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# 183
#183 ano XVI • mar/16 • R$ 13,00
CONTINENTE
ESPECIAL A SUSTENTÁVEL MODA DO INTERIOR E MAIS CIBELE FORJAZ FESTIVAIS DE TEATRO GABRIEL MASCARO
MAR 16
CHICO NO CINQUENTENÁRIO DO MÚSICO, REMONTAMOS O CAMINHO QUE LEVOU À CRIAÇÃO DO MANGUEBEAT E À CONSTRUÇÃO DE SEU ÍCONE
Pernambuco. Tão fácil de chegar como de se encantar.
HUB
AZUL A instalação do centro de conexões da Azul Linhas Aéreas no Aeroporto Internacional do Recife/Guararapes – Gilberto Freyre torna ainda mais convidativa a sua vinda ao Estado. Com o Hub Azul, você agora conta com muito mais opções de chegar à capital pernambucana, que passa a ser a única do Nordeste conectada, por voos diretos, a todas as outras capitais e as principais cidades da região. Ficou mais fácil aproveitar toda a diversidade cultural e turística de Pernambuco, onde 180km de belas praias estão à sua espera. São assim as nossas boas-vindas: procurando encantar cada vez mais você.
• Recife interligada com todas as capitais e as principais cidades do Nordeste. • 64 voos diários para 24 cidades. • Até 6.496 pessoas transportadas por dia. • A Azul reconhecida com o selo de empresa aérea low-cost mais pontual do mundo (Official Airline Guide, 2016).
HUB
AZUL
• Recife interligada com todas as capitais e as principais cidades do Nordeste. • 64 voos diários para 24 cidades. • Até 6.496 pessoas transportadas por dia. • A Azul reconhecida com o selo de empresa aérea low-cost mais pontual do mundo (Official Airline Guide, 2016).
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PROGRAMAÇÃO
março e abril
Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2016
Após o grande sucesso da programação de Verão do Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco, março e abril vêm com toda diversidade que o projeto sempre traz da cena musical brasileira.
BARRO 12/03 • SÁBADO• 17H
ALLEGRETTO 19/03 • SÁBADO • 17H
SOFIA FREIRE 02/04 • SÁBADO • 17h
GRANDUO BRASIL 09/04 • SÁBADO • 17h
CHOROS E ALEGRIA 23/04 • SÁBADO • 17H
DUO ALEXANDRE RODRIGUES E GUTEMBERG ALVES 30/04 • SÁBADO • 17H
NEGRO LEO 26/03 • SÁBADO • 17H
LUCAS SANTTANA 16/04 • SÁBADO • 17H
PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
APOIO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. REALIZAÇÃO
INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,0 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sab e dom 14h as 17h
26/03 • SÁBADO • 15h OFICINA DE “NOVOS PROCEDIMENTOS CANCIONAIS”
MARÇO 2016
FRED JORDÃO
aos leitores Ele está nos muros da cidade, na Rua da Moeda, em camisas, pôsteres, infinitos vídeos de YouTube, suvenires da Casa da Cultura. Está também na Rua da Aurora, na casa de Mabuse, de Jorge Du Peixe, do DJ Dolores. Está em objetos icônicos, como o chapéu de palha em formato de “coco” ou os grandes óculos escuros, que passaram a ter vida própria após Chico Science. O compositor e músico, cuja inquietação musical nasceu no Bairro de Rio Doce, em Olinda, e foi parar no Japão, faria este mês 50 anos. Apesar de seguir onipresente, o mito que se fez de encontros e acasos jamais havia figurado em uma capa da Continente, nestes 15 anos da revista, embora tenha sido assunto de várias matérias especiais. Para quebrar o jejum, dedicamos a capa e 12 páginas desta edição à trajetória de Chico e seus companheiros. Companheiros de músicas que ouviam juntos e de ideias processadas a partir do que se tinha à mão na Região Metropolitana do Recife
do início dos 1990. Quase nada: uma Rádio Universitária, revista cultural estrangeira comprada no aeroporto… Como reporta o jornalista Bruno Nogueira, que assina duas matérias do especial, “Chico ia pintar miséria com a internet”, citando frase de H.d. Mabuse, um dos cérebros do manguebeat. O que faria Chico se tivesse tido acesso a plataformas de streaming, como o Spotify, e a redes sociais, como o Facebook? E como teria sido o desdobramento da “música pernambucana” se não tivesse ido embora tão cedo? Essas perguntas permeiam o texto de Bruno, não no intuito de respondê-las, mas de nos fazer olhar criticamente para nossa história e o que hoje se passa no estado. Além da matéria de capa, também rendemos uma homenagem de aniversário a outro pisciano: o comediante norteamericano Jerry Lewis, que completa este mês 90 anos. Parabéns aos mitos! Eles vão além das datas.
sumário Portfólio
Edgar Endress
6 Colaboradores
online
7 Cartas
8 Entrevista
+
54 Cardápio
Curativos Alimentos naturais e sem veneno fortalecem a premissa de que a boa comida deixa o corpo são
+ Expediente Cibele Forjaz Uma das maiores diretoras de teatro do país fala sobre o atuar em grupo e seu novo trabalho
18 Balaio
Umberto Eco Pensador italiano, após morte aos 84 anos, deixanos livro inédito
32 Conexão
HQs Quadrinhos estão entre os projetos mais bem-sucedidos das plataformas virtuais de crowdfunding
36 Viagem
Ardèche Paraíso natural do sul da França abriga a Gruta de Chauvet, que ganhou uma réplica aberta ao público
Radicado nos Estados Unidos, artista chileno se engaja na arte para repensar a América Latina através de obras anti-imperialistas
12
62 Sonoras
Mulheres Presença feminina é cada vez mais forte na música pesada, marcada pela agressividade masculina
66 Entremez
Ronaldo Correia de Brito Linhas de força
68 Leitura
História Livro aponta outras origens para as histórias em quadrinhos, cujo início é atribuído a 1896
80
Matéria corrida José Cláudio Recifenses
88 Criaturas
Marcel Duchamp Por Alexandre Dantas
50 Tradição
Batuques Comunidades do Rio de Janeiro e de São Paulo preservam formas de expressão criadas por negros
Claquete
Jerry Lewis Humorista norte-americano, que também atua como diretor, roteirista, produtor e compositor e que infuencia gerações de atores, completa agora 90 anos
58 CAPA FOTO Fred Jordão
CONTINENTE MARÇO 2016 | 4
Capa
Especial
Se ainda estivesse entre nós, ele faria 50 anos este mês. Aproveitamos para mostrar como o mito da música pernambucana se construiu despretensiosamente
Profissionais pernambucanos desenvolvem técnicas de reaproveitamento de materiais que seriam descartados para criar peças manuais cheias de valor
Palco
Visuais
Março é o mês do teatro, com a realização do Festival de Curitiba, celebrando 25 anos, e a MITsp, que afirma a sua relevância nesta terceira edição
Cineasta e artista visual Gabriel Mascaro organiza nova série com fotografias de anônimos que recortaram o rosto ou o corpo dos seus ex-amores
Chico Science
20
Festivais
74
Moda
42
Desamor
82
CONTINENTE MARÇO 2016 | 5
Mar’ 16
colaboradores
Bruno Nogueira
Carol Botelho
Guilherme Novelli
Pedro Vilela
Jornalista, com pós-doutorado em Comunicação Social, professor do Depto. de Comunicação da UFPE
Jornalista, repórter da editoria de cultura do jornal Folha de Pernambuco
Jornalista e antropólogo, colabora para revistas culturais e científicas
Gestor, diretor artístico e idealizador da Trema! Plataforma de Teatro
E MAIS Alexandre Dantas, designer, ilustrador com mestrado em quadrinhos, na França. Associação Cultural Cachuera!, grupo de pesquisa, documentação e divulgação da Cultura Popular Brasileira. Bob Sousa, fotógrafo. Daniela Lacerda, jornalista. Daniela Nader, fotógrafa. Fred Jordão, fotógrafo. Germano Rabello, jornalista, ilustrador, autor de fanzines e histórias em quadrinhos, músico e compositor. Mateus Araújo, jornalista, mantém o blog Terceiro Ato no portal NE10. Rodrigo Casarin, jornalista, mantém no UOL o blog de literatura Página Cinco.
CHICO 50 ANOS
CLAQUETE
Assista a três vídeos de momentos diferentes na carreira do artista que completaria 50 anos este mês. Primeiro, ao show da Chico Science & Nação Zumbi em 1994, no Cais da Alfândega, no Recife. Segundo, ao Especial MTV gravado com a banda no ano seguinte. O especial é citado na matéria de capa de Bruno Nogueira como uma das principais viradas na carreira da CSNZ. Terceiro, ao vídeo do projeto Ocupação do Itaú Cultural, em São Paulo, em 2010, uma compilação de vários depoimentos sobre o universo de Chico, 13 anos após a sua morte.
Assista a documentário biográfico sobre Jerry Lewis, que este mês comemora 90 anos como o diamante da comédia mundial e é tema da matéria da pág. 58.
CONTINENTE MARÇO 2016 | 6
TRADIÇÃO Veja e sinta uma roda de jongo em São Paulo, organizada pelo Grupo Cachuera!, coletivo de práticas e estudos das tradições populares do sudeste brasileiro.
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR
JANIO SANTOS E KARINA FREITAS
Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais
BARALHO Gostei muito da matéria Cartas na mesa!, capa da edição de janeiro. E também gostei da revista, que não conhecia. É a primeira vez que contribuo para uma matéria sobre baralhos para uma publicação brasileira e o produto final publicado trata o tema de forma abrangente e séria. A abordagem da autora da reportagem, Marina Suassuna, do aspecto esotérico relativo ao tarô foi muito criterioso. Sem deixar de mencionar o assunto (que é, não há dúvida, relevante) citou a origem histórica corretamente e mencionou a utilização mística sem nenhum juízo de valor. Muito bom! Fiquei curioso com a menção feita a baralho e mágica no Lunário Perpétuo. Já conhecia a importância deste almanaque através de algumas leituras de Câmara Cascudo, mas não sabia que o tema era tratado
lá. Estou buscando textos para incluir em minhas referências. Meus cumprimentos pelo profissionalismo e seriedade no preparo do trabalho. CLÁUDIO DÉCOURT SÃO PAULO – SP
REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Olívia Mindêlo (repórter) Maria Helena Pôrto (revisão) Maria Eduarda Barbosa, Maria Luísa Falcão, Marina Moura,
BARALHO 2
Ulysses Gadêlha e Victória Ayres (estagiários)
Não conhecia a revista Continente e fiquei agradavelmente surpreendido pela boa edição, em particular pelo cuidado que Marina Suassuna (matéria Cartas na mesa!, nº 181) demonstrou em suas pesquisas e pela qualidade final. Parabéns! Quando for possível, bem poderíamos reproduzir e divulgar esse trabalho no Clube do Tarô. Pelo site da revista, vi que não será possível baixar o conteúdo completo. Abraços e agradecimento. CONSTANTINO RIEMMA SÃO PAULO – SP
Olivia de Souza (repórter - Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se
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CONTINENTE MARÇO 2016 | 7
CIBELE FORJAZ
“Teatro é a crônica e a crítica do dia”
Diretora que se formou com Zé Celso Martinez e tornou-se um dos maiores nomes do setor no país, discute o teatro de grupo e fala sobre seu interesse pelo diálogo aberto entre cena e plateia TEXTO Mateus Araújo
CON TI NEN TE
Entrevista
Numa padaria antiga do Bairro da Boa Vista, centro do Recife, a diretora de teatro Cibele Forjaz conversa. Dá uma pausa na sua vida corrida de criações inúmeras. Enquanto participa da 22ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, ela pensa na estreia do seu novo trabalho, Na selva das cidades, cuja missão é ocupar diversos pontos urbanos. O processo seria apresentado neste mês de março em São Paulo, dentro da Mostra Internacional de Teatro (MIT), mas ficou para depois (o Sesc Pompeia receberá o trabalho, ainda sem data). Em janeiro, no Recife, Cibele dirigiu a leitura da peça espanhola Os corpos perdidos, executada pelo Coletivo Angu de Teatro, e apresentou o espetáculo Maria que virou Jonas – Ou a força da imaginação, sobre transexualidade. “Minha meta é pensar num épico brasileiro”, diz Cibele Forjaz, nascida e criada em São Paulo. Também iluminadora e uma das fundadoras
da Cia. Livre, ela tem mergulhado na estética brechtiana para pensar e produzir um teatro cada vez mais engajado e influenciado pelo diálogo aberto entre a cena e a plateia. Sua experiência de mais de uma década no Teatro Oficina e a incursão em processos criativos de teatro de grupo – que valorizam uma pesquisa contínua e a troca de experiência com outras searas para além das artes cênicas – fazem de Cibele uma das mais completas e marcantes diretoras contemporâneas do país. Nesta entrevista à Continente, Cibele fala da sua relação com o diretor José Celso Martinez, discute o teatro de grupo no Brasil e faz uma reflexão sobre sua carreira teatral. CONTINENTE Seu trabalho está sempre associado à criação coletiva. Como você enxerga o teatro de grupo e sua importância para o teatro brasileiro?
CONTINENTE MARÇO 2016 | 8
CIBELE FORJAZ A minha ideia de pertencimento sempre foi a de estar num grupo de teatro e participar dele. Eu sempre pensei: “Quero fazer parte de um grupo de teatro”. E sempre fiz. Comecei no teatro amador com 16 anos e entrei na universidade com 18, praticamente formada como atriz. Entendo que todo tipo de teatro, até o comercial, se faz em grupo. No entanto, é no grupo que o teatro tem condições de se criar coletivamente. Já tenho mais de 30 anos de teatro profissional e mais cinco de teatro universitário e amador. Sempre trabalhei em grupo, participei de três diferentes. O primeiro foi A Barca de Dionísio, que a gente tinha na universidade e que deu origem ao meu jeito de trabalhar. Esse grupo tinha Tó (o diretor paulista Antônio Araújo, do Teatro da Vertigem), Lúcia Romano, Aury Porto, William Pereira, atores que hoje fazem parte
BOB SOUSA
CONTINENTE MARÇO 2016 | 9
CIBELE FORJAZ Todos os grupos passam por crises. Não há trabalho de artistas íntegro e verdadeiro sem crise. Ainda mais porque o trabalho de grupo precisa da continuidade do tempo e as pessoas mudam, as necessidades das pessoas com a idade também mudam, então você tem sempre que se rever. Eu acho que as crises, entradas e saídas de pessoas, fazem parte do teatro de grupo. É normal ter fluxos. Gente que vai, gente que vem, gente que vai e volta, trazendo outras influências.
a direção rodar, a dramaturgia ser conjunta, ser um grupo aberto à relação com outros grupos. A gente tem as parcerias com a Mundana, com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e o Grupo São Jorge. Já é uma outra ideia de grupo, com continuidade, mas aberto à relação com outras áreas do conhecimento, pesquisas longas e grupos profissionais. CONTINENTE Você começou a fazer teatro nos anos 1980. Como era o cenário artístico da época?
WELLINGTON DANTAS/DIVULGAÇÃO
da Vertigem, parte da Cia. Livre e da Companhia do Latão. Foi ali que a gente começou a fazer workshops. Passamos de 1985 a 1987 montando Leonce e Lena, dirigido por William. Toda a universidade foi para fazer essa peça. Ali, a gente já começou o que chamamos de processo colaborativo. Era um nome que não existia, foi dado no início dos anos 1980, por Tó e Abreu (Márcio Abreu, diretor), nas oficinas da Cia. Livre. Somos obrigados a tensionar e a enfrentar, nas criações, os pontos fundamentais,
CON TI NEN TE
Entrevista o que queremos dizer com esse texto e essa pesquisa, e tem todo o estudo de campo, trabalhos que terminam gerando outros trabalhos em outras searas. A gente busca cercar o tema e ver as profundidades, para daí isso virar um espetáculo. O espetáculo é uma parte do trabalho. Não é só o fim em si mesmo. CONTINENTE No ano passado, um dos principais grupos de teatro do Recife, o Magiluth, passou por uma crise e reformulou a própria formação. Naquele momento, o coletivo se questionava sobre rumos, divisão de funções e criações. Essas crises, que são comuns nos grupos de teatro, também devem trazer novas perspectivas. Como lidar com isso?
CONTINENTE Você passou mais de 10 anos como iluminadora do Teatro Oficina, num processo de imersão, como é a filosofia de José Celso Martinez. De que maneira olha para essa experiência em comparação à Cia. Livre? CIBELE FORJAZ O Teatro Oficina vive em torno da figura de Zé, mas ele é um artista extremamente catalisador das energias do coletivo, de um jeito bem diferente da nossa geração. Todo mundo dá o máximo de si junto com ele. Ele tem essa potência de trabalhar com 100 pessoas. Já na Cia. Livre, eu acho que é bem diferente do Oficina. A companhia nasce com a ideia de criações mais horizontais. Não era um grupo em torno de um diretor mais velho, mas um grupo em que a gente também variasse de funções:
CONTINENTE MARÇO 2016 | 10
CIBELE FORJAZ Em 30 anos, aconteceu uma grande mudança na forma de produzir teatro. A gente tinha uma espécie de terra arrasada, resultado da ditadura. Esta foi muito dura com as artes, tanto pela censura direta, quanto pela maneira de desarticular as produções. E daí veio a censura econômica, que é um jeito de censura política. O fato de não existir uma política cultural não quer dizer que haja ineficiência no país para criar isso. Faz parte de uma estrutura na qual o país foi construído. Um povo, quanto mais miserável e sem cultura, mais fácil ser manipulado como ovelha. A cultura nos dá posse e força. Nos anos 1980, era clara a terra arrasada, não existia teatro de grupo.
E outra coisa: passa-se o teatro para outra geração, quando você trabalha junto com seus pares mais velhos. Você aprende com os mais velhos, aprende na prática. E, na nossa geração, isso foi rompido. CONTINENTE É a partir daí que a linguagem de encenação da Cia. Livre dá uma mudada? CIBELE FORJAZ Sim. Passamos a ser cada vez mais brechtianos, épicos. Em Um bonde chamado desejo (2002, dirigida por Cibele), a gente fez um exercício de realismo. Naturalmente, um realismo revisitado. A minha formação é muito teatral, explicitação do jogo de encenação, na frente da plateia. Mas no Bonde tinha um “voltar-se”, e foi aí que o trabalho de análise de texto se intensificou na minha vida. Esse é um trabalho muito importante, que também fui encontrar no Oficina. CONTINENTE Essa explicitação do jogo de cena tem influência direta de Zé Celso, não é? CIBELE FORJAZ Quando vi Zé pela primeira vez em cena, caiu a ficha. Estava assistindo à peça As boas (de Jean Genet, montada em 1991, que marcava a volta de José Celso Martinez à cena). Ele falava direto com a plateia, numa sociedade dividida entre madames e empregadas, as madames e as “boas”. Eu vindo de um teatro formalista, aquilo para mim foi uma virada. Ali, eu levei um soco no estômago e entendi que o teatro tem que ser de relação direta com a plateia, de raiz e estrutural com a cidade onde você vive, dos problemas concretos da comunidade em que você vive. Teatro não é para o futuro. Teatro nasce e morre. O teatro é, como dizia Shakespeare, a crônica e a crítica do dia da sociedade contemporânea. CONTINENTE Considera-se uma diretora brechtiana? CIBELE FORJAZ Quando crescer, eu quero ser. Eu gostaria de ser. Eu quero ser. Tem uma tentativa também na Cia. Livre de construção de uma identidade que também é uma representação. Tenho como meta pensar num épico brasileiro. Poderia dizer que sou uma diretora que vem do Oficina, então a influência de Zé é muito grande, assim como as influências da minha geração. Minha pesquisa tem origem brechtiana,
mas que precisa ser reinventada a cada momento, a cada pesquisa. É um processo de pesquisa de vida. CONTINENTE No ano passado, você dirigiu Maria que virou Jonas, enveredando por discussões sobre identidade e gênero. De certo modo, uma criação que tem a ver com a pesquisa anterior da Cia. Livre sobre os povos e a representatividade. Como foi, então, olhar para a transexualidade por esse viés? CIBELE FORJAZ Maria que virou Jonas vem a partir de um trabalho muito concreto da Cia. Livre com a antropologia: a
“Maria que virou Jonas vem a partir de um trabalho muito concreto da Cia. Livre com a antropologia: a questão da transição, do trânsito, que vem desde Orfeu ameríndio. Ali, a gente encontrou o desconhecido. Isso mudou minha experiência como pessoa” questão da transição, do trânsito, que vem desde Orfeu ameríndio. Ali, a gente encontrou o desconhecido. Isso mudou não só meu teatro, mas a minha visão e a minha existência como pessoa. Percebi que estou num país com 180 línguas diferentes, 250 povos com culturas diferentes, mas a gente tem uma cultura totalmente colonizada, inclusive nas universidades. Desmontou para mim tudo que eu imaginava o que era o Brasil, principalmente com a perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro, que eu acho que é um outro jeito de olhar para a antropofagia. Me mostrou que as relações devem ser construídas em redes. Isso desmontou uma ideia de cultura que eu tinha. Mudou tudo.
CONTINENTE MARÇO 2016 | 11
Então, a partir dessa relação, você lida com temas polêmicos, as diferenças entre um e outro, brancos e pretos. A ideia de Maria que virou Jonas foi fazer a transição da reflexão do mato para o asfalto, que tem a ver com as transformações dos corpos e a relação de uns com outros. CONTINENTE Atualmente, você tem visitado o repertório de Brecht. Montou Galileu Galilei, no ano passado, e agora estreia Na selva das cidades. Como tem sido essa incursão pela sua obra? CIBELE FORJAZ Galileu foi um convite de Denise (Fraga). Ela vinha do trabalho com Brecht e resolveu montar essa peça. Quem ia dirigir era Aderbal (Freire-Filho), e depois ela me chamou. E foi uma criação em coletivo, um caso superdiferente. Quando fui fazer Galileu, estava já montando outro trabalho: Na selva das cidades, da Mundana. No processo de pesquisa, Denise me convidou. E achei que era uma sincronicidade, porque eu estava estudando um jovem Brecht e ela me convidava para dirigir um velho Brecht. Além disso, Galileu Galilei e Na selva das cidades são duas peças que o Oficina montou ao mesmo tempo. A selva foi a grade virada do Oficina para um teatro radicalmente aberto à interferência do público. CONTINENTE Sua leitura para Na selva também passa por um processo de pertencimento. Como ocupação e teatro dialogam nessa montagem? CIBELE FORJAZ A selva é muito forte. A gente fez imersões por São Paulo inteira. A ideia é fazer ocupação e, em cada uma, uma peça, uma cenografia diferente. No processo, fizemos 12 imersões em pontos da cidade, coordenadas por grupo de dentro do grupo. Cada um criava um conceito de ocupação para cada lugar. E, a partir daí, eram criados conceitos. Todo mundo dirigiu. As 30 pessoas foram diretoras dessas imersões e ocupações. Faremos a peça sempre em obras. Ela não é marcada, temos regras de jogo e os atores recriam o espetáculo a cada dia. Se a gente viesse ao Recife, a ideia seria ocupar o Estelita. Se você faz na rua, na cidade, num canteiro de obras, numa comunidade, toda a história daquela comunidade tem que estar na peça.
DIVULGAÇÃO
Port 1
f贸lio
IMAGENS: DIVULGAÇÃO
2
CON TI NEN TE
Portfólio
Edgar Endress
FOCO NA ARTE LATINO-AMERICANA TEXTO Victória Ayres
Muito ligado à performance, ao trabalho coletivo e à videoarte, Edgar Endress
utiliza elementos da arte conceitual para falar da cultura tradicional e folclórica da América Latina. Nascido em Osorno, o artista chileno hoje mora nos Estados Unidos e dirige um laboratório experimental de artes e tecnologias na Universidade George Mason, em Fairfax, na Flórida. Depois de largar um curso de Economia, Endress começou a se interessar pela fotografia e por imagens em movimento, durante a ditadura de Pinochet. A tradição da videoarte vem dessa época, com vídeos sendo usados como uma forma de documentação, de protesto, uma arte que era também uma plataforma política. A principal área de interesse do artista é a arte latino-americana, dentro dos seus propósitos políticos, pedagógicos e poéticos, fortemente incorporados por Endress, que, em muitos dos seus trabalhos, busca produzir uma arqueologia da história da arte na América Latina, focando na produção artística popular e na cultura folclórica. “Tudo que aconteceu na América antes dos espanhóis é antropologia, depois disso, é história”, explica ele, quando se refere às heranças que o colonialismo europeu deixou nos estudos sociais sobre o continente. Ele opta pela arte popular, no que ela tem de rápida em alcançar a mente coletiva, especialmente a folclórica. Endress insere elementos da matriz popular nos happenings que realiza.
