Continente #182 - Ciberterror

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# 182

CIBER

TERROR #182

NOVAS TECNOLOGIAS VIRAM AS ARMAS DE GUERRA DO SÉCULO 21

ano XVI • fev/16 • R$ 13,00

CONTINENTE FEV 16

ESPECIAL ARTE CONTEMPORÂNEA NA TURQUIA

LEITURA CRESCE A POESIA FEITA POR MULHERES

AUGUSTA FERRAZ | LA URSA | LOS ANGELES | RABADA | DAVID BOWIE


m i o ngo D APR ESENTA

s u e m u

Todo mês a Cepe prepara uma programação especial, para toda a família, em três dos mais importantes museus do Recife: Museu do Estado, Cais do Sertão e Paço do Frevo. O Domingo no Museu oferece um espaço democrático e cultural e conta com foodtrucks, participação de autores parceiros, acesso às áreas comuns dos museus e o Cepe Volante, onde você pode adquirir livros editados pela Cepe com preços especiais.

TODO 2º DOMINGO DO MÊS

TODO 3º DOMINGO DO MÊS.



Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

janeiro e fevereiro

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco

2016

A programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco) inicia o ano de 2016 com muita música nas tardes de sábado em Recife, da bossa nova ao choro.

16/01 • SÁBADO• 17h SHOW COM WANDA SÁ

23/01 • SÁBADO • 17h SHOW COM GAFIEIRA DE BOLSO

20/02 • SÁBADO • 17h SHOW COM CANTO NEGRO com KARYNNA SPINELLI

27/02 • SÁBADO • 17h SHOW COM GILÚ AMARAL

30/01 • SÁBADO • 17h SHOW COM DUO AMPARO

PATROCÍNIO

PRODUÇÃO

APOIO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. REALIZAÇÃO

INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,0 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sab e dom 14h as 17h


DIVULGAÇÃO

FEVEREIRO 2016

aos leitores A nossa segunda edição do ano aborda um tema que está na ordem do dia, na pauta de praticamente todas as redações do mundo: o terrorismo. Mas a ideia aqui procurou ir um pouco mais a fundo do que os noticiários televisivos cotidianos, por exemplo. Na verdade, a nossa proposta vai por outros caminhos, talvez na contramão das manchetes internacionais, adentrando vielas “alternativas”, que, no geral, costumam passar despercebidas pela maioria, embora possam ser excelentes atalhos. Neste caso, para a reflexão. Afinal, onde está o terrorismo? Na cidade ou na internet? Nos governos ou na sociedade clandestina organizada? Está no Brasil ou na Turquia? Bem, o que nos mostra a reportagem especial de Olívia Mindêlo, por exemplo, é que Istambul não se resume aos seus estereótipos, sendo atualmente um dos pontos mais relevantes da arte contemporânea do século 21. Os artistas e especialistas de lá podem não mover montanhas, mudar valores enraizados ou evitar ataques e acontecimentos “estranhos” no país, mas são um contraponto de criação, lucidez e crítica perante um cenário político nebuloso, para dizer o mínimo. E por falar em nebuloso, não podemos esquecer que enquanto os cães de guarda da Turquia cercam praças, parques e aeroportos, para prevenir ataques do Estado Islâmico ou

limitar a presença dos curdos e dos refugiados, os hackers seguem nos surpreendendo a cada dia. Eis uma das questões que permeiam nossa reportagem de capa, escrita por Yellow, designer, músico e professor de Animação. Ele mostra como o ciberterrorismo ainda é um assunto um tanto desconhecido por nós, que “alegremente, tornamo-nos escravos dos benefícios da tecnologia, mesmo observando o crescimento do crime cibernético”, como lembra em sua matéria. Alguém já imaginou que, ao baixar um aplicativo gratuito no celular, pode estar, na verdade, vendendo informações pessoais para empresas que se alimentam de comprar esses dados – caso contrário, o tal APP nem existiria? Ou alguém consegue perceber o quanto estamos paradoxalmente vulneráveis aos apegos de segurança do dia a dia, como a energia elétrica? E se um ciberterrorista utilizar um malware para promover um apagão, por vias remotas, em toda uma região do planeta ou controlar nossos pensamentos? Essas coisas soam como teoria da conspiração, mas já se tornam realidade – se não no meio físico, ao menos nas mentes. Então, até que ponto a tecnologia nos ajuda? Bem, talvez não precisemos ser nem “ciberpessimistas”, como Baudrillard, nem “ciberotimistas”, como os applemaníacos. Diante deste mundo, que possamos ser, simplesmente, cibercríticos.


sumário Portfólio

Gisela Motta e Leandro Lima

6 Continente

7 Colaboradores

8 Entrevista

Online + Cartas Expediente

70 Palco

Mão Molenga Companhia de teatro de bonecos comemora 30 anos com o lançamento do livro da peça Algodão doce

+

Valdinha Barbosa Viúva de Airton Barbosa rememora a trajetória do músico de Bom Jardim que integrou o Quinteto Villa-Lobos

18 Balaio

Bowie Comoção em torno da morte do artista inglês trouxe à tona histórias dos bastidores de sua vida

48 Pernambucanas

Noite Cubana Tradição do Alto do Céu, no Recife, deixa a pista do Bela Vista caliente há mais de 20 anos

60 Perfil

Augusta Ferraz Atriz consagrada dos palcos pernambucanos revela lado oculto em nova peça e prepara estreia no cinema

76

Matéria corrida

Parceiros na arte e na vida, paulistanos traçam juntos um caminho surpreendente pela criatividade visual contemporânea sem fronteiras nem limites de autoria

12

José Cláudio Permanência da arte

78 Claquete

Amor lésbico Filme Carol, baseado em livro de Highsmith, ativa debate sobre a representatividade da relação entre mulheres

82 Entremez

Ronaldo Correia de Brito Os Ibejis

84 Leitura

Mulheres poetas Nova leva de autoras brasileiras oxigenam a literatura, mostrando que escrever versos vai além da questão de gênero

88 Criaturas

Caio Fernando Abreu Por Fernandes

66 Cardápio

abada R Prato de origem portuguesa, para lá de popular entre nós, atrai chefs da gastronomia sofisticada

Tradição La Ursa

Grupos pernambucanos garantem vida longa à manifestação carnavalesca, de origem italiana, que sai às ruas batendo lata e com a popular figura do urso

42 CAPA ILUSTRAÇÃO Ricardo Melo

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Especial

Conexão

Cena contemporânea de artes visuais alarga as fronteiras do país e ajuda a quebrar seus estereótipos, colocando Istambul como um dos pontos emergentes do século 21

Especialistas apontam que guerras tendem a migrar para o mundo virtual, através de recursos tecnológicos emergentes que podem afetar governos, instituições e cidadãos

Viagem

Sonoras

Com museus, cinemas, casas de show, parques e exemplares arquitetônicos, cidade californiana mostra por que não é apenas celeiro das atrações de Hollywood

Artista inglês despede-se da Terra, onde atraiu fãs por meio de sua arte-vida performática, que saiu de cena em janeiro deste ano com o álbum-epitáfio Black star

Arte na Turquia

20

Los Angeles

52

Ciberterrorismo

32

David Bowie

72

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Fev’ 16


colaboradores

Clarissa Macau

Flora Noberto

Rodrigo Salem

Yellow

Jornalista e idealizadora da revista Cardamomo

Jornalista, formada pela Unicap, atua na área cultural desde 2006

Jornalista, trabalha em Los Angeles como freelancer da Folha de S.Paulo

Designer, músico e professor dos cursos de Animação, Jogos e Publicidade da Aeso

E MAIS Carmen Lúcia Bandeira, jornalista e pesquisadora. Eduardo Sena, jornalista com foco em gastronomia. Fernandes, caricaturista, cartunista e ilustrador, trabalha no jornal Diário do Grande ABC. Guillermo Giansanti, fotógrafo. Otavio de Souza, fotógrafo. Rodrigo Carreiro, jornalista, professor e coordenador do curso de Cinema da UFPE. Sergio Lobo, fotógrafo.

CIBERTERROR

TURQUIA

Como extra ao conteúdo da matéria de capa, disponibilizamos no nosso site o documentário Terms and conditions may apply (2013). Dirigido por Cullen Hoback e lançado pouco depois das primeiras revelações de Edward Snowden, o filme mostra como empresas, a exemplo do Facebook e Google, conseguem permissão dos usuários para violar suas privacidades e vender suas informações pessoais. O doc explica o funcionamento e as consequências do conluio entre serviços online e órgãos governamentais de inteligência, como a NSA e o FBI.

Assista à videoperformance Undressing, da turca Nilbar Güres, citada no especial sobre a arte contemporânea de seu país. Aproveite e veja a galeria de imagens.

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DAVID BOWIE Como complemento à matéria principal da seção Sonoras deste mês, assista ao documentário David Bowie & The story of Ziggy Stardust, lançado pela BBC em 2012.


cartas

EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara

ZINDMAN FREMONT/DIVULGAÇÃO

SOBRE ARQUITETURA O espaço aberto pela Revista Continente para a discussão de temas emergentes sobre arquitetura e urbanismo e os desafios contemporâneos das cidades mostra seu engajamento e preocupação com questões sociais de relevância. Agradeço à equipe da revista pela oportunidade de fazer parte deste debate tão importante e necessário.

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

LULA MARCONDES

ARTE CUBANA

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe

OLINDA – PE

Fascinante a matéria sobre a exposição de artistas cubanos na Casa Daros, um dos destaques da Continente #179. Causou-me dois sentimentos contraditórios: entusiasmo e expectativa sobre as obras - com destaque para as fotografias pensativas de Manuel Piña e Marta María (acima) -, e frustração pelo fechamento brusco de um importante equipamento cultural no Brasil.

SINTONIA PERFEITA A Continente é uma das revistas mais bem produzidas e editadas do país. A valorização do material fotográfico é um diferencial, porque permite uma sintonia perfeita das imagens com os textos, o que é gratificante para nós e para os leitores. É uma satisfação enorme fazer parte do time de colaboradores. DANIELA NADER RECIFE – PE

MARIA CHAVES OLINDA – PE

FOTOGRAFIA DE MODA Gostei muito da matéria sobre fotografia de moda, escrita pelo jornalista Phelipe Rodrigues na Continente de dezembro. Ainda estou no Ensino Médio e tenho vontade de estudar moda. Achei que a matéria me abriu caminhos para pesquisas e estudos numa área que me interessa desde que eu era criança. Obrigada a todo pessoal da revista e, principalmente, a Phelipe.

DO FACEBOOK Sobre O obscuro fichário dos artistas mundanos, quero agradecer à belíssima matéria da jornalista Luciana Veras para a Continente #179, publicada em novembro de 2015 pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), que dá apoio institucional a este projeto. O site com a primeira etapa desta pesquisa - onde está toda a documentação pesquisada – já está no ar: http:// obscurofichario.com.br/

MARIA JÚLIA ARAÚJO

CLARICE HOFFMAN

RECIFE – PE

OLINDA – PE

SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Olívia Mindêlo (repórter) Maria Helena Pôrto (revisão) Maria Eduarda Barbosa, Maria Luísa Falcão, Marina Moura, Ulysses Gadêlha e Victória Ayres (estagiários) Olivia de Souza (repórter - Continente online) Janio Santos e Karina Freitas (diagramação) Agelson Soares (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se

compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.

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VALDINHA BARBOSA

“Esse esquecimento faz parte deste país”

Jornalista, biógrafa e viúva de Airton Barbosa fala sobre a trajetória do músico de Bom Jardim que integrou o Quinteto Villa-Lobos e a Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro TEXTO Carmem Lúcia Bandeira

CON TI NEN TE

Entrevista

Airton Barbosa (1942-1980) é

pernambucano de Bom Jardim e foi para o Rio de Janeiro na década de 1960, ao ser selecionado, aos 17 anos, num concurso promovido pelo Ministério da Cultura de JK, cujo propósito era identificar jovens talentos na área musical, oferecendo a oportunidade de aprofundar o conhecimento e compor os quadros das orquestras sinfônicas da capital federal. Único escolhido do Nordeste, o jovem já se destacava em sua cidade como um promissor saxofonista. Seguindo os conselhos do Maestro Mário Câncio, ao chegar ao Rio de Janeiro, buscou aproximação com o músico e professor Nöel Devos, que o orientou a optar pelo fagote. O encontro com Devos, na condição de aluno, resultou numa amizade que perdurou toda a sua vida, que, se foi breve no tempo (faleceu aos 37 anos), deixou um legado muito importante para a cultura brasileira. Como fundador e integrante do Quinteto Villa-Lobos, realizou um importante trabalho de formação de plateias, divulgando a música

brasileira, não apenas nas mais importantes salas de concertos do país, mas, sobretudo, em escolas, praças públicas, presídios, quadras de escolas de samba etc. Ao lado do seu mestre Noel Devos, integrou, por concurso, o naipe de fagotes da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro até o seu falecimento. A admiração por esse músico surgiu desde que ouvi pela primeira vez o sopro do fagote que faz a introdução e acompanha Preciso me encontrar – composição de Candeia, interpretada por Cartola, incluída no clássico LP em que estão gravadas As rosas não falam, O mundo é um moinho, Alvorada, entre outras, igualmente belas e impregnadas de lembranças de um período político muito intenso, que indicava os primeiros sinais da abertura. Mas foi somente no início do ano 2000 – quando nos emocionávamos mais uma vez ao ouvir a versão referida de Preciso me encontrar numa radiola de ficha –, que descobri que se tratava de um músico pernambucano, engajado na militância política e, por essa razão, alimentaria a lista dos desaparecidos

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políticos da ditadura militar. A revelação me deixou profundamente intrigada, principalmente por desconhecer um dado de tamanha relevância, que não teve nenhuma repercussão à época, no movimento local de luta pela anistia. E também por não saber que o nome dele constasse da lista dos desaparecidos políticos aqui no estado. Iniciei uma pesquisa com a amiga Luzete Pereira, que escreveu um texto postado em sua página, no Portal Luiz Nassif, À procura de Airton Barbosa, no qual menciona “um silêncio ensurdecedor” contido nas informações sobre a sua biografia, que não permite esclarecer as causas de sua morte e instiga a continuidade da investigação, para que se restabeleça a verdade sobre a memória desse grande talento pernambucano. Foi então que cheguei até a página de Valdinha Barbosa (viúva do Airton), no Facebook, e, a partir daí, iniciamos uma correspondência, que começou meio tímida, como num jogo de reconhecimento de territórios, de ambas as partes, e aos poucos foi se consolidando ao ponto de possibilitar esta entrevista.


GUILLERMO SANTI

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Assim, o sopro do fagote em Preciso me encontrar, além de responder à nossa pergunta, foi a chave que abriu as portas para a descoberta de sua família – Valdinha, Juliano e Daniel – que, em paralelo às luzes das ribaltas, faz a sua travessia ao longo do tempo, cultivando o legado e honrando a memória desse grande músico.

CONTINENTE É verdade que ele foi sequestrado numa rua do Rio, quando saía do ensaio da orquestra e desapareceu sem deixar rastro? VALDINHA BARBOSA É verdade, sim; ele foi sequestrado na rua, quando saía do ensaio da orquestra. Foi um momento muito doloroso para nós, mas ele não é um desaparecido político. Foi preso por algumas semanas, mas depois o soltaram. Poucos anos

FOTOS: REPRODUÇÃO

CONTINENTE Você, que foi casada e teve filhos com Airton Barbosa, como define o homem e o artista que ele foi? VALDINHA BARBOSA Rememorar o Airton – embora 32 anos sejam passados – conduz-me sempre ao mesmo sentimento de uma perda irreparável. Um sentimento que extrapola a dor da perda do amigo de infância e do

a cada lembrança, a cada comentário, essa dor, que não raro se expande em lágrimas, num misto de saudade e ainda de inconformismo, conduzme sempre ao imponderável, a uma falta incomensurável: do Airton que foi, daquilo que ele poderia vir a ser.

CON TI NEN TE

Entrevista companheiro com quem fui casada por 11 anos e do amoroso pai dos meus dois filhos, e que se aprofunda enormemente pela precocidade do acontecido. Ao falecer, aos 37 anos, Airton, embora tenha deixado uma extensa biografia, apenas iniciava o desabrochar de seu excepcional talento e de sua abrangente visão sobre a cultura do nosso país. Oriundo das classes populares, foi um batalhador incansável, um brasileiro apaixonado pelo Brasil, por nossa terra, por nossa gente. Grande parte de sua juventude, como aconteceu com tantos outros brasileiros, ele a viveu em regime de contenção de sonhos, amordaçados que foram pelo sistema político do Brasil, nos infindáveis anos de ditadura. Hoje, submergindo

depois, em maio de 1980, faleceu de um câncer no sistema linfático. CONTINENTE Você pode falar um pouco sobre a carreira musical do Airton em Bom Jardim? Como ele se interessou pelo saxofone? Com quem aprendeu a tocar? VALDINHA BARBOSA O Airton se iniciou na música com o Mestre Teté (Manoel Pessoa dos Santos) e, pouco tempo depois, sob a batuta desse grande músico bonjardinense, já se destacava como saxofonista na banda do Grêmio Lítero Musical Bonjardinense. No Salve a Retreta – concurso de bandas do interior, transmitido pela Rádio Clube de Pernambuco –, Airton chegou a executar aquele famoso solo de Vassourinhas, imortalizado pelo Felinho, um grande

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saxofonista pernambucano. (Esse solo, aliás, hoje em dia, anda esquecido nas orquestras de frevo, talvez por conta da grande dificuldade técnica.) CONTINENTE Bom Jardim, como diz você, é uma terra fértil na produção de talentos musicais, principalmente nessa linha, de instrumentistas de sopro, música de orquestra, pois ali também nasceram Dimas Sedícias e Levino Ferreira. De onde vem, em sua opinião, essa vocação musical de Bom Jardim? Tem alguma razão especial que impeliu o interesse desses grandes músicos para esta vertente musical? VALDINHA BARBOSA A banda de música, no Brasil, sempre foi um grande celeiro de músicos. Importantes instrumentistas brasileiros vieram desse movimento. Mas o curioso em Bom

“No Rio, Airton seguiu a orientação do maestro Mário Câncio: ‘Não escolha apenas o instrumento. Escolha também o professor’. Escolheu o fagote e o professor francês Noel Devos” Jardim é que a música é uma arte que toca profundamente a alma de muitos de seus habitantes. Uma coisa mágica! Uma energia telúrica, que se expande sob a forma de talentos musicais em abundância, mas que necessitam de fertilizante para frutificar. Grosso modo, pode-se afirmar que, em Bom Jardim, quem não é músico é amante da música. É claro que, atualmente, como acontece em todas as cidades brasileiras, a música comercial, de consumo fácil, também atingiu em cheio o coração da cidade, com efeitos devastadores para as tradições locais, em todos os níveis. O que é uma pena! Bom Jardim foi local de manifestações populares com conteúdos musicais muito fortes, como o cavalo-marinho,


o coco de roda, o caboclinho, o mamulengo, as bandas de pífanos, os grupos de choro, além de bandas de música que, durante anos, formaram músicos que engrandeceram o nome da cidade, como os nomes acima referidos e muitos outros igualmente talentosos que se destacaram na região. Ser músico da banda, ostentar aquele uniforme, representou, durante longos anos, algo muito valoroso para os rapazes da cidade, que se alimentavam da aprovação geral da sociedade. Embora fosse vedado às meninas, o acesso à banda era um espaço extraordinariamente democrático, não existindo qualquer distinção de cor, credo, classe social, ou partido político. Tudo junto e misturado,

conheceu o maestro Mário Câncio quando foi ao Recife para participar da primeira seleção do Concurso Jovens Talentos Musicais e acho que até teve algumas aulas com ele. Quando saiu de Pernambuco, depois de aprovado na última seleção aqui no Rio, teria que trocar o saxofone por um instrumento de orquestra sinfônica, e recebeu do maestro a seguinte orientação: “No Rio, não escolha apenas o instrumento. Escolha também o professor. Preste atenção em um professor chamado Noel Devos”. Seguindo à risca o sábio conselho do maestro, Airton escolheu o fagote e o francês Noel Devos como mestre. Já no primeiro encontro, foi amor à primeira vista.

sem discriminação. A mais valia era representada pelo talento, pelo desejo, pela dedicação. Quem sabe não seja esse o segredo? No entanto, nos últimos tempos, por um longo período, o acirramento das lutas político-partidárias na cidade também contaminou o ambiente musical, inibindo essa forte energia telúrica da música no território bonjardinense.

CONTINENTE Sou uma admiradora do talento e da obra do Airton Barbosa, mas desconhecia este dado de sua biografia: a militância, o sequestro, que são relevantes e principalmente esse dado do desaparecimento, que precisa ser melhor esclarecido para os pernambucanos e para os brasileiros. VALDINHA BARBOSA A prisão do Airton, por questões ideológicas, nesse triste período da ditadura militar no Brasil, foi muito traumática. A frieza com que foi abordado pelos seus algozes, encapuzando-o e levando-o para um local ignorado, com um desaparecimento por muitos dias, sem que pudéssemos identificar o seu paradeiro, apesar das muitas ações de busca por advogados, instituições e pelos muitos amigos que

CONTINENTE Quais as circunstâncias que levaram Airton Barbosa a se mudar para o Rio de Janeiro? Antes de ir para lá, havia uma relação aqui com o maestro Mário Câncio, é isso? É verdade que esse maestro deu um importante conselho que ele seguiu à risca ao chegar ao Rio de Janeiro? VALDINHA BARBOSA Airton

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nos ajudaram, foi muito traumática. Quando do seu retorno – graças a ações de amigos, Airton não teve problemas com o seu trabalho na orquestra do Theatro Municipal –, a nossa vida “parecia” ter voltado ao normal, tudo o que mais queríamos na época era esquecer aquele incidente funesto. Quando veio a anistia, a abertura política e o início da redemocratização do país, veio o período da doença do Airton e do seu falecimento. A seguir, foi a dor da falta, sem retorno, e a luta pela sobrevivência, com os filhos para criar – novamente com a ajuda dos fiéis amigos. Logo após o seu falecimento, vivenciamos um período de muitas homenagens a Airton, sempre com a participação musical de seu mestre Noel Devos, (que, por um tempo, generosamente, integrou o Quinteto Villa-Lobos, enquanto o grupo se refazia da perda de seu fagotista) e de outros músicos amigos. Airton recebeu carinhosas homenagens de importantes instituições musicais do Rio de Janeiro. Em todos os jornais cariocas, houve publicação de reportagens, artigos e comentários de renomados jornalistas e críticos musicais da época. Compositores como Nelson Macedo e Ailton Escobar dedicaram composições musicais in memoriam. Com o passar do tempo, porém, as homenagens foram se espaçando e veio o esmaecimento da memória. Mesmo assim, algumas homenagens pontuais continuaram a ser realizadas, embora com pouca ou nenhuma repercussão na mídia, como a inserção do Airton no livro Sopros do Brasil; o CD Fagote Brasil, de Juliano (Barbosa) – uma homenagem aos 20 anos de falecimento de seu pai. No início deste ano, o nosso conterrâneo Bráulio de Castro prestou uma linda homenagem, em seu novo CD, com um choro dedicado a Airton, levado também em apresentação pública na Festa de São Sebastião, em Bom Jardim, inclusive com a participação de Juliano, ao fagote. De certa forma, para um país sem memória como o Brasil, e com uma mídia comprometida com o que está “na moda”, e é sucesso comercial, esse esquecimento até faz parte.


FOTO: CORTESIA GALERIA VERMELHO

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f贸lio


FOTOS: CORTESIA GALERIA VERMELHO

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CON TI NEN TE

Portfólio

Gisela Motta e Leandro Lima

POR UMA NOVA IDEIA DE AUTORIA TEXTO Luciana Veras

Eles nasceram em 1976 e cresceram em bairros distintos de São Paulo: uma no Ibirapuera,

o outro em São Domingos. Conheceram-se ao ser aprovados no vestibular de Artes Plásticas da Fundação Armando Alvares Penteado/FAAP. Ela havia tido aulas de desenho e de aquarela na adolescência, ele já tinha “se engraçado” com o vídeo, de tanto observar o pai, funcionário de diversas emissoras de televisão. Uma vez juntos na faculdade, não tardaram a desenvolver projetos em parceria, de modo que, com o passar do tempo, não mais fazia sentido discernir o que era criação de um do que fora inventado pelo outro. Nasceu, assim, a dupla de artistas Gisela Motta e Leandro Lima. São casados, pais de um filho e parceiros na concepção e execução dos trabalhos – podem ser vistos em Calar (2011), no qual encenam as mudanças na temperatura da epiderme a partir do toque do outro, e também na videoinstalação O beijo (2004). Possuem um ateliê/laboratório e um escritório na própria residência, e acreditam que, no âmbito da arte contemporânea, não existe um hiato entre descanso e labor. “Trabalhamos o tempo inteiro. Não tem como não ser um artista full time, sabe? Se não estamos efetivamente trabalhando em um projeto, estamos pensando nos resultados que podem ser gerados ou entendendo as ideias que vão surgindo. Vários dos nossos trabalhos foram feitos enquanto estávamos de férias”, conta Leandro. Foi assim, por exemplo, com Anti-horário (2011), elaborado quando os dois participaram de uma residência no Mamam do Pátio de São Pedro, no Recife. No vídeo de uma hora de duração, cujas imagens foram captadas junto a uma ruína no Cabo de Santo Agostinho,

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Lâmpadas comuns são motorizadas para emular o ritmo dos oceanos

Nestas páginas 2-5 PSICOSE

Clássico foi refeito a partir de extensa pesquisa em banco de imagens

6 ESPERA Os artistas buscam um trabalho a ser vivenciado pelo observador PARCERIA 7 Dupla se coloca em muitos trabalhos, a exemplo de Calar


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FOTOS: CORTESIA GALERIA VERMELHO

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CON TI NEN TE

Portfólio

o ritmo de um relógio analógico é reproduzido com Gisela e Leandro correndo como se fossem o ponteiro dos minutos e o filho deles, o marcador dos segundos. A sensação é de um convite para a análise daquela passagem do tempo. “Em todos os nossos trabalhos, consideramos o tempo do observador, o tamanho da sala, tudo relacionado dentro de um código, de uma dinâmica museológica. E, de uma certa maneira, usamos também o cotidiano como tema”, explica Gisela. Ela continua: “Nosso trabalho tem muita influência da cidade no sentido do que é estar aqui hoje, menos da forma em como inseri-lo no contexto urbano e mais como a gente experimenta a nossa vivência e como quer trabalhar algumas questões do que é ser alguém nessa cidade, com vários conflitos”. Em I.E.D (2007), por exemplo, um coração é remontado como se fosse uma bomba caseira, composta por objetos do cotidiano – latas de refrigerante, frascos de detergente e um maço de cigarros – e na iminência de uma detonação, o que já desperta o olhar para a ansiedade recorrente da vida atual.

Nas duas décadas de trajetória artística, os dois não apenas desafiaram as noções de autoria – assinam juntos desde quando fizeram o trabalho de conclusão de curso – como ampliaram as possibilidades de exploração dos meios e suportes. Um mesmo elemento – uma lâmpada comum – pode engatar múltiplas camadas de significado. Em Zero hidrográfico (2010), 60 lâmpadas fluorescentes são montadas e motorizadas de modo a compor um diagrama iluminado que se assemelha ao mar – “zero hidrográfico” é a altitude tomada como baliza para aferir a profundidade dos oceanos, cujas águas tendem a se elevar diante do aquecimento global. Já em Relâmpago (2015), a potência e o mistério dos raios são transpostos para ambientes internos, numa interessante colisão entre as forças da natureza e a energia elétrica, sem a qual a civilização não mais sobrevive. Os dois descrevem seu processo criativo como uma ode à conceituação sem submissão à tecnologia. “Faz parte da política do nosso trabalho, e acredito que é justamente onde é mais questionador, o fato de ser conceitualmente forte. Nossa forma de produção não é sair na rua com a câmera atrás de uma ideia, não é intuitiva nesse sentido; é muito mais

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estratégica e planejada”, comenta Gisela. “Uma outra característica nossa é que a tecnologia entra muito natural, não como um elemento que tentamos colocar por uma questão externa. Cada instrumento usado tem uma poesia e usamos o conhecimento da técnica para subvertêlo quando necessário”, emenda Leandro. Prova disso é um dos trabalhos mais recentes, Psicose (2015), exibido na Mostra Rumos do Itaú Cultural. Numa era saturada pelo acúmulo de imagens, eles refizeram o clássico de Alfred Hitchcock, rodado em 1960, sem produzir um único fotograma sequer. “A ideia de refazer não é genial. O desafio era refazer o filme sem produzir nenhuma imagem. Separamos os 996 cortes secos ou fusões da narrativa e passamos um ano trabalhando, pesquisando todos os dias em bancos de imagens para achar as que poderiam dar conta de todas aquelas cenas”, detalha Gisela. A mesma minúcia se percebe em Espera, Contra Duchamp e Deposição, todos datados de 2013, ou em Bugado e Chora chuva, de 2014. Para Gisela Motta e Leandro Lima, a obra de arte só se concretiza no encontro com quem se dispuser a frui-la. “Buscamos um trabalho para ser vivenciado, para ser sentido como uma experiência e que só aconteça com o observador”, sintetizam.


