens da trama manifestações contraditórias (e rarefeitas) de compaixão. Coetzee também incursiona nessa problemática em romances como Infância e Diário de um ano ruim, entre outros. No Brasil, o traço biopolítico já se pode ver em contos e crônicas de Machado de Assis. CONTINENTE Você observa certa rejeição a este campo de estudo no ambiente acadêmico? MARIA ESTHER MACIEL No início, percebi uma certa resistência. Às vezes, algumas pessoas reagiam, com ironia, ao tema de minha pesquisa, que foi iniciada por volta de 2008. Mas, na medida em que esses estudos foram ganhando notabilidade nos centros
estrangeiros mais importantes e se expandindo no mundo, o preconceito por aqui começou a arrefecer. Hoje, percebo um interesse crescente dos brasileiros por esse campo de estudos, em várias áreas das ciências humanas.
CONTINENTE Quando se fala em animais e literatura, é impossível não pensar em uma personagem como Baleia, de Graciliano Ramos. Antes da popularização dos Estudos Animais
ALDEMIR MARTINS/REPRODUÇÃO
CONTINENTE No âmbito da produção literária brasileira, Machado de Assis antecipa essa preocupação? MARIA ESTHER MACIEL Digo que Machado de Assis é o grande precursor desse enfoque dos animais e das relações humanos/não humanos na literatura
de racionalidade. Isso fica explícito em Quincas Borba, em que Machado não apenas embaralha as noções de humanidade, animalidade e loucura, como também os limites entre homem e cão, considerando que o nome Quincas Borba nomeia tanto o cão quanto o seu dono. É uma postura “cínica”, no sentido filosófico dessa palavra.
ser capaz de gestos de grandeza, de sentimentos elevados, demonstrações de solidariedade, compreensão do mundo e saberes sobre a vida. Baleia não é, a meu ver, humanizada, antropomorfizada. Se, no romance, ela tem traços que lembram os humanos, e os humanos têm traços animais, é porque o escritor trata os mundos humano e não humano como feitos de porosidade, que, quando em contato próximo, se contaminam reciprocamente. Nesse sentido, digo que a humanidade de um personagem se
“Não se pode afirmar uma antropomorfização de Baleia, em Vidas Secas. Uma coisa é o escritor vestir o animal, dar-lhe hábitos, profissões e valores de gente; outra é conferirlhe capacidade de sofrer, solidarizar-se, demonstrar medo, lutar pela própria vida, como é o caso de Baleia” brasileira, sob um enfoque biopolítico. Acho que foi um “pós-humanista” por antecipação. Ele dedicou memoráveis contos, crônicas e passagens de romances à condição dos animais num mundo dominado pela ciência e pelo triunfo do racionalismo moderno. Foi também um dos primeiros escritores nacionais a abordar ferinamente a crueldade das práticas de vivissecção comuns nos laboratórios científicos do tempo (cito o Conto alexandrino como um exemplo), a se manifestar contra as touradas e a exploração da força animal no trabalho, além de ter manifestado sua simpatia pelas sociedades protetoras de animais. Vale mencionar também sua visão irônica sobre as filosofias humanistas amparadas na noção
na literatura, esse personagem já chamava a atenção neste contexto. Continua a ser um livro pertinente para a zooliteratura? MARIA ESTHER MACIEL Sim,Vidas secas é um livro fundamental para a zooliteratura. Até hoje, muita gente teima em caracterizar a cachorra Baleia como um animal humanizado, como se as qualidades emocionais, comportamentais e cognitivas que ela apresenta enquanto personagem fossem atributos exclusivos dos humanos e impróprias para caracterizar um animal não humano. Discordo dessa visão. As pessoas ainda sentem uma grande dificuldade em aceitar que o comportamento animal seja complexo e cheio de nuances. Por isso, não admitem que ele possa
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confunde com a animalidade do outro, independentemente da espécie a que pertencem. E é nesse sentido que não se pode afirmar categoricamente uma antropomorfização de Baleia. Uma coisa é o escritor vestir o animal com roupas, dar-lhe hábitos, profissões e valores de gente, como nas fábulas e nos desenhos animados; outra é conferir-lhe capacidade de sofrer, solidarizar-se, ter emoções, demonstrar medo, lutar pela própria vida e exercitar sua inteligência, como é o caso de Baleia. CONTINENTE Em outra direção, se pensarmos em um livro como Metamorfose, é possível falar em certa “animalização” do homem? De que forma Kafka deu sua contribuição para a reflexão da animalidade?
americanos Jack London, Patricia Highsmith e Gary Snyder, os hispanoamericanos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Augusto Monterroso, Juan José Arreola e José Emilio Pacheco, os portugueses Herberto Helder, Miguel Torga e Luíza Neto Jorge, o francês Jacques Roubaud, o inglês Ted Hughes, a australiana Eva Hornung, entre muitos outros. No Brasil, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond, João Alphonsus, Manoel de Barros, Wilson Bueno, Astrid Cabral, Nuno Ramos, Regina Redha, entre vários,
DIVULGAÇÃO
MARIA ESTHER MACIEL Penso que a novela A metamorfose, de Kafka, é um marco para o surgimento de uma linhagem literária voltada para os processos de identificação/ entrecruzamento de humano e não humano, sob um viés crítico, capaz de desestabilizar as bases do humanismo antropocêntrico. Gregor Samsa é um homem que, de repente, passa a viver uma condição híbrida de humano e inseto ao mesmo tempo, numa perspectiva bastante paradoxal. Ele se torna um inseto, mas não deixa de
CON TI NEN TE
CONTINENTE Quais outros autores, além dos já citados, também se destacam por suas apropriações e seus interesses pelos animais? MARIA ESTHER MACIEL A lista é muito longa. Costumo dizer que os animais nunca deixaram de se inscrever no imaginário literário do Ocidente (e do Oriente também). Daí ser possível, em certa medida, extrair da história da literatura também uma história dos animais. Nesse vastíssimo repertório, podemos destacar alguns nomes internacionais da literatura moderna e contemporânea, como os norte-
CONTINENTE De que forma a aproximação deste tema dialoga com a sua produção literária recente? É possível observar a presença do mundo animal, por exemplo, em O livro de Zenóbia. Gostaria que falasse um pouco da abordagem da temática animal a que você se propõe na criação literária. MARIA ESTHER MACIEL Sempre busco relacionar minhas pesquisas acadêmicas
“A novela A metamorfose, de Kafka, é um marco para o surgimento de uma linhagem literária voltada para os processos de entrecruzamento de humano e não humano, sob um viés crítico, capaz de desestabilizar as bases do humanismo antropocêntrico”
Entrevista se manter humano. E é essa situação absurda que torna tudo um grande pesadelo. É também ela que revela a dimensão animal do humano.
mais efetiva dos problemas éticos que envolvem a nossa relação com os animais e com o próprio conceito de vida e de humanidade.
destacam-se como os nossos principais “animalistas”. Todos eles, autores que se voltaram para os animais tomados como animais, subtraídos da carga alegórica e metafórica que a tradição das fábulas e dos bestiários antigos depositou sobre o mundo zoo. São escritores que veem os animais como sujeitos, seres dotados de inteligência, sensibilidade e saberes sobre o mundo, como também exploram literariamente as relações entre humanos e não humanos, humanidade e animalidade. Os mais contemporâneos, inclusive, não deixam de pensar a questão a partir de preocupações ecológicas e éticas, decorrentes não só de uma série de catástrofes ambientais que passaram a assolar o planeta, mas também da tomada de consciência
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com o meu trabalho literário. Agora, com essa investigação sobre animais na literatura, tenho tentado também escrever alguns textos ficcionais afinados com o tema. Em O livro de Zenóbia, como você disse, já existe essa aproximação. Em O livro dos nomes, também. Vale dizer que incluí um personagem canino nesse livro, chamado Xavier – um cão vira-lata que assiste ao suicídio do dono e morre de culpa. Há vários outros animais no livro, de forma mais esparsa. Já no meu livro de crônicas, A vida ao redor, publicado há poucos meses, incluí uma grande quantidade de textos sobre animais (principalmente cães). Tenho ainda o projeto de um “animalário”, ou seja, um livro só com narrativas animais, em parceria com um amigo escritor.
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CON TI NEN TE
Portfólio
Anabella López
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A IMAGEM LÚDICA TEXTO Marina Moura
“Considero que cada ser humano tem todas as idades dentro dele. Não faço diferenciação entre uma criança e um adulto.” A declaração da ilustradora argentina Anabella López, além de nos nortear acerca de sua poética, coincide com a mudança de perspectiva que se tem dado à ilustração infantil no século 21. Se, antes, a palavra era soberana em relação à imagem, cuja função se mostrava meramente ornamental, atualmente, essa perspectiva tem mudado, e o que se tem visto são livros infantojuvenis cada vez mais sofisticados em termos imagéticos e narrativos. Em consonância com esse panorama, a artista lança mão de ilustrações não para facilitar ou explicar o que quer que seja aos pequenos leitores. Valorizando as sutilezas do cotidiano, a natureza e as tradições, os desenhos de Anabella propõem narrativas abertas que estimulam o imaginário. A ilustradora nasceu na capital argentina em 1984, onde se formou em Design Gráfico pela Universidade de Buenos Aires. Atualmente, mora em Porto de Galinhas e dedica-se a escrever e ilustrar livros infantis, além de participar de mostras e ministrar oficinas. Já teve seus trabalhos divulgados na exposição Le immagini della fantasia, em 2011, na Itália; e na Mostra Internacional de Sharjah, nos Emirados Árabes, em 2013. Participou ainda de mostras coletivas no Recife, em Olinda, Salvador e Buenos Aires. Tem mais de 20 títulos publicados ao longo da carreira, com traduções no México, Estados Unidos, Canadá e Portugal. C O N T I N E N T E JA N E I R O 2 0 1 6 | 1 6
I lustração faz parte da série de cinco livros escritos por Alessandra Pontes Roscoe, que brincam com a sonoridade das vogais
Nestas páginas 2 BARBAZUL
nabella adaptou o A clássico infantil de Charles Perrault, a ser lançado pela Aletria Editora
3 CAPITÃO BARBANTE Livro de autoria partilhada com Henrique de Almeida Barbosa ganhou o Prêmio Alfredo Fernandes de Literatura Infantil (Manaus, 2014) 4 DE PARCERIAS E TRAPAÇAS
exto de Maria Inez T do Espírito Santo reconta histórias de povos indígenas sobre animais da floresta
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
Anabella faz parte da geração de autores/ilustradores que se utilizam de técnicas manuais e digitais para expandir possibilidades e criar diálogos com os leitores. “Quando se produz imagens mudando a técnica ou linguagem, isso ajuda a produzir conteúdos diferentes. Cada técnica possui um tom de voz diferente, que o autor pode combinar ou não para contar uma determinada história”, explica. Se é flexível no seu processo criativo, um fator caro à artista portenha e recorrente em seu trabalho é a valorização do lúdico. “Brinco, quando converso, quando dou aulas, brinco para conseguir uma imagem… A possibilidade de brincar é o que nos permite ascender a outros mundos.” Ela rechaça, inclusive, ideias associadas à seriedade e metodologia profissional. “Se você diz, por exemplo, que fez uma ilustração em 15 minutos e outra em três dias, todo mundo
vai achar que a que demorou mais é melhor. Atribui-se muito valor ao tempo e ao esforço, mas, no universo da arte, a lógica é outra”, defende. A maioria das ilustrações de Anabella possui cores vibrantes e saturadas, característica que ela acredita ser mais brasileira que argentina. “Na Argentina, a paleta tende a ser mais monocromática, com tons mais neutros e cinza”, observa. Sobre as semelhanças entre os países, a artista aponta o elogio das raízes culturais nas obras infantojuvenis. Segundo ela, outro ponto que aproxima as nações é o entendimento de que, em um livro ilustrado, a autoria é compartilhada. A despeito das variações que ocorrem, a depender da editora e das partes envolvidas no processo, a coautoria é mais um sintoma da mudança da perspectiva que dá peso maior à palavra sobre a imagem. “Todo ilustrador é também
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autor. Palavras e imagens contam juntas uma história.” No caso de A força da palmeira (Pallas Mini, 2014), livro pelo qual ganhou o Prêmio Jabuti 2015 na categoria Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil, Anabella adaptou o enredo de um conto oral africano, ilustrou, diagramou e criou o projeto gráfico. Para 2016, a ilustradora planeja lançar duas obras de autoria integral: Barbazul, uma adaptação do clássico infantil de Charles Perrault, já publicado na Argentina; e Um coelho, ambos pela Aletria Editora. Ela está também trabalhando em um livro-imagem, que dispensa a linguagem verbal e eleva à máxima potência a materialidade do livro e suas técnicas de feitura. Adepta de um procedimento criativo pessoal e sensível, Anabella acredita que “o artista demora uma vida para criar imagens, pois elas são produto de todas as experiências que ele já teve”.
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5 UM COELHO Obra ainda inédita tem texto e ilustrações de Anabella López 6 PRÊMIO A força da palmeira venceu o Jabuti 2015 de Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil IYÁ AGBÁ 7 Com texto de Naná Martins, história adapta para o universo infantil as tradições do candomblé
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
MIRÓ, O ELETRIZANTE
Isso é arte ou não? O ano que ficou marcado pela vinda da megaexposição de Marina Abramovic ao Brasil, pela 56ª Bienal de Veneza, abertura do Museu do Amanhã (Rio) e do Louvre de Abu Dhabi (Emirados Árabes) também ficou assinalado como aquele em que houve muita confusão sobre o que seria ou não arte. Em outubro, uma faxineira do Museu de Arte Contemporânea de Bolzano (Itália) considerou que um amontoado de bitucas de cigarro, garrafas vazias e confetes no chão se tratava do saldo do vernissage da noite anterior. Recolheu todo o material e botou no lixo a obra que era assinada pela dupla Goldschmied e Chiari, de Milão. No final de novembro, um universitário caminhava descalço pela grama do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, caiu bruscamente no chão e começou a se contorcer. Os estudantes ao redor aplaudiram. Felizmente, o rapaz escapou ileso do choque elétrico de um poste que vazava corrente. No começo de dezembro, uma briga entre duas mulheres no Art Basel, centro de convenções de Miami Beach, terminou em facadas. A polícia isolou a área onde estava a vítima ensaguentada esperando socorro. O público, que tirava fotos com smartphones, ficou na dúvida se a “Vítima ensaguentada esperando socorro” seria performance ou instalação. E, assim, vida e arte seguem se imitando… DÉBORA NASCIMENTO
CON TI NEN TE
O estudante do Centro de Artes e Comunicação da UFPE não foi a primeira vítima de choque elétrico que teve seu infortúnio interpretado como uma performance. Em 1997, no concorrido lançamento do CD Pop filosofia, de Jomard Muniz de Britto, o poeta Miró da Muribeca fazia declamações com um microfone na mão, de bermuda e sem camisa. Em certo momento, para incrementar a interpretação dos poemas, resolveu deitar-se no palco, esquecendo que este era de cimento. Todos acharam que seu chacoalhamento era o ápice da performance já frenética. Então, percebendo o que acontecia, gritei: “Ele está levando um choque!”. O microfone, felizmente, foi desplugado e Miró continua eletrizante por aí. (DN)
Balaio DUDAMEL EM STAR WARS
A FRASE
A febre de Star Wars, com o lançamento do sétimo filme da franquia, O despertar da força, trouxe nos créditos uma boa novidade para a América Latina. O maestro venezuelano Gustavo Dudamel foi convidado para reger os temas de abertura e encerramento do filme dirigido por J.J. Abrams. Em seu Facebook, Dudamel comentou sobre o convite feito pelo autor da trilha sonora, John Williams, e se disse surpreso. “John Williams é o Mozart do nosso tempo. Eu não posso dizer como eu me senti inspirado, quando tive suas partituras em minhas mãos pela primeira vez, pela beleza de seus escritos, ele é um gênio”, expressou Dudamel, que já havia regido os temas na Filarmônica de Los Angeles, seu vínculo atual. (Ulysses Gadêlha)
“Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?” Guimarães Rosas, escritor
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ARQUIVO EMOJI VALE MIL PALAVRAS Sabe aquela carinha feliz, com lágrimas de alegria? Os bons usuários das redes sociais certamente a conhecem. Pois essa emoji foi eleita a palavra do ano de 2015 pelo Dicionário Oxford, nos países que possuem o inglês como a primeira língua. Tal decisão reflete o atual panorama comunicacional em que vivemos, no qual uma imagem (ou emoji) vale mil palavras. A escolha da palavra do ano foi feita através de uma parceria entre o Oxford e o aplicativo de teclado virtual Swiftkey, que fez o mapeamento nos países. A representação de “chorando de rir” venceu palavras como refugiado, dark web, economia compartilhada e lumbersexual. (Maria Eduarda Barbosa)
John Paul Jones, 70 anos
A FAMA DOS GATOS
Chega aos 70 anos um dos mais importantes músicos da história do rock’n’roll. Referência para muitos baixistas, John Paul Jones, já no começo da carreira, era solicitado a participar de várias bandas. Em 1967, na gravação do álbum Little games, do Yardbirds, no qual tocou baixo e violoncelo, foi convidado por Jimmy Page para integrar o The New Yardbirds, que se tornaria o Led Zeppelin. Ao final do quarteto fantástico, em 1980, após a morte do baterista John Bonham, Paul Jones passou a ladear diversos artistas, montou o power trio Them Crooked Vultures, com Josh Homme e Dave Grohl (2009-2010), e compôs a trilha de Gargólios, de Gerald Thomas, em 2011. O artista nasceu John Baldwin (o nome artístico foi sugerido pelo produtor Andrew Oldham), em Kent, Inglaterra, em 3 de janeiro de 1946, numa família de músicos, cresceu ouvindo blues e música clássica. O talento de JPJ só não foi mais festejado porque pisava o mesmo palco que Robert Plant, Jimmy Page e John Bonham. Hoje, o multi-instrumentista, assim como os outros remanescentes do LZ, é sempre questionado sobre uma reunião do supergrupo. Ele e Page concordam com a ideia, inclusive já chegaram a assinar contrato para uma turnê. Mas Robert Plant não somente discordou, como rasgou o documento. No valor de R$ 2 bilhões. DÉBORA NASCIMENTO
Os gatos podem até nascer pobres, como cantou Chico Buarque, porém, já nascem famosos. E parece que não são só 15 minutos de fama… Pode faltar tudo na timeline do Facebook, menos os famigerados vídeos com os felinos. Postagens mais recorrentes (e curtidas) nas redes sociais, eles já formam a categoria mais vista no YouTube: 26 bilhões de acessos, até 2014. Para tentar explicar o estrondoso sucesso dos bichanos na internet, foi realizado um estudo na Universidade da Indiana. A pesquisa, que envolveu 7 mil pessoas, concluiu que 72% dos participantes ficaram mais tranquilos e menos negativos ao ver filmagens desses animais domésticos. Segundo a professora e pesquisadora Jessica Gall Myrick, o benefício emocional adquirido pode trazer um ganho de produtividade que compensaria o tempo perdido, ops, investido. (DN)
O ESPANHOL É O DE MENOS Contrariando as críticas ao seu espanhol, o brasileiro Wagner Moura foi indicado, pelo trabalho em Narcos, à categoria de Melhor Ator em Série Dramática do prêmio Globo de Ouro, que acontece no dia 10 deste mês. Em 2015, o vencedor foi Kevin Spacey, da aclamada House of cards, que chega agora à quarta temporada. Ambas as séries fazem parte das produções originais do Netflix. Uma segunda temporada sobre o famoso traficante colombiano Pablo Escobar está sendo produzida para 2016. Além disso, a revista americana Variety elencou Wagner Moura entre os 20 melhores atores do ano em séries. Segundo a publicação, o ator aprendeu a falar espanhol rapidamente para viver o personagem, mas, frequentemente, ele “fala mais com o olhar fulminante e profundo do que com os diálogos”. (UG)
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LEO CALDAS
CON TI NEN TE
CAPA
BARALHO UM CURINGA AO LONGO DO TEMPO C O N T I N E N T E JA N E I R O 2 0 1 6 | 2 2
De origem milenar, que remonta à China do século 13, o artefato atravessou gerações e culturas, reunindo pessoas em torno do entretenimento, além de servir à expressão artística e aos jogos divinatórios TEXTO Marina Suassuna
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Se pararmos para pensar sobre o quanto o baralho está presente em nossas vidas, veremos que não se trata apenas de entretenimento. Quantas expressões oriundas do carteado se incorporaram ao nosso vocabulário rotineiro, como “colocar as cartas na mesa” ou “abrir o jogo”, equivalentes a revelar algo de maneira franca, sincera? Quem nunca usou a expressão “carta fora do baralho” para designar alguém que está excluído? Ou preferiu dizer “embaralhar” no lugar de desorganizar? “Sentíamos adultos com as cartas na mão. Nós, as crianças, não podíamos mexer no baralho, que ficava guardado na cristaleira ou na gaveta do pai. Quando os adultos saíam, arriscávamos abrir aquelas caixinhas, uma azul e uma vermelha, e retirávamos as cartas mágicas. De maneira que, naquela idade em que nem sabíamos ler, as cartas do baralho nos davam identidade, foram os primeiros RGs de nossas vidas. E assim, antes de termos nos tornado adolescentes e jovens, havíamos sido nobres, reis, valetes (o que era um valete?). Eles foram parte do nosso imaginário na infância, do mesmo modo que os contos de fadas e as histórias de Monteiro Lobato”, recorda o escritor e jornalista Ignácio Loyola Brandão, no livro Copag, 100 anos no Brasil – Sempre dando as cartas. A sensação de imponência que as cartas de jogar transmitem está associada à sua própria origem. Quando foi introduzido na Europa, por volta do século 15, o baralho era um artigo de luxo reservado aos nobres, que podiam pagar preços exorbitantes pelas lâminas pintadas à mão. Justamente por isso, até hoje as vestimentas reproduzidas nas pinturas pertencem à nobreza: rei, valete e dama. Tido como ofício nobre, mestre de cartas era o nome dado ao pintor ou estampador que se encarregava de colorir as cartas. De acordo com Ignácio de Loyola Brandão, para tornar-se um mestre, era necessário trabalhar três anos como aprendiz e depois mais três como oficial. Só assim, adquiriria domínio de toda a técnica da produção, que incluía desde a limpeza das ferramentas até a secagem e a colagem das três folhas de papel que, cortadas, resultavam numa carta de baralho.
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Quando foi introduzido na Europa, por volta do século 15, o baralho era um artigo de luxo reservado aos nobres Até meados do século 19, o ludus cartarum – nome dado genericamente aos baralhos – ainda era colorido à mão. No entanto, sua popularização foi possível ainda na segunda metade do século 15, graças à técnica da xilogravura, que reduziu os custos de produção de maneira significativa. A impressão a partir
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da matriz de madeira permitiu a sua distribuição em grande quantidade, tornando-o mais acessível a classes menos favorecidas. Além disso, o desenvolvimento dos métodos de fabricação de papel na Europa, na mesma época, propiciou o surgimento de baralhos em diversos países.
CARTAS DA CHINA
Até hoje, não foi possível precisar a sua origem. A referência mais antiga que se tem desse instrumento remonta ao século 13, na China. No entanto, as cartas chinesas pouco se assemelham ao baralho moderno. Com dimensões médias em torno de 10 cm x 2,5 cm, são mais estreitas que as cartas modernas, além de se diferenciarem
CURIOSIDADES Acontecimentos em torno das cartas que causam surpresa
2 ORIGEM TURCA 1 Versão que se consolidou descende dos mamelucos PROGRESSÃO 2 Sequência evolutiva do padrão internacional
3 CHINA Origem remonta ao país, no século 13, mas cartas diferem do baralho moderno
destas no que diz respeito à composição dos desenhos e dos naipes. Embora tenha sido identificado o desenvolvimento de lâminas em locais diversos durante um mesmo período da história, a versão que se consolidou acerca da origem do baralho moderno, com o qual jogamos pôquer, bridge, buraco e truco, descende dos mamelucos, povo turco que governou o Egito entre os séculos 13 e 15. São deles a estrutura e o padrão das cartas que hoje nos são familiares, com dimensões mais largas que as chinesas, totalizando 52 cartas, assim como as versões mais populares dos baralhos modernos. Pintadas à mão com detalhes em ouro, as lâminas mamelucas seguiam a tradição árabe de não reproduzirem figuras humanas. No entanto, já se identificava a representação de reis, primeiros vice-reis e segundos vice-reis de maneira abstrata. Coube aos europeus, no final do século 14, transformarem essas três figuras reais em dama, valete e rei. Isso foi possível graças à intensa relação comercial que mantinham com os mamelucos. Principais vias de acesso desse comércio, a Itália e a Espanha foram os primeiros países a terem acesso às cartas precursoras do nosso baralho moderno. Daí em diante, não demorou para que a novidade se espalhasse por toda a Europa, chegando às colônias e aos países de outros continentes.
HANAFUDA Pouca gente sabe que a fábrica de jogos japonesa Nintendo, mundialmente conhecida pela fabricação de video games, foi fundada como uma empresa produtora de baralhos artesanais. Especializada em hanafuda, um baralho desenhado à mão que logo se tornou muito popular no Japão, a Nintendo obrigou seu fundador, Fusajiro Yamauchi, a contratar vários assistentes para fazer frente à demanda. Até hoje, a empresa os fabrica, como forma de manter intacta sua origem, e organiza um torneio de bridge chamado Nintendo Cup. PARTIDA LUNÁTICA Das circunstâncias nas quais o baralho se fez presente na história, certamente a terceira viagem do homem à Lua foi a mais inusitada. No dia 6 de fevereiro de 1971, os astronautas Alan Shepard e Edgar Mitchell jogaram uma partida de gin rummy, modalidade de jogo parecida com o buraco, a bordo do módulo lunar da nave Apollo 14.