CONTINENTE MARÇO 2016 | 14
Página anterior 1 SOBERANO
Colagem critica conhecimento como forma de poder
N estas páginas 2 REMANESCENTES
érie de esculturas S rediscute o sagrado a partir de santos e animais
CIENTÍFICO 3 Ilustração faz alusão a imagens enciclopédicas
4 SANTUÁRIO Painel põe em perspectiva a história dos EUA
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4
CONTINENTE MARÇO 2016 | 15
IMAGENS: DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
Para o artista, o folclore dentro das perfomances aproxima as pessoas da arte tradicional de uma forma que centros de arte institucionais, como museus, não conseguem realizar, por serem frios e seguirem modelos e estruturas colonizadas. “Happening é um mecanismo ótimo para se trabalhar no espaço público, faz com que o espectador se engaje de forma muito mais ativa e aberta, suscitando discussão e inclusão”, explica ele, que também critica o olhar antropológico muitas vezes lançado sobre formas não eruditas de arte. A maior parte do trabalho do chileno é feita de forma coletiva, com poucas obras pensadas e produzidas apenas por ele. A coletividade é central na sua obra, pois com ela, diz, acessa conhecimento que não possui, expande a magnitude dos seus trabalhos, aumenta os recursos que podem ser usados, e se engaja em um processo de ensino e aprendizado.
Um exemplo de um desses projetos é Screaming at the economy, que consiste em um aparelho que “grita” mensagens, como um altofalante. O artista solicitou que pessoas enviassem mensagens de desabafo sobre a economia estadunidense; após receber esses áudios, ele os reproduzia com o “gritador” em frente a instituições política e economicamente importantes, em Washington DC. A discussão sobre o imperialismo estadunidense e europeu é fortemente abordada em trabalhos como Acts of erasure, Acts of knowledge e Centropia. No primeiro projeto, o artista obteve duas fotos tiradas de um leprosário, na cidade de St. Croix, em que os doentes estão todos posando junto com freiras. Na primeira foto, todos estão presentes, na segunda, as freiras estão apagadas, como se a imagem tivesse sido rabiscada. Endress então produziu uma animação em stopmotion utilizando as duas fotos, para evidenciar o apagamento desejado da presença religiosa opressora sobre os doentes, todos negros, sendo as freiras brancas.
CONTINENTE MARÇO 2016 | 16
Em Acts of knowledge, o artista questiona como o saber racional e classificador tantas vezes serve como instrumento de poder sobre o que se analisa ou estuda, por isso as imagens sobrepostas, num amontoado de informação, se assemelham a ilustrações científicas. Já Centropia é um projeto extenso que aborda desde o militarismo até a religião, baseado no cenário urbano da América Latina. Centropia 1 foca no militarismo como um poder patriarcal, em que o artista utilizou imagens de um manual de jiu-jítsu distribuído entre policiais no Chile para controlar ladrões e substituiu os rostos dos infratores das imagens por animais nativos. Estar nos Estados Unidos sendo chileno o fez ter outra visão da sua latinidade e da arte latina. “Minha experiência nos Estados Unidos por si só é um ato de resistência, uma forma de protesto. Minhas pesquisas lidam com a criação de mecanismos de empoderamento e reivindicação, eu opero aqui como o outro, criando projetos no espaço público sobre assuntos que o império está ignorando, tais como neocolonialismo”, explica Endress.
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5-6 OPRESSÃO Artista apaga a presença religiosa entre doentes
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CONTINENTE MARÇO 2016 | 17
7-8 CENTROPIA Endress se apropriou de manual militar
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
REPETE Criada há três anos, a empresa nova-iorquina Giphy não sabia o que era lucro, até o mundo assistir, de uns tempos para cá, a uma verdadeira mania dos GIFs animados. Aquelas imagens que aparecem todo dia na sua timeline é o negócio de empresas como a Giphy, que passou a levantar milhões de dólares este ano. Acreditase que valha U$ 300 milhões, pela coleção de GIFs que guarda em seu site (http://giphy. com/), normalmente compilações de cenas com celebridades, como Rihanna (foto), e sequências de filmes. Você pode se cadastrar, criar GIFs e compartilhar. (Olívia Mindêlo)
Eco, daqui pra frente No ano passado, circulou pela internet um boato: Umberto Eco havia morrido. Logo ele, cuja ironia se direcionava, nos últimos tempos, aos meios digitais, havia tido justamente o seu fim decretado pela rede – no caso, por algum desses piadistas de mau gosto da web. Infelizmente, na sexta-feira do dia 19 de fevereiro de 2016, o boato virou fato e foi assim que o mundo perdeu um dos seus maiores pensadores, aos 84 anos. O romancista, semiótico, cronista e uma dessas pessoas cuja adjetivação é sempre insuficiente, embora interminável, abominava o lugar-comum e amava sua dosezinha de uísque, que tomou até os últimos dias. Era o “seu melhor amigo, seu cachorro engarrafado”, para lembrar Vinicius de Moraes, outro conhecido amante do escocês. O jornalista Juan Cruz, do El País, encontrou com Eco no ano passado e disse que já ria e bebia menos que outrora, sem perder a mania de enxugar o suor da testa com um lenço. As ideias o ocupavam e o preocupavam. Disse ele, certa vez, que “as redes sociais dão o direito à palavra a legiões de imbecis que antes se exprimiriam somente no bar, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade”, mas agora tinham o mesmo direito de fala de um “prêmio Nobel”. Seu último livro publicado (Número zero, 2015) alertava jornalistas sobre o futuro da profissão e das informações veiculadas na internet. Aliás, sua obra póstuma, sob o título de Pape Satan Alleppe, acaba de ser lançada. Daqui pra frente, muitos ecos surgirão. Que assim seja. OLÍVIA MINDÊLO
CON TI NEN TE
A FRASE
“O amor é mais sábio que a sabedoria.” Umberto Eco, escritor italiano
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Balaio TU VERÁS “Filodendros, samambaias, folhas de palmeiras, de bananeiras… Não, você não está diante de uma alcova em Olinda, no Brasil, mas de um muro vegetal da Rua d’Aboukir, em plena Paris.” Assim escreveu recentemente o Le Monde, referindose ao local onde o músico francófono Séverin posou para a capa do seu novo disco, Ça ira tu verras. Segundo o jornal, o álbum é “como uma promessa de amor à sua mulher, uma brasileira, e a esta terra do futuro”, referindo-se ao Brasil. Com esse nome, cabelos cacheados e um vozeirão aliado a uma malemolência especial, não é de se estranhar que tenha sido atraído pelas “bananeiras” de cá – e vice-versa. (OM)
ARQUIVO
GASES NIPÔNICOS No período Edo japonês, cerca de 300 anos atrás, um artista desconhecido criou uma série de ilustrações em pergaminhos que mostravam pessoas “soprando” árvores, animais e outras pessoas com gases intestinais. He-gassen, ou “Guerra de pum”, é o nome dado a essas ilustrações que retratavam pessoas soltando gases e criando ventanias com seus puns. Os desenhos também serviam para expressar o desgosto com a influência europeia no Japão da época, em que alguns dos pergaminhos representam ocidentais sendo soprados por gases de japoneses. (Victória Ayres)
Sociedades secretas Dois acontecimentos – o lançamento de um livro e a realização de uma exposição – nos trazem iconografia valiosa sobre sociedades secretas norte-americanas estabelecidas entre os séculos 18 e 20. Fica em cartaz até 8 de maio, no nova-iorquino American Folk Art Museum, a mostra Mystery and benevolence: Masonic and Odd Fellows Folk Art from the Kendra and Allan Daniel Collection, com a exibição de aproximadamente 200 objetos usados por sociedades como a Maçonaria e a Independent Order of Odd Fellows (IOOF). E foi lançado, há pouco, o livro As above, so below: Art of the American Fraternal Society, 1850–1930 (de Lynne Adele and Bruce Lee Webb). A relevância histórica desses dois produtos está em colocar o público em contato com objetos que materializam a expressão mística e os segredos dessas sociedades, que eram majoritariamente formadas por homens brancos, protestantes e de classe média, imbuídos de intenções humanitárias, mas também com ambições mais ou menos enfáticas em relação aos postos de poder político. Uma imagem interessante que está no livro e na exposição, por exemplo, é a litogravura de 1867 de George Washington como maçom (detalhe acima). ADRIANA DÓRIA MATOS
CLARICE NA ALEMANHA
AS MADEIXAS DE LENNON
Nos bastidores do mercado editorial, já se fala que, na Feira do Livro de Frankfurt deste ano (de 9 a 23 de outubro), o espaço do estande brasileiro diminuirá em tamanho e importância devido aos efeitos da crise econômica. Enquanto isso, a editora alemã Schöffling & Co acaba de publicar dois livros de Clarice Lispector: A hora da estrela e Perto do coração selvagem. E não para por aí. Agora, editora negocia para publicar a coletânea Todos os contos, organizada por Benjamin Moser. Vale lembrar que, nas décadas de 1980 a 2000, a obra de Clarice ficou praticamente no ostracismo entre os leitores alemães. Em 2013, O lustre foi reeditado e, além de a primeira tiragem ter se esgotado em poucos dias, entrou para a lista dos melhores livros do ano. (Marina Moura)
Uma mecha de 10 centímetros do cabelo do beatle John Lennon foi leiloada pelo valor de US$ 35 mil. O comprador foi Paul Fraser, um colecionador do Reino Unido, que negocia itens raros relacionados à arte e cultura inglesas. Os fios teriam sido cortados por uma cabeleireiro alemão, quando o cantor se preparava para gravar o filme de humor Como eu ganhei a guerra, de 1967, no qual Lennon foi protagonista e usou pela primeira vez os óculos redondos, uma de suas marcas registradas. Outros itens inusitados dos Beatles também já foram leiloados, angariando quantias elevadas, como o primeiro contrato assinado pela banda, que foi vendido por 365 mil libras. (Ulysses Gadêlha)
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FRED JORDÃO
CON TI NEN TE
CAPA
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TUDO
SOANDO
BEM
AOS OUVIDOS Chico Science
Um mito que se construiu numa sucessão de acasos TEXTO Bruno Nogueira
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CON CAPA TI NEN TE ACERVO DE FAMÍLIA/REPRODUÇÃO ARQUIVO MEMORIAL CHICO SCIENCE
Desde sua origem, o homem aprendeu a criar mitos para ajudar a trazer algum conforto sobre aquilo que não compreende totalmente. Na iminência dos 50 anos de idade, que completaria no dia 13 deste março, Chico Science se distancia cada vez mais do Francisco de Assis França que existiu por trás de sua icônica imagem. Seu sorriso, com os grandes óculos de grau e chapéu, povoa os muros da cidade em grafites, telas e estátuas. Seu nome está em escolas, ruas, túneis e na boca de todos que arriscam subir em um palco no estado de Pernambuco. Chico se tornou a representação humana de um mito que repetimos quase como um mantra: “a força da música pernambucana”, mesmo quando não conseguimos explicar em detalhes o que isso significa. Conversar com os contemporâneos de Chico Science é atestar essa relação confusa entre tempo e espaço em que os mitos são criados. Histórias de um jovem da periferia que queria montar uma banda e, numa combinação precisa entre sorte e talento, conseguiu ir além de todos os de sua geração. Os fatos se desencontram nessas conversas, enquanto as datas, os eventos e pessoas envolvidas se misturam. O manguebeat, hoje, é parte história e parte lenda do Recife e, como lenda, é reverenciado e contestado; reproduzido e estudado. Em busca dos rastros dessas lendas, chega-se até a quarta etapa de Rio Doce – bairro mais populoso de Olinda, onde Chico França apontava para Jorge Du Peixe e dizia: “Tô ligado nele, o cabeludo que dança break lá na associação”. A “amizade de maloqueiragem”, como Du Peixe gosta de reforçar, tinha trilha sonora certa, marcada por uma constante troca de vinis. “A gente sempre foi muito ligado em música negra no começo dos anos 1980, ele morava em outra rua, mas a gente se encontrava na noite, dançando break na associação dos moradores”, lembra o atual vocalista da banda Nação Zumbi. O fã inquieto de música não se contenta em apenas ouvir seus ídolos. Chico estava tão envolvido em conversar sobre música e compartilhar suas descobertas, que chegou até a levar seus vinis de James Brown para a Rádio Universitária. Em 1987, ele esbarrou na rádio com outro fã inquieto. Com apenas 15 de idade, o designer
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Conversar com os contemporâneos de Chico Science atesta a relação confusa entre tempo e espaço em que mitos são criados
H.d. Mabuse passou a fazer locução de programas na rádio, de tanto que começou a frequentar os corredores da Universitária, curioso pelo processo todo de radiodifusão e das músicas que tocavam ali. Fã de quadrinhos, ficção científica e música, ele ia sempre que podia ao aeoroporto comprar revistas importadas com novidades que ainda demorariam a chegar no Brasil pelo processo tradicional. “Eu tinha lido o que era um overdub e vi que era a mesma lógica daqueles sound systems com karaokê”, lembra Mabuse. “A gente montou uma banda chamada Bom Tom Rádio, eu tocava baixo, Chico cantava e Du Peixe tocava uma bateria eletrônica. Aquilo virou um laboratório para um monte de gente”, lembra ele, que hoje é consultor em design no C.E.S.A.R. “Fábio Trummer, Spider… quem aparecia lá em casa, a gente gravava algo e depois tocava uma música por cima”, conta. Nesse mesmo
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ano, um amigo de escola de Chico, Lúcio Maia, montava a Escrache Social. “Banda dessas de escola, mas que proporcionou essa minha aproximação com Chico”, lembra Lúcio. Desse encontro desorganizado entre amigos até o primeiro contrato assinado com gravadora, foram quatro anos. Uma conta de tempo difícil de chegar na trajetória de qualquer artista, se levarmos em consideração que não existia um foco de atenção para Pernambuco. “O que acontecia aqui não saía do Nordeste. E o que saía, como Alceu Valença, não voltava”, lembra o produtor musical Paulo André Pires, que, no fim desse período de quatro anos, se tornaria o primeiro produtor da banda que ainda não tinha sido formada, Chico Science & Nação Zumbi. Naquele ano, Paulo André fazia bico como entregador de pizza enquanto morava nos Estados Unidos, na região conhecida como Bay Area, onde nascia a cena do thrash metal norte-americano, com bandas como Slayer e Metallica.
CONEXÕES
Num tempo sem rede mundial de computadores – aliás, sem computadores –, Mabuse era, no grupo, o mais próximo que existia da ideia de rede. Ele não apenas apresentou aos amigos um universo de referências de
FRED JORDÃO
ficção científica, quadrinhos e cultura pop, mas também conectou Chico ao “núcleo de Candeias”, encabeçado por Fred Zero Quatro, DJ Dolores e Renato L – que, na mesma época, daria a ele o apelido de “Science”. E, com o Bom Tom Rádio, faria a primeira gravação de A cidade, música que Chico levaria de banda em banda, para a Orla Orbe, que se tornaria Loustal, que se tornaria Lamento Negro, que se tornaria Chico Science & Nação Zumbi. Naquele mesmo período, o grupo de dança de Chão de Estrelas Daruê Malungo recebia os ensaios do bloco Lamento Negro. “Eu assisti ao primeiro ensaio e era um grupo de samba reggae com um rapper à frente, com um vigor impressionante”, lembra Helder Aragão, o DJ Dolores. Desse encontro entre jovens curiosos nos corredores de uma rádio, bandas de escola e referências musicais que cruzavam o rock inglês com o rap, samba e rock, em três anos, cristalizou-se uma noção de “música de Pernambuco”. Essa noção permeia escolhas que vão além da estética e ganha dimensão política, pautando curadorias de eventos públicos e privados, e não cabe numa delimitação puramente geográfica. Não é música necessariamente feita por pernambucanos, nem que se desenvolve nos limites de Pernambuco. Afinal, quando o Carnaval e os festivais públicos da cidade evocam uma valorização da música que é local também criam barreiras que excluem a conexão com o território. De um certo modo, tudo se equaliza de volta à imagem do sorriso de Chico em nosso imaginário coletivo. “Chico era um gênio”, afirma Mabuse repetidas vezes. “Ele compunha quase sempre como se estivesse sampleando, mesmo sem acesso a essa tecnologia na época”, conta o DJ Renato L. “Ele era um cara muito esperto e a vontade de fazer acontecer era muito grande”, pontua Jorge Du Peixe. Até o final dos anos 1980, os diferentes grupos de amigos se tornaram um só, rumo a uma vida adulta que aceleraria ainda mais esse processo da formação de uma cena e um movimento que teria impacto por décadas na cultura do estado. No passo em que Chico Science começava a organizar festas de hip-hop junto com Jorge Du Peixe, em Olinda e no Recife, começava
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ACERVO H.D. MABUSE/ CORTESIA
BREAK 1 Chico frequentava a associação de moradores de Rio Doce, onde morava e conheceu Jorge Du Peixe ESTÚDIO 2 Gravação da trilha sonora do filme Baile perfumado, com integrantes da Nação Zumbi e Mundo Livre S/A AMIZADES 3 Antes do manguebeat, os amigos Chico, Mabuse e Du Peixe 3
também o compartilhamento dos apartamentos espalhados pela cidade. “Chico foi morar na Rua da Aurora, em 1990”, lembra Renato L, mesma época em que DJ Dolores passou a dividir apartamento com um amigo nas Graças. “Era muito difícil ter um amigo na faixa de idade dos 20 anos e já morando só, então os apartamentos eram um ponto de encontro. Todo mundo passava muito lá na casa dele, eu mesmo ia umas duas vezes por semana”, lembra Renato, que Chico nomearia mais tarde de Ministro da Informação do Movimento Manguebeat. “Várias amizades se consolidaram nessa época e várias coleções de discos se cruzaram”, comenta. DJ Dolores traz uma dimensão ainda maior para
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esses encontros, ao contar que “o conceito de manguebeat e a visão que tínhamos a respeito da música era claramente uma criação coletiva”. Se estivesse vivo, o fardo da responsabilidade que Chico Science carregaria hoje, pela dimensão que a cultura de Pernambuco tomou na pauta nacional, seria enorme. Mas, nos pormenores das conversas entre amigos e colegas, seu papel não foi outro além de ser um catalisador de uma criação coletiva. “Tinha uma sinergia reprimida na cidade e foi um mérito do manguebeat construir um conceito que até o hardcore fosse tratado como um participante legítimo do que acontece na cidade. A gente pode até quantificar o quanto mudou na moda,
CON CAPA TI NEN TE ACERVO DE FAMÍLIA/ REPRODUÇÃO ARQUIVO MEMORIAL CHICO SCIENCE
DA LAMA AO CAOS
Em 1990, tudo fica mais rápido e, consequentemente, mais confuso. Parte da história se assimila com mais facilidade, se encarada num misto entre lenda urbana e uma busca pela precisão dos fatos. Em um determinado momento do começo da década, Chico Science era visto em uma sala do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, literalmente urrando em meio ao público presente, assistindo a Benoit B. Mandelbrot, o fundador da geometria fractal, dar um depoimento gravado em vídeo. Eram vários palavrões, mas todos carregavam elogios ao matemático. O público olhava assustado para aquele que, certamente, não deveria estar inscrito para o congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC) que acontecia ali. E, considerando que essa é uma história que começa em um boteco em frente à delegacia de Rio Doce, talvez nem o próprio Chico soubesse explicar aqueles acontecimentos. No entanto, o que é importante destacar é que, enquanto Chico ouvia Benoit, do lado de fora, Mabuse comprava uma edição da revista Ciência Hoje, atraído pela reportagem de capa sobre a Teoria do Caos. “Chico leu a matéria e, em menos de uma semana, o Da lama ao caos estava escrito. Está tudo ali”, conta o amigo. Em 1990, haviam se mudado para a Rua da Aurora o trio Chico Science, Fred Zero Quatro e Mabuse. A Mundo
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4 UNPLUGGED Chico e Lúcio Maia, compondo em casa
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nas artes plásticas, no cinema, além da música”, enumera Renato L. É esse conceito agregador do manguebeat que dá uma certa elasticidade para a ideia de música pernambucana. Talvez ainda seja arriscado enquadrar um sentido de gênero musical – no qual cabe a música de artistas tão distintos quanto a Orquestra da Bomba do Hemetério, a Mundo Livre S/A, Devotos e Eddie, entre tantos outros –, mas é uma das consequências de um impacto radical que a vida cultural do Recife passaria pelos próximos dias e se intensificaria pelos sete anos que se seguiriam nessa história. Quando esses encontros de amigos e compartilhamento, que ia dos vinis até as próprias roupas, ganhavam uma materialidade e dimensão além de um circuito restrito.
RENATO L 5 Foi o DJ quem deu o apelido de “Science” ao artista
6 ANOS 1990 Os mangueboys (Chico, Otto e Fred Zero Quatro em destaque), estimularam a autoestima dos pernambucanos, com suas letras, performances e adereços 5
Livre S/A já tinha sete anos de estrada e, quando a Orla Orbe virou a banda Loustal – com Lúcio Maia e Dengue –, Chico e Fred às vezes acabavam dormindo um na casa do outro, ao assistirem aos ensaios. Fred era um dos responsáveis pelo programa Décadas, na Rádio Universitária, que primeiro começou a receber as visitas de Mabuse – que acabou virando o locutor – e, depois, as de Chico. Cerca de um ano antes, Fred e Renato L haviam tido contato pela primeira vez com Chico durante um show da Orla Orbe e da banda KZF, em uma festa de hip-hop organizada na extinta Boate Misty (atual Metrópolis). “A gente nem curtiu tanto o show da Orla, achamos Chico muito em cima do rap de LL Cool J, que não curtíamos”, lembra Renato. Era uma fase de libertação para Fred. “Tinha pedido demissão da Rádio Transamérica, então
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estava no ócio criativo com ajuda do seguro-desemprego”, lembra Zero Quatro, que aproveitou a grana e alugou uma sala para montar um estúdio com uma mesa de som de 16 canais, junto com Chico. O DD3 – nome do estúdio – tinha uma meta bem estrategicamente traçada: gravar uma compilação com as bandas próximas, que se chamaria Caranguejos com cérebro. A ideia surgiu após a festa Viagem ao centro do mangue, que acontecia de forma itinerante entre o Recife e Olinda. Em sua terceira edição, já com um público formado, a Mundo Livre S/A e a Loustal conseguiram colocar suas músicas para tocar em uma faixa de horário dedicada a fitas demos na Rádio Cidade. Fred e Renato, que eram jornalistas, sabiam que precisariam de um release – um texto de divulgação e apresentação do disco – para conseguir espaço nos jornais.
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MANIFESTO
Apesar de terem sidos influenciados por uma geração da ficção científica representada por escritores mais tradicionais como Isaac Asimov e William Gibson, a série de eventos que se seguiu foi digna de colocar Chico Science e seus amigos em um conto do sempre imprevisível Douglas Adams. Tudo na ordem do acaso, sem premeditação ou estratégia. A recém-chegada MTV vem ao Recife gravar parte de um programa sobre comportamento de adolescentes; um dos integrantes da equipe recebe, de um amigo que acabou de fazer no bar, o release da coletânea ainda não lançada; esse material circula pela redação da emissora e chama a atenção. Antes mesmo do compartilhamento sem fim nos sites de redes sociais, o texto viraliza e ganha um título: Manifesto Manguebeat. Os dias que se seguiram são os que fogem de boatos, lendas e mitos e entraram para o registro da história. A MTV decidiu voltar apenas para gravar um programa junto aos integrantes das bandas com apoio da TV Viva, que montou um set de filmagem em frente ao Centro de Cultura Luiz Freire, no sítio histórico de Olinda. O Jornal do Commercio fez uma reportagem de capa em seu caderno de cultura, assinada, na época, pelo repórter Marcelo Pereira.
A MTV vem ao Recife e recebe o release de Caranguejos com cérebro, que se torna o Manifesto Manguebeat “Começou a rolar uma agonia. Passaram dois meses e a própria imprensa começou a questionar se o programa iria mesmo ao ar”, lembra Fred Zero Quatro. O acaso, entretanto, tinha planos maiores. A MTV decidiu soltar o Drops MTV com Chico Science & Nação Zumbi, durante o dia em que teve seu maior índice de audiência naquele ano, o intervalo do show do Nirvana no Hollywood Rock, em 1993. Anos mais tarde, o produtor Miranda diria que, naquela hora, produtores de gravadoras e jornalistas começaram a ligar uns para os outros em busca de quem trabalhava com aquelas bandas. Até que a revista Bizz ligasse para seu correspondente no Recife, o jornalista José Teles, que ajudaria no retorno da informação ao Sudeste sobre quem eram aquelas figuras vestidas de chapéu de palha na televisão. “Lembro que a gente foi buscar Chico de carro para dar a entrevista
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e ele desceu todo paramentado e fantasiado. Todo mundo apontou para ele e começou a rir”, lembra Renato L. O “Ministro da Informação” ainda fez a piada: “Você vai se vestir assim no dia mais importante da sua vida?”, enquanto Fred Zero Quatro ainda retrucou: “Não vai jantar lá em casa vestido assim!”. Era o visual icônico de Science, o mesmo que hoje preenche muros e o imaginário de pessoas que nunca chegaram a vê-lo no palco, mas que compartilham de um orgulho pela cultura local, quando veem seu nome ser anunciado.