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8 O BEIJO Videoinstalação é um dos meios mais usados pelo duo 9 ANTI-HORÁRIO Trabalho foi concebido e exposto durante residência no Mamam do Pátio de São Pedro, Recife

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

OUTRA FACE DE GANDHI

Bowie, único Além de cantor, compositor, produtor, multi-instrumentista e ator, David Robert Jones desenhava, pintava, escrevia e esculpia. Foram muitos os talentos desse inglês, considerado numa pesquisa da BBC, em 2006, o quarto maior ícone vivo da Grã-Bretanha, atrás apenas de David Attenborough, Morrissey e Paul McCartney. A sua morte, em 10 de janeiro deste ano, dois dias depois de fazer 69 anos e de lançar seu 25º álbum (Blackstar), causou comoção no meio artístico, na imprensa e nas redes sociais. Os depoimentos que despontavam de todas as partes do mundo confirmavam: não havíamos perdido somente um dos maiores artistas deste e do século anterior, mas também um grande ser humano. David Bowie não era apenas elegante no modo de se vestir, mas, sobretudo, na forma de tratar as pessoas. Yoko Ono revelou que, após a morte de John Lennon, Bowie se tornou uma espécie de figura paterna para Sean Lennon, que sempre levava para passear. Iggy Pop disse que Bowie salvou sua vida pessoal e profissional. A jornalista Ana Maria Bahiana relatou que, em 1993, ela e uma amiga entraram acidentalmente numa das limusines de um evento da EMI, em Nova York. Quem estava no carro? Ele, que abriu um sorriso e transformou aquela, que seria uma situação constrangedora, numa oportunidade para uma conversa simpática e amena. Um “cavalheiro”, afirmou Ana. Uma estrela sem estrelismos. Um artista único, uma pessoa rara. DÉBORA NASCIMENTO

CON TI NEN TE

Não foi à toa que o ativista Mohandas Karamchand Gandhi (1869-1948) ficou conhecido como “Mahatma” (termo que significa “grande alma”): ao longo de sua trajetória, Gandhi, que era formado em Direito, foi idealizador do moderno Estado indiano, lutando pacificamente pela independência do seu país, ainda governado pelos ingleses. Era defensor do Satyagraha, uma forma não violenta de protesto, inspirando gerações de ativistas ao longo dos tempos, como Nelson Mandela e Martin Luther King. Porém, desde o lançamento de um polêmico livro, em outubro de 2015, que ele tem a vida descortinada, e o mito de alma piedosa, colocada em xeque. Em The South African Gandhi: Stretcher-bearer of empire, os pesquisadores sul-africanos Ashwin Desai e Goolam Vahed revelam um Gandhi racista que, durante sua estadia na África do Sul, entre 1893 e 1914, não procurou unificar a luta indiana à dos africanos, também sujeitos ao domínio britânico. Gandhi rejeitava os africanos, referindo-se a eles com a expressão pejorativa kaffir, além de lamentar a raça branca não ser a predominante naquele país. (Olivia de Souza)

Balaio TWERK LIBERTADOR

A FRASE

Rebolar as nádegas é o movimento básico do twerk, dança que ficou mais conhecida quando cantoras, como Nicki Minaj, fizeram clipes glorificando o próprio corpo e, especificamente, a própria bunda. A dança se espalhou de tal forma, que há quem faça disso um movimento de libertação. Esse é o caso de Fannie Sosa. A artista argentina encontrou no twerk uma atividade de cura e autoconhecimento corporal e decidiu espalhar esse aprofundamento na ancestralidade do corpo feminino e do corpo mestiço, dando oficinas de twerk ao redor do mundo, circulando pela Europa e América do Sul. Fannie afirma que dançar twerk ativa energias que empoderam quem dança e libertam de opressões. Hora de quicar, então. (Victória Ayres)

“A tecnologia criará novas formas de as coisas darem errado.” Stephen Hawking, cientista

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ARQUIVO

HECATOMBE ARTÍSTICA A norte-americana que faz as vezes de sacerdotisa do rock ‘n’ roll presta seu tributo ao grande escritor latino-americano precocemente falecido e recebe, para adornar seus versos burilados como se palavras fossem pedras preciosas, a ajuda de um artista visual colombiano. Hecatombe, à venda pela Amazon a partir deste fevereiro, reúne Patti Smith, Roberto Bolaño (1953-2003) e José Antonio Suárez Londoño em uma preciosa convergência artística. Smith, fã confessa do autor de 2666, Estrela distante e Os detetives selvagens (publicados no Brasil pela Companhia das Letras, mesma editora que lançará M Train, o segundo volume autobiográfico da compositora de Horses), escreveu um longo, simbólico e místico poema em homenagem a Bolaño. Suárez Londoño buscou, com suas ilustrações, traduzir não os versos, e, sim, as sensações provocadas pelo choque entre as palavras de Smith e as imagens que a literatura de Bolaño suscita. (Luciana Veras)

PARCERIA ÀS ESCONDIDAS

Dada Alguém já disse que o novo está um tanto caduco. Mas almejar a novidade era a mola propulsora dos movimentos vanguardistas europeus do começo do século passado. Entre eles, estava o Dadaísmo, que em 2016 completa, bem, 100 anos! Alguém já imaginou que o “dadá” agora está “gagá”? Será? O ícone da iconoclastia das artes visuais modernistas está de cabelos branquinhos e com um RG centenário, mas segue de pé, talvez firme e forte. Não são poucas as influências dos dadaístas, cuja “maternidade” foi o Cabaret Voltaire, um bar lendário de Zurique. E lá estavam, em 1916, nas vésperas da Primeira Guerra, artistas exilados (Hugo Ball, Tristan Tzara, Hans Arp, Marcel Janco, entre outros) fundando o movimento dos “deserdados”. “Oficialmente”, eles deram início ao Dada, mas a “morte da arte” já estava sendo anunciada mundo afora, a partir de contestações das fórmulas estéticas (até mesmo daquelas preconizadas pelo Modernismo). Seu maior símbolo foi Marcel Duchamp, cujo nome segue estremecendo os pedestais da arte, que, aliás, seguem meio bambinhos desde então. Comemorações estão acontecendo por aí, incluindo o Brasil, com exposições e outras histórias. OLÍVIA MINDÊLO

Dois grandes vocalistas do rock’ n’ roll mundial, Iggy Pop (ex-Stooges) e Josh Homme (Queens of the Stone Age e Eagles of Death Metal), gravaram em segredo um álbum que já será lançado em março, chamado Post pop depression. Além da capa, uma das nove faixas do disco, Gardenia, já foi divulgada no Youtube. Segundo o New York Times, o projeto sairá pelo selo Loma Vista e já se prevê uma pequena turnê de lançamento. O jornal norte-americano afirma que a ideia nasceu por meio de um SMS, onde Pop dizia: “Ei, seria bacana se nos juntássemos e talvez compuséssemos algo – Iggy”. Para Homme, Post pop depression se parece como a sequência conceitual de Lust for life (álbum gravado por Pop e produzido por David Bowie em 1977). Os músicos envolvidos no projeto são Dean Fertita (guitarra e teclado), Matt Helders (bateria), Troy Van Leeuwen (guitarra) e Matt Sweeney (baixo). (Ulysses Gadêlha)

SEM DIREITOS A fotógrafa franco-marroquina Leila Aloui postou no Face em 11 de janeiro “De viagem para Burkina Faso” e teve centenas de likes. Sete dias depois, ela falecia de ferimentos à bala infligidos pelo grupo jihadista Al Mourabitoun, num café na capital Ouagadougou, três dias antes. Mais 30 pessoas morreram no massacre. Aloui tinha 33 anos e trabalhava num projeto infantil para a Anistia Internacional Meu corpo: meus direitos. Nascida em Paris e criada em Marraquexe, sua paixão pela fotografia vinha da mãe, socialite. No entanto, em vez de fotos de moda, o tema principal de suas imagens era a imigração — a falta de esperança e os sonhos que as pessoas almejam em busca de uma vida melhor — e a identidade cultural. Sua série mais famosa é a de marroquinos com trajes típicos, fotografados ao acaso. (Luiz Arrais)

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SAHIR UGUR EREN/DIVULGAÇÃO

LUZES PARA A

CON TI NEN TE

TUR

ESPECIAL

Arte contemporânea do país firma seu lugar no mundo, tornando Istambul um dos pontos proeminentes do século 21 TEXTO Olívia Mindêlo

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A expressão turca çağdaş sanat pode

soar estranhíssima a quem possui o português como língua-mãe. Mas se a traduzimos para o nosso idioma latino, desvendamos uma junção familiar de palavras que aponta a Turquia, e particularmente a sua metrópole Istambul, como centro das atenções pelo mundo. Não, não estamos falando dos acontecimentos recentes divulgados pelos noticiários internacionais, no que diz respeito a atentados e ao conflito com a Síria. Não exatamente. Na língua desse país-ponte entre o Ocidente e o Oriente,


QUIA çağdaş sanat significa simplesmente arte contemporânea (ou contemporânea arte, na tradução literal). O termo, que passou a ser cunhado no Brasil entre 1970 e 1980, quando museus precisaram distinguir a nova produção de artes plásticas daquela consagrada como “moderna”, apareceu pela primeira vez na Turquia na década de 1960. Nesta época, ainda era atrelada, como analisa a curadora turca Duygu Demir, “ao desejo tardio do país de ser do seu tempo”. Enquanto isso, Andy Warhol preparava-se para expor suas latas

de sopa Campbell na badalada cena cultural de Nova York. No Rio de Janeiro, Hélio Oiticica também ensaiava suas manifestações mais experimentais, com parangolés à vista. Os turcos não tinham a mesma ebulição, mas seus artistas começavam a sair da toca e a reagir às influências recebidas da Europa, principalmente de Paris, onde muitos deles foram viver ao longo do século 20. Mais de 50 anos depois, não é difícil perceber o quanto esse cenário se transformou. Se há algum tempo, o mapa do mundo da arte incluía quase

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somente urbes como a própria Paris, Nova York, Londres e Berlim, no século 21 esse traçado se alarga, espraiando-se por fronteiras nunca dantes navegadas, ou melhor, muito pouco consideradas pelo “resto” do mundo. Bienais como a de Veneza e a de São Paulo, ou exposições como a Documenta de Kassel, na Alemanha, por exemplo, vêm dando evidências do quanto a produção artística da América Latina, da África, da Ásia, do Leste Europeu ou do Oriente Médio ganharam evidência no caldo contemporâneo. A Turquia não fica atrás,


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CON ESPECIAL TI NEN TE

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pelo contrário. Seu principal evento, a Bienal de Istambul, realizada desde 1987, se tornou um dos pontos cruciais dessa atual cartografia das artes visuais. Seus artistas, por sua vez, se multiplicam, encontrando seu lugar entre o público e o mercado internacionais. Sinal de que o país vai além dos clichês disseminados em redes televisivas ou em publicações de turismo. Alguns creditam essa guinada ao dito crescimento econômico da Turquia nos últimos 15-20 anos, que reverberou no aumento da difusão e comercialização das obras locais. Outros acreditam em um movimento global. Enquanto isso, especialistas turcos percebem, na verdade, um amadurecimento interno e gradual desse campo artístico desde os anos 1990, consolidando-se nos 2000 com um processo de profissionalização e institucionalização da cena, que ainda enfrenta suas dificuldades. Sobre isso, a curadora Duygu Demir diz o seguinte, considerando a complexa história política do país, que viveu três golpes: “Com o estabelecimento da Bienal de Istambul, em 1987, e o fim da Guerra Fria, em 1989, laços mais fortes

foram estabelecidos entre artistas que viviam na Turquia e o resto do mundo, como canais de comunicação, e uma influência de histórias concretas do Leste e Oeste criaram um território fértil de experimentação artística”. Na visão de Esra Sarigedik, diretora sênior da Galeria Rampa, em Istambul, “nós estamos num tempo em que o mundo está começando a olhar o Leste mais do que a focar no Oeste”. Por “Leste”, entenda-se Leste Europeu (ou Oriente); por “Oeste”, países do Ocidente. Ou seja, enxergar a Turquia, e o que acontece em sua geografia de fronteira, é uma atitude política, sobretudo para nós, ocidentais – mesmo que isso signifique, para alguns, só um interesse de mercado. A performer turca Nezaket Ekici, radicada na Alemanha desde a infância, conta que, há uns cinco anos, a produção artística do seu país esteve super em alta na Europa, entre galeristas e colecionadores. Logo depois, veio o carimbo da editora norte-americana Phaidon, que colocou Istambul como um dos locais do futuro nas artes do século 21, com a publicação de Art cities of the future, em 2013.

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O livro (336 páginas) reúne, além da metrópole turca, mais 11 cidades proeminentes, que vêm deslocando o eixo da arte contemporânea no planeta: São Paulo, no Brasil; Bogotá, na Colômbia; Beirute, no Líbano; Vancouver, no Canadá; Singapura, cidade-república; Seul, na Coreia; Cluj, na Romênia; Nova Deli, na Índia; Joanesburgo, na África do Sul; Lagos, na Nigéria; e San Juan, nas Filpinas. Em comum, a maioria delas possui o fato de serem centros urbanos relevantes em seus países, com estrutura significativa na área de cultura. De acordo com a Phaidon, são lugares que compartilham duas qualidades distintas entre seus artistas: um compromisso com a arte experimental e uma dedicação ao seu meio local. Ao todo, o volume apresenta uma seleção de 96 nomes (oito por cidade), responsáveis por sintetizar, apesar da complexidade da tarefa, uma parte desse mapa da arte contemporânea de nosso século, diferente em suas particularidades regionais, nacionais, locais e individuais, mas semelhantes, em relação a outras questões, como as linguagens utilizadas (instalação, pintura, desenho, objeto, vídeo, escultura,


Página anterior 1 ISTANBUL MODERN

useu é um M dos ícones da cena de arte contemporânea da Turquia

Nesta página 2 FRONTEIRAS

bra da artista O Nilbar Güres é conhecida no mundo pelo engajamento

INSTALAÇÃO 3 Skin II, de Mehmet Ali Uysal, entre as consagrações da arte turca

fotografia etc.) e, às vezes, o caminho poético percorrido. Obviamente, muitas outras cidades poderiam aí estar, mas as que aí estão não estão por acaso.

PLURAL, SINGULAR

“O mundo da arte turca é tão pluralista quanto em qualquer lugar do mundo e não há nenhum estilo ou tendência dominante”, analisa Marcus Graf, diretor de programação da principal feira de arte contemporânea da Turquia – a Contemporary Istanbul (CI), realizada anualmente desde 2006. Ele considera, porém, uma predominância de trabalhos de pintura, instalação e fotografia, em contraponto à performance e às novas mídias. Para Graf, essa cena é “caracterizada pelas mesmas tendências e estratégias vistas em todo o mundo”. “Existe uma espécie de linguagem global na arte contemporânea de nossos dias”, desmistifica o especialista, considerando, no entanto, que a Turquia tende a lidar com uma tradição cultural, um forte elemento narrativo presente nos trabalhos, e, em alguns casos, a lidar também criticamente com o “mundo social estabelecido”.

“Nós estamos num tempo em que o mundo está olhando para o Leste mais do que para o Oeste” Esra Sarigedik, diretora da Rampa A questão da pluralidadesingularidade. Do clichê global-local. Eis um paradoxo, aliás, que parece ter se transformado na mola propulsora da arte contemporânea no século 21. E isso ajuda uma cidade como Istambul, e sua cultura em mosaicos, a ser um ponto de luz para os satélites desse circuito global. Segundo Graf, a ebulição da cena artística turca veio a partir do momento em que ela “mudou de local e fechada para ser fortemente orientada para o cenário internacional” e “a imagem de Istambul foi de uma grande cidade ocidental moderna para uma metrópole globalmente interconectada”. “Nos anos recentes, a cena artística turca cresceu em uma escala sem precedentes. Instituições culturais

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privadas e museus reabriram renovados, em prédios históricos multimilionários – no geral, antigas residências da aristocracia da cidade. Existem, pelo menos, duas feiras de arte competitivas (Contemporary Istanbul e Art Internacional Istanbul); relatos de quebras de recordes de leilões (domésticos e estrangeiros); uma proliferação de espaços sem fins lucrativos, programas de residência artística e iniciativas artísticas independentes; sem contar as galerias pipocando nos bairros do lado europeu da cidade (onde Beyoğlu é um ícone nesse sentido).” Eis as palavras de abertura do texto escrito pela curadora turca Duygu Demir para o capítulo da Turquia no livro Art cities of the future. Tendo trabalhado como programadora do Salt, um desses centros culturais de exposição e pesquisa em arte contemporânea que emergiram no atual cenário em Istambul, ela foi convidada pela Phaidon para selecionar artistas turcos representativos dessa nova cena no país. Na sua lista, estão nomes já consagrados no circuito (para nós, difíceis de memorizar e pronunciar): Halil Altındere, Aslı Çavuşoğlu, Cevdet Erek,


CON ESPECIAL TI NEN TE 4 HALIL ALTINDERE

O trabalho do artista do Leste se destacou levando a periferia ao centro

FOTOS: REPRODUÇÃO

5 P IONEIRA Gülsün Karamustafa apropriou-se da herança otomana para criar esta colagem-pintura

Köken Ergun, Esra Ersen, Nilbar Güreş, Gülsün Karamustafa e Ahmet Öğüt. Em sua maioria, são artistas nascidos na Turquia nas décadas de 1970 e 1980, com exceção de Gülsün Karamustafa, de 1946. Tida como “a rainha-mãe da cena artística de Istambul”, Gülsün, aliás, é um caso peculiar. Primeiro, por sua biografia: como estudante e ativista política, ela foi presa em 1971 pelo regime militar turco, tendo passaporte negado até 1986. Segundo, por sua carreira, cujo início teve foco na pintura e depois se ampliou para uma obra múltipla, em escultura, vídeo, fotografia e instalação, plataformas para discursos sobre as diferenças entre Leste e Oeste, rural e urbano, em estéticas pop e kitsch. Além de sua lista oficial, a curadora menciona outros exemplos relevantes. É o caso de Altan Gürman (1935-1976), tido como um precursor. Segundo ela, Gürman foi o primeiro a transformar a herança das vanguardas europeias em uma abordagem crítica da realidade na Turquia – e não em mera imitação superficial dos modernistas a serviço de uma estética nacionalista, como aconteceu com alguns artistas enviados à França. Gürman viveu m Paris durante a Segunda Guerra e, no golpe de 1960, na Turquia, serviu ao exército. Ao emergir como artista, adotou técnicas dadaístas, como a colagem, para “questionar mentalidades burocráticas e militares”.

NOMES

Se antes era difícil identificar uma cena na Turquia, hoje é ainda mais para identificar quais os artistas merecem atenção em meio a tanta gente criando. Independentemente dos melindres e dos jogos que tendem a pautar o campo artístico, alguns entrevistados desta reportagem arriscaram fazer um apanhado de nomes relevantes, enquanto outros se esquivaram da resposta. Sendo assim, quais seriam, então, os artistas mais importantes do país atualmente? A resposta pode estar em acervos de vitrine, como o do Istanbul Modern, talvez o maior centro de difusão da arte contemporânea na Turquia; na

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lista de uma bienal; ou ainda entre os mais vendidos pelas galerias ou mais badalados pelo circuito internacional. Em 2014, o site Art Radar – Tendências da arte contemporânea e notícias da Ásia e além publicou um artigo curto com o perfil de “10 artistas turcos para se dar atenção”. Nessa lista, estavam nomes da performance, como a já mencionada Nezaket Ekici (presente no acervo do Istanbul Modern); das grandes instalações, como Mehmet Ali Uysal e o seu pegador gigante, do site specific Skin II; das grandes esculturas, como Osman Dinç; da arte abstrata, como Ayten Turanlı, Nejat Satı e Gülay Semercioğlu; da arte figurativa, como Horasan e Ümmühan Yörük; das experimentações vanguardísticas, como Nancy Atakan; e

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das experimentações em objetos, como Volkan Aslan. Curioso perceber que são artistas de gerações e assinaturas muito distintas, mas, em boa parte, já consagrados no meio. Apesar de considerar uma tarefa difícil, a diretora da Bienal de Istambul Bige Örer arrisca mencionar alguns exemplos de artistas “com práticas interessantes” na Turquia: Aydan Murtezaoğlu, Bülent Şangar, Meriç Algün Ringborg e Cevdet Erek – este último também presente na lista da curadora Duygu Demir. Bige Örer ajuda a lembrar, como fez Duygu, que as artistas Ayşe Erkmen e Gülsün Karamustafa, também citada anteriormente, são exemplos de referência histórica, assim como Füsun Onur e Sarkis – sendo este


último o único homem. Aliás, é bastante interessante a presença das mulheres na cena de arte contemporânea da Turquia, cuja fama é de ser uma sociedade machista e conservadora. Isso pode ser observado tanto entre artistas quanto entre especialistas, curadoras, gestoras, galeristas etc., o que acaba resvalando nas poéticas das obras, como veremos mais adiante. Fazendo uma análise do boom da arte contemporânea turca, Bige Örer precisa o ano de 2010 como um marco, coincidindo com o fato de Istambul ter sido escolhida a capital cultural da Europa. “Essa energia continuou pelos anos seguintes, mas começou a declinar por volta de 2013”, acredita ela, lembrando também que 2013 foi um ano importante internamente para essa mesma cena. Sim, enquanto o Brasil vivia as inúmeras manifestações de junho, desencadeadas pelo Movimento Passe Livre, Istambul saía às ruas para protestar contra um projeto de especulação imobiliária, apoiado pelo governo, que poria abaixo o Gezi Parkı, na famosa Praça Taksim, para dar lugar a um complexo comercialmilitar-religioso. Graças à mobilização, o parque foi salvo. “Acredito que a resistência do Gezi trouxe uma agenda importante para a linguagem da arte contemporânea na Turquia, com

Para a curadora Duygu Demir, a Bienal de Istambul facilitou o aparecimento de artistas críticos a temas sociopolíticos reflexo direto na sua realidade política, econômica e social”, analisa. Para ela, de todo modo, essa cena artística “precisa ter mais estruturas estáveis que deem suporte contínuo aos artistas, uma visibilidade maior à nova geração”, além de espaços para a experimentação. Embora lamente a ausência de estruturas e aportes públicos para a cultura e a arte no país (e quem aqui já não viu esse filme?), assim como a ausência de espaços alternativos, Bige Örer considera a realização da Bienal de Istambul um preenchimento de lacuna de extrema importância. “A cada dois anos, a mostra cria um espaço para artistas da Turquia e ainda dá a eles uma visibilidade internacional. Além disso, tem a missão educativa de tornar familiar a arte contemporânea para os jovens; aliás, existem muitos cuja primeira exposição da vida é a bienal”, enaltece. “Organizada pela IKSV – Fundação de Istambul para a Cultura e as

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Artes, a bienal tem sido um alavancador para as artes contemporâneas na Turquia. Estabeleceu novas relações entre os espaços da arte e os espaços públicos, e a criticidade, como elemento do fazer artístico local, se espalhou pela cena por causa da influência duradoura da bienal e do debate sobre ela. Tais discussões geralmente focam no conceito curatorial do evento e, como resultado, um interesse em curadoria se desenvolveu na nova geração”, atesta a diretora, na função desde 2003. Mesmo sendo um misto de publicidade e experiência, a fala de Bige Örer ecoa também, de forma mais ampla, entre aqueles que não trabalham diretamente com a bienal. Para Duygu Demir, o fato de a mostra “ter facilitado uma geração de artistas cujo trabalho confrontava temas sociais urgentes, como a islamização assustadora da Turquia, a batalha por igualdade de gêneros e o conflito curdo”, deu a ela uma legitimidade própria. Já Marcus Graf acredita que, junto à feira Contemporary Istanbul, a bienal é o mais importante evento de arte contemporânea no país. Em suas posições solares, tanto Istambul quanto sua bienal acabam por fazer girar um sistema de “estrelas”, “constelações”, “asteroides” e “cometas” dentro deste mundo chamado arte.


JORG BAUMANN/DIVULGAÇÃO

CON ESPECIAL TI NEN TE

BIENAL A emersão de Istambul

Evento consolida força da metrópole turca e convida o visitante a desvendar o mapa da cidade, do gueto à praia

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Visitar a Bienal de Istambul é como reviver as impressões do escritor francês Gustave Flaubert (18211880) sobre a cidade turca, que segue exercendo fascínio em orientais e ocidentais. Não estamos mais no século 19, mas era na Istambul dessa época que o autor de Madame Bovary se encontrava, quando registrou, em cartas, o quanto “ficou impressionado com a variedade da vida de suas ruas fervilhantes”. Assim conta Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de Literatura, em seu livro de memórias Istambul. De acordo com o turco, Flaubert “profetizava que dali a um século a cidade seria a capital do mundo”. Pamuk lembra que com Istambul – cujo posto de capital da Turquia foi perdido para Ancara nos anos 1920 – aconteceu o contrário: “Depois do colapso do Império Otomano (em 1922), o mundo quase chegou a esquecer-se da existência de Istambul”,

“Talvez estes animais saindo do mar sejam os últimos habitantes da Terra vindo reclamar a sua parte” Carolyn Christov-Bakargiev tida pelo autor como um lugar pobre, triste e acanhado naquele período. A antiga Constantinopla, que já esteve sob o comando dos Império Bizantino e do Otomano, não chegou a tanto quanto imaginou Flaubert, nem permaneceu no ostracismo descrito por Pamuk. Mas está entre as maiores e mais visitadas urbes do mundo, sendo uma metrópole plena de efervescência cultural, mesmo com sua tendência ao conservadorismo político, social e religioso, que também dá sua carga de tinta nessa terra de contrastes. Afinal, vida é o que não falta

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no maior centro urbano da Turquia, com seus mais de 15 milhões de habitantes e sua vocação para ser ponto de encontro entre artistas turcos e de inúmeras partes do mundo. Daí porque não ser à toa a força dessa bienal, de sua arte e da cidade como um todo. Andar pelo circuito expositivo da Bienal de Istambul é, no mínimo, uma aventura instigante e curiosa sobre a qual Flaubert certamente teria escrito, se chance houvesse tido. Pelo menos em 2015, na 14ª edição da mostra, com curadoria de Carolyn ChristovBakargiev (conhecida por sua ousadia e competência), essa constatação não foi mera alegoria – certamente para boa parte do público que a visitou. Imagine definir o tracejo complexo da geografia de Istambul, cortada por águas, povos, paisagens, transportes, espaços e vias de toda natureza, como o palco difuso de uma bienal que exigiu, no mínimo, tempo e disposição de seus visitantes.


SAHIR URGUR EREN/DIVULGAÇÃO

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6 ÁGUA SALGADA

Conjunto de esculturas do argentino Adrián Villar Rojas foi um dos símbolos da 14ª edição do evento, em frente ao ex-exílio de Trotsky, na ilha de Büyükada

7 O CANAL Trabalhos de artistas e não artistas foram expostos na área conceitual da exposição da bienal no Istanbul Modern 8 HAMAMI Hoje desativada, antiga casa de banhos do Bairro de Fatih recebeu obra do artista egípcio Wael Shawsky

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E, aqui, as palavras são um testemunho pessoal disso. O resultado certamente desafia qualquer realização cultural minimamente organizada. “A 14ª edição foi uma das mais dispersas exposições na história da Bienal de Istambul: 36 locais em diferentes partes da cidade foram utilizados, incluindo espaços transitórios na terra e na água”, atesta Bige Örer, diretora do evento. Além de se concentrar no Istanbul Modern, com uma grande mostra representativa, a bienal se espalhou por galerias, museus, espaços culturais e casas abadonadas. Seu circuito incluiu também locais de difícil acesso a quem não domina o idioma turco e o mapa da cidade, como uma antiga casa de banhos (a Küçük Mustafa Paşa Hamamı), no Bairro de Fatih, onde instalações e um vídeo de animação do egípcio Wael Shawky foram expostos. Realmente impressionante,

para não dizer estonteante. Não só pelo trabalho artístico ou pela arquitetura da tradicional casa de banhos, hoje desativada, mas pela experiência de caminhar por Fatih, um local mulçumano da cabeça aos pés – literalmente. Só percorrer o bairro, localizado na parte antiga, já é uma experiência de fruição para o visitante estrangeiro com curiosidade minimamente aguçada. Para as que não usam véu, bem dizer uma presença de atitude performática. Para quem gosta de observar a cidade de dentro, simplesmente uma coleção de memórias visuais, com direito a cenas típicas de homens reunidos para tomar chá e jogar gamão na esquina; crianças brincando na rua, em frente às suas casas modestas de madeira; e mulçumanas estendendo roupa no varal ou simplesmente olhando as vitrines de lojas que vendem exclusivamente roupas para cobrir

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o corpo todo. Não por acaso, a artista Nilbar Güreş já havia escolhido o bairro como local para um de seus trabalhos de performance, no qual se veste de noiva-lutadora de boxe, nos moldes ocidentais, e vai à praça “guerrear”.