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Um dos últimos locais aonde as cartas mamelucas chegaram foi a França, especificamente à cidade de Rouen, que nos legou o baralho de desenho e uso mais popular atualmente. Durante a Guerra dos 100 anos, nos séculos 14 e 15, vários soldados ingleses voltaram da França com exemplares das cartas, que logo se tornaram oficiais em seu país de origem. Impressos em xilogravuras e coloridos com pochoir (técnica semelhante ao estêncil) desde o século 17, os baralhos franceses foram aperfeiçoados na Inglaterra durante o século 19, a partir das técnicas de impressão em relevo e da introdução da litografia. Hoje, configuram-se como o sistema de baralho adotado internacionalmente, por cassinos e jogadores profissionais, produzido por praticamente todos os fabricantes do mundo. “Um dos aspectos mais interessantes e marcantes deste padrão é a
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LORD SANDWICH Ainda mais curiosa é a contribuição do carteado na invenção do sanduíche. O ilustre inventor do lanche que leva seu nome, Lord Sandwich, o 4° conde da cidade britânica de Sandwich, era um fanático por jogos de cartas e não gostava de interromper uma rodada nem para comer. Refeições com garfo e faca poderiam prejudicar sua concentração. Por isso, durante uma rodada de bridge, no ano de 1762, pediu aos serviçais que sua carne fosse servida entre dois pedaços de pão. Dessa forma, poderia comer com uma das mãos e continuar jogando com a outra sem se lambuzar. Logo, os conhecidos do conde passaram a pedir “o mesmo que o Sandwich”. EMPILHAMENTO Empilhar cartas de jogar se tornou o passatempo de muitas pessoas. Houve, inclusive, quem transformasse a diversão em carreira. O recordista norte-americano Bryan Berg foi reconhecido pelo Guinness Book, em 1992, pela maior torre de cartas do mundo. Desde então, ganhou honras por construir outras ainda maiores. Até hoje sua maior torre foi construída com 2.400 cartas de baralho, medindo 7 metros e 62 centímetros. Em 2014, o recordista esteve no Brasil, onde elaborou uma réplica de quase 3 metros de altura da Catedral da Sé (SP), com 116 mil cartas de baralho.
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4 “CARTA DA MORTE” Governo inglês imprimia símbolo oficial no ás de espadas , para evitar falsificações. A desobediência podia levar à pena capital.
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manutenção, por mais de cinco séculos, das características principais dos desenhos das figuras. Talvez seja essa a concepção gráfica mais duradoura e copiada do mundo”, aponta o historiador e especialista no padrão internacional Cláudio Décourt. Composto por 52 cartas, o baralho internacional usa o padrão de naipe francês: diamantes, corações, espadas e trevos. Constitui-se, ainda, de três figuras (rei, dama e valete) e de 10 cartas numerais para cada naipe. O sistema de naipe francês é, portanto, uma adaptação dos naipes mamelucos, que eram retratados a partir de objetos comuns daquela cultura: moedas, espadas, copas (cálices) e tacos de polo. “Não só os naipes franceses, mas também as figuras das cartas desse baralho possibilitavam maior facilidade de impressão gráfica que, somada à expansão do império inglês e à prática de jogos como o pôquer, o bridge ou o wisp, se difundiu pelo mundo inteiro, tornando-se assim o ludus cartarum por excelência”, descreve Armando da Serra Negra, no livro O que é baralho. Assim, quando redesenhado por diferentes fabricantes, o baralho no padrão internacional se ajusta aos vários exemplares desenvolvidos, mantendo seu conjunto de características genéricas. Outra peculiaridade desse padrão de baralho é o ás de espadas. Trata-se de
uma carta com um grande naipe central, distinguindo-a das demais. Sua origem data de meados do século 18, quando o governo da Inglaterra mandava estampar um carimbo com o desenho oficial do governo, que identificava a tributação sobre o produto. Assim, os fabricantes geravam todas as cartas para seus baralhos, exceto o ás de
“O que mais me fascina é o fato de ser um objeto de criação popular há mais de seis séculos” Cláudio Décourt espadas, sendo obrigados a encomendar essa carta ao governo, o que evitava falsificação. Se algum falsificador fosse identificado, era punido com pena capital. De acordo com Cláudio Décourt, há registro de um fabricante condenado à forca em 1805. “Esta sinistra pena deve ter sugerido a associação do ás de espadas como a carta da morte, superstição ainda vigente entre certos povos, principalmente no Oriente”, indica o pesquisador. Mesmo depois da identificação fiscal ter sido abolida, o ás de espadas continuou a ser fabricado
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com desenhos especiais, tradição mantida pela maioria dos fabricantes. Também é possível reconhecer o baralho internacional pelos índices usados para designar as figuras, uma variação britânica do sistema francês: J, Q, K (Jack, Queen, King), que passaram a substituir V, D, R (Valete, Dama, Rei), respectivamente.
COMUNICAÇÃO POPULAR
“O que mais me fascina no baralho é o fato de ser um objeto de criação popular há mais de seis séculos que até hoje é usado para prática de jogos ainda muito populares. Nem a tecnologia moderna dos computadores eliminou essas cartas fantásticas de suas telas”, reflete Décourt. Grande fonte de conhecimento no sertão nordestino, o livro Lunário perpétuo, tido como uma pequena enciclopédia bastante útil aos afazeres corriqueiros, trazia o carteado como um interesse do cotidiano, do qual se deveria adquirir domínio, assim como receitas medicinais, tabuada, horóscopo, astronomia e outros conhecimentos gerais. Escrita pelo matemático espanhol Jerônimo Cortez e traduzida em português em 1703, com linguagem precisa e minuciosa, a publicação levou a noção do jogo de cartas para os lugares mais remotos do universo sertanejo.
Não havia quem não consultasse o Lunário perpétuo, que viajava no lombo dos burros, algibeiras de padres e arcas de mascates até chegar às escrivaninhas, gavetas, redes de dormir ou ao lado do fogão de quem o consultasse. O lavrador, o comerciante, a cozinheira, o poeta, o cantador, todos esses tipos humanos absorveram as orientações e os conselhos trazidos no livro sobre o modo de compor o baralho para fazer alguns jogos, fossem eles enigmáticos, de adivinhação de carta ou de efeitos ilusionistas. Se o interesse pelo carteado ultrapassa diferentes culturas e gerações, é porque há, neste instrumento, uma vocação para a tradição. Para a designer, pesquisadora e professora da USP Priscila Farias, o baralho mantém a sua identidade enquanto jogo tradicional graças ao design das cartas, dotadas de apego e respeito a convenções estabelecidas historicamente. “Os baralhos com os quais convivemos hoje carregam elementos visuais de muitas culturas, e traços da influência e predomínio dos ideais de jogadores e fabricantes que marcam nosso cotidiano e nossa memória”, observa a designer, para quem as cartas de jogar constituem parte de nossa história gráfica, afetiva e coletiva, associada à cultura visual e à cultura da impressão. “Se os naipes têm algo de familiar e eterno, se as figuras de reis, rainhas, cavaleiros e os misteriosos curingas remetem a verdades antigas de um mundo do qual temos nostalgia, apesar de não termos vivido nele, é porque fazem parte desta memória que é maior do que nós indivíduos.” O potencial do baralho para instrumento de
comunicação popular é apontado pela pesquisadora portuguesa Natali Assunção como essencial à permanência dessa prática. “Além da vantagem de um baralho de cartas ser acessível a todas as classes sociais, ele é autossuficiente, ou seja, não necessita de bateria ou energia elétrica para funcionar, é de fácil transporte e pode ser utilizado em ambientes fechados ou abertos.” Ela chama a atenção ainda para a importância daquela que se tornou a principal utilidade das cartas: os jogos de azar que, para vários psicólogos e historiadores, estão na origem de ciências como a matemática, o cálculo de probabilidades e até a topologia. A obra Os jogos e os homens, de Roger Caillois, é tida por Natali como uma peça-chave na compreensão do papel das cartas de jogar na sociedade. Embora se refira aos vários tipos de jogos existentes, Caillois traça denominadores comuns entre eles, a exemplo da facilidade, do risco, da habilidade, descontração e diversão. Ele explica que os jogos sempre aparecem margeando a organização da sociedade: “O espírito do jogo é uma das molas principais do desenvolvimento das mais altas manifestações culturais em cada sociedade e da educação moral e do progresso intelectual dos indivíduos.” Para Natali, as regras que conferem o equilíbrio existente num jogo de cartas podem ser comparadas à evolução da civilização, “que partiu de um universo rude para um universo organizado e administrado, baseado num sistema consistente e coerente onde os indivíduos têm direitos e deveres”.
PERSONAGEM CARTAS PARA ALICE Enorme interesse por jogos foi o de Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas. Tida como uma obra cheia de pequenas alegorias lógicas sobre a sociedade de sua época, sob o trono da Rainha Vitória, na Inglaterra do século 19, Alice… põe a protagonista diante de uma Rainha de Copas autoritária, que rege um exército de baralhos e vê na decapitação de seus súditos a solução para todos os problemas. A garota ainda vai parar num Tribunal de Cartas, que a julga de maneira simplista e duvidosa. Caroll utiliza o baralho, seu passatempo preferido, para criticar o reinado de Vitória, marcado pela repressão, moral puritana e pelo conservadorismo. “Ele teve o cuidado de relacionar os símbolos das cartas de baralho com sua função na sociedade. As cartas de espadas (spades, em inglês, que também significa pás) são jardineiros. As de paus, que no inglês clubs são sinônimo de ‘porrete’, são soldados. As de ouro (diamonds) são membros da corte e as de copas (no inglês hearts/coração) são as crianças reais. Seguindo essa lógica, a rainha de ‘coração’, explicou Carroll mais tarde, é a incorporação da paixão desgovernada”, analisou a jornalista Mariana Lucena, na revista Galileu. Dotado de lugar privilegiado no imaginário de várias gerações, Alice no País das Maravilhas traz as cartas de jogar num contexto de fantasia e nonsense que repercutiu na mente de crianças e adolescentes mais por meio da adaptação cinematográfica de Walt Disney do que pelas inúmeras versões de ilustrações que já foram feitas para o livro. A animação se tornou a principal memória relacionada ao baralho no campo do audiovisual. Porém, as cartas de jogar já estavam presentes no cinema desde que este era mudo. No curta Les cartes vivantes, de 1904, são expostas as habilidades de mágico e ilusionista George Méliès, diretor do filme, mais conhecido pelo clássico Viagem à Lua. Famoso por conta das apresentações no Theatre Robert Houdin, em Paris, Méliès resolve levar seus truques para as telas, numa produção descontraída e com enfoque no entretenimento fácil. Ele faz crescer cartas de baralho em suas mãos, depois as atira num grande painel, que se transforma numa reprodução gigante das cartas. Neste momento, as figuras do rei e da dama saem das cartas como personagens que adquirem vida própria. MARINA SUASSUNA
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CON CAPA TI NEN TE
A ANATOMIA DO BARALHO DE PADRÃO INTERNACIONAL Formado por 52 cartas de jogar em formato retangular pequeno (cerca de 6 cm x 8 cm), numeradas até 10, o baralho é dividido em quatro naipes, além das figuras reais do valete, da dama e do rei. De um lado da carta, a frente, estão estampados os números ou as letras e os naipes. No verso, conhecido como dorso, encontram-se normalmente arabescos ou imagens reproduzidas de forma idêntica em todo o conjunto de cartas. Este modelo ficou conhecido como padrão internacional e é jogado em várias partes do mundo.
Consiste na parte de trás da carta de baralho. Contém geralmente arabescos com motivos geométricos ou florais, contornados por molduras brancas. Também pode ser adaptado para exibir o nome do cliente que encomendou uma tiragem de baralhos ou reproduzir qualquer tipo de ilustração. Os dorsos devem ser idênticos, de modo a não permitir que os jogadores adivinhem por meio deles os valores das cartas.
NAIPE Termo utilizado para denominar os símbolos que são empregados para diferenciar as quatro séries de cartas. O naipe indica o grupo ao qual a carta pertence. Nos baralhos modernos, que seguem o padrão internacional, os naipes são: ouros para diamantes, copas para coração, espadas para folha e paus para trevo.
ÍNDICE Identificação da carta por meio do naipe ou caractere posicionado em seus cantos.
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DORSO
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JANIO SANTOS
CURINGA
J
A A
As cartas dos reis, rainhas e valetes homenagearam, em diversas ocasiões, personagens históricos e míticos. O rei mais destacado de todos, o de copas, foi retratado durante vários anos pela figura do rei Carlos Magno. Henrique III também assumiu o posto durante o século 17. O de ouros foi representado durante muito tempo por Júlio César; o de espadas, por Davi; e o de paus, por Alexandre, o Grande. Já as damas sempre homenagearam figuras mitológicas femininas como Judite, personagem bíblica libertadora de Israel, que figurou como rainha de copas. O mesmo lugar foi ocupado pela rainha Isabel, da Inglaterra, no século 17, e por Joana D’Arc, durante a Revolução Francesa. Raquel, esposa de Jacó, foi homenageada pela dama de ouros; a deusa grega Atenas, pela de espada; e Argine, um anagrama da palavra latina regina, que significa rainha, pela de paus. Principal escudeiro do Rei Artur na epopeia da Távola Redonda, Lancelot já ocupou o trono do valete de paus; Hector, também da Távola Redonda, o de ouros; Hogier, primo de Carlos Magno, o de espadas; e La Hire, o de copas.
A
Herança inglesa, o ás de espada é conhecido como a carta da morte, que traz azar no jogo, mau agouro. Adquiriu esse significado por ser tratar da carta que identificava o pagamento de impostos sobre o baralho na Inglaterra do século 18. A partir dela, as autoridades inglesas conseguiam identificar quando um baralho era falso, o que podia levar à morte.
FIGURAS REAIS O
ÁS DE ESPADA
J
K
É a carta mais importante do baralho, podendo simbolizar também o número 1.
E
O
E
ÁS
R
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Numa combinação de cartas, o curinga pode assumir o valor de qualquer outra carta do baralho, sendo considerado, por isso, especial. O personagem surgiu nos EUA, no século 19, como carta extra para os jogos de euchre, que havia sido introduzido naquele país pelos alemães, tornando-se bastante popular nos Estados Unidos, sendo, em síntese, um jogo de trapaças. Importante fabricante norteamericano de baralhos no século 19, Samuel Hart foi o primeiro que introduziu o curinga em seus baralhos para euchre, em 1865. Naquela época, ele o utilizou como carta extra, com a figura do valete, conhecido como Best Bower. O uso do bobo da corte, figura mais popularmente associada ao curinga, verifica-se só a partir do final do século 19 e início do século 20. Em muitas rodas de jogadores, também era usada como curinga uma carta adicional que continha o texto de garantia de compra do baralho. Alguns dizem que o curinga surgiu com base no Louco, uma carta do tarô. Nos baralhos da Copag, ficou famoso através da taça de bojo arredondado.
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COLÔNIA O Brasil dá as cartas
A relação do país com o carteado começa no século 18, ainda sob o jugo da Coroa, mas a popularização do jogo ocorre nos anos 1940, com os cassinos TEXTO Marina Suassuna
No Brasil, as primeiras tentativas
de impressão de cartas de jogar aconteceram nos tempos coloniais, de maneira clandestina, desafiando o monopólio de fabricação e venda exercido por Portugal desde 1769, ano da fundação da Real Fábrica de Cartas de Jogar, em Lisboa. Se, no Reino, a Real Fábrica ia de vento em popa, na
colônia, as autoridades portuguesas eram alertadas o tempo inteiro sobre falsificações. Há registros de apreensão de produções clandestinas em Pernambuco, no Rio de Janeiro e, principalmente, na Bahia. Em 1811, a Real Fábrica de Jogar se transferiu para o Brasil, sendo anexada à Impressão Régia, no Rio de Janeiro. A partir daí, entraram
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em circulação os primeiros baralhos produzidos no Brasil. Até a metade do século 19, predominaram as cartas com sistema de naipes latinos, geralmente catalão, que depois foram sendo alternados com os do sistema francês. Em ambos os casos, as cartas eram impressas em xilogravura e somente na cor preta, coloridas posteriormente à mão ou com a técnica de pochoir, conhecida no Brasil como estêncil. Com o fim do monopólio português em 1824, o Brasil começou a importar, inicialmente, baralhos da França e da Alemanha e, posteriormente, da Bélgica. Mas não demorou para que os primeiros produtores independentes de baralho surgissem. “Como capital do Império e centro econômico do país, o Rio de Janeiro passou a atrair imigrantes, entre eles técnicos gravadores, que deram mais qualidade ao que aqui se produzia”, aponta o colecionador e pesquisador de cartas de baralho José
Luiz Pagliari, autor do artigo Playing-cards in Brazil – An introduction. O Recife teve importante contribuição na consolidação do baralho brasileiro. No final do século 19, os fabricantes de cigarro Moreira & Cia. e Azevedo e Cia, instalados na capital pernambucana, passaram a aproveitar suas prensas litográficas para também imprimir cartas de jogar.
ANOS DOURADOS
Os anos 1940 ficaram marcados pelo esplendor dos cassinos brasileiros. Um dos mais famosos era o Cassino da Urca, no Rio de Janeiro, onde Carmem Miranda se apresentava. No Recife, destacou-se o Cassino Americano, na Praia de Boa Viagem. Era um período em que os jogos de cartas estavam largamente difundidos. “Não havia clube de grã-fino e de classe média que não tivesse suas salas de jogos”, conta Ignácio Loyola Brandão. “Foi um período
A década de 1940 ficou marcada pelos cassinos, nos quais os jogos de cartas eram largamente difundidos intensamente criativo na Copag, com baralhos personalizados para cassinos e com incremento na produção para empresas particulares” (leia mais sobre a empresa no box da página 33). Não foi por acaso que a Copag se tornou um dos principais fornecedores de baralhos para cassino na América Latina, posição consolidada até os dias de hoje. A empresa foi fornecedora oficial, por dois anos consecutivos, dos baralhos utilizados na maior série de torneios de jogos de pôquer do planeta, a World Series of Poker. Atualmente, a
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maior parte de sua produção se concentra em baralhos para essa modalidade de jogo, o texas holdem. No dia 30 de abril de 1946, o presidente marechal Eurico Gaspar Dutra assinou o decreto-lei 9.215, que proibia os estabelecimentos destinados à exploração dos jogos de azar em todo território nacional. Entende-se como jogo de azar aquele em que o ganho e a perda dependem exclusiva e principalmente da sorte. O argumento era de que esse tipo de jogo é degradante para o ser humano. O decreto-lei afetou o funcionamento e a dinâmica dos cassinos, que passaram a sofrer vigilância da polícia, muitos deles foram fechados. Embora envolva mais habilidade e raciocínio lógico do que sorte, o pôquer – praticado com cartas de baralho – acabou inserido no pacote de jogos de azar por ser bastante praticado em cassinos. “O cassino tem uma atmosfera de fascínio, a luz, a fumaça. Eu me sentia um pouco Al Capone. É um lugar que oferece todo um clima pra você se viciar”, declara o multiartista Paulo Bruscky, referindo-se ao gângster ítalo-americano que comandava uma rede de casas de jogos e pontos de apostas na década de 1920. Amante do pôquer, Bruscky frequentou cassinos nos anos 1980, quando viajava em transatlânticos pela Europa. “Eu não jogava o tempo inteiro. Era um passatempo da viagem. O pôquer é um jogo que não necessariamente causa vício. É um jogo inteligente, assim como o xadrez, e não apenas de sorte. Você tem que saber jogar.” Quando praticado de maneira perniciosa, o pôquer pode trazer prejuízos financeiros, o que acaba gerando uma impressão negativa do jogo. “Existem diferentes formas de se relacionar com o carteado: profissional, hobby, vício. É muito importante que quem quer que se envolva com o baralho tenha total ciência da sua relação com este. Papai perdeu muito dinheiro jogando cartas ao longo dos anos”, alerta o ator e músico Roberto Rossi, filho caçula do cantor Reginaldo Rossi que, durante muitos anos, praticou diversos jogos e carteado, com afinidade declarada pelo pôquer. Roberto conta que o hábito costumava ocupar o tempo livre do pai e as vindas ao Recife. “A relação dele com o baralho surgiu de reuniões com amigos;
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cada semana havia um encontro e um anfitrião. Penso que foi uma forma de ele estar com essas pessoas.” O fato do pôquer envolver apostas não impede que o jogo seja motivo de diversão. Paulo Bruscky desenvolveu o hábito desde a adolescência, mas sempre com cautela, para não desvalorizá-lo enquanto prática esportiva. “Não gosto de jogo alto. Eu jogo pra me divertir e não pra fazer disso um meio de vida”, afirma. “Quando garoto, a turma da minha rua, na Boa Vista, tinha um limite de comprar no caixa. Cada um comprava uma quantidade exata, um podia emprestar ao outro, mas não podia comprar mais, pra não gerar vício. Ainda hoje, o dinheiro que eu boto no bolso pra perder é uma quantia pequena, que não me faz falta.”
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5 FAMÍLIA LUNA Foi a matriarca, Dona Lia (à esq.), quem iniciou a tradição do jogo de cartas na família
BRIDGE NO CLUBE
Com a restrição aos cassinos, a aura de sofisticação que permeava o carteado neles praticado deu lugar ao despojamento dos clubes e dos ambientes familiares, que se tornaram os novos redutos dos jogos de baralho. De acordo com Ignácio Loyola Brandão, a produção de cartas aumentou em função do novo público, em sua maioria amador, para quem o jogo é divertimento. “Nos cassinos, os crupiês são profissionais, e nas mãos deles o baralho dura mais. O profissional não fica nervoso, não fica suando, não bebe, não tem a mão molhada, não come sanduíches gordurosos – tudo o que acontece numa casa, onde as coisas são informais, descontraídas. Fatores que arruínam um baralho e, consequentemente, demandam maior produção”, compara. No Recife, um dos grandes incentivadores da prática informal do carteado foi o engenheiro civil Fredi Maia. Falecido em 2009, aos 85 anos, Fredi presidiu por mais de 30 anos o Automóvel Clube de Pernambuco, que se tornou ponto de encontro da alta sociedade, durante as décadas de 1970 e 1980, para o jogo de bridge. Considerado um dos mais importantes jogos de raciocínio já inventados com o baralho, o bridge ganhou fôlego no Brasil a partir dos anos 1960, passando a concorrer com o tênis no ranking dos hobbies praticados pela aristocracia, sendo, portanto, um jogo permeado de glamour e distinção.
6 PAULO BRUSCKY Artista se diz um contumaz jogador de baralho COPAG 7 Baralho de nº 139 é o carro-chefe da mais antiga fábrica do produto do Brasil
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“O salão ficava repleto de mesas de bridge e era uma alegria só. As pessoas que se divertiam com o baralho no Automóvel Clube hoje estão velhas, muitas morreram e os jovens acham que o jogo é difícil”, comentou Fredi Maia, numa de suas últimas entrevistas, em 2006, concedida à jornalista Maíra Brandão, que escreveu uma reportagem especial para a Universidade Católica de Pernambuco sobre o assunto. Maia lhe contou que cerca de 120 pessoas, entre homens e mulheres, se reuniam regularmente na sede do Clube, ainda hoje localizado na Rua Padre Inglês, no Bairro da Boa Vista, para jogar bridge. Na época, foi o carteado que conseguiu, temporariamente, reerguer o local, quando a sociedade automobilística
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começou a decair. Era cobrada uma taxa de R$ 5 a quem quisesse jogar no clube. Até hoje, a maneira como o brasileiro lida com o baralho é baseada na informalidade. Uma pesquisa feita no país pela Alcântara Machado Periscinoto Comunicação (Almap), com 300 entrevistados, revelou que 79% deles apontam o baralho como uma forma barata de lazer, tendo em vista a sua praticidade, já que se pode jogar em qualquer lugar. Dos entrevistados, 68% preferem jogos que não impliquem em apostas, por considerarem o baralho uma prática relaxante, que não deve ser movida por tensão. Entre as motivações do jogo, foram apontadas não só a diversão, mas também a possibilidade de reunir
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COPAG TRADIÇÃO NACIONAL
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amigos. Quase 90% dos entrevistados afirmaram praticar o jogo nas próprias residências ou casas de amigos, além de clubes e casas de praias.
TRADIÇÃO DE FAMÍLIA
Para a designer paulista Priscila Farias, o baralho traz a lembrança de tardes quentes e chuvosas de verão, na praia, aprendendo a jogar buraco com a avó. Ela também se sente atraída pelos desenhos, que considera “quase perfeitamente simétricos”, além de serem motivo de debate em longas noites de competições e bons vinhos com amigos. “Oblíquas interpretações do futuro eram ensaiadas por amigas místicas: rei de copas como loiro galante, dama de espadas como falsa amiga morena e sete de ouros como rica herança inesperada.” Já a socióloga recifense Suzy Luna diz que nunca interpretou de maneira fantasiosa as figuras do baralho, aprendeu pequena a jogar como os adultos. Na família dela, o jogo de cartas é uma tradição familiar, introduzida pela avó, Dona Lia, hoje com 88 anos e ainda fissurada no jogo de canastra. “Ela me ensinou a jogar por volta dos meus 5
anos de idade, com todas as regras, e ficava bem chateada se a gente roubasse. Acho que por isso até hoje sou uma jogadora superchata. Nunca trapaceio. Pra mim, o grande lance era ser tratada como gente grande, não era uma brincadeira, tinha que jogar a sério.” Dona Lia enxergou no baralho, “ainda mocinha”, uma maneira de se distrair numa época em que a TV nem era cogitada como principal entretenimento dos lares brasileiros. Desde então, criou afeição pelas cartas e não abre mão de tê-las por perto sempre que a família se reúne. A matriarca não gosta de apostar, pois acredita que desvirtua o jogo, e atesta: “Quem rouba no jogo é porque não sabe jogar”. Em mais de 40 anos de prática, não lhe faltam histórias pra contar. “Eu prefiro passar o tempo jogando baralho do que estar na frente de um computador. A juventude de hoje não desenvolve certas habilidades, porque vai toda pro computador”, opina. Nunca lhe falta companhia na casa de praia da família, onde todos costumam se reunir em torno da jogatina. “Uma vez, na praia, amanheceu o dia e nem me dei conta de tanto que eu joguei.”