VESTE-SE O MITO
Nascia o mito Chico Science. Nos anos que se seguiram, gravadoras travavam uma batalha de bastidores, de que a banda nunca tomou conhecimento, acerca de quem assinaria o primeiro contrato. “No primeiro Abril Pro Rock, eu lembro que a Nação Zumbi chegou para passar o som e eles não tinham grana para voltar para casa e depois voltar para tocar, então trouxeram uma quentinha e ficaram por ali mesmo, comendo e esperando a hora do show”, conta o produtor do festival Paulo André. Foi o APR que trouxe a imprensa tão interessada em encontrar a Nação Zumbi – terceira atração da noite – e
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UM PASSEIO PELA CIDADE DO “MALUNGO” Siga o roteiro por lugares que fizeram parte da trajetória de Chico Science, antes e durante o sucesso da Nação Zumbi, e que estão gravados na memória afetiva de quem viveu aqueles dias.
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os empresários da Sony Music com uma “carta de intenções” na bagagem. Mas tudo ainda é bagunça, jogada ao acaso, com uma grande dose de improbabilidade. Empolgadas com a atenção que chamaram do Sudeste, as bandas organizaram algumas festas para levantar dinheiro e conseguiram passagens só de ida para São Paulo. Um amigo, membro de uma associação de albergues, descolou a hospedagem no Pico do Jaraguá, destino que fica a duas horas do centro de São Paulo em um percurso feito por metrô, trem e ônibus. Organizando a viagem com os amigos, Renato L conseguiu hospedarse na capital junto com Chico Science e Fred Zero Quatro na casa do amigo de faculdade, o jornalista Xico Sá. “Assim que chegamos a São Paulo, lembro que Chico chegou para mim e falou que o dinheiro tinha acabado”, conta Renato. Todas as economias finais foram confiadas a Otto e Bacteria, da Mundo Livre S/A, para compra de mantimentos, “mas os dois voltaram só com biscoitos de chocolate e latas de leite condensado”. Foram três shows que garantiram duas conquistas fundamentais: a passagem de ônibus de volta para casa e o contrato firmado entre Chico Science & Nação Zumbi com a Sony. “A gente entrou no estúdio para gravar o Da lama ao caos com 70% do disco pronto”, lembra Jorge Du Peixe, que foi chamado para integrar a banda pouco antes da viagem para São Paulo. “A gente não tinha recurso para mexer
7 MALUNGO Já com a indumentária de mangueboy, Chico arregimentava milhares de fãs
com samplers, então um amigo do Rio, Chico Neves, fez alguns para nós.” E, com isso, a fusão entre a Loustal e o Lamento Negro, sampleada, ganhava o formato de 14 faixas, com um encarte produzido por DJ Dolores e Hilton Lacerda, a contragosto da gravadora. A “música de Pernambuco” ganhava timbres, acordes e reverbs junto àquela indumentária do “malungo” que a cidade conheceu pela televisão. O mito ganhava sua real dimensão. Chico Science completaria 50 anos neste mês de março. É, até agora, o único artista de sua geração que, vislumbramos, terá seu nascimento comemorado daqui a 50 e, possivelmente, outros 50 anos. Quando se transformou na encarnação humana de uma ideia tão fortemente compartilhada – a da potência da música de todo o estado –, ele conquistou, também, o prestígio da imortalidade promovida pela cultura coletiva. Em 1994, o disco Da lama ao caos foi lançado e tudo que se seguiu já não pertence mais à memória de quem vivenciou aqueles acontecimentos, mas integra histórias da cidade que dão força à figura que imprime nome a ruas e preenche com sorrisos os muros e os cantos da urbe. Quando cantou que a cidade não para, mas só cresce, sem perceber, Chico acabou criando uma metáfora para si mesmo.
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ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA 4ª ETAPA DE RIO DOCE Durante a adolescência, era o lugar onde ele dançava break e, mais tarde, conheceria Jorge Du Peixe.
RÁDIO UNIVERSITÁRIA – UFPE Chico levava os discos para tocar no programa Décadas, no qual ele conheceria Mabuse, Fred Zero Quatro e Renato L.
DARUÊ MALUNGO, PEIXINHOS Centro de cultura na época – e Ponto de Cultura hoje –, foi lá que Chico Science viu os ensaios de maracatu comandados por Gilmar Bolla 8 e que acabaria incorporando na banda Lamento Negro e, consequentemente, na Nação Zumbi.
ARTE SOBRE DINGBATS DE BUGGY/TIPOS DO ACASO
RUA GUILHERME PINTO, GRAÇAS
RUA QUARENTA E OITO, ESPINHEIRO
No extinto bar Cantinho das Graças, Chico Science chegou para os amigos e falou, pela primeira vez: “Tive uma ideia, vou chamá-la de mangue”.
O primeiro apartamento de Chico após o lançamento de Da lama ao caos. Ele fazia suas reuniões e encontros sempre no restaurante chinês da rua.
ROCK XPRESS, GRAÇAS E BOA VIAGEM
RUA DA MOEDA, RECIFE ANTIGO
A loja de discos de Paulo André Pires, que se tornou o primeiro produtor de Chico Science, onde ele sempre aparecia para comprar vinis. Na metade dos anos 1990, a loja se mudou do Bairro das Graças – na galeria Graças Center – para o Bairro de Boa Viagem.
No bairro histórico acontecia o Mercado Pop – feira alternativa de produtos no local onde hoje está o Shopping Paço Alfândega –, ponto de encontro da economia criativa gerada pelo manguebeat. Lá, a efervescência cultural da cidade foi além da música e virou moda, comportamento, poesia e outras formas de expressão artística.
RUA DAS CREOULAS, GRAÇAS O apartamento de DJ Dolores era o ponto de encontro de toda movimentação que gerou o manguebeat. Trocavam-se discos, ideias e até mesmo roupas pessoais entre os amigos.
CENTRO DE CONVENÇÕES DE PERNAMBUCO, SALGADINHO Mesmo após o sucesso, boa parte dos shows da Nação Zumbi na cidade eram autoproduzidos e se concentraram quase sempre na programação do festival Abril Pro Rock. Foi no Centro de Convenções que Chico dividiu palco com nomes como Gilberto Gil.
RUA DA AURORA, BOA VISTA
CLUBE PORTUGUÊS DO RECIFE, GRAÇAS
Nesta rua, Science dividiu apartamento com Zero Quatro e, junto com Mabuse, tramou as festas Viagem ao centro do mangue.
Palco do último show de Chico Science & Nação Zumbi, no dia 27 de setembro de 1997, cinco meses antes da morte de Chico.
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MATRIZ SONORA Eles ouviam tudo, menos MPB
Amigos lembram as músicas e os gêneros que eram ouvidos e compartilhados pelos mangueboys numa era pré-internet
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Chico Science era um cara que gostava de compartilhar, apresentar e trocar música com os amigos. Parece a descrição de um típico jovem de tempos do Napster ou mesmo do Spotify, tecnologias que o músico nunca chegou a conhecer, mas que certamente teriam elevado sua vocação criativa à máxima potência. Revisitar os encontros com Chico é sempre revisitar uma memória musical. “Do Neubaten até a descoberta de que Jorge Ben não era só um cara que tocava na rádio, de Coltrane à emergente acid house, dos clássicos do punk aos discos da Tommy Boy, ouvíamos de tudo. Menos MPB. Chico me apresentou a um monte de coisa de hip-hop, tipo Kurtis Blow (Basketball era um hit do apartamento de Chico), e acho que cheguei com música africana e jazz, que eram coisas a que as pessoas não tinham
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muito acesso aqui, no Brasil e no Recife”, lembra DJ Dolores. “Chico ia pintar miséria com a internet”, diz, sorrindo, o antigo colega de apartamento, H.d. Mabuse. Du Peixe não apenas concorda, como reforça, “Não se ouve mais música como se ouvia 20 anos atrás”. Ele lembra que, junto com Chico, descobriu o drum and bass e o jungle: “A gente gostava do que ouvia e usava muito nas músicas. A gente tinha uma ideia de fazer frevo com drum and bass”. O parceiro de banda conta que cada disco que compra bota sempre para ouvir no volume máximo. “Sei que ele vai estar ouvindo em algum lugar.” Em 1995, na primeira turnê que Chico Science & Nação Zumbi fizeram na Europa, estiveram na programação do Sfinks Festival e de Les Rencontres Trans Musicales, de Rennes, em Paris. “Dividimos o palco naquele ano com Chemical
“Chico me apresentou a um monte de coisa de hip-hop. Cheguei com música africana e jazz, de pouco acesso” Dj Dolores Brothers, Morcheeba e Massive Attack. E entramos na coletânea em CD do festival”, lembra o produtor Paulo André, sobre o festival francês. “Acho que o drum and bass é um caminho pelo qual Chico teria enveredado”, conta Renato L, “com certeza iria para um lado mais eletrônico”. Se, por um lado, a ideia de “música de Pernambuco” parece seguir uma delimitação estética que soa mais regional do que em diálogo aberto com tudo que passa, os contemporâneos de Chico Science
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demonstram que ainda é forte essa busca por novos sons. Referências que possam ser sampleadas, remixadas, transformadas e incorporadas pela batida local. “De orquestras egípcias e latinas, ao rumo que a eletrônica tomou na música popular, o tempo todo me deparo com coisas que Chico gostaria de ouvir”, conta DJ Dolores. “Comprei recentemente uma leva de 80 vinis de frevo”, conta Jorge Du Peixe, ao enumerar as descobertas musicais que gostaria de compartilhar com Chico. “Eu sinto falta disso, de chamar os amigos para ouvir música, escutar bem alto, ler o encarte, conversar sobre o disco”, conta o vocalista da Nação Zumbi. O garimpo de Du Peixe, em algum momento, se encontraria com o garimpo que Mabuse gostaria de ter apresentado, “um catálogo de uma gravadora de world music, que, entre os registros, tem os barulhos de táxis em diferentes cidades”. A típica futurologia na linha do “como seria, se” não passa de um esforço ingrato nesses casos. No entanto, é difícil não ceder à curiosidade sobre o rumo que o manguebeat teria tomado, se a presença de Chico Science ainda fosse uma realidade e, principalmente, da noção de “música de Pernambuco” que ajudou a cristalizar. As referências externas estão presentes nas histórias de amigos e não é pela ausência de Chico que elas não incorporam novas produções musicais. A partir do momento em que a criação ganha uma dimensão maior do que seus criadores, falar em “música de Pernambuco” se torna um exercício que deveria acionar esse compartilhamento coletivo de referências. É de se questionar, por exemplo, o quanto do rap e do hip-hop – que eram tão próximos à gênese do manguebeat – passam longe do recorte de música local que aparece em programações musicais públicas e privadas de rádios, shows e imprensa em geral. É de se questionar até mesmo o quanto o próprio Chico Science conseguiria se enquadrar na dimensão atual dada ao recorte quase político de um gênero musical. BRUNO NOGUEIRA
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AFROCIBERDELIA Vinte anos de um clássico TEXTO Débora Nascimento
Em outubro de 2007, a Rolling Stone brasileira publicou a lista dos 100 maiores discos da música brasileira. No ranking, escolhido por 60 profissionais, entre pesquisadores, produtores e jornalistas, a Nação Zumbi aparece com seus dois títulos sob a liderança de Chico Science: Da lama ao caos (1994), em 13º, e Afrociberdelia (1996), em 18º. Para ilustrar a importância dessas posições, basta dizer que ficaram à frente de quatro clássicos do rock nacional lançados em 1986, Cabeça Dinossauro, dos Titãs, Selvagem?, dos Paralamas, Dois, do Legião Urbana, e Vivendo e não aprendendo, do Ira!. Alguns dos 10 primeiros colocados dessa lista evidenciam a linha evolutiva que pavimentara o caminho da música brasileira até o advento da CSNZ. Obras revolucionárias de outros nordestinos presentes nesse ranking, como Caetano e Gil (Tropicália, em 2º), João Gilberto (Chega de Saudade, em 4º) e Raul Seixas
(Krig-ha Bandolo!, em 12º), foram pioneiras na mistura de ritmos, recurso que se tornou símbolo da Chico Science & Nação Zumbi naquele início de carreira. Embora listas costumem provocar polêmicas, Da lama ao caos e Afrociberdelia estavam no topo da melhor safra musical brasileira dos anos 1990 e romperam com a estagnação do insípido mercado pernambucano de música. Inspiradores, os álbuns foram marcos de uma reformulação cultural, principalmente no Recife, e da imagem que a cidade tinha de si. Bandas começaram a surgir, a se transformar ou simplesmente a retornar suas atividades. Foi, na realidade, uma retomada do elo que se perdeu em 1974, quando a Ave Sangria, que encabeçava o cenário alternativo recifense, findou, devido à censura de seu primeiro disco, lançado pela Continental – somente no início dos anos 1990 gravadoras
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do Sudeste voltariam a se interessar em assinar contrato com uma banda pernambucana. Esse fim precoce surtiu um efeito negativo no ambiente musical dos anos seguintes. Apenas Alceu Valença conseguiria sobressairse ao difícil contexto, reunindo os músicos que ladeavam Marco Polo Guimarães e indo fazer carreira no Rio. A música do Recife e de Olinda passou a viver de bicos, enquanto a do interior do estado mantinha com resistência a tradição da cultura popular. Quando Chico Science & Nação Zumbi despontou, todos que, de alguma forma, trabalhavam com música começaram a se aglutinar, formando a cadeia produtiva que ainda hoje se mantém, mesmo sob muito esforço. Por isso a chegada de Da lama aos caos foi mais que bem-vinda, além de seus próprios atributos musicais – estavam ali os hits iniciais do movimento, o discurso, o estilo, o comportamento, a realidade e os sonhos de uma geração. Com produção de Liminha (baixista que integrou a melhor banda do rock nacional, Mutantes), o álbum sofreu do mesmo mal que o único de estúdio da Ave Sangria, produzido por Márcio Antonucci (ex-integrante da dupla Os Vips): não transmitiu para as gravações o peso exibido nos shows.
ACERVO PESSOAL PAULO ANDRÉ PIRES/ CORTESIA
ENCONTRO O INSUSPEITO FUTURO PRODUTOR (E AMIGO)
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1 MARACATU ATÔMICO A essa altura, o manguebeat já era um fenômeno internacional EM PARIS, 1995 2 Chico, Eysemberg Silva, Paulo André Pires e Gilmar Bolla 8 AFROCIBERDELIA 3 Capa do disco, assinada por H.d. Mabuse 3
Mas, até a pasteurização da gravação, que retirou boa parte da força das alfaias, não afetou a receptividade e representatividade do disco. Dois anos depois, chegou ao mundo seu sucessor, Afrociberdelia – menos coeso que o primeiro, mas superior em termos de produção musical e arranjos. Era um disco com qualidade técnica e artística para equiparar-se aos melhores lançamentos internacionais do ano, como Odelay (Beck), The score (Fugees) e New adventures em hi-fi (R.E.M.). No álbum, Chico Science continuava a expor seu talento para captar e explorar influências e estilos, e escrever letras bem estruturadas, diretas, fortes, incisivas, como as extraordinárias Manguetown e Cidadão do mundo. Em Afrociberdelia, o grupo investiu mais na criação coletiva, expandiu
sua sonoridade, inseriu um novo e importante instrumento, a bateria (a cargo de Pupillo), acrescentou aos arranjos outros reforços, como naipe de metais, flautas, teclados e colagens de samples. Tudo isso sob a orquestração de Eduardo BiD, produtor estreante que soube traduzir no registro o peso e o groove característicos das arrebatadoras apresentações da banda e, devido à repercussão do álbum, passou a receber mais convites para produzir discos dentro e fora do país. Afrociberdelia, que agora completa 20 anos, foi tanto a confirmação da energia criadora e agregadora de Chico Science, quanto a chave para o futuro que a Nação Zumbi conseguiria ter. Mesmo sem seu inesquecível artífice.
Várias bandas passaram pelo palco do Espaço Oásis, que alugava uma das noites para Chico e Du Peixe, Lamento Negro, Bom Tom Rádio, Loustal e, também, o primeiro show oficial de Chico Science & Nação Zumbi. “Foi a primeira vez que a gente se cruzou. Eu estava lá no camarim, pois os ingressos do show foram vendidos na minha loja Rock Xpress, que também promoveu uma tarde de autógrafos”, lembra Paulo André Pires, que mais tarde se tornaria o empresário da banda. Paulo André e Chico Science passaram a se cruzar na noite do Recife, principalmente na Galeria Joana D’Arc e na Soparia, casa noturna de Roger de Renor. Arquitetando a primeira edição do Abril Pro Rock, Paulo André ainda ouviu uma piadinha de Chico Science, quando precisou confirmar o show com a banda: “Claro velho, vamos nessa, é o Rock in Rio do Recife, né?”. A apresentação foi uma das que mais marcaram o produtor, que mais tarde indicou a banda para um show organizado pelo governo do estado para uma equipe que gravava um comercial. “Era uma megaprodução e, na época, não acontecia nada daquele porte em Pernambuco, com helicópteros, dezenas de modelos, imagens de rasante na praia.” No caminho para o show, Paulo e Chico foram no mesmo carro. “Ele virou para mim e falou: ‘Brother, eu não tô dando conta. É muita gente na banda e eu preciso de ajuda’”. A frase foi o pontapé de uma parceria que marcaria a primeira fase da banda em uma grande gravadora e com projeção nacional. O contrato com a Sony foi assinado e a gravação do disco Da lama ao caos, marcada. Paulo explica uma diferença de público no Recife do início da década de 1990. “Cerca de 98% dos jovens da cidade curtiam axé e eram frequentadores do Recifolia. Cerca de 2% escutavam outra coisa. Era uma guerra desleal”, conta. Isso fez Chico Science demorar a entender a dimensão do sucesso que fazia. “Quando voltamos da viagem de divulgação nas TVs, não faltava show para a banda. Mas, às vezes, abriam umas brechas de 15 dias sem show”, conta Paulo André. “Toda vez que tinha essas brechas de show, Chico já chegava dizendo: ‘Mermão, eu vou voltar para a Emprel’, com medo de atrasar o pagamento do aluguel.” Segundo Paulo, os desesperos só deixariam de impactar em Chico após a primeira turnê internacional. Encaixada em um festival de world music em Salvador, a banda conheceu jornalistas norte-americanos após a apresentação. Encantado com o show, após a entrevista, Sean Barlow, do site Afropop.org, entregou para a banda o guia Afropop Worldwide Listeners. “Nesse guia, tinha o endereço dos principais festivais, programas de rádio, centros culturais onde circulava a chamada world music”, conta Paulo André, que aproveitou o material e separou um kit com o disco Da lama ao caos e as matérias publicadas até então sobre a banda para cada um dos eventos listados. “Chico me ajudou a envelopar e fomos aos Correios. Mandamos em agosto e, em setembro, começamos a receber os convites para festivais.” Em junho, a banda saiu para uma viagem de 54 dias pelos EUA e quatro países da Europa. Além dos dois continentes, Da lama ao caos foi lançado no Japão e ficou em sétimo lugar na World Music Charts na Europa. A primeira turnê encerrou com a segunda já agendada, com ainda mais países. “Foi aí que ele parou de falar que queria voltar para a Emprel”, conta Paulo André. BRUNO NOGUEIRA
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Conexão 1
CROWDFUNDING O estímulo das vaquinhas virtuais
Financiamentos coletivos contribuem para injetar mais criatividade e autonomia no nicho das histórias em quadrinhos TEXTO Rodrigo Casarin
Os quadrinistas Gustavo Borges e Cris Peter estavam em busca de financiamento para Pétalas, livro que fizeram em parceria, uma delicada narrativa gráfica sobre as mudanças que o inverno provoca em uma família de raposas. Em vez de seguirem um caminho independente – isto é, bancarem tudo do próprio bolso
para depois apostarem nas vendas –, ou procurarem por uma editora, resolveram “testar uma plataforma diferente”, como conta o artista. Fariam uma vaquinha virtual para levantar a grana que bancaria os custos do projeto e recompensariam os financiadores de acordo com a quantidade de dinheiro “investida” –
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em troca, dariam desde um arquivo digital do trabalho até um pacote com 10 itens. No total, pediam R$ 5 mil para que Pétalas se concretizasse, um valor irrisório, perto do que realmente obtiveram: em 60 dias, pouco mais de R$ 53 mil estavam à disposição da dupla para que a ideia fosse adiante. No Catarse, maior site de financiamento coletivo do país – e justamente o escolhido por Cris e Borges –, os quadrinhos vêm fazendo muito sucesso. Em números de projetos, a categoria é a quinta maior da plataforma – fica atrás de música, cinema e vídeo, teatro e literatura – e, por lá, 64% das 256 iniciativas propostas por quadrinistas obtiveram êxito. Olhando somente para as cifras, entretanto, as HQs sobem ao pódio: até aqui, seus projetos arrecadaram mais de R$ 3,15 milhões, oriundos de quase 29 mil apoiadores, ficando atrás apenas do dinheiro já investido em música, cinema e vídeo.
“As plataformas de crowdfunding são uma maneira de conectar pessoas para tirar ideias do papel; nos quadrinhos, isso ocorre de maneira bastante prática e eficiente, possibilitando publicações que antes dificilmente seriam aceitas por editoras”, analisa Rafael Cruz, estrategista de campanha do Catarse. “A importância da categoria não para de crescer. Uma possível explicação para isso é a força da comunidade. Cerca de 2% dos seus apoiadores já ajudaram a financiar mais de 10 histórias em quadrinhos. Quase 25% dos membros possuem pelo menos dois projetos apoiados. É uma taxa de recorrência altíssima. É uma comunidade autorregulada, que troca informações o tempo todo e que soma esforços para continuar forte”, continua, sobre o financiamento de HQs. O estrategista lembra também que o impacto desses financiamentos já repercute em importantes eventos das HQs brasileiras. Em 2014, por exemplo, o Catarse levou o Troféu HQMix na categoria Maior Contribuição ao Quadrinho Nacional, e, em 2015, no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), ao menos 27 lançamentos tinham sido financiados pela plataforma.
COM A EDITORA
Pela experiência que teve junto a Cris, Borges acredita que o financiamento coletivo é uma ferramenta interessante, mas faz ponderações. “Existe, sim, mais liberdade, porém existe também toda a responsabilidade em cima de você. Se algo der errado, a culpa é só sua. Quanto maior for a proporção que seu projeto tomar, maior vai ser o tempo que terá de despender após a campanha, embalando, enviando e gerenciando todos os livros, e atendendo os apoiadores. Isso, sem planejamento ou ajuda, se torna o caos na Terra”, diz ele, que, além de encarar a empreitada com profissionalismo, não acredita que haja fórmula para ser bem-sucedido. No entanto, insiste que é importante tratar bem os financiadores. “Eles não estão só comprando seus quadrinhos, estão lhe dando um voto de confiança.” Outro que recorreu à vaquinha virtual foi Theo Szczepanski. Desde 2011, ele vinha produzindo A grande cruzada, que chegou às mãos dos leitores no final de 2015, após o artista arrecadar quase
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1 PÉTALAS
HQ precisava de R$ 5 mil para se concretizar e conseguiu R$ 53 mil
2 QUADRINISTAS
Gustavo e Cris são os responsáveis pelo livro financiado via Catarse
3 CATARSE
Autores têm buscado a plataforma que, só em 2015, viabilizou pelo menos 27 projetos de quadrinhos
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R$ 6.500 – a meta era R$ 4.500 – para conseguir publicá-la em parceria com a editora Devaneio, que bancou uma parte da obra. Para executar a narrativa gráfica, inspirada no episódio histórico do século 12 chamado de A cruzada das crianças, Szczepanski apostou no formato misto, após ser ignorado por algumas casas editoriais. “Não sei se é em função do volume de material que recebem ou é puro desinteresse, mas a caixa de entrada das editoras para novos autores parece ser ligada diretamente à lixeira”, critica. Ao cabo, o artista achou a experiência positiva, pela “liberdade total” que lhe propiciou. “Acredito que essa liberdade varia de acordo com a editora e o peso do nome do autor envolvido, mas, se tiver muito cerceamento, é melhor ir cortar cana, virar pedreiro, abrir uma igreja. No caso específico de material autoral, se a editora se impuser muito, é melhor que feche.” O otimismo com relação aos financiamentos coletivos não se
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restringe aos quadrinistas, mas se estende também a especialistas na arte. Sidney Gusman, jornalista e editor da Mauricio de Sousa Produções e do Universo HQ, site focado no assunto, por exemplo, explica que o recurso dá “a muita gente que está produzindo quadrinhos a chance de se autopublicar e, mais do que isso, permite ao autor perceber o tanto de trabalho que dá colocar uma edição no mercado”. Para ele, no entanto, isso não representa necessariamente uma mudança na arte, mas apenas uma forma de dar vazão às produções, o que acaba por complementar e dialogar com o trabalho feito pelas editoras. “Complementa, no sentido de publicar autores que possam chamar a atenção do próprio mercado. E dialoga, porque já há editoras publicando materiais oriundos de financiamentos coletivos”, argumenta. Já Raphael Fernandes, editor da Draco e roteirista da HQ Apagão e ditadura no ar, vê o sistema causando
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Conexão 4
mudanças. “Os financiamentos coletivos ajudaram o quadrinho nacional a ganhar mais fôlego, de uma forma bem mais democrática do que as leis de incentivo. Afinal, até mesmo um projeto maluco que nunca seria aprovado em um ProAC (Programa de Ação Cultural de São Paulo), por exemplo, pode levantar uma bolada em uma campanha bem-feita”, diz.