POR ÁGUA

Saindo de Fatih, um dos pontos mais inusitados da 14ª bienal estava a uma hora e meia de barco de Istambul, em direção à parte asiática, na região metropolitana. Deslizando pelo Bósforo, era possível ao visitante vivenciar, literalmente, a proposta da mostra, cujo tema, em 2015, foi Água salgada (tuzlu su, em turco). Como sabemos, Istambul é atravessada por esse estreito, que liga o Mar de Mármara ao Mar Negro, marcando o encontro entre a Europa e a Ásia. Em direção à ilha de Büyükada, o percurso já era, em si, também uma visita. Ao ronco do motor, nós, passageiros, éramos acompanhados por gaivotas atrás de comida, enquanto o barco cortava as águas verdes acinzentadas de um percurso que ia, aos poucos, deixando para trás a composição de mesquitas e prédios tão característica de Istambul.


CON ESPECIAL TI NEN TE ILGIN ERARSLAN YANMAZ/DIVULGAÇÃO

9 PARCERIA Diretora da bienal Bige Örer posa ao lado da curadora Carolyn Christov-Bakargiev, responsável pela concepção da última edição da mostra, tida como uma das maiores desde 1987

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Chegando à ilha, onde não circulam carros, apenas charretes e bicicletas, a bienal entregava seu desafio ao público: percorrer sete pontos a pé, passando por prédios históricos, como o Hotel Splendid Palas (cenário de cinema), até a casa onde se exilou o intelectual comunista Leon Trotsky, entre 1929 e 1933. Neste final do percurso, o portão das ruínas de seu antigo lar abria-se à praia e a fruição culminava no encontro do espectador com um conjunto de 29 esculturas realistas fantásticas de animais emergindo do mar: a obra The most beautiful of all mothers (A mais bonita de todas as mães, em livre tradução), do artista argentino Adrián Villar Rojas. “Animais encarando a casa (…) como se estivessem esperando

Trabalhos de Cildo Meireles, Fabio Mauri, Orhan Pamuk e até Charles Darwin foram expostos na bienal, no Istanbul Modern alguém – talvez o fantasma de Trotsky, talvez nós, visitantes da exposição – aparecer... Talvez esses animais emergindo como zumbis ou monstros do mar, em retorno de onde todos nós viemos, o caldo primordial da vida, sejam os últimos habitantes da Terra que voltaram, num futuro imaginário, para assombrar e reclamar a terra

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depois das catástrofes da Anthropocene (“era” definida para demarcar a intervenção humana no planeta a partir da Revolução Industrial)”, escreveu a curadora Carolyn Christov-Bakargiev, para o texto do catálogo da 14ª edição, referindo-se a girafas, elefante, rinoceronte, gorila, bois e outras espécies feitas de diferentes materiais, incluindo lixo orgânico. Apesar de a ilha de Büyükada ter sido a “menina dos olhos” de Carolyn, foi no Istanbul Modern que concentrou sua proposta curatorial, encarada por ela como um rascunho possível no qual artistas e não artistas dividiram o mesmo espaço. Talvez por ser este um lugar estratégico, com seus 8 mil m² de área e 5,5 milhões de visitas acumuladas desde a sua inauguração, em 2004. Situado no Bairro de Beyoğlu, com vista para o Bósforo, o Istanbul Modern abrigou, na mostra, tanto trabalhos de nomes contemporâneos – como uma instalação da artista turca Aslı Çavuşoğlu e uma pintura do brasileiro Cildo Meireles (Projeto de buraco para jogar políticos desonestos, de 2011) –, quanto obras dos consagrados artistas – caso dos italianos Fabio Mauri e Giuseppe Pellizza da Volpedo, este último conhecido pela tela Il quarto stato, cuja imagem de trabalhadores camponeses em marcha ativa se tornou ícone do comunismo. No espaço, a curadora inseriu, ainda, particularmente em uma área chamada O canal, estudos de botânica de Charles Darwin, projetos dos jardins verticais do paisagista Patrick Blanc e até desenhos do escritor Orhan Pamuk, feitos em seu caderno de anotações. Fora do canal, uma das salas centrais da mostra chamava a atenção para esculturas do libanês Marwan Rechmaoui. Restos de edifícios bombardeados erguiam suas peças da série Pillar, levando à exposição questões inevitavelmente presentes entre artistas de países “em desenvolvimento”: os conflitos sociais, o crescimento urbano, o lugar das minorias. Outro ganho desse percurso sem fim, para toda a vida. OLÍVIA MİNDÊLO


REPRODUÇÕESDO VÍDEO UNDRESSING

POÉTICA Por uma crença na arte A despeito da presença conservadora e religiosa na Turquia, artistas do país avançam nas fronteiras da criação

“Viver na Turquia hoje é bastante

difícil para qualquer um que tenha um pouco de consciência. Pessoas estão sendo mortas por suas diferenças, por suas inclinações políticas ou por estarem participando de manifestações. A violência do governo não é só direcionada aos que moram no Leste do país, mas a todos que pensam diferente do governo. Como civis, nós queremos parar os crimes de Estado e simplesmente protestar para criar uma consciência.” Na fala da jovem artista turca Merve Kılıçer, “criar uma consciência” diante desse

cenário pode significar ir às ruas, mas, principalmente, produzir arte. Apesar das adversidades, permanece entre os artistas da Turquia a crença na produção artística como instrumento de transformação e enfrentamento, sobretudo em relação às questões políticas envolvendo a gestão do presidente Recep Tayyip Erdoğan, de forte inclinação islâmica e conservadora, e aos problemas sociais, particularmente das chamadas minorias (mulheres, curdos, refugiados, gays, não mulçumanos etc.).

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“Você pode sentir que as pessoas estão tristes e uma energia negativa está correndo pelo ar de Istambul. Isso, também, porque eles estão arruinando essa cidade linda com gentrificação e destruição de todo o habitat. Depois das manifestações do Gezi Parkı (2013), vários jovens, como eu, nos enchemos de esperança e sentimos o poder da unidade. Não é tão fácil transferir essa energia para a produção artística. É também difícil expressar a dor acumulada que sentimos hoje”, desabafa Merve, que atua sozinha e em grupo. No coletivo Kaba Hat, ela e mais oito desenvolvem trabalhos de maior engajamento, como os realizados nas manifestações do Gezi. Individualmente, ela tem se aprimorado nas técnicas de impressão, transformando seus desenhos e gravuras em trabalhos de extrema sensibilidade. No caso da Bienal de Istambul de 2015, Merve expôs, na biblioteca pública de Büyükada, o conjunto Mater.ial, com livros de artista inspirados em deidades ancestrais. “Como uma mulher destas terras, eu era curiosa sobre as identidades femininas dos tempos antigos, no desejo de entender o significado profundo dos


CON ESPECIAL TI NEN TE PI ARTWORKS/DIVULGAÇÃO

Página anterior 10 UNDRESSING Nas imagens do vídeo, Nilgar Güres recita nomes de mulheres enquanto tira vários lenços da cabeça Nestas páginas

11 MAÇÃS

A turca Nezaket Ekici foi aluna de Marina Abramovic e hoje explora várias poéticas em suas performances

12 RESPEITO O pernambucano Manoel Quitério está entre o Recife e Istambul, onde já fez diferentes intervenções artísticas

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conflitos. À medida que pesquisei sobre as histórias, ou lendas contadas na Mesopotâmia e em Anatólia (interior da Turquia), sobre velhas deusas, vi que todas apontavam para o ciclo da natureza. A influência delas pode ser percebida nas religiões monoteístas atuais e podemos ver como o papel do poder feminino foi destruído”, analisa. Merve lembra que a Turquia enfrenta sérios problemas de violência contra a mulher e que se tornou uma responsabilidade dos artistas falar sobre o assunto. “Sinto que a abordagem acadêmica ao tema é muito limitada, precisamos de métodos mais concretos e ativistas para lidar com esse problema sensível. O mundo precisa ser curado, nós precisamos. E essa cura não vai acontecer, ao menos que as mulheres achem uma maneira de se encontrar em pé de igualdade com os homens.”

MULHERES

Quando se fala em gênero e sexualidade na Turquia, um dos nomes imediatos é o da artista Nilbar Güreş, selecionada no livro Art cities of the future (Phaidon) e uma das participantes da última Bienal de São Paulo, em 2014. Nascida em Istambul, em 1977, ela se graduou e fez mestrado em pintura – aliás, os artistas turcos são repletos de títulos acadêmicos. No entanto, foi na fotografia, no vídeo e

“Você pode se engajar no mundo com suas decisões, com seu amor por plantas, animais, músicas...” Deniz Gül, artista na performance que consagrou suas criações, muitas vezes colocando a figura da mulher (quando não dela própria) no centro das suas imagens. Sua poética é do tipo que o mundo certamente espera, quando se fala em arte contemporânea turca. Seus trabalhos mexem com tabus ainda presentes na sociedade da Turquia, como o desejo sexual, o papel feminino no ambiente doméstico e, no caso específico, os hábitos das mulçumanas turcas, como o uso do véu ou mesmo a sua proibição nas universidades do país. Para a curadora Duygu Demir, a artista é também uma ativista cuja prática é focada na consciência e na injustiça. “Trabalhando principalmente com mulheres, Güreş cria controvérsia não apenas encenando ações privadas em espaços públicos, como também através da justaposição de suas modelos, vindas dramaticamente de diferentes contextos sociais. Ela adota pessoas improváveis de famílias, amigos,

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parentes distantes e vizinhos, além de ativistas e voluntários de vários grupos, como lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, agregando participantes geralmente separados ordenadamente em compartimentos sociais, literalmente e figurativamente”, escreve a curadora. Nesse sentido, vários são os trabalhos de comunicação eficiente e imediata feitos por Nilbar Güreş. Impossível esquecer, por exemplo, o videoperformance Undressing (Despindo), da coleção do Istanbul Modern, no qual a artista aparece usando dezenas de lenços sobrepostos por toda a cabeça. Na medida em que vai tirando cada um deles, pronuncia o nome de uma mulher de sua família ou de seu raio de convívio, até finalmente chegar ao seu próprio rosto-identidade. Sufocante. Vale lembrar que a Turquia se diz 97% muçulmana, mas nem todo religioso possui os mesmos hábitos ou um comportamento-padrão no país. Parece óbvio, mas não é, particularmente para os ocidentais. Muitas das artistas, aliás, possuem origem mulçumana, mas estão longe da prática religiosa; pelo contrário, conseguem olhá-la criticamente, com certa distância. Outras mulheres usam lenços, mas são muito diferentes das que usam burca. A performer Nezaket Ekici, por exemplo, é filha de pai professor, considerado


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“liberal”. Ela foi morar com a família na Alemanha, nos anos 1970, quando o pai migrou pelo Guest Worker (programa adotado pelos alemães para atrair mão de obra estrangeira temporária). Lá ficaram. Mesmo assim, sua vizinhança de turcos (gueto) não aceitava o fato de Nezaket ter mais de 30 anos e nunca ter se casado. De alguma maneira, a origem muçulmana estava ali, para pressionála ou colocá-la em contradição. Hoje, aos 45 anos, é casada com um alemão, mas seu estilo de vida está longe do “padrão médio” de seus conterrâneos. Além de viver viajando pelo mundo com suas performances, a artista preferiu estudar, antes de qualquer coisa. E não pretende ter filhos, pois não teria tempo para eles. “Meu lar é meu coração. Eu preciso estar em movimento, a performance precisa de diferentes públicos, é importante viajar para conhecer diferentes pessoas”, afirma Nezaket, que, numa de suas visitas ao Brasil, ganhou dos mineiros a alcunha de “Nezaquetchi”. Durante sua formação, foi aluna da sérvia Marina Abramović, famosa pelas experimentações com o corpo. Essa influência pode ser percebida no trabalho e na imagem da turca. Nezaket Ekici não tem uma “questão” em sua obra, como vemos em Nilbar Güreş. Mas é possível perceber sua preocupação

com temas como a religião, por exemplo. Uma de suas performances nasceu de suas visitas a um cemitério de São Paulo, onde observou a presença de túmulos de cristãos e islâmicos. De outra vez, chegou a rezar um rosário, através de projeto do Metropolitan, enquanto recitava uma “prece” contendo regras de diferentes tradições religiosas. “Nasci em origem muçulmana e acredito em Deus, mas não sou uma crente convicta. Sou uma artista e acredito na arte”, professa. Ela, aliás, detesta rótulos. “Não gosto dessa história de arte turca, alemã. Importante é a arte. Também não quero ser vista como feminista. Eu não trabalho nessa luta. Política, sim; engajamento, não”, diz a artista. A turca Deniz Gül, que também expôs na 14ª Bienal de Istambul, parece estar de acordo: “Você pode se engajar no mundo com suas decisões, com seu amor por plantas, animais, músicas e com todas as suas curiosidades. Sua cidade, sua identidade dada e a sua língua (ser mulher, ser turca) são uma herança, tal qual um carma que você tem que resolver ou superar. Isso é extremamente difícil! É mais fácil viver quando você olha as coisas em uma grande figura”. Na bienal, Deniz fez uma instalação chamada Pedra (manuscritos não queimam), em uma casa abandonada de Istambul, onde certamente viveu uma

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família grega. No trabalho, havia uma reimpressão, em madeira, de desenhos primitivos do Leste da Turquia. Com relação a identidades, a artista Gamze Yalçın diz inexistir “uma coisa típica na arte da Turquia”, embora, como lembra Marcus Graf, diretor de programação da Contemporary Istanbul, geralmente seja isso que os estrangeiros queiram ver por lá. “Seria muito kitsch e artificial definir isso. Nós, turcos, temos problema de identidade desde o princípio”, afirma Gamze. Também artista de rua e namorada do artista pernambucano Manoel Quitério, ela já chegou a sofrer preconceito enquanto pintava ao ar livre e mesmo comentários de policiais. “Existe um medo das mulheres”, diz ela, que incentiva a arte de rua entre outras artistas, ainda pouco presentes no cenário urbano. Já Quitério vive entre Istambul e o Recife desde 2014, pintando prédios, participando de residências e festivais, e trabalhando com música. Ele acredita ainda existir, na Turquia, um clima de ditadura, particularmente devido a atitudes do governo, considerado autoritário. “Coisas estranhas têm acontecido... Assassinato de jornalista sem explicação, acidentes, mortes... Uma amiga turca, por exemplo, estava ao telefone com outra pessoa e a polícia foi bater na casa dela, após ouvir a conversa relacionada a maconha”, conta o artista, para quem “a arte se obrigou a fazer o papel que a mídia não faz naquele país”. Apesar de se concentrar em Istambul, a arte turca ecoa também de outras partes do seu território, particularmente de Diyarbakır, a “capital” do leste da Anatólia, região de maioria curda e palco de muitos dos conflitos atuais entre a Turquia, a Síria e os próprios curdos, povo em busca de uma nação. De lá, saíram alguns de seus artistas representantes, com trabalhos mais engajados politicamente, a exemplo de Ahmet Ögüt, Şener Özmen e a fotógrafa Dilan Bozyel, que decidiu voltar à terra de origem, depois de não se sentir “pertencida” a Istambul. Como diz o prefácio do livro Art cities of the future, “mais do que nunca, a habilidade de enxergar para além das fronteiras geográficas é vital para entender a arte de ponta, mas essas fronteiras tampouco podem ser inteiramente esquecidas”. OLÍVIA MİNDÊLO


RICARDO MELO

Conex達o

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AMEAÇAS VIRTUAIS Uma nova guerra está por vir

Especialistas são unânimes em apontar a vulnerabilidade das tecnologias emergentes, que põem em risco a segurança de governos, instituições e cidadãos TEXTO Yellow

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Conexão 2

1 TED KOPPEL No livro Lights out, repórter prevê ataque à eletricidade dos EUA 2 BILL JOY Cientista alerta para os riscos da inteligência articificial e da nanotecnologia 3 MARC GOODMAN Especialista guia leitores quanto às táticas do cibercrime 1

Imagine um apagão que não dura apenas dias, mas se estende por meses ou até anos. Sem acesso a um gerador, milhões de norteamericanos teriam, de imediato, revogadas várias conveniências da eletricidade, como iluminação pública e telecomunicação. Rapidamente, com a exaustão das baterias, haveria cada vez menos refrigeração, suprimentos, transporte e água potável. Hordas de vândalos saqueiam o que restou, enquanto lei e ordem são postas à prova. O que parece ser apenas a sinopse de mais uma série de TV com tema pós-apocalíptico é, na verdade, uma previsão do veterano repórter investigativo norte-americano Ted Koppel no livro Lights out, lançado em 2015. Ele alerta para um não apenas possível, mas provável ataque terrorista à malha de distribuição de eletricidade dos Estados Unidos.

Toda a energia elétrica que alimenta os EUA é gerada e fornecida através de três grandes redes de distribuição, gerenciadas por centenas de empresas diferentes, que usam equipamentos antiquados há décadas, tornandose vulneráveis a ataques físicos. A internet garante acesso instantâneo e, muitas vezes, anônimo a operações que permitem que sistemas críticos de infraestrutura funcionem com segurança e eficiência. Se um hacker conseguir acesso a um dos sistemas de manutenção da rede, pode facilmente provocar um desequilíbrio na distribuição elétrica e apagões em grandes porções do território estadunidense. Enquanto é difícil identificar uma motivação para que um indivíduo independente crie tamanha desordem, Koppel acredita que as falhas de segurança são muito atraentes a grupos terroristas. A definição de terrorismo

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é o uso de violência com o intuito de provocar mudanças políticas, e um ataque a um serviço do qual tantas pessoas dependem é uma maneira eficaz e barata de atingir esse objetivo. Em dezembro do ano passado, um ciberataque que instalou malware (a abreviação da expressão inglesa malicious software) em estações de distribuição elétrica deixou a região de Ivano-Frankivsk, na Ucrânia, às escuras durante o pior período do inverno, com temperaturas negativas. O apagão durou apenas algumas horas, mas a simplicidade do ataque – feito através de arquivos do Microsoft Office distribuídos por e-mail – é de arrepiar. Não apenas a rede elétrica está exposta. Em março de 2015, um órgão de segurança do governo norte-americano divulgou um relatório que alertava para vulnerabilidades no sistema de controle do tráfego aéreo. Os sistemas de controle ferroviário, redes de comunicação e sistemas de saúde também estão expostos, porém Koppel acredita que, se um grupo terrorista procura infligir o máximo de danos possível ao maior número de norte-americanos, não existe alvo mais produtivo que a distribuição de eletricidade. Sua interrupção total ou parcial enviaria rapidamente milhões de pessoas de volta ao modo de vida do século 19.


NOVOS PERIGOS

Desde a publicação, em abril de 2000, do artigo Why the future doesn’t need us, na revista Wired, o cientista e cofundador da Sun Microsystems, Bill Joy, já alertava para o perigo de tecnologias emergentes, como a inteligência artificial e a nanotecnologia. Joy minuciou o potencial destrutivo das mais fascinantes promessas científicas da época, quando usadas para o mal ou, simplesmente, com displicência. Um simples vazamento de um laboratório teria o potencial de cobrir a face da Terra de nanorrobôs movidos à energia solar, e o advento da inteligência artificial generalista poderia acabar com a vida no planeta, como a conhecemos. Passados 15 anos, temos ainda mais cenários preocupantes, só que, desta vez, muitas das ameaças a nos rondar não estão mais a décadas de distância. São tecnologias que usamos diariamente, como a computação em nuvem e tendências em rápido desenvolvimento, a exemplo da internet das coisas e da bioengenharia. No livro Future crimes (publicado no Brasil em 2015 pela HSM Editora), Marc Goodman, um dos maiores especialistas em cibercrime da atualidade, guia os leitores através do submundo digital, expondo as alarmantes táticas que podem ser empregadas por criminosos, corporações e nações, usando tecnologias novas e emergentes contra nós. Em um mundo no qual cada vez mais aspectos de nossas vidas são relegados às máquinas e aos sistemas de informação conectados, cresce nossa vulnerabilidade em diversos frontes. Ser dependente significa ser vulnerável. Cada vez mais utilizaremos próteses voltadas a incrementar nossos sentidos e repor capacidades perdidas. Para um número crescente de pessoas, o smartphone se tornou uma extensão da memória e da capacidade de comunicação. Estão por vir os dispositivos conectados vestíveis, como relógios, óculos e, em breve, roupas, olhos e ouvidos. Existem, hoje, marcapassos que podem ser acessados através da internet, capazes de aplicar eletrochoques remotamente, em caso de emergência. Não há como garantir que hackers não tenham acesso a esses dispositivos, o que implica a possibilidade de que

Ted Koppel defende que a distribuição de eletricidade seria o alvo mais eficiente de um ataque terrorista virtual e em massa terroristas consigam, algum dia, assassinar um chefe de Estado por controle remoto. Tantas de nossas transações são conduzidas no ciberespaço que desenvolvemos dependências que não poderíamos nem imaginar há uma geração atrás. Alegremente, tornamo-nos escravos dos benefícios da tecnologia, mesmo observando o crescimento do crime cibernético. Cada passo que damos em nossas cidades inteligentes é registrado em bancos de dados da segurança pública, do controle de trânsito, da receita e do sistema de saúde, e lá aguarda pelo hacker que o venha colher. Cada like, poke ou tuíte que registramos gratuitamente em nossas redes sociais é taggeado, geolocalizado e posto à venda para quem quiser comprar, por empresas de nomes estranhos, como Acxiom, Epsilon, Datalogix, RapLeaf, Reed Elsevier, BlueKai, Spokeo e Flurry.

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A indústria de vigilância de dados está em rápido crescimento e já gera US$ 156 bilhões por ano. As empresas que vendem os dados das pessoas conseguem essas informações de provedores de internet, administradoras de cartões de crédito, de telefonia celular, bancos, drogarias, supermercados e nossas atividades na rede. Clientes de todo o mundo e em todos os segmentos estão começando a aproveitar os bancos de dados de seus clientes para gerar uma fonte extra de lucro. O escopo e o volume das informações coletadas por cada uma dessas empresas é de fazer inveja a qualquer órgão de inteligência, e essas informações estão à venda para quem quiser. O tipo de informação coletado por essas empresas privadas vai muito além de simples conversas telefônicas ou localização. Uma rápida varredura pelas configurações dos aplicativos em um celular qualquer vai mostrar que APPs, aparentemente inofensivos, e geralmente gratuitos, como jogos, têm acesso à nossa localização, ao microfone, à agenda e às câmeras dos aparelhos. Isto serve para coletar e vender nossos dados, e gerar o lucro que o desenvolvedor não fez com a venda do aplicativo.


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Conexão “O que percebo é que as pessoas não prestam atenção no que eu chamo de ‘rótulo de remédio’. Querem usar uma solução ou aceitam usar só porque outra pessoa a usa, sem, ao menos, conhecê-la de fato ou verificar se a fonte é confiável”, diz Alexsandro Diniz, pesquisador e especialista em segurança digital da Fundação Joaquim Nabuco. “O que sempre digo para as pessoas é prestar atenção às informações dos aplicativos e sempre adquiri-los em lojas oficiais.” Assim como os anúncios que vemos na internet são personalizados, também podem ser as ameaças. Criminosos e terroristas têm, através dessas empresas de dados, acesso aos dados de milhões de usuários, e nem precisam quebrar a lei para consegui-los. Eles podem simplesmente comprar pacotes de dados e descobrir o perfil de milhares de pessoas de uma só vez. Seus endereços, onde trabalham, suas contas de e-mail, seus telefones, seus amigos e parentes, sua religião.

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4-5 23ANDME Empresa realiza dossiê completo de DNA, que hoje pode sofrer manipulação 6-7 RAIO DA MORTE Invenção de Nikola Tesla inspirou criação do Projeto Manhattan, esforço para criação de arma letal em massa

BIOENGENHARIA

Desde o mapeamento do genoma humano, em 2003, a decodificação de DNA tem se tornado mais barata a cada ano que passa. A bioengenharia está se transformando em uma das vanguardas tecnológicas mais populares. Este campo científico está permitindo, por exemplo, que vários grupos realizem esforços para trazer de volta à vida espécies extintas, como o pombopassageiro e o mamute. Antes de ser usado para a criação de um Parque Jurássico, com dinossauros sob encomenda, a tecnologia já está sendo utilizada para a produção de biovírus. Em 2013, cientistas chineses criaram em laboratório uma variação mais potente da gripe aviária H5N1, e quase conseguiram publicar seu trabalho, antes que a comunidade científica percebesse o risco de lançar ao mundo este conhecimento. Hoje, existem algumas empresas que fazem o mapeamento de clientes por um preço módico, como a 23andMe. Por US$ 99, a empresa manda para a casa do cliente um cotonete e um

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recipiente, que servem para a coleta de saliva, a ser enviada de volta em um envelope previamente selado. Em poucos dias, o cliente recebe um dossiê completo sobre o seu DNA, com alertas para possíveis doenças hereditárias e até curiosidades sobre seus ancestrais e personagens históricos que compartilham os mesmos fenótipos. O assustador é que, uma vez sequenciado, o DNA de qualquer pessoa vira apenas mais um dado, armazenado em servidores e transmitido através da internet, e está igualmente sujeito a ser interceptado e usado por criminosos. Assim como o custo para sequenciamento, o valor de síntese química de DNA. Podemos entender o DNA como o software

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das células, e hoje ele já pode ser virtualmente manipulado, tornando hacks biológicos algo tão simples quanto a manipulação de macros em arquivos do MS Word. Terroristas poderão, em breve, criar armas químicas que atinjam apenas uma etnia, uma família ou um indivíduo, sem que sequer sejam detectadas.

RAIO DA MORTE

Nikola Tesla, uma das pessoas mais inteligentes que já existiram, passou os últimos anos de sua vida obstinadamente tentando aperfeiçoar o que ele chamava de raio da morte, uma arma tão letal, que acabaria com todas as guerras, pois as nações teriam muito medo de serem suas vítimas. Será


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possível a existência de uma arma – ou uma tecnologia – que acabe com as guerras ou com o terrorismo? Uma das características das tecnologias é a de que elas não podem ser extintas. A eletricidade não tornou impossível a construção de máquinas a vapor, por exemplo. Uma vez que exista, uma tecnologia pode ser replicada indefinidamente e ser usada para qualquer finalidade. Nenhuma tecnologia nasce para ser usada exclusivamente para “o bem” ou para “o mal”. O Projeto Manhattan foi um esforço dos EUA, Reino Unido e Canadá para a criação de uma arma tão letal quanto o raio da morte de Tesla. Após iniciar a Era Nuclear, com o uso de armas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, ao final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos passaram as décadas seguintes tentando limitar a sua proliferação. Sempre vai haver uma palmatória maior, ao que parece. Da mesma forma, os Estados Unidos, em ação conjunta com Israel, foram os primeiros países a perpetrarem um bem-sucedido ciberataque terrorista, que desmantelou o programa nuclear iraniano em 2008, e agora precisam lidar com as consequências do precedente diplomático que estabeleceram.