Não se pode falar da história do baralho no Brasil sem citar a Copag, sigla da Companhia Paulista de Papéis e Artes Gráficas, cuja trajetória se mistura com o desenvolvimento do próprio baralho, além de ter enorme contribuição para o design de cartas de jogar. Fundada em 1908, em São Paulo, por Albino Dias Gonçalves, a Copag é a mais antiga fábrica brasileira de baralhos ainda em atividade. Inicialmente, produzia itens de papelaria como envelopes e blocos e papel. Aos poucos, começou a se dedicar à importação e distribuição de baralhos europeus, até que assumiu produção própria já com as prensas litográficas. Os registros mais antigos dos baralhos produzidos pela companhia datam de 1920. Nesta década, a empresa comercializava nove modelos de baralho. Segundo a pesquisa da designer gráfica e professora da USP Priscila Farias para o livro O design brasileiro antes do design, essa variedade diminuiu ao longo da década, passando a uma média de cinco modelos. A produção voltou a aumentar em 1930, quando foram adquiridas máquinas para impressão ofsete, que possibilitaram a produção de baralhos fantasias, aqueles considerados fora dos padrões para jogos, geralmente ilustrados por artistas gráficos. Nessa época, também houve investimento nos modelos sob encomenda para cassinos, associações e empresas, chegando a cerca de 20 modelos por volta de 1940. O baralho mais famoso da Copag, que se tornou o carro-chefe da empresa é o de n°139, no padrão francês internacional. Criado em 1923, é até hoje um dos modelos mais vendidos pela companhia, sendo também o baralho brasileiro mais antigo em circulação. Não é por acaso que se tornou o baralho preferido dos jogadores profissionais, o que rendeu à Copag, nos anos 1970, em Londres, o título de Melhor Baralho do Mundo na Convenção Internacional dos Fabricantes de Cartas para Jogar. “Para os brasileiros, especialmente os paulistas, nascidos na segunda metade do século 20, a predominância dos baralhos da Copag, e em particular de seu modelo n°139, é tão imponente, que muitos certamente se surpreenderiam ao saber que há curingas diferentes de taças com bojo arredondado e que nem todos os reis de paus têm o mesmo desenho”, aponta Priscila Farias. Figura mais famosa da Copag, o curinga se tornou símbolo memorável da empresa. Para a pesquisadora, a “imponência barroca” e a “dignidade retrô” da tradicional taça de bojo arredondado que ilustra a carta são até hoje “inabaláveis”. Além dos motivos florais, a taça traz inscrita em sua haste a figura que celebra a identidade da empresa: o cavaleiro de lança com o escudo da Copag. Diferentes modelos do joker foram explorados pela empresa ao longo dos anos. Um deles se tratava de uma carta adicional, que trazia informações sobre a garantia de compra do baralho. Nos anos 1940, os baralhos de modelos Mascotte, Mirim e Popular traziam-no com a ilustração de um garoto negro em trajes populares, dançando de braços levantados. Mas nenhum curinga se tornou tão célebre como o da taça de bojo arredondado, sendo utilizado até hoje na maioria dos baralhos da empresa. Para Ignácio Loyola Brandão, uma das peculiaridades das cartas produzidas pela Copag era também o seu dorso atraente, tido como uma arte fundamental do baralho. “Ele trazia desenhos geométricos ou arabescos com flores e folhas, dentro de uma pequena margem branca não impressa. Além disso, trabalhava-se com cartões cuchê vindos da Suécia, Finlândia e Noruega. Na chamada copiagem (pré-impressão), usavam-se pedras litográficas francesas. Para o acerto de cores, os cartões entravam nas máquinas cinco vezes. O processo, portanto, era lento”, explica o jornalista. “A cada mês, saíam da Copag entre 10 e 12 grosas de baralho, ou seja, 1.444 e 1.728 maços.” (MS)
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ARTE Para além do jogo, a beleza das cartas
Desde o século 15, esses objetos lúdicos servem à criação artística, estando presentes em obras de caráter figurativo e, sobretudo, gráfico
Três homens estão concentrados
num jogo de cartas. A presença de mais pessoas no ambiente parece não despertar interesse em nenhum deles, o que reforça ainda mais o protagonismo do carteado naquele contexto. Esse é o tema do segundo quadro mais caro do mundo, assinado pelo pintor francês impressionista Paul Cézanne. Comprada em 2011 pela família real do Catar, por US$ 250 milhões, a pintura a óleo, que antes era propriedade do magnata grego George Embiricos, é uma das cinco versões que compõem a série Os jogadores
de cartas, criada por Cézanne entre 1890 e 1895. As outras quatro se encontram em grandes museus do mundo, como o Metropolitan Museum of Art, de Nova York; o Courtauld, de Londres; o Musée d’Orsay, de Paris; e a Barnes Foundation, na Filadélfia. Segundo historiadores, o diferencial da obra de Cézanne é justamente a atmosfera de silêncio e concentração na qual os jogadores estão inseridos, característica que vai na contramão da escola francesa de pintura, acostumada a retratar jogos de cartas
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de forma frívola, com personagens ruidosos em torno de uma mesa, bebendo, tocando, discutindo. “Se olharmos para a história de arte, veremos que o baralho sempre esteve presente. Picasso e Matisse foram alguns dos pintores que exploraram esse elemento. Em suas pinturas de natureza morta, Vicente do Rego Monteiro sempre inseria uma carta de baralho sobre a mesa”, aponta o artista plástico Paulo Bruscky. Ele é responsável, junto com os jornalistas Mário Hélio e Ronildo Maia Leite, pela reedição do livro Cartomancie, de Vicente do Rego Monteiro, que traz pequenos poemas visuais em papel e formato de cartas de baralho. A iniciativa do trio foi uma radicalização da ideia que já estava prevista por Rego Monteiro desde a edição princeps (primeira impressão de uma obra), lançada em Paris, em 1952: a correlação da poesia com a visualidade. Para Bruscky, a reedição reforça não só a influência concretista do amigo poeta, como também a vocação do carteado tanto para o jogo como para a arte. “As cartas de baralho têm essa magia para além do jogo. São graficamente
riquíssimas. Tanto é que a proposta de Vicente era que os poemas fossem lidos enquanto se jogava com as cartas. Eles não tinham uma sequência lógica de leitura”, diz o artista pernambucano, que também teve seu momento de criação influenciado pelo carteado. No final dos anos 1970, Bruscky encontrou na rua um ás de ouro, considerada a carta de maior valor no jogo de pôquer, do qual é jogador assíduo. A tendência do baralho para a contemplação artística tem suas raízes desde que as cartas chegaram à Europa, no século 15. Feitas à mão, elas eram pintadas em várias cores e enriquecidas com ouro e relevo. A diplomação do mestre de cartas, tido como responsável pela pintura manual, só vinha após o aspirante ter criado um desenho que os guardiões do ofício julgassem uma obra-prima. Um exemplar de grande popularidade naquele período foi o de Visconti-Sforza, considerado um dos mais completos e antigos baralhos de tarô de que se tem notícia. Seus cartões eram pintados com guache em cores brilhantes e traziam ornamentações baseadas em manuscritos medievais. O exemplar foi produzido por encomenda do Duque de Milão, Filippo Maria Visconti, para celebrar a união de sua família com os Sforza, por meio do casamento de Bianca Maria Visconti com o Duque Francesco Sforza. A maioria dos estudiosos credita a autoria da carta ao pintor Bonifácio Bembo, atuante em várias cidades italianas na época e contratado para trabalhar na corte Sforza. Uma de suas características era o uso abundante de folhas de ouro e prata. Hoje em dia, parte do baralho Visconti-Sforza se encontra na Academia Carrara de Bérgamo e outra parte na Morgan Library, de Nova York.
BARALHOS FANTASIA
É grande o número de artistas, ilustradores e gravadores que fazem da carta de baralho um suporte para sua criatividade, transformando-a numa verdadeira peça de arte gráfica. Projetados fora do padrão internacional, esses carteados são conhecidos como baralhos fantasia, por serem feitos com total liberdade e desprendimento, tanto na estrutura dos naipes como nas ilustrações, além de se prestarem a várias finalidades. “Tais baralhos
superam o objetivo de servirem a um determinado jogo, correspondendo ao registro do talento individual de artistas que contribuíram para novas concepções de baralho”, aponta Armando Serra Negra, no livro O que é baralho. Outra particularidade dos baralhos fantasia é que cada edição é única. Com exceção das reedições, seu desenho não é repetido, por se tratar, na maioria das vezes, de concepções relativamente complexas, ao contrário dos baralhos no modelo padrão, fabricados com o propósito de serem usados para jogos e, por isso, terem seus desenhos copiados por vários fabricantes, que usam as mesmas características básicas. Em alguns casos, os baralhos artísticos são tidos como itens de colecionador, não apropriados para manipulação pelo seu valor histórico. É o caso do EPOC, releitura artística do baralho internacional criada pela arquiteta e artista plástica paulistana Leonor Décourt, em 2004. Considerado um best-seller mundial, o EPOC é peça recorrente no acervo dos museus de baralho da Europa. Leonor batizou o exemplar com as inicias de cada naipe
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8 OS JOGADORES... ... de cartas é a segunda tela mais cara do mundo
9 DALÍ Pintor surrealista criou um jogo de 78 peças de tarô
Ao longo dos séculos, artistas, ilustradores e gravadores vêm utilizando a carta de baralho como suporte para a criatividade
2012, quando terminou o nosso contrato. Foi um tempo grande de edição”, conta Leonor, que já havia desenvolvido um baralho artístico em 1976. “Meu relacionamento e manejo com as cartas de baralho sempre foi muito fácil. Desde pequena ele esteve entre meus brinquedos favoritos. Meu pai era mágico, e fazia truques com baralho.”
do sistema francês: Espadas, Paus, Ouro e Copas. Uma das referências de Leonor, que elaborou o design em fundo preto, foram os baralhos de transformação. Trata-se de uma modalidade de baralho ilustrado que se tornou comum no século 19, no qual os símbolos dos naipes se integram à ilustração de cada carta. Um artifício parecido com esse também foi utilizado em algumas ilustrações do livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. “Procurei a Copag para saber quanto seria o custo de uma edição e, para minha surpresa e alegria, a própria empresa se ofereceu para editar e distribuir o baralho. Durante oito anos, o EPOC foi distribuído no Brasil e no exterior. Ele parou de ser editado em
Uma iniciativa que tem enchido os olhos dos jogadores apaixonados por arte é o Projeto 54, idealizado pela loja de camisetas El Cabriton, localizada em São Paulo. Trata-se de um jogo de cartas ilustrado por 54 designers brasileiros convidados, com impressão da Copag. Cada carta é desenhada por um artista diferente, de forma totalmente livre e autoral. Desde a primeira edição, em 2010, já participaram do projeto, que acontece anualmente, mais de 270 ilustradores, designers e artistas plásticos. Entre eles, esteve a dupla de ilustradores pernambucanos Raone Ferreira e Fernando Moraez, que assinava artisticamente como Imarginal, alcunha que hoje pertence somente a Fernando. Na época, os artistas criaram
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CARTAS ASSINADAS
CON CAPA TI NEN TE o ás de paus, espelhados no significado que a carta adquiriu no baralho de tarô, misturando o Surrealismo às técnicas de pontilhismo e tracejado monocromático que lhe são peculiares. “Fizemos um desenho que simboliza a dualidade e o reinício humano, já que, no tarô, o ás de paus representa um reinício de ciclos ou novas ideias”, comenta Raone Ferreira. Muitas versões artísticas de baralhos foram desenvolvidas com inspiração nas cartas de tarô, por se tratar de um carteado cuja imagem tem grande apelo simbólico. A linguagem metafórica e a subjetividade com que o tarô interpreta a realidade atrai os artistas que se afinam com o Simbolismo, corrente artística que privilegia o imaginário e a fantasia, a ligação entre o mundo material e o espiritual, sendo uma das precursoras do movimento surrealista. Assim, as cartas de tarô acabam sendo terreno fértil para a criação artística por meio do Simbolismo, que se caracteriza, sobretudo, pelo estilo decorativo e ornamental. Um dos registros mais icônicos dessa influência é o baralho de tarô criado por Salvador Dalí, em 1971, considerado um estojo de luxo, com cartas ilustradas com guache e aquarela, e as bordas douradas. “Cada carta é composta por colagens, atributos de outros quadros, pinceladas enérgicas e pela própria assinatura do artista. É um trabalho estupendo, mostrando ao mesmo tempo a técnica e o conhecimento simbólico do autor. O próprio Dalí está representado nestas lâminas, como um autorretrato simbólico atestando sua genialidade. Vemos o artista
no Mago (Arcano I) e no Rei de Ouros. As demais cartas misturam quadros e retratos em colagens arrojadas e vanguardistas como o próprio autor. Adquirir esse baralho é adquirir uma obra de arte em 78 imagens, e desafiar-se a conhecer um arcabouço simbólico sem fronteiras”, descreve a apresentação ao deck do catalão. Não se pode perder de vista o Toth Tarot, ilustrado por Lady Frieda Harris, a pedido do ocultista Aleister Crowley, tido como o responsável por difundir o caráter esotérico dessas cartas. O exemplar levou cinco anos para ser concluído, de 1938 a 1943, devido ao perfeccionismo e à intensa pesquisa desenvolvida pelos dois. Diz-se que algumas das cartas foram refeitas oito vezes. Harris explorou extensivamente nas lâminas um modelo artístico conhecido como traçado de bordas, sugerindo estética surrealista baseada no misticismo e no uso de oráculos. Para atingir esse resultado, abriu mão de expressões faciais humanas e deixou a cargo de símbolos, cores e formas a transmissão dos conceitos. A forte composição e combinação de cores é uma das características marcantes das cartas criadas por Harris. Os originais foram desenhados em aquarela com materiais de baixa qualidade, por causa da dificuldade que predominava na época devido à Segunda Guerra Mundial. Outro exemplar de rara beleza é o Gaignières Tarot, considerado valiosíssimo, que hoje se encontra no Museu da Biblioteca Municipal de Paris, com apenas 17 peças remanescentes. MARINA SUASSUNA
TARÔ Cartas na mesa para o jogo da previsão
O baralho com fins divinatórios encontrou mais respeitado uso no campo da interpretação de símbolos arquetípicos REPRODUÇÃO
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GABRIEL MELO/DIVULGAÇÃO
10 MARSELHA Baralho do século 15 mantém-se popular entre tarólogos
Cerca de 60 anos após as primeiras
referências às cartas de jogar na Europa, os europeus do norte da Itália adicionaram ao baralho comum 22 lâminas, que traziam iconografia típica da época, com imagens que representavam arquétipos naturais e humanos, como a Justiça, a Força, o Sol, a Lua, o Imperador, o Louco, a Sacerdotisa. Ao grupo de cartas figurativas deu-se o nome de arcanos maiores, principal diferencial do baralho divinatório conhecido como tarô. O mais antigo dos tarôs em uso é o de Marselha, tido como o mais popular de todos desde o século 15, portanto, um baralho clássico. Totalizando 78 cartas, o Tarô de Marselha é dividido em dois grupos. Além dos arcanos maiores, há o conjunto dos arcanos menores, um total de 56. A partir do século 18, os arcanos maiores passaram a ser vistos como cartas emblemáticas, dotadas de saberes ocultos que representavam situações e virtudes. A compreensão metafísica dessas lâminas transformouas em instrumentos de leitura de sorte e previsão do futuro, utilização que se tornou extensiva a partir do cartomante francês Jean-Baptiste Alliette, que se autodenominou Etteilla, pseudônimo escrito propositalmente ao contrário. Com ele, o tarô passou a integrar o cerne do esoterismo moderno, assim como a cabala, a astrologia e a alquimia medieval. Importante como instrumento de uma série de jogos, o baralho de tarô, segundo estudiosos, poderia ter adquirido mais prestígio com seus jogos do que o pôquer e o bridge, não fosse a falta de conhecimento a seu respeito em países como Inglaterra e Espanha, que poderiam ter feito sua difusão nas colônias. Com exceção das Ilhas Britânicas e da Espanha, em todos os países europeus os jogos com tarô ainda são extensivamente praticados. Na cidade de Viena, na Áustria, por exemplo, é comum encontrar sob a mesa dos cafés populares, ou até mesmo pedir ao garçom, maços de tarô para se jogar com amigos. Na França, há uma federação de tarô, que regulamenta e promove competições desse jogo em todo o país. “Nós aqui, no Brasil, somos a região na qual o tarô chegou mais como oculto. Nossos jogos mais
11 IVAN FERREIRA ”Com os arcanos, o cliente encontra tradução para o que sente”, diz o arteterapeuta
O tarô está ligado ao campo do autoconhecimento psicanalítico, devido ao seu alto grau de simbolismo tradicionais e populares com baralhos, como buraco, truco, caxeta, sueca, entre outros, utilizam baralhos normais, sem os trunfos que caracterizam os tarôs”, explica o pesquisador Cláudio Décourt (leia entrevista com ele a seguir).
ARCANOS E O INCONSCIENTE
Uma linha de conhecimento à qual o tarô está ligado é o campo do autoconhecimento psicanalítico. Devido ao elevado grau de simbolismo dos arcanos maiores, esse conjunto de cartas foi alvo de estudo do importante investigador da psicanálise do século 20, Carl Jung. Para ele, o tarô é um dos mais poderosos instrumentos de acesso e compreensão do inconsciente humano. Todas as experiências do homem estariam de certa forma condensadas em seus arcanos maiores, funcionando como arquétipos do mundo ocidental. Tarólogos e terapeutas holísticos são os profissionais que facilitam processos de autoconhecimento a partir do tarô. As cartas são compreendidas por eles numa
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concepção ligada à psi, ao inconsciente coletivo e à sincronicidade. “O tarólogo, na perspectiva junguiana, não interpreta os símbolos, utiliza os arcanos maiores enquanto força catalisadora, para que o próprio cliente descubra em que rede de símbolos o inconsciente encontra espaço através das lâminas para se apresentar. É uma técnica que se torna uma chave importante, quando bem-utilizada. Muitas vezes, o cliente chega ao atendimento sem conseguir falar uma palavra e é com os arcanos que encontra a tradução para como está se sentindo”, explica o arteterapeuta Ivan Ferreira, que há três anos realiza atendimentos individuais e em grupos facilitados pelo tarô. Articulador do portal Clube do Tarô, referência na área de linguagens simbólicas, Constantino Riemma chama a atenção para o tarô aplicado na cartomancia popular, prática desenvolvida de maneira sensitiva pelas avós, tias, benzedeiras e parteiras para a percepção do outro na convivência diária entre grupos sociais restritos. “Quando penso nas pequenas comunidades que eu frequentava quando criança, a cartomancia era um recurso utilizado por aquelas mulheres para transmitir experiência e aconselhar sem nenhuma manipulação. Porém, essa prática foi apropriada por mal-intencionados. Isso não quer dizer que todo mundo
CON CAPA TI NEN TE LA CARTOMANCIENNE, PAUL RINK/REPRODUÇÃO
Entrevista
CLÁUDIO DÉCOURT “OS OBJETIVOS DOS MÁGICOS E DOS TRAPACEIROS COM CARTAS SÃO MUITO DISTINTOS”
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12 CARTOMANTE Tela de 1898 retrata o uso do baralho para adivinhações
que mexa com o tarô nessa linha seja maldoso. Mas muitos passaram a explorar essa prática comercialmente, de forma desonesta, depois que a lei que proibia a cartomancia foi revogada, pois deixou de existir qualquer restrição.” Riemma acredita que muito da propaganda enganosa existente se deve também a uma forte demanda popular por previsões. “Existe uma necessidade humana sobre o que vai acontecer em nossas vidas, o que o futuro nos reserva. Só que o indivíduo precisa refletir sobre o profissional mais adequado a quem deve recorrer, se um psicólogo, um cartomante, um orientador espiritual ou qualquer outro.” Assim como toda arte humana que integra diferentes níveis de aplicação e conhecimento, como o racional, o sensível e o prático, a arte divinatória do tarô está longe do consenso. “Ele vem de uma informalidade meio subterrânea, malvista. Ao mesmo tempo, é extremamente rico”, observa Riemma. “As cartas do tarô, quer sejam encaradas como ferramentas para predição do futuro, quer sejam usadas como instrumento lúdico ou ainda como forma de autoconhecimento psicanalítico, contam uma história simbólica pela imagem”, define Carlos Santa Rosa, em sua pesquisa Cartas marcadas – Multimodalidade discursiva e transitividade em baralhos de tarô. (MS)
Colecionador e estudioso das cartas de baralho por mais de 40 anos, Cláudio Décourt presidiu, de 2004 a 2008, a International Playing Card Society – IPCS, entidade com sede na Inglaterra que reúne colecionadores e pesquisadores sobre baralhos de todo o mundo. Entre os seus temas de interesse, está a cartomagia, tendo se formado no CEMA – Centro de Estudos Mágicos, uma das mais importantes sociedades mágicas que existiram no Brasil, nos anos 1960. Há cerca de oito anos, é integrante do Grupo de Estudos Mágicos Misdirection, em São Paulo. Desde o final da década de 1960, iniciou uma coleção de baralhos que não se esgota, com lugar especial para as cartas de mágica. Atualmente, possui uma biblioteca particular com uma média de 400 livros sobre o tema. CONTINENTE Em que contexto as cartas de baralho passaram a ser utilizadas para truques de mágica? CLÁUDIO DÉCOURT Como é sabido, baralhos foram inventados para a prática de jogos. Nesse universo, temos jogos ditos “de salão” e os jogos “de aposta” ou “de azar”. Esses últimos envolvem o ganho financeiro dos vencedores das partidas jogadas. Em ambas as práticas, parte do sucesso em sair vitorioso depende da sorte de cada jogador conseguir cartas que possibilitem sua vitória. Por essa razão, jogadores/ apostadores desenvolveram prontamente métodos para “corrigir a sorte”. Em palavras mais diretas e menos elegantes, passaram a desenvolver
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métodos de trapaça, fazendo com que cartas passassem a ser dirigidas a eles não de forma aleatória, mas viciada, conveniente à sua vitória. As técnicas usadas pelos trapaceiros nesses jogos passaram, em pouco tempo, a ser utilizadas para produzir feitos extraordinários com as cartas, em que o efeito “mágico” é que encantava as pessoas, sem nenhuma ligação com qualquer jogo. A semelhança de técnicas, no entanto, é notável. Logo, esses pioneiros ilusionistas com cartas de jogar perceberam que o baralho, além de ser um instrumento ideal para trapaças, pelo tamanho e por outras características físicas, também era excelente objeto para magias. Pode-se dizer que o baralho se tornou uma ferramenta para mágicas quase simultaneamente ao seu surgimento como instrumento de jogo. Uma diferença fundamental entre as duas aplicações é que, nas mágicas, o efeito é visível, ou seja, os espectadores veem que uma carta trocou de valor por outra. Enquanto, em jogos, os adversários do trapaceiro não podem perceber a troca de cartas, sob pena de ter que pagar de forma exemplar, o que em várias oportunidades significou a própria vida. Mas, em ambos os casos, o procedimento usado para transformar as cartas é desconhecido do público e dos outros jogadores. São utilizados praticamente os mesmos meios, nas duas aplicações. Primitivos livros de mágica com baralho – como Giochi di carte bellissimi di regola e di memoria, escrito por Horatio Galasso e editado em Veneza em 1593 – incluíam tanto números de mágicas como manobras de “correção de sorte”, eufemismo que significa simplesmente trapaça. Iniciou-se, dessa forma, uma permanente “transferência de tecnologia” entre trapaceiros e mágicos, prática que persiste até hoje. CONTINENTE Em algum momento da história a associação entre mágica e trapaça comprometeu o prestígio e a credibilidade da cartomagia? CLÁUDIO DÉCOURT De fato, essa é uma questão delicada. Mas a troca de técnicas e informações é um fato.
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intrinsecamente bom pode ser usado para o mal ou como imagem dele. Mágicos não são exceções.
Na minha visão, não há nenhum comprometimento aos mágicos, porque estamos falando de métodos, não de objetivos. Os objetivos dos mágicos e dos trapaceiros com cartas são muito distintos. O primeiro leva diversão, divertimento às pessoas; o segundo usa de artifícios para ter vantagens fraudulentas em jogos. O primeiro tem uma atividade digna. O segundo, não. Assim, embora sejam utilizados métodos muito semelhantes nas duas, pareceme que o julgamento moral que poderíamos fazer delas é muito diferente. Uma comparação que me ocorre se relaciona com a tecnologia aeronáutica, por exemplo. Muito da tecnologia militar, que sempre pode ser criticada por seus efeitos nefastos, é aplicada no desenvolvimento de aviões civis, usados no transporte de pessoas, na assistência médica e social em lugares de difícil acesso, enfim, em várias atividades nobres. A tecnologia de produção é a mesma, mas os objetivos de utilização são
“O baralho se tornou um instrumento para mágicas quase de forma simultânea ao uso como objeto de jogo” diametralmente opostos. Pareceme difícil distinguir algo que seja puramente politicamente correto em todos os seus aspectos. Sempre algo bom pode ser usado para o mal. Ou vice-versa, como no caso de magia e trapaça. A origem foi a trapaça, mas as mesmas técnicas acabaram criando um tipo de divertimento que traz alegria às pessoas. A visão genérica de que o mágico pode ser um trapaceiro é usada em alguns casos. Há, por exemplo, filmes classe B nos quais o mágico é o bandido ou assassino. Mas outros tipos de personagens também personificam bandidos e assassinos. Sempre algo
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CONTINENTE Como identificar se um baralho é apropriado para a mágica? CLÁUDIO DÉCOURT Mágicos utilizam baralhos comuns, comprados em qualquer loja e usados para jogos. Como característica principal, é importante que sejam de boa qualidade, com cartas não transparentes, bom deslizamento, espessura adequada, identificação de valores de fácil distinção, bem-impressas, com dorsos bemcentralizados, armazenados em estojos também de boa qualidade, além de outros detalhes de fabricação. Atualmente, o baralho mais popular usado por mágicos em todo o mundo é da marca Bicycle, criada no final do século 19 e fabricada até hoje pela United States Playing Card Co., um dos maiores fabricantes de baralhos do mundo. O dorso conhecido como Rider Back, mostrando anjos em bicicletas é a marca registrada de praticamente todo mágico contemporâneo especializado em baralhos. Vários fabricantes e editores de baralhos têm tentado, ainda sem sucesso, substituir o famoso Bicycle Rider Back por suas marcas tradicionais. No entanto, na prática, a maioria dessas outras marcas pode ser utilizada sem problemas e com absoluto sucesso em números de mágica. CONTINENTE O que leva as pessoas leigas a confundirem mágica com tarô? Como elas podem diferenciá-los? CLÁUDIO DÉCOURT A prática de leitura de sorte e outras aplicações esotéricas do tarô, que poderiam ser associadas à mágica em seu sentido místico, nada tem a ver com a mágica como arte de espetáculo, baseadas em artifícios, artimanhas e subterfúgios usados habilmente com o objetivo exclusivo de criarem em seus espectadores a ilusão de se fazer coisas impossíveis. Tratase aqui de uma ilusão, embora existam alguns poucos mágicos que utilizam baralhos do tipo tarô para suas apresentações. Mas isso é muito raro.