COMPROMISSOS
Mas nem tudo é maravilhoso no mundo da vaquinha virtual, evidentemente. Sidney Gusman lembra que muitos artistas fazem projetos que, apesar de se destacarem no aspecto gráfico, são editorialmente péssimos. “Hoje, é possível um autor produzir uma edição que, graficamente, nada deva a uma lançada por uma grande editora, dependendo do valor arrecadado, claro. Mas o lado editorial precisa acompanhar esse requinte, senão o que se vê é um produto ‘meia-boca’ embalado com papel de luxo. O que tem de HQ que saiu via financiamento coletivo com uma revisão medonha é uma grandeza.” O editor também recorda que muitos quadrinistas prometem recompensas a seus financiadores, mas depois não cumprem o acordo. “Isso queima não apenas o autor, mas muita gente simplesmente desiste de apoiar outros projetos com medo de levar calote de novo”, alerta. Szczepanski vai além e relembra que, em muitos casos, o ambiente virtual leva o artista
4 EDITOR
Sidney Gusman lembra a importância do cuidado editorial nas produções independentes
5 PARCERIA
A grande cruzada mesclou recursos de vaquinha virtual com o trabalho da editora Devaneio
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a focar mais na própria figura do que na obra em si. “Desde que a ideia de financiamento coletivo foi colocada, o que me preocupou foi esse fenômeno pós-internet de todos construírem personagens de si mesmos nesse ambiente. Redes sociais, perfis, avatares, exibicionismo, superficialidade, é uma lama na qual um processo como o Catarse está inserido – todos estamos. Quando eu era pequeno, desenhar e gostar de HQ dava tanto status quanto ter lepra; mas, hoje, não, então tem uma movimentação de pessoas posando de artistas – e essa pose frequentemente parece contar mais do que o trabalho em si. O que acho desagradável é esse clima de autopromoção, uma certa babaquice institucional que me dá vontade de vomitar. Por isso, fiz a campanha no Catarse com ênfase no trabalho. Surpreendentemente, deu certo.” As críticas do autor de A grande cruzada não se encerram aí, apesar de
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ver as ferramentas de financiamentos coletivos como uma saída, talvez a única, para muitos artistas, o que pode levar a mudanças. “As grandes editoras vão se ocupar da versão do Harry Potter pelo Paulo Coelho. Nós, a plebe, temos de nos virar. Eu não seria tão otimista quanto ao poder transformador de tais ferramentas. É um cenário mais amplo e complexo, que depende muito do público educar a si mesmo, desenvolver uma mentalidade crítica. Essa conversa de transformação e revolução eu já ouvi quando surgiu a internet, e o que temos são hordas de zumbis replicando comportamentos. E é aí que está a importância dessa ferramenta, ela é uma picareta bem pequena que pode fazer uma microscópica rachadura no muro – o que é mais do que tínhamos antes. Isso permite que pessoas como eu, que querem falar umas abobrinhas antes de morrer como mendigos, possam ser ouvidas por dois ou três pares de orelhas interessadas.”
ANDANÇAS VIRTUAIS
LITERATURA Escritores espalham poesia por 20 pontos em BH e disponibilizam todo conteúdo e novos textos para download gratuito em site leveumlivro.com.br
Os escritores Ana Elisa Ribeiro
e Bruno Brum tinham o desejo de fazer circular pelas ruas de Belo Horizonte mais poesia. Submeteram o
projeto Leve um Livro à Lei de Incentivo Municipal e conseguiram distribuir, em 20 pontos da cidade, pequenas obras, confeccionadas por eles, de
diferentes autores contemporâneos brasileiros. O projeto se estendeu e pode ser conferido no site de mesmo nome, no qual é possível baixar gratuitamente essas microantologias, que contam em média, cada uma, com 15 páginas. Na primeira temporada, em 2015, houve 24 poetas convidados, com participação de Ana Martins Marques, Chacal, Paulo Scott, entre outros. No site, além dos livros disponíveis para download, há uma pequena biografia de cada autor e informações sobre os locais de distribuição das edições físicas. Ao longo de 2016, outros 20 poetas contribuirão com novos livros, e o portal será atualizado mensalmente. Dos escritores convidados neste ano, já podem ser baixadas obras dos poetas Ademir Assunção, Adriane Garcia, Fabrício Corsaletti e Líria Porto. O primeiro volume, Um nome escrito na água, traz 10 poemas do poeta, letrista e jornalista Ademir Assunção, numa edição enxuta e bem-feita. MARINA MOURA
HORROR
MÚSICA
GÊNERO
ENSAIOS
Filmes de horror da década de 1980 listados e resenhados
Acervo de obras nacionais é organizado pelo DJ 440 e conta com mais de 900 títulos
Revista virtual trata a temática a partir de várias perspectivas
Artigos sobre arte, cultura e sociedade em formato colaborativo
www.80shorror.net
discotecanacional.com
revistageni.org
obviousmag.org
A década de 1980 foi um momento de muita produção na área do cinema de horror, com filmes de baixo orçamento e efeitos especiais trash, que tinham recentemente entrado em voga. O site organiza a produção cinematográfica do gênero com listas dos melhores filmes de horror de cada ano, além de oferecer listas temáticas com os melhores de cada categoria, tais como “horror corporal”, “filmes de halloween” ou “animais assassinos”. O site lista centenas de filmes, com várias resenhas e links para os que estão integralmente disponíveis no YouTube.
Discoteca Nacional (DNA) é um dos maiores acervos digitais de música brasileira. Tem DJ Dolores, Chico César, Radiola Serra Alta, Maria Bethânia, Otto. Desde 2008, o Discoteca Nacional já agregou mais de 900 discos de bandas e DJs de todo o país, com destaque para a produção pernambucana e para artistas da cena alternativa. O responsável pelo trabalho, que não tem fins lucrativos, é Juniani Marzani, o DJ 440, da Terça do Vinil.
Com o nome que homenageia a personagem da música de Chico Buarque, Geni e o Zeppelin, a revista aborda nas suas edições mensais a temática de gênero com diversas perspectivas, falando de cinema, educação ou de transgeneridade. Com quase 30 edições, a revista tem sessões fixas que tratam de instrumentalização de teorias, sempre apresenta uma entrevista com alguém que verse sobre o tema mensal escolhido, além de ter colunas com poemas e crônicas.
Revista eletrônica colaborativa reúne artigos de pessoas que desejam escrever sobre cultura, arte e sociedade. A marca existe desde 2003 e hoje é bastante compartilhada no Facebook, já que boa parte de suas matérias trata de cultura pop. À maneira de um blog, cada colaborador que é aceito pelos editores do site tem total liberdade sobre temática e periodicidade, tendo como chamariz o grande público que acessa o endereço diariamente.
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WIKIPEDIA/DIVUGALÇÃO
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Viagem
ARDÈCHE Para redescobrir nossa energia ancestral Réplica da Gruta de Chauvet, no Sul da França, nos leva a uma trilha pelas pinturas mais antigas do mundo, encontradas no paraíso natural da Pont D’Arc TEXTO Olívia Mindêlo
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FOTOS: PATRICK AVENTURIER/DIVULGAÇÃO
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Viagem
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Era o fim de 1994, a poucos dias
do Natal, quando três exploradores entraram pelas gargantas naturais de Ardèche, uma dessas belezas imperdíveis do Sul da França. Então, percorrendo um dos seus caminhos tortuosos em busca de cavernas, eles sentiram sopros de ar que os levariam “a uma das maiores descobertas da história da humanidade”. Espremendose por uma passagem bastante estreita, os espeleólogos Eliette Brunel, Christian Hillaire e Jean-Marie Chauvet encontraram uma gruta que, a princípio, “não parecia conter nada de especial, além de ser particularmente bonita”. No entanto, explorando mais a fundo a caverna, depararam-se com o que hoje os especialistas definem como “as mais antigas pinturas já descobertas no planeta”. Assim nos conta o cineasta Werner Herzog, na abertura do seu documentário A caverna dos sonhos esquecidos (2010) – aliás, tão imperdível quanto Ardèche, a cerca de 600 km de Paris. Localizado na região de RhôneAlpes, cuja capital é Lyon, o departamento francês pode soar
“A arte é um indício de uma espiritualidade. Desenhar era uma forma de agir sobre a realidade” Jean Clottes ainda estranho aos estrangeiros, mas é um desses lugares mais procurados pelos ecoturistas do país. Poderíamos dizer que é uma espécie de Chapada Diamantina da França, onde não se tem acesso fácil, a não ser por estrada (não há trens nem aeroportos). O “acaso” da natureza nos deu este presente: em certo tempo geológico, as águas do Rio Rhône mudaram de rumo e formaram o afluente de Ardèche. Este, por sua vez, penetrou as rochas vulcânicas da região, preencheu o vale entre os cânions (a chamada gorge, ou garganta) de um verde peculiar e esculpiu a famosa Pont D’Arc (Ponte de Arco, em alusão ao seu formato), o ícone do local e, não à toa, o nome da caverna descoberta em 1994. Sob esta
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ponte natural, o cenário se enche, a cada verão, de banhistas e aventureiros aficionados pelo caiaque, que podem ser alugados à margem do rio. Existe em Ardèche uma energia ancestral e, com ela, a sensação de que há por lá muito a se desvendar. De certo modo, não foi tão casual a descoberta da Caverne du Pont D’Arc, conhecida como a Gruta de Chauvet – em referência ao líder da expedição que a encontrou. O que aconteceu, na verdade, foi sorte, tanto para os exploradores, quanto para nós, pois, graças a um deslizamento de terra, a entrada da gruta se fechou e suas relíquias permaneceram conservadas, durante séculos, sob a escuridão e o frio da caverna. Para sermos mais exatos: durante 20 mil anos, tempo no qual, calcula-se, aconteceu o acidente natural. Mas as pinturas mais antigas do local datam de 35 mil anos, época em que se instalaram os primeiros Homines sapiens na Europa. Os cientistas afirmam, segundo vestígios locais, que eles não chegaram a habitar a caverna, mas fizeram dessa gruta seu templo, onde contribuíram,
Páginas 36-37 1 SOBRE O RIO
ont D’Arc, que dá P nome à caverna, foi feito pela natureza e é o ícone de Ardèche
Nestas páginas 2 RÉPLICA
Reconstrução da Gruta de Chauvet recebe visitantes desde abril de 2015
3 PAINEL
Feito a carvão, o mural dos cavalos é um dos destaques da caverna e também foi copiado
4 MINUCIOSO
O artista Gilles Tosello foi o responsável pela reprodução das pinturas na gruta ornada
CAROLE FRITZ/DIVULGAÇÃO
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através da criação artística, para que nos tornássemos seres capazes de interpretar e transcender a realidade. Na verdade, poderíamos chamá-los Homines spiritualis, para lembrar as palavras de Jean Clottes, especialista da arte paleolítica, conservador geral do Patrimônio na França e coordenador dos estudos da caverna após sua descoberta. “De fato, a arte é um indício de uma espiritualidade, seja lá o sentido preciso que atribuamos a ela. Desenhar era uma forma de agir sobre a realidade”, comenta
o pesquisador, em entrevista para uma edição especial sobre Ardèche da revista do jornal Le Dauphiné. Assim sendo, a região cuja história atesta mais de 500 milhões de anos de trabalho geológico, com testemunhos de passagem de dinossauros e espécies marinhas, torna-se agora não apenas rota de geólogos, biólogos, historiadores e aventureiros, mas o destino daqueles interessados em praticar um turismo cultural. Viagens assim costumam ser realmente especiais. Imagine que não está em Paris a galeria de arte mais
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antiga da França – e até que se prove o contrário, também do mundo. Ela não tem 200 nem mil anos de existência, mas cerca de 300 séculos de história. Ao longo de seus 400 m de extensão e 8.500 m² de área subterrânea, a gruta desfila, sobre as superfícies de suas formações rochosas, um conjunto de desenhos e pinturas incomuns deixados pelos povos do chamado Paleolítico Superior. São imagens e painéis rupestres que certamente teriam ouriçado os mais ousados vanguardistas do início do século 20, como Pablo Picasso, caso tivessem tido a chance de vê-los. Na verdade, são trabalhos inimagináveis, até pouco tempo, para os mais estudiosos da Pré-História e mesmo da arte – embora existam exemplares relevantes de outro povo, época e região, na Gruta de Lascaux (Montignac, França). Até 1994, Lascaux era a grande referência da arte pré-histórica na Europa. Como esta, descoberta nos anos 1940, Chauvet não está aberta à visitação do público, por razões de conservação (em 2014, a Unesco classificou a gruta como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade). Atestou-se, com a experiência de Lascaux, que o gás carbônico exalado pelos visitantes danificava as pinturas. A solução encontrada para Lascaux foi a mesma adotada para Chauvet-
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Viagem 5
Pont D’Arc: construir uma réplica da caverna e das suas obras para mostrar ao público. A Lascaux II, nome da primeira caverna a ser copiada, foi feita em 1970, com réplicas dos chamados salões dos touros e do divertículo axial. A gruta ornada da Pont D’Arc foi finalizada em abril do ano passado, em local próximo à caverna original, e está imersa em um complexo cultural com bosque, galeria de objetos pré-históricos, salão de conferência, restaurante, loja, área de atividades educativas, mirante e a gruta, uma versão compacta com 3 mil m² dos 8.500 m² da área original. O frisson hiperbólico dos franceses em torno da reconstituição de Chauvet é tão patente (ou maior) quanto a descoberta de 1994, sobretudo a partir de 2015, quando a justiça francesa recusou aos três descobridores o benefício exclusivo da divulgação das obras e a originalidade das fotos tiradas na caverna. Enquanto isso, na região de Périgord, ao sudoeste do país, já estão aprontando, para 2016, uma versão high-tech da Lascaux II, sob a alcunha de Lascaux IV. Seja lá como for, é possível afirmar, pelo menos no caso de Ardèche, que visitar um cenário magistral dentro de outro esplendorosamente natural vale, sim, cada quilômetro percorrido.
5 VESTÍGIOS
s artistas do O Paleolítico deixaram mãos em positivo e negativo
6 DETALHES
Coruja feita a dedo chama a atenção entre as figuras da gruta 6
GRUTA ORNADA
Leões, mamutes, rinocerontes, cavalos, insetos e toda sorte de animais com os quais conviveram os primeiros humanos da Europa estão no arsenal pictórico da galeria subterrânea de Pont D’Arc. Embora ainda não se saiba, ao certo, as motivações e os significados em torno da criação dessas imagens, não se trata de uma mera mimese da realidade, mesmo que seja consenso, entre cientistas, o caráter globalmente naturalista da arte paleolítica. Também fica difícil analisá-las pela perspectiva da narrativa presente no cerne da arte moderna e do nosso olhar sobre ela. Porém, sob ponto de vista formal, é preciso reconhecer que o naturalismo dos traços dos artistas de Chauvet, elaborados com carvão (a maioria) ou a dedo, não possuem a mesma simplicidade que se costuma atribuir aos desenhos rupestres mais recentes – como os datados de 6–7 mil anos descobertos no Vale do Catimbau (PE) ou na Serra da Capivara (PI), por exemplo. Para criar suas figuras, os ancestrais europeus aproveitavam as ondulações,
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os sulcos e a própria matéria da caverna, com suas protuberâncias e nuances, desenvolvendo técnicas de volume, sombra e movimento a partir disso. Também costumavam raspar as camadas das paredes para alcançar o branco do fundo. Depois disso, começavam a dar vida aos bichos que agora chegam a nós e assustam pela força e beleza, dando, às vezes, a sensação de que vão romper o silêncio milenar da caverna com seus rugidos, grunhidos, relinchos e passos ligeiros. Ao ser questionado pelo Le Monde sobre o porquê de a descoberta da gruta ter sido um choque para os pesquisadores da Pré-História, o especialista do Paleolítico Jean-Michel Geneste referiu-se não apenas à sua excepcionalidade geológica, à riqueza de seus vestígios e ao seu estado de conservação, mas ainda à importância da cor em sua composição como um todo. É uma caverna “onde o rosa e o vermelho dominam e no interior da qual foram realizados os desenhos em vermelho e preto”, diz ele. “Lá existe a evidência de um investimento intencional para colocar em cena as
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7 GRAND FINALE
Painel dos leões impressiona pela técnica de volume e movimento
obras dentro uma belíssima gruta natural. Essas obras são organizadas a partir de uma ideia de progressão, que começa pelos painéis majoritariamente vermelhos, espaçados e desconectados, para conduzir-nos em direção a grandes salas com suntuosas composições em negro”, descreve Geneste. Apesar de compacta, a nova versão de Chauvet nos conduz justamente por esse percurso e pela sensação de que estamos numa galeria de arte muito bem-pensada e adornada. OK, sejamos honestos: visitar a réplica de uma gruta está longe de ser a mesma experiência intergalática de se adentrar em uma caverna natural. Mas a vivência proposta na réplica não está tão distante assim. Sempre em grupo e mediada por um guia, a visita se dá como se estivéssemos numa trilha. Todos os espaços ficam escuros, até que uma lanterna ilumina, de forma direcionada, cada um dos desenhos. E eles vão aparecendo como se estivéssemos descobrindo-os pela primeira vez. É impossível não viajar no tempo, nem se emocionar dentro do espaço, cuja visita dura cerca de uma hora, em 10 pontos de observação. Até o cheiro, a umidade, o silêncio, as estalactites e estalagmites da caverna foram replicados. O resultado vem do casamento entre o esforço e a sensibilidade de artistas e
A descoberta de Chauvet reinventa a trajetória humana e a própria história da arte, bem antes da modernidade cenógrafos, e a tecnologia empenhada nessa reconstituição – além do investimento, é claro, de 50 milhões de euros no projeto. Entre as pinturas replicadas pelo artista e historiador do Paleolítico Gilles Tosello, quase não há representações humanas, como acontece também na gruta original – outra diferença em relação aos pré-históricos latinoamericanos. Mas há interpretações significativas dos homens e das mulheres que ali passaram: uma figura feminina com cabeça de bisão e várias palmas de mãos. Detalhe: em algumas delas, há um mindinho levemente torto; em outras, as mãos aparecem não só manchadas e carimbadas na parede, em positivo, mas também em negativo, quase como se fosse um estêncil, pois a cor vermelha cerca o formato da mão, em vez de preenchê-la. O grand finale da visita é um painel de leões em bando, feitos com carvão. Os cavalos
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em disparada são outra contemplação à parte, assim como os rinocerontes em disputa. Esta última é uma cena tão rara na arte primitiva quanto a técnica empenhada nessas pinturas. Replicar esses desenhos é, portanto, desvendar um pouco dos mistérios da criação artística em sua energia milenar. A descoberta de Chauvet ajuda a reinventar não só a trajetória humana na Terra como a própria história da arte. Não sabiam os modernistas que a pintura em movimento já havia sido estudada nos tempos da caverna. E voltar até elas, refeitas aos olhos do público contemporâneo, é mais do que uma experiência de fruição de obras numa galeria – tanto que o público não vem apresentando o mesmo perfil das exposições de arte da França, como atesta o gestor do espaço Kleber Rossillon. Visitar a gruta se mostra, de alguma forma, uma redescoberta sobre nós mesmos. E, até agora, cerca de 475 mil pessoas tiveram “a possibilidade de viver esse encontro com nosso espelho ancestral”, como já disse a jornalista Eliane Brum, para quem o contato com Chauvet deveria ser “garantido a todos, em qualquer lugar”. Para fazer uma visita virtual na gruta original, acesse: http://archeologie.culture.fr/chauvet/fr/visiter-grotte
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MODA Criações artesanais e autossustentáveis Profissionais pernambucanos desenvolvem técnicas de reaproveitamento de materiais que seriam descartados pela indústria, usando-os como matriz para a confecção de peças feitas à mão, cheias de criatividade TEXTO Carol Botelho FOTOS Daniela Nader
A moda é artesanal. Requer
desenho, modelagem, corte, costura, bordado, aplicações, pinturas… A industrialização e a falta de qualidade do produto handmade têm banalizado técnicas seculares como a renda e o crochê, mas quem conhece um bom trabalho feito à mão sabe o quanto ele vale. Que o digam a alta qualidade da renda francesa, o couro artesanal italiano, a roupa bem-cortada inglesa, a mistura de tradicionalismo com futurismo japonês. Cultuar o regionalismo e as tradições sempre rendeu frutos nas passarelas mais originais mundo afora. Só no Brasil é que ainda penamos com o complexo de colonizados e continua-se a reagir mal quando se ouve a palavra regional. Isso porque o termo foi caricaturado, apequenando trabalhos valiosos que se ocultam sob ele. Esse preconceito também recai sobre o artesão, visto muitas vezes como um coitadinho que precisa de caridade para não morrer à míngua. Não é bem assim. Alguns só precisam de um assessoramento em design para aplicar técnicas novas sem perder as raízes estéticas.
A parceria entre artesãos e designers gera resultados preciosos. Só para citar um criador conhecido nacionalmente: o estilista mineiro Ronaldo Fraga, cujo trabalho bebe na fonte do regionalismo, é originalíssimo e de vanguarda, e busca fazer associações entre moda, design e artesanato, atualizando um conhecimento cultural e regional rico e cheio de identidade. Quem sabe a moda brasileira um dia largue a mania de copiar o produto europeu, e estilistas como Fraga e outros poucos deixem de ser exceção para se tornar regra. Entre as exceções, está o estilista pernambucano Melk Z-Da envolvido no projeto Mulheres de Argila – Artesanato em Trama, desenvolvido no Alto do Moura, bairro caruaruense que reúne vários artesãos com moradia ou ateliês mantidos ali. Contradizendo a hegemonia da produção em barro – evocada sempre ao lembrar o artesanato de Caruaru –, esse trabalho é desenvolvido em tecido, mais especificamente em denim, ou o “bom e velho” jeans, uma produção que ecoa o presente econômico da região – abrigo de um polo têxtil.
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Ainda assim, essas mulheres se autodenominam “de argila”, porque a produção de potes de barro é herança da cultura indígena da região. “A argila é o que dá a liga, não quebra, é forte”, explica Marisete da Silva, gestora desse projeto de turismo, cultura e artesanato. Ela está à frente do grupo desde o início, há cinco anos, por iniciativa do Sebrae, através do Centro Pernambucano de Design (CPD), uma associação autossustentável, sem fins lucrativos, geralmente contratada por grandes empresas para desenvolver a economia com a aplicação de sustentabilidade social. A ideia do projeto partiu de uma pergunta: o que fazer com 50 milhões de metros de ourelas (aquelas pontas laterais desfiadas do tecido, que geralmente não são utilizadas) jogadas fora mensalmente pelas indústrias de confecções do Polo Agreste? O dado foi levantado pelo Instituto Tecnológico do Estado de Pernambuco (Itep), em parceria com o Sebrae, e representa um problema para o meio ambiente. “Quando eu via essas tiras de tecido, só conseguia pensar que elas serviriam
CON ESPECIAL TI NEN TE Página 42 1 CARUARU
Mulheres de Argila criam peças aproveitando as sobras do jeans
Nestas páginas 2 UNIDAS
Grupo do Agreste teve orientação de Melk Z-Da e hoje caminha sozinho
OURELAS 3 Pontas laterais do tecido costumam ser desperdiçadas pela indústria
4 RESULTADOS Trama está em bolsas e tem acabamento em overloque para para esconder o desfiado CRIATIVIDADE 5 Sobras também servem à criação de acessórios da Fulô da Terra
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para amarrar pés de galinha ou para serem estampadas com florzinhas coloridas. Tinha essa visão pequena e restrita do artesanato”, lembra Marisete. Foi aí que entrou a expertise de Melk. “Ele criou uma trama manual feita sobre uma plataforma de isopor, que alcançou um resultado genial e trouxe várias possibilidades”, conta Marisete. As tiras são trançadas formando quadrados, retângulos, triângulos retos ou na diagonal, em tamanhos variados, dependendo da dimensão da peça.