A solução para um problema como o terrorismo não parece ser uma arma de destruição massiva. Os jihadistas, por exemplo, estão espalhados por todo o mundo, e ataques a alvos do Estado Islâmico, na Síria, invocam represálias a partir de agentes independentes situados a milhares de quilômetros da sede. O terrorismo é, portanto, uma ameaça

O Estado Islâmico vem utilizando a internet e as redes sociais em ações semelhantes às de marketing ideológica e seu campo de batalha não é físico. Seria possível criar uma tecnologia capaz de eliminar o extremismo? O polêmico comentarista político Dan Carlin sugeriu, em um dos últimos episódios de seu podcast, Common Sense, que esforços do governo norte-americano para a criação e o aperfeiçoamento de tecnologias para o controle da mente já estariam em andamento. Teoria da conspiração? Vejamos. Não é a primeira vez que o governo dos Estados Unidos investiga

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a possibilidade de manipular pensamentos. O programa de pesquisa da CIA conhecido como MK Ultra aconteceu secretamente e ilegalmente durante as décadas de 1950 e 1960, envolvendo mais de 80 instituições, e tinha como objetivo identificar e desenvolver procedimentos a serem usados em interrogatórios, para facilitar a obtenção de confissões através do controle da mente. O programa usava vários métodos de manipulação do estado mental, como a inoculação de drogas (como o LSD), a hipnose, a privação sensorial, o abuso verbal e sexual e várias formas de tortura. O projeto foi descontinuado em 1973, em parte por sua natureza antiética, mas principalmente porque não apresentou resultados significativos. Em palestra de 2009 ao TEDtalks, disponível online, a neurocientista cognitiva Rebecca Saxe descreve como seu laboratório está conseguindo resultados positivos na manipulação de pensamentos, através do uso pontual de ressonância magnética. Aproximadamente aos 14 minutos do vídeo, o organizador do evento, Chris Anderson, pede para fazer algumas perguntas, e a primeira é sobre o interesse do Pentágono em sua pesquisa. Ela responde que o governo tem, sim, tentado entrar em contato com ela. Potencialmente, uma tecnologia capaz de eliminar pensamentos jihadistas pode salvar milhões de vidas. Mas tecnologias sempre serão facas de dois gumes, e sua disseminação, uma vez


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Conexão 8

8 REBBECA SAXE Neurocientista descreve pesquisa sobre manipulação da mente 9 ISIS Estado Islâmico usa internet para propagar o terror

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que existam, é apenas uma questão de tempo. Que danos à humanidade uma tecnologia como essa poderá causar, nas mãos da Coreia do Norte, da China, do Estado Islâmico ou, pior ainda, de um presidente como Donald Trump?

MARKETING TERRORISTA

O extremismo sempre usou a mídia para divulgar sua ideologia e aliciar seguidores. No século 19, eram usados panfletos. A partir da década de 1940, transmissões piratas de rádio. Em 1970 e 80, iniciou-se a tradição de propagação de fitas cassete e VHS. Em 1991, já estava online o Islamic Media Center, o primeiro website jihadista, e, em 2001, a Al Qaeda publicou seu primeiro vídeo online, retratando

o afundamento do navio destróier norte-americano USS Cole. O grupo terrorista ISIS usa as mídias sociais não apenas como meio para propaganda, recrutamento e intimidação, mas também como rede de comunicação para a coordenação de suas ações, utilizando fóruns e serviços de mensagens instantâneas, protegidos por criptografia. Um dos mais seguros deles? O WhatsApp. O aplicativo usa a criptografia de ponta a ponta da Open WhisperSystems, que impede a leitura do conteúdo das mensagens durante a transmissão. Essa é a razão pela qual a empresa não possui acesso às mensagens de seus usuários. São valiosas também as imagens de ações em campos de

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batalha captadas, em tempo real, por drones, uma tecnologia mais popular, barata e eficiente a cada dia que passa. Quando o Estado Islâmico tomou a cidade iraquiana de Mosul em junho de 2014, promoveu, ao mesmo tempo, uma campanha de tomada do Twitter, com a hashtag #AllEyesOnISIS. Em questão de horas, imagens das barbaridades promovidas pelo grupo viralizaram, aumentando a conscientização do mundo em torno da “marca” e ajudando a divulgar sua mensagem. O ISIS tem sido um exemplo no uso das mídias sociais para o marketing viral. Os terroristas seguem o modelo de tudo o que funciona melhor para as marcas e personalidades de maior sucesso online. O primeiro passo é a criação de uma marca consistente. Uma bandeira simples e fácil de ser reproduzida, em preto e branco, com dois slogans (“Não existe deus como Alá. Maomé é o mensageiro de Alá” e “Maomé é o mensageiro de Deus”). A segunda lição é a empatia. Os testemunhos usados na propaganda do ISIS apresentam a intimidade da frente de batalha, descrevendo a camaradagem e celebrando companheiros mortos. Os combatentes sociais do ISIS não fogem de polêmicas, respondendo a provocações e marcando presença. O grupo também se esforça para demonstrar associação a outros grupos jihadistas, de maneira similar ao que fazem hoje os artistas pop, que recheiam suas músicas de trabalho, de participações especiais, para angariar a atenção dos fãs dos outros astros, ampliando sua rede de influência e poder de alcance. Por fim, as ações de mídias sociais do grupo terrorista estimulam o engajamento dos seguidores através de campanhas de hashtags e a publicação constante de vídeos dos fanáticos espalhados pelo mundo. O cúmulo macabro de ação de engajamento de público aconteceu em janeiro de 2015, quando seguidores foram estimulados a sugerir como deveria ser assassinado um piloto de caça jordaniano que havia sido capturado. Em poucos dias, foi postado um vídeo mostrando o capitão Moath al-Kasasbeh sendo queimado vivo.


Entrevista

RAFAEL EVANGELISTA “HÁ UMA FALTA DE PREOCUPAÇÃO COM SEGURANÇA” Rafael Evangelista é cientista

social, doutor em Antropologia social, pesquisador da Unicamp e professor do mestrado em Divulgação Científica e Cultural, também da Unicamp. Ele é membro da Lavits, Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade. Em entrevista à Continente, o pesquisador expõe suas preocupações sobre a dilapidação das políticas de software livre, que haviam sido estabelecidas pelo governo Lula e garantiam mais segurança e transparência às transações digitais realizadas pelas esferas do governo e da academia. Também é abordado o tema dos vazamentos de informações realizados por Edward Snowden, que revelaram a espionagem do governo brasileiro e da Petrobras por agências de inteligência internacionais, o que põe em risco a soberania brasileira e suas riquezas, como o pré-sal. Ele também aborda os perigos do compartilhamento de informações em redes sociais, chamando a atenção para o projeto de lei de proteção de dados pessoais, em tramitação. CONTINENTE Quais você considera as mais preocupantes ameaças à nossa segurança digital? RAFAEL EVANGELISTA A área de segurança nacional não é a minha, então minha resposta não é abrangente. O que vejo é uma falta de preocupação geral com tecnologias seguras por parte tanto do Estado como dos cidadãos e das organizações sociais. O governo manteve, logo após a eleição de Lula, uma ação persistente em direção ao software livre. As razões para isso tanto foram econômicas, científicas, quanto de segurança. Com softwares livres, o Estado consegue garantir

“A Unicamp fez parceria com o e-mail do Google, sem nenhum debate sobre o risco de espionagem industrial” soberania, pois pode investigar o código dos programas que roda e ter mais certeza de que não está rodando nenhum código malicioso. Para essa segurança ser completa, é preciso inspecionar também os hardwares e as redes, mantendo-os sob relativo controle. Porém, essa preocupação foi paulatinamente sendo abandonada. Os esforços em direção ao software livre por parte do governo, hoje, são pequenos. Regrediram em muitos aspectos. Logo após as revelações de Edward Snowden, ensaiou-se uma retomada, mas a crise política minou muito isso. Porque os lobbies são fortes e é preciso um esforço consistente e em diálogo com especialistas que não estejam no bolso das grandes

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empresas. Hoje, tanto entre os cidadãos como entre os agentes do Estado, em diversos níveis, há muita despreocupação e desinformação. Além da questão da segurança nacional, há a questão da espionagem econômica. As revelações de Snowden mostraram isso, o espião interessado não é só o “governo inimigo”, há uma mistura entre espionagem industrial e espionagem política. O governo dos EUA e seus parceiros só puderam fazer o que fizeram (e ainda provavelmente continuam fazendo), porque usam as estruturas das suas empresas de comunicação e agem de acordo com os interesses das empresas daquele país. Para dar um exemplo recente. Minha universidade, a Unicamp, acabou de fechar um acordo de parceria com o Google, que, na prática, coloca o sistema de e-mails da universidade nas mãos da empresa. Isso foi feito sem nenhum debate anterior sobre riscos de espionagem industrial, que pode acontecer com base na troca de mensagens de uma universidade que produz inovação de interesse econômico.


FOTOS: DIVULGAÇÃO

10 LEI Apesar de ter sido aprovado, há muitas proposições de políticos que contrariam o Marco Civil

Conexão

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CONTINENTE O software livre, por permitir a edição a qualquer desenvolvedor, não seria mais vulnerável a códigos maliciosos? RAFAEL EVANGELISTA No software livre, o código malicioso é inspecionável, podemos verificar se algo está lá e resolver. Os governos, em especial, que têm especialistas em seu corpo, podem auditar o código que usam. No software proprietário, fechado, só quem conhece o código são as empresas que o produzem. Portas que vazam informações podem ficar abertas por anos, por descuido da empresa ou por interesses escusos, mesmo. Autoridades de um determinado país podem fazer com que suas empresas sempre deixem portas abertas no software, para que esse governo possa espionar outros países. Há várias denúncias sobre a relação da Microsoft com a NSA. CONTINENTE Que cuidados você sugere que as pessoas tomem, não apenas em relação a transações feitas através da internet, mas também no uso de aplicativos de smartphones e outros objetos conectados, como smart TVs, videogames e, em breve, automóveis? RAFAEL EVANGELISTA O melhor cuidado é conhecer minimamente a estrutura do que se está usando. Não há uma solução única, mágica. Se você conhece a estrutura de funcionamento, não precisa ser um expert, vai ter mais chances de saber onde é seguro digitar a informação do cartão de crédito etc. O princípio de funcionamento da internet é razoavelmente simples, ter mais informação sobre isso já ajudaria

“O Marco Civil foi um grande passo, colocou alguns pilares muito interessantes, mas a instabilidade política vai minando isso” muito. Um bom começo é usar softwares livres, que são muito menos vulneráveis à espionagem mais comum, de roubos de senhas, vírus etc. Com a profusão de redes sociais, uma boa ideia também é evitar a superexposição. Não é o caso de se isolar ou algo assim, mas é preciso saber quando se está se postando em aberto, para o público, e quando se está se postando só para uma audiência restrita. E saber que tudo que está na rede é copiável. Quem pode ver a mensagem, foto ou vídeo certamente consegue copiar esses itens e depois reproduzi-los em outros lugares da rede. As redes sociais vivem (melhor dizer, lucram) com a nossa autoexposição. Elas são desenhadas de maneira a fazerem com que os usuários introjetem essa necessidade de se mostrar. O próprio sistema tem transformado isso numa necessidade, ou seja, até mesmo para melhorar as chances profissionais, muitos são levados a colocarem sua vida inteira na rede. Vide o caso das subcelebridades, que se deixam usar ou mesmo humilhar em público, porque imaginam que vão ter alguma vantagem social ou econômica.

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CONTINENTE Como você descreveria a situação do Brasil quanto ao tema, tanto do ponto de vista das ações quanto da legislação? RAFAEL EVANGELISTA Com relação às ações, acho que o momento é de regresso, de falta de atenção. Muitos dos atores políticos não têm o interesse público ou nacional em mente, e o momento político abre espaço para eles. O Marco Civil foi um grande passo, colocou alguns pilares muito interessantes, mas a instabilidade política vai minando isso. Vale lembrar que o principal adversário do Marco Civil foi (o atual presidente da Câmara de Deputados) Eduardo Cunha. É difícil, mas é preciso manter uma atenção continuada. A principal vitória do Marco Civil, do meu ponto de vista, é a neutralidade de rede, o fato de que os operadores de internet não podem discriminar a velocidade de entrega dos pacotes de informação (por exemplo, dando preferência ao vídeo de um site específico em vez de outro). Mas, além disso, ele é um marco legal que dá base a um certo entendimento dos princípios da internet, que é bastante interessante. Foi construído em debate público. Muito ainda carece de regulamentação e, vez ou outra, há proposições que contrariam os princípios do Marco Civil (como o Projeto de Lei 215 de 2015, do PL, 215/2015), do deputado Hildo Rocha (PMDB-MA), que propôs a dispensa de ordem judicial para que a polícia, o Ministério Público ou outras autoridades tivessem acesso ao histórico e ao conteúdo de navegação dos internautas, inclusive em aplicativos de celular, para investigar supostos atos de calúnia, injúria e difamação – conhecidos como “crimes contra a honra”. Outra lei que está em discussão e pode ajudar muito é a de proteção aos dados pessoais, que pretende preencher lacunas do Marco Civil, estabelecendo a natureza dos dados pessoais e regulamentando o acesso e uso desses dados. Ela pode colocar proteções importantes para o cidadão tanto contra o Estado como contra empresas que querem fazer uma exploração indevida desses dados. O desenho dessa lei, até agora, parece positivo. Mas ainda há muito chão pela frente.


ANDANÇAS VIRTUAIS

SÉRIES TVShow Time oferece ferramentas para o usuário organizar e registrar os programas televisivos favoritos, além de apresentar estatísticas da área www.tvshowtime.com/pt_BR

A televisão vive a sua era de ouro e nós aproveitamos esse boom na variedade de programação para conhecer e apreciar um produto de

boa qualidade. De um lado, vemos atores consagrados do cinema migrando também para a TV. De outro, a forma de ver televisão se

transforma com a popularidade de canais streaming, como a Netflix. Diante de tantas opções, às vezes fica difícil lembrar quais episódios você assistiu de cada série. Para facilitar a vida dos cinéfilos, existe o Filmow. Já para os viciados em séries, foi criado o TVShow Time, um aplicativo para iPhone e Android, mas que funciona também com acesso ao site. Lá, você pode adicionar todas as séries a que você assiste e marcar os episódios de acordo com a sua frequência. Quando o programa está todo atualizado, uma linha verde aparece completa no ícone da série. Com o TVShow Time, o usuário pode ainda conferir o calendário de séries e evitar a perda do dia em que o episódio de seu programa favorito vai ao ar. O aplicativo também oferece estatísticas em seu perfil sobre a quantidade de tempo gasto com os programas televisivos, entre outras ferramentas. MARIA EDUARDA BARBOSA

LITERATURA

HQS

VIAGENS

JORNALISMO

Editora é a primeira brasileira a lançar conteúdos exclusivos de terror e fantasia

Site aborda o universo pop das histórias em quadrinhos e de outras mídias, como a TV

Blog traz relatos, notícias e experiências sobre passeios ao redor do mundo

Com sede em São Paulo, Nexo traz abordagens originais e informações contextualizadas

http://www.darksidebooks.com.br/

http://comicbook.com/

http://essemundoenosso.com.br/

https://www.nexojornal.com.br/

O terror e a fantasia ganharam uma editora brasileira exclusiva, a Dark Side Books. Com suas edições caprichadas, cujo planejamento gráfico é uma atração à parte, a editora mantém um portal, no qual podemos procurar informações completas sobre as obras lançadas. Além de buscar resenhas e notícias sobre as publicações, também encontramos no site uma seção dedicada a downloads gratuitos de obras de autores como Augusto dos Anjos, Edgar Allan Poe e Bram Stoker. A editora é responsável por publicações de histórias que ganharam as telonas, como Tubarão, A noite dos mortos-vivos e Psicose.

É fato que super-heróis dominam as bilheterias do cinema, as histórias em quadrinhos e, agora, as séries televisivas. Tais personagens ganharam protagonismo no mundo mainstream do entretenimento e também do site norte-americano Comic Book. Lá, encontramos resenhas e notícias completas sobre esse universo em seções que convergem entre as mais diversas mídias, como TV, cinema, HQs e games. Se você tem uma série ou filme preferido que abrange o universo dos super-heróis, é imprescindível o acesso ao site. A saga Star wars também não fica de fora.

Os jornalistas Rafael Carvalho e Adolfo Nomelini já passaram por 35 países e relatam suas experiências no blog especializado em viagem Esse Mundo É Nosso. No portal, há notícias, relatos e dicas para quem gosta de viajar. A navegação pelo site também vale para quem não pode viajar, mas se interessa pelos mais diversos lugares do mundo. Os países visitados foram os mais variados, desde a África do Sul a Cingapura. O Brasil também ganha destaque com mais de 30 cidades, incluindo Olinda e o Recife. As seções do blog perpassam por Destinos, Guias de Viagem, Dicas, Listas e informações sobre Seguro Viagem.

Um novo jornal digital foi lançado para garantir aos internautas matérias aprofundadas, com uma nova perspectiva. Com sua sede em São Paulo, o jornal Nexo foi fundado por Paula Miraglia, Renata Rizzi e Conrado Corsalette e reúne uma equipe de 25 profissionais, cuja atuação perpassa por diversas áreas como jornalismo, arte, tecnologia, pesquisa, negócios e estratégias. Hoje, a leitura do Nexo é totalmente gratuita. No entanto, futuramente, ela será restrita a assinantes e com limitações a quem não assinar. Suas seções são interativas e convergem entre textos, vídeos, podcasts e gráficos.

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PROJETO LAMBE LAMBE

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Tradição CONTINENTE FEVEREIRO 2016 | 42


URSOS Uma lata na mão e uma máscara na cabeça Brincadeira que remonta à Itália tornou-se uma das mais resistentes tradições do carnaval pernambucano, principalmente nos bairros periféricos do Recife, onde é mantida por antigos e novos brincantes TEXTO Flora Noberto FOTOS Projeto Lambe Lambe

“A la ursa quer dinheiro, quem não

dá é pirangueiro” são os versos da marchinha popular que faz parte da tradição do carnaval pernambucano, principalmente dos subúrbios da região metropolitana do Recife. A brincadeira é levada às ruas com espontaneidade por crianças e adolescentes nos dias que antecedem a folia ou durante o Carnaval. “As crianças já vão crescendo e brincando, indo de porta em porta pedindo dinheiro. É impressionante como isso se perpetua, como a nossa cultura popular é tão forte. Uma caixa de papelão na cabeça, uma lata de leite ou balde e um cabo de vassoura nas mãos, está feita a brincadeira”, afirma Aelson da Hora, conselheiro nacional de cultura e presidente da Federação Cultural de Bois e Similares. Mas os ursos também desfilam, com capricho, no Concurso de Agremiações Carnavalescas, sendo conduzidos por brincantes apaixonados que se esforçam para fazer bonito na competição realizada pela Prefeitura do Recife. Nos grupos que saem oficialmente, existem mais personagens envolvidos do que nas brincadeiras entre crianças. Além do urso, o concurso exige a figura do caçador com espingarda e a do italiano (às vezes, chamado gringo ou domador), com maleta e cartola,

representando o dono ou o vendedor do animal. Os personagens remetem a tradições europeias, principalmente italianas, com influência dos povos ciganos e artistas circenses. Orquestra, coral e porta-cartaz também fazem parte da agremiação. Os ursos podem incluir outros elementos, que variam de acordo com o grupo, como cordão de crianças, cordão de mulheres e novos personagens ou homenagens. “O urso ou la ursa é uma brincadeira trazida para o Brasil pelos italianos imigrantes. Em Pernambuco, ela se desenvolveu e agregou nossas características, sendo incorporada ao Carnaval. A manifestação é oriunda das feiras da Idade Média, nas quais um urso – o animal verdadeiro – era levado para embates que atraíam público”, explica Albemar Araújo, coordenador do concurso desde 2001. Com uma categoria específica dentro da competição, os ursos compõem, de forma singular, a diversidade da folia pernambucana. O grande vencedor do concurso é o Urso Cangaçá, do Bairro de Água Fria, campeão há 10 anos, ininterruptamente. Fundado em 1983, é mantido desde 1996 pela funcionária pública aposentada Cristina Andrade, de 68 anos. “O urso desperta alegria e felicidade nas pessoas. A gente trabalha com crianças, adultos e pessoas da

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terceira idade, acolhemos todo mundo. Trabalhamos com muito amor”, diz Cristina, numa pausa da costura de fantasias. Ela vive a cultura popular com intensidade, do ciclo natalino ao ciclo carnavalesco, pois também organiza um pastoril. Este ano, tem o desafio de sublimar a dor para colocar o urso na rua, pois não poderá contar com Márcio Luna, seu sobrinho e companheiro nos preparativos para a folia. Ele faleceu precocemente, aos 36 anos, em julho de 2015, e era responsável por grande parte da criatividade que levou o Cangaçá a ser campeão por tantos anos. “A gente tomba e se levanta, mas estamos confeccionando as fantasias, tentando botar (o urso) na rua. É um trabalho que me preenche, sabe? Por causa desse acontecimento, eu pensei em acabar (com o grupo) ou entregar pra alguém, mas não tive coragem, porque é uma coisa que aperreia, mas, na verdade, é bom, gostoso”, declara, demonstrando o amor pela cultura popular. Além de brincante dedicado, Márcio Luna era historiador e se preocupava em evidenciar a importância cultural dos ursos. Chegou a idealizar o projeto de pesquisa Ursos do Carnaval. junto ao historiador Mário Ribeiro, para submeter documentação ao Instituto do Patrimônio Histórico


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CON TI NEN TE

Tradição e Artístico Nacional (Iphan), e tentar registrar a manifestação como Patrimônio Imaterial do Brasil. O projeto foi aprovado para financiamento através do Funcultura e será iniciado ainda este ano. “A ideia primeira é levantar o histórico. Já encontramos alguns registros. O mais antigo encontrado até agora é o do folclorista pernambucano Pereira da Costa (1851-1923), que no livro Folclore Pernambucano traz um relato do viajante português Tollenare, que passou por Pernambuco em 1817 e registrou uma brincadeira de homens e mulheres, e representações do urso e do caçador num pátio de uma igreja no Recife”, conta Mário Ribeiro, coordenador da pesquisa que pretende suprir uma lacuna nos estudos sobre os ursos na contemporaneidade. A pesquisadora e antropóloga norte-americana Katherine Royal Cate (1927-2006), conhecida como

Katarina Real, é a responsável pelos principais textos sobre a origem dos ursos de Carnaval. Na década de 1960, Katarina morou no Recife e fez parte da Comissão de Folclore de Pernambuco. No texto A La ursa – Os ursos do carnaval do Recife, ela afirma: “Não há dúvida de que o urso ‘veio da Itália’. Italianos com ursos dançando, ora indo pelas cidades do interior, ora se exibindo em circos foi uma coisa comum no Brasil de ontem. E em todos os ursos que pesquisei, o povo fala ‘do italiano’”.

HOMENAGENS

A influência do circo é celebrada este ano pelo Urso Cangaçá, com homenagem a Índia Morena, artista circense de 73 anos, que detém o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. A agremiação desfila na terça-feira de carnaval, na Avenida Nossa Senhora do Carmo, no centro do Recife, onde é instalado o polo dedicado aos ursos do Grupo Especial. Os desfiles do concurso das agremiações dos grupos 1 e 2 e do Grupo de Acesso também acontecem na terça-feira, a

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partir das 15h, nos polos da Estrada Velha do Bongi e na Avenida do Forte. As agremiações ainda são escaladas pela gestão municipal para animar os polos oficiais e comunitários nos outros dias da folia. Este ano, 23 ursos participam da competição, entre eles o Urso Mimoso de Afogados, o Urso Brilhante do Coque e o Urso Branco da Mustardinha, que, nos seus nomes, já trazem suas marcas de origem nos subúrbios recifenses. Mas há também representante sertanejo que vem ao Recife participar do concurso. É o caso do Urso Pé de Lã de Arcoverde. De acordo com Aelson da Hora, presidente da Federação Cultural de Bois e Similares, existe dificuldade de catalogação dos ursos, pois muitos grupos não são registrados oficialmente. A federação abrange mascarados como ursos, caretas, caiporas e papangus, e ainda pastoris, reisados e cavalosmarinhos. Aelson estima que existe mais de uma centena de ursos em Pernambuco, do Litoral ao Sertão, e afirma que a entidade iniciou uma


1 HOLOFOTES Ursos pernambucanos desfilam para as lentes do projeto Lambe Lambe IMBATÍVEL 2 Urso Cangaçá, de Água Fria, é campeão da folia recifense há 10 anos consecutivos

catalogação dos bois e pretende dar continuidade com os ursos. O Catálogo das agremiações carnavalescas, lançado em 2010 pela Prefeitura do Recife e pela Associação de Maracatus de Baque Solto, reúne, por exemplo, textos sobre 100 grupos, os principais das diversas modalidades. Entre eles, constam históricos de seis ursos: Branco do Zé, Cangaçá, da Tua Mãe, Zé da Pinga, Texaco e Teimoso da Torre. O Texaco é um dos mais antigos em atividade. Foi fundado em 1958 por Albérico Simões e amigos, quando estavam num bar em frente a um posto de gasolina, no Bairro de Campo Grande – por isso o nome da companhia de petróleo. Com a morte de Albérico, o urso foi refundado em 1999 e passou para

Além da marca da espontaneidade nas ruas, grupos de la ursa desfilam oficialmente na folia em busca de títulos o comando de Degenildo Trajano, atualmente com 49 anos. O Texaco tem sede em Chão de Estrelas, atual residência do seu presidente, um autêntico brincante. Degenildo já fez parte de agremiações tradicionais, como o Maracatu Estrela Brilhante, o Maracatu Leão Coroado e o Caboclinho Sete Flexas, além de ter ajudado a

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fundar novas troças em Chão de Estrelas. De acordo com ele, o Texaco, que já foi campeão do Grupo 1 em 2015, desceu para o Grupo 2 devido a um problema com transporte, que inviabilizou o desfile. Este ano, o Texaco aposta nas cores dos principais times de futebol do Recife – Sport, Náutico e Santa Cruz – para tentar voltar ao Grupo 1 e, talvez, o urso tenha uma composição inédita. “Ainda estou tentando compor uma música nova. Mas, caso não consiga, tocaremos as antigas, pois temos 12 marchas, que eu mesmo inventei”, conta Degenildo. O analista de sistemas Palula Brasil, 38 anos, também é compositor e este ano toca pela primeira vez com a La Ursa Traíra da Guabiraba, durante o período momesco. Apesar do nome, Guabiraba, o grupo sai de outro bairro, numa tentativa de despistar outros foliões, já que os fundadores querem manter a brincadeira sem multidões. O urso foi fundado em 2015, após o Carnaval, em parceria com a produtora cultural Carol Vergolino e o incentivo de vários amigos. Palula foi fundador do Urso Traquino, mas, há sete anos, tinha saído da agremiação. Com a chegada da sua filha, Nina, o folião se sentiu estimulado a criar um novo urso, para que ela pudesse vivenciar a brincadeira desde a infância. Novos ursos também surgiram no sítio histórico de Olinda e no Bairro do Hipódromo. O Urso-Preguiça, criado em 2010 pelo designer e produtor cultural Leo Antunes, inova por ser carregado numa rede durante o desfile pela Estrada do Bonsucesso, em Olinda. Já a La Ursa do Hipódromo, inventada por Rafael Angelo e Olga Wanderley em 2012, nos moldes de uma brincadeira entre amigos, tem sua máscara de papel machê confeccionada de forma coletiva, dias antes de sair da praça do bairro pedindo dinheiro aos moradores da vizinhança.


RODRIGO LOBO

Tradição

CON TI NEN TE

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PECULIARIDADES

O urso de Palula Brasil sai às ruas com músicas compostas com Maria da Paz Brasil, sua mãe. “As marchas são simples, curtas, com poucos acordes e sem introdução. Na La Ursa Traíra, vamos tocar as marchinhas e as composições que fazemos com elementos modernos. O hino conta a história da La Ursa Traíra, que veio da Romênia, depois de dominada por um domador Ursari”, explica. Os ursos costumam desfilar ao som de marchinhas, xotes, baião, polcas e xaxados. Na musicalidade, um traço peculiar é a presença da sanfona na orquestra. Entre os diversos tipos de agremiações carnavalescas, somente os ursos utilizam o instrumento de

fole. O grupo musical é composto ainda por triângulo, pandeiro, recoreco, ganzá, tarol e surdo. Alguns também usam violão, cavaquinho, banjo, clarinete e trombone. O brincante Aelson da Hora e o historiador Mário Ribeiro também destacam a dualidade que existe no folguedo entre a ludicidade do animal peludo que atrai crianças e o teor sexual contido nas músicas. “Você encontra a picardia e letras com duplo sentido, que são hilárias e fazem rir. Alguns ursos têm nomes singelos e outros bem safados, isso é bem interessante”, diz Aelson. Mário pretende investigar essa questão no seu estudo: “A forma lúdica de ter uma pessoa fantasiada de urso e que brinca atrai muitas crianças, é

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uma brincadeira ingênua. Já em alguns grupos, o urso ganha a conotação de amante da mulher. Nos subúrbios, alguns ursos trazem uma mulher de biquíni ao lado. Essas são vertentes que vamos estudar na pesquisa”. Além do profano, a religiosidade também permeia as agremiações carnavalescas como maracatus, escolas de sambas, clubes de frevo. “Toda agremiação carnavalesca tem uma certa ligação com a religiosidade, qualquer que ela seja. O urso, em particular, não tem tanta ligação. Mas sempre há uma entidade da Jurema ou do Candomblé que apadrinha seus desfilantes, como o Urso Branco do Zé, cujo padrinho é Zé Pilintra”, afirma Albemar


3 TRAÍRA DA GUABIRABA Apesar do nome, o urso não informa de qual bairro sai, para evitar multidão e permanecer uma brincadeira de amigos

envolvo outra religião na brincadeira”. Já o Urso Zé da Pinga, com vários prêmios, tem origem na Jurema Sagrada (tradição afro-indígena). Foi criado no Centro Ilê Axé Oxóssi Gongobira, em 1985, no Bairro do Pina, zona sul do Recife. “Surgiu de uma brincadeira da entidade Zé da Pinga. Temos o Maracatu Porto Rico. Minha mãe Elza é a presidente e a rainha, e ela recebe essa entidade, Zé da Pinga, um mestre que fez muitas caridades. No dia 2 de agosto, a gente sempre faz a sua festa, e ele dizia ‘Bebete (entidade Elizabete) tem o maracatu e Zezinho não tem nada’. Então, a gente disse: ‘Se fizéssemos uma brincadeira para o senhor, o senhor gostaria?’ Ele disse: ‘Zezinho vai adorar’. Perguntamos: ‘O quê?’ Ele disse: ‘Como Zezinho gosta de mulher, é o urso’”, relembra Edileuza Lira da Silva, 60 anos, entre risadas. Presidente do Zé da Pinga, ela é

Novos ursos têm surgido no carnaval pernambucano, como o Traíra da Guabiraba, no Recife, e o UrsoPreguiça, em Olinda Araújo, coordenador do concurso. Aelson acrescenta que, “entre as correntes dos cultos, os ciganos e os mestres são os que dominam os ursos. Mas falar do religioso ainda não é uma questão fácil, pois esses cultos foram muito marginalizados e até criminalizados. Então, nem todos se sentem libertos a falar sobre isso. É raro encontrar um grupo que vá para a rua e não tenha uma relação religiosa, muitos dizem ter uma ligação cristã. Existem bois e ursos que fazem culto a Nossa Senhora, por exemplo”. Ao ser questionada sobre a religiosidade, Cristina Andrade responde: “Eu costumo dizer que o Urso Cangaçá é católico. Quando eu saio, eu rezo, todo mundo reza. Não

funcionária pública aposentada. Este ano, lamenta o urso não participar do concurso carnavalesco, pois perdeu o prazo de inscrição devido a uma cirurgia. Mas ela garante que Zé da Pinga vai às ruas: “A gente leva o urso com muito carinho, porque sabe que o mestre adora, e ele diz para a gente não brigar com ninguém, levar o Urso de ‘Zezinho Bonito’ e as casadinhas sempre vestidas para não aparecer as vergonhas e as pernas. O carinho e o amor são tão grandes, que não tenho nem como explicar”, declara Edileuza.