ARTE SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
Conexão
STREAMING Quadrinhos na tela
Aplicativos de leitura, como o Cosmic, o Social Comics e o Comix Trip, chegam ao Brasil oferecendo suporte aos amantes das HQs e buscando conquistar novos públicos TEXTO Paulo Floro
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chegam quase simultaneamente ao mercado brasileiro. Essas novas plataformas de leitura fazem parte de um fenômeno recente nos quadrinhos em todo o mundo. A mídia das HQs chegou depois, em relação às novas possibilidades do entretenimento digital, quando hoje já existem empresas de sucesso como Netflix, no audiovisual, e Spotify e Deezer, no mercado de músicas. Os aplicativos de quadrinhos buscam a mesma mecânica: uma grande oferta de títulos por um preço relativamente baixo de assinatura. O usuário consome aquele produto quando quiser e ainda pode compartilhar suas impressões nas redes sociais. Um dos novos apps é o Cosmic (intocosmic. com), criado por empreendedores do Ceará. Ao custo de R$ 15,90, o usuário pode ter acesso a cerca de 50 títulos iniciais e usar o leitor para conhecer outras HQs que
A leitura de HQs sempre esteve ligada ao suporte papel. Agora, há a busca de sua maior difusão A leitura de quadrinhos sempre
esteve ligada a uma experiência intrínseca com o suporte físico no qual as histórias estavam impressas. A materialidade do papel, o tamanho das páginas, o percurso dos olhos na leitura dos quadros. O grande mestre Will Eisner (1917-2005), que publicou livros teóricos sobre HQs em uma época sem o domínio da internet, escreveu a respeito da comunicação bastante interativa dos quadrinhos e seu potencial expressivo. “As histórias em quadrinhos comunicam numa ‘linguagem’ que se vale da experiência visual comum ao criador e ao público”, registrou Eisner, em 1999. Agora, eis que leitores e autores buscam uma nova experiência de leitura com a disponibilização dos serviços de streaming de histórias em quadrinhos e aplicativos de leitura, como o Cosmic, Social Comics e o Comix Trip, que
estejam salvas no dispositivo, seja computador, smartphone ou tablet. “O Netflix é uma referência importante pra gente, pois ele conseguiu marcar uma posição dentro do audiovisual, além de resolver uma questão de circulação”, afirmou o CEO Ramon Cavalcanti à Continente, em seu estande no mesmo Festival Internacional de Quadrinhos, em Belo Horizonte. O evento, o maior da América Latina, deu destaque em 2015 às novas tecnologias voltadas à arte serial. A criação do Cosmic se deu após diversas tentativas de vencer dificuldades inerentes à produção do meio, em geral bem caras. Os sóciosfundadores do aplicativo, Ramon e George Pedrosa, são quadrinistas e sentiram na pele os empecilhos de custear e distribuir seus trabalhos. “Os custos de distribuição e impressão, hoje, são altíssimos. E, ao final de toda a cadeia, o autor não é bem-
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remunerado. Com o Cosmic, esperamos mudar esse cenário, barateando a produção e pagando melhor os criadores”, disse. No modelo de negócios da empresa, o aplicativo fica com 30% do valor da assinatura e o autor, com 70%. Além disso, há um algoritmo que identifica quais títulos são mais lidos, o que pode aumentar a remuneração. “Queremos que os quadrinistas engajem seus leitores em nossa plataforma, o que gera uma ligação direta entre quem está consumindo e o autor.” A expectativa é que cinco a seis títulos sejam lançados por semana. Entre os autores já disponíveis, estão nomes importantes do cenário atual, como Pedro Cobiaco (e seu delicado Harmatã) e o paraibano Shiko, com Marginal. Outro aplicativo com boa repercussão é o Social Comics (socialcomics.com.br, para android e iOS), criado em São Paulo pelos mesmos organizadores do Comic Con Experience, maior evento de cultura pop do Brasil. Ele chega ao mercado com um acervo de 800 títulos e parcerias com grandes editoras, como a JBC, Devir e Mythos, afora produtoras e autores independentes. “Além de criar um serviço de assinatura de quadrinhos, a grande sacada do Social Comics está na habilidade do trabalho realizado junto aos artistas, às empresas do ramo e, principalmente, aos fãs de HQs. Essa expertise é o que nos distingue”, disse João Paulo Sette, CEO do Social Comics, por e-mail. Apostando em uma demanda reprimida de consumo digital de HQs, a expectativa é chegar a 10 mil usuários até 2016. O valor da assinatura é de R$ 19,90 com 14 dias de degustação gratuita. A plataforma também funcionará para o lançamento de autores, outra benesse trazida por essa popularização do streaming. “Se um autor ou grupo de artistas não conta com editora, nosso serviço funciona como uma ferramenta de divulgação e rentabilização de seu trabalho criativo”, explicou João Paulo. Entre os autores no app estão Mike Deodato, Daniel HDR, o coletivo Quad Comics, e os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá. O paulista ComixTrip (comixtrip.
FOTOS: DIVULGAÇÃO
1 SEM VALOR Webcomic de Diego Sanches está no site do coletivo Quad Comics
Conexão
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com.br) tem como diferencial o foco no quadrinho nacional. O seu criador, Alexandre Montadon, também quadrinista, coloca como missão o desafio de popularizar as HQs para quem não é leitor habitual ou colecionador. Dono da Qualidade em Quadrinhos Editora, voltada para obras didáticas e institucionais, sua experiência na área digital se deu após criar um aplicativo de leitura a pedido do Sebrae. Deu tão certo, que ele decidiu investir em algo parecido para dar mais visibilidade aos títulos brasileiros de quadrinhos. “O sonho da gente é levar quadrinhos para 100 mil pessoas. Acredito que os aplicativos de streaming são a forma mais viável,
a médio prazo, de conseguir fazer isso. No impresso ainda é bem difícil chegar a essa tiragem.”
LÓGICA DE MERCADO
Ainda que as editoras não divulguem números consolidados de tiragens e vendas, é possível perceber esse mercado bem-aquecido pelo número de novos títulos que chegam às bancas e livrarias. No FIQ, que aconteceu em novembro de 2015, o número de autores lançando novas obras havia triplicado em relação aos dois anos anteriores. No entanto, o mercado não consegue acompanhar esse crescimento do número de leitores. E as obras não param de aumentar de preço. Um dos motivos
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diz respeito justamente às baixas tiragens, preço do papel em alta e custos de distribuição e logística. Para enfrentar essa barreira, os autores foram em busca de uma nova lógica de mercado. A primeira solução encontrada foi o financiamento coletivo, em plataformas como o Catarse e o Kickante. Autores mostravam seu trabalho e leitores compravam o título como uma espécie de pré-venda. Se o projeto fosse bemsucedido, a produção era iniciada e todos os apoiadores ganhavam o livro e outras recompensas. Em caso contrário, todo mundo que investiu recebia o dinheiro de volta. Esse modelo mostrou o potencial do quadrinho autoral e chamou a atenção de editoras, que foram atrás desses novos nomes para aumentar o alcance com o lançamento em livrarias. Apenas o Catarse (catarse.me) chega a ter 50 projetos simultaneamente em busca de financiamento. O streaming representa um segundo momento nessa busca de um maior alcance dos quadrinhos no Brasil. Para os criadores dos aplicativos de streaming, o público-leitor brasileiro de HQ ainda está longe do seu potencial. “Existe um público grande que gosta de histórias boas e é nele que devemos apostar. Digo isso porque minha editora já vendeu mais de 6 milhões de obras para quem não lê quadrinhos”, afirmou Moldanon, em seu estande no FIQ. “Outra grande sacada do streaming é cobrar um preço que você nem sente no final do mês e ter acesso a um grande volume direcionado aos seus gostos. Desse jeito, conseguiremos chegar a quem ainda não lê HQs de forma habitual”, disse Ramon, do Cosmic. E a experiência do papel, supostamente bastante relacionada aos quadrinhos? “O streaming não chega para substituir a HQ de papel, é apenas uma nova experiência. Muda apenas o suporte”, disse Moldanon, do ComixTrip.
ANDANÇAS VIRTUAIS
AMÉRICA LATINA Revista digital traz olhar acerca da região e busca integrar o Brasil a outros países sul-americanos calle2.com
“A Calle 2 não é uma rua qualquer. É o ponto mais ao norte da América Latina. Fica no povoado de Los Algodones, na fronteira do México com
os Estados Unidos, a 241 km de Tijuana. É uma rua árida e empoeirada, mas simpática. Em quatro quarteirões, a Calle 2 tem placas – todas em inglês –
de 25 dentistas e nove óticas, que atraem gringos para consultas baratas. Tem um carrinho de cachorro-quente, terrenos baldios usados como estacionamento.” Inspirados em imagens avistadas pelo Google, os editores assim descreveram o lugar desértico e nomearam a revista digital Calle2. O projeto tem o objetivo de colaborar para integrar o Brasil a outros países latinos, trazendo um olhar sobre a América Latina a partir de conteúdos que enfocam pessoas e lugares, buscando abordagem diferente da encontrada na mídia tradicional. Na descrição feita por Ana Magalhães sobre o site, a editora afirma o interesse em “conhecer destinos turísticos inusitados, pratos típicos, ruas e povoados poucos conhecidos e, principalmente, pessoas e ideias que colaboram para a construção de uma América Latina melhor”. Do conteúdo, destacam-se reportagens, crônicas, perfis, ensaios fotográficos e entrevistas, como a do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica. MARIA EDUARDA BARBOSA
PREMIAÇÕES
LITERATURA
NEGRITUDE
FOTOGRAFIA
Previsões do Oscar podem ser acompanhadas pelo blog Cinema é Tudo Isso
Plataforma do Instituto Moreira Salles aborda vida e obra de Clarice Lispector
Tudo é autoestima no site Mundo Negro, que destaca produção própria
Informações e dicas técnicas voltadas para profissionais e amadores
www.termometrooscar.com
claricelispectorims.com.br
www.mundonegro.inf.br
iphotochannel.com.br
Início do ano é sinônimo de solenidades cinematográficas. É a época em que ocorrem o Globo de Ouro, premiações dos sindicatos de atores, diretores e roteiristas de vários países, entre todas a mais pop star, o Oscar. A especulação para saber quem leva a estatueta começa desde cedo para o blog Cinema é Tudo Isso, que criou o Termômetro do Oscar. Através dele, podemos verificar os favoritos às indicações e às estatuetas. Além disso, é uma ótima opção para acompanhar o buzz (marketing viral) atrelado ao cinema e ficar por dentro dos filmes lançados durante o ano e de festivais como Cannes e Sundance.
O Instituto Moreira Salles desenvolveu uma plataforma destinada à Clarice Lispector. Nela, encontramos uma linha do tempo sobre sua vida, além de registros que chegaram ao IMS, como notas sobre o romance A hora da estrela. No site, também há informações sobre traduções, bibliografia completa, resenhas de livros e uma seção interativa, que traz o mapa do Rio de Janeiro de acordo com as obras da autora. Ao clicar em determinada região, encontramos trecho de algum de seus livros referente ao lugar. Quando clicamos em Olaria e Praça Mauá, por exemplo, encontramos excertos de A hora da estrela.
Com direção de conteúdo da jornalista Silvia Nascimento, Mundo Negro está no ar desde 2001 e foi um dos primeiros portais feitos para negros no Brasil, como destaca a própria descrição do site. Nele, encontramos notícias, artigos e vídeos elaborados por jornalistas e colunistas. O endereço destaca como um de seus diferenciais a produção própria de conteúdo, dispensando a reprodução de notícias ou clipagem do que sai na imprensa. Dentre as seções, destacam-se notícias sobre cultura, moda, beleza, educação e mídia. Mundo Negro também está em redes socais como Facebook, Twitter e Instagram.
Vinculado à iPhoto Editora, o site iPhoto Channel aborda a fotografia em áreas mais comerciais, seja na publicidade, nas redes sociais ou em casamentos. É um canal rico de informações e notícias em que se encontram análises de colunistas e técnicas utilizadas por profissionais de fotografia. Com design simples e agradável, e padrão de cores na cartela verde, preta e branca, o site é dividido em seções. As do topo de página são de Casamento e Estúdio. Na opção Mais, há dicas de livros e notícias que abordam técnicas como iluminação e informações de livros. O site também oferece a seção Fotografia do dia.
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CON TI NEN TE#44
Viagem
VULCÕES Pelos caminhos do Chile e da Bolívia Paisagens inóspitas, calor e quilômetros de areia podem ser desinteressantes para muitos, mas não para os aventureiros que rumam ao Deserto de Atacama e ao Salar de Uyuni TEXTO Claudia Cavalcanti FOTOS Marco Carvalho
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A região mais árida do mundo não
deveria ser o sonho de viagem de tanta gente que, como nós, contou meses, dias e horas para chegar ao norte do Chile. A melhor opção de entrada no Deserto do Atacama é por Calama, cidade dos arredores com aeroporto. O caminho de lá até San Pedro, com 3 mil habitantes e 2.400 metros de altitude, já nos mostra que aquela não é uma paisagem comum, tampouco para um turista comum. Com o decorrer dos dias e incursões a pontos sempre mais altos que San Pedro, os lábios racham e o corpo sente a enorme variação de temperatura num único dia (que pode ir de -9°C, numa madrugada, até 40°C, com o sol a pino). Por conta de sua altitude, as nuvens que vêm do Pacífico não chegam a atingir a região. Do outro lado, os úmidos ares amazônicos são barrados pela Cordilheira dos Andes. Assim, o índice pluviométrico é baixíssimo,
Os mais de 100 mil quilômetros de superfície oferecem variedade de relevos, vales, lagoas, fontes termais e cânions um dos menores do planeta. No entanto, os 105 mil km² de superfície predominantemente composta de sal e areia oferecem tamanha variedade de relevo (que pode chegar a mais de 6 mil metros de altitude) e de vales, lagoas, gêiseres, fontes termais e cânions – além do céu mais visivelmente estrelado do mundo –, que o turista logo esquece as dificuldades e, em pouco tempo, como que por encanto, está adaptado ao lugar. O turismo de esportes também encontra nos acidentes geográficos uma fonte de renda específica. Adeptos do trekking, mountain bike e sandboard reconhecem no lugar um oásis, por assim dizer. Os praticantes de sandboard escolhem as areias do Valle de la Muerte para deslizar montanha abaixo, esquecendo que ali em cima, e sobretudo no contíguo Valle de la Luna, se pode assistir a um fim de tarde acachapante para uma primeira tarde
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1 BOLÍVIA
ulcão Tunupa visto V do Salar de Uyuni
no deserto. Com o passar dos dias, logo veremos que cada lugar disputa para si o espetáculo de beleza mais estonteante. Além das paisagens díspares, que podem variar de total pobreza do reino animal aos encantos de dezenas de vicunhas soltas em vales com riachos semicongelados, a riqueza histórica e cultural do Atacama logo é descoberta por manifestações de arte rupestre précolombianas, assim como pela aldeia em forma circular de Tulor, datada de 800 a.C., ou pela fortaleza de Quitor, finalmente rendida pelos espanhóis. A região foi primeiramente ocupada por atacamenhos e pelos aimarás, a partir da era pré-colombiana. O Deserto do Atacama também é, desde sempre, povoado por lendas e histórias que reforçam a impressão de que nada, das surpreendentes paisagens que tiram o fôlego a cada curva na estrada, a cada planície avistada, está ali por acaso, nem mesmo os enormes volumes de lavas vulcânicas transformadas em montanhas rochosas após milhões de anos. Esse tempo e o mundo natural nos lembram nossa pequeneza e insignificância. A altitude, por sua vez, nos mostra quem somos e onde estamos. É assim que tudo se encaixa naquelas plagas. Nesse cenário mítico, o personagem principal para o povo daquele deserto é o vulcão Licancabur (ou “montanha do povo”). Imponente nos seus 5.619 metros acima do nível do mar, e a 60 km de distância de San Pedro do Atacama, o vulcão é acompanhado pelo olhar do viajante em diversos pontos da região e, com mais proximidade, na travessia da fronteira com a Bolívia, até a Laguna Verde, depois da qual dá lugar a outros mitos, lendas e paisagens.
LICANCABUR
É do povo do Atacama a ideia de que os vulcões são do gênero masculino e as montanhas, do feminino. Assim sendo, Licancabur teria se apaixonado e casado com Quimal, que também foi cobiçada por Juriques, de tal forma que, um dia, ela não mais teria resistido aos encantos do irmão
jornada como essa, poderá ver o Licancabur a partir dos 2.500 metros de San Pedro até os 4 mil da fronteira com a Bolívia, admirando suas diversas nuances, a depender da hora do dia e do lugar, como no pôr do sol da Laguna Tebinquinche. Edison Mora, o guia que nos acompanhou no Atacama com uma Defender, sabe coroar o momento único com uma boa garrafa de vinho tinto, que ameniza o frio e nos permite sentar para admirar o espetáculo de quando o Sol veste o majestoso vulcão de variados tons de laranja, vermelho e, finalmente, da cor que a vista não mais alcança.
TUNUPA CON TI NEN TE#44
Viagem
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de Licancabur. Senhor dos vulcões, ativo até hoje e pai dos dois, Láscar achou por bem favorecer Juriques e, certo dia, lançou uma bola de fogo em direção a Licancabur. O destino quis que a bola atingisse Juriques, que hoje nos aparece como um infeliz e tímido decapitado ao lado do majestoso irmão. Licancabur é venerado pelos povos das redondezas, que construíam suas casas com as portas voltadas para ele, pois acreditavam na sua proteção. Diz-se que na sua cratera
está depositado um fabuloso tesouro, resultado da veneração dos deuses por ele ou mesmo dos incas, para quem as oferendas tinham um significado especial. Quem quiser se arriscar a subir o vulcão, precisa, além de treino, caminhar por cerca de 12 horas para atingir seu cume e admirar o lago em sua cratera, que se congela no inverno e no fundo do qual repousaria o mítico tesouro. Já o viajante menos pretensioso, mas cujo espírito de aventura é imprescindível numa
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Durante a exploração da Apolo 11, Neil Armstrong usava o Salar de Uyuni como ponto de referência, por conta de seu brilho singular. É para lá que seguimos depois de passar pela aduana da Bolívia. Lá nos esperavam Karen Guevara, nossa guia, e o jovem motorista Ariel, exímio no volante das Toyotas que costumam atravessar (e, caso não seja dirigida por um nativo, muitas vezes se perder) o Salar. A viagem parece não ter fim, as estradas são de terra (com muita sorte, de sal), mas aquelas paisagens inóspitas às vezes nos presenteiam com visões como as lagoas altoandinas Blanca e Verde, já dentro da Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Abaroa (de onde entramos, saímos e voltamos a entrar nos dias bolivianos), além das altiplanas Canãpa, Hedionda (pelo seu forte odor de enxofre) e Colorada, na região de Lípez. Esta última lagoa é avermelhada devido ao pigmento de algas e sedimentos vermelhos em combinação com o vento, que os mistura, mas sobretudo por causa das centenas de flamingos andinos reunidos em pequenos e grandes grupos, num balé em que parecem flutuar, ou mesmo em pleno voo. O Valle de las Rocas, naturalmente mais árido, também merece uma parada longa e atenta, para que se possa decifrar o que as rochas vulcânicas têm a nos dizer. Para atravessar os cerca de 12 mil km² do Salar de Uyuni é preciso pernoitar em hotéis ora bons,
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CHILE
Pôr do sol no Valle de La Luna é atração local
3 VALLE DE LA MUERTE S andboard é praticado nas dunas chilenas
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L hamas fazem parte da paisagem de povoado boliviano no Salar de Uyuni
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ora mais precários, e aceitar as condições do país, menos favoráveis que as chilenas. Para não falar da altitude, que oscila entre os 3.656 metros do próprio Salar e os quase 5 mil de povoados nas redondezas. Ali, um hotel no meio do nada, ou exatamente do Deserto de Siloli, como o Taika el Desierto, já é um povoado em si, posto que a localidade mais próxima está a 300 km dali. Aos 4.900 metros de altitude, foi lá que pernoitamos no último dia antes de cruzar parte do Salar para voltar à fronteira com o Chile. Antes disso, avistamos Tunupa entrando ou saindo do Salar. A diferença se faz pela perspectiva: ver o vulcão de frente, quando é possível perceber claramente a sua cratera escancarada a pouco mais de 5.300 metros de altitude – o que para nós, que no Salar estamos a quase 4 mil, nos parece uma bobagem –, ou de costas para nós, no caminho de volta. Tunupa encontrou seu lugar no nordeste do Salar de Uyuni, divisa de Potosí com Oruro, estados do altiplano boliviano. Seu nome tem origem no deus andino homônimo, senhor de raios e erupções vulcânicas. Aos pés da poderosa, mas hoje plácida montanha, moram pequenas comunidades que vivem do cultivo
da quinua e da criação de lhamas. Para reforçar as muitas curiosidades do lugar, inclusive da própria origem lendária de Tunupa, temos a impressão de que as lhamas, com seu olhar cândido, estão ali para pastar e, de vez em quando, cuspir na nossa cara. Mas trata-se de animais que dão um duro danado, percorrem longos
Longa viagem pelas inóspitas estradas de terra (ou de sal) reservam belas paisagens como as das lagoas Blanca e Verde trajetos em poucas horas e são capazes de carregar pesadas cargas. No entanto, as lhamas não importam muito, e nem são vistas no meio do Salar, à medida que nos aproximamos de Tunupa. Antes de chegarmos, paramos na Isla Incawasi. As ilhas são uma singularidade do lugar, habitadas por cactos gigantes e centenários, de até 10 metros, que crescem a uma velocidade de um centímetro por ano. Puro exotismo, ainda mais que de lá de cima se pode ver Tunupa ao longe, antes de
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chegarmos mais perto para outro daqueles espetáculos do fim do dia. A diversidade cultural dos povos andinos é tamanha, que, se para alguns os vulcões só podem representar o gênero masculino, para outros, como os aimarás, montanhas furiosas, profícuas reprodutoras de lavas, também podem evocar a feminilidade. Assim é que, das várias histórias que ouvimos e lemos sobre Tunupa, em algumas delas o vulcão tem características masculinas, mas em outras é capaz de expressar sentimentos comuns às mulheres, das simples mortais às legendárias divindades. Sobre Tunupa se diz, dentre outras versões, que, há muito tempo, os vulcões do altiplano podiam deslocar-se. Nessa época, o único vulcão feminino era Tunupa, fazendo com que fosse desejada por todos os seus pares dos arredores. Tunupa engravidou e, como não sabia quem era o pai do seu filho, todos os vulcões reivindicaram para si a paternidade dele. Tanto fizeram que, uma noite, roubaram de Tunupa o seu rebento. Os deuses, de tão raivosos, tiraram para sempre dos vulcões o direito de deslocar-se. E a Tunupa restou chorar pelo filho lágrimas tão salgadas e derramar tamanha quantidade
FOTOS: DIVULGAÇÃO
Patagônia
TEMPORADA DE CRUZEIROS
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Aos que amam as viagens de aventura e natureza, outro destino para lá de marcante na América do Sul é a Patagônia, que compreende o sul do Chile (sempre ele) e parte da Argentina, esta é uma boa época: não faz tanto frio e é possível descobrir os seus encantos desde o mar. Isso porque o período de cruzeiros na região está aberto desde setembro e segue até abril, quando as temperaturas começam a baixar. No percurso do navio, é possível contemplar paisagens únicas, como ilhas, relevos glaciais e animais selvagens, a exemplo dos pinguins e leões-marinhos. Há paradas em diferentes pontos e, no cruzeiro, os navegantes podem assistir a palestras sobre características típicas da Patagônia ou ainda fazer workshops sobre degustação de vinhos da região e preparação de drinques.
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do leite, por não poder amamentar, que assim acabou por formar o Salar de Uyuni – chamado antes Salar de Tunupa, justamente por causa dessa lenda. Para além de todas as narrativas, sabe-se que o Salar é resultado das transformações de diversos lagos pré-históricos. Estima-se que ali existam 10 bilhões de toneladas de sal bruto, das quais 25 mil são extraídas todo ano. Na sua crosta, estão concentrados de 50 a 70% de toda a reserva mundial de lítio, que começa a ser extraído paulatinamente. Margeando o limite entre o Chile e a Bolívia, vemos finalmente um vulcão ativo, o Ollagüe, com 5.868 metros de altitude. Ao cruzar a fronteira, logo reencontramos aqueles que já nos faziam falta, depois de apenas
5 TUNUPA
Comunidade ao redor do vulcão vive do plantio de quinua
quatro dias sem vê-los: o asfalto e o Licancabur. Nesse dia, só paramos ao chegar em Santiago, que está a apenas 500 metros acima do nível do mar. Foi pena não termos levado para lá um pouco do lítio da Bolívia, que teria sido útil quando, dois dias depois, fomos presenteados com um pesado terremoto. Passado o susto, fica a impressão de que aquele talvez tenha sido apenas um dos muitos tembroles que a vida nos oferece a todo instante, mostrando que é preciso recuperar-se e seguir em frente para, afinal, termos o que contar aos nossos netos. Não, Chile e Bolívia não são países para amadores. Em compensação, deixam lembranças e aprendizados inesquecíveis.