ASSESSORIAS
Sob a orientação de Melk, as mulheres fizeram três coleções. Em uma delas, o estilista desenvolveu bordados e miçangas de argila, e aplicou em sua própria coleção, apresentada na Fashion Rio, extinta semana de moda carioca. Atualmente, o estilista não está mais prestando essa consultoria, e o grupo de cerca de 20 mulheres segue o próprio caminho, quer dizer, com uma mãozinha do Sebrae e de um morador de Caruaru, o médico e arquiteto Lúcio Omena, que cedeu um espaço de sua residência para os encontros semanais do grupo (aos sábados) e para a lojinha, na frente da casa. Ele também contribui com ideias para atualizar os produtos e participa de feiras de artesanato, ajudando a divulgar o trabalho.
“Melk criou trama manual feita sobre uma plataforma de isopor que alcançou um resultado genial”
denim ganha tons de preto, vermelho, rosa, verde, amarelo… Quando as fábricas descartam brim de outras cores, é mais uma oportunidade para os acessórios fugirem do azulado do jeans, ou se misturarem com tons diferentes. No que diz respeito ao design, não é o conjunto das associadas do Mulheres de Argila que desenvolvem Marisete da Silva todas as etapas dos produtos. Algumas É na casa de Lúcio que elas criam – a apenas executam o que outras, como partir dessa trama manual – produtos a administradora Nevinha Souza, sustentáveis e com design, como mochilas, idealizam. Integrante do grupo desde malas de viagem, porta- tablets, colares, o seu começo e atraída pelo desejo bolsas-carteiro, mantas, almofadas. de trabalhar com moda, Nevinha “Nesse polo têxtil, é difícil encontrar atualmente ministra a sua primeira costureira de ateliê que saiba fazer uma capacitação. É ela a responsável pelo peça inteira. Por aqui, a mão de obra é controle de qualidade e provocadora para a costura industrial. As capacitações das discussões estéticas. É dela, por são sempre voltadas para o básico, para exemplo, a bela saia que está na acessórios de moda. Modelagem é nosso abertura desta reportagem. “Quando grande entrave”, ressalva Marisete. fizemos a saia, percebemos que ficou O desfiadinho típico da lateral pesada, que não é muito prática para o do tecido, chamada de ourela, dá dia a dia. Mas estamos desenvolvendo o toque rústico à peça pronta. No ideias de como aplicar o tecido em início, houve resistência por parte detalhes de roupas”, comenta. dos clientes, que viam aquele toque Também é ela quem pensa a de rusticidade como algo inacabado, cartela de cores, sempre vibrante, velho, sem valor. No entanto, esse não para manter-se afinada com o é o perfil do cliente atual da marca, que popular e artesanal que trazem como enxerga a preciosidade de cada detalhe característica, independentemente artesanal. E, quando elas querem variar de tendências de moda. o acabamento, aplicam uma linha de O começo, ela conta, não foi fácil. overloque, escondendo o desfiado. O As próprias artesãs não valorizavam
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“Carnaval é festa do povo. Quem quiser brincar carnaval que desça dos seus pedestais e venha” Ze Kéti
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o trabalho. Para que as peças não encarecessem, preferiam fazer porta-níqueis a mantas e mochilas grandes, contanto que vendessem em quantidade. “Mas não dava para desenvolver muito a nossa trama em um pedaço de tecido tão pequeno e fomos percebendo que estávamos desvalorizando nosso trabalho”, recorda Nevinha. Com o tempo, compreenderam que um artigo artesanal bem-feito tem o preço que merece. “Agora, vendemos para todo o Brasil e participamos de várias feiras, como a Fenearte.” Em outubro de 2015, elas foram convidadas para participar do projeto In-Mod, uma parceria do Sebrae com a São Paulo Fashion Week, que expõe projetos de inovação em design.
ACABAMENTOS
Perto de Caruaru, em Riacho das Almas, a associação Fulô da Terra, idealizada por Adjane Souza, conta com cinco mulheres – entre elas, Verônica Ferreira, Joselma Silva e Cleida Silva – para reutilizar as toneladas de ourelas que parariam no lixo, se não fosse a criatividade e a força de trabalho delas. “Aquelas ourelas caídas aos montes pelo chão me lembravam o cipó, matériaprima comum na cidade”, relata Adjane. O pequeno município é o terceiro no ranking de quantidade de lavanderias de jeans da região e o sétimo no Polo de Confecções – para Adjane, deveria estar em quarto, não fosse pela informalidade. Ações como as da Fulô da Terra e da Mulheres de Argila ainda são poucas, diante de tantos resíduos, muitos
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descartados de maneira irregular, pois se trata de lixo industrial. Para chegar ao tecido, não foi fácil. Adjane conta que passou 14 anos pesquisando, entre madrugadas em claro, quebrando a cabeça, até chegar à ideia de costurar uma tira sobreposta à outra, resultando em uma textura quase que de pelúcia, graças ao desfiado natural das tiras. Para o tecido não se desfazer, costura-se o acabamento em overloque. Descoberto o tecido, Adjane saiu em busca da sua comercialização. Esbarrou na qualidade. “Pernambuco tem variedade no artesanato, mas não capricha no produto final”, critica. “O Polo Agreste dá mais valor ao produto industrializado, acha o artesanal caro e demorado demais para produzir. Há fábricas que criam a mesma peça de roupa, com a mesma modelagem há 20 anos, e o pior é que vende muito!” Atualmente, ela comercializa o tecido para as fábricas do Sul, para a produção de tênis, e está com a empresa incubada no Marco Pernambucano da Moda, no Recife, para receber aulas de design e agregar valor ao produto. Criado pelo Núcleo Gestor da Cadeia Têxtil e de Confecções em Pernambuco (NTCPE), o Marco Pernambucano da Moda, que funciona em um prédio no Bairro do Recife, é uma escola de formação de estilistas e designers de moda voltada à profissionalização da criação e ao empreendedorismo. Além do tecido, Adjane também fez bolsas para a marca pernambucana Lixiki, colares e detalhes de roupas,
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buscando deixar as peças o mais sustentável possível. “Nada de brilho nem metal, para não gerar outros resíduos”, pontua. Ao todo, sua produção chega a 200 metros de tecido por mês. “Tenho aprendido muito com o pessoal do Marco Pernambucano da Moda. Uma vez, o estilista Walter Rodrigues esteve lá ministrando uma palestra e, quando viu meu tecido, falou: ‘É fácil de fazer, mas ninguém tinha pensado nisso antes’”, conta a artesã.
MARISQUEIRAS
Saindo do interior para o litoral, a Continente foi conhecer o grupo Quilombolas de São Lourenço, uma associação de marisqueiras situada no município de Goiana, a 70 km do Recife. Elas criam acessórios a partir da casca dos mariscos catados na Praia de Carne de Vaca. A pesca do marisco é feita geralmente na maré seca e no verão, quando as águas estão mais claras e fica mais fácil de desenterrar a concha. No inverno, tem mais lama, é mais difícil, mas não impossível. Mesmo sem tradição no artesanato, as marisqueiras foram procuradas em 2011 pelo Imaginário Pernambucano, um projeto desenvolvido pela Universidade Federal de Pernambuco, através do designer Ticiano Arraes. O projeto tinha o objetivo de trabalhar o design em comunidades artesãs para orientar o desenvolvimento do produto nessa perspectiva. “Foi bastante desafiador, porque nenhuma
6 LITORAL Em Goiana, grupo desenvolve seus acessórios com casca de marisco MULHERES 7 Assinatura é das artesãs do Quilombolas de São Lourenço
8-9 NO RECIFE Artesãs descobriram a utilidade do couro de peixe e o material foi parar em peças arrojadas das passarelas 7
das 20 marisqueiras tinha experiência com artesanato. Mas o marisco está encravado no dia a dia delas, no cardápio, nas paredes, no chão, nas montanhas de mariscos nas ruas”, recorda Ticiano. Elas aprenderam a selecionar os búzios por cor da linha e a combinar cores, pesquisando técnicas de torcer tecido. “Tentamos fazer o mais original, natural e artesanal possível. Não seguimos tendência, não passamos verniz nas conchas. É tudo sem brilho.” No começo, eram 20 mulheres. Mas, depois que o dinheiro da primeira fase do projeto acabou, muitas foram se afastando. As mais entusiasmadas ficaram e, com elas, Ticiano foi conseguindo aprovar outros projetos, inclusive no Funcultura. Atualmente, são cinco: Cecília Gouveia, Iara Cardoso, Conceição da Cruz, Lenita Alves e Rosa Maria. No dia em que a reportagem esteve em Ponta de
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Pedra, três delas nos receberam. Fomos, então, conhecer o lugar, e Ticiano estava certo: fachadas são decoradas com mariscos e conchinhas cobrem o chão. Mas Conceição da Cruz adverte: “Quem é nativo e se criou no marisco não quer nem saber dele. Nem mesmo de comer”. O público que consome os colares, as pulseiras, os cintos e as faixas de cabelo feitos com delicadas linhas de crochê, veludo e tricô – em cores vivas, muitas vezes remetendo a redes de pesca, adornadas por conchas e búzios, outras, a corais vivos – vem de fora: são veranistas, turistas, visitantes de outras paragens. O artesanato complementa a renda das Quilombolas de São Lourenço. E a maior vitrine delas é a Fenearte, que só acontece uma vez por ano (julho), no Recife. Em 2015, finalmente, as Quilombolas conseguiram estande próprio dentro da feira pernambucana
e participaram do desfile. Antes, ficavam acanhadas, em espaços coletivos, com pequeno destaque. “Como não vendemos muito, não temos condições de ir a outras feiras. Conseguimos apoio do Sebrae, da prefeitura, mas ainda é pouco”, diz Cecília Gouveia. Para ficarem mais próximas do públicoalvo, elas pretendem montar um e-commerce, assim que tiverem condições financeiras.
COURO DE PEIXE
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Apoio financeiro foi o que faltou para que o Centro Escola Mangue pudesse dar continuidade a um trabalho iniciado há cerca de oito anos, em Brasília Teimosa, bairro popular da zona sul recifense. O couro de peixe, outra matéria-prima usada antes somente para o descarte, pode “virar ouro” nas mãos de quem tem criatividade, conhecimentos de design e técnica para curtir o couro, que não é mole, não. “Em um primeiro momento, começamos a curtir o couro de peixe com sal e casca de mato. Mas o resultado não foi satisfatório. O material ficava duro demais”, recorda Luciana Maria da Silva, coordenadora da associação. Em seguida, elas conseguiram várias capacitações e começaram a curtir o material com amaciante e óleo mineral. “Passamos o couro de tilápia e de pescada amarela na máquina de lavar para ficar mais maleável”, conta Taciana Melo. Ainda assim, não dava para fazer bolsas e sapatos, que era o que elas queriam. Foi quando surgiu a oportunidade de participar de uma capacitação oferecida pela AD/Diper, em 2009, através da grife
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de moda praia Movimento. Comandada pela estilista e proprietária Tininha da Fonte, a marca ensinou o grupo de Brasília Teimosa a criar biquínis e colocar o couro de tilápia no detalhe das peças, já que o material era duro demais para ser trabalhado na modelagem. O maquinário foi cedido pela grife e as peças desfilaram na São Paulo Fashion Week, evento de moda mais importante do país. “Prestei uma consultoria de seis meses. Ensinei a fazer biquíni do começo. Elas ficaram empolgadíssimas. Foi muito legal. O trabalho foi bem-divulgado, saiu em revistas e o couro agregou valor ao produto. Pena que não houve continuidade”, lembra Tininha. Procurada pela revista, a AD/ Diper conta que fomenta projetos para que depois se desenvolvam sozinhos. Sem maquinário, não deu para continuar o trabalho e o grupo teve que fazer uma longa parada. Agora, está voltando a produzir, mas quer investir em joias. Para isso, as artesãs estão incubadas no Marco Pernambucano da Moda e já têm presença garantida na edição 2016 da Fenearte. Desdobrando-se, contudo, para aprimorar qualidade e apresentação – e ainda buscar um método mais eficaz de amaciar o couro. “Estamos trazendo um pessoal da Paraíba para nos ensinar uma técnica de curtimento. Conseguimos doação de couro de atum, mas as empresas de pescado já estão começando a cobrar pelo couro, que antes era jogado fora”, conta Luciana Maria da Silva, que também pretende voltar a se dedicar aos biquínis, assim que tiver apoio para conseguir o maquinário.
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PRODUÇÃO O desafio é a continuidade
DANIELA NADER
Artesãs e associações buscam formas de sobreviver a adversidades, como a falta de recursos e a ausência de projetos duradouros de capacitação profissional
Além das artesãs que produzem
de modo autônomo, há grupos que prestam serviços periódicos a grifes como a Refazenda, de Magna Coeli. A marca pernambucana, há 25 anos no mercado, tem como princípio a parceria entre moda e artesanato. A estilista trabalha com associações em cidades como Orobó, Pesqueira e Poção, em Pernambuco, afora outros estados, como Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe. Também mantém parceria com a Associação do Artesanato Pernambucano (Associape), com sede no Bairro do Cordeiro, no Recife. Magna traz as rendas irlandesas, renascença, frivolité, de bilro, além do filé, do labirinto e do crochê, e insere as técnicas tradicionais em modelagem e cartela de cores contemporâneas, atualizando o regionalismo e agregando valor à peça. “A proposta da marca é fazer um trabalho de rejuvenescimento da renda, aplicada em t-shirts e peças com modelagens atuais. Quando falamos em crochê, muita gente pensa em porta-papel higiênico, paninho de bujão de água. É justamente a desconstrução dessa ideia o que eu faço, quando
acrescento o artesanato à roupa”, diz Magna, assistente social de formação. Se, de um lado, existe a dificuldade da associação em sobreviver depois que o apoio vai embora, e é preciso caminhar com as próprias pernas, do outro, há a preocupação do lojista em encontrar um fornecedor artesão que tenha compromisso com a qualidade e a pontualidade. “A renda renascença de Poção e Pesqueira oscila muito. Vai do sofrível até o nível da alta-costura. Existe um desrespeito entre as próprias rendeiras, que ficam sabotando umas às outras, o que acaba por fazer com que o valor de mercado caia”, explica Magna. No seu acervo, ela guarda uma preciosidade: a renda irlandesa, que nunca mais utilizou em coleções, por conta da logística. Ela vem lá do município de Divina Pastora, em Sergipe, a 479 km da capital pernambucana. Trata-se de uma renda de agulha que tem como destaque o lacê, um cordão brilhoso que forma desenhos sinuosos, deixando espaços vazios que podem ser bordados. “É muito cara e demora muito para ficar pronta”, lamenta Magna, que,
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por enquanto, não pretende reeditar coleções com a renda. Em busca de constante renovação, a estilista prefere afastar-se temporariamente de uma associação ou de uma matéria-prima, quando percebe que a técnica não está se renovando. Foi o caso do filé de Alagoas. “O frivolité também não conseguiu sair de suas limitações, ainda assim continuo utilizando, embora seja frágil e difícil de trabalhar. O manuseio e o uso desses materiais depende também da informação do consumidor. Colocar um detalhe em frivolité em um vestido de casamento não tem problema, porque as pessoas vão ter cuidado. O mesmo, no entanto, não acontece com uma roupa do dia a dia”, compara Magna, que prefere usar os detalhes em echarpes, colares e tiaras. Já o crochê, quem lhe fornece é Graça Albuquerque, presidente da Associape, cuja sede funciona em
1 DETALHE Na sua marca, a estilista Magda Coeli aplica elementos artesanais que adquire de profissionais de diferentes regiões e técnicas
sua casa, no Cordeiro. Formada em Ciências Econômicas, Graça ficou desempregada em 2000 e começou a criar, por conta própria, peças em crochê, atividade manual que aprendeu na infância, nos tempos em que estudou em colégio de freira. “Costumo dizer que me tornei artesã por um acidente de percurso”, brinca. Naquela época, viu com vantagens o trabalho informal, que lhe deu flexibilidade de horário para cuidar do filho pequeno. Mas viver na informalidade tem suas dificuldades. Ainda mais para quem é artesão. “O público não valoriza, acha caro. Em feirinhas de rua, não consigo alcançar a mesma clientela de Magna. Para mim, esse contato com o lojista é o ideal”, comenta Graça. São raras as feiras de design que exibem de maneira correta o trabalho artesanal, que não seja em um estande acanhado, filantrópico. É preciso que haja a decodificação e a contextualização
A grife Refazenda tem um papel importante na manutenção e na comercialização de artefatos manuais como a renda para o mercado atual e o público-alvo. É aí que entram as capacitações, de grande importância, apesar do curto período de que costumam dispor. Para Melk Z-Da, que já ministrou capacitações em Rio Formoso, Porto de Galinhas, Morro da Conceição e Fernando de Noronha, o maior problema é a continuidade dos projetos. Geralmente, esses trabalhos são oferecidos por entidades governamentais e costumam durar cerca de seis meses, o que é pouco tempo para ensinar uma técnica,
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criar um produto, pensar no design, na forma de comercialização, estudar o mercado, o público-alvo e tornar o negócio autossustentável. “Também depende muito da força de vontade dos artesãos envolvidos, de correr atrás das oportunidades e não deixar tudo a cargo da iniciativa das instituições de apoio”, recomenda o estilista. Magna acredita que todos os programas de capacitação ligados ao artesanato deveriam ser permanentes, e não sazonais. “O ideal seria um programa sequenciado para o artesão perceber se ele se encaixaria como um colaborador ou um protagonista. É possível ver claramente que existem esses dois perfis”, avalia a empresária, que já ministrou diversas oficinas. Nenhuma das integrantes das associações que visitamos vive somente da remuneração daquilo que é produzido. Muitas ainda não conseguem caminhar sozinhas, inovar por conta própria, fazer pesquisas. “O processo é lento, até que se consiga dar solidez ao desenvolvimento do produto. É lamentável que não consigamos criar uma condição de continuidade. Um grupo de artesanato precisa de um suporte de designer, assim como uma grande empresa conta permanentemente com um departamento de design”, compara Ticiano Arraes. Para ele, um programa deveria durar dois anos, para que houvesse tempo hábil de vivenciar o processo de produção, criação, comercialização, comunicação de mercado e formação de preço. A superintendente do Centro Pernambucano de Design (CPD), Luciene Torres, avalia que falta instrução: “A maioria não sabe sequer escrever, falar. Não é questão de educação, mas de filtrar certas informações. Portanto, seria preciso ir além do design. Há comunidades, por exemplo, com dificuldade de acesso à água. Há homens que não gostam do sucesso da mulher no trabalho. É preciso trabalhar a autoestima, a inovação, acreditar que é possível fazer algo novo”. CAROL BOTELHO
ALEXANDRE KISMIMOTO/ ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE CACHUERA
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Tradição
SUDESTE Batuques de terreiro 1
Comunidades de São Paulo e do Rio de Janeiro preservam formas de expressão em música e dança herdadas dos negros escravizados, apesar da longa história de perseguição TEXTO Guilherme Novelli
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1 FOGUEIRA O fogo representa o elo com a ancestralidade do grupo
dos tambores feitos de troncos de árvore escavados com couro em um dos lados, deitados no chão, na terra, e montados, “cavalgados” por um tocador. São manifestações recônditas, recolhidas, proibidas pelas autoridades paroquiais e policiais durante a colônia e condenadas pelas mesmas autoridades até os dias de hoje. Compreendem manifestações como o batuque de umbigada, do interior de São Paulo, o jongo do Sudeste, da antiga rota do ouro do Vale do Paraíba, também em São Paulo, e o tambor de crioula, do Maranhão. No batuque de umbigada, aparecem dois tambores: o tambu, maior, comprido, e o quinjengue, menor, mais afinado, que vai encaixado no tambu. Acompanham-nos a matraca e o guaiá, espécie de chocalho. No jongo, também aparecem dois tambores, o tambu e o candongueiro. Já no tambor de crioula, são três tambores: tambu, chamado por lá de tambor grande, o meião e o crivador, acompanhados também pela matraca.
UMBIGADA
A palavra batuque é usada na língua portuguesa para designar batidas de percussão, assim como um evento cultural em torno de um tambor. O termo apareceu com a presença do negro escravizado em Portugal, antes do descobrimento do Brasil. Batuques de negros é uma expressão que percorreu o Brasil colônia e as outras colônias portuguesas. Existe um grupo de expressões de batuque com dança, rituais e música que são semelhantes do ponto de vista do uso dos instrumentos,
A umbigada é um movimento coreográfico das danças de batuque em que se encosta o umbigo, o ventre, um no outro, em dupla. “Alguns antropólogos dizem que, provavelmente, a umbigada surgiu como parte de um ritual de fertilidade, em tempos muito remotos, um ensinamento simbólico para quando os jovens chegassem à idade adulta, um ensinamento da própria prática sexual”, explica Alberto Ikeda, pesquisador e professor de Etnomusicologia da Unesp. Esse ritual teria surgido na África profunda, antes do cristianismo, como um rito de iniciação. O batuque de umbigada de São Paulo tem uma especificidade. É o único que manteve até hoje a umbigada entre homem e mulher. “As outras umbigadas brasileiras não são entre homens e mulheres, a não ser no coco, mas no coco ela não se realiza, é uma menção de umbigada. No batuque paulista, a senhora te dá uma umbigada bem forte”, conta André Bueno, professor de Etnolinguística da USP e um dos pesquisadores responsáveis pela produção do livro Batuque de umbigada, recentemente lançado pela Associação Cultural Cachuera!, com
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patrocínio do Ministério da Cultura e da Petrobras e produzido em coautoria com as comunidades dos batuques de Tietê, Piracicaba e Capivari. O livro pode ser adquirido pelo site www.cachuera. org.br, a R$ 50. O valor das vendas é doado para essas comunidades. “Esse batuque era apoiado por patrões, ainda na escravidão, porque consideravam que ajudava a aumentar o plantel de escravos. As negras engravidavam com os namoros gerados na dança”, continua. Por simbolizar que a barriga da mulher é o aparelho de gerar um ser humano, era uma dança que, antigamente, estava presente também nos casamentos, noivados, quando as senhoras davam umbigada na noiva. O sentido também é de convite ou troca energética, como no tambor de crioula do Maranhão, no qual a umbigada se dá entre duas mulheres, uma convidando a outra para entrar no centro da roda e mostrar sua destreza. “O umbigo seria o centro da essência da vida, da alimentação, por onde você troca as energias”, descreve Alberto Ikeda.
JONGO
O jongueiro chama o Tatu, à meia-noite, que traz cachaça na corcunda. Joga a bengala no chão, que vira cobra. Lança o chapéu para o alto, que vira águia, que come a cobra. As histórias do jongo são um tanto enigmáticas. Quando o jongueiro fala de papai e mamãe, na verdade refere-se ao tambu e ao candongueiro. “Li muitos folcloristas que citavam o jongo como uma tradição misteriosa do Vale do Paraíba, uma espécie de ritual não propriamente religioso, mas uma mitologia muito rica; por exemplo a história da bananeira, que cresce no terreiro graças às palavras mágicas que os jongueiros proferem. Pela manhã, após a festa, já tem banana madura pra todo mundo comer”, conta o etnomusicólogo Paulo Dias, presidente da Associação Cultural Cachuera!. Um diálogo cantado. Versos curtos com significados múltiplos, como uma espécie de haicai, chamados de pontos de jongo. Sempre há uma fogueira no meio do terreiro, pois o fogo representa e garante o elo com a ancestralidade do grupo. O batuque acompanha os cânticos. As
ALEXANDRE KISMIMOTO/ ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE CACHUERA
Tradição
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danças acontecem no centro da roda. Todos os que vão participar colocam a mão no tambu, fazem o sinal da cruz e colocam a mão no chão. No formato antigo, até os anos 1960, mulheres e crianças não podiam entrar na festa. Não havia dança. A celebração era como uma disputa, com uma categoria de ponto chamada goromenta. Um jogava o ponto no outro, tentando derrubar o seu prestígio como jongueiro. “Eu vou jogar um ponto bem enigmático e você vai ter de decifrálo, mostrando ser conhecedor do repertório oculto, metafórico e literário do jongo. Se você topar a parada de jongar comigo e não conseguir desatar o ponto, pode ser que te aconteça alguma coisa, porque esse ponto tem a força de te amarrar”, conta Paulo Dias. Reza a lenda que quando um caboclo era amarrado pelo ponto do outro ficava paralisado, sem ação. Hoje em dia, o Jongo do Tamandaré, em Guaratinguetá, no interior paulista, por exemplo, é celebrado nas festas juninas de Santo Antônio, São João, São Pedro e em algumas outras datas especiais. É uma tradição que ainda
As danças de batuque de negros sempre foram condenadas, execradas e perseguidadas pelas autoridades tem muita vitalidade, reúne vários participantes. Existem, atualmente, outros tipos de pontos de jongo. Goromenta está em desuso. As mulheres entraram na roda. Muitas vezes a mulher, na família negra dessa região, é a mantenedora da casa, cuida dos filhos e dos netos. Então, assume a guarda da tradição cultural. Jovens e crianças também entraram na brincadeira: “Chegou um jovem, na época tinha uns 30 e poucos anos, bem jovem para a idade média do jongueiro, cantando um ponto assim: ‘Deixa cantar o bem-te-vi! O bem-te-vi canta cedinho e a tarde toda quem canta é a juriti!’. Você achou que ele estava falando de passarinhos, mas não estava. ‘Deixe os jovens também cantarem na
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roda!’. O bem-te-vi é o pássaro jovem, do amanhecer, e a juriti é o pássaro do entardecer, que canta quando a noite está caindo. É a metáfora do velho e do novo”, explica André Bueno. No batuque de umbigada, também se usa a palavra para dar sentidos duplos, mas é diferente do jongo, porque não há um vínculo tão estreito com a ancestralidade, apesar de vários versos no Batuque reverenciarem os ancestrais. A dança do batuque é uma brincadeira. Seus versos cantados são chamados de modas. “Basicamente, as modas falam sobre o amor de uma maneira desapegada, própria da classe social que brinca no batuque, desapegada como quem não tem herança para carregar nas costas”, detalha o professor.