MUDANÇAS

Os ursos, assim como outras agremiações, passam por transformações ao longo do tempo.

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Albemar Araújo, atual coordenador do concurso, acompanha a competição desde 1975 e percebe as mudanças que ocorrem na busca por um título. “A evolução observada nos ursos é notória, posto que alguns chegam a aproximar-se de verdadeiras troças carnavalescas. Alguns deixam peculiaridades e singelezas para adentrar no universo de grandes desfilantes. Isso é complicado, visto que podem perder suas características. No entanto, o concurso prima por tentar deixar o urso o mais original possível.” O historiador Mário Ribeiro aponta que as mudanças são naturais e têm influência de outras modalidades. “Houve uma maior sistematização do concurso a partir dos anos 2000. Os grupos passaram a participar dos seminários que a Fundação de Cultura Cidade do Recife promovia e acompanhavam a elaboração de temas das outras agremiações, passando a incorporar isso. Antes, a homenagem dos ursos vinha só na faixa. Depois, eles passaram a aprimorar isso na música, nas fantasias. E, quando um grupo ganha, como o Cangaçá, por tantos anos, serve de modelo para os outros”, diz. Entre as transformações observadas por Mário, estão a preocupação com a criação de composições próprias a cada ano, a criação de alas e uma maior dedicação ao acabamento das fantasias. Aelson pontua sobre a plasticidade da roupa: “As la ursas eram feitas de estopa, com retalhos que eram costurados ou amarrados em forma de tiras, o que dava um movimento, uma beleza, um colorido muito bonito. Hoje em dia, eu considero uma perda dessa origem aqui, na capital, a utilização do veludo e da pelúcia. Eu sinto saudade”. E com simpatia e safadeza, as la ursas estão soltas mais uma vez nas ruas neste Carnaval. A brincadeira pode ser descompromissada, valendo uns trocados ou uns prêmios de concurso, mas a alegria e a rebeldia sempre estarão soltas por aí. A la ursa é cigana, é circense, é maloqueira. Pode vir da Itália, da Romênia, de Água Fria, do Pina, de Chão de Estrelas, a la ursa vai chegar. E ai de quem for pirangueiro.


Pernambucanas

NOITE DA CUBANA Pista caliente no Alto do Céu Desde 1992, amantes da música oriunda de países como Cuba, Panamá, Venezuela, Porto Rico e Colômbia são atraídos, aos domingos, ao Clube Bela Vista TEXTO Maria Eduarda Barbosa FOTOS Otavio de Souza

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Três de janeiro de 2016. Também conhecido como o primeiro domingo deste ano. O que se encontrava no Alto do Céu, Zona Norte do Recife, eram ruas movimentadas, barracas de comidas sendo montadas e música cubana se propagando pelo lugar. O epicentro, se podemos chamar assim, era no Clube Bela Vista, onde acontecem diversas festas e a já clássica Noite da Cubana, que existe há mais de 20 anos. A primeira visão que temos do lugar é uma divisão entre entrada e saída, com catracas antigas que, ao longo da noite, giram cada vez mais devido aos transeuntes da festa. A entrada divide a bilheteria em duas partes, uma para cavalheiros, outra

colocado pelos amigos, que agora se tornou seu “nome artístico”, como ele brinca) dança com sua esposa Maria das Graças, ambos frequentadores antigos da Noite da Cubana, a estudante de Nutrição Camilla Bacalhau, de 21 anos, explora o lugar pela primeira vez. A potiguar passa férias na capital pernambucana e aproveitou o momento para conhecer a famosa festa, com as amigas da prima. Sérgio é apaixonado pela música cubana desde os 10 anos de idade. Atualmente com 75 anos e morador do Alto Santa Terezinha, foi um dos fundadores do Clube Bela Vista, que antes abrigava o Cine Bela Vista. O clube era um pequeno espaço que foi se ampliando com algumas reformas e hoje possui um salão para dança, localizado bem no meio do lugar, dividido em duas partes: uma próxima ao Bar Brasil e a outra, no Bar Cubano. Homenageada nas canções Bela Vista Social Club, da Frevotron, e Bela Vista, da Academia da Berlinda, a Noite da Cubana foi fundada por dois amigos de longa data –Edinho Jacaré e Valdir Português. Edinho, bastante simpático e receptivo, coordena o evento, enquanto Valdir fica encarregado da discotecagem, na cabine de som em companhia de seus CDs com músicas dos mais variados países, como Porto Rico, Cuba e Colômbia. Da cabine, vemos o salão de dança, onde as pessoas passeiam através de passos de danças. No começo, aproxima-se um casal e, depois, o lugar se abarrota de gente até não sobrar mais espaço. para damas. É como se estivéssemos de volta a uma década passada. A simpatia e a atenção dos funcionários da bilheteria e da segurança contagiam e antecipam o que vem a seguir: uma recepção simples, mas acolhedora. Lá, é o momento de cumprimentar os amigos e se divertir, como diz Maria Alice Albuquerque, de 60 anos. Ao lado da amiga Dilene Bezerra, que faz questão de mostrar a carteira de sócia do Clube Bela Vista, ela frequenta assiduamente a Noite da Cubana e ressalta que não perde uma só edição do evento desde a sua criação, em 1992. Em todos os cantos do clube, encontra-se um público diversificado em várias faixas etárias. Enquanto Sérgio Guitarra (Guitarra é um apelido

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COMEÇO

Edinho conheceu Valdir em uma feira de troca-troca, na qual o DJ buscava vinis de artistas da música cubana. “Encontrei-me com ele e a gente ficou amigo até hoje. E nós conseguimos até hoje esse lindo sucesso que está por aí espalhado em todo território”, completa Edinho. Morador do Alto do Céu, foi convidado pelo clube para fazer a festa e o coordenador aproveitou a oportunidade para chamar Valdir. “Ele disse: ‘Eu vou fazer uma’. E eu: ‘Não, você vai fazer várias’. E está aí até hoje”, relembra Edinho Jacaré. Criada em 1992, a festa chamavase Manhã de Sol Cubana. No entanto,


1 PARCERIA O DJ Valdir Português e o coordenador Edinho Jacaré NO SALÃO 2 O casal Maria da Conceição e Josemar Vieira frequenta a festa desde o começo CLIENTELA 3 As amigas Dilene Bezerra e Maria Alice são assíduas da Cubana

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Pernambucanas

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os frequentadores costumavam chegar ao entardecer e, assim, o evento passou a ser realizado à noite, sendo atualmente das 18h à 1 hora, sempre no primeiro e terceiro domingo de cada mês. “Eu sou mais coordenador e a seleção musical é de Valdir Português. E a gente vem nesse sistema esses anos todinhos”, ressalta o fundador. Embora a festa se concentre no Clube Bela Vista, Valdir e Edinho tocam em outros lugares. Já passaram pelo Recife Antigo, por Garanhuns, São Paulo, pela Bomba do Hemetério, entre outros. Os dois amigos nunca foram a Cuba, mas tiveram a oportunidade de reunir 65 cubanos no Clube Bela Vista. Edinho destaca a aproximação dos jovens ao evento e salienta que “cada vez mais o público vai se encantando”. Hoje, a festa é chamada de “Família Cubana”, como explica João Batista, atual presidente do Clube Bela Vista. Sentado em sua mesa da diretoria, no primeiro domingo de 2016, ele contabilizava os ingressos da bilheteria enquanto as pessoas se


entregavam ao ritmo cubano no salão. Fundado em 24 de outubro de 1980, o lugar sempre promove eventos às quintas, sábados e domingos, nos quais a característica maior da festa é ser dançante. Seu Batista conta que, no início, a Cubana era frequentada por pessoas da terceira idade. Mas, em meados de 2007 e 2008, começou a atrair pessoas de outras faixas etárias. Como morador do Morro da Conceição, Valdir Português (o sobrenome é uma homenagem ao pai, que era português) conta que se apaixonou pela música cubana e desejava conseguir os discos dos músicos. Ao completar 12 anos, ele começou a trabalhar e conseguiu comprar seu primeiro disco. “Fiquei muito feliz. E, até hoje, eu conservo ele.” Seu Valdir ressalta a dificuldade em conseguir discos de música cubana. Com o salário que recebia, ele comprava um e assim foi fazendo sua coleção até que a chegada da internet começou a facilitar a busca pelas canções. “Aí ficou mais fácil. A gente vai e procura uma música de Porto Rico, Panamá, Cuba, Venezuela, do mundo inteiro”, ressalta. Apesar de ter começado a ser DJ com vinil, atualmente só toca com CDs, e não gosta de trabalhar com computador. O DJ, que comanda a seleção musical da Cubana, considera esta como uma programação difícil. “Hoje, eu tento resgatar alguma coisa com a rapaziada nova. Devagarinho, estou conseguindo. Pelo menos, até aqui, a música cubana vai muito bem, ela não tem problema de dançarinos, pois sempre aparecem.”

PAIXÃO

Ao mesmo tempo em que a aurora surge iniciando os dias, a música cubana é um dos guias do amanhecer de Josemar Vieira. Quando acorda, às cinco horas da manhã, para tomar banho e ir trabalhar, não pode faltar o som ligado com música cubana. Ao cumprir a jornada de trabalho como motorista de ônibus, a música também integra o horário de Josemar, que passa o expediente ouvindo o ritmo musical no rádio. “Trabalho o dia todinho com o pen-drive de música cubana. Para me acalmar, tenho que dançar.”

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Casado com Maria da Conceição, Josemar, aos 50 anos, não perde a vontade de dançar por um só minuto. O suor pelo corpo entrega o quanto o

Embora a Cubana aconteça no Clube Bela Vista, zona norte do Recife, também já foi realizada em outras cidades casal já aproveitara a noite, e promete continuar a dança. Entre uma pausa e outra para tomar refrigerante e conversar com a Continente, o olhar sempre se volta para o salão de dança, que os atrai pelo ritmo. “Desde que me entendo por gente, não perco a cubana por nada. Desde que vim pela primeira vez, me apaixonei.” Maria da Conceição é cabeleireira e também carrega a música cubana na alma, para além do clube. Nos domingos de festa, o casal passa a tarde descansando, poupando

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energia para transformá-la em dança, quando chegar ao Bela Vista. Próximo à mesa de Josemar e Maria da Conceição, o casal Rivaldo Gomes, de 59 anos, e Laurinete da Silva, de 61 anos, dança por todo o salão com suas roupas padrozinadas na cor azul. Eles são casados há 40 anos e frequentam a Cubana desde a época em que se intitulava “Manhã de Sol”. Moradores da Campina do Barreto, também na Zona Norte do Recife, eles foram convidados por Edinho Jacaré para conhecer a festa. Ambos são fãs do evento e Laurinete destaca que aprendeu a dançar com suas colegas e ao frequentar gafieiras. Diferentemente dos filhos, que não se interessam pelo evento, o casal o aproveita por todos eles. Ao passar as horas da noite, cada vez mais pessoas se aproximam do Clube Bela Vista, que cobra R$ 5 pela entrada, até chegar o momento em que a rua congestiona por alguns minutos. Mas nada que atrapalhe a vontade de dançar e se soltar ao som de Valdir Português e da receptividade de Edinho Jacaré.


DIVULGAÇÃO

LOS ANGELES Muito além de Hollywood Conhecida como a capital da indústria cinematográfica, a cidade também possui outros atrativos, como museus, parques e casas de shows TEXTO Rodrigo Salem

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4 Los Angeles é a capital do

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cinema. Não é preciso ser um gênio do turismo para chegar a essa conclusão. Mas a cidade que abriga os maiores estúdios do planeta também possui outras atrações para o turista mais eclético. De museus concorridos a casas de shows históricas, passando por parques de diversão clássicos, LA pode ser aproveitada em sua glória máxima pelo visitante mais dedicado. A única ressalva é a necessidade de um carro para poder conhecer os pontos turísticos sem perder horas e horas em ônibus. O sistema de transporte público ainda é limitado, apesar de ter melhorado bastante nos últimos cinco anos – e não compensa para quem tem pouco tempo para conhecer a cidade. Alugue um carro, ajuste o GPS e pise no acelerador. Você se surpreenderá com o que existe além de Hollywood.

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CINEMA 1. NEW BEVERLY CINEMA 7165 Beverly Blvd, Los Angeles

Construído nos anos 1920, o cinema ficou conhecido por sua programação em dose dupla: são sempre dois filmes que o espectador pode ver seguidamente. Prestes a ser fechado, há nove anos, o cineasta Quentin Tarantino comprou o local e preservou o estilo. Boa parte dos longas apresentados, sempre em película, vem da cinemateca particular do diretor de Pulp fiction, que apresenta suas obras regularmente na sala para 300 pessoas.

2. TCL CHINESE THEATRE 6925 Hollywood Blvd, Hollywood

O cinema mais tradicional de Hollywood. Frequentemente, seus acessos são fechados para alguma première mundial como Star wars: O despertar da força. Na frente da fachada em estilo pagode chinês, ficam as placas de concreto com as formas de mãos e pegadas das maiores celebridades do cinema mundial. Vá cedo, para desviar-se dos milhares de turistas.

4. CALÇADA DA FAMA Se você estiver no olho do furacão de Hollywood, não tem como perder: basta olhar para o chão e vagar pelos quilômetros de calçadas cobertas por estrelas de centenas de atores, diretores e músicos.

MÚSICA 8. GREEK THEATRE 2700 N Vermont Ave, Los Angeles

Pode parecer um programa mórbido, mas o cemitério abriga filmes ao ar livre durante o verão e shows de bandas indies no salão ecumênico. Mas você pode andar entre os mausoléus de lendas como Douglas Fairbanks e Cecil B. DeMille.

O anfiteatro ao ar livre para cinco mil pessoas talvez seja o melhor local de shows da cidade. Não é tão grande quanto o Hollywood Bowl, mas é bem mais intimista. Além disso, fica no Bairro de Los Feliz, um dos mais velhos de Los Angeles e lar de várias celebridades, logo em uma das entradas do Griffith Park, o maior parque da região. Vale a pena, mesmo sem algum show na agenda.

6. PARAMOUNT STUDIOS

9. HOLLYWOOD BOWL

5555 Melrose Ave, Los Angeles

2301 Highland Ave, Los Angeles

Logo atrás do cemitério, fica o Paramount, o mais velho e único grande estúdio remanescente na região de Hollywood. Como ainda é um lugar de trabalho, não há visitas sem reservas, que podem ser feitas pelo www. paramountstudiotour.com. Há, pelo menos, três tipos de tours pelo estúdio: um rápido de duas horas (US$ 55), um VIP de quatro horas (US$ 178 com direito a uma refeição e fotografia) e um noturno (US$ 78).

O grande templo da música da Califórnia. Bandas famosas sonham em tocar nesse teatro ao ar livre. Não apenas pelo simbolismo de estar no palco em que Elton John e Oscar Peterson fizeram shows antológicos, mas por ser desenhado para a música clássica, garantindo uma acústica perfeita. Os maiores maestros contemporâneos conduziram suas filarmônicas no local, com capacidade para 17 mil espectadores. Levantado numa das áreas mais altas de Hollywood, o Bowl tem longas escadas rolantes, entre a vegetação e uma vista única do bairro – que pode ser aproveitada com um vinho vendido em um dos inúmeros bares da casa.

5. HOLLYWOOD FOREVER

3. HOLLYWOOD & HIGHLAND

7. WARNER BROS. TOUR

6801 Hollywood Blvd, Hollywood

A Warner mantém um estúdio em funcionamento e organiza tour. Porém, fica em Burbank, área mais afastada do centro de Los Angeles. Durante três horas (US$ 62), o visitante é levado a cenários de filmes como Batman e Juventude Transviada e séries (Friends, The Big Bang Theory), passa por exibições de figurinos famosos e pode até trombar com celebridades no meio do caminho. Há outra tour vip por US$ 295 que dura seis horas e percorre os bastidores dos soundstages, em que as produções ganham vida.

Na esquina das avenidas Hollywood e Highland, encontra-se o famoso complexo que hoje abriga o Dolby Theatre, mais conhecido por ser a casa da cerimônia do Oscar desde 2002. Você pode caminhar entre os pilares com o nome de todos os filmes vencedores da estatueta, frequentar lojas, lanchonetes ou simplesmente tirar fotos nos andares superiores, onde há uma bela visão do letreiro de Hollywood ao fundo.

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3400 West Riverside Drive, Burbank

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10. MUSEU DO GRAMMY 800 W Olympic Blvd A245

Incrustado no meio da LA Live, espécie de shopping a céu aberto que ocupa três quarteirões de LA, o Museu do Grammy é uma viagem pela história da música. Repleto de peças históricas (casacos de Michael Jackson, guitarras de Jimi Hendrix), tem cabines explicativas sobre a evolução da música, não apenas com os ritmos mais famosos, mas também com a tecnologia.


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11. AMOEBA MUSIC 6400 Sunset Blvd

Uma das melhores lojas de discos do mundo. O galpão que ocupa quase um quarteirão inteiro de Hollywood é obrigatório para quem gosta de música. A seção de CDs usados é uma perdição e o estoque de vinil é invejável, mas a loja tem muito mais: shows exclusivos (até Paul McCartney, que também é um freguês, tocou no pequeno palco), áreas especiais para jazz, blues, música clássica e peças raras à venda.

12. CENA INDIE Ballroom (1234 W 7th St).

Los Angeles é capital do cinema, mas, de uns anos para cá, a indústria fonográfica começou a ganhar mais importância devido à chegada de diversas start-ups musicais. Com a internet e a música caminhando de mãos dadas, a cidade virou celeiro de artistas querendo um lugar ao sol. Então, tente descobrir algumas bandas antes do hype chegar ao Brasil, indo em locais como o pequeno Bootleg (2220 Beverly Blvd), o central Fonda Theatre (6126 Hollywood Blvd), o tradicional Troubadour (9081 Santa Monica Blvd) e o novíssimo Teragram

MUSEUS

sorte para ver a disputada instalação Sala dos espelhos infinitos, de Yayoi Kusama.

13. LACMA

15. GETTY CENTER

5905 Wilshire Blvd

1200 Getty Center Dr

O Los Angeles County Museum of Art é um dos principais cartões-postais da cidade. Transformado há cerca de 10 anos pelo arquiteto italiano Renzo Piano, o LACMA virou o maior museu da costa oeste dos Estados Unidos, com 1.200 peças em exposição – permanentes e itinerárias. Esculturas como a famosa Luzes urbanas, de Chris Burden, ou a Levitated mass, de Michael Heizer, podem ser vistas. Às sextas, há jazz ao ar livre.

A melhor união entre belas paisagens e arte em Los Angeles. O projeto do arquiteto Richard Meier, responsável pelo Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, levou mais de 10 anos e consumiu US$ 1,3 bilhão para ganhar vida. Os prédios e jardins nas montanhas de Brentwood abrigam peças de arte do século 20 – a principal é uma restauração de Pollock – e podem ser visitados de graça. O funicular leva o frequentador do estacionamento no pé da montanha até o topo, e já vale a viagem. Dica: vá no fim da tarde para apreciar o por do sol no Oceano Pacífico.

14. THE BROAD 221 S Grand Ave

Nova atração de LA, o museu foi doado pelo filantropo Eli Broad, que investiu cerca de US$ 140 milhões no prédio. O acervo é formado por peças de arte contemporânea que passam por Andy Warhol, Jeff Koons e Roy Liechtenstein. A entrada é grátis, mas precisa ser “reservada” online com bastante antecedência. Você também pode ir na hora e ficar na fila de espera, já que muitos que reservam não aparecem. A fila leva, normalmente, cerca de 30 minutos. Mas não espere a mesma

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16. PETERSEN AUTOMOTIVE MUSEUM 6060 Wilshire Blvd,

O museu do automóvel fica do lado oposto ao LACMA e pode ser um complemento para o dia. Reaberto com nova fachada e restauração, o local possui três andares com a história dos carros, experiências com realidade aumentada e, claro, alguns veículos famosos de Hollywood em exposição, como o Batmóvel, de Tim Burton.


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ARQUITETURA 17. AEROPORTO DE LOS ANGELES Muitos torcem o nariz para a arquitetura de Los Angeles, mas a cidade oferece alguns exemplares notáveis. E um deles já na cara do visitante: a “garra” que serve de base principal do Aeroporto Internacional de Los Angeles. Desenhado por Paul Williams, o prédio em 360º costumava ter um restaurante em funcionamento, mas agora está vazio – podendo ser visitado aos fins de semana.

18. DISNEY CONCERT HALL 111 South Grand Avenue

Desenhado por Frank Gehry, considerado o arquiteto mais importante da Era Moderna, o prédio que abriga concertos de música clássica é símbolo da revitalização da região de Downtown, que era sinônimo de violência, gangues e drogas há 10 anos. O Disney Concert Hall pode ser visitado em tours gratuitas, mas também é a casa da Filarmônica de Los Angeles, conduzida pelo maestro venezuelano Gustavo Dudamel.

19. CAPITOL RECORDS

21. GAMBLE HOUSE

1750 Vine St

4 Westmoreland Pl, Pasadena,

Um dos prédios mais representativos de Hollywood, “destruído” em filmes como O dia depois do amanhã. Desenhado por Welton Becket, em 1956, para lembrar uma torre de 45 discos em vinil empilhados, o edifício ainda funciona como sede da gravadora, então, não está aberto para visitação. Em compensação, pode ser visto em uma pequena caminhada por Hollywood.

Se você estiver disposto a dirigir um pouco mais, corra para Pasadena. A casa desenhada pelos influentes irmãos Charles e Henry Greene é considerada um dos maiores exemplos de arquitetura residencial dos Estados Unidos e serve como museu e residência de estudantes de arquitetura. Além disso, os fãs de cinema reconhecerão o local como o cenário da casa do doutor Emmett Brown (Christopher Lloyd), em De volta para o futuro.

20. PACIFIC DESIGN CENTER 8687 Melrose Ave

Se você estiver em Beverly Hill, não deixe de andar um pouco pelos estranhos prédios coloridos que podem ser vistos por toda a região. Eles foram desenhados pelo argentino César Pelli, responsável pelas torres gêmeas de Kuala Lumpur, e abrigam galerias, lojas de móveis, escritórios de designers famosos, exposições e dois restaurantes comandados pelo renomado chef Wolfgang Puck.

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22. THE HOLLYHOCK HOUSE 4800 Hollywood Blvd,

A primeira residência criada por Frank Lloyd Wright em Los Angeles tem uma história engraçada. Foi um pedido de Aline Barnsdall, herdeira do magnata do petróleo Theodore Newton Barnsdall, em 1919, mas ela odiou tanto a construção, que doou para o Estado antes mesmo do fim da obra, em 1921. Uma renovação milionária foi conduzida e finalizada em fevereiro de 2015. Hoje, a casa pode ser visitada em tours.


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Viagem AO AR LIVRE 23. OBSERVATÓRIO GRIFFITH 2800 E Observatory Rd

Levantado no topo das montanhas que fazem parte do Griffith Park, o observatório é o melhor lugar para quem quer ter uma visão privilegiada de Los Angeles e do letreiro de Hollywood. Você pode fazer piquenique na área verde, partir para uma caminhada nas dezenas de trilhas ou simplesmente conferir o cenário de filmes como Juventude transviada (há um busto no local em homenagem ao astro James Dean), O exterminador do futuro e tantos outros.

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24. PÍER DE SANTA MONICA O píer já foi representado em diversos filmes hollywoodianos e pode ser visitado nos fins de semana. Mesmo assim, vale a pena enfrentar a multidão para ver o início da famosa Rota 66, tirar foto com um banco que replica uma cena de Forrest Gump ou andar na roda gigante que serve de ponto para belas fotos.

25. CANAIS DE VENICE BEACH Uma das praias mais conhecidas de Los Angeles, lar de hippies, marombados e do início da cena skatista californiana, Venice possui ótimos restaurantes (a maioria orgânicos) e galerias modernas. Mas você não precisa gastar para se divertir: basta andar pelas ruas cortadas pelos canais e se deliciar com as casas mais incríveis da região.

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PARQUES DE DIVERSÃO 26. UNIVERSAL STUDIOS 100 Universal City Plaza, Universal City

Criado originalmente para abrigar tours pelos bastidores das produções, o parque da Universal cresceu e ganhou brinquedos e novas atrações ao redor do estúdio original – que ainda está em funcionamento. Apesar de ter restaurantes, cinemas e lojas em sua entrada (grátis), a área para quem possui ingressos pode decepcionar por causa de constantes fechamentos de atrações e brinquedos mais antigos – entre os novos, há experiências com Velozes

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a pena não apenas pelas cervejas premiadas (divididas em 30 torneiras), mas pelas costelas na brasa e sanduíches de carne de porco. Deixe as crianças na Disneyland e aproveite o dia.

29. THE BRUERY 717 Dunn Way, Placentia

Se você estiver em Anaheim, parte da grande Los Angeles que abriga a Disneyland, tire um tempinho para visitar essa microcervejaria conhecida pelos produtos maturados em barril e no estilo belga. A comida é provida apenas por food trucks, então o foco é a bebida. Dica: os flights com seis amostras de cervejas diferentes. 29

e furiosos e Minions. Em abril, o Mundo mágico de Harry Potter será aberto.

27 . DISNEYLAND 1313 Disneyland Dr, Anaheim

Uma das grandes diferenças entre alguns parques da Califórnia e seus irmãos famosos da Flórida é a história. A Disneyland, em Anaheim, é o primeiro parque concebido por Walt Disney, em 1955. Apesar de conservar os prédios originais, o parque ganhou expansões para acomodar brinquedos mais modernos. A principal delas é o Adventure Park – os dois parques podem ser visitados separadamente, mas a empresa encoraja o visitante a comprar ingressos que dão direito às duas atrações.

CERVEJAS ESPECIAIS 28. BEACHWOOD BBQ & BREWING 210 E 3rd St, Long Beach

Há alguns anos, ninguém apostaria em Los Angeles como uma das capitais da cerveja nos Estados Unidos. Mas com 570 produtoras, a Califórnia hoje é o estado norte-americano com o maior número de microcervejarias – e Los Angeles não fica de fora dessa onda. A Beachwood é a melhor cervejaria da região, apesar de ficar em Long Beach, um pouco na contramão do turismo tradicional. Mas vale

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30. HIGHLAND PARK BREWERY 5127 York Blvd, Los Angeles Na região, que começa a virar o novo point hipster de Los Angeles, a cervejaria é tão pequena, que possui poucos rótulos para a venda. Em compensação, as torneiras estão sempre frescas com o líquido produzido no local. Não deixe de experimentar a 1UP, uma super IPA refrescante, e o sanduíche de frango frito.