Brumadinho
NOVA GALERIA NO INHOTIM Mais de 400 fotografias realizadas pela artista Claudia Andujar (acima), entre 1970 e 2010, na Amazônia brasileira, erguem a galeria que acaba de ser inaugurada no Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais. O maior complexo de arte contemporânea do país, e um dos maiores do mundo, abriga agora o que se pode chamar de templo da história do povo indígena ianomâmi, segundo o olhar desta artista-pesquisadora. Claudia nasceu na Suíça, em 1931, mas radicou-se no Brasil bem jovem, nos anos 1950. Boa parte de sua morada em solo brasileiro vem sendo dedicada à região amazônica e ao seu povo, o que por si só vale a visita a essa nova galeria, a 19ª do instituto mineiro. O pavilhão tem 1.600 m² e é o segundo maior do parque.
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COMPORTAMENTO
AFROFUTURISMO Ficção científica na cultura negra Movimento surgido nas décadas de 1950 e 1960 reverbera hoje e apresenta formas diferentes desse grupo social se relacionar com a própria negritude na música, no cinema, na literatura e na moda TEXTO Victória Ayres
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CON COMPORTAMENTO TI NEN TE
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De ambos os pulsos e dos saltos do seu tênis, múltiplas labaredas de fogo são cuspidas. Cabeças de bonecas presas na cintura, dependuradas na altura da virilha, soltam fumaça de suas bocas. Junto com essa couraça, um sistema de som feito com parafusos, fios e caixas de som. A roupa híbrida de Rammellzee, grafiteiro e músico conhecido por usar novas tecnologias de som dentro do hip hop, ao mesmo tempo em que carrega signos do futuro e suas tecnologias, possui marcas do passado propositalmente escondido de todo um povo. A ficção científica, cheia de geringonças, estruturas sociais e mundos distintos dos que vivemos hoje, tem um propósito bem-definido dentro do afrofuturismo. Surgido na década de 1960, esse movimento cultural abarcou a literatura, o cinema, a música e a moda, manifestando-se até os dias de hoje. O sincretismo entre a ficção científica hi-tech e aspectos mais tradicionais da cultura negra, em especial, vindos dos vários países da África, tingiram de prata e cobre o trabalho de artistas como Octavia Butler, Sun Ra e John Akomfrah.
Ficção científica é sobre vislumbrar o novo, supor um futuro e, para os negros, nunca foi fácil vislumbrá-lo. De acordo com o escritor Samuel R. Delany, “a razão histórica pela qual nós, negros, sempre fomos pobres em termos de imagens do futuro é que, até recentemente, fomos sistematicamente privados de qualquer imagem do nosso passado”. Utilizando os paradigmas da diáspora africana, o afrofuturismo oferece possibilidades de futuro em que o povo negro crie as próprias realidades, livre da segregação racial, do apagamento e da assimilação cultural forçada. Livre, principalmente, da consciência dupla decorrente do sofrimento causado por existir em um mundo que não lhe pertence, de ser abduzido do seu lugar e não ter acesso ao que esse novo lugar pode oferecer de bom. O olhar duplo, explicado pelo estudioso da cultura afrodiaspórica no século 20, W. E. Dubois, é a sensação de sempre se observar com os olhos de outros; negros se enxergando com olhos de brancos e, consequentemente, se vendo com desprezo, indiferença e escárnio. Entretanto, há opiniões
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divergentes sobre as consequências da consciência dupla de Dubois. DJ Spooky, músico e teórico da cultura negra, afirma que a identidade ocasionada pelo olhar duplo também é dupla, estando assim aberta a transdisciplinaridades e mixagens. O mundo digitalizado trouxe com ele as ferramentas para a criação de novas estéticas. Jazz com sintetizadores, filmes com frames aparentemente desconexos e recheados de referências simultâneas ao passado e ao futuro. A mitologia dos povos africanos sempre teve um papel fundamental nesta cultura e, após serem “abduzidos” da sua terra, os negros foram paulatinamente perdendo contato com essa ancestralidade. Então, vários artistas do afrofuturismo resgataram o mito, não como tradição a ser superada, mas como força de transformação e resistência cultural. Sun Ra, o precursor do movimento na música, junto com sua Arkestra, grafia modificada de orchestra, mesclou o jazz com a música eletrônica ainda na década de 1950, ficando conhecido por seu “lirismo cósmico”. Nascido com o nome de Herman Poole Blunt, Sun Ra afirmava ser de outra galáxia e que teria vindo à Terra para trazer palavras de amor e sabedoria, enquanto utilizava a estética da cultura egípcia nas suas roupas (Sun vem de sol, em inglês, e Ra é o deus-sol, dentro da cosmogonia do Egito antigo). Suas experimentações musicais serviram de inspiração para gerações futuras de músicos e artistas afro-americanos. Misturando funk, soul e jazz com sons produzidos por sintetizadores e por softwares de música, a cantora Janelle Monáe é um exemplo de como o afrofuturismo continua vivo na música. Nascida em Kansas, Janelle está
Página 47 1 RAMMELLZEE
rafiteiro e músico usa novas G tecnologias no hip hop
Nestas páginas 2 SUN RA
Ele misturou funk, soul e jazz a sons produzidos por sintetizadores
OCTAVIA BUTLER 3 Trilogia Xenogenesis explora temática da alienação
4 JANELLE MONÁE Da nova geração, cantora traz o futurismo nas composições
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bem-inserida dentro da música pop e, após um EP e dois álbuns, é uma das vozes que falam abertamente sobre as dificuldades do povo negro dentro dos Estados Unidos, apoiando de forma explícita o movimento Black Lives Matter, que começou após mortes brutais decorrentes de violência policial terem ocorrido num espaço curto de tempo. Nas letras de suas músicas, embaladas com funk e soul, ela se refere a um alter-ego vindo do ano de 2719, Cindi Mayweather, uma androide que foi sentenciada à desmontagem por se apaixonar por um humano. Ela se utiliza da imagem do androide para falar do Outro, com influência de vários ritmos negros e mensagens sobre autoaceitação enquanto ferramenta de luta. Na sua música Q.U.E.E.N., com participação de Erykah Baduh, Janelle critica a condição atual do negro e instiga seus pares a “pregar”: “Seremos nós uma geração perdida do nosso povo/ nos somam a equações, mas nunca nos verão como iguais (…) Minha coroa é muito pesada como a da rainha Nefertiti/ Me devolva minha pirâmide/ Estou tentado libertar Kansas (…) Enquanto você vende drogas, nós venderemos esperança/ Nós estamos nos erguendo, você tem que aceitar, tem que saber lidar/ Você será uma ovelha eletrônica?/ Meninas elétricas, vocês dormirão?/ ou pregarão?”.
TRADIÇÕES E DIÁSPORAS
A metáfora do Outro apresentada nas letras de Janelle Monáe está presente nos clássicos da escritora estadunidense Octavia Butler, conhecida por não apenas abordar a questão racial, mas também de gênero nos seus livros. A experiência negra enquanto ficção científica é explorada a partir
Sob os paradigmas da diáspora, o afrofuturismo possibilita que o povo negro crie realidades fora da segregação
do deslocamento físico e cultural causado pela diáspora, que remete novamente ao corpo estranho, àquele que estaria deslocado do seu lugar. Seu trabalho mais conhecido é a trilogia Xenogenesis, em que a temática da alienação é explorada a fundo em realidades nas quais humanos são forçados a conviver com outras espécies, e a abordagem dos seres geneticamente modificados é constante. A nigeriana-estadunidense Nnedi Okorafor é mais explícita no resgate às tradições africanas do que Octavia. Num dos seus trabalhos mais conhecidos, Zahrah, the windseeker, a escritora conta a história de uma adolescente nigeriana que vive no reino de Ooni e faz parte do grupo de pessoas que possui poderes estranhos, desconhecidos da própria adolescente. O futuro místico e extraterrestre coexiste com o passado tradicional nessa obra de Nnedi. A coexistência de múltiplas e paralelas realidades está presente também na produção cinematográfica, com cineastas como John Akomfrah utilizando o audiovisual para abarcar os variados universos presentes da cultura negra. Parte do Black Audio Film Collective, O último anjo da história, de 1996, conecta o afrofuturismo aos preceitos mais tradicionais do folclore africano, criando o que o
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JOHN AKOMFRAH 5 A coexistência de múltiplas e diferentes realidades está na obra do cineasta
próprio diretor chama de memória racial digitalizada através de hiperlinks visuais e intertextualidade, ligando espaços geográficos, textos e pessoas distintas. O filme tem início com a figura do bluesman Robert Johnson e segue com imagens não lineares, mostrando fragmentos de outros artistas, tais como o já citado Sun Ra, com trechos documentais e outros ficcionais. A estética plástica tanto presente nos filmes como no corpo dos cantores do movimento deixaram marcas que foram transpostas também para a moda. O corpo negro, já visto como estranho pela perspectiva branca e eurocêntrica, se apropria dos adornos e estilos mais tradicionais, aliados a roupas futuristas com aparências “extraterrestres”. Pinturas que remetem à ancestralidade comunal, piercings inusitados, acessórios metálicos, roupas longas e sobrepostas com estampas mais fortes – tidas como exóticas pelo olhar branco – e penteados próprios para o cabelo crespo têm proliferado e bebem na fonte do afrofuturismo. O Afropunk Festival, que aconteceu em Nova York em agosto de 2015, foi um ambiente em que parte do seu público manifestou essa estética. Uma das suas principais atrações, Grace Jones, se apresentou coberta de pinturas tribais, com grandes ornamentos, semelhantes a penas, presos a sua cabeça. Em um momento em que a “outridade” está sendo posta em cheque e os sujeitos tidos como abjetos estão falando por si, o afrofuturismo apresenta uma potência dentro da arte que permite ao povo negro formas diferentes de se expressar e se nomear, ramificando a identidade negra e pondo em cheque a discriminação racial.
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ESPECIAL
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ACERVOS Fonogramas e partituras a salvo Instituições de referência em Pernambuco guardam coleções de importância mundial, aos poucos digitalizadas e colocadas ao alcance de pesquisadores, regentes, intérpretes e do público TEXTO Carlos Eduardo Amaral FOTOS Leo Caldas
No Instituto Ricardo Brennand
(IRB), existe uma rampa entre a Pinacoteca (o edifício principal da instituição) e o Castelo São João (onde fica a sua famosa coleção de armas brancas) pela qual o público em geral não pode seguir, porque os seguranças logo vedam a caminhada inadvertida por ela. Somente funcionários e pesquisadores previamente autorizados têm permissão para ir de carro por aquela via, que dá acesso à saída externa da biblioteca do instituto. Contudo, qualquer pessoa que esteja visitando o IRB no horário normal de funcionamento – de terça a domingo, das 13 às 17h – pode consultar o acervo de quase 70 mil volumes adquiridos pelo instituto ou por seu fundador desde o ano 2000. Esse quantitativo engloba as coleções recebidas ou compradas de associações, como a Sociedade Auxiliadora de Agricultura e o Instituto do Açúcar e do Álcool, e de personalidades importantes como a escritora Lêda Rivas, o marchand Giuseppe Baccaro, a
pianista Elyanna Caldas, o bibliófilo Edson Nery da Fonseca (19212014) e o historiador José Antônio Gonsalves de Mello (1916-2002). Para os musicólogos, a coleção mais valiosa é a que pertenceu ao padre Jaime Cavalcanti Diniz (19241989), com mais de 3 mil volumes, entre livros, discos e partituras de 52 compositores pernambucanos desde os tempos do Brasil Colônia. Entre esses manuscritos raros estão o Miserere para os sermões da Quaresma, de Luís Álvares Pinto (1719-1789), e a Missa em três vozes em fá maior, de Francisco Libânio Colás (ca.1830-1885). O IRB adquiriu a coleção em abril de 2002, seis meses antes de ser inaugurado, diretamente da irmã do compositor, Nitalva Diniz de Medeiros. A coleção de Giuseppe Baccaro, com seus mais de 11 mil itens, contém 1.142 partituras impressas e 35 manuscritas; há também cerca de uma centena de discos de vinil doados pela UFPE que faltam ser catalogados. Mas as partituras, os discos, livros, programas de concerto, folhetos e periódicos legados por padre Jaime
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Diniz chamam a atenção tanto por si sós quanto pelas anotações pessoais do clérigo e professor sobre eles, ainda não indexadas. Wheldson Marques, historiador e auxiliar de pesquisa da biblioteca do IRB, acrescenta que a entidade está buscando viabilizar, por intermédio de editais públicos, o restauro dos manuscritos musicais mais antigos encontrados por padre Jaime Diniz, e salienta “o sistemático trabalho que vem sendo desenvolvido para higienização, desinfestação, pequenos reparos e acondicionamento do material”, feito por consultoria técnica. Além disso, todos os manuscritos do instituto estão sendo digitalizados em equipamentos importados, e todas as coleções, cadastradas no sistema Sophia Biblioteca. Com um orçamento institucional anual de R$ 6 mil para aquisição de livros até 2014, o instituto optou pela atualização do acervo por meio de pedido de doações a editoras, buscando contenção de gastos. “As doações pessoais de Ricardo Brennand
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Acervo inclui raridades, como vinis coloridos
N estas páginas 2 IRB
Aruza de Holanda coordena a biblioteca do instituto
3 COLEÇÃO VALIOSA Padre Jaime Diniz pesquisou e conservou livros e partituras
que tornou a marca de instrumentos norte-americana incontestável.
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continuam mantidas”, garante Aruza de Holanda, coordenadora da biblioteca. Ela ressalta que, além de todo o arquivo documental, o IRB também contempla uma programação musical periódica, a qual inclui o projeto Acordes para o Museu, no primeiro domingo de cada mês, com intérpretes convidados, e o Museu Sonoro, uma ação educativa e interativa, com performances para o público visitante. O instituto possui, além disso, seis instrumentos de teclado: três
pianos (dois Steinway & Sons e um Chateaubriand), dois órgãos (sendo um Domenico Mangino do séc. 18, no ambiente principal do Castelo São João) e um clavicórdio. Na Sala do Conselho do IRB, dois andares acima da recepção da biblioteca, a beleza de um dos Steinways disponíveis para recitais quase passa desapercebida diante da mobília, dos vitrais e dos quadros do mais nobre (e menos conhecido) dos espaços do instituto, até o momento em que suas cordas soam e impõem o poderoso timbre
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Um não menos considerável conjunto de partituras e fonogramas encontra-se na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no Bairro de Apipucos, sob a guarda do Cehibra (Centro de Documentação e Estudos da História Brasileira), que possui dois setores: a Biblioteca Blanche Knopf, com seu acervo de livros, obras raras e periódicos, e a Coordenação de Documentação e Pesquisas Históricas, que abriga acervos iconográficos, textuais, cinematográficos, fonográficos, musicográficos e em microfilmes. Todas as aquisições na Fundaj, sejam por compra ou doação, passam obrigatoriamente pela Comissão de Aquisição de Acervos, que analisa a pertinência ou não da aquisição, pelo ponto de vista da importância histórica, do valor artístico, da raridade, do estado de conservação, do valor financeiro e de outros critérios. “O processo é submetido ainda ao crivo do Conselho Diretor da Fundaj, que julgará o mérito da questão e encaminhará ao setor financeiro para avaliar a disponibilidade orçamentária, em caso de compra”, complementa Albertina Malta, coordenadora de documentação e pesquisas históricas. O acervo fonográfico e musicográfico da Fundaj formouse em 1981 e recebeu, desde então, contribuições de grande magnitude, como a coleção de discos de 78 RPM da Rádio e TV Jornal do Commercio, as partituras do compositor Alfredo Gama (1867-1932), o arquivo pessoal do maestro e compositor de frevo José Menezes (1924-2013) e os manuscritos dos arranjos orquestrais
de Sivuca (1930-2006), que foram gravados pelas orquestras sinfônicas da Paraíba e do Recife na última década, incluindo Feira de mangaio e João e Maria, célebres parcerias com a esposa Glória Gadelha e Chico Buarque, respectivamente. Atualmente, a Fundaj abriga aproximadamente 33 mil documentos (90% dos quais disponíveis online), entre discos 78 RPM, LPs, CDs, compactos, partituras, arranjos musicais, fitas de rolo e fitascassetes. Os suportes fonográficos guardam não só obras musicais, mas também depoimentos gravados de personagens de destaque na história do rádio e da vida política, social, científica e cultural do Nordeste, e a própria fala do homem comum da região, fruto de pesquisas realizadas pelo Cehibra há mais de três décadas. Entre as raridades sonoras guardadas na fundação, as pesquisadoras do Cehibra Elizabeth Carneiro e Nadja Tenório destacam um disco de 16 polegadas em 33 RPM com a canção Rato rato, de autoria de Casemiro Rocha e cantada por
Arquivo do maestro José Menezes e manuscritos de Sivuca estão entre as raridades mantidas pela Fundaj Alfredo Silva, gravado pela Odeon e datado de 1945, que virou um hit parade das tropas norte-americanas sediadas no Recife durante a Segunda Guerra. Outros discos, produzidos na França e Inglaterra entre as décadas de 1940 e 1970, traziam prensagem sobre plástico transparente com desenhos coloridos e formas que fugiam do tradicional “bolachão”. Elizabeth e Nadja mencionam também os registros em fitas de rolo coletadas durante a realização da Pesquisa de Etnomusicologia da Região Nordeste do Brasil, numa parceria entre o Instituto Interamericano de Etnomusicologia e Folclore e o então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, com
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assistência da Organização dos Estados Americanos e do Conselho Nacional de Cultura da Venezuela. “Ocorrida nos anos 1976 e 1977, a pesquisa tinha por objetivo localizar geograficamente e fazer registros sonoros, fotográficos e fílmicos referentes à etnomusicologia e ao folclore nordestinos, com ênfase nos aspectos musicais”, relatam. A documentação fonográfica da Fundaj rendeu também muitas produções acadêmicas e musicais. As de maior relevância incluem os CDs Descobrindo João Pernambuco (2000), fruto de pesquisa do violonista e maestro Leandro Carvalho, Irresistível miudinho (2009), do pianista e arranjador Deneil Laranjeira, e a pesquisa realizada pelo maestro Zoca Madureira para as aulas Tributo a Capiba, em 2011, nas quais Ariano Suassuna celebrava parte da obra menos conhecida do compositor. Nesse tributo, trazia à cena músicas como Tu que me deste o teu cuidado, seresta sobre poema de Manuel Bandeira, e Sino, claro sino, a partir do poema de Carlos Pena Filho.
CON ESPECIAL TI NEN TE ACERVO IRB/DIVULGAÇÃO
1 PARTITURA Página da pouco conhecida ópera Leonor, de Euclides Fonseca
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RARIDADE Euclides Fonseca restaurado
Compositor pernambucano, único artista local a compor e estrear uma ópera no Recife, tem acervo salvaguardado no IRB e desperta interesse de regente
Não foi por falta de oportunidades: o pernambucano Euclides de Aquino Fonseca (1835-1929) havia sido chamado por Carlos Gomes (1836-1896) para trabalhar em Belém do Pará, e o cearense Alberto Nepomuceno (18641920), para rumar ao Rio de Janeiro. Euclides recusou porque não se via vivendo fora de Pernambuco. Para quem declinara uma chance de viver na Alemanha, pelas mesmas razões, não seriam os dois amigos diletos que o demoveriam de seu apego. Hoje, Pernambuco, que gosta de exaltar os talentos que revelou ao país, deixou cair no esquecimento o único (até onde se sabe) artista local a compor e estrear uma ópera no Recife. Leonor, drama lírico em um ato com libreto vernacular de José Afonso de
Araújo, sobre a lenda das mangas do jasmim, se passa na Ilha de Itamaracá e foi escrita para coro misto, orquestra e três solistas: Leonor (soprano dramático), D. Antônio, seu amado (tenor), e D. Nuno Coutinho, irmão da protagonista (baixo). O drama musical estreou em 7 de setembro de 1883, produzido pelo Clube Carlos Gomes – que Euclides fundara em homenagem ao já consagrado operista de Campinas – e com a presença de Nepomuceno nos primeiros violinos. A redução para canto e piano de Leonor e algumas partes instrumentais hoje se encontram na biblioteca do Instituto Ricardo Brennand, junto com cerca de uma dúzia de arranjos feitos por Fonseca e mais 71 obras originais, incluindo três operetas e o Ave
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Libertas, hino composto para arrecadar fundos para a causa abolicionista. O acervo, reunido pela historiadora Zilda Fonseca, foi encaminhado por ela ao amigo e também historiador Leonardo Dantas, que o destinou ao instituto. Antes de falecer, Zilda, viúva de um neto do músico, relatou em seu livro Euclides Fonseca: Meio século de vida musical no Recife (Ed. Universitária, 1996) que muitas outras obras tiveram menções na imprensa, mas encontravam-se perdidas. A psicóloga Eleonora Fonseca resume as dificuldades que a mãe, Zilda, enfrentou: “Após um verdadeiro jogo de quebra-cabeça, ela pôde montar a história do maestro e de suas composições. O resgate foi possível com a colaboração de familiares, particularmente de outra bisneta do maestro que tocava piano e mantinha originais. O padre Jaime Diniz, que possuía originais e cópias, também colaborou”. A biblioteca do IRB pede que, caso seja encontrado algum manuscrito de Fonseca, ele seja doado ou encaminhado para digitalização. O professor, regente e musicólogo Sérgio Dias, da UFPE, revela o desejo de empreender o catálogo temático do compositor recifense e enfatiza a importância dele no contexto nacional: “Euclides Fonseca é um dos esquecimentos mais atrozes que o Brasil tem. Ele era um competentíssimo compositor, digno dos elogios que recebeu de Nepomuceno e Carlos Gomes”. Sérgio faz parte da equipe de um projeto de produção e montagem de Leonor que está pleiteando patrocínio do Funcultura e envolverá a edição da partitura. Eleonora Fonseca se alegra com o interesse despertado pela obra de Euclides: “Espero que a grandiosidade da obra do meu bisavô possa ser reconhecida e que ele possa, enfim, ocupar o lugar merecido de grande compositor clássico brasileiro e, acima de tudo, pernambucano, pois foram seu amor e vínculo à terra que, de certa forma, o mantiveram no esquecimento”. CARLOS EDUARDO AMARAL
ROBERTO FILHO/DIVULGAÇÃO
Palco
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FESTIVAL Teatro forte em tempos de crise
1 NACHTERGAELE Ator apresenta o monólogo Processo de conscerto do desejo
Resistência à falta de recursos une grupos teatrais para realizar, com adequações estéticas e financeiras, a 22ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos TEXTO Ulysses Gadêlha
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RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO
Palco 2
A crise econômica que atinge o país
não poupou a cena teatral brasileira. Em março de 2015, por exemplo, acometeu o Festival de Teatro de Curitiba, com redução de R$ 2 milhões no orçamento e outras manobras de contenção. Neste ano, com o Janeiro de Grandes Espetáculos (JGE), não foi diferente. A 22ª edição do evento teve uma perda de 40% da verba em relação ao ano passado, obrigando os realizadores a excluirem a programação no interior. Mesmo nesse cenário dificultoso, o festival desenhou uma linha curatorial com espetáculos que tematizam política e emoção. A sua rede de parceiros viabilizou sua realização, reforçando esse caráter de resistência diante das crises. Inicialmente, o Janeiro contou com cerca de R$ 220 mil para montar a programação. O festival angariou espetáculos para adultos e crianças, vindos tanto do próprio estado, quanto de outras regiões do Brasil, além de duas peças da Espanha, oriundas da Acción Cultural Española. No palco, haverá nomes de peso como o global Gabriel Braga Nunes, que traz a segunda montagem de Inutilezas, inspirada na
obra do poeta Manoel de Barros (1916 – 2014). Tem também o aclamado Matheus Nachtergaele, num espetáculo de delicada beleza, o Processo de conscerto do desejo. No meio do caminho, o BNDES aportou recurso, garantindo uma grade de música para Recife, Olinda, Caruaru e Goiana, que preza por um repertório instrumental de figuras como a pianista Elyanna Caldas e o maestro Spok. Em geral, os espetáculos são compostos por poucos integrantes, quando não são monólogos. “Não podíamos deixar de falar de poder e política, de problemas sociais, sem também deixar de mostrar a emoção, provocar a sensibilidade das pessoas. Nós reunimos peças emocionantes, como Conscerto do desejo, Inutilezas e Elke Maravilha, com suas poesias e músicas. Temos também montagens como Ahia: una casa em Así, da Espanha, que trata de política e poder. Este ano, a gente não poderia fugir disso”, afirmou uma das produtoras do evento, Paula de Renor. Ao lado dela também trabalham Carla Valença e Paulo de Castro, todos pela Associação de Produtores de Artes Cênicas de Pernambuco (Apacepe).