PROIBIÇÃO
As danças de batuque de negros sempre foram condenadas, execradas pelas autoridades. Já os antigos viajantes europeus descreviam os batuques e a forma de dançar da umbigada, com o movimento das ancas, como lascívia. “O que é
ANAHÍ SANTOS/ ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE CACHUERA
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SATTVA ORASI/ASSOCIAÇÃO CULTURAL DE CACHUERA
2 UMBIGADA Dança é veículo para a troca de energia 3-4 TAMBOR DE CRIOULA
valor gregário O da expressão cultural é mantido nas festas associativas
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fundamental nessas expressões é o seu caráter gregário, das pessoas se juntarem periodicamente depois de um dia de trabalho com os companheiros. Essa energia para trocar a experiência do dia, falar dos problemas”, diz o pesquisador Alberto Ikeda. As comunidades de batuque procuram reivindicar, através da resistência, o lugar social de praticar suas tradições. “Um povo que foi durante muito tempo escravizado procura manter sua brincadeira dançante como fator de coesão, em
que trocam mensagens internas do confronto com o externo. Eles têm maneiras de produzir cantos que são compreensíveis em duas camadas. O branco visitante entende somente o sentido literal”, descreve André Bueno. Como forma de driblar essa censura, muitas comunidades, a exemplo do tambor de crioula do Maranhão, passaram a cultuar os santos católicos em vez das antigas entidades africanas, com culto proibido no período da colônia. “Por proximidade, eles preferiram cultuar
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São Benedito, um santo negro do século 16. Embora tenha nascido no sul da Itália, era filho de escravos etíopes. A própria igreja, na evangelização, acabou sugerindo santos negros aos escravos”, conta Alberto. O jongo talvez seja o batuque mais perseguido da história da cultura popular brasileira. “Na primeira vez em que estive numa roda de jongo, tive a sensação de que eles estavam falando de mim, num diálogo plasmado por trás da música, numa linguagem metafórica que não conseguia compreender o significado, mas que não eram simplesmente melodias ao vento; havia um encadeamento lógico e uma transitividade de temas naquele jogo”, narra Paulo Dias. O ritual antigo era baseado nessa poética de metáforas, uma linguagem que permitia, numa época de escravidão, que se veiculassem as novidades, o cotidiano, as problemáticas sociais, fazendo circular as mensagens desapercebidamente pelo feitor, o fazendeiro e a polícia. Articulavam-se, inclusive, fugas. Se citassem uma árvore, estavam se referindo ao fazendeiro. Se falassem de um marinheiro, estavam se referindo a um jongueiro. Existia todo um código críptico que se difundiu na comunidade cativa do Vale do Paraíba, estendendo-se para os outros estados do Sudeste. Na escravidão rural, o indivíduo não tinha mobilidade, ficando preso na fazenda. Os únicos com mobilidade eram o carreiro e o tropeiro, também escravos, que circulavam entre as fazendas. “Curiosamente, uma grande parte da metáfora jongueira diz respeito ao carro de boi. Cada peça do carro de boi tem um sentido oculto. O jongo provocava temor, porque as autoridades tinham essa mesma impressão que tive na primeira vez: é uma forma de comunicação bastante articulada”, diz o etnomusicólogo. Existe um ponto bem antigo que diz: “Vovó não quer casca de coco no terreiro, me faz lembrar dos tempos do cativeiro”. Casca de coco, na linguagem jongueira, é o sujeito de fora, que nunca apareceu no terreiro e só observa. Antigamente, era o feitor; hoje pode ser um policial, na longa relação histórica de sujeição do negro.
CURATIVOS A força do alimento é prevenir, não remediar
Pensamento que associa saúde à doença tem sido contestado pela percepção da urgência da alimentação agroecológica para o bom funcionamento do corpo TEXTO Victória Ayres
Cardápio
A ideia de cura no pensamento ocidental está quase sempre atrelada à de doença, ou a qualquer condição maléfica que precisa ser sanada. A conceituação do que seria uma alimentação curativa, ou o que são alimentos curativos, pode partir de uma visão equivocada sobre a comida, com a crença de que certos ingredientes ou pratos poderiam ter uma função objetiva e que sua ação no corpo se assemelharia a algum remédio sintético. Porém, uma alimentação curativa não é muito diferente do que se considera uma alimentação saudável e balanceada. As substâncias naturais presentes nos alimentos ingeridos com propósitos medicinais, em sua maioria, não vão por si só combater as enfermidades presentes no organismo, mas auxiliar os processos fisiológicos do próprio corpo, que, estes, sim, combaterão a doença presente – ou a que viria.
A alimentação voltada para a cura tem suas raízes nos saberes populares, ou como diz o médico Celerino Carriconde, do Centro Nordestino de Medicina Popular (CNMP), nas pesquisas empíricas do povo. “Temos que mudar a forma como a medicina enxerga as doenças. O povo sabe pesquisar a partir da observação, há um empirismo popular, as pessoas descobriam que tipo de planta poderia servir para sanar certas doenças vendo como os animais doentes se comportavam e que alimentos eles buscavam”, explica. Em Conceição das Creoulas, uma comunidade quilombola perto de Salgueiro, no sertão pernambucano, as pessoas recorrem a saberes populares para combater alguns males do corpo. Partes da árvore chamada embira (da família das timeleáceas), por exemplo, é usada para aliviar os sintomas do crescimento de dentes
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em bebês. “Utilizamos a raiz da embira para fazer um chá e damos para o bebê; o chá ajuda também se ele estiver com diarreia”, explica a artesã Maria de Lourdes. Uma visão demasiadamente tecnicista da saúde – em que o paciente delega ao médico o poder absoluto sobre seu corpo, e uma eventual doença – fez com que a população fosse paulatinamente buscando produtos industriais, tanto para se alimentar quanto para se restaurar e se recuperar, quando
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necessário. Na contramão disso, Celerino Carriconde defende que comidas naturais e orgânicas devem ser consumidas. Ao mesmo tempo em que alimentam adequadamente o organismo, suprem a necessidade de muitos remédios sintéticos. A própria alimentação contemporânea é vista como fonte de doenças: o consumo excessivo de produtos refinados, embutidos e oriundos da agricultura extensiva danifica o funcionamento do corpo. Os alimentos agroecológicos são
vistos como uma alternativa aos produtos industrializados e pobres em nutrientes, pois, na agroecologia, o cultivo das plantas é feito de forma que o próprio ecossistema da plantação se regule, deixando que o solo fique sempre rico em minerais e as verduras, os legumes e frutos estejam carregados de nutrientes. Seguindo essa lógica, muitas culinárias tradicionais buscam consumir o mínimo de alimentos não orgânicos, a exemplo do povo xucuru. Para eles, a alimentação faz
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parte de todo um processo holístico de respeito e harmonia com a natureza, portanto, os xucurus evitam consumir alimentos que foram produzidos de forma não agroecológica. “Muitos dos pratos que fazemos têm um propósito curativo e também espiritual, usamos vários deles em rituais sagrados. Há alimentos que têm atividade mais funcional, por exemplo, o café de guandu, que é usado por nós para ajudar com as diabetes”, explica Iran Xucuru, agrônomo e agricultor da
TECNOLOGIA SOCIAL PAIS/ DIVULGAÇÃO
Cardápio 1
SUCO VERDE Pela manhã, a capacidade de absorção do organismo está mais alta. Logo, é importante atentar para os primeiros alimentos do dia. O suco verde é uma bebida que ajuda a balancear o pH do estômago e supre o corpo com diversas vitaminas. Outros vegetais podem ser acrescentados à receita, seguindo a proporção de 3 partes de vegetais para 1 parte de fruta; e, para dar um gosto adocicado sem fazer uso de açúcar, é possível usar um pouco de cenoura. É importante que se coe bem o suco para que as fibras das plantas não dificultem a rápida absorção dos nutrientes. Ingredientes: – 1 pepino – 4 folhas de couve – suco de 1 limão – 1 maçã –1 pedacinho de gengibre Modo de preparo: Bata o pepino, a maçã, o suco de limão e o gengibre no liquidificador com pouca água, o suficiente para que o aparelho funcione sem problemas. Depois de obter um líquido homogêneo, acrescente as folhas de couve picadas com mais água. Quando os ingredientes estiverem bem-batidos, coe bem o suco, de preferência com um pano limpo ou com um tecido voile.
Entre os xucurus, além da agroecologia, há a agricultura do sagrado, que promove a aproximação com entidades religiosas comunidade xucuru de Pesqueira. Para produzir alimentos adequados e ricos em nutrientes, eles realizam o que Iran chama de agricultura do sagrado, que consiste em produzir de forma agroecológica, mas com a concepção de que o contato com os encantados – entidades religiosas dos xucurus – é essencial para que o alimento cresça adequadamente.
MEDICINA AIURVEDA
Visões holísticas da saúde a partir da alimentação estão presentes em várias épocas e lugares. Uma das medicinas mais conhecidas dentro desse grupo é a aiurveda. Surgida na Índia, ela é um dos sistemas medicinais mais antigos que existem, tendo também influências japonesas, e sua prática parte da crença de que todas as pessoas e coisas são compostas por cinco elementos: éter, água, ar, fogo e terra. As diferentes
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combinações desses elementos no organismo formam o perfil biológico do indivíduo, e, para que ele tenha saúde, os tecidos corporais precisam estar em harmonia e a capacidade de absorção dos nutrientes, a energia vital que nos mantém, o agni, deve ser equilibrada. Para a aiurveda, a doença não começa a partir da sua manifestação, mas muito antes, a partir de um acúmulo de pequenos desequilíbrios. A elaboração da dieta parte da análise de quais elementos estão em falta no corpo e do quão forte é o agni do corpo, não muito diferente de segmentos da nutrição ocidental. Um corpo saudável consegue absorver os nutrientes que consome e eliminar as toxinas. O nutrólogo Eduardo Magalhães, que atua com a medicina integrativa, explica que um organismo que não realiza bem essas duas funções tem chances maiores de desenvolver alguma enfermidade. “Os alimentos têm micro e macronutrientes, sua função vai além de nutrir o estômago, ele tem que oferecer o elemento certo para o bom funcionamento das células. Os sinais de uma ausência de nutrientes são um reflexo da nossa desarmonia bioquímica, que é influenciada pela alimentação. Esses sintomas são
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1 AGROECOLOGIA
3 CELERINO CARRICONDE
2 EDUARDO MAGALHÃES
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Sistema de plantio exclui agrotóxicos, produz fertilizantes naturais e respeita os ciclos e safras 3
sinais de sobrecarga ou deficiência de algo, e para sanar isso existem alimentos funcionais, que melhoram cada aspecto do seu corpo”, explica. Originária dos Andes, a batata yacon, por exemplo, tem propriedades que ajudam o funcionamento do pâncreas e são boas para quem possui diabetes. Kiwi, nozes e banana possuem substâncias que ajudam na produção de serotonina, um neurotransmissor que as pessoas com depressão têm deficiência. Então, em vez de consumir remédios como o Prozac, que, segundo o nutrólogo, não conseguem sozinhos produzir a serotonina, mas retê-la, é possível ingerir maior quantidade desses alimentos e usufruir de benefícios mais duradouros e saudáveis. Para auxiliar o processo de absorção do sistema digestivo, algumas comidas cumprem essa função. Como a acidez do estômago precisa estar sempre um pouco alta, um copo de água com sumo de limão ou um pouco de vinagre de maçã ajudam a manter o pH do estômago baixo. Já o intestino precisa
Médico integrativo afirma que corpo saudável consegue absorver nutrientes e eliminar toxinas
Médico do Centro de Medicina Popular diz que alimentação voltada à cura tem origem nos saberes tradicionais Muito usada na culinária vegana, colônia de microorganismos serve para fermentar líquidos
de microbióticos para que funcione adequadamente, e esses elementos podem ser encontrados em vários alimentos fermentados, tais como o kefir, também muito empregado na culinária vegana. O kefir é uma colônia de microrganismos que pode ser utilizada para fermentar líquidos, sendo possível produzir com ele, inclusive, bebidas alcoólicas. Por razões políticas ou individuais, as pessoas estão paulatinamente investindo e acreditando menos na medicina ocidental, que tem a doença separada do organismo como objeto principal e seus tratamentos à base de substâncias sintéticas. Métodos que focam na alimentação e observam o indivíduo de forma integral estão mais ligados aos saberes tradicionais e conseguem cuidar da saúde do corpo de maneira menos invasiva, utilizando os próprios processos naturais do organismo como instrumentos de cura.
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Sabedoria popular
OS EFEITOS DO CHÁ CASEIRO O chá, no senso comum, é uma bebida frequentemente usada para aliviar mal-estares, como dores de garganta, e há uma razão para que tantas pessoas busquem consumi-lo quando estão com alguma irregularidade no organismo. “A infusão é um método muito eficaz para extrair das plantas os bioflavonoides e deixá-los bemconcentrados, e, por ser líquido, será facilmente absorvido pelo corpo”, explica o nutrólogo Eduardo Magalhães. Flavonoides, ou bioflavonoides, são um grupo de substâncias presentes em plantas e seu consumo pode ter diversos benefícios, pois atuam no corpo de formas variadas, combatendo inflamações, regulando hormônios e servindo como antioxidantes. Uma receita comumente utilizada para combater viroses gerais ou dores de garganta é a infusão de alho, limão e gengibre. O alho atua como antibactericida, enquanto o gengibre tem ação antisséptica e o limão fornece vitamina C, essencial para fortalecer a imunidade do organismo. Conhecendo as propriedades de cada vegetal, é possível fazer infusões que auxiliem diversos processos fisiológicos do organismo e que ajudem a combater sintomas ou enfermidades.
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JERRY LEWIS Os 90 anos do diamante da comédia
Ator, roteirista e diretor norte-americano, que redefiniu o humor no cinema falado, mantém-se como a maior lenda viva do riso TEXTO Débora Nascimento
Claquete Martin Scorsese, no começo de sua carreira, costumava levar aos sets de filmagens um mesmo livro: The total film-maker. A publicação de 1971 reunia os temas das concorridas aulas de um certo professor aloprado da Universidade da Califórnia: Jerry Lewis. Constavam, dentre os alunos da pós-graduação em Cinema, Steven Spielberg e George Lucas, dois iniciantes que se tornariam, em meados dos anos 1970, os nomes mais poderosos da indústria cinematográfica norte-americana, status que, nas duas décadas anteriores, pertencera ao próprio Jerry Lewis. “Ele foi o maior astro do mundo”, atesta Billy Cristal. Durante oito anos, o famoso docente ensinou o que vinha aprendendo desde quando estreou nas telas, em 1949. A trajetória de Joseph Lewitch, descendente de judeus russos, nascido em 16 de março de 1926 em Newark (Nova Jersey), começou muito cedo. Com apenas cinco anos, a pedido de um contratante dos pais, foi iniciado na vida artística, ganhando U$ 10 por participação no show do pai e da mãe, Danny Lewis, mestre
de cerimônias, e Rachel Lewitch, pianista e maestrina. O casal integrava a última geração do vaudeville. Dez anos depois, o filho único, criado pela avó, passou a fazer turnês sozinho como entertainer. Sua especialidade era a mímica sobre músicas, algo que futuramente estaria em algumas de suas memoráveis cenas nas telas. A porta para o estrelato foi aberta quando, em 25 de julho de 1946, convenceu o então cantor iniciante Dean Martin a formar dupla com ele. Passaram a se apresentar em palcos de pequenos teatros e casas de shows, depois no cinema e na TV (NBC). No final dos anos 1940 e início dos anos 1950, a dupla atraía uma multidão, cerca de 20 mil fãs tumultuando o centro de Nova York. “Quando estouraram, foi como Beatles, Sinatra, Elvis. Havia milhares de pessoas nas ruas. Parecia festa de AnoNovo. Eles foram os primeiros rock stars, numa época em que ainda não havia rock stars”, lembrou Eddie Murphy, um dos vários comediantes influenciados e beneficiados por Jerry Lewis, que elevou o patamar profissional da categoria. Em seis meses de formação, o duo Martin
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& Lewis passou a receber de U$ 450 a U$ 20 mil semanais. “Eles redefiniram a natureza do show business”, avaliou o humorista Richard Lewis (o sobrenome não tem a ver com Jerry). A dupla de ouro foi disputada acirradamente por vários estúdios. O Paramount venceu. Jerry Lewis surgiu no ainda conservador período do pós-guerra, seu humor ingênuo e anárquico tornou-se entretenimento para toda a família. Na época, o cinema falado se firmava como mercado extremamente rentável em meio ao historicamente difícil campo da arte; diretores talentosos ganhavam fama; atores, com a ajuda extra da imprensa, do rádio e da TV, eram alçados ao posto de estrelas internacionais, e os estúdios já tinham aprendido seu modus operandi: descobrir, comprar, revelar, manter, usar e até fabricar talentos, para, enfim, fazer muito dinheiro. O começo da dupla no cinema foi arrebatador. Embora Jerry Lewis fosse jovem, simpático, alto e bonito o suficiente para encarar o papel de galã, este encargo ficava com Dean Martin. A química perfeita entre o pateta e o conquistador funcionou
durante exatos 10 anos, de 25 de julho de 1946 a 25 de julho de 1956. Nas horas vagas, enquanto Dean, com seus 30 e poucos anos, casado e com três filhos, aproveitava para desfrutar da fama ao lado de mulheres e bebidas, Jerry, com 20 e poucos, também casado e com o primeiro dos seis filhos, circulava pelos bastidores dos estúdios para conhecer todo o processo de realização de um filme. Isso seria crucial para o futuro de Jerry, após o rompimento da dupla milionária, que, entre 1949 e 1956, protagonizou 16 bem-sucedidas comédias. A ótima recepção das películas pós-separação atestou o que todos já desconfiavam: Jerry era quem atraía a maior parte do público aos cinemas. Poderia, então, segurar sozinho o protagonismo, tanto nas telas quanto nos gibis publicados pela DC Comics e lidos vorazmente por milhares de fãs, como o garoto Quentin Tarantino. Vendo o ator tão jovem e com trejeitos abobalhados, a plateia não fazia ideia do quão rico e poderoso seu ídolo era. “Se ele quiser queimar um estúdio, eu dou um fósforo”, costumava dizer Barney Balaban, presidente do Paramount, que ofereceu um novo contrato, prontamente assinado pelo artista workaholic: ganharia U$ 800 milhões para realizar 14 filmes em sete anos.
COMO DIRETOR
O astro permaneceu trabalhando com diretores como Frank Tashlin, George Marshall e Don McGuire, mas a estreia por trás das câmeras em O mensageiro trapalhão (The bellboy), em 1960, confirmou o múltiplo talento. Considerado por muitos como sua obraprima, o filme era ambicioso e ousado para a época, seu público e Hollywood; não havia história, enredo, personagens. Montado a partir de sequências de gags hilárias, mostrava o cotidiano de um camareiro desastrado. Em pleno período da explosão das cores no cinema, foi rodado em preto e branco com uma fotografia arrojada e arriscada dentro do Fontainebleau Hotel, em Miami Beach. Como de costume, o Paramount lançava dois filmes de Jerry Lewis por ano: um nas férias de julho, outro no Natal. O artista já tinha um pronto para o verão, Cinderelo sem sapato. No entanto, só queria lançá-lo em dezembro.
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Vendo-o tão jovem e com trejeitos abobalhados, a plateia não fazia ideia do quão rico e poderoso seu ídolo era
Para cumprir a demanda do estúdio, The bellboy foi escrito, produzido, dirigido e atuado pelo gênio em tempo recorde (48 dias), mas houve uma condição: teria os direitos sobre a produção. Resultado: arrecadou U$ 300 milhões e a atenção da crítica. Embora fosse sucesso de bilheteria, ou talvez até por isso, Jerry não despertava o respeito dos críticos norteamericanos, mais interessados no trabalho de diretores como Billy Wilder, William Wyller e Alfred Hitchcock. No entanto, era tratado como um deus na Itália, Alemanha, Holanda, Austrália, no Japão e na França, onde foi escolhido o “homem do ano” pela Cahiers du Cinéma, em 1961, com O terror das mulheres. “Nunca recebi tanto apreço e amor quanto recebo dos franceses”, disse. Uma das melhores definições do humorista veio de François Truffaut: “Jerry Lewis vale por um ano todo de desenhos animados em uma única performance”.
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FAMÍLIA
J erry entre o pai, Danny, e o primeiro dos seis filhos, Gary
2 O REI DA COMÉDIA Com o fã Martin Scorsese, no set do filme de 1982
Curiosamente, o personagem icônico da filmografia de Truffaut, Antoine Doinel, tem um quê de Jerry Lewis, principalmente no curta Antoine & Colette (1962) e na comédia Beijos proibidos (1968): o trapalhão nos empregos e com as mulheres. Em 1959, ano em que Doinel estreou em Os incompreendidos, também despontava outro título importantíssimo para a história do cinema, Quanto mais quente melhor. O ator, em uma das poucas falhas de sua trajetória, não aceitou o convite de Billy Wilder para interpretar Jerry, que se traveste de Daphne. O papel acabou ficando com Jack Lemmon e o filme foi e ainda é considerado a melhor comédia de todos os tempos. O comediante revelaria que se arrependeu da recusa. Alegou que não queria se travestir. Mas já havia feito isso nas suas películas e continuaria eventualmente a fazer. Uma razão mais plausível seria o fato de que, além de ator, roteirista, produtor e showman, estava investindo fortemente na função de diretor. Queria ser reconhecido também como cineasta. Somente aceitou trabalhar num filme que fugisse ao estilo dos seus em 1982, quando Martin Scorsese o chamou
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para interpretar um tipo totalmente diferente, um apresentador de TV sério e impaciente, perseguido por dois fãs loucos (Robert De Niro e Sandra Bernhard), em O rei da comédia. Dez anos depois, atuou em Arizona dream, de Emir Kusturica, em que contracena com Johnny Depp.