31. ANGEL CITY BREWERY 216 S Alameda St, Los Angeles

Para quem não tem muito tempo para sair de Los Angeles, a Angel City fica no yuppie Art District, em Downtown – que começa a ser tomada por restaurantes caros e bares da moda. O grande salão com o bar da cervejaria fica em um lindo prédio histórico erguido em 1913 e renovado recentemente.


BERNARDO DANTAS

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AUGUSTA FERRAZ Uma estrela que atravessa gerações Veterana atriz pernambucana, que atuou no elenco de peças originais, contemporâneas e clássicas, prepara-se para estrear no cinema, em filme sobre a ditadura militar TEXTO Clarissa Macau

“Estar no teatro me tranquiliza”,

conta Augusta Ferraz, vivendo e sobrevivendo intimamente junto às artes cênicas sem medo das coxias, proscênios ou fundos dos palcos há mais de 40 anos e 70 espetáculos no currículo. “É nesse espaço aonde chego cedo, alimento-me, vivo, faço coisas que podem ser feitas ou não”, revelou isso, há alguns meses, em tom de bom humor, encostada ao palco do Teatro Arraial Ariano Suassuna, no centro do Recife, enquanto pensava junto ao iluminador Jhatyles Miranda como seria a luz de sua nova peça: Stupro – monólogo autobiográfico, escrito pela atriz, dramaturga e feminista italiana Franca Rame (1854 - 2013). Nele, a autora reconta o que sofreu em episódio de violência sexual num caminhão oficial com cinco soldados fascistas, no ano de 1973. Antes de desejar montar a peça, Augusta interpretou o texto através da leitura dramática, com direção de Maria Rita Freire Costa, durante retrospectiva em homenagem à obra da atriz pernambucana no 21º Janeiro de Grandes Espetáculos, em 2015. A primeira experiência com o monólogo italiano destruiu barreiras entre a artista e o ser humano. “Aquilo me bateu descontroladamente. Deu-me crise de choro. A violência, por mais que a gente queira ser indiferente a ela, sempre nos toca. É dela que nascem as

dores e as loucuras. O ator lida com essas questões que acontecem no dia a dia, e que são discutidas nas peças dando e tirando energia. O que protege o ator é a reflexão distanciada. Desde que a técnica possa direcionar, a emoção pode vir. Nos outros dias da leitura, apesar de me sentir abalada, contive a emoção. Meu método é desenvolvido durante 24 horas de estudo teatral e observação do mundo”, reflete a atriz. Na época, ela foi convidada pelo coordenador do 22° Porto Alegre em Cena, Luciano Alabarse, para se apresentar no festival gaúcho de 2015. “A primeira vez em que vi Augusta foi numa releitura do antigo texto de Medeia,de Eurípedes –MEDÉAponto (2007), encenação de Marcondes Lima. Lembro a marca em que a personagem simplesmente atendia o celular. Só uma grande atriz daria nobreza trágica a tal cena. Reconheci uma genuína alma teatral, que vai do drama à comédia com naturalidade ímpar”, diz Luciano. Augusta, então, resolveu que prepararia para o festival essa versão especial do texto Stupro. “Sessenta por cento das mulheres não denunciam o assédio”, justifica a importância da peça na atualidade. Na sua concepção, o drama não teria referência à política, à ditadura com luzes de interrogatório, nem à violência explícita. “Preciso que seja algo atemporal”, imagina.

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Mas, a dois meses de viajar com o espetáculo, o seu pai morre. Sentindose desprotegida e só, pois sua mãe já havia falecido 14 anos antes, desiste momentaneamente de montar o texto de Rame. A saída seria encenar Guiomar – Filha da mãe (2003), texto de Lourdes Ramalho defendido pela atriz, que canta e interpreta como protagonista de uma carroceira contadora de secretos causos da descoberta do Brasil. O Porto Alegre em Cena aceitou bem a proposta. Em meio às reviravoltas, Augusta cortou os cabelos, antes longuíssimos, em sua casa, testemunhada por suas estantes cheias de livros, suas paredes com quadros, fotos de família e pelo cachorro poodle, Otelo. “Dormia, acordava e cortava mais um pedaço de cabelo, e assim por diante, como se eu estivesse me livrando de algo”, pensa. Os cabelos se tornaram assumidamente brancos. Augusta, hoje com 58 anos, não teme a velhice. “Eu estou envelhecendo. Não quero esconder isso. Gosto de roupas folgadas nas quais eu não precise interpretar um papel de dondoca, mulherzinha ou de gay e possa falar o que eu quiser”, diz. De cabelos curtos, decide contar sobre memórias escondidas no seu inconsciente há anos, responsáveis por impedir o preparo daquela encenação que falava sobre violência contra a mulher: “Sempre que eu terminava o


FOTOS: BERNARDO DANTAS

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Perfil

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espetáculo, ficava deprê, vazia. Na nossa vida, a gente sofre contínuos estupros, seja no sentido figurado ou não. Mas tudo fica mais simples quando você compreende. Não que a dor passe”.

UM ATO ILEGAL

Após a morte do pai, Augusta começou a dormir muito. Um acontecimento da sua juventude ressurgiu durante os sonhos. Numa madrugada em 1986 – mesmo ano da gravação de seu premiado vídeo Pharkas Sertanejaz, e da criação do seu grupo teatral homônimo existente até hoje, composto por ela e colaboradores convidados – Augusta, na época estudante de música na Universidade Federal de Pernambuco, e mais cinco amigos voltavam de carro da mata sul ao Recife depois de alguns dias de descanso. Na Ponte Santa Isabel, no centro da cidade, uma inesperada blitz da polícia militar espreitava a rua com caminhão, cachorros e mais de 100 soldados empunhando metralhadoras. Deviam estar à espera de algo grandioso. Tudo estaria tranquilo, se não houvesse fumantes de maconha atrás do carro. “Mandei jogar fora. No meio da ponte, pararam a gente, ainda tive de arrancar o baseado da boca de uma pessoa”, conta. Os policiais abriram as portas do carro. Repentinamente, Augusta se assustou quando viu uma latinha de pastilhas

“A estética do cinema brasileiro, hoje, muitas vezes lembra o Neorrealismo. A diferença é que existia metáfora” embaixo do banco. Eram restos de bagas de maconha guardados. “Jogaram-nos num ônibus com várias pessoas sentadas no chão. Eram bêbados, ladrões, miseráveis”, relata. O soldado, sem dó, empurrava os jovens ao mesmo tempo em que caminhava sobre os presos. Todos foram levados à delegacia. Os policiais não paravam de lhes perguntar “Quem é a diretora do Circo Voador?”, que se encontrava na cidade naqueles dias. Os colegas, três rapazes e três moças, foram presos obrigatoriamente nus em celas sujas de fezes, urinas e sem luz. Às sete horas da manhã, foram soltos sem maiores explicações do acontecimento claramente ilegal. “Que vergonha prender seis estudantes por causa de uma lata de pastilhas. Esses homens poderiam fazer o que quisessem e sumir com a gente. O estado de fragilidade diante dos policiais é muito grande. Sabemos que não mudaram

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muito da ditadura militar para cá. O Brasil é um dos países que mais torturam pessoas na polícia, segundo a ONU. Principalmente os pobres, cães sem dono”, desabafa Augusta. Após a memória dolorida, porém libertadora, Augusta se sentiu tranquila para voltar a ensaiar Stupro no mês passado. Além disso, em novembro de 2015, foi convidada pela cineasta pernambucana Tuca Siqueira para participar do elenco da ficção Amores de chumbo, com previsão de lançamento para o segundo semestre de 2016. Coincidentemente, o filme remete aos tempos opressores da ditadura militar brasileira de maneira subjetiva, sem a violência explícita que Augusta tanto deseja evitar em suas montagens teatrais, e nem mesmo gosta de assisti-las como expostas no cinema. “A estética do cinema brasileiro, hoje, muitas vezes lembra o neorrealismo europeu de anos atrás. A diferença é que a miséria não era tão latente e existia metáfora, como a gente vê em Stromboli (1950), de Rosselini. Não mostra a faca cortando e o sangue espirrando na cara do espectador, feito os filmes atuais. Para que isso serve? É para dizer que nós somos uma raça hedionda? Mas a gente já sabe disso. Acho que a arte anda na frente da sociedade. Artes são saídas”, arremata.


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A história de Amores de chumbo acontece em torno de um triângulo amoroso de ex-militantes políticos, quando desconfianças sobre o passado são trazidas à realidade. Augusta fará Lúcia, esposa de Miguel, interpretado pelo ator cearense Aderbal Freire Filho. Os dois reencontram, 40 anos depois da ditadura, a escritora Maria Eugênia, defendida pela atriz carioca Luciana Carneiro. “Mesmo que tudo aconteça por causa de uma mentira que a minha personagem solta e muda tudo no enredo, tudo é muito afetivo. Nós, os três atores do elenco, temos histórias parecidas. São pessoas conhecidas, mas que não viraram celebridades, trabalhando de uma maneira que visa à arte e não ao produto”, conta Augusta. O primeiro longa-metragem de ficção da documentarista Tuca Siqueira, autora de filmes bem-sucedidos, como Garotas da moda (2003) e Mesa vermelha (2013), é também o primeiro de Augusta. Tuca conta como decidiu convidar a atriz de tradição nos palcos: “Muitas pessoas a indicaram porque, apesar da não experiência no cinema, era uma grande atriz. Ela é disposta a assumir um novo desafio na carreira e a exposição que o personagem exige, inclusive quanto ao corpo. É isso que me atrai em Augusta: a coragem!”. Augusta já estava com vontade de atuar no cinema: “Queria

“Há o mito de que no dia da estreia você tem que achar um prego para tudo dar certo. Na minha, ele varou o meu dedão do pé” entender mais das nuances de cada mídia. No cinema, há outra postura da voz reduzida, do som mecânico, que não é o da minha voz humana”.

O MITO DO PREGO

Com a sua voz e presença de palco marcante, Augusta construiu uma qualidade sólida no teatro, registrada em vários livros escritos por autores das artes cênicas, como Enéas Alvarez e Valdi Coutinho, respectivamente em Casa de espetáculo (2009) e O palco da memória (2008). Ela trabalhou não só no elenco, mas na produção de peças originais, contemporâneas e clássicas com textos que vão de Eurípedes à August Strindberg; de Carneiro Vilela a Raimundo Carrero, acompanhada de grandes diretores como Moncho Rodriguez, Antonio Cadengue e João Falcão. Também encenou clássicos infantis nos anos 1980 pela companhia

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TRAJETÓRIA

Augusta Ferraz caracterizada como a carroceira protagonista da peça Guiomar

Ilusionistas. O diretor do grupo teatral Máquina dos Sonhos, Wellington Júnior, acompanha sua carreira de perto desde que assistiu à peça Malassombro (2001), de Ronaldo Corrêa de Brito, no Teatro do Parque. “Depois, não perdi um espetáculo dela. A partir dos anos 1990, ela vai ser uma das primeiras atrizes da cena teatral a pensar a ideia dos espetáculos solo, em que ela dirige e atua”, diz o diretor. Augusta se autodirigiu, pelo grupo Pharkas Sertanejaz, em monólogos como o próprio Malassombro e Sexo, a arte de ser censurada (2014), obra baseada nos textos de Franca Rame. A artista também esteve em várias frentes das lutas pela cultura. “Fiz parte de uma pequena gama de pessoas da sociedade que esteve presente fazendo os sindicatos acontecerem, a Federação de Teatro de Pernambuco, as associações de produtoras, o Sistema de Incentivo à Cultura municipal, que a prefeitura nos roubou, e o Funcultura, que deveria acontecer duas vezes por ano e deve anos de verba”, conta a atriz.

COMEÇO

A primeira encenação de sua vida foi uma expressão corporal da peça Jesus Cristo Super Star, de Andrew Lloyd Webber, pelo Colégio Leão XIII, no ano de 1973. “Há o mito que, no dia da estreia, você tem que achar um prego para tudo dar certo. Na minha, no Teatro de Santa Isabel, eu não só achei um prego, como ele varou o meu dedão do pé. Eu sei que, quando Jesus morre, eu sofri como ninguém aquela dor. Entrei no palco empurrada por Clenira Melo. E entendi que o espetáculo não podia parar, hoje eu já sei que pode, sim”, lembra. Filha de pais separados – a mãe professora universitária e o pai coronel –, viveu toda sua infância com a família materna. A vontade de ser atriz não foi uma decisão pensada: “Quando vi, eu era. Tive uma infância de muita fantasia. Algumas das minhas peças e contos foram montados no quintal da minha avó. Eu adorava encenar A Branca de Neve e filmes de bangue-bangue”. A casa da avó era um sítio no Bairro do Arruda, num Recife de outrora, cheio de árvores


VICTOR JUCÁ/DIVULGAÇÃO

3 AMORES DE CHUMBO No set de filmagem do primeiro longa de ficção de Tuca Siqueira 4 TEATRO A atriz em Sexo, a arte de ser censurado, peça que coescreveu e codirigiu

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ALCIDES FERRAZ/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Perfil

4

e pouco asfalto. “Adoro olhar para a cidade e dizer ‘olha, aqui tinha isso; ali, tinha aquilo’”. Porém, era impossível a cidade com a quantidade de gente que tem hoje continuar a vila de interior que vivi. A mentalidade interiorana continua na questão da moral recifense, apesar de muito metida à moderna”, pensa. Segundo ela, a capital pernambucana parece ter uma tradição incessante pela busca do novo. “O Recife diz que as peças ficam velhas. Como é que algo etéreo pode ficar velho, desvalorizado?”, pergunta-se. Para ela, “as lâmpadas podem queimar, a gelatina entortar, o figurino envelhecer, mas o espetáculo não. Mas, no Recife, se não for novo, está fora de circulação”.

A ATRIZ

Ainda assim, Augusta cultiva seu repertório. Quando sobe ao palco com peças como Guiomar, em cartaz há mais de 10 anos, é visível sua aproximação

com a atuação naturalista. “O que Freud é para a Psicanálise, Stanislavski, pai do Naturalismo, é para a interpretação”, costuma dizer. Na visão de Wellington Júnior, Augusta é fruto de um período de diretores que investiam no diálogo forte entre intensidade vocal e força corporal – “Ela se impõe em cena com uma corporeidade dilatada”. Mesmo estudando diferentes técnicas ou atravessando montagens com ares surrealistas, ela não gosta de falsear, mas achar o tom perfeito para a encenação atingir seu palco e plateia. “Afinal, estamos falando sobre seres humanos, não de Saturno, Marte ou Vênus. Mas de terráqueos.” Para Augusta, deve-se prezar pelos personagens. “Muitas vezes, quando não é natural, há uma esquisitice na construção da figura. Eu chego a ver o ator descendo para a plateia rindo e expondo o personagem. É muito o teatro de hoje. A não interpretação não existe, a gente interpreta toda hora na vida. O ser

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humano é máscara por si. Não tiramos muitas máscaras nem para nós mesmos. Tem ator que não quer assumi-la e acaba assumindo muito mais”, acredita. Em 2005, no Teatro Apolo, Pedro Wagner, hoje ator e diretor do grupo de teatro Magiluth, assistiu cerca de 10 vezes ao espetáculo A vida diva, dirigido por Carlos Bartolomeu. Peça de estrutura formada por colagens textuais, na qual três divas decadentes correm numa tempestade até encontrarem um estúdio. Uma delas é vivida por Augusta. “Ela tinha uma presença notável, até hoje lembro o seu texto, que dizia – ‘plantei tomates, as sementes estavam logo ali na horta daqueles tomates grandes’. Identificome com essa força da atriz”, lembra Pedro, que utilizou o trecho no roteiro da última peça do Magiluth, O ano em que sonhamos perigosamente. Augusta vê em grupos como o Magiluth, Cênicas Cia. de Repertório, Poste: Soluções Luminosas e Coletivo Angu exemplos responsáveis por motivar o lado do teatro recifense profissional. “Mas ainda tem muita gente que deveria estudar e aprender a fazer melhor teatro, para não voltar a esvaziálo”, comenta, pois constatou que a cidade está num momento bom. “O público voltou a procurar os palcos, diferentemente de uma época quando as bilheterias minguavam ao ponto de dar vontade de puxar os passantes da rua para assistir às peças”, observa. Décadas atrás, o teatro era uma arma de luta, hoje Augusta se vê lutando, como muitos, por esse instrumento em meio à falta de patrocínio e à forte vontade de permanecer atuando. “Minha fama é do tamanho da minha aldeiazinha, Recife. Cidade sem mídia para artista. Aqui, ser ator com toda uma formação e ser um ator que sobe pela primeira vez no palco é a mesma coisa”, reclama. O trabalho de ator parece ainda esbarrar na discriminação à classe. “O artista ainda é tido como um marginal, porque fala o que desperta as mentes e existem pessoas poderosas que não querem isso.”


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SÉRGIO LOBO

Cardápio RABADA Uma aula de técnica de cozinha

De origem portuguesa, presente no cardápio popular brasileiro e de preparo complexo, o prato vem sendo uma das apostas dos chefs para ingressar na alta gastronomia TEXTO Eduardo Sena

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Opulenta em gorduras saturadas,

pesada, refeição para muita gente e que pede repouso – se possível, na horizontal e com ar-condicionado ligado no máximo. Por muito tempo, a rabada pairou no imaginário comestível sempre associada a esse leque monocórdico de predicados. A receita era sinônimo de lábios engraxados com gloss de origem animal, sempre escoltada por uma farinheira com molho de pimenta. “Comida para os fortes”, advertem os mais antigos, que hoje

se admiram ao perceber que o corte do rabo do boi cozido pode virar um hambúrguer em um food truck da cidade; um bolinho, em um pub da Zona Sul; quiçá se tornar um risoto, num restaurante classudo. Mas, obviamente, nem sempre foi assim. A receita, segundo a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti, tem sotaque belga. “Há um cozido muito famoso por lá chamado hochepot, feito com rabo de boi, vitela e presunto com osso. O europeu, por ter vivido em conjuntura de guerras e escassez de comida, nunca desprezou cortes menos nobres. Chegou ao Brasil com o colonizador português, que, procurando recriar aqui o meio de sua origem, nos ensinou a temperar carnes e cozinhálas em caldo”, registra a dona da cadeira de número 23 da Academia Pernambucana de Letras. Igualmente europeia, a sopa de rabo de boi, de DNA português, também pode ter sido o embrião da rabada que nos é familiar. “A gênese, de fato, está no conceito de cozido e há diversas combinações e matériasprimas, sendo ao mesmo tempo uma solução culinária camponesa e uma expressão de status gastronômico que reveste a cozinha rural a partir do século 19, no Brasil”, defende o pesquisador Carlos Alberto Dória. Praticante de uma cozinha afetiva, ou seja, aquela cuja relação de intimidade construída com o preparo é essencial na elaboração dos pratos, a chef Andréa Hunka é categórica quando resume a rabada a uma “iguaria grotesca”. À frente do restaurante Roda, aninhado num prédio secular no Bairro do Recife, Hunka registra que do boi se aproveita tudo, e o rabo não escaparia. “Dele se cortam os tamanhos regulares, lava-se e tempera-se bem dosadamente, uma pitada daqui, uns pedacinhos de cheiros verdes, umas folhas de louro e a boa e velha cachaça de guarnição. Pode assustar, mas nem por isso deixa de ser encantador”, detalha a cozinheira. E, de fato, por muito tempo o preparo assustou os menos íntimos da receita. Mas bastou a famosa consultoria mundial Andrew Freeman & Co, que

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anualmente elenca o que deve ser hit nas principais mesas de restaurantes do mundo, eleger a rabada como tendência em 2014, para que os olhos dos cozinheiros se voltassem mais para o corte que, até então, só figurava nos cardápios mais tradicionais. “Categoricamente, o rabo de boi é carne ‘de segunda’. E os restaurantes de alta gastronomia buscam a transformação desses ingredientes menos nobres em algo que surpreenda. O cozinheiro hoje cumpre uma função social de reeducar o comensal à mesa, fazendo-o comer aquilo de que ele tem preconceito”, opina o chef paraibano Onildo Rocha, comandante das panelas do Roccia Cozinha Contemporânea, em João Pessoa. Instalado em um hotel de luxo, o restaurante traz no seu menu um risoto de rabada. “Risoto é um dos pratos que o brasileiro mais gosta de comer

“O europeu, por ter vivido em guerras e escassez de comida, nunca desprezou cortes menos nobres” Maria Lectícia Cavalcanti em restaurantes. Daí, quis fazêlo com rabada justamente para seduzir, mostrando a versatilidade do rabo bovino”, explica. Onildo sublinha que essa opção é mais requisitada pelos muitos turistas que frequentam a casa do que pelo público local. “Ainda existe um ranço – dissolvido aos poucos com muito trabalho –, de que é um prato doméstico e sem valor.” A despeito do preconceito, o preparo vale como uma aula de técnica de cozinha. Não, cozinhar esse corte bovino para uma proposta gastronômica não é tarefa superficial como se supõe.

GUARDIÃ DE COLÁGENO

Primeiro, porque é um corte rico em gorduras, e uma das regras da cartilha da alta gastronomia é enxugar excessos, tornando-o mais digestivo e leve. Mais apresentável e estético, até. Uma espécie de suvenir


SÉRGIO LOBO

FOTOS: DIVULGAÇÃO

Cardápio

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1 BOLINHO Colágeno da gordura promove o artíficio da liga, sem precisar de muita farinha

RABADA

HAMBÚRGUER 2 Item é um dos mais pedidos no cardápio do La Camioneta

Por Andréa Hunka, do Roda Ingredientes 2 cenouras picadas em rodelas largas 2 batatas-inglesas cortadas em cubos grandes 3 colheres de sopa de coentro picado 3 colheres de sopa de cebolinho picado 1 colher de sopa de pimenta-do-reino moída 1 xícara de cebola picada 500 ml de fundo de gordo 3 colheres de sopa de alho amassado Sal a gosto 100g de farinha de mandioca 100g de arroz branco 1kg de rabada 1 xícara de pimentão verde picado 100ml de cachaça 50ml de molho de tomate 3 folhas de louro Preparo Misture em uma panela grande a rabada, o alho, o louro, o colorau, o cominho, o pimentão, a pimenta-de-cheiro, o molho de tomate, a cebola, o sal e o cheiro verde. Refogue tudo até dourar. Acrescente a cachaça. Depois de 10 minutos, coloque água fervente até cobrir toda a carne e feche a panela por meia hora. Junte a cenoura e a batata. Enquanto os legumes cozinham, devem ser retiradas duas conchas do caldo para fazer o pirão. Em outra panela, adicione a farinha ao caldo aos poucos, sempre mexendo até ficar no ponto desejado. Sirva a rabada escoltada por pirão e arroz branco.

RISOTO 3 Prato é hit no Roccia, restaurante instalado em hotel de luxo em João Pessoa

2

A intenção de tornar a rabada um item da alta gastronomia requer muita experiência em técnica de cozinha

do conceito original. “Para esse fim, precisa cozinhar lentamente, por cinco horas, de forma que toda a gordura se desprenda do osso, e depois segue para gelar por 10 horas. É aí que se vai iniciar o processo de gelatinização, quando esse sebo segue para a superfície em grossa camada, como gelatina, e é

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descartado”, ensina Rocha. Ainda assim, a proteína mantém um alto grau de colágeno, responsável por um sabor acima da média, quando o assunto é carne vermelha. “É que, perto do osso, a carne é mais gostosa”, brinca a chef e consultora Taciana Teti, que mantém no Haus Bar, no Pina, uma entrada que consiste em bolinhos de rabada. “É uma carne que não tem como desossar, ou seja, ela vai ter que cozinhar necessariamente com o osso, o que garante um sabor único ao preparo. Não à toa, todos os caldos usados em restaurantes são produzidos a partir da estrutura óssea do animal. E toda essa gordura que se desprende traz bastante


Sotaques

CADA POVO DO SEU JEITO A rabada tradicional já não é mais receita exclusivamente interiorana. Chegou aos grandes centros do país, não sem apresentar suas particularidades de preparo, sobretudo no que rege os acompanhamentos, trazendo as identidades gastronômicas locais. Enquanto na Região Nordeste é comum que o prato seja servido acompanhado por pirão e arroz branco, em São Paulo, por exemplo, é inconcebível a receita sem salada de agrião (aliás, a hortaliça é utilizada inclusive para temperar) e polenta – bem molinha. No Rio de Janeiro, a receita tem até gentílico: rabada carioca. No preparo, adiciona-se linguiças e vinho tinto ao cozimento, e, mais uma vez, muito agrião. Na Região Norte, em geral, é comum a presença do jambu e do caldo do tucupi. No centro do país, é o pequi quem dá o tom especial à receita. Já no sul brasileiro, macaxeira frita ou cozida é guarnição de primeira ordem para o preparo.

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colágeno, que promove uma textura particular ao bolinho sem utilizar muito artifício de ‘liga’, como farinha de trigo ou ovo”, explica. Aliás, e a propósito, resumir um prato alentado, como uma rabada, a um bolinho é a nova diretriz gastrô da mesma Andrew Freeman & Co, que propõe uma “refeição de bolso”. Esse caminho vem sendo trilhado com sucesso pelo premiado chef Bruno Didier no seu food truck de comida espanhola La Camioneta. Parênteses: com berço na cidade de Córdova, rabo de touro é prato nacional na Espanha. “Como nossa proposta é de levar a alta gastronomia para as ruas, colocamos no nosso cardápio

“Todos os produtos têm o mesmo valor gastronômico, independentemente de seu valor comercial” Bruno Didier dois pratos com o corte, um hambúrguer e um croquete, que é um bolinho menor e menos sólido no interior, tem textura externa de crocância e é amanteigado”. Didier relata que a grande maioria da clientela, ao identificar esses pratos, opta por eles logo de cara. “Mas há os que pensam duas vezes

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para pedir, por só enxergarem a rabada em uma possibilidade mais roots, entretanto, uma vez que provam, acabam se rendendo.” Para o cozinheiro, é preciso desconstruir essa ideia de prato pesado, que não digere bem. “Grande parte dessa gordura é colágeno que, após cocção, se transforma em gelatina, que é retirada. E o sabor é único”, defende. O cozinheiro considera que o Brasil se adaptou bem a esse novo modismo – o de trazer para a alta gastronomia ingredientes de baixo valor representativo. “Acredito que todos os produtos têm o mesmo valor gastronômico, independentemente de seu valor comercial. Como diria Ferran Adrià (chef catalão, espécie de guru dos cozinheiros de todo o mundo), ‘melhor uma sardinha espetacular que uma lagosta medíocre’. A rabada é uma redenção de sabor intenso. Merece todas as mordidas”, finaliza. E, ao contrário de sua versão tradicional, pode ser refeição de rua, e para apenas um.