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2 MAGILUTH Em O ano em que sonhamos perigosamente
3 INUTILEZAS Ator Gabriel Braga Nunes (à dir.) está no elenco
Nos momentos em que o evento se viu ameaçado, o sentimento de resistência fez com que os realizadores seguissem em frente, já que diversos grupos locais se prepararam durante meses para participar do festival. “A gente teve uma convergência de energias, pensamentos e vontades. Na hora em que precisamos dos artistas, tivemos opções boas para o Janeiro”, esclarece. “Nesta edição, a homenagem vai ser para atores, bailarinos e artistas de um modo geral, que conseguiram sobreviver a este ano. Quando não havia essa crise, pra nós ela já existia. O artista faz teatro de graça, com baixo percentual, mas nunca deixa de fazer”, declarou Paula. O ator Matheus Nachtergaele subirá ao palco italiano do Teatro de Santa Isabel para abrir o Janeiro de Grandes Espetáculos, no dia 8. “Um ator, não por acaso, filho de uma poetisa, que lê textos dela” é o resumo da peça. A mãe de Matheus, a poeta Maria Cecília Nachtergaele, se suicidou quando ele tinha três meses
BIANCA RAMONEDA/DIVULGAÇÃO
de vida. O ator só teve contato com sua obra poética aos 16 anos, quando o pai decidiu que era o momento de amadurecer. Trinta anos depois, o filho vai ao encontro da mãe no palco, dizendo seus poemas para o público. Na ocasião, Matheus utilizará uma réplica do vestido que Maria Cecília teria usado no dia do batismo dele. “Eu não sou místico, mas me sinto como se estivesse com mamãe. A peça é um fazer as pazes com a natureza. Um ritual profano, de purgação das dores, de jogar luz no que era triste. Tem sido muito emocionante”, afirma o ator, que estreou a peça em julho passado, em Minas Gerais. “Eu venho do Teatro da Vertigem, da geração dos anos 1990, em São Paulo. O grupo sempre trabalhou com depoimento pessoal e essa característica contribuiu muito para o meu trabalho no cinema. Eu realmente acredito que o ator não é um mero executor de uma partitura. É a ideia de arte em que uma dor muito profunda, uma subjetividade única revela, sim, o coletivo”, aponta. Já Inutilezas foi montado pela primeira vez em 2002, inspirado na
“Quando não havia essa crise, para nós ela já existia. O artista faz teatro de graça, não deixa de fazer” Paula de Renor obra de Manoel de Barros; o roteiro é da jornalista e atriz Bianca Ramoneda, que está no elenco junto com Gabriel Braga Nunes. Ramoneda conheceu de perto o poeta a partir do Prêmio Nestlé de Literatura, em 1997, e, daí, para a correspondência epistolar. Ela se impressionou com a capacidade dele de “tornar protagonistas as coisas ditas sem importância”. “E a mais sem importância de todas elas era, sem dúvida, o próprio trabalho dos artistas em seus ofícios de capinar com enxada cega”, revelou, em depoimento ao blog Teatro de Revista. À época da estreia, o escritor se manifestou sobre a qualidade do texto: “Li seu roteiro, gostei muito e ele me deixou em paz”, disse à Bianca.
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A peça Maria que virou Jonas ou A força da imaginação, da Cia. Livre, por sua vez, traz a assinatura da diretora paulista Cibele Forjaz, conhecida pela força cênica de seus trabalhos. Entre os pernambucanos, a programação contempla a peça O ano em que sonhamos perigosamente, do Grupo Magiluth, baseada na obra do filósofo esloveno Slavoj Zizek, tocando em temas como a metateatralidade e a relação com a dramaturgia mais clássica; Cabaré Diversiones, de Henrique Celibi, trazendo de volta o clima irreverente do espaço Vivencial Diversones, de Olinda; e Salmo 91, da Cênicas Companhia de Repertório, com direção de Antônio Rodrigues, releitura do livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella. Ao todo, serão 16 espetáculos locais. Já a Espanha traz as peças Ahia: una casa em Así – um retrato pop da década que se seguiu aos atentados de 11 de setembro de 2001 – e Please continue, Hamlet – julgamento de um jovem suspeito de matar o pai de sua noiva. Confira a programação do Janeiro de Grandes Espetáculos 2016 no site da Continente: www.revistacontinente.com.br.
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Palco
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TRILOGIA VERMELHA Em cena, a pedagogia da libertação
Espetáculo sobre Paulo Freire, segunda peça da pesquisa que aborda três figuras históricas do país, reflete sobre o papel da educação no Brasil
“Desde o início do novo milênio, o teatro está, novamente, assumindo o mundo”, afirma o professor de estudos teatrais da University of Kent (ING), Patrice Davis. Em seus textos, ele redefine o teatro político como uma peça documental que interage com a realidade. Essa é uma das vertentes do trabalho realizado por Júnior Aguiar, na Trilogia vermelha, que engloba três espetáculos sobre personalidades políticas do Brasil: h(EU)stória – O tempo em transe, sobre o cineasta Glauber Rocha; pa(IDEIA) – Pedagogia da libertação, sobre o educador Paulo Freire; e pro(FÉ) ta – O bispo do povo, sobre Dom Helder Câmara. A primeira montagem, h(EU) stória, ocorreu em 2014, no Teatro do Arraial. Neste mês de janeiro, os coletivos Grão Comum e Gota Serena apresentam o espetáculo pa(IDEIA). A encenação aborda os 70 dias da prisão do educador pernambucano Paulo Freire no Recife, após o golpe de 1964. Relata o exílio do professor por 16 anos pela América Latina, Europa e África, e narra suas experiências como secretário de Educação da cidade de São Paulo. Estão no elenco os atores Daniel Barros, Júnior Aguiar e Márcio Fecher. A pesquisa, a encenação, o roteiro e a iluminação também são assinados
por Aguiar, que idealizou o projeto e tem a figura do cineasta Jomard Muniz de Britto como inspiração. “Nossa pesquisa e nossa dramaturgia alertam recorrentemente que a educação é um instrumento essencial na transformação da humanidade”, afirma o realizador, sobre o espetáculo pa(IDEIA) – Pedagogia da libertação. “Cabe ao teatro trazer para os palcos a reveladora história da educação brasileira, por séculos relegada ao segundo plano e, por décadas, escamoteada”, completa. “A cor vermelha simboliza a luta diária do coração humano em abrigar os sentimentos mais vivos da humanidade, como o amor, a paixão e a ira. Queremos o vermelho como conceito, como forma e conteúdo, como tema e argumento dos nossos desejos mais inflamados, simbolizando um estado de criação latente por abrigar ‘verdades desconcertantes’ que necessitam ser amplificadas”, referese Aguiar. Para o realizador, a trilogia contribui para um aprofundamento da cena contemporânea entre ator e espectador, estabelecendo diálogos diretos e tonificados sobre a realidade que nos constitui nessa coexistência. “Ao promover a aproximação temática entre arte, educação e
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religião de forma dialética, criamos espaços para exercitar, como atores criadores, a teatralidade desses discursos dissonantes que tanto nos interessa na atualidade”, esclarece. Além da trilogia, outro espetáculo político que ganhou repercussão no estado foi o solo Soledad – A terra é fogo sob nossos pés, de Hilda Torres e Malú Bazán. Soledad Barrett Viedma, guerrilheira assassinada pela agressiva ditadura militar brasileira, é revivida por Hilda, mesclando política e vida pessoal da paraguaia. Em consonância com a Trilogia vermelha, Soledad confronta a conjuntura política atual com movimentos pedindo a volta da ditadura militar ou gritando “chega de Paulo Freire”. Assim, a realidade provoca os realizadores a fazer essa reflexão simbólica. “Esses reencontros com o real levam-nos de volta à política por caminhos muito diferentes daqueles de outrora; não mais como agitprops ou grandes painéis históricos, mas por meio de formas concretas: investigações de campo, montagem de citações usadas literalmente, debates sociopolíticos dentro da representação”, caracteriza o professor Patrice Davis. ULYSSES GADÊLHA
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INFORMAL Um restaurante como se fosse uma casa
Apartamento recifense abriga “antirrestaurante” comandado por uma trupe que vê na comida uma oportunidade de partilha de sabores e experiências TEXTO Renata do Amaral FOTOS Daniela Nader
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Olhando de fora ninguém diz, mas
em um apartamento amplo e antigo no Bairro da Encruzilhada, no Recife, funciona um restaurante. Ao subir uma rampa para chegar ao primeiro andar do prédio, a porta se abre e é possível ver um salão com mesas e cadeiras coloridas, e instrumentos musicais pendurados na parede toda desenhada com giz. Ao lado do menu de bebidas, o quadro-negro pode trazer um poema ou palavras de apoio aos movimentos sociais. Em outro ambiente, mais uma mesa, a maior de todas, separada da cozinha doméstica apenas por uma estante de caixotes de madeira e garrafas com flores. Ou seria melhor dizer que se trata de um “antirrestaurante”? Essa é a ideia
das três donas da casa: a pediatra Lu Rodrigues, a enfermeira Jacque Farias e a doula Manu Duque. Quando a mãe de Lu, Maria Rodrigues, se formou em Gastronomia, em 2013, a filha ficou pensando em como ela poderia colocar em prática tudo que aprendeu, sem necessariamente ter que estar à frente de uma cozinha profissional. Maria convidou seu colega de turma Vinícius Arruda para acompanhá-la no comando das panelas e ele topou na hora. O Mundo Lá de Casa passou a abrir todas as quintas-feiras, com um menu diferente a cada semana. As amigas já dividiam apartamento desde 2012 e sempre recebiam amigos em casa. Somou-se a isso o fato de todas terem vontade de vivenciar algo
diferente da profissão. “A gastronomia é a arte mais completa, mexe com todos os sentidos”, opina Lu. Chegaram a pensar em abrir um bistrô, mas se depararam com a burocracia. Também não queriam comprometer o fim de semana – nem as idas de Maria à casa de praia. Então, abriram as portas de casa mesmo. A préestreia foi em dezembro de 2013, apenas para a família e alguns “amigos críticos”. Depois, além dos amigos, começaram a aparecer os amigos dos amigos. Antes do agendamento, elas pedem que as pessoas se apresentem por e-mail, falando um pouco de si. De volta, respondem sobre o funcionamento da casa: “A proposta é que vocês dividam a conta conosco, somando ingredientes, subtraindo gorjetas e impostos, multiplicando pelo prazer de comer bem e dividindo pelo número restrito de reservas”. A conta sai por R$ 90 por pessoa para uma refeição de cinco etapas. Cada casal pode trazer um vinho, mas água e café coado na hora são por conta da casa. Na assinatura da mensagem, um desejo: “Que seja doce!”. No começo, Lu lembra que muitos amigos se preocuparam com a novidade. Elas iriam mesmo aceitar cheques e transferências bancárias? E os convidados usariam o banheiro delas mesmo? “A gente está abrindo a porta da nossa casa e não vai confiar num cheque?” Nenhum contratempo digno de nota ocorreu até agora. As boas histórias para contar, ao contrário, vêm se somando. Desde os vizinhos que agendaram um jantar e só se identificaram no final da refeição até o marido da chefe de uma delas que emprestou um aparelho de ar-condicionado para o salão, sem data para devolução.
COZINHA AFETIVA
Para Jacque, a ideia de antirrestaurante vai além do pagar-e-consumir que acontece em um estabelecimento convencional. A relação é de colaboração, com os convivas dividindo a conta e os pratos saindo de um fogão simples, de quatro bocas. “A experiência mostrou que eles se sentem fazendo parte. As pessoas precisam disso, elas querem afetividade”, afirma. Alguns dos convidados – pois talvez a palavra cliente soe meio estranha por aqui – chegam a compartilhar o vinho
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trazido de casa com outras mesas. Não é incomum que amizades comecem no local, que abriga 20 pessoas. Em raras ocasiões, como quando a casa é fechada para um aniversário, aparecem pessoas que não captam bem a proposta. Responsável pela recepção e atendimento dos comensais, Manu não troca as taças a cada novo vinho, por exemplo, pois o enxoval não tem taças sobrando. Quando alguém reclama, ela se acocora e explica tudo pacientemente. “É preciso ter disposição de acolher o outro, mas dá certo e a gente consegue chegar junto. No final da noite, muitos já querem remarcar a volta.” Há também quem se sinta tão em casa, que já chega tirando os sapatos e ficando descalço a refeição inteira. Para receber O Mundo Lá de Casa, o apartamento alugado sofreu algumas adaptações. A cozinha, que já era o centro da casa, ganhou mais privacidade depois da reforma de baixo orçamento e com aproveitamento de objetos pré-existentes. “A gente queria fazer com que as pessoas vissem ser possível fazer isso em casa, retomar essa ideia de receber. Hoje em dia, tudo é feito em casa de festa”, afirma Lu, que não planejava ganhar dinheiro com o restaurante. “Agora, ele já paga uma parte da passagem da nossa viagem de férias.” Como a ideia é ter também um lado B para a ocupação profissional, no restaurante, cada uma faz o que gosta. É o caso de Jacque, responsável pela produção musical d’O Mundo Lá de Casa. “É ótimo ter 20 pessoas para me ouvir”, diz ela, que também convida amigos músicos para se apresentar. Vez por outra, a música deixa de ser trilha sonora das quintas-feiras e vira pocket show às sextas. “É uma proposta bem intimista, para poder ser ouvida de fato”, explica. Em volume baixo, para não incomodar os vizinhos. Eles, que eram a principal preocupação quando tudo começou, terminaram virando parceiros da história. Jacque conta que muitos não faziam ideia do que acontecia no apartamento. No aniversário de um ano, convidaram os vizinhos para jantar. “Algumas pessoas chegaram sem entender nada”, lembra Lu, que pede para os convivas não fazerem checkin em redes sociais para não expor o condomínio residencial.
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1 ÀS SEXTAS O espaço abriga pocket shows CHEFS 2 Vinícius Arruda e Maria Rodrigues comandam a cozinha
MENU CONFIANÇA
Dependendo do tamanho do grupo, o tempo de espera por uma mesa pode ser de três meses. Por isso, o menu termina sendo uma surpresa, já que é definido com alguns dias de antecedência. “Maria não dorme, se não testar tudo antes”, entrega Lu. Sua mãe responde pelo couvert e pela sobremesa em todos os encontros, e eventualmente também pela entrada. Os pães, de fermentação natural, ficam a cargo de Guilherme Guerra, que chegou à casa numa noite em que substituiu o amigo Vinícius e hoje aproveita o espaço para testar receitas. O cardápio varia a cada semana. O couvert pode ser manteiga maître d’hôtel (com salsinha e limão), berinjela siciliana, creme de provolone e ricota com pães artesanais. Como petisco, bacon e guaca (salada com guacamole, pimenta-caiena, crocante de bacon e crispy de cebola), seguido pela entrada nhoque púrpura (nhoque de inhame roxo com molho de queijo azul). E um salmão crostado (salmão selado com crosta de gergelim e purê de batata-doce com raiz-forte e molho de mel defumado) como principal, seguido pela sobremesa delícia
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tropical (abacaxi grelhado ao rum com sorvete de coco e chutney de manga). Vinícius conta que nunca monta o menu com a antecedência que gostaria. “É um processo muito intuitivo e caótico. Estou sempre lendo livros de gastronomia ao mesmo tempo e vou me alimentando de ideias e conversas.” Como a casa não tem estoque e trabalha com a quantidade exata de insumos, tudo precisa ser calculado. Ele comenta que busca valorizar os produtos locais, mas sem regionalismos, e diz que aprendeu muito com a avó de Surubim, no interior de Pernambuco. Ela já foi à casa e aprovou, mas estranhou a sopa espanhola gazpacho, servida gelada. Quando a trupe entra em férias, coloca avisos nas redes sociais e fecha as portas temporariamente. “Mas o Mundo ficou tão entranhado na rotina da gente, que fica até estranho quando não tem”, afirma Vinícius. A quarta e mais nova moradora da casa, a analista de sistemas e fotógrafa Virgínia Melo, também passou
pela mesma crise de abstinência: fez um curso que durou seis quintasfeiras e sofreu de saudade da sala cheia. “Essa delicadeza de receber em casa é um aprendizado incrível”, diz ela. Em breve, O Mundo Lá de Casa vai girar por outras paragens: as meninas se mudam para uma casa com quintal na Vila do Hipódromo, perto dali, em um espaço um pouco maior e mais isolado. A ideia é manter as quintasfeiras, com eventuais edições extras dos jantares, e continuar com o espírito de comunidade, até mesmo reunindo mais gente. “Queremos ampliar para o espaço ser mais coletivo do que já é”, explica Lu. “A gente acredita muito nesse formato de partilha”, sintetiza Jacque. Impossível passar pelo local e não se sentir também partilhando desse convívio.
ONDE ENCONTRAR O Mundo Lá de Casa mundoladecasa@gmail.com www.facebook.com/ omundoladecasa
COMIDA DE RUA DA ROBERTA Uma antiga borracharia do Leblon deverá ser um dos points gastronômicos do Rio de Janeiro em 2016. A chef Roberta Sudbrack (acima) inaugurou, no mês passado, o seu “quiosque” Da Roberta, que certamente fará sucesso neste ano de Jogos Olímpicos. Ela foi eleita a Melhor Chef Mulher da América Latina pela 50 Best, seleção da revista inglesa Restaurant. No cardápio do seu “gastrobar” de rua, estão embutidos artesanais, como linguiças, salsichas, pastrami, vinhos e cervejas especiais (uma delas feita pela chef, a SudBeer). As comidinhas custam entre R$ 9 e 29. O espaço fica na Rua Tubira, 8/loja A, Leblon.
França
OS MESTRES DAS CASSEROLES Acaba de sair a nova edição do Le grand dictionnaire des cuisiniers, um compêndio com mais de 900 páginas voltadas à produção da culinária da França, conhecida por sua vitalidade e sofisticação. O livro reúne os grandes nomes por trás das caçarolas francesas, mais especificamente 1.100 biografias de cozinheiros, além de documentos e lembranças compiladas por meio de depoimentos e imagens. Uma pesquisa de 25 anos, um “trabalho de louco”, como define Jean-François Mesplède, ex-diretor do Guia Michelin e responsável por essa reedição. O dicionário saiu pela editora Editions Page d’Ecriture, por enquanto, só em francês.
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Sonoras
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FREVO O ritmo como espinha dorsal
Frevotron e A Troça FrevoAltenativo produzem experimentações sonoras, aliando o gênero musical a outros, como a eletrônica e o rock’n’roll TEXTO Maria Eduarda Barbosa
1 FREVOTRON Maestro Spok, DJ Dolores e Yuri Queiroga compõem o projeto
A mistura de gêneros musicais não é novidade em Pernambuco. As guitarras urbanas misturaram-se às alfaias do maracatu, no Manguebeat, que explodiu nos anos 1990, trazendo remanescentes até os dias de hoje. Dois projetos navegam na corrente do hibridismo musical que tanto permeia não só Pernambuco como o Brasil: Frevotron e A Troça FrevoAlternativo. Longe de criar um movimento ou se inserir em algum já existente, eles colocam o frevo como uma espinha dorsal de suas músicas. É a partir do ritmo secular que esses grupos criam agradáveis experimentações sonoras. Da contração entre o frevo e eletrônico, surgiu o Frevotron, projeto que nasceu em trabalhos realizados pelo Maestro Spok, DJ Dolores e Yuri Queiroga. Esses dois últimos são parceiros na música desde 2007, quando começaram a gravar juntos. Em uma turnê feita por eles, no Canadá, surgiu o projeto Stank, o precursor do Frevotron, repleto de experimentações, música eletrônica e com a produção de um EP com seis faixas, lançado por um selo londrino. A princípio, o Frevotron seria apenas um show com os três integrantes juntos. Mas, aí, iniciou-se a gravação das músicas que compõem o primeiro disco do projeto, lançado C O N T I N E N T E JA N E I R O 2 0 1 6 | 6 7
virtualmente em outubro de 2015. “A primeira vez em que a gente se juntou em um estúdio para tocar foi a pedido de uma TV da Noruega, que fez uma matéria aqui, no Recife. A gente preparou uma faixa e deu uma entrevista a eles já como Frevotron”, conta Yuri Queiroga. Esse nome surgiu a partir de conversas entre DJ Dolores e Jorge Du Peixe. “Sobre unir nossos amigos para recriar e atualizar, de modo pop, esse gênero que tanto nos agrada, não apenas musicalmente, mas também como identidade cultural”, completa Dolores. Apesar de partir do frevo, o projeto se expande para outros gêneros musicais que trazem influências dos três integrantes, como a música
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popular, a eletrônica, o jazz, o rock’n’roll e o hip hop. Inicialmente, o projeto seria apenas um trio instrumental, mas se tornou uma grande colaboração, na qual as canções possuem letras de artistas como Jorge Du Peixe, Otto, Lira, Marion Lemonier e MC Sombra, além da participação de Jam da Silva em quatro faixas. Todas as letras foram compostas pelos próprios artistas. “Não teve ninguém que cantasse uma letra que não fosse sua”, ressalta Yuri. Apesar disso, o Frevotron torna-se um trio instrumental nos shows. Nessa ocasião, as vozes entram apenas como samples, que DJ Dolores solta durante alguns momentos. Yuri também conta que Dolores é quem fica mais à frente no processo de produção. “No final, sempre tem o último corte dele na edição. Por isso, acaba sendo muito próximo da música eletrônica”, pontua. No primeiro disco do Frevotron, as 10 faixas trazem o frevo harmonicamente simplificado. Intitulada Invocação #2, a canção que abre o álbum também foi a
Experimentações dos grupos com frevo agregado a outras formas musicais surgem de inquietações primeira a ser produzida pelo trio e é totalmente instrumental. Enquanto isso, Marion Lemonnier adentra-se no universo ainda hegemonicamente masculino da música e colabora, a distância, em duas músicas, Soufle et son e The last train, sendo essa última também com a participação de Lira. Em meados de janeiro de 2015, o trio gravou as vozes de Jorge Du Peixe, que faz parte da canção Travessia, MC Sombra (Garoto-rima) e Otto, em Frevo escroço. Já a faixa Bela Vista Social Club homenageia a dupla Waldir Português e Edinho Jacaré, que comandam a comentada festa Cubana, que ocorre no Clube Bela Vista, no Bairro de Água Fria, zona norte do Recife, tendo a música latina como protagonista.
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A capa do disco tem ilustração do paraibano Shiko, que desenhou um corpo com cabeça de elefante. “Gostamos da ideia, por ser um animal que tem um ‘instrumento de sopro’ em sua constituição física, por ser pesado e estranho, e principalmente pela fama de ter boa memória”, comenta Dolores.
DE REPENTE, ROCK
A Troça FrevoAlternativo – é a partir dessas duas nomenclaturas que o grupo de Camaragibe designa seu significado. O grupo surgiu em meados de 2009, quando o vocalista Uel Borges retornou de João Pessoa a Pernambuco. Influenciado pelo sertão paraibano e pela visão de fora sobre seu estado, as composições nasceram ao longo de sua estada de dois anos na Paraíba. “A banda surge com cinco canções, de gêneros diferentes. A gente chamava de regional, porque tinha baião, forró e tal”, conta Uel. Em casa, Uel teve uma base musical. Seu pai é violonista e o irmão toca saxofone. “A brincadeira da gente era compor. Cantávamos
INDICAÇÕES 2 A TROÇA Banda surge do desejo dos integrantes de praticar “guerrilha” musical com o frevo
músicas que inventávamos”, rememora o vocalista.Mas foi numa breve diáspora que Uel passou a compor. “Música tem muito a ver com a imagem, para mim. O cenário nordestino me ajudou a criar. Há muita propriedade quando a gente fala da caatinga, dos olhos verdes das pessoas. Em algumas músicas, repito esse termo: olhos verdes da cor de cana. Tenho uma escrita muito voltada para a imagem, para a fisionomia das pessoas”, exemplifica. Na Paraíba, ele começou a fazer canções para sua cunhada cantar. Mas ela não as utilizou e, como resultado, ele criou a banda, que conta com mais cinco integrantes, incluindo seu irmão Ivson Borges. Inicialmente, havia uma forte influência regional. A música A volante, por exemplo, é recitada, porém com uma base rock’n’roll. A partir da nomenclatura troça, que foi colocada por dois ex-integrantes, surgiu a ideia de falar sobre situações lúdicas, carnavalescas. O nome passou a orientar o ritmo. Nos shows, a banda interage com o público através de um megafone, referência à cultura popular. Para o vocalista, é necessário ir além da mistura de ritmos. Isso porque ele passou a observar o público nos carnavais recentes. As pessoas dançavam, mas tinham uma reação de estranhamento assim que a banda mudava do frevo para o rock. Hoje, o grupo preocupa-se em usar o ritmo pernambucano
como elemento principal das músicas. A Troça possui dois EPs, lançados e gravados de maneira totalmente independente. O primeiro, intitulado Na quarta-feira, conta com três canções, enquanto o segundo, Megafone frevo, possui oito músicas. Nesse último, a discussão em torno do frevo atinge seu ponto alto. “É a culminância do que a gente pensa a respeito da guerrilha que temos com o ritmo, que é um patrimônio nosso, e a gente não consegue ouvi-lo o ano inteiro”, observa Uel. Nesse EP, a banda utiliza dois elementos indispensáveis. O frevo como ritmo e o megafone, cuja função é, segundo o vocalista, ser um instrumento de protesto. “Se eu tenho um ritmo que é patrimônio da minha cultura, por que não posso exercê-lo o ano inteiro? Quero que as pessoas absorvam isso e que não se sintam incomodadas em ouvir a banda em outras épocas do ano.” O próximo EP do grupo tem previsão de lançamento para 2017. No entanto, ele já possui um título: O homem que perdeu sua batuta, só que em latim. Será uma homenagem ao avô do baixista, que foi barrado no seu próprio bloco de carnaval.
SERVIÇO Para fazer o download gratuito do disco do Frevotron, acesse: http://djdoloresmusic.com/ frevotron-2/ Para ouvir as músicas de A Troça FrevoAlternativo, acesse: https:// soundcloud.com/ atrocafrevoderepenterock
ALTERNATIVA
ELETRÔNICA
XL Recordings
Independente
IBEYI Ibeyi
RADIOLA SERRA ALTA Computador de Ciço
Filhas do falecido Anga Diaz, membro do Buena Vista Social Club, as irmãs Naomi e Lisa-Kainde Diaz formam a dupla Ibeyi, que significa gêmeas em iorubá, língua que lhes foi ensinada pelo seu pai. As artistas franco-cubanas lançaram seu primeiro álbum em 2015 e misturam cânticos em iorubá com batidas leves de jazz. Naomi toca batá e cajón, instrumentos tradicionais cubanos, enquanto Lisa toca piano, criando uma mescla de música tradicional e moderna.