EM 2016
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Claquete 4
3 EM 1960 Ator estreou como diretor em O mensageiro trapalhão 4 MARTIN & LEWIS Frank Sinatra armou inesperado reencontro da dupla CLÁSSICO 5 O professor aloprado rendeu exitoso remake nos anos 1990
6 ATÉ QUE A SORTE... Jerry Lewis reviveu papel de camareiro em filme com Leandro Hassum
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Fora a recusa a Billy Wilder, Jerry também cometeu um outro deslize: o drama O dia em que o palhaço chorou (1971), que marcou o declínio de sua carreira cinematográfica nos anos 1970. Nele, interpreta um clown que tenta animar crianças num campo de concentração nazista. Considerado de péssima qualidade por ele e pelo estúdio, o drama nunca foi lançado, mas uma ideia semelhante conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1999, A vida é bela. Ele reconheceu que o longa-metragem dirigido por Robert Benigni era melhor do que o seu. Mas isso o mundo só vai saber realmente em 2026, quando O dia em que o palhaço chorou estará liberado para lançamento. Nesse ano, nosso herói completará um século de nascimento. A expectativa é que consiga chegar até lá. Afinal, já sobreviveu a um câncer de próstata, úlcera, fibrose pulmonar, diabetes e três enfartes (1958, 1959, 1982, 2006). O segundo lhe ocorreu aos 35 anos, em dezembro de 1959, após terminar de subir 66 degraus em 8 segundos na filmagem da cena do baile de Cinderelo sem sapato (Cinderfella). Na década de 1990, o nome de Jerry voltou aos holofotes com a refilmagem de um de seus clássicos, O professor aloprado, produzido
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por ele e estrelado por Eddie Murphy. Disse, mais tarde, que não deveria ter aprovado o remake. Seu argumento: não se muda o que já é perfeito. A falta de modéstia é aceitável, afinal, a interpretação dos dois papéis no título de 1963, dirigido por ele, foi marcante. Embora tenha seu próprio estilo, o cinema de Jerry Lewis abrange influências do teatro burlesco, de Harold Lloyd, Buster Keaton, Charlie Chaplin (na importância dada à expressão corporal e facial, aos gestos tanto exagerados quanto sutis e, assim como o ator e cineasta inglês, também compunha músicas para seus filmes, embalados a jazz), Looney Tunes (ao aplicar brincadeiras visuais, a exemplo dos braços esticados até os pés em uma cena de O professor aloprado), e Hitchcock (ao construir um cenário gigantesco à maneira de Janela indiscreta, em O terror das mulheres, que resultou numa das melhores fotografias de sua filmografia). Nas filmagens de O terror das mulheres, ainda entrou para a história como pioneiro no uso do video assist system – muitos atribuem a Lewis a invenção. O aparelho exibe no set o que a câmera está filmando. A tecnologia, que proporcionava ao artista cumprir as funções de ator e diretor, revolucionou o cinema mundial a partir de então. Os cineastas, dali em diante, não ficariam mais tão reféns do olhar dos operadores de câmera e passariam a ver e avaliar, no próprio estúdio, elementos como fotografia, atuação, figurino, cenário e maquiagem. Após conseguir superar o já estrondoso sucesso no cinema ao lado de Dean Martin e vender 7 milhões de cópias com seu único álbum Jerry Lewis just sings,
INDICAÇÕES COLEÇÃO
OBRAS-PRIMAS DO TERROR VOL. 4
Dirigido por Guillhermo Del Toro, Michael Reeves, Lucio Fulci, Sidney Hayers, Larry Cohen, Mario Bava Com Eduardo Noriega, Boris Karloff, Catriona MacColl Versátil Home Video
DOCUMENTÁRIO
ÚLTIMAS CONVERSAS Dirigido por Eduardo Coutinho VideoFilmes
A mais nova antologia de horror da Versátil traz seis clássicos inéditos de mestres do gênero: Guillermo Del Toro (A espinha do Diabo, 2001), Michael Reeves (Sob o poder da maldade, 1967), Lucio Fulci (A casa do cemitério, 1981), Sidney Hayers (A filha de Satã, 1962), Larry Cohen (Nasce um monstro, 1974) e Mario Bava (Schock, 1977) – todos em versão restaurada.
A partir de entrevistas coletadas pouco antes de sua trágica morte (em fevereiro de 2014), o último trabalho de Eduardo Coutinho traz depoimentos de jovens estudantes da periferia do Rio de Janeiro sobre suas vivências, valores, relações interpessoais e sonhos. Finalizado por João Moreira Salles – que buscou respeitar o estilo do diretor –, o filme também aborda questões fundamentais como intolerância racial, igualdade sexual e abuso de menores.
TERROR
DRAMA
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lançado no mesmo ano do fim da dupla, só reencontrou seu antigo partner 20 anos depois da separação. Esse momento, que oscila entre emocionante e constrangedor, aconteceu ao vivo, diante de milhões de telespectadores, no programa beneficente Jerry Lewis MDA Telethon (em prol da luta contra a distrofia muscular), e foi arquitetado secretamente pelo amigo de ambos, Frank Sinatra. Em 2005, uma década depois da morte do exparceiro, Jerry publicou o livro Dean and me: A love story – talvez uma tentativa de dar sua versão dos fatos após a repercussão do filme para a TV A verdadeira história de Martin e Lewis (2002), que descortina os bastidores da dupla e mostra como a diferença de idade e de comportamento afetou a convivência. Embora a redução da importância dos papéis de Dean, pelo Paramount, tenha sido decisiva para o fim. O Brasil teve uma pequena chance de usufruir do talento desse gênio. Ele, surpreendentemente, acolheu o pedido para fazer uma ponta na comédia Até
que a sorte nos separe 2 (2013), repetindo o papel de O mensageiro trapalhão (1960). O seu sim causou furor na equipe. “Foi o prêmio maior que um comediante pode ter: trabalhar com o cara que eu considero o maior de todos os tempos”, disse o protagonista Leandro Hassum. O humorista brasileiro soma-se a uma lista de tantos outros influenciados por esse imbatível e incansável professor. Jerry, agora aos 90 anos, não se aposentou, muito menos abandonou o espírito infantil, continua firme na missão de atuar e de fazer rir (eventualmente faz stand-up comedy e, neste ano, participa de mais dois filmes!). Fãs como Billy Cristal, Leslie Nielsen, Steve Martin, Jim Carrey, Michael Richards, Chris Rock, Julia LouisDreyfus e Carol Burnett devem muito a ele e são unânimes em apontá-lo como a maior lenda viva da comédia. Mais um deles, Jerry Seinfeld sentenciou: “Se você não entende Jerry Lewis, não entende a comédia, porque ele é a essência da comédia. Ele é o diamante da comédia”.
SÍNDROME MORTAL Dirigido por Dario Argento Com Asia Argento, Thomas Kretschmann, Marco Leonardi Versátil Home Video
Estrelado por sua filha, Asia Argento, e com trilha sonora de Ennio Morricone, este longa de 1996 de Dario Argento conta a história da detetive Anna Manni, encarregada de prender um serial killer e que sofre de Síndrome de Stendhal, condição que causa vertigens ao indivíduo exposto a grandes obras de arte, sobretudo em ambientes fechados. A edição especial traz versão integral restaurada, mais de uma hora de vídeos extras (incluindo entrevista com o diretor), e um pôster exclusivo.
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AS MIL E UMA NOITES – VOLUME 1, O INQUIETO Dirigido por Miguel Gomes Com Miguel Gomes, Crista Alfaiate, Carloto Cotta Tucuman Filmes
Assim como em Tabu (2012), seu trabalho anterior, o mais recente longa-metragem do português Miguel Gomes demonstra o apreço do diretor por experimentações na narrativa. Primeira parte de uma trilogia composta pelas sequências O isolado e O encantado (lançadas quase simultaneamente), o filme propõe-se a realizar pequenas ficções a partir da realidade de um país europeu em crise.
BLACK STILETTOS (FLICKR)
Sonoras
ROCK As mulheres e a música pesada
Presença feminina no heavy metal tem sido marcada, desde o surgimento do gênero na década de 1960, pela exceção TEXTO Ulysses Gadêlha 1
O filme Ricki and The Flash, que estreou no Brasil em setembro de 2015, tem como protagonista a cantora de rock Ricki Rendazzo (Meryl Streep). Essa personagem sintomática, que trocou os filhos pelo palco, que viveu o sonho da música, é bastante comum em sua versão masculina, vide tantos rockstars que gozam da cultura de sexo, drogas e rock’n’roll. A excentricidade de Ricki, no entanto, revela um contexto conservador na música pesada, na qual a hegemonia masculina reserva às mulheres basicamente a objetificação ou a desconfiança. Para transgredir os estereótipos e os valores primitivos do metal, as próprias headbangers projetam a transição para uma cena mais democrática, ampliando essa representação. Por convenção, o heavy metal surgiu no final dos anos 1960 e se popularizou nos anos 1970, criando ramificações nas décadas seguintes. Segundo o
professor de Comunicação da UFPE Jeder Janotti Junior, autor do livro Rock me like the devil, a sonoridade do heavy metal é essencialmente um conjunto amplificado que reúne a distorção da guitarra, o pulso da bateria e do contrabaixo, com os vocais em sintonia vibrante com os instrumentos. Citando o pesquisador Robert Walser, ele descreve que “é somente em um momento histórico particular que a distorção passou a ser percebida em termos de poder em vez de falha, transgressão intencional em vez de sobrecarga acidental – como música em vez de barulho”. “Pensar as ‘identidades culturais vividas’ nas cenas como ‘estilos de vida’ é perceber as íntimas relações que envolvem práticas de consumo, fruições estéticas e identificações sociais em torno do que é nominado de diferentes modos como ‘cenas musicais’. (…) Seja para falar do peso, da distorção ou da
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intensidade sonora, há a afirmação do masculino como corpo hegemônico no metal”, aponta Janotti. Ele julga que a performance do corpo masculino não se constrói sem a emergência, mesmo que conflituosa, do feminino. O maior sintoma dessa incongruência na cena é a baixa representação das mulheres, em termos quantitativos. Existe a exploração do apelo sensual e do “exotismo” pela baixa incidência desse gênero nas bandas, mas a comparação de performance e estilo entre os sexos é o que mais segrega os artistas. Além disso, o ponto de vista feminino está ausente no discurso do heavy metal, pelas circunstâncias que se desenharam ao longo do tempo.
HISTÓRIA
Em um breve histórico, temos os grupos The Runaways (1975-1979) e Girlschool (1978) como referências iniciais de banda feminina na música pesada,
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quase 10 anos após o surgimento do estilo. Nesse meio, surge o primeiro grande nome do heavy metal, a vocalista e guitarrista Lita Ford. Nos anos 1980, ela lançou três discos e recebeu uma nomeação ao Grammy na categoria de Melhor Performance Feminina de Rock”. Na mesma época, outras figuras apareceriam, como as vocalistas Doro Pesch e Lee Aaron, e a banda Vixen, integralmente feminina. Elas seriam marcadas pelo apelo sensual, e se vestiriam para agradar ao público masculino. A vocalista Sabina Classen, do Holy Moses, também irrompe naquela década, mas ela se comporta como exceção desse grupo inicial, pois é uma das primeiras a cantar gutural. Aos poucos, percebemos que grande parte da história da mulher no metal é feita de exceções, como aponta o jornalista e vocalista de banda de heavy metal Wilfred Gadêlha, autor do livro PEsado – Origem e consolidação do metal em Pernambuco. A década de 1990 traz o grunge e o movimento das Riott Grrrls – com fanzines undergrounds –, responsáveis por introduzir algo de feminismo na música pesada. O death e o black metal abrem espaço para backing vocals femininos, ampliando esse horizonte para vertentes mais agressivas. De acordo com o blog Moda de Subculturas, no artigo As mulheres no heavy metal, a vocalista extrema Karyn Crisis vivenciaria, em 1996, episódios vexatórios para sua carreira. O baixista de sua nova banda pediu demissão, ao saber que uma mulher seria parte do grupo. Além disso, casas de show evitavam receber bandas com mulheres na formação. O público hostil, por sua vez, virava as costas para elas, por acreditar que uma garota não deveria cantar gutural. Porém, nesse mesmo período, surge a cena symphonic e gothic metal – as bandas Nightwish, Epica, Within Temptation, Tristania, Lacuna Coil, por exemplo –, cujo vocal semioperístico próprio desse subgênero é bem-desempenhado por cantoras. “Em algumas bandas, as mulheres não tinham o mínimo poder de liderança e participação na composição”, critica o Moda de Subculturas. Na cola desse movimento, surge a banda de rock norte-americana Evanescence, na qual a vocalista Amy Lee passa a atuar como frontwoman, popularizando essa postura para as massas. “Ao
1 FRONTWOMAN A voz extrema de Angela Gossow virou referência em 2000, ao assumir a frente da banda Arch Enemy PIONEIRA 2 A cantora e guitarrista Lita Ford foi o primeiro grande nome feminino do heavy metal, nos anos 1980
“No peso, na distorção ou intensidade sonora, há a afirmação do masculino como corpo hegemônico no metal” Jeder Janotti Junior contrário das vocalistas europeias, ela usava sua voz natural, era coautora de todas as letras e músicas do álbum, líder da banda e seu apelo sensual era muito discreto, nem agressivo, nem sexy demais”, descrevem as blogueiras. Na década de 2000, aparece a maior referência feminina no heavy metal: a vocalista extrema Angela Gossow, assumindo como frontwoman da banda de death metal sinfônico Arch Enemy. O vocal gutural em si não traz inovações estéticas, mas a surpresa se deve ao fato de que ela substituiu Johan Liiva, um
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homem, um vocalista estabelecido na cena desde 1989. “O mais interessante é que ela se firmou sob a chancela de Michael Amott, um cara respeitadíssimo no metal, que já tocou no Carcass, no Mercyful Fate, Candlemass; um cara que tem uma história no metal e disse: ‘A vocalista da minha banda vai ser uma mulher’”, descreve Wilfred Gadêlha. “Uma musicista não precisa mais se preocupar com a marca do biquíni, porque ela sabe como empunhar um microfone ou uma guitarra”, aponta Angela Gossow, em entrevista reproduzida no site Whiplash. A vocalista é crítica ferrenha dos entusiastas do apelo sensual em detrimento da expressão musical, tal como a publicação Hottest Chicks, da revista Revolver. “Eu não uso roupas femininas para chamar a atenção, eu uso porque é meu estilo”, define. Outros nomes de destaque aparecem no boom, como a guitarrista australiana
PAUL SENNA/DIVULGAÇÃO
CENA LOCAL Ano zero para elas foi 2011
Sonoras 3
3 SUÉCIA A banda Crucified Barbara se destaca por sua música e performance
Orianthi, que já tocou com a banda de Alice Cooper. Ela despontou na mídia depois de tocar com Michael Jackson, mas o seu talento atraiu a atenção de guitarristas consagrados, como Steve Vai e Carlos Santana. A banda sueca Crucified Barbara, cuja música Rock me like the devil dá nome ao livro de Jeder Janotti Junior, é destaque na cena do seu país e traz uma subversão curiosa em sua atitude. Segundo o pesquisador, a música delas trata de mulheres que simplesmente assumem o lugar do masculino e, atuando como mediadoras, “transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente veiculam”. Em constante negociação entre masculino/feminino, as Crucified Barbara “circulam no universo do rock pesado, incluindo as contradições e sexismo desse universo, mas, ao mesmo tempo, são mulheres e musicistas”.
BRASIL
No Brasil, a primeira banda com mulheres foi a Volkana, de heavy e thrash metal, surgida em 1987, em Brasília. Na década de 1990, elas fizeram um show no Recife junto com o grupo Ratos de Porão (hardcore). “O show foi em 1991, no Sport. No final, lembro que elas desceram para falar com o público, mas uma parte
“Uma musicista não precisa mais se ligar na marca do biquíni, porque sabe empunhar uma guitarra” Angela Gossow as assediou, forçando as meninas a voltarem pro camarim”, rememora Wilfred Gadêlha. A Volkana segue firme até hoje, agora com um homem na formação. Vale destacar também que o Torture Squad, primeira banda brasileira a vencer a “Metal Battle” do festival Wacken Open Air, na Alemanha, hoje conta com uma frontwoman, Mayara “Undead” Puertas. A popularização feminina ocorrida na década de 2000 ainda não desfez o paradigma de exceção que a mulher enfrenta no metal, segundo Wilfred Gadêlha. “Está aumentando essa participação e isso se reflete principalmente no público. O metal é um meio muito machista, racista, conservador, no final das contas. Isso é reflexo do início do estilo, em que você tinha aquela música mais agressiva feita para homens brancos, adolescentes, operários. Talvez ela reflita o que há de mais conservador na sociedade, mas vejo isso como uma época de transição. O crescimento das mulheres no metal vai ajudar a deixar a cena menos conservadora”, acredita o jornalista.
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Em Pernambuco, o marco do heavy metal está na criação da banda Herdeiros de Lúcifer, em 1983. Mas a presença feminina no subgênero do rock só aconteceria em 2011, com a banda Vocífera, de death metal, formada por cinco mulheres – Ray Torres (vocal), Erika Mota (guitarra), Lidiane Pereira (guitarra), Eveline Torres (baixo) e Marcella Tiné (bateria) –, que ilustra bem o cerne dessa questão. "Nós, da Vocífera, não somos uma 'banda feminina de death metal', somos uma 'banda de death metal' e ponto. Isso deveria ser o mais importante", diz a baterista à Continente. "Acho que não foi por conservadorismo não terem existido bandas só de mulher até 2011, até porque as mulheres sempre estiveram no metal", observa Marcella, em postura semelhante à da Crucified Barbara, evitando abordar a distinção de gênero no discurso da banda. A questão do preconceito, no entanto, persiste. "Já ouvi coisas como 'você toca que nem um homem', como se isso fosse um elogio. Pra mim, não é. Eu toco como uma baterista de death metal e isso independe de gênero", corrige Marcella. Essa percepção atesta o fato de que a discriminação, o tal machismo, acontece de maneira velada. Nunca por xingamento ou falta de respeito diretamente, como ocorreu a Karyn Crisis, por exemplo. São comentários sutis ou perguntas insensatas que revelam a distinção de gênero na cena. Outra banda local que se enquadra nessa discussão é a Seeds of Destiny, de gothic/doom metal, cuja formação reúne três mulheres – Amanda Lins (vocal), Luciana Lima (guitarra) e Thais Lopes (teclado) – e quatro homens. "Sabemos que há algumas diferenças fisiológicas, neurológicas, comportamentais entre homens e mulheres, mas desenvolver esse tipo
INDICAÇÕES THIAGO LEANDRO/DIVULGAÇÃO
MPB
ANA CLÁUDIA LOMELINO Mãeana Joia Moderna
ROCK ALTERNATIVO
CAGE THE ELEPHANT Tell me I’m pretty Sony Music
“Meu canto tem muito a ver com quem canta em casa. É o canto da mãe que embala seu filho pra dormir ou a mãe lavando louça”, explica Ana Cláudia Lomelino. O álbum nasceu de uma brincadeira pelas ruas de Salvador, fazendo referência às mães de santo, mas ganhou força com a feminilidade de sua autora. O projeto se insere, segundo Ava Rocha, num momento de produções feministas no Brasil. Caetano Veloso, que colaborou com o trabalho de Lomelino, rasga elogios à maneira performática da cantora.
A banda chegou a ser comparada ao som do Iggy Pop e The Stooges, com aquele punk embrionário dos anos 1960. O primeiro disco trazia uma sonoridade alternativa com rock de garagem, fator que agregava mais peso. Agora, no quarto disco, Tell me I’m pretty, produzido por Dan Auerbach, a banda optou por reformular a identidade para o psicodelismo, adicionando baladas como Trouble, trazendo o som dos violões em How are You true. Auerbach guiou boa parte do processo, com a chancela do vocalista Matt Shultz.
THRASH METAL
R&B
Universal Music
Def Jam Recordings
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de capacidade (musical/ artística) independe de gênero. A diferença que vejo entre mulheres e homens fazendo metal é a mesma diferença que vejo entre mulheres e homens pintando um quadro, apresentando um jornal na televisão", observa Amanda Lins. Para a guitarrista Luana Rodrigues, ex-Infectos (brutal death metal), mulheres instrumentistas causam grande espanto dentro do heavy metal. "É um gênero agressivo, no qual se necessita ter habilidade ao tocar qualquer instrumento, e a visão da nossa sociedade machista é de que mulher e agressividade não combinam. Já ouvi comentários como 'ela não dá para tocar metal extremo, porque parece uma bonequinha'. Mas eu sou mulher e toco guitarra em uma banda de brutal death metal", destaca. Na visão da vocalista Márcia Raquel Siqueira, ex-Obscurity Tears (doom
4 PIONEIRAS Vocífera foi a primeira banda formada somente por mulheres em Pernambuco
metal), as mulheres devem colocar intensidade em sua feminilidade, em vez de buscar se equiparar aos homens. "O ideal é a gente chegar num momento em que não precise dizer 'é uma banda de mulher' ou 'tem uma mulher na formação'. Se você fechar os olhos e ouvir o Vocífera tocando, por exemplo, não vai diferenciar se é mulher ou homem", aponta Wilfred Gadêlha, jornalista, autor do livro PEsado – Origem e consolidação do metal em Pernambuco. "Não somos melhores, ou piores, que os homens, mas precisamos de mais mulheres nos palcos, para que seja algo tão natural, que não haja mais entrevistas baseadas em gênero. Afinal, ninguém pergunta a um homem como é ser homem no metal", dá o recado a guitarrista Luciana Lima.
MEGADETH Dystopia Depois de um disco reprovado por público e crítica, Super collider, a banda Megadeth lança o 15º álbum, Dystopia, como sinal de redenção. O projeto parece agradar aos fãs pela volta às raízes do seu álbum mais aclamado, Rust in peace. Na nova formação, o Megadeth conta com o guitarrista brasileiro Kiko Loureiro (Angra) e o baterista Chris Adler (Lamb of God), músicos que trouxeram mais agressividade e virtuosismo ao disco. Faixas como Fatal illusion remetem à identidade da banda, firmada em seus riffs poderosos, no baixo e na guitarra.
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RIHANNA ANTi
Após anos de suspense e um lançamento a conta-gotas, por fim, o CD inteiro, ANTi de Rihanna está completo. O novo trabalho da cantora pop de Barbados foi um choque para todos que aguardaram pelo álbum, pois, comparado ao seu trabalho anterior, ANTi é completamente diferente das batidas house e pop de músicas antigas de Rihanna. Com uma mistura de ritmos diferentes, indo do reggae ao soul, é possível dizer que as músicas desse disco se caracterizam pela experimentação e heterogeneidade. Rihanna deu um passo importante na sua carreira.
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
LINHAS DE FORÇA
O rapaz amarra o lenço colorido na cabeça, aperta os nós sob o queixo, e involuntariamente olha para frente como se procurasse a ajuda de um espelho. Ficou bem, digo para mim mesmo, firme na posição de observador sem câmera fotográfica, um voyeur carnavalesco, que não brinca, só contempla. Está bonito, apesar dos olhos congestos pela cachaça, e dos dentes estragados, alguns faltando. A camisa aberta revela que ele não aderiu ao gosto dos mais jovens, depilar o peito e o abdome. Também não aparou as sobrancelhas e o corte do cabelo pintado de louro é tradicional. A caboclada se veste no meio da rua, os passantes reparando curiosos. Brincam entre eles, soltam pilhérias, tentam descontrair-se. Chegaram em ônibus velhos e desconfortáveis, sem refrigeração, comprimidos em meio aos adereços pesados. A maioria saiu de casa envergando a indumentária de baixo: o ceroulão, a calça de franjas presa aos joelhos por elásticos, a blusa estampada de mangas longas. No passado, segundo a lenda, teriam bebido algumas talagadas de
aguardente com pólvora ou a jurema. Um pequeno espelho corre entre as mãos calosas pelo manuseio da foice, no corte de cana. Retocam a pintura vermelha do rosto com batom, pois já não se usa o preparo de urucum. Ajudam-se na hora de colocar o surrão, forrado com pelo sintético no lugar da lã de carneiro, e com um número ímpar de chocalhos, para não atrair azar. Depois vestem a gola, bordada de lantejoulas, miçangas e vidrilhos, um fetiche que se reborda todos os anos e se oculta como segredo de caboclo. Por fim o chapéu confeccionado com milhares de fitinhas de celofane, os óculos escuros e o cravo branco mastigado entre os dentes. Antes que o rapaz apanhe a lança e saia para o desfile, eu me aproximo dele. O cortador de cana da Zona da Mata de Pernambuco, indivíduo comum, anônimo, calejado no convívio com a pobreza e a violência, se transformara diante dos meus olhos numa entidade. Quem é esse? Chego perto, ousadamente afasto a cortina de celofane que recobre seu rosto e falo algumas tolices sobre a minha surpresa
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e deslumbramento com o que acabara de testemunhar. Ele não compreende o que eu digo, me encara com surpresa e desdém e se afasta agitando os chocalhos do surrão. São numerosos os maracatus, com brincantes de todas as idades. Renovam-se através dos jovens e das crianças que incorporam ao brinquedo seus cabelos de cortes extravagantes, pintados de rosa, azul, verde, amarelo, dourado, o jeito diferente de falar, as novas jingas do corpo. Em 1938, Mário de Andrade enviou uma equipe a Pernambuco e à Paraíba para registrar cantos, danças e rituais que ele considerava em extinção. Quase 80 anos depois percebemos o quanto caboclinhos e maracatus se multiplicaram, provando uma capacidade de resistência e transformação das culturas populares, embora elas continuem convivendo com as mesmas ameaças identificadas pelo escritor: o preconceito, as intervenções do poder público e a perseguição contra religiões de origem indígena e africana. Entre os pernambucanos, observouse que o vínculo dos maracatus e
HALLINA BELTRÃO
caboclinhos com o culto aos orixás e à jurema, serviu para fortalecer essas culturas, pois lhe conferem um caráter não apenas de brincadeira, mas também de sagrado. É comum que os maracatus nação tenham como sede as casas de santo, e seus reis e rainhas sejam babalorixás e ialorixás. Nesse ano de 2016, sentimos a ausência das tradicionais nações Leão Coroado, Indiano e Elefante. Mas, percebemos crescer a força feminina nos batuques, a consciência e o orgulho de ser negro, a afirmação da língua africana, antes camuflada na língua dos brancos. Antigamente, a Religião Católica e o Estado demonizavam os rituais afros. Hoje, as seitas evangélicas e pentecostais assumem o lugar de perseguidores, doutrinadores e aliciadores, o que representa ameaça mais preocupante do que foi percebida por Mário de Andrade em 1938. A guerra é declarada, os pregadores da “Palavra” não toleram camuflagens nem sincretismos. Monoteístas radicais, sem cultos à divindade feminina, a Universal do Reino de Deus, Assembléia de Deus, Testemunhas de
É comum que os maracatus nação tenham como sede as casas de santo, e seus reis e rainhas sejam babalorixás e ialorixás Jeová, Quadrangular, Deus é Amor, Nova Vida, e mais uma centena de outras, empunham a Bíblia, vociferam e agridem os praticantes de outras religiões, incendeiam casas de santo. A prefeitura do Recife homenageou maracatus e caboclinhos, o batuque negro, o toque perré dos índios, e um clube tradicional, o Pão Duro. As agremiações carnavalescas formadas por trabalhadores urbanos, carvoeiros, varredores, lavadeiras, feirantes, caixeiros, lenhadores, espanadores, ferreiros, engomadeiras e até parteiras, as chamadas corporações de ofício, entraram em decadência. No vaivém desses clubes e troças, seguidos por vadios, moleques de rua e capoeiras, acompanhando bandas de música
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ou orquestras de metais, nasceram o frevo e o passo pernambucano. Essas corporações enfraqueceram ou deixaram de existir, minguaram suas orquestras. Surgiram outros cortejos no seu lugar, talvez menos populares, sem afinidades corporativas. Alguns são criações de produtores, com o olho no mercado e no lucro. Muda a feição do carnaval. Vínculos se desfazem, como os dos clubes com as corporações, outros se fortalecem, como os dos maracatus e caboclinhos com os cultos afroameríndios. É a dinâmica da cultura. Nem vale a pena perguntar quem ganha ou quem perde. A classe média e os ricos continuarão brincando o seu carnaval de apartheid, em camarotes climatizados, onde se bebe uísque oito anos e olham-se os populares de cima. Era assim nas igrejas católicas, os negros assistiam à missa do lado de fora. A mestiçagem de que falava Gilberto Freyre é real, basta conferir nas ruas de Recife e Olinda. Os brancos privilegiados e apartados também são reais e prosaicos. Mas, não se vestem com o aparato divino de um caboclo de lança.