FOTOS: SÁVIO UCHÔA/DIVULGAÇÃO

Palco

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ALGODÃO DOCE Alegoria de um passado sofrido

Dramaturga Carla Denise, da companhia Mão Molenga, publica livro da peça, cujas histórias questionam paradigmas da Civilização do Açúcar TEXTO Ulysses Gadêlha

A companhia de teatro de bonecos Mão Molenga chega aos 30 anos neste 2016 com uma publicação elementar para o cenário cultural brasileiro. A dramaturga Carla Denise, integrante do grupo, lança o livro Algodão doce, peça baseada em três histórias de domínio público, tendo como pano de fundo a Civilização do Açúcar. O texto atua em várias frentes, inventariando a cultura do mamulengo, do cavalomarinho, do maracatu rural e do caboclinho; entendendo também o lado amargo desse algodão que

descende da escravidão, do patriarcado e da devastação ambiental. Fincada no teatro e na música, a peça é um manifesto que torna o público participante, um documento que registra esse esforço político coletivo. São muitos os elementos em torno desse livro, que tem colaboração do diretor e integrante do Mão Molenga Marcondes Lima. É dele o artigo introdutório Enquanto se brinca a história se faz, que pondera sobre os brinquedos populares, o aspecto da tradição oral, dos mestres e da

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representação que esses folguedos fazem do povo nordestino, o homem talhado na palha da cana-de-açúcar e seus descendentes. Marcondes registra que o cultivo da cana surgiu em Papua, Nova Guiné, especificamente numa ilha do Oceano Pacífico e passaria por territórios árabes e europeus antes de se instaurar aqui no Brasil. Partindo desse recorte histórico da monocultura açucareira, ele encaminha o raciocínio à produção artística dos oprimidos, destacando o mamulengo, o cavalomarinho, o maracatu de baque solto e o caboclinho. Os dois primeiros, pela feição cênica; os outros dois, pela dimensão da dança. A partir desse universo, Carla Denise recortou três narrativas: Comadre Fulozinha – um plantador de cana entra em crise e revê sua atitude em relação ao ambiente, após ter contato com a protetora das matas; As desventuras de Ioiozinho – filho de dono de engenho segue os passos do pai e, por suas brincadeiras maldosas, recebe um castigo infernal; e O negrinho do pastoreio – um pequeno escravo é salvo do martírio imposto pelo senhor de engenho e, nessa versão, consegue mudar o rumo


REPRODUÇÃO

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1 REFERÊNCIA Cenário é influenciado pelo universo da cana-de-açúcar 2 MAMULENGO O grupo usa 20 bonecos, entre 50 cm e 1,80 metro, animados pela técnica mista, de luva e manipulação direta

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de sua vida. Esses contos surgiram, primeiramente, do livro Assombrações e coisas do além, da escritora Fátima Quintas. Mas há uma imersão cênica nas produções intelectuais do sociólogo Gilberto Freyre, do historiador Leonardo Dantas Silva, dos estudiosos do teatro do povo do Nordeste Hermilo Borba Filho, Fernando Augusto Gonçalves Santos, Marco Camarotti, Marcondes Lima e Érico José. A primeira encenação aconteceu em agosto de 2011, no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife. “O algodão-doce serve

de alegoria para um passado no qual a aparência esconde processos difíceis e histórias de sofrimento e superação”, afirma a autora. Ela entende a proposta como um ato político, direcionado para o público infantojuvenil e seus pais. À maneira do teatro de Marcondes Lima, os entreatos são recheados de canções originais e tradicionais, transcriadas pelo artista Henrique Macêdo, referentes aos folguedos populares. São cantos religiosos, de trabalho, de brincadeiras infantis e toadas. Conforme diz o livro, são 20 bonecos, entre 50

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3 MÃO MOLENGA É integrado por Marcondes Lima, Fátima Caio, Carla Denise (autora) e Fábio Caio 4 ALGODÃO DOCE Lançada em livro, peça é baseada em três histórias de domínio público

cm e 1,80m, confeccionados pelo Mão Molenga, animados pela técnica mista, de luva e manipulação direta. Em cena, os manipuladores devem ser maquiados e vestidos como cortadores de cana. Os elementos cenográficos, próprios de brincadeiras populares, como as lançadas do maracatu de baque solto e os arcos do cavalo-marinho. “Tons, texturas e outras qualidades plásticas que lembram o açúcar de todos os tipos e outros derivados, como o melaço, a rapadura e o caramelo, aparecem nos figurinos usados pelos bonecos”, detalha. Diversas imagens do Mão Molenga em ação e do universo da cana-de-açúcar estão distribuídas em duas partes do livro. Nas primeiras linhas da publicação, Carla Denise versa sobre a atualidade da sua obra, quando traça o paralelo entre os atos de racismo na internet e o precedente histórico desse comportamento, registrado na narrativa O negrinho do pastoreio, fixada desde cedo no nosso imaginário. “Continuo acreditando na importância de unir provocação e arte, principalmente para as pessoas em formação. O teatro, uma expressão viva e ao vivo, tem sido um maravilhoso espaço de troca para Algodão doce”, acredita Denise.


DAVID BOWIE O homem que caiu na Terra

De Space Oddity, sua primeira música a ganhar repercussão, ao álbum-epitáfio Blackstar, o artista inglês conseguiu surpreender até o fim TEXTO Schneider Carpeggiani

Sonoras Numa noite qualquer do finalzinho

de 1969, o locutor de uma rádio universitária de Yale anuncia a chegada do single novo de um cantor inglês ainda pouco conhecido, Space oddity, de David Bowie. Ele confessa que ainda não sabe dizer se gostou ou não da faixa, mas declara que há algo de perturbador nela. Indeciso, pede que liguem para a emissora e dividam suas impressões. Foi já sob o signo do estranho, do desviante, que a crítica cultural norte-americana Camille Paglia teve seu primeiro contato com Bowie: ela era uma das ouvintes. E escutar Space oddity naquele momento carregava uma espécie de premonição do que seria a década seguinte. Apesar de ter sido lançada um mês antes da chegada do homem à Lua (julho de 1969), Space oddity só fez sucesso na parada inglesa quando do retorno da missão da Apollo 11 (a canção estreou no top 5 britânico na primeira semana de setembro). De fato, era preciso esperar o pouso seguro da nave na Terra: antes disso, não parecia prudente exaltar uma canção sobre um astronauta que corta o contato com a base e inicia sua própria (e talvez suicida) rota, lançando um suspiro

de enfado para o momento de assombro de nós, terráqueos, com viagens ao espaço – “o Planeta Terra é azul e não há nada que eu possa fazer sobre isso”. Space Oddity também só fez sucesso após o Festival de Woodstock (em agosto do mesmo ano) ter levado ao extremo os sonhos comunitários de paz e amor da década que se encerrava. Com sua letra sobre o solipsismo de um astronauta chamado Major Tom, o primeiro sucesso de Bowie parecia bater de frente com a ideia do sonho populista que fez – e faz até hoje – a fama de Woodstock. A revolução do Major Tom era pessoal e intransferível. “Space oddity com o seu isolamento frio dizia muito mais sobre os escuros anos 1970, uma década de hedonismo decadente”, observou Camille, lembrando aquela noite quando viveu seu grau zero bowiano. O Major Tom à deriva foi o germe, o princípio de infecção de uma carreira que creditava ao alien um signo de empoderamento. Se os anos 1970 fizeram emergir cenas musicais e culturais que se orgulhavam de que o freak is beautiful, Bowie ensinava que era preciso não apenas ser “estranho”, mas

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moldar os sentidos dessa estranheza. E, para isso, a perspectiva de vidas alienígenas em sociedades distópicas era perfeita. Em 1972, ele chega ao estrelato definitivo como um E.T. superstar. Na capa do álbum Ziggy Stardust and the spiders from Mars, o personagem ainda não nos é apresentado de forma completa. Temos a figura distante de um garoto com roupas masculinas empenhando de forma confiante uma guitarra em algum subúrbio londrino crepuscular. O jogo de papéis sexuais e o exagero teatral da sua persona são quase imperceptíveis ali. A primeira aparição de Ziggy Stardust acontece apenas durante uma performance do hit Starman para o programa Top of the Pops. Bowie/Stardust interpreta a canção com uma autoconfiança soberana, como se dividisse com o telespectador (o programa era voltado a adolescentes) um segredo que as gerações anteriores mal podiam suspeitar. Bowie/Stardust não era homem, mulher, terráqueo, e embaralhava todas as nossas expectativas binárias do que deveria ser uma estrela do rock. Ainda assim, ele parecia levemente familiar, uma


suspeita que se agravava pela forma como Bowie/Stardust encarava a câmera durante a performance. Há um momento de tensão particular, quando Bowie/Stardust coloca os braços de forma libidinosa em volta do pescoço do guitarrista Mick Ronson e canta o inquisidor verso He thinks he’d blow our minds (Ele acha que estouraria nossos miolos). O que de fato ocorreria. Em 2008, a revista Out elege Ziggy Stardust and the spiders from Mars o álbum mais gay de todos os tempos. Na justificativa da publicação para a escolha, o fato de que apenas um E.T. poderia simbolizar a solidão que o estigma da homossexualidade, do queer, carregava naquele tempo. Bowie estava certo ao fazer a cultura pop olhar para as estrelas. Mas a aparição definitiva do alien popstar é a foto de capa de Aladdin Sane, de 1973, e talvez uma das imagens mais famosas e parodiadas da cultura popular desde então. Temos um jovem de sexo indefinido, de longo cabelo cor de cobre e com o rosto marcado por uma tatuagem em forma de raio. Seus olhos em repouso passam a impressão de que o raio não

Space oddity foi lançada um mês antes da chegada do homem à Lua, mas só fez sucesso na Inglaterra na volta da Apollo 11 é apenas tatuagem, mas talvez uma cicatriz. Em sua solidão, estaria ele hibernando, talvez machucado ou já morto, ressaltando o clichê do rock de que é preciso vivenciar tudo de forma imediata? A capa de Aladdin Sane é a Mona Lisa de David Bowie, a métrica para entendermos tudo o que ele fez antes e depois, por comparação ou por exclusão: seja em sua fase de flâneur por uma Berlim ainda dividida (existe personagem mais alienígena do que um David Bowie pela capital alemã rachada pelo Muro?) ou no homem de cabelos descoloridos que nos convidava a let’s dance em pleno crepúsculo da disco music. Pensei em Major Tom, em Aladdin Sane, em Ziggy Stardust e em todos os alienígenas que estiveram ao lado

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de Bowie (e ao nosso lado), quando vi pela primeira vez o vídeo e a capa do álbum Blackstar, no final de 2015. No lugar do raio, temos uma série de estrelas fraturadas. Em algo como a colônia de um planeta distante, a marca do freak não é mais uma cicatriz no rosto, mas os olhos vendados, talvez lembrando as lendas sobre profecias e adivinhações que costumavam cercar o signo da cegueira. Assim como fazem os grandes artistas, o Bowie de olhos vendados lança seu olhar para um lugar que não conseguimos ainda enxergar. Para muitos, esse lugar seria a morte iminente, apenas dois dias após o lançamento do álbum. A performance final de um grande manipulador de expectativas. Do alto da estrela fraturada do seu álbum-epitáfio, David Bowie fez a sua despedida soar como a primeira vez em que o mundo teve contato com sua persona alienígena: um starman à deriva que parece ter certeza de que, apesar dos mundos de distância a nos separar, ele nunca será um estranho para nós.


TERESA MAIA/DIVULGAÇÃO

Sonoras

AVIA Pulsão afetiva pela ação

O cantor e compositor Geraldo Maia lança seu 11º álbum, realizado a partir de crowdfunding e com colaboração de novos e veteranos compositores TEXTO Ulysses Gadêlha

C O N T I N E N T E F E V E R E I R O 2 0 1 6 | 74

Na linguagem popular, o verbo

“aviar” designa pressa, agilidade; “não há tempo a perder, avia!” No dicionário, a palavra ganha sentido mais robusto, de fazer, executar, aprontar. O 11º disco do cantor e compositor Geraldo Maia, Avia, abriga esse sentimento de realização urgente, algo como do it. Com uma ideia na cabeça, o cantor convocou seus parceiros Juliano Holanda e Breno Lira, que produziram um disco pensado para cortar intermediários, deixar a mensagem direta, um compositor com um violão na mão, cantando suas canções e visões de mundo. O disco tem 14 faixas e uma vinheta (na voz de Aninha Martins); a arte produzida pelo designer Luiz Arrais traz uma montagem com o rosto de Geraldo Maia na capa, sobreposta por um homem sozinho ao longo de uma paisagem cinzenta, uma proposta fincada no olhar de perfil, de pescar no íntimo do autor inserido no mundo. Geraldo Maia é o criador das melodias do disco, adicionando frescor à poesia das letras. Em todas as músicas, ele faz


INDICAÇÕES voz e violão, conectando-se a essa ideia da sonoridade acústica presente em discos importantes lançados recentemente, como No osso, de Marina Lima, e Dois amigos, um século de música, de Caetano Veloso e Gilberto Gil. O financiamento ocorreu através de um crowdfunding pessoal, em que o artista contou com parentes e amigos. O autor da música-título, Avia, é Juliano Holanda; essa canção ratifica o espírito do projeto, de sentimento e de ação, uma pulsão política pela realização, cujos versos deslizam na melodia. As canções assinadas pelo poeta Everardo Norões exprimem uma poesia mais dinâmica, mais próxima do lirismo musical, enquanto as letras de Marcelo Pereira quebram o fluxo para desaguar na reflexão e proporcionam o som experimental, cerebral. Norões se sai como cronista do cotidiano em Goiaba, quando traceja um perfil mais lúdico da vida. Já Marcelo atinge a epistemologia das coisas, questiona e sugere com rigor, numa frequência semelhante à de autores excêntricos, como Arnaldo Antunes e Zeca Baleiro. Desmundo, de Paulo Marcondes, e O olho do menino, de Norões, com a roupagem que ganharam, lembram as canções performáticas de Lula Queiroga. O rock do ofício é um misto de folk, blues, rock’n’roll, realizando um tratado filosófico sobre corruptos políticos, religiosos sem escrúpulos, torcedores doentes e assassinos de plantão. O melhor desempenho do disco é o da canção Nudez; Marco Polo é quem assina a letra, estruturada

em quatro quartetos. Violões plangentes delineiam a poesia de amor que é a composição, cuja matriz combina a música popular brasileira, o brega e um toque de fado português. O poema percorre o caminho das cartas de amor, o jogo entre dor e prazer, a admiração e o desejo. O dueto entre Geraldo Maia e o cantor altinense Almério reforça essa partida amorosa, as vozes apaixonadas, um recital doce dos sentimentos. A sequência, com os violões de nylon e aço, é a progressão do ritmo para o frevo, em A fada e o rouxinol. Essa canção é um poema contemplativo, de Juliano Holanda; olhar para a carnavalesca cidade de Olinda e suas belezas. O disco ainda conta com músicas do companheiro de Geraldo, John Holtappel (Changes, canção que cita Bob Dylan), além de Silvério Pessoa (Se me quer bem), Tibério Azul (Afiado) e Xico Bezerra (O rato roeu), com o mesmo tanto de lirismo lúdico e amoroso das letras que se comportam como poesia e as melodias que lhes caem justas, dançantes e atraentes.

MPB

XÊ CASANOVA Caixa de música Observatório de Ecos (RJ)

“Experimente com fone de ouvido”, indica o cantor Xê Casanova, sobre seu primeiro disco autoral, Caixa de música. Produzido por Marcelo Yuka em seu próprio estúdio, no Rio, o disco agradou ao ex-baterista d’O Rappa pela pela sutilidade. “A música dele vai direto ao coração. É delicada e popular”, diz Yuka. As músicas são feitas de violão, batidas eletrônicas e dub com guitarras e sintetizadores. Na visão do produtor, as oito faixas precisavam ganhar esse aspecto de hip hop. É possível perceber influências de Jorge Ben Jor a Gonzaguinha.

ROCK N ROLL

EAGLES OF DEATH METAL Zipper down Universal Music

Avia GERALDO MAIA Independente Cantor e compositor lança 11º disco da carreira com colaboração de parceiros

A Eagles of Death Metal lança mão do bom humor e da sonoridade suja, num disco elogiado pela crítica. Também participa do projeto o líder do Queens of the Stone Age, Josh Homme. Em evidência desde o atentado em Paris, a banda já está no lineup do Lollapalooza Brasil, em março deste ano, para apresentar o novo disco, o primeiro lançado no país. A música Complexity é um dos hits do álbum, com 2 milhões de visualizações no YouTube. “É o nosso jeito de dizer ‘Simplifique as coisas, idiota’”, sinaliza Hughes.

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SAMBA FUNK

FUNK COMO LE GUSTA A nave-mãe segue viagem… Independente

A primeira faixa de A nave-mãe segue viagem, não por acaso, se chama Autocarro veloz. Quatro anos após lançar A cura pelo som, a big band paulistana Funk Como Le Gusta se lança nesse passeio pela pista de dança da música latina, solta as cordas e os metais em nove músicas potentes. O disco foi produzido pelo guitarrista da banda, Emerson Villani, entre setembro de 2014 e março de 2015. A qualidade dos músicos é percebida em vários momentos, como no funk-soul Você verá.

POP

HALSEY Badlands

Universal Music

Ashley Frangipane, de 21 anos, é uma grande promessa do pop alternativo americano. Mudando a ordem das letras do seu nome: Halsey. Seu primeiro disco, Badlands, reúne canções que já fazem sucesso nas plataformas de streaming e YouTube. Halsey assina todas as músicas, que falam de mágoas, amor e liberdade, semelhança com a consagrada Lana Del Rey. “Escrevo músicas sobre sexo e estar triste”, avisa com sinceridade. A música New americana, que tem clipe estrelado pela cantora, critica a cultura e sociedade norte-americanas.


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

PERMANÊNCIA DA ARTE

É o nome da exposição feita

em casa de Luciano Pinheiro, Rua Bispo Coutinho, 828, Alto da Sé, Olinda, tel. 3429.0232, de 7/ nov. a 20/dez./2015 com obras de Aderbal Brandão, Eduardo Araújo, Humberto Magno, José Barbosa, Luciano Pinheiro e Maurício Arraes. Pena que ao ser publicada esta crônica a exposição já tenda sido encerrada. Servirá para a próxima. Eduardo Araújo sempre soube se manter no âmbito da pintura erudita, dignidade de que não abre mão, não importa se na Itália pintando oliveiras ou aqui pintando nus ou paisagens nesse seu equilíbrio estilístico, guiando-se pelas mesmas normas. Nunca transigiu. Nunca “pecou”. Nunca demonstrou insegurança ou insatisfação. Crises, se houve, ocorreram dentro de sua cabeça, nas cozinhas de si próprio, diante da tela poupando-nos de coisas menores. Sua tela é a sua sala onde não se comparece em roupas de baixo. Fica até difícil estabelecer que tipo de evolução, de amadurecimento tem ocorrido na sua pintura a não ser uma

crescente depuração, como a nos ensinar a vê-lo com maior clareza, como se mostrasse o seu trabalho cada vez mais de perto, como se se prestasse a ser examinado com maior rigor. A obra de Eduardo Araújo é um acervo intacto valiosíssimo. Parece que ainda não temos fortunas consolidadas que possam pegar tudo e fazer um museu. Faz gosto ver também seus ensaios escultóricos. A arte de Luciano Pinheiro tem sido marcada pela veemência, como a nos alertar do custo excessivamente alto de sua opção pela pintura, abdicando de outra vida que pudesse ter sido, qual enfant terrible que nos encarasse com a pergunta: “E por que não?” Para ele não há meio termo. É tudo ou nada. Quem não está comigo está contra mim. E nessa intolerância, a começar em relação a si próprio, sempre se cobra o máximo, lembrando a si próprio e a quem interessar possa que não está ali para brincadeira nem para ocupar lugar menor. Que não se dá por menos. Que não tem arredores nem capas, que tudo ali é âmago, que tudo ali é

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vital, gritante e urgente. Pinta como se enfrentasse contestação geral: sua pintura, sua causa primordial. No seu texto Motivações para realização da mostra Permanência da Arte diz: “Luciano Pinheiro foi descoberto por Gastão de Holanda nos anos 1960, que o introduziu no mundo das artes. Luciano faz arte para criar encantamento, alimentar o espírito através de símbolos, cores, movimentos, formas e mitos. Possuído pelo lado mágico e religioso da arte, sem abdicar do político, busca no consciente, no inconsciente, no amor à natureza, o sentido cósmico da existência. Luciano se considera um artista similar ao das cavernas de pedra da pré-história, fazendo arte para as cavernas contemporâneas de tijolo e concreto”. Um dia, já nesta casa atual em que moro há 40 anos, recebo a visita do jovem Maurício Arraes, ele numa idade em que as pessoas ainda se perguntam o que fazer da vida. Mas, vendo seus quadros, tive impressão de estar diante de um pintor que já se definira, enquanto eu próprio, bem


DIVULGAÇÃO

1 ADERBAL BRANDÃO Umbuzeiro, foto colorida, 50x80cm.

2 EDUARDO ARAÚJO

Mar Verde,

óleo sobre tela, 118x79cm, 2013.

3 HUMBERTO MAGNO Elmo, acrílica sobre isopor, 46x25cm, 2008.

4 MAURÍCIO Banhista, ecultura em granito, 100x150x40cm, 2014.

5 LUCIANO PINHEIRO Martinana, acrílica sobre tela, 80x120cm, 2015.

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mais velho, só Deus sabe quanto tateava. Logo ele, que vinha da França, o centro de todas as sofisticações, com uma pintura de simplicidade espantosa, voltada para o popular, para o dia-a-dia na rua, com a alegria da descoberta. Não lhe importa que nome está na moda no primeiro mundo, que ele já veio de lá. Alegrame que continue aqui. O fato de ser filho de Miguel Arraes, não ajuda em nada. Pelo contrário. A pior coisa que pode acontecer a um artista é ser filho de um grande homem, como lhe imputam esse fato, impondolhe uma espécie de ostracismo. “A maldade nessa gente é uma arte”, já dizia Ataulfo Alves (Pois é). Mauricio expôs também esculturas em pedra, além das pinturas. A dificuldade da escultura é o custo, o preço da produção, o peso, a dificuldade de transportar, o tempo gasto; ou parta o escultor para a produção de miniaturas, como fez Maurício, com exceção de um trabalho de certo porte em que demonstra grande domínio, resultado do seu persistente convívio com o granito.

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Em Eduardo Araújo, a pintura erudita é a dignidade de que não abre mão. Luciano Pinheiro faz do pintar a sua causa primordial

As talhas de José Barbosa surpreendem, mesmo que, pelo fato de morarmos nas mesmas cidades de Olinda e Recife, tenha eu por força acompanhado o seu trabalho desde o início, incentivado ele por Adão Pinheiro, que trouxe a talha, desconhecida ou desconsiderada, para o campo da arte. Caracterizou-se até durante certo tempo como uma arte olindense e de Olinda espalhou-se pelo Brasil. Nada disso tirou a tranquilidade de José Barbosa, cônscio do seu valor. De fato, ele é sempre ele, nunca imitou ninguém, nem na sua talha nem na sua pintura, conservando esta um traço de primitivismo que lhe vem do berço mas que sabe cultivar com mestria, envolvido nos mitos e sensualidades

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de sua Olinda natal. O trato com a arte erudita, o conhecimento da história da arte, não o desviou do seu foco original. Nessa exposição, nos trabalhos de talha, chega a requintes impressionantes no tratamento que dá às superfícies da madeira. Ficou José Barbosa como representante único de uma arte de que não se ouve mais falar. Ainda bem que sobrou um artista inigualável. Sobre Humberto Magno, poderia repetir Luciano Pinheiro: “Sabe-se pouco sobre sua obra porque ele tem essa mania de se esconder, de não mostrar muito seu trabalho”. Na exposição traz-nos alguns quadros feitos de pedaços de isopor, o que nos anos 1950 chamavam polimaterismo. Eu mesmo expus na galeria da prefeitura, na beira do rio, coisa parecida que, para chamar atenção, batizei de “polimaterialismo”. Como não vendeu nada, depois da exposição joguei tudo no Capibaribe, como Santo Antônio que fez um sermão aos peixes. Espero que as obras de Humberto Magno tenham melhor destino. A exposição ainda contou com as belas fotos de Aderbal Brandão.


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Claquete 1

CAROL Amor lésbico em debate no cinema

Romance entre mulheres ganha espaço em séries, novelas e filmes, como o drama dirigido por Todd Haynes, mas a abordagem ao tema ainda é controversa TEXTO Rodrigo Carreiro

Estados Unidos, anos 1950. Sentadas

em uma mesa de jantar, duas mulheres conversam em um restaurante chique. Um homem se aproxima e fala com a mais jovem. A mais velha se levanta e se despede, tocando de leve o ombro direito da morena. Esta permanece olhando para a parte do corpo que acabou de ser tocada. O homem sai em

seguida e repete o mesmo toque, agora no ombro esquerdo, mas a mulher não lhe dá atenção. A mensagem é clara: o primeiro toque foi dado por alguém que mexe com um afeto especial; o segundo, por uma pessoa sem importância. Essa descrição da sequência de abertura de Carol (Todd Haynes, 2015), produção norte-americana que estreou em

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janeiro, sintetiza duas faces – uma bela, a outra terrível – da representação do amor entre mulheres no cinema. Ao mesmo tempo em que celebra o afeto poderoso e singular que pode conter o mais mínimo dos gestos, a discrição exagerada do modo como este afeto é comunicado entre as duas mulheres revela o quão controverso e polêmico tem sido o tema das relações homossexuais na sociedade ocidental, seja nas telas ou fora delas. O filme de Todd Haynes, premiado em Cannes com o troféu de melhor interpretação feminina para a atriz Rooney Mara, em 2015, documenta um escândalo social provocado pela revelação de um romance entre as duas mulheres. Carol examina, com postura crítica, um preconceito secular enraizado nos países americanos e europeus, e que procura vender a homossexualidade como uma prática devassa, profana, e, em última instância, errada. No cinema, a posição política de defesa de qualquer tipo de amor, assumida pelo filme, tem sido historicamente rara. Vito Russo, pesquisador pioneiro no tema da representação homossexual em


1 CAROL Rooney Mara e Cate Blanchett em filme baseado no livro de Patricia Highsmith

Hollywood, é bastante taxativo no livro The celluloid closet, um estudo monumental dos modos como personagens gays têm sido construídos na indústria cinematográfica: embora homossexuais venham sendo representados em filmes desde o início do cinema, eles preenchem apenas três arquétipos básicos: (1) o gay afetado incluído no roteiro com propósitos cômicos, (2) o heterossexual que se envolve por carência com uma pessoa do mesmo sexo, e em geral se arrepende da aventura antes do final do filme, e (3) o gay convicto que quase sempre tem um destino trágico – morre, é preso ou, no mínimo, termina sem o final feliz reservado a mocinhos heterossexuais. E esse panorama é ainda mais socialmente repressor para com os filmes que tratam do amor entre mulheres. De fato, não são poucas as obras que incluem personagens homossexuais. Pelo menos duas pesquisas extensas e abrangentes catalogaram esses filmes no âmbito da produção nos países desenvolvidos. O já citado The celluloid closet, publicado em 1981 e revisado em 1987, contém o mais amplo estudo realizado na área. O livro rendeu também uma versão cinematográfica – um documentário com o mesmo nome, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, e lançado em 1995. O outro estudo foi levado a cabo pelo crítico inglês Richard Dyer, e ganhou versão impressa em 1990 (com revisão feita em 2003). As duas pesquisas concordam com alguns dados históricos: o número de filmes que tematizam questões relacionadas a gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros aumentou exponencialmente a partir dos anos 1980, trazendo a reboque personagens com composições mais complexas e nuançadas, e portanto fugindo dos estereótipos mencionados anteriormente. Embora combatido por cineastas de renome, incluindo David Lynch e Ang Lee, o problema do preconceito continua determinando, em parte, uma forte rejeição desses filmes pelo público mais conservador. A essas conclusões, podemos acrescentar

que os longas sobre amor lésbico são, muitas vezes, vistos ou com mais curiosidade ou com um grau ainda maior de rejeição, especialmente por parte do público masculino. Essa rejeição explica, em parte, porque personagens secundários gays sempre foram, historicamente, mais presentes nos filmes do que as lésbicas. Homens vestidos de mulheres – uma tradição curiosa que se solidificou nas novelas da faixa das 19h da TV Globo, nos últimos 20 anos, e depois fez uma ponte transmídia para o teatro e o cinema – apareciam sem causar grande surpresa em comédias das primeiras décadas do cinema. Filmes de Charlie Chaplin e da dupla Stan Laurel e Oliver Hardy (no Brasil, O gordo e o magro), populares em meados dos anos 1910, registram esse tipo de personagem, mas apenas com propósitos de alívio cômico, sem que participassem efetivamente da trama

A Alemanha esteve à frente de todos os marcos do uso da temática no cinema, mas foi refreada pela homofobia do nazismo e, claro, sem explorar a sexualidade. Os exemplos femininos surgiram bem mais tarde e, em geral, longe dos Estados Unidos. Um dos casos mais antigos e também mais conhecidos aparece no clássico alemão A caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora, G.W. Pabst, 1929), no qual uma aristocrática condessa (Alice Roberts) se apaixona pela bela protagonista Lulu (Louise Brooks). Aliás, a Alemanha não era apenas o país mais fértil (ao lado dos EUA) na área do cinema, nas décadas de 1920-30; sua capital, Berlim, viu nascer e crescer uma subcultura homoafetiva rica e extravagante, com revistas, cafés, bares e um teatro frequentados exclusivamente por gays. Nesse contexto, era natural que alguns filmes da época incluíssem personagens homossexuais, que eram, em geral, coadjuvantes sem importância para o enredo. Uma exceção a essa regra aparece em Senhoras em uniforme (Mädchen in uniform, de Carl Froelich e Leontine

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Sagan, 1931), tido pelos historiadores como o primeiro filme em que a temática lésbica ascendeu ao primeiro plano narrativo. O longa-metragem narra a paixão da aluna de uma escola exclusiva para moças (Hertha Thiele) por uma das professoras (Dorothea Wieck). Embora o período favorável aos gays na Alemanha não tenha durado muito – a ascensão de Hitler ao poder brecou violentamente a liberdade sexual no país, em 1933 –, ele favoreceu o surgimento, em Hollywood, de uma quantidade significativa de estrelas de cinema lésbicas ou bissexuais, graças ao êxodo em massa de atores e técnicos da indústria alemã à América do Norte. Provavelmente, a mais conhecida dessas divas foi Marlene Dietrich, a berlinense que se tornou um dos maiores símbolos sexuais da virada dos anos 1930 e 1940. Abertamente bissexual, ela foi uma das atrizes responsáveis pelo crescimento de uma cultura de revistas de fofoca, na qual repórteres e até detetives investigavam a vida íntima dos astros. Cultivando um visual andrógino e nunca desmentindo rumores picantes, como o de que teria um caso amoroso com Greta Garbo, Dietrich deu beijo lésbico em Marrocos (Morrocco, Josef Von Sternberg, 1931) e se tornou um grande ícone gay. A partir de 1934, a indústria cinematográfica norte-americana sofreu um duro golpe com a consolidação do Código Hays, um conjunto de normas de conduta morais que diretores, roteiristas e produtores deveriam seguir, sob o risco de não terem os filmes “aprovados” por um comitê de controle comandado por religiosos. Nas três décadas seguintes, personagens gays, bem como romances homossexuais, foram confinados ao pano de fundo. Somente a partir dos anos 1960, os cineastas dos EUA ousaram desafiar – primeiro tímida, depois abertamente – a censura. Em 1961, o veterano diretor William Wyler ajudou a dar um passo importante filmando Infâmia (The children’s hour), drama de época no qual a aluna de um internato acusa duas professoras de terem um caso amoroso. Wyler está mais interessado na discussão pública sobre liberdade de conduta que se segue ao escândalo do que no romance em si (que, por sinal, nunca é confirmado), mas a porta já estava aberta para que o tema voltasse a ser discutido, de forma cada vez mais desafiadora.