Um Daft Punk do Nordeste. É assim que se parece a dupla Radiola Serra Alta: mascarados, anônimos, produzindo música eletrônica com pegada forte. Esse disco faz uma mistura que dá certo, como eles dizem: “um eletrococo muderno”. Mesclam ritmos como forró, coco e aboio com elementos eletrônicos, tal como dub, jungle e drum and bass. O álbum tem 11 faixas e foi produzido ao longo de três anos de experimentação. A caracterização incógnita dos DJs segue a tradição da cidade pernambucana de Triunfo, dos brincantes a Veinha e o Careta.
ROCK
POP
EDGARD SCANDURRA E SILVIA TAPE est Selo 180
Edgard Scandurra e Silvia Tape criaram tamanha coesão no disco est, que até as iniciais da dupla se sobrepõem nesse acrônimo sugestivo. Scandurra criou as melodias, em 2009, para o que seria um disco instrumental lo-fi. Tape escreveu as letras do álbum. O guitarrista pensou numa voz doce para músicas. Silvia topou e acrescentou material ao trabalho. São 10 canções simples, sem voos na guitarra, solos delirantes. Ambos buscaram o singelo, a contemplação, quase um transe.
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MARINA LIMA No osso - ao vivo Universal Music
“Voz e violão: quem tiver comigo, está. Quem não tiver, tchau. Eu sou isto. Quer o passado? Compra um disco antigo. Eu sou isto, essa sou eu”, diz a cantora e compositora Marina Lima, no vídeo sobre seu novo disco. A ideia é retornar às raízes da composição, mostrando suas canções nuas, ao vivo. São 14 músicas, duas novas – Partiu e Da Gávea –, outras releituras de compositores amigos, a maior parte assinada por Marina. Com ar de libertação, o álbum renova as forças da cantora, que empunha o violão e sente prazer em ouvir a própria voz.
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Visuais
MUSEU DO AMANHÃ Novo espaço para fruir ciência e tecnologia
Foi inaugurado equipamento cultural no contexto do centro histórico do Rio de Janeiro, na Praça Mauá, com projeto de Santiago Calatrava TEXTO Luciana Veras
De onde viemos? Quem somos? Para
onde vamos? Indagações existenciais, tão antigas quanto a própria vida, conectam-se a informações e dados científicos para erigir a experiência sensorial no Museu do Amanhã, em funcionamento desde o final de dezembro na Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro. Não existe hoje, no Brasil, uma proposta museológica que se equipare ao que este equipamento cultural oferece ao público. Não há um parâmetro para o cotejamento, inclusive no que alude ao projeto arquitetônico
criado por Santiago Calatrava – o que torna a visita ainda mais singular. O Museu do Amanhã é, a rigor, um museu de ciência e tecnologia, ancorado na ideia de propor uma reflexão sobre o homem e a Era do Antropoceno. Para tanto, opera com imersões em meios audiovisuais e instalações interativas. “Um ambiente de ideias, explorações e perguntas sobre a época de grandes mudanças em que vivemos e os diferentes caminhos que se abrem para o futuro. O Amanhã não é uma data no calendário, não é um lugar aonde
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vamos chegar. É uma construção da qual participamos todos, como pessoas, cidadãos, membros da espécie humana”, resume o texto de apresentação estampado na parede do átrio principal. É, também, a concretização de uma parceria estabelecida entre a Prefeitura do Rio e a Fundação Roberto Marinho, tendo como mantenedor o Banco Santander, que investiu R$ 65 milhões e garantiu o apoio à instituição até 2023. Números são superlativos: o museu fica numa área de 5 milhões de metros quadrados que, desde 2010, vem passando por um intenso processo de redesenho e requalificação. É a porção do centro do Rio que compreende a operação urbana Porto Maravilha, na qual serão despejados, até 2026, R$ 8 bilhões. E é, também, a menina dos olhos da antiga capital do Brasil, com obras que abrangem mobilidade, habitação e cultura. É um alento constatar que os esforços financeiros da gestão do Rio, sede dos Jogos Olímpicos deste ano, atingem o âmbito cultural. E que o fazem em uma área de uma certa forma negligenciada ao longo de várias décadas. Em 2013,
a Praça Mauá já havia se reinserido no circuito artístico com a inauguração do Museu de Arte do Rio/MAR. Santiago Calatrava, o mesmo arquiteto que desenhou o complexo olímpico de Atenas, aliou organicidade e arrojo ao conceber a estrutura, cuja cobertura metálica pesa 3,8 toneladas e é dotada de 5,5 mil placas voltaicas para a captação de energia solar. Foi divulgado que a inspiração de Calatrava veio das bromélias do Jardim Botânico do Rio. O balé das formas se assemelha a outros projetos seus, como a estação do TGV em Liège, a Turning Torso, na cidade sueca de Malmo, e mesmo ao hub de transporte que funcionará no novo World Trade Center, em Nova York. O curioso é que o píer onde se ergueu o museu ainda não havia sido utilizado. “Foi construído como um atracadouro em 1940 e nunca funcionou como tal”, observa Alberto Silva, presidente da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro/Cedurp, o braço da prefeitura encarregado das obras do Porto Maravilha. “O Museu do Amanhã dá uma nova paisagem ao Rio e consolida
o processo de requalificação da Praça Mauá, fazendo parte de uma rede de 25 equipamentos culturais nos arredores. Nosso objetivo agora é trabalhar para que o Cais do Valongo, que foi o maior cais de desembarque de escravos da humanidade, seja reconhecido como patrimônio pela Unesco”, completa Silva. Ao adentrar o Museu do Amanhã, a primeira surpresa é com uma esfera de LED de 4 metros de diâmetro, suspensa no teto, que emite os sinais vitais do planeta – tsunamis, queimadas, furacões, nevascas. É como se fosse uma tomografia da Terra. À direita, funciona o Laboratório de Atividades do Amanhã, para o qual serão lançados editais com o intuito de financiar inovação. “Qualquer projeto, seja um protótipo, uma exposição, uma performance ou mesmo um jogo, poderá ser submetido. A ideia é que a galeria tenha grande flexibilidade. Nesse primeiro momento, foi convidado o coletivo dinamarquês Superflex, que trouxe os trabalhos Copy light factory e a Free beer, na perspectiva do open source, o código aberto”, explica o físico Luiz Alberto Oliveira, curador do Museu do Amanhã. Ainda no primeiro pavimento, o visitante se depara com a instalação Perimetral, construída e assinada por Vik Muniz, Andrucha Waddington e pelo estúdio de design e tecnologia carioca SuperUber a partir das imagens da explosão do elevado que se sobrepunha à Praça Mauá. Também, com um impressionante espelho d’água de 9.200 metros quadrados, sobre o qual se impõe uma escultura do artista norteamericano Frank Stella (três toneladas de alumínio em forma de uma estrela), que parece desembocar na Baía de Guanabara. Segundo Luiz Alberto Oliveira, o espelho d’água foi idealizado por Santiago Calatrava para gerar uma espécie de microclima: “Ele usa a água para que a temperatura caia cerca de 1,5 ou 2 graus”. O curador do Museu do Amanhã relata que, em um dos encontros que teve com o arquiteto espanhol, ouviu dele a seguinte definição: “Um museu do século 21 tem que ser como as catedrais medievais dos séculos 13 e 14. A pessoa que nele entrar deve ter uma sensação de arrebatamento”. Ao subir as escadas e se aproximar da exposição permanente, compreende-se melhor as palavras
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de Calatrava. O espectador é levado a passear por um percurso narrativo que espelha as indagações existenciais trazidas no início deste texto, através dos segmentos Cosmos, Terra, Antropoceno, Amanhãs e Nós. Em Cosmos, a tríade que ampara conceitualmente o museu – filosofia, ciência e arte – traduz-se num mergulho audiovisual pela história da Terra. Em um domo preto de 360º, a proposta é entrar e deitar no chão ou apoiar-se em um suporte inclinado de madeira para acompanhar as projeções que se estendem por todo o teto. No ambiente Terra, três cubos de 7 m x 7 m redimensionam a ideia de “matéria”, “vida” e “pensamento”. Quando se chega ao lugar em que se problematiza o Antropoceno, seis totens de LED anestesiam o visitante com imagens e informações sobre a ação do homem no planeta que habita. “Como queremos viver?” é a pergunta-chave. 25% dos mamíferos entraram em extinção, 19% dos corais marinhos morreram, 24 dos 33 maiores deltas fluviais afundaram… Os resultados da conduta humana são mostrados com ímpeto, de modo a provocar o espectador. O mesmo se dá nos dois últimos passos do percurso narrativo – Amanhãs e Nós. Vários jogos interativos e um acúmulo de perguntas elaboradas com o auxílio da equipe consultiva se apresentam e convidam o visitante a conjecturar a respeito de como será o futuro. A única peça física do Museu do Amanhã é o churinga, objeto da cultura aborígene da Austrália que se posiciona ao centro de uma oca criada com estrutura de madeira. Para falar do Nós, recorreu-se a um ambiente em que luz e som se imbricam para forjar uma ode ao conhecimento, à memória e ao porvir. “O churinga costura o passado e o futuro, isso é o propósito do museu. Em algum lugar do mundo, o sol já está nascendo e já é o amanhã”, resume Oliveira. Por fim, um trecho de Atlas, conto do escritor argentino Jorge Luis Borges, relaciona o gesto de jogar um punhado de areia ao vento a transformar o deserto do Saara. Para a construção do futuro, o clichê é verdadeiro: cada pequenino grão de areia tem seu papel. A jornalista viajou a convite do Santander.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
MINHA ODE MARÍTIMA
Quando tive a honra de ser convidado por José Paulo Cavalcanti Filho para participar da exposição sobre o grande poeta português Fernando Pessoa, me perguntei se fazia jus ao convite, se me sentia à altura, porque certamente o mais velho dos convidados, mais idoso dos expositores, não poderia comparecer com nada que não fosse condizente com a minha estatura pelo menos em anos. Contava com essa expectativa a meu respeito por parte dos numerosos admiradores não somente do poeta como do autor do Fernando Pessoa/uma quase autobiografia, livro premiado, traduzido até em romeno e hebraico, mas principalmente devendo corresponder à expectativa do público recifense: com esse é que eu ia topar de frente; em todos os sentidos, o mais significativo para mim. Nascido aqui perto, em Ipojuca, por mais que tenha andado mundo afora, o Recife sempre foi minha Grécia e à gente daqui é que devo satisfação. E mais, estar à altura do valor que me dá o próprio Zé Paulinho, de longa data, não podendo
mandar para a mostra um trabalho que não se destacasse. E foi lá, na própria residência de Zé Paulinho, que me surgiu a ideia de me apropriar, de me apossar, de transformá-lo em meu, trecho da Ode Marítima que ficara ecoando em minha cabeça, ou melhor seja dito, reverberando na minha memória visual, aquele poema à parte, desde que o li, ou vi, e lá se vão não sei quantas décadas. A poética ali dependia menos da leitura propriamente dita do que da organização de letras mas como sinais ou estampas despregados do compromisso linguístico: não sou de falar difícil mas é a maneira mais simples que me ocorre de relatar o fato. O quadro exposto é uma das mil recriações possíveis: poderia fazer uma exposição inteira somente com esse trecho da Ode Marítima. Sabia que nem todos apreciariam esse trabalho, esse quadro, também por ter ligação com um meu lado pouco conhecido, uma parte menos divulgada da minha obra, digamos assim. A única pessoa que percebeu essa ligação, assim que viu o quadro, bateu o olho e
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sacou na hora, foi meu filho Mané Tatu. Olhou e disse: “Carimbinhos”. E de onde vêm esses “carimbinhos”? Eu trabalhava como ajudante de desenhista, não era nem desenhista, na Sudene onde fiquei mais de dez anos, triste fim de quem tinha ganho prêmio na Bienal de São Paulo, passado um ano na Itália estudando arte, visto museus na França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Suiça, Espanha e Portugal, quase se dando comigo o que se deu com o protagonista do conto Um escritor fracassado de Máximo Gorki. Minha seção na Sudene devia apresentar uns mapas de plantações do Projeto de Morada Nova, Ceará, o tempo curto para fazer centenas ou milhares de desenhinhos representando tipos de árvores e me lembrei de uns carimbinhos que recortava com a gilete na escola tempo de menino e saíamos carimbando nos cadernos, geralmente nossas iniciais, não sem a repreensão de pais e professoras. Melávamos na tinta azul de escrever à pena, agora substituída pelo nanquim de desenho. Deu certo. Era para apresentar ao
REPRODUÇÃO
1 ODE MARÍTIMA Acrílico sobre tela, 1,5m x 1,5 m, 2015, de José Cláudio
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embaixador do Israel. Depois disso, em casa, fiz outros carimbinhos e continuei, por puro deleite, a experimentá-los em diversos tipos de papéis. Fui surpreendido em pleno ato por Jomard Muniz de Britto e Moacy Cirne, norte-riograndense radicado no Rio de Janeiro, dizendo-me este, muito admirado, que eu estava fazendo poema-processo, coisa de que nunca tinha ouvido falar. Foi assim que entrei em contato com o poema-processo. Comecei a receber publicações de todo o Brasil principalmente do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Cheguei a produzir alguns livrinhos usando os carimbinhos como tipografia, o que encantou Paulo Bruscky. Isso era 1968. O grande desenhista paulista Arnaldo Pedroso d’Horta gostou muito desses meus desenhos de carimbos e patrocinou uma exposição dos mesmos na Associação dos Amigos do Museu de Arte Moderna, em São Paulo, cujo único êxito, para mim muito gratificante, consistiu no fato da sua boa acolhida, ele que era extraordinariamente exigente. Paulo Bruscky aliás comparece à bela exposição Pernambuco
O quadro exposto é uma das mil recriações possíveis: poderia fazer uma exposição inteira somente com esse trecho da Ode Marítima Experimental do Museu de Arte do Rio, MAR, 10/10/2013 a 30/03/2014, organizada por Clarissa Diniz, que peço licença para chamar de intrépida, brilhante, coisas desse tipo, além de grande trabalhadora, séria, estudiosa, e parabéns a Paulo Herkenhoff pelo belíssimo catálogo, precioso documento sobre a arte de Pernambuco no século 20: fazer parte da exposição, ter os desenhos de carimbos e outras obras estampadas no catálogo, vale por uma consagração. Em relação especificamente à arte-processo, ao poema-processo, há uma publicação dessas que vez por outra reacendem a nossa fé no Brasil: a coleção em seis volumes Poetas do modernismo, Instituto Nacional
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do Livro, 1972, em comemoração ao cinquentenário da Semana de Arte Moderna. No sexto volume, o último capítulo é dedicado ao poemaprocesso, muito competente, com estudos críticos, entrevistas, manifestos e uma antologia com comentário poema por poema. Os principais nomes, os mais assíduos e combativos, estão ali representados ora como teóricos, ora através de suas obras como poetas: Álvaro de Sá, falecido em 2011, que lamento não ter conhecido pessoalmente, Vlademir Dias Pino, Antônio Sérgio Mendonça, José Nêumane Pinto, Hugo Mund Junior, bem uns trinta. Por isso, Zé Paulinho, esse quadro, me deu grande alegria tê-lo parido, um gesto de juventude, como bem avaliou um visitante da sua exposição, o escritor Sidney Rocha, dizendo que era o único quadro jovem; coincidindo com o que disse a diretora do Museu do Estado, Margot Monteiro, que os jovens fazem fila diante dele. Nasci para musa inspiradora, privilégio do qual, apesar de octogenário, não abdico.
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EUA Como se elas não pisassem o mesmo chão
Discurso da atriz Viola Davis, de que o que separa as “mulheres de cor” de outras é oportunidade, exibe relação excludente de Hollywood com negras TEXTO Márcio Bastos
1 HATTIE MCDANIEL Como escrava em ...E o vento levou, ela ganhou Oscar de atriz coadjuvante
Em 29 de fevereiro de 1940,
os maiores astros de Hollywood estavam reunidos no Coconut Groove, clube noturno do igualmente badalado Hotel Ambassador, em Los Angeles. Bette Davis, Vivien Leigh, James Stewart e Clark Gable conversavam animadamente enquanto bebericavam e fumavam, talvez um tanto alheios ao que se passava fora daquelas paredes. Afinal, ainda estamos um ano antes da entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, e Hollywood acabara de celebrar um dos melhores momentos de sua história, com o sucesso arrasador de películas como …E o vento levou. No fundo do salão, sentada com seu empresário e um acompanhante, uma mulher negra, elegante em seu vestido longo, flor no cabelo, um tanto acima do peso padrão perpetuado nas telonas, deve ter observado aquela cena, seus amigos, colegas de profissão, com um misto de emoções. Hattie McDaniel, aclamada nacionalmente por seu papel como a escrava Mammy, em …E o vento levou, caminhou rumo ao palco com um sorriso no rosto, ao ser anunciada como vencedora do prêmio de melhor atriz coadjuvante na 12ª edição do Oscar. Muito aplaudida,
VIOLA DAVIS 2 Em setembro do ano passado, foi a primeira negra a ganhar o Emmy de melhor atriz
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fez um discurso emocionado. “Espero sinceramente que eu sempre seja um mérito para a minha raça e para a indústria cinematográfica.” Com o coração cheio, como ela mesma disse, segurou as lágrimas até o último instante, até que não pôde mais contê-las e saiu do palco, de volta à sua solitária mesa.
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Primeira pessoa negra a ganhar um Oscar, Hattie McDaniel quase não conseguiu receber seu prêmio, já que o hotel onde a cerimônia ocorreu não permitia a entrada de negros, atitude legalizada pelo sistema segregacionista no país. Com muito esforço de seus amigos na indústria, os donos do local autorizaram a
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participação da atriz, sob a condição de que ela ficasse em uma área à parte dos colegas de profissão. Se o racismo encontrava nos tribunais legitimidade, no cinema, ele era institucionalizado, relegando aos afrodescendentes papéis estereotipados, quase sempre de serviçais, o que só reforçava a ideologia excludente que ainda dividia os Estados Unidos décadas após o fim da escravidão. Tome-se por exemplo Hattie: dos 94 papéis pelos quais foi creditada, 74 eram de empregadas domésticas ou escravas. Questionada por grupos ativistas do movimento negro sobre a razão pela qual continuava a aceitar esse tipo de personagem, ela disse: “Prefiro ganhar US$ 700 por semana interpretando uma empregada do que ganhar US$ 7 sendo uma”. O Oscar, como prêmio máximo da indústria cinematográfica, refletia essa realidade e manteve um relacionamento problemático com a comunidade negra, ignorando-a por décadas e falhando em reconhecer o talento de seus artistas.
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3 WHOOPI GOLDBERG Em Ghost, em 1990, atriz encontra enorme sucesso 4 HALLE BERRY Atriz é aprimeira negra a receber Oscar de melhor atriz por A última ceia, em 2002 FOXY BROWN 5 Filme de ação consagra atuação de Pam Grier
“Pode-se dizer que existe um racismo institucionalizado (em Hollywood) que faz com que os atores negros ocupem principalmente papéis secundários, quando não estereotipados. Nesse contexto, as mulheres negras acabam sendo representadas em menor número e, principalmente, com menos destaque”, afirma o doutor em Comunicação Deivison Cézar Campos. O tema da exclusão dos afrodescendentes em papéis de destaque nas grandes produções voltou às manchetes quando Viola Davis venceu o Emmy de melhor atriz em série dramática, em setembro de 2015, tornando-se a primeira negra a ganhar na categoria, em quase 50 anos da premiação. “A única coisa que separa mulheres de cor de qualquer outra pessoa é oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por um papel que simplesmente não está lá”, afirmou. “A repercussão da obviedade dita por Viola Davis deveu-se mais ao desconforto causado por
Pesquisa aponta que, dos 100 filmes mais vistos em 2014, 73,1% dos papéis eram interpretados por artistas brancos desnaturalizar essa invisibilidade do que por se tratar de uma novidade”, complementa Deivison. Os dados estão aí e só não vê quem não quer: de acordo com uma pesquisa da Escola de Comunicação e Jornalismo USC Annenberg (EUA), dos 700 filmes que mais lucraram entre 2007 e 2014, apenas 30,2% dos personagens com fala eram mulheres. E dos 100 filmes mais vistos em 2014, 73,1% dos papéis eram interpretados por artistas brancos.
BLACKSPLOITATION
Da histórica vitória de Hattie McDaniel até a de Whoopi Goldberg, em 1990, por Ghost, única não branca
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no trio de protagonistas do filme, também como atriz coadjuvante, houve um hiato de 50 anos sem que uma negra levasse para casa a estatueta dourada. Posteriormente, seria preciso mais de uma década até que o prêmio fosse novamente para as mãos de uma mulher negra. Desta vez, em 2002, Halle Berry entrou para os livros de história como a primeira atriz negra a ganhar o Oscar de Melhor Atriz por sua atuação em A última ceia. Naquele ano, outro fato inédito: além de Berry, Denzel Washington foi eleito melhor ator, fazendo com que, pela primeira vez, dois afro-americanos tivessem seus trabalhos reconhecidos nas categorias principais da premiação. Como se pode observar, o caminho para o estrelato, no caso dos artistas negros – e ainda mais especificamente no caso das mulheres afrodescendentes –, é tortuoso. Exceções conseguiam “furar” a barreira que Hollywood impunha. Alguns papéis mais diversificados, a maioria de coadjuvantes, começavam a surgir,
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6 EMPIRE Série de TV é protagonizada por atores negros
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assim como poucas oportunidades de estrelato. O musical Carmen Jones (1954), estrelado por um elenco composto apenas por negros, protagonizado por Dorothy Dandridge, foi um sucesso e rendeu à protagonista a primeira indicação de uma negra à categoria de melhor atriz. Ao longo das décadas de 1960 e 1970, principalmente com as conquistas do movimento pelos direitos civis dos negros, que acabou com a legalidade do sistema segregacionista nos EUA, a representação dos negros nos filmes e na televisão começa a se diversificar, ainda que muito timidamente, principalmente devido ao fortalecimento de nichos de
O Blacksploitation é um movimento que, surgido na década de 1970, oferece protagonismo às atrizes negras mercado. Dentro desse contexto, surge o Blacksploitation, movimento que, entre outras mudanças, deu protagonismo às mulheres negras em filmes de diferentes conteúdos, inclusive os de ação, como é o caso de Foxy Brown, que imortalizou Pam Grier. “É o primeiro movimento organizado de combate ao racismo
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no campo do entretenimento audiovisual. Ele tem essa relevância histórica inquestionável de ter aberto um caminho e gerado alguns ícones importantes”, pontua o professor de Cinema da UFPE Rodrigo Carreiro. “Do ponto de vista político, ofereceu elementos de identificação e produziu um imaginário afrorreferenciado que apoiou o processo de ressignificação de ser negro nos Estados Unidos”, complementa Deivison. Em 1972, pela primeira vez, duas afrodescendentes foram indicadas ao Oscar de melhor atriz: Diana Ross, por Lady sings the blues, e Cicely Tyson, por Sounder. Ao longo da década de 1980 e 1990, intérpretes como Diahann Carrol, Oprah Winfrey, Margareth Avery e Angela Bassett também receberam indicações por papéis que já ensaiavam (e em alguns casos conseguiam) fugir dos estereótipos. Na categoria de melhor atriz, no entanto, de 1993 a 2001, quando Halle Berry levou a estatueta, nenhuma negra chegou sequer a ser indicada. A representação das mulheres de cor continuava mínima nos filmes, com algumas exceções dignas de nota, a começar pela própria Berry. Entre as coadjuvantes, o quadro é um pouco mais animador. De 2002 a 2013, nove atrizes receberam indicações, com quatro vitórias: Jennifer Hudson (2006), Mo’Nique (2009), Octavia Spencer (2001) e Lupita Nyong’o (2013). Nas últimas duas edições da premiação, no entanto, nenhuma negra foi indicada nas categorias de atuação.
INDICAÇÕES Mais do que um sinal da falta de prestígio da Academia com os artistas afrodescendentes, essas estatísticas mostram que, apesar dos avanços, ainda são limitados os papéis para os negros em Hollywood. “O Oscar é uma premiação ligada à indústria cinematográfica. Filmes de maior investimento e bilheterias muitas vezes tensionam os prêmios mais nobres, como o dos atores e atrizes. É possível dizer, então, que o preconceito começa nas produções”, aponta Deivison. “Os personagens principais dificilmente são negros. Quando isso acontece, os atores e atrizes se repetem. Numa análise mais atenta, sempre aparecem personagens negros, mas os papéis são periféricos à narrativa principal”, completa.
TV VANGUARDA
A televisão, com séries de sucesso estreladas por negros, como Um maluco no pedaço, Eu, a patroa e as crianças e Todo mundo odeia o Chris, teve papel importante em subverter estereótipos (ainda que às vezes pelo uso dos mesmos) e abrir espaço para os intérpretes negros. Mais recentemente, uma nova leva parece provocar uma mudança na forma como, principalmente, as personagens femininas negras são representadas, indicando um possível avanço positivo. O papel que deu a vitória a Viola Davis no Emmy, Annalise Keating, de How to get away with murder, e a série Scandal, estrelada por Kerry Washington, por exemplo, são exemplos de programas com
protagonistas fortes, bemsucedidas e moralmente complexas. Ambos foram escritos por Shonda Rhimes, considerada uma das responsáveis por esse momento de maior protagonismo na TV estadunidense. Outras produções que se destacam pela forma diversa como apresentam as mulheres negras são Orange is the new black, escrita por Jenji Kohan, que também discute outras questões, como gênero, sexualidade e classe; e Empire, atualmente a série mais popular dos EUA, com média de 22 milhões de espectadores, e estrelada majoritariamente por negros. “A TV, nos EUA, talvez por ser uma mídia mais dinâmica e sensível a mudanças sociais, ou por envolver uma quantidade muito maior de projetos e pessoas, permite que a época de gradual tomada de consciência sobre o racismo que vivemos hoje gere consequências objetivas mais rapidamente”, acredita Carreiro. “A produção televisiva, lá, tende a ser mais multifacetada e interessante do que a produção cinematográfica.” Apesar de não ser possível apontar com veemência uma transformação profunda do racismo nos filmes e séries, é animador perceber um movimento de inquietação e questionamento dessas barreiras impostas, com grupos de atores, roteiristas, produtores e escritores pressionando por novos caminhos. Para que haja mais e mais Hatties, Violas, Shondas, Halles, Lupitas e Whoopis. Para que elas não sejam exceções.