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ARTE SERIAL As HQs (também) antes de 1896
1 BÄNKELSANG Ilustração de Hess Baenkelsaenger mostra como tecer narrativas através de imagens é algo mais antigo do que podemos supor
Publicação revisita o passado das histórias em quadrinhos, a partir de novos critérios e marcos TEXTO Germano Rabello
Imagens estáticas em sequência, contando histórias, usualmente em tinta sobre papel. A definição de histórias em quadrinhos é bem simples, mas sempre há margem para um bocado de interpretação, e muita discussão sobre qual seria o marco zero dessa arte, o ponto em que tudo teria começado. Toda tentativa de cronologia vai depender de critérios, que podem ficar borrados, confusos. Trazendo mais argumentos a essa saudável confusão, chega às prateleiras Imageria – O nascimento das histórias em quadrinhos (Editora Veneta, 2015), de Rogério de Campos. Com pesquisa meticulosa, texto lúcido, o autor demonstra que tecer narrativas através de imagens é prática mais antiga do que poderíamos supor. Acima de tudo uma antologia, um livrão de arte com amostras generosas, o volume tem como mérito esse novo modo de encarar o passado das HQs, inovando a bibliografia brasileira do tema, traçando relações precisas entre os fatos, contextualizando cada traço para sua época. Se boa parte dos livros ainda estabelece o nascimento dos comics em 1896, nos EUA, este aqui se propõe a mostrar um pouco dos “primeiros 500 anos” dessa linguagem – o que certamente vai entortar a cabeça de muitos aficionados e experts.
Imageria argumenta que os quadrinhos, ao contrário do cinema, não precisaram de uma grande revolução técnica. Sempre puderam ser feitos com tinta e papel, ou qualquer material similar. Ou foram beneficiados por um avanço tecnológico muito anterior: a imprensa, aperfeiçoada no século 15. Durante esse lento período de gênese, era complicado perceber a linguagem tomando forma, e mais difícil ainda levar o assunto a sério. Era distração para gente ignorante, uma coisa solta, espalhada por aí, uma arte sem nome, da qual nem os próprios artistas pareciam se orgulhar, misturada com todas as ilustrações de jornais e panfletos. Entre outros achados do livro, a análise da relação entre os quadrinhos e outras artes. Claro, há convergência natural dos quadrinistas, a maioria tendo uma carreira em pintura, gravura ou escultura, na qual as narrativas ilustradas são uma experiência a mais. O autor apresenta as bänkelsangs, espécie de contação de histórias com quadros ilustrativos, diversão popular em feiras da Europa, desde o século 14. Fala do desenho como impulsor para vender livros, que era (e continua a ser) de incalculável importância. Romances, hoje clássicos, eram publicados como folhetins em jornais, tendo relação simbiótica com as ilustrações – que às
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vezes vinham primeiro, orientando os rumos da ficção. Os primórdios do cinema, por exemplo, devem muito de sua inspiração aos quadrinhos. A primeira ficção filmada, L’arrousseur arrosé, de Louis Lumiére (1895), é baseada numa HQ de Uzès, feita 10 anos antes. Porém, se houve uma pré-história do cinema, exposta no documentário O filme antes do filme (1986), de Werner Nekes, é visível o quanto ele dependeu de uma tecnologia específica do século 19. Enquanto que os exemplos mostrados em Imageria, com outra concepção, outra mentalidade e estética, operam princípios basicamente iguais aos de qualquer história em quadrinhos e produzem narrativas com começo, meio e fim, ou, sendo mais enfático: produzem um discurso elaborado, definido. São HQs deslocadas no tempo. Por isso, Rogério de Campos prefere dizer que os quadrinhos foram inventados inúmeras vezes. E nem espanta o fato de existirem tantos possíveis pioneiros. Para os artistas, a atividade pagava as contas, entretanto sem ter o prestígio das artes oficiais ou acadêmicas. Motivados pela vontade de narrar histórias, ilustradores saíram do desenho único – que caracteriza a pintura e a gravura tradicionais e, num contexto mais
IMAGENS: REPRODUÇÃO
2 EMAKIMONOS Narrativas ilustradas criadas a partir do século 12 no Japão BORDADO 3 Livro inclui ainda a tapeçaria de Bayeux nos primórdios da HQ
4 PRECURSOR Gravura da série O progresso de uma prostituta, de Hogarth, tido como avô da HQ YELLOW KID 5 Obra de Outcault inaugura o uso de balões da fala
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jornalístico, a charge e o cartum – para experimentar a possibilidade das pequenas narrativas usando vários desenhos. Os quadrinhos nasceram no Japão, na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA, em datas e séculos diferentes. São muitas perspectivas possíveis, todas verdadeiras. Os conceitos podem se alargar e, quando são considerados outros materiais, surgem outras histórias em quadrinhos. A partir do século 12, os emakimonos japoneses, às vezes feitos de seda. No mesmo século, os vitrais da catedral de Chartres, na França. Ou, ainda, a tapeçaria de Bayeux, imensa história bordada num tapete, no século 11, sobre as conquistas de Guilherme II na Inglaterra. A Coluna de Trajano, talhada na pedra no ano 113,
Os quadrinhos nasceram no Japão, na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA, em datas e séculos diferentes que descreve a guerra dos romanos contra os dácios. Volta ao mundo, viagem no tempo. O século 19 surge como um ponto de virada, quando o humor vence o moralismo. Tudo que vem antes é marcado pela necessidade de punição, pelo exemplo moral. Os vícios são apontados de forma mais trágica.
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Faziam sucesso as histórias ilustradas referentes à religião. Nesse contexto, figura a vida de Lutero, sob o ponto de vista católico, na Alemanha do século 17; e basta ler o título para perceber a abordagem: “Martinho Lutero, doutor da impiedade, professor da vilania (…)”. Havia muitas páginas também dedicadas às façanhas dos criminosos e quase sempre às suas execuções públicas, suas cabeças empaladas e expostas, sem indício de piedade. O inglês William Hogarth (16971764), com sua série de gravuras O progresso de uma prostituta, de 1732, reproduzida aqui, é considerado um avô das histórias em quadrinhos. Seu sucesso avassalador deve muito ao moralismo da época, possivelmente disfarçando a curiosidade erótica sobre a vida na prostituição. Hogarth não perdeu tempo, criando imediatamente outra série de gravuras, O progresso de um libertino, de 1734. Iniciou um gênero: os “progressos” se multiplicariam dali em diante como fenômeno de vendas, através de vários artistas: James Gillray (O progresso de John Bull, 1793), Johann Heinrich Hamberg (A vida de Strunk, o novo-rico, 1822–25), entre outros.
SURGEM OS BALÕES
O livro The comics, de Coulton Waugh, lançado em 1947, descrito por Rogério como “a primeira tentativa relevante de uma história das histórias em quadrinhos”, elege como pioneiro Richard Fenton Outcault (18631928), autor da tira Hogan’s Alley,
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popularmente conhecida pelo nome do seu personagem recorrente, um garoto irlandês com a cabeça raspada (indício de piolhos) e um camisolão amarelo: o Yellow Kid. Waugh citava a publicação de 16 de fevereiro de 1896 do The New York Journal, no qual o menino amarelo, quase como coadjuvante, aparecia em meio a uma exposição de cães. A tônica era exatamente essa: o cotidiano das ruas, do populacho, sem qualquer idealização e com humor violento. Mas, a rigor, era cartum, um quadro único, não uma história em quadrinhos. A hipótese Yellow Kid então se divide em dois caminhos. Para alguns, foi em 25 de outubro, do mesmo ano de 1896, que Outcault inventou o gênero, e o que definiria essa tira como marco inicial seria o uso dos balões de fala. Nessa publicação singela e minimalista, o Yellow Kid conversa com um gramofone para finalmente descobrir um papagaio dentro da caixa. Inegavelmente, uma história em quadrinhos, cinco momentos sequenciais, sem bordas, um design simples e elegante. Mas restam dúvidas. Em que grau o balão do Yellow Kid é mais significativo que o de uma história publicada em 1886, em Paris? Uma página assinada pelo genial Caran D’Ache (1858–1909), O tenor teimoso, na qual Napoleão é um dos personagens e tem dois balões de fala. Caran D’Ache é um dos autores que surpreendem por ter encontrado um ritmo muito próprio, moderno, para as suas narrativas. O surgimento do balão de fala marca uma nova maturidade na integração do texto e imagem, mas sua necessidade compulsória não faz tanto sentido. Várias HQs apresentadas em Imageria têm legenda em vez de balão, com o texto embaixo do quadro. E, de toda maneira, o texto é um elemento opcional. O livro traz vários exemplos de HQs totalmente sem texto: Rabier, Godefroy, Georges du Maurier, A. B. Frost. Exigir a presença do texto ou de um balão de fala excluiria também obras importantes da atualidade, como as de Shaun Tan, Jim Woodring, Rafael Sica, Brecht Vandenbroucke, Peter Kuper etc.
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6 FRANCÊS Gravura de Doré, que criou imagens para clássicos da literatura
TÖPFFER E DORÉ
Na historiografia dos quadrinhos, o jogo começa a virar em 1973, quando David Kunzle lança seu livro The early comic strip, chamando a atenção para vários quadrinistas antigos, incluindo o suíço Rudolph Töpffer (17991846). (Esse é um caso à parte, um grande prazer encontrá-lo no livro Imageria.) Professor acadêmico, amigo de Goethe, fez de suas narrativas ilustradas um trabalho monumental, desbravador de territórios. Temos A história do Senhor Jabot, lançada em 1833, reproduzida integralmente neste trabalho de Rogério de Campos em 30 páginas do volume. Ironia fina, personagens bemcaracterizadas, a obra de Töpffer continua instigante depois de quase dois séculos. A mistura de texto e imagem começa a engrenar na nossa própria mente, depois de um tempo. Uma simples linha vertical, sem espaçamento, pode decompor o espaço retangular em quadros menores. As posturas corporais e faciais são o elemento mais evidente, já que Töpffer abre mão dos detalhes
Na história, a mistura de texto com a imagem começa a engrenar na nossa própria mente, depois de um tempo de cenário e adereços em nome da fluência da narrativa. Reduz ao mínimo o número de elementos, e funciona à perfeição. O traço muito solto e sem preciosismos, a narrativa uma engenhosa comédia de erros, crítica venenosa às convenções sociais da época, à frivolidade e ao narcisismo, temas sempre atuais. É um dos precursores do álbum de quadrinhos – ou da graphic novel, para usar um termo recente. Seguiram-se outras publicações: Monsieur Crépin, e Histoire, de M. Vieux Bois, ambos de 1937; Monsieur Pencil, de 1940, entre outros. A data de publicação nem sempre correspondendo à de criação, pois Töpffer tinha certo receio de ficar estigmatizado por
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essas obras, por não ser um trabalho respeitável. Mas o impacto foi imediato e incontrolável. Pouco depois do lançamento do Senhor Jabot, surgiam edições pirateadas em vários países da Europa. O termo albuns jabot passou a designar um novo segmento editorial, de álbuns de HQ. Aparecem inclusive HQs de Jabot desenhadas por outros autores. Gustave Doré (1832–1883) é outro destaque. Gravurista francês, que criou imagens definitivas para grandes clássicos da literatura, do Dom Quixote à Bíblia, seu trabalho de quadrinhos e cartuns é pouco divulgado. Mais uma vez esbarramos num caso de autor que renega uma parte “pouco respeitável” do próprio trabalho; e só recentemente essa obra vem sendo redescoberta e valorizada. Ocupa quase 50 páginas em Imageria, tendo seu (Des)prazeres de uma viagem de prazeres publicado na íntegra. Uma sátira, talvez influenciada por Töpffer, mas de linguagem diversa, em que o suíço mostrava linhas frágeis, caligráficas, Doré aplica contrastes mais bem-definidos.
INDICAÇÕES Prefere uma diagramação mais livre, sem padrão reconhecível, os desenhos se espalhando sem muita regra pela página: tudo solto, arredondado, sem bordas rígidas. Sobre a participação luso-brasileira nessa pajelança, o símbolo maior é a força criativa de um italiano que viveu longos anos no Brasil: Ângelo Agostini (1840–1910), que nomeou um dos maiores prêmios do quadrinho nacional. E também o português Bordallo (1846-1905), autor de Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro, sobre a viagem picaresca do imperador do Rasilb pela Europa, descrita como uma das primeiras graphic novels a serem feitas, tendo como personagem o imperador D. Pedro II. Imageria encerra sua trajetória temporal na primeira década do século 20 – o bastante para alcançar Winsor McCay, Lyonel Feininger, Clare Briggs, Fred Opper. Daí por diante, uma maior organização dos syndicates começaria a regular cada vez mais a criatividade dos autores, em busca de personagens de sucesso, que dariam retorno comercial garantido. Essas regulamentações viriam como uma lógica crescente do entendimento dos quadrinhos como negócio. Material para outro livro.
O AUTOR
Quanto à organização e ao texto de Rogério de Campos, poucos seriam tão qualificados para encarar uma empreitada dessas. Como autor, assinou Revanchismo
(2009), Dicionário do vinho (2011, ganhador do prêmio Jabuti, com Maurício Tagliari) e ainda Livro dos santos (2012). Atual editor e criador da Veneta, tem longa história no mercado editorial brasileiro, na área de quadrinhos em especial. Começando na revista Animal, das mais influentes e explosivas que o Brasil já teve. Alguns anos depois, na editora Conrad, ele foi um dos pioneiros em tratar com seriedade os mangás e também a ficção de Neil Gaiman, além de livros politicamente explosivos, como os da coleção Baderna. Apresentou ao público brasileiro autores como Daniel Clowes, Joe Sacco, Posy Simmonds, Alison Bechdel, e o quadrinho nacional de Marcelo Quintanilha, Marcelo D’Salete, André Toral, entre outros. Essa faceta de pesquisador e teórico dos quadrinhos, expressa nas introduções de livros que editou, finalmente ganha o espaço que merece. Talvez só o começo da discussão, já que hoje existem sites como Töpfferiana Comics democratizando o acesso a materiais esquecidos através dos tempos, em que o leitor pode achar novas HQ pioneiras. Mas é inestimável o valor de Imageria para qualquer leitor que considere os quadrinhos como linguagem abrangente, ou para qualquer um interessado em história, comunicação e artes visuais. O passado, como uma inesgotável fonte de novidades, chegou para provocar os leitores do século 21.
INFANTIL
ENSAIO
Aliança Comunicação e Cultura
É Realizações
LINA ROSA Bichos vermelhos
ROGER SCRUTON O rosto de Deus
Bichos vermelhos são aqueles que estão com o sinal de alerta da extinção piscando sobre a vida deles. No Brasil, tem um bocado, por causa de desequilíbrios ambientais. Neste belo volume, Lina Rosa comenta 20 deles. O tratamento gráfico é caprichado, assim como o texto. Estão encartadas três lâminas de recorte para o leitor montar o próprio bicho-brinquedo.
Escritor e filósofo ligado à estética, neste livro, o britânico discute o fenômeno religioso e a experiência do sagrado, tomando como ferramentas desde minúcias da filosofia medieval a traços da cultura contemporânea. Aqui, o fenômeno religioso é entendido como matriz da cultura. E o “rosto” como palavrachave nos traz a ideia do rosto da pessoa, do mundo e de Deus.
INFANTIL
CRÔNICA
ERASTO VASCONCELOS E ADEMIR ARAÚJO Dez cantigas de roda, um maracatu, um afoxé, mas cuidado, existe uma cobra Funcultura
Nesta narrativa, o improvável toma a forma de uma cobra que, apaixonada pela flor, vira uma borboleta. A graça do livro, criado nos anos 1970 e agora impresso em versão fac-similar, reside no texto manuscrito, na oferta de partituras de Ademir e de CD cantado por Erasto.
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FERREIRA GULLAR A alquimia na quitanda Três Estrelas
O livro reúne 125 crônicas entre as que foram publicadas na FSP durante uma década, de 2005 a 2015. São as que Gullar e seu editor consideraram as mais perenes e dizem respeito à arte, política, memórias e às pequenezas do cotidiano que fazem a graça e a riqueza da crônica. O interessante do gênero é que podemos encontrar o poeta e o crítico num tom mais pessoal.
JULIAN MOMMERT/DIVULGAÇÃO
FESTIVAIS Uma festa para o teatro
Março é o mês das artes cênicas, com a realização do Festival de Teatro de Curitiba, que comemora 25 anos, e da MITsp, que assume protagonismo nacional TEXTO Pedro Vilela
Quando, em 1961, o Instituto Internacional de Teatro da Unesco cravou o 27 de março como o Dia Mundial do Teatro, tomando como referência a data da inauguração do Teatro das Nações, em Paris, este período do ano acabou por se tornar um dos mais movimentados para as artes cênicas no mundo. Não à toa, é este o mês da realização, no Brasil, de importantes mostras teatrais, com destaque para o grandioso Festival de Teatro de Curitiba e a MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo,
como se compusessem um coro à mensagem enviada pela ONU aos seus países-membros, no dia de cada celebração sobre a importância da arte teatral em nossas sociedades. Celebrando 25 anos de existência, o Festival de Curitiba costuma reunir um público estimado em 200 mil pessoas por edição, tornando a cidade paranaense na capital do teatro brasileiro, durante um período de 12 dias. O Fringe, mostra paralela do evento, por exemplo, condensa comumente cerca de 400
Palco
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C O N T I N E N T E M A R Ç O 2 0 1 6 | 74
espetáculos de diferentes partes do país, possibilitando um panorama da atual produção brasileira – ainda que, por não possuir um recorte curatorial ou ao menos um criterioso processo de seleção, nos apresente um desnivelamento grande entre os trabalhos em cartaz. Do outro lado, com trajetória ainda recente, a MITsp vem assumindo o papel de principal mostra do Brasil, com uma programação prioritariamente internacional que leva à terra da garoa os principais nomes da produção
ELIZABETH CARECCHIO/DIVULGAÇÃO
1 STILL LIFE Mito de Sísifo motiva a obra de Dimitris Papaioannou 2 ÇA IRA Espetáculo é definido como uma ficção política contemporânea
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contemporânea mundial, além de reunir um público cada vez maior em busca de suas diferentes ações. Em sua primeira edição, em 2014, a mostra trouxe ao país importantes criadores sul-americanos, como o argentino Rodrigo García, com sua visão do calvário de Jesus Cristo sob uma perspectiva crítica aos valores de adoração e à mercantilização da fé no espetáculo Gólgota picnic. Trouxe também o chileno Guilhermo Calderón com Escuela, a partir de questões relacionadas à ditadura militar no Chile, além da celebrada escritora e performer espanhola Angélica Liddel, com o trabalho Eu não sou bonita, criado em torno de uma experiência de abuso sexual sofrido pela artista. No ano passado, a MITsp investiu em grandes encenadores, manipulando clássicos da dramaturgia mundial, com destaque para a potente encenação, com duração de quatro horas, de A gaivota, obra do russo Anton Tchekhov dirigida pelo seu compatriota Yuri Butusov. Outro destaque foi a dupla encenação do texto Senhorita Julia, de August Strindberg, sob os olhares da brasileira Christiane Jatahy, com a carioca Cia. Vértice, e da diretora britânica Kate Mitchell, que friccionaram os limites da representação no teatro,
dialogando ainda com a linguagem cinematográfica no palco. Se nas edições passadas o idealizador e diretor artístico da mostra, Antonio Araújo, apontava para a preocupação do evento em trazer “espetáculos e artistas arrojados, comprometidos com a pesquisa cênica, radicais em suas experimentações e posicionamentos, além de antenados com sua época e lugar”, este ano, vemos na programação o esforço em permanecer com essa premissa. A edição de 2016, de 4 a 13 deste mês, será composta por espetáculos da França, Polônia, Grécia, Bélgica, Congo, Alemanha e Brasil, prometendo um olhar voltado para o teatro e o processo social.
INTERNACIONAIS
Pela primeira vez no Brasil, a companhia polonesa Nowy Teatr apresentará o espetáculo (A)Pollonia, sob a batuta do renomado encenador Krzysztof Warlikowski. Realizando um conciso trabalho de dramaturgia a partir de textos clássicos e contemporâneos, sobretudo fragmentos de Alceste, de Eurípides, Oresteia, de Ésquilo, e Apolonia, de Hanna Krall, o artista polonês busca refletir sobre a ambígua e sombria história do sacrifício e, especialmente, do autossacrifício em nossas sociedades. A crítica de teatro
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Armelle Héliot, do jornal francês Le Figaro, descreveu (A)Pollonia como um “rio longo correndo que nos leva com materiais diferentes, rosnando ruído e fúria, fabricando conhecimentos e fluxo de emoções fascinantes, derretendo como a saída de um vulcão em erupção violenta e cuspindo pensamentos como sentimentos, fatos estabelecidos com análise rigorosa de como as verdades e fantasias agem na história”. Do criador da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas de 2014, o grego Dimitris Papaioannou, o público brasileiro poderá assistir à sua mais recente criação, Natureza morta (Still life). O bailarino de maior projeção em seu país utiliza-se de uma meditação sobre o mito de Sísifo, personagem castigado pelos deuses e fadado a rolar diariamente uma pedra até o topo da montanha, mas que, com o peso e o cansaço, acaba deixando-a rolar novamente até o chão, levando-o a cumprir essa subida cotidianamente e para todo o sempre. Como faz o escritor Albert Camus em O homem revoltado, ao associar o mito de Sísifo com a vida dos homens, que comumente seguem uma rotina diária, Papaioannou faz um “trabalho sobre o trabalho”, relaciona-o, na atualidade, aos países em desenvolvimento e aos da Europa ocidental.
FOTO: DIVULGAÇÃO
3 JOËL POMMERAT Francês trará dois espetáculos à MITsp, Ça ira e Cinderela
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Mas o grande destaque deste ano na MITsp é, sem dúvidas, a presença do francês Joël Pommerat. O dramaturgo e diretor que ficou conhecido no Brasil em 2013, com a montagem de sua obra Esta criança, pela Cia. Brasileira de Teatro (PR), ao lado da atriz Renata