FOTOS: DIVULGAÇÃO

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2 EM 1931 Tema ascende ao primeiro plano narrativo MARROCOS 3 Dietrich dá o primeiro beijo entre mulheres nas telas

4 LOUISE BROOKS No mais remoto exemplar do uso da temática, A caixa de Pandora (1929) INFÂMIA (1961) 5 Com Audrey e MacLaine, filme desafiou censura em Hollywood 3

Claquete 4

Na virada entre os anos 1960 e 1970, a temática do amor entre mulheres ainda era um tabu na indústria mais séria, mas gerou o surgimento de um subgênero do cinema comercial que ficou conhecido pela sigla WIP (do inglês Women in Prison, ou Mulheres na Prisão). Feitos em lugares díspares como Itália, Espanha, Hong Kong e Filipinas (além dos Estados Unidos, claro), esses filmes são invariavelmente ambientados em presídios ou penitenciárias, e quase sempre capricham em cenas abundantes de sexo lésbico. Sem serem exibidos no circuito comercial, títulos como Ilsa, a guardiã perversa da SS (Ilsa, she-wolf of the SS, Don Edmonds, 1975) ficaram conhecidos por conter uma carga alta de misoginia e machismo, temperada com muita nudez feminina. No Brasil, a Boca do Lixo paulista também produziu exemplares do gênero, como Bare behind bars (Osvaldo de Oliveira, 1980). Nessas produções, porém, não havia interesse real por

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amor, romance ou afeto. Os enredos são frágeis e sem consistência. Apenas nudez e sexo eram importantes. A década de 1980 registrou uma mudança radical na produção de filmes com temática lésbica. De certo modo, era a sociedade como um todo que estava mudando, e a subcultura gay não apenas se expandiu, como se tornou lucrativa. No cinema, o resultado disso é que os romances homossexuais começaram a saltar para o primeiro plano narrativo, em filmes tocantes, que investigam o desejo pelo mesmo sexo sem esquematismos ou preconceitos. Lianna (John Sayles, 1983), filmado em 16 mm, conta a história de uma estudante de 32 anos (Linda Griffits), mãe de dois filhos, que se apaixona por uma professora (Jane Hallaren) e decide enfrentar o preconceito para viver a paixão proibida – só não contava com o medo de seu próprio objeto de paixão. Na Nova Zelândia, anos antes de se tornar um cineasta multimilionário ao dirigir a trilogia O senhor dos anéis, Peter Jackson narrou com delicadeza a amizade obsessiva entre duas adolescentes (Kate Winslet e Melanie Lynskey), que termina de forma trágica. Ainda fora dos EUA, Aimee & Jaguar (1999) dramatiza com sensibilidade o período da guerra na Alemanha ao narrar a paixão devastadora entre a esposa de um oficial alemão (Maria Schrader) e uma jornalista judia (Julliane Köhler). A partir daí, o tema se tornou corriqueiro. Foi explorado por diretores respeitados, como David Lynch em


INDICAÇÕES

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Cidade dos sonhos (Mulholland Drive, 2001), e Stephen Daldry em As horas (The hours, 2002), este último trazendo a estrela Nicole Kidman como uma torturada Virginia Woolf, vencedora do Oscar. A estatueta dourada também foi entregue a Hilary Swank (por Meninos não choram, de 1999) e Charlize Theron (por Monster – Desejo assassino, de 2003), que interpretaram personagens homossexuais, assim como ocorreu com o brasileiro Flores raras (Bruno Barreto, 2013), que dramatizou o romance entre a poetisa Elisabeth Bishop e a carioca Lota de Macedo Soares. Diretoras lésbicas também discutiram o tema em filmes esclarecedores, como “The Berlin Affair” (Liliana Cavani, 1985), que trata do romance entre a mulher de um diplomata e uma artista japonesa na Alemanha de 1938, e “Minhas mães e meu pai” (The kids are all right, Lisa Cholodenko, 2010), sobre a vida de duas meninas que possuem duas mães (Julianne Moore e Annette Bening) e nenhum pai. A maior aparição de personagens e tramas lésbicas, contudo, não afastou a polêmica,

que continuou a dar as caras. Isso ocorreu com o filme francês Azul é a cor mais quente (Abdellatif Kechiche), graças às cenas de sexo entre duas jovens parisienses (Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos), filmadas em longos closeups que desnudam cada centímetro dos corpos das garotas, e, em menor intensidade, com o thriller americano Ligadas pelo desejo (Bound, Andy e Lana Wachowski, 1996), que introduz um romance lésbico picante numa trama noir clássica – empregada (Gina Gershon) de um mafioso planeja roubar o chefe e fugir com a mulher dele (Jennifer Tilly). Em tempos de multimídia, o amor entre mulheres tampouco ficou restrito ao cinema. No século 21, também os seriados de TV – tidos por muitos como o espaço mais privilegiado da atualidade para a dramaturgia – abraçaram o tema com vigor. Nos Estados Unidos, séries como The L word (A palavra com L, referência velada ao lesbianismo) e Orange is the new black abordam diretamente a cultura lésbica. O primeiro seriado, exibido entre 2004 e 2009, está centrado na vida de um grupo de amigas lésbicas e bissexuais em Los Angeles. A segunda série, disponível desde 2013 no Netflix, é ambientada numa prisão feminina e possui uma protagonista homossexual (Taylor Schilling). Como se vê, o amor entre mulheres já superou a época em que era assunto proibido. Mas o tabu ainda existe, e filmes como Carol são fundamentais para não nos deixar esquecer que a estrada para a aceitação sem reservas ainda é longa.

DOCUMENTÁRIO

COMÉDIA

Dirigido por Amir Escandari Com Djan, William, Ricardo e Biscoito Helsink-Filmes

Dirigido por Noah Baumbach Com Greta Gerwig, Lola Kirke e Juliet Brett Fox Filmes

PIXADORES

Novo documentário sobre a arte de rua anárquica em São Paulo, Pixadores acompanha a trajetória de quatro jovens da periferia paulistana que encontraram uma forma de militância através das mensagens pixadas nos muros e prédios da cidade. A partir de um convite para participarem da 7ª Bienal de Berlim, eles se negam a pintar apenas o espaço permitido pela organização do evento. O diretor iraniano Amir Escandari é quem registra o embate estético e ideológico dos jovens na capital alemã.

MISTRESS AMERICA

Depois do sucesso de Frances Ha, mais uma parceria de um dos principais expoentes do cinema independente norteamericano, Noah Baumbach e Greta Gerwig (co-roteirista). Mistress America gira novamente em torno da verborrágica “geração perdida” dos 30 anos e é uma comédia apoiada na figura de uma adolescente desencaminhada na vida, que encontra inspiração através da figura da irmã mais velha.

DOCUMENTÁRIO

ANIMAÇÃO

Dirigido por Davis Guggenheim Com Malala Yousafzai Fox Filmes

Dirigido por Isao Takahata Versátil Home Video

MALALA

Conhecido por seu trabalho em documentários politizados (como no famoso Uma verdade inconveniente), Guggenheim, dessa vez, lança os olhares para Malala Yousafzai, jovem ativista paquistanesa que teve seu nome conhecido após sofrer um atentado pelo Talibã por defender o direito à educação das mulheres em seu país. Daí então passou a atuar intensamente contra o regime, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz em 2014.

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TÚMULO DOS VAGALUMES

Obra-prima do mestre da animação japonesa Isao Takahata (O conto da princesa Kaguya), Túmulo dos vagalumes (1988) conta a história de dois irmãos, Setsuko e Seita, que vivem no Japão em meio à Segunda Guerra e que, após uma série de incidentes trágicos, vão morar num abrigo na floresta. A edição especial em blu-ray da Versátil, além de uma versão restaurada em alta definição, traz duas horas de extras.


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

OS IBEJIS

Vi mesmo ou apenas sonhei? Lembro de ter encostado o flabelo em forma de máscara, numa das paredes altas da casa, o telhado a perder de vista. Sentia-me exausto após percorrer ruas e becos à frente do bloco, carregando o abre alas que eu mesmo havia criado. Na época, não conhecia a mulher que franqueava suas portas ao Bloco da Saudade, ofertando mesa de frutas tropicais, água, refrescos, mungunzá, cocadas e bolos. Tudo de que os brincantes mais precisavam para recompor as forças gastas no desfile pelos bairros do Recife, Santo Antonio e São José. – Essa é Badia – me falaram, quando ela passou com uma bandeja. – Ah! – exclamei. – Maria de Lourdes da Silva. Olhei curioso a negra num vestido estampado, recebendo os desconhecidos com a nobreza de uma grande dama. A casa velha ameaçava ruir, soterrando seu bocado de história. Construída no Pátio do Terço, onde mais se concentrara a população afrodescendente até a metade do século vinte, continuava um ponto de

referência para a cultura nagô e para todas as festas celebradas no Recife. Havíamos entrado pelos fundos, numa espécie de pátio coberto ou terreiro. Imaginei que ali dentro se celebravam os orixás e, um pouco mais adiante, na Igreja de Nossa Senhora do Terço, os santos do catolicismo. – Posso entrar na casa? – perguntei ao diretor do bloco. – Acho melhor, não. Se ele tivesse insistido para que eu entrasse, desvelando portas, cômodos e os mistérios que eu imaginava existirem lá dentro, em meio às relíquias de uma África salva do cativeiro, talvez eu me contivesse entre fatias de abacaxi e bananas, risadas bêbadas e acordes arrancados de bandolins e violões. Mas, a proibição me aguçava os sentidos, me empurrando à procura de experiências novas. – Essa era a casa das tias Sinhá e Yayá, aonde Badia chegou recém-nascida, em 1915, trazida pelas duas pretas. Cochichou em meu ouvido o diretor, que arranjara a recepção a troco de nada. – Sei – disse balançando a cabeça em sinal afirmativo, com vergonha de

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confessar minha ignorância sobre a história da cidade. – Das mãos de Badia saem fantasias para os blocos, clubes, escolas de samba e troças do Recife. Ela tornou-se a grande dama do carnaval, uma rainha comandando os festejos. Pedi licença para me servir, rodeei a mesa e, sorrateiro, invadi o espaço sagrado da casa. Vi mesmo ou foi impressão? Havia um corredor comprido, com estandartes e retratos emoldurados nas paredes, cadeiras capengas, portas e janelas semicerradas, interditando os olhares curiosos. Empurrei uma banda de janela e descobri dois meninos, um branco e um negro, deitados. Aparentavam nove meses. Gordos e risonhos, se debatiam na cama, em meio aos lençóis. Achei que fossem gêmeos, apesar das cores diferentes de suas peles. Fiquei um tempo contemplando a aparição. Quem largara dois bebês desprotegidos, ao léu da casa velha? Eles pareciam tão brincalhões e travessos, e tinham pregado uma bela peça no folião bisbilhoteiro. Envergonhado, botei


MARIA LUÍSA FALCÃO

para rir e saí de mansinho. Desejava esquecer o assombro. Não havia álcool em minha pneuma, nada que me condenasse num teste de bafômetro ou fizesse imaginar que eu tivera uma alucinação. Emburaquei casa adentro. Filtrados pelas paredes grossas, sons de marcha anunciavam que o bloco estava de partida. Pensei em retornar ao pátio, mas fora contaminado pelo desejo de vasculhar estranhezas. Mais estandartes e retratos antigos, precariamente iluminados por lâmpadas incandescentes, de poucos watts. Escutei vozes sussurradas e risinhos. Caminhei na direção de uma saleta e vi três mulheres em volta de uma mesinha redonda e

“Achei que fossem gêmeos, apesar das cores diferentes de suas peles. Fiquei um tempo contemplando a aparição” de uma garrafa de cachaça. Bebiam em pequenos copos. Negras e velhas, elas vestiam blusas e saias longas, semelhando os trajes das mães de santo. Olharam para mim sem surpresa. – Quer? – me ofereceram a bebida. – Obrigado, mas não bebo cachaça. As três riram do meu acanhamento. Uma delas comentou:

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– Você não sabe o que perde. Sei que perco nuances de um Recife de belezas e armadilhas. Ao invés de abrir-me ao vento das marés e dos morros, fecho-me a maior parte do tempo, dentro de carro blindado. – Quem são os dois meninos na cama? – perguntei. – Ah! Os meninos. – O senhor viu? – Vi. Elas gargalharam alto e entornaram a bebida goela abaixo. – Se o senhor viu é porque nem tudo está perdido. E beberam mais cachaça, muitas talagadas mais, rindo descaradas do meu rosto surpreso, sem alcance para a felicidade que elas sentiam.


ALEXANDRE SANT’ANNA/DIVULGAÇÃO

PÉTALA LOPES/DIVULGAÇÃO

Leitura

VERSOS A poesia para além do gênero

O aumento na produção e visibilidade da nova leva de autoras é um dos responsáveis por oxigenar e polemizar o cenário da poesia contemporânea do país TEXTO Marina Moura

Em 2009, a professora de Literatura

brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Heloisa Buarque de Hollanda, organizou a antologia Otra línea de fuego: quince poetas brasileñas ultracontemporaneas (Maremoto, edição bilíngue). O livro está dividido em três etapas, de acordo com cores, para diferenciar as gerações das poetas. Na parte amarela, as nascidas entre as décadas de 1940 e 1950, a exemplo de Alice Ruiz e Ana Cristina César. Já a cor verde representa aquelas cujo nascimento data de 1960 a

1970, como Angélica Freitas. Por fim, a azul apresenta poetas mais jovens, da geração de 1980 em diante. Nessa última seção, encontramse autoras como Alice Sant’Anna, Ana Guadalupe e Bruna Beber. Otra línea de fuego talvez seja a evidência daquilo que pode ser um dos importantes fatores para oxigenar a atual poesia brasileira: o aumento da produção, presença e visibilidade femininas. Embora, entre elas, possam ser traçadas algumas semelhanças temáticas (algo como uma

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desmitificação do que seria considerado poético e uma valorização das sutilezas do cotidiano) e formais (fluidez no ritmo e na métrica, interação com a oralidade), não se pode dizer que haja uma escrita tipicamente feminina. Expressão, aliás, rechaçada por Heloisa no prefácio de Otra línea, no qual considera o rótulo “tacitamente excludente”. A opinião, aliás, vai ao encontro do que a filósofa teórica feminista estadunidense Judith Butler afirma em Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade (Civilização Brasileira, 2009): “Se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é.” Existe certa dificuldade entre teóricos e poetas da atual geração para definir se é dever defender uma poesia universalizante, mais aproximada do ideal feminista existencialista proposto por Simone de Beauvoir no século 20; ou se existe, de fato, uma representação, um território do gênero feminino que não pode nem deve ser ignorado. A poeta gaúcha Angélica Freitas, autora de Rilke shake (7Letras/Cosac Naify, 2007) e Um útero é do tamanho de um punho (Cosac Naify, 2009) lembra que, no começo dos


CAROLINA FREITAS/DIVULGAÇÃO

RODRIGO VALENTE/DIVULGAÇÃO

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2000, era difícil até mesmo participar de leituras de poesia, situações formadas “predominantemente por homens, todos muito confortáveis nos espaços que ocupavam dentro da cena”. Ela acredita que “com a internet, os blogs, as redes sociais, as mulheres começaram a aparecer mais”. Porém, ressalta que ainda “não se chegou a um acordo sobre o que significa literatura feminina. Quando me perguntam se existe, sempre levo em conta duas coisas: quem está perguntando e por quê.” Essa desconfiança em relação à utilidade dos rótulos foi demonstrada por Ana Martins Marques, em entrevista ao Suplemento Pernambuco de agosto/2015. A poeta mineira, que publicou A vida submarina (Scriptum, 2009), Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011) e O livro das semelhanças (Companhia das Letras, 2015), se disse em uma “posição um pouco ambivalente (e talvez propositalmente e necessariamente ambivalente): me interessa afastar certos rótulos rápidos e a postulação de posições identitárias rígidas ou de uma ‘essencialidade’ feminina que se manifestaria nos

textos escritos por mulheres, e, ao mesmo tempo, assumir uma atenção crítica em relação às questões de gênero no espaço literário”. Há um problema linguístico e político, porque o termo feminino é por vezes, no Brasil, associado a estereótipos de feminilidade – doçura, sentimentalismo, fragilidade. Por conta disso, nos estudos acadêmicos mais recentes, fala-se em “literatura produzida por mulheres”, o que já abre discussões das diferenças e subjetividades dentro deste nicho. Essas questões também podem ser vistas na língua inglesa, em que se costuma diferenciar os vocábulos feminine (para questões de gênero) e female (aspecto biológico), e, portanto, resolve-se em parte certas conotações. Já no francês, utiliza-se a palavra féminine, que pode corresponder tanto a um texto com marcas do feminino como também a uma obra simplesmente escrita por uma mulher, a depender do contexto discursivo. “Sem dúvida, é importantíssimo valorizar a literatura feita por mulheres. Mas tenho minhas dúvidas com o rótulo de literatura feminina, porque

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1 NOVA GERAÇÃO

É integrada por Alice Sant’Anna, Ana Guadalupe, Angélica Freitas e Júlia Hansen

parece que assim a gente perpetua uma subcategoria, uma espécie de cota. Afinal, não existe a ‘literatura masculina’, e fica parecendo que o que os homens escrevem é a literatura padrão, universal, enquanto o que a mulher escreve é só para um pequeno grupo”, argumenta a poeta carioca Alice Sant’Anna, que possui duas publicações independentes, Bichinhos de luz (2009) e Pingue-pongue (2012), além de Rabo de baleia (Cosac Naify, 2013). Já a paranaense Ana Guadalupe considera-se feminista e, embora sinta certa dificuldade de chegar a uma definição pronta sobre o assunto, entende que “a literatura produzida por mulheres carrega, sim, o impacto desse papel e suas experiências, e por isso não é um produto idêntico àquele produzido por homens”. Ana tem poemas publicados na Espanha, no Chile, no México e nos Estados Unidos. É autora de Relógio de pulso (7Letras, 2011) e Não conheço ninguém que não seja artista


ELISA MENDES/DIVULGAÇÃO

2 BRUNA BEBER Livro da poeta carioca, Rua da padaria, foi o 2º mais vendido da Flip de 2013

Leitura 2

(Confeitaria, 2015). A poeta paulistana Júlia Hansen concorda com Guadalupe, quando afirma que tudo o que escreve é feminista, mas avalia “que, se me rotularem ou rotularem o que eu escrevo assim, vão ter perdido um grande pedaço do entendimento”. Autora de Cantos de estima (Edição artesanal, 2008) e Alforria blues ou poemas do destino do mar (Chão da Feira, 2012), Júlia acredita que um dos grandes legados do século anterior foi o entendimento de que “não existe ‘a mulher’, existem ‘as mulheres’”.

CONSTRUÇÃO

Heloisa Buarque, em declaração à revista Matraga (2010), referente à relação entre poesia e política, ressalta que o momento atual da literatura tem a ver com a negociação da subjetividade. “São várias demandas, não é a demanda. Antigamente, era assim: o sistema e o resto. Hoje, não se identifica mais o sistema. (…) Tratase de uma democracia que radicaliza os nichos.” Sob esse ponto de vista, Angélica Freitas produziu Um útero é do tamanho de um punho a partir da inserção (ou não) de perspectivas femininas dentro de seu discurso poético. Com 35 poemas, que estão, a um só tempo, entre melancolia, comicidade e ironia, o livro divide-se em quatro eixos temáticos: uma mulher limpa (“mas

Para Ana Guadalupe, o texto escrito por uma mulher é visto como feminilidade caricata; já o do homem, como sagaz a heroína deste poema/ era uma mulher muito feia/ extremamente limpa/ que levou por muitos anos/ uma vida sem eventos”); mulher de (“eu me sinto tão mal por tudo que/ comi esse tempo todo/ tão mal e tem tanta gente passando/ fome no mundo”); a mulher é uma construção (“a mulher basicamente é pra ser/ um conjunto habitacional/ tudo igual/ tudo rebocado/ só muda a cor”); e três poemas com o auxílio do google (“a mulher pensa com o coração/ a mulher pensa de outra maneira/ a mulher pensa em nada ou em/ algo muito semelhante”). Ao longo do livro, Angélica reflete sobre o gênero a que pertence, sua diversidade, e expõe clichês associados à condição feminina, sem contudo direcionar a um olhar único ou estigmatizante. É assim que, em “metonímia”, ela afirma que, no fim das contas, não queria “fazer uma leitura/ equivocada/ mas todas as leituras de poesia são equivocadas”.

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A poeta pernambucana e professora de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Renata Pimentel, autora de Da arte de untar besouros (Confraria do Vento, 2012) e Denso e leve como o voo das árvores (Confraria do Vento, 2015), enxerga um momento positivo de abertura da produção feminina no campo da poesia. Ela entende este cenário como uma resposta ao engajamento delas (é o caso de Angélica Freitas) “em apontar o quanto os cânones foram formados em uma sociedade patriarcal e machista, que ainda impera”. Sobre a cena ainda desigual e masculina, há, em Um útero, o poema Uma canção popular (séc. 19-20): “uma mulher incomoda/ é interditada/ levada para o depósito/ das mulheres que incomodam// loucas louquinhas/ tantãs da cabeça/ ataduras banhos frios/ descargas elétricas”. O título enfatiza a temporalidade que retrata para se mostrar, irônica e infelizmente, ainda muito contemporânea. Por conta da evidente falta de balanceamento entre os discursos feminino e masculino, Angélica é taxativa acerca da produção de poesia feita por mulheres: “Você tem o direito de se enganar a respeito disso, tem o direito de querer a aprovação dos seus colegas homens, porque eles vão adorar quando você diz que é tudo igual. Mas não é tudo igual”.

PUBLICAÇÕES E PRÊMIOS

Professora da Universidade de Brasília (UnB), a crítica literária Regina Dalcastagnè realizou uma extensa pesquisa, entre 1990 e 2004, a respeito do número de publicações das principais editoras do país e a porcentagem de mulheres e homens nos prêmios literários. Ainda que em seu livro Literatura brasileira contemporânea – um território contestado (Editora Horizonte, 2012) o foco seja a análise de romances brasileiros, Regina declarou à Continente que analisou todas as categorias dos prêmios Jabuti de Literatura e do antigo Portugal Telecom (atualmente, chama-se Oceanos) e, nas publicações de poesia, o quantitativo de inscrições


INDICAÇÕES de livros produzidos por mulheres representava apenas 30%. Para Regina, são muitos os fatores que explicam tal porcentagem. “O preconceito dos leitores, a falta de oportunidade editoral e o próprio fato de que talvez as mulheres escrevam menos, porque possuem uma vida doméstica com a qual precisam lidar além de suas atribuições profissionais, e ainda condições materiais muito diferentes das dos homens”, enumera. Ana Guadalupe propõe uma espécie de teste às cegas de poemas: “Acredito que seriam lidos de um jeito completamente diferente se tivessem um nome masculino”. Para Ana, a impressão é de que “o texto escrito por uma mulher ganha automaticamente um tom de feminilidade caricata, enquanto o do homem ganha um verniz de sagacidade. Até o design editoral muda quando o livro é de uma mulher, as cores e formas são mais suaves, ‘femininas’”. Se o horizonte ainda parece desalentador, é inegável que a situação vem se invertendo e tende a um equilíbrio. Em 2013, quando participava da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), a poeta carioca Bruna Beber teve uma grata surpresa. Seu livro Rua da padaria (Record, 2013) fora o segundo mais vendido da feira. “Até então, nenhum livro de poesia tinha vendido tanto. O susto foi ainda maior, porque foi triplo: mulher, abaixo dos 30, poesia.” Autora de A fila sem fim dos demônios descontentes (7Letras, 2006), Balés (Língua Geral, 2009) e Rapapés & apupos (7Letras, 2012), Bruna atribui o fato a uma clara abertura para as mulheres no mundo como um todo, inclusive na

arte. Na Flip de 2015, o livro de poemas da portuguesa Matilde Campilho, Jóquei (Editora 34, 2015), foi o mais vendido do evento. Não se quer aqui defender a tese de que mais vendas se traduzem necessariamente em leitores e que esta relação faz desaparecer a dificuldade dupla de ser autora de poesia e mulher no Brasil. Porém, os dois apontamentos não deixam de ser um indicativo positivo de que espaços de abertura para o gênero estão sendo ampliados. Afora as diferenças de temáticas, estilos e posicionamentos sobre a sua produção, as poetas mulheres “ultracontemporâneas”, para citar mais uma vez Heloisa Buarque, irmanam-se sobretudo no que possuem de contemporaneidade. No entendimento do filósofo italiano Giorgio Agamben, “pertence verdadeiramente ao seu tempo aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões, e é nesse sentido inatual; mas, exatamente por isso, através desse deslocamento e anacronismo, é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender seu tempo”. Tais como as antenas da raça de que fala o poeta e crítico norte-americano Ezra Pound a respeito dos artistas, a nova geração de poetas mulheres não se permite enquadrar no que quer que se entenda por feminino, do contrário correria-se o risco de perpetuar um longo histórico opressor a que se busca combater. A elas – é possível que caibam no que se poderia chamar de uma poética compartilhada –, os versos de Angélica Freitas: “Queria escrever um poema/ bem contemporâneo/ sem ter que trocar fluidos com o contemporâneo”.

ROMANCE

ADELLE WALDMAN Os casos de amor de Nathaniel P. Casa da Palavra

HQ

PAOLO PARISI Coltrane em graphic Editora Veneta

No romance de estreia de Adelle Waldman, com uma narrativa fluida e elegante, o protagonista Nate Piven é “produto de uma infância pós-feminista dos anos 1980 (...). Sabia bem o que era o privilégio masculino”. Um relato íntimo, político e sem autopiedade sobre o caos afetivo numa Nova York cheia de contradições.

A biografia de John Coltrane é recontada em graphic por Paolo Parisi. Com um traço simples e preciso, e recusando a linearidade narrativa, Paolo esmiúça a vida do saxofonista. Acompanhamos desde a sua infância pobre na Carolina do Norte, a amizade com Miles Davis, o surgimento do free jazz, até a luta por direitos civis e a morte prematura aos 40 anos.

POESIA

POESIA

MARCOS SISCAR Manual de flutuação para amadores 7Letras

O sexto livro de poemas de Marcos Siscar é como um guia de sobrevivência para estes tempos: com formas também flutuantes (há prosa e verso), Siscar nos dá “lições da fragilidade do ar”. Lançando possibilidades de (re)nomear as coisas, entre poemas existenciais e metalinguísticos, o autor apresenta um livro para nos tirar do chão.

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CHICO CÉSAR Versos pornográficos Confraria do Vento

O cantor, compositor e escritor Chico César recusa a distinção entre erotismo e pornografia, e, neste livro, ressalta a “pura e puta poesia”. A pequena edição contém ilustrações cuidadosas da artista húngara Sári Szántó. Para “recitar e excitar” a uma “cara leitora”, o autor oferece todos os poemas a essa personagem hipotética, com versos lúbricos e em tom de ode.


P CON TI NEN TE

Criaturas

Caio Fernando Abreu por Fernandes

Antes de morrer em 1996, aos 47 anos, o escritor gaúcho Caio Fernando Loureiro de Abreu já era um dos

autores mais cultuados da literatura brasileira contemporânea. Vencedor do Prêmio Jabuti por três vezes (pela novela O triângulo das águas e pelos livros de contos Os dragões não conhecem o paraíso e Ovelhas negras), ele falava de sexo, morte e solidão com um estilo transgressor e, ao mesmo tempo, cativante e intimista. Hoje, é sucesso absoluto nas redes sociais.

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