DRAMA DRAMA
TÁXI TEERÃ
Dirigido por Jafar Panahi Com Jafar Panahi Imovision
Proibido de realizar filmes pelo governo pela postura crítica das suas obras, o iraniano Jafar Panahi achou um jeito peculiar de driblar a proibição: fingir ser um motorista de táxi. O filme Táxi Teerã, que pretende ser um documentário, é um convite à realidade iraniana encenada por não atores que contracenam com o próprio diretor dentro de um táxi pela capital do Irã, mostrando as dificuldades do país.
DRAMA
VICTORIA
Dirigido por Sebastian Schipper Com Laia Costa, Frederick Lau, Franz Rogowski Imovision
Victoria acabou de se mudar para Berlim e, em uma de suas saídas noturnas para uma boate, conhece Sonne, um jovem com quem flerta. Ele a convida para passar o resto da noite juntos. Ela se apaixona e o segue pela cidade, mas a aventura amorosa se desmancha quando Sonne e alguns amigos precisam pagar uma dívida de origem obscura. Os 134 minutos do filme se passam em um único planosequência emocionante.
FICÇÃO CIENTÍFICA
WEEKEND
O COSMONAUTA
Russell e Glen se conhecem e, depois de transarem casualmente, decidem passar um final de semana juntos, tempo suficiente para que se apaixonem e sofram, porque Glen viajará por um longo período. O filme retrata de forma espontânea como a sexualidade e o amor operam entre as pessoas. Fazer isso com um casal gay reforça que as relações amorosas apresentam seus clichês, independentemente da sexualidade.
Feito com financiamento coletivo, o filme conta como Stas, um astronauta russo, vai até o espaço e, quando retorna à Terra, encontra o planeta deserto e destruído. Sobreviventes, Yulia e Andrei ouvem mensagens de Stas sem saber onde ele se encontra, se em outro planeta ou em outra realidade. Além de filme, O cosmonauta é um projeto transmídia composto de 34 web episódios, uma página no Facebook, entre outros, criando todo um universo a partir da trama.
Dirigido por Andrew Haigh Com Tom Cullen, Chris New, Jonathan Race Festival Filmes
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Dirigido por Nicolás Acalá Com Leon Ockenden, Katrine De Candole, Max Wrottesley Riot Cinema Collective
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU No Recife, o calor de dezembro
transforma a cidade num jardim de acácias, ipês, caraibeiras, flamboyants, jasmineiros e espatódeas. São as nossas árvores de Natal, enfeitadas com flores naturais. Mangueiras e cajueiros se carregam de frutos em gradações de vermelho, amarelo e verde, pingentes bem mais bonitos do que os fabricados na China. E se você contempla o que sobrou da mata atlântica, descobre tons prateados nas folhas novas das embaúbas e os frutos dos visgueiros, pendurados em longas embiras, que descem da copa plana da árvore parecendo um sombreiro. Tudo tão preciosamente disposto, num requinte estético que nenhum decorador natalino alcançaria. Pena que nossas florações durem pouco, explodem e desaparecem ligeiro como um por de sol. É a marca dos trópicos, o amadurecimento precoce. Talvez não suportássemos tanta exuberância prolongada, o êxtase esgotaria nossos sentidos. Vivemos numa luminosidade contínua, que expõe
imagens, excita os sentidos e nos acelera. Fomos educados no amor por essa luz feérica, não apreciamos a sombra e o silêncio, o que se resguarda e aquieta. Levamos a sério demais a afirmação de Plínio, O Velho, de que encarar a luz é a coisa mais aprazível para os mortais, e o que está sob a terra é nada. Nossa natureza solar, diurna, prevaleceu sobre os instintos lunares, noturnos. Parecemos conhecer apenas a vida, embora o sol se ponha toda noite, acenando aos homens com a morte. No mês de dezembro caíam as primeiras chuvas no sertão, as temperaturas baixavam, e um esboço de recolhimento prenunciava o Natal. Homens arrancavam a mandioca nos roçados, lavavam para retirar a terra, punham de molho em potes, esperavam durante três dias que ela fermentasse, descascavam, peneiravam em urupemas grandes, despejavam num saco de fiação estreita e lavavam novamente até sair a goma. Dessa maneira ficava pronta a massa puba. Mulheres faziam bolinhos da massa escorrida
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– carimãs – e deixavam secando ao sol. Guardadas, elas duravam meses por conta da ausência de umidade na aridez sertaneja. Na véspera da Noite de Festas, desmanchavamse as carimãs em leite ou água e se aprontava bolos. Assados em fornos de tijolo refratário, construídos no quintal das casas, eram o maior requinte do banquete natalino, que também tinha sequilhos, pão-de-ló de goma, manzape, manuê, galinha assada e aluá. A magia culinária de substituição dos ingredientes não ganhou adeptos apenas nas casas grandes dos engenhos. No sertão, ela também operou seus milagres. Amendoim e rapadura entraram na receita do arroz doce, no lugar do coco e do açúcar. Uma extravagante mistura à base de gergelim torrado e pilado, farinha de mandioca, melaço e pimenta do reino moída virou nosso doce de gergelim. Mais exótico do que ele apenas o que batizamos por chouriço e não se trata de um embutido salgado, mas um doce produzido com sangue
ARTE SOBRE IMAGEM DIVULGAÇÃO/SECULT PE
que do céu já vem caindo pingos de água de cheiro. Caíam as chuvas de dezembro, tão promissoras. Apenas minha avó materna punha-se triste porque se molhava a lã nos pés de ciumeira, estragando-se a matéria prima com que ela fabricava os bichinhos da lapinha: carneiros, boizinhos, cabras e camelos. Modesto artesanato de mãos calosas, em tardes de ócio, em meio às lembranças das cantigas que as pastoras entoavam na frente dos presépios, nas suas representações. Ai, ai, que dor na minha alma de ver o Menino deitado nas palhas. Queixavam-se as meninas do Crato, de Juazeiro do Norte e de Barbalha. E nos cordões de reisados, formados pelas corporações de ofício dos engenhos de rapadura, homens e meninos suplicavam: Abra a porta gente que eu venho ferido pela falsidade tão grande dos meus inimigos. E as mesmas vozes consolando, respondiam:
de porco, farinha de mandioca, pimenta do reino, rapadura, castanha de caju ou amendoim torrado e banha de porco. Uma bomba atômica para as saúdes atentas ao colesterol e aos triglicerídeos, raridade culinária pouco lembrada e menos ainda degustada nos dias de saúde perfeita. Numa grande tigela de barro se batiam os noventa ou cem ovos dos pães-de-ló natalinos da minha avó paterna. No lugar da farinha de trigo, a goma seca e alva, armazenada em malas de couro cru. Media-se a riqueza de uma Noite de Festas pelos bolos assados. Em Pernambuco, as senhoras gastavam gemas, manteiga e coco nos bolos Souza Leão, quindins e bombocados. A festa natalina consistia em receber a visita dos parentes e afilhados, oferecer presentes e comida. Podia ter a Missa do Galo, pastoril ou lapinha,
Parecemos conhecer apenas a vida, embora o sol se ponha toda noite, acenando aos homens com a morte reisado, cavalo-marinho ou boi-dereis. As louvações ao nascimento de um menino, que prosseguiam até o dia seis de janeiro, quando o ciclo se fechava. Tudo sem exageros de luz ou barulho. Mandava o silêncio, ou as vozes cantando e declamando loas simples, vindas de tradições arcaicas da Ibéria, ou de mais longe no oriente árabe e hebreu, e até de reminiscências egípcias e sumérias. Senhora dona da casa passe o pente em seu cabelo
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Se tu vens ferido chega pra dentro sangue do meio peito, jorrando serve de alimento. As portas se abriam, comidas eram servidas, trocavam-se abraços, louvava-se o sagrado. A areia prateada e a purpurina das flores, nos altares, brilhavam esplendorosas. Lá fora, nos terreiros e quintais, os frutos maduros desabavam das árvores com estrépito. Pingos de chuva caíam do céu sobre a terra, encharcavam o solo e enchiam os barreiros e os açudes com a mesma fartura das mesas. Recolhido, o silêncio nem se dava conta de que as cantorias e os vivas inundavam os espaços da morada. Essa casa é bonita é bem feita, com muito gosto mostra uma barra amarela. Essa casa é coberta com um véu, meu Deus do Céu quem será o dono dela?
ATUALIDADES À espera do escritor das mazelas da cidade
REPRODUÇÃO
“Vítima” de uma reformulação urbana por conta de megaeventos, o Rio de Janeiro não encontra hoje um autor que expresse criticamente seu estado atual TEXTO Bolívar Torres
Leitura 1
Desde o anúncio de que seria
sede dos Jogos Olímpicos de 2016, o Rio de Janeiro virou uma grande obra aberta. Na preparação para receber megaeventos – incluindo a Copa do Mundo de 2014 – a cidade iniciou uma série de transformações que afetaram intensamente a vida de seus moradores. Empreendimentos urbanos, bolha imobiliária, descaracterização, trânsito infernal, aumento do custo de vida e fechamento de comércios tradicionais são alguns de seus efeitos colaterais mais comuns. Outros, ainda mais controversos, atingiram em cheio as camadas mais pobres da população, a exemplo das centenas de pessoas removidas à força de suas casas em comunidades como a Vila Autódromo. O impacto social, humano e econômico das alterações urbanas costuma render boas histórias. No início do século passado, as reformas
do prefeito Francisco Pereira Passos, que entre 1902 e 1906 realizou uma série de modernizações na cidade, inspiraram diversos autores do período – o mais emblemático deles, Lima Barreto, denunciou o caráter excludente de algumas dessas medidas. O Lima Barreto dos dias atuais, porém, ainda não deu as caras. A julgar pelos lançamentos dos últimos anos, a produção literária contemporânea tem feito um registro tímido das transformações da Cidade Olímpica. Tanto que o mais recente e – até o momento – o mais contundente romance sobre o assunto ainda não foi publicado no Brasil. Lançado em outubro de 2015 em Portugal, e com previsão de lançamento apenas para março deste ano por aqui, Descobri que estava morto, de João Paulo Cuenca, retrata um Rio em pleno frenesi pré-Olimpíadas: favelas pacificadas, remoções agressivas
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e obras megalomaníacas servem de pano de fundo para uma morte dupla: a da literatura e a da cidade. Ao mesmo tempo em que escrevia o livro, o autor dirigiu o longa A morte de JP Cuenca, uma mistura de ficção e documentário que estreou no Festival do Rio, em outubro do ano passado. “Fico esperando o Lima Barreto deste século 21 como alguém que espera São Sebastião”, diz Cuenca. “É difícil não olhar para essa crise de identidade do Rio e todas as suas transformações. Mas eu tenho a impressão de que essas questões poderiam ser melhor exploradas, sinto falta de vê-las na literatura, no cinema… Talvez isso aconteça porque ainda estamos vivendo o momento. Tem uma coisa de tirar a tampa do liquidificador com ele ligado, as pessoas têm um pouco de medo disso, de lidar com um contemporâneo tão presente.”
1 DOCUMENTÁRIO Em Se essa vila não fosse minha, Felipe Pena registra a remoção dos moradores da Vila Autódromo para a construção do Parque Olímpico Rio 2016
O livro de Cuenca nasceu de um episódio kafkiano, mas real. Em 2008, um cadáver foi encontrado em um prédio abandonado na Lapa, bairro boêmio do Rio, e identificado pela polícia como João Paulo Cuenca. Confrontado com o próprio óbito, o escritor sai à procura de informações sobre o homem que morreu em seu lugar. À busca pela identidade se junta a crise de identidade geral – uma desconstrução de uma cidade em construção. “Todo o episódio da minha morte é uma desculpa para questionar essas identidades e valores do Rio, que estão sendo construídos e destruídos todos os dias. Mas o projeto só faz sentido por causa do lugar em que eu morri: o esqueleto de um prédio na Rua da Relação, na Lapa, onde seria construído o Soul da Lapa (um condomínio de flats que sintetiza o processo de gentrificação do bairro
Escritores observam as transformações radicais, mas afirmam a dificuldade em responder a elas com velocidade histórico). É tipo um epicentro do recente processo de reinvenção urbana da cidade, uma espécie de aleph das fronteiras da cidade, que roubou minha identidade no coração da crise de identidade do Rio.”
CRÍTICAS INDIRETAS
Além de Descobri que estava morto, outras ficções recentes refletem as transformações do Rio de forma mais indireta. É o caso do recémlançado O ano em que vivi de literatura (Foz), de Paulo Scott, uma sátira aos
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círculos literários e suas bolhas, ou ainda de O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer, com publicação prevista para maio, que descreve as transformações de um bairro fictício entre o Andaraí e o Engenho Novo, na zona norte da cidade. Já a especulação imobiliária, que tomou o Rio de assalto nos últimos anos, foi tema do romance de Marcelo Backes, Um dia a casa cai (Companhia das Letras), publicado em 2015. Em A vez de morrer (Companhia das Letras), Simone Campos mostrou os efeitos dos altos preços na vida dos jovens cariocas. A personagem principal é uma designer que volta para o Rio depois de uma temporada no exterior e, em função da alta dos aluguéis, é forçada a morar junto com a mãe, com quem não se dá muito bem. Ela acaba migrando para o sítio do falecido avô, em Araras, na região serrana do estado,
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Leitura e lá se depara com fortes contrastes, inclusive de mentalidade. “Acho que todo mundo está sendo afetado pelas mudanças, mesmo o autor mais abastado que perde a livraria preferida”, diz Simone. “Eu sou classe média e morei a vida inteira em Botafogo, eu vivo aquilo de que estou tratando. Já perdi tantos lugares queridos, e agora meus amigos todos estão morando em outros bairros, cidades e até países mais baratos. O shopping que eu frequentava na época da escola, onde eu ia ao cinema e almoçava um PF por R$ 5, virou gourmet… A pressão das contas subiu muito, então estou tendo que trabalhar bem mais para obter o mesmo padrão de vida. É claro que, para alguém cuja casa é removida, simplesmente limada, com uma indenização patética, a situação é mais penosa.” A nova lógica do Rio Olímpico tem levado muitos autores a deixar a cidade. A rota de fuga preferida dos exilados é São Paulo. Victor Heringer migrou para a capital paulista em 2013, e não planeja voltar, assim como Cuenca. Os que permanecem em sua cidade natal, por sua vez, sofrem muitas vezes com a inadequação. “Tenho me sentido estrangeiro no Rio. Até porque o Rio virou uma cidade para estrangeiros”, lamenta Gregório Duvivier, para quem São Paulo está mais próxima do que ele deseja em uma cidade contemporânea. “Sendo local, me sinto estrangeiro. É um paradoxo. Tenho escrito sobre isso, sobre essa sensação de a cidade não nos pertencer.” Recentemente, o autor publicou uma crônica controversa em que criticava o Rio e elogiava São Paulo. As reações furiosas ao texto podem explicar, em parte, o déficit de representação do momento crítico vivido pela cidade. “Talvez a pior faceta do carioca seja essa: um orgulho desmedido que nos cega para nossas mazelas”, diz Duvivier. “Por isso costuma vencer a continuidade na prefeitura: o carioca acha sempre que está tudo bem.”
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“Está todo mundo sendo afetado pelas mudanças, mesmo o autor que perde a livraria preferida”, diz Simone Campos
Há, porém, outras razões. O crítico e cineasta Daniel Caetano, codiretor do documentário Rio em chamas, vê um cansaço e uma desmobilização da classe artística depois das derrotas das Jornadas de Junho, que acabaram não levando adiante as pautas dos protestos. O pesquisador e ensaísta Fred Coelho lembra a dependência dos artistas da prefeitura, que foi hábil, segundo ele, em abrir novos editais e espaços culturais. “Os artistas ficam oscilando entre posturas críticas frontais ao projeto de cidade-espetáculo da prefeitura e os laços fortes criados com a mesma prefeitura”, observa Coelho. No entanto, o ensaísta reconhece que existe liberdade para todos os artistas,
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independentemente de eles receberem patrocínio público ou se envolverem na discussão de políticas com a prefeitura. “Não é porque você participa do debate oficial que fica impedido de fazer críticas”, garante. “Eu mesmo conheço muitos projetos que criticam abertamente a política da cidade e que, mesmo assim, venceram editais.”
TEMPO DE RESPOSTA
Entre as dificuldades de retratar o momento atual, os escritores citam o tempo de resposta do romance, que não é tão ágil quanto o das artes plásticas, das intervenções urbanas ou do documentário – para mencionar apenas algumas das expressões artísticas que refletiram com mais ênfase sobre as mudanças da cidade. O processo da escrita é longo e, muitas vezes, os narradores se veem ultrapassados pelos fatos, tamanha a rapidez das transformações. O escritor Felipe Pena, por exemplo, recorreu ao documentário para denunciar a política de remoções da prefeitura. Em Se essa vila não fosse minha, de 2014, ele colhe o
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2-3 JOÃO PAULO CUENCA
o mesmo tempo A em que escrevia Descobri que estava morto, autor filmava A morte de JP Cuenca 4 SIMONE CAMPOS Autora de A vez de morrer discute migrações GREGÓRIO 5
depoimento dos moradores da Vila Autódromo, que está sendo removida para a construção do Parque Olímpico Rio 2016. “Nesse caso, o documentário é mais contundente do que a literatura, porque as imagens são contundentes”, diz o autor. “São imagens de famílias sendo expulsas do lugar onde moram há 40 anos e dos resistentes vivendo entre escombros, num cenário de guerra. Visto do alto, parece que o lugar foi bombardeado. E, de certa forma, foi mesmo. Cortar a infraestrutura é a bomba de covardia que a prefeitura jogou sobre os moradores que resistem.” Felipe Pena, porém, admite que, quando se chega à esfera literária, há poucos autores interessados em temas como especulação imobiliária e remoções. Ele diz esperar por um Os bestializados, volume 2 – ou seja, uma continuação da obra de José Murilo de Carvalho – para contar o que está acontecendo. Mas é possível que, se tivesse lançado seu livro em 2015, Murilo de Carvalho – um
DUVIVIER
arioca se sente C estrangeiro na própria cidade e vive atualmente em São Paulo
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historiador e cientista político da Academia Brasileira de Letras – sofresse com acusações de “roubo de protagonismo”. Segundo o editor Sergio Cohn, da Azougue, esse tipo de crítica vem inibindo escritores oriundos de determinadas classes sociais de falarem sobre problemas que não os afetam diretamente. “Não foram poucos os escritores, humoristas ou cronistas acusados de roubo de protagonismo por buscar retratar e se posicionar em favor da luta de minorias nos últimos tempos”, conta o editor. “Tenho visto amigos meus preocupados com isso e linchamento virtual de quem tenta falar sem ter uma aproximação identitária muito próxima do objeto. É
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uma questão delicada, mas vivemos um momento de disputa de vozes, em que escritores podem se sentir inibidos em trabalhar com uma representação direta de questões às quais não sejam publicamente identificados.” É importante lembrar que as narrativas de uma cidade vão além do recorte das editoras, e muitos escritores trabalham fora do radar da mídia. Como lembra João Paulo Cuenca, há uma ampla produção textual que não encontra fim editorial: são as vozes marginalizadas, que “não fazem parte do centrinho literário intelectual ou das artes do Rio”, segundo ele.
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Leitura 6
6 FELIPE PENA Para criticar com agilidade, escritor recorreu ao documentário MEIJUEIRO 7 Para ele, melhores narrações sobre a cidade estão em meios digitais JÚLIO LUDEMIR 8 Morador da Favela do Vidigal, ele faz curadorias de autores das zonas periféricas
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Cocurador da Festa Literária das Periferias (Flupp) e morador da Favela do Vidigal, o jornalista e escritor Júlio Ludemir tem contato com diversos escritores das zonas periféricas. Ele cita nomes como Tainá Rei, Marcio Januari e Giovanni Martins – todos jovens ainda não publicados – e Enrique Coimbra – autor dos livros Sobre um garoto que beija garotos e Um gay suicida em Shangrila – como exemplos de vozes que refletem a realidade de onde vivem. Através das redes sociais, falam sobre novas tensões em suas comunidades,
jogando luz sobre questões geracionais (primeiros filhos da família a ir para a universidade) ou sexuais (a vida como homossexual na periferia).
NOVA PERIFERIA
“Ainda não existe um grande romance, uma obra de fôlego que fale sobre esse Rio de Janeiro dos Jogos Olímpicos, até porque o mercado editorial está parado, não está pronto para absorvê-la”, argumenta Ludemir. “Mas há novos personagens pela nova cidade, por essa nova periferia, com
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sensibilidade para entender o seu entorno, com jogo de cintura para dialogar com as redes sociais. Na favela, não existe baixinho sem Facebook, é a primeira estética da era digital.” Uma série de escritores se expressa em novos formatos, que vão muito além dos livros. Integrante do coletivo Norte Comum, que realiza projetos em espaços carentes de ações culturais, como a Zona Norte e a Baixada, o escritor e produtor Carlos Meijueiro acredita que as narrações mais interessantes sobre a cidade vêm hoje do YouTube, Facebook, e dos posts de smartphones. Em seus textos na internet, ele lembra os espaços afetivos que acabam por ser engolidos pelas modernizações. “É a cidade que some por trás dos tapumes, são as memórias que desaparecem por conta das revitalizações” – diz ele. “Estão transformando praças no que eu chamo de praçagens: praças só para passar, e não para se estar. Tudo cinza, imenso rebatedor de luz branca, sem árvores e sem bancos. Parecem feitas para conflitos de guerra. Em Curicica, um lugar que frequento desde a infância, um campo de futebol que era o centro de convivência comunitário virou estacionamento para obra da Transolímpica.” Meijueiro acredita que, mesmo com as reformas, a prefeitura continua pensando o urbanismo em função da zona sul, a área nobre da cidade. Um dos projetos do seu coletivo zona norte, o Ágora Carioca registra as histórias dos bairros menos privilegiados contadas pelos próprios moradores, principalmente os mais velhos, adaptados às oralidades. “Estão faltando relatos a partir de outros pontos de vistas, de outras vivências. Quem domina a narração ainda é a elite”, critica Meijueiro. “As publicações da academia, dos jornais, dos livros, das livrarias são destinadas a essa elite cultural. Acho que os escritores, os que se assumem como tal, acabam se comunicando só com uma camada da população que se considera consumidora de literatura. E como estamos falando de consumo, tem gente que não quer gastar dinheiro para ler críticas a respeito das escolhas que fizeram para as suas vidas. Talvez seja isso que esteja acontecendo.”
INDICAÇÕES NOVELA
ESTEVÃO AZEVEDO Nenhum olho me verá e-galáxia
POESIA
MÔNICA DE AQUINO A dor como método Leve um Livro
A tensão narrativa da novela ganhadora do Prêmio São Paulo de Literatura 2015 se dá em torno da discussão fé x razão. A história da filha de um pastor evangélico que escolhe uma profissão científica é contada a partir de limitações formais, baseadas no grupo francês OuLiPo (Ouvroir Littéraire Potentielle), da década de 1960.
Temas como perda e morte são tratados por Mônica de Aquino com lirismo contido. É o caso do trecho do poema que inicia a obra: “José adotou a dor como método:// para curar um problema/ que se fez carne, entranhado/ colocava todo dia/ uma pedra no sapato”. A poeta mineira participa do projeto Leve um Livro, que pretende estimular a circulação gratuita de poesia.
AUTOBIOGRAFIA
POESIA
Pessoal
MAIS DE 100 CARTAS À MÃO O Instituto Moreira Sales tornou público seu acervo de cartas no site do Correio IMS (www.correioims.com.br). São mais de 100 correspondências, cartões-postais, bilhetes, além de crônicas e músicas em formato epistolar. A maioria dos remetentes ou destinatários são personalidades brasileiras. A quantidade de escritores, porém, impressiona. Veja só alguns exemplos: João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Jomard Muniz de Britto, Erico Verissimo. Antes de cada missiva, há uma breve contextualização e a biografia dos envolvidos. Algumas cartas vêm acompanhadas do manuscrito ou de vídeos.
Adaptação
GAIMAN POR MOON E BÁ O autor britânico Neil Gaiman terá um conto adaptado pelos quadrinistas brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá. É o que promete para junho deste ano a editora Dark House. Publicado originalmente na coletânea Coisas frágeis (Conrad, 2008), o conto Como falar com garotas nas festas vai virar graphic novel com autoria dos gêmeos. A Dark House planeja adaptar outras histórias do britânico ainda este ano. Em setembro, será a vez da autora Collen Doran publicar uma versão em quadrinhos de Troll Bridge, do livro M is for magic (HarperCollins, 2008).
LEONOR XAVIER Passageiro clandestino – Diário de vida Autêntica
Quando somos pegos de surpresa em situações dolorosas, quase insuportáveis, pensamos em registrar aquilo, num gesto que é catarse e compartilhamento. Este livro da jornalista lisboeta é o relato de sua experiência com o câncer. Por seu aporte profissional, sua narrativa ganha a qualidade da experiência com o labor do texto.
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HENRIQUE MARTINS Chove (Processos) Medusa
Que belo esse projeto de Henrique Martins, que colocou numa capa de guarda dois volumes de Chuva. O primeiro, de encantador ritmo poético, “interpreta” em poesia visual o fenômeno da natureza. O segundo tenta “explicá-lo”, não só a realização poética do primeiro tomo em si, mas sua “justificativa teórica”. O livro resulta de um projeto de conclusão de pós em design gráfico.
CON TI NEN TE
Criaturas
Agatha Christie por Cavalcante
Ela ficou conhecida como A Rainha do Crime, epíteto cruel para uma senhora de aparência tão inocente. Mas, na verdade, trata-se de um elogio, pois Agatha Christie – que morreu aos 85 anos, em 12 de janeiro de 1976 – é a autora dos romances policiais mais lidos do mundo. Seu livro de estreia, O misterioso caso de Styles, publicado em 1920, já trazia aquele que seria seu célebre personagem: o detetive Hercule Poirot.
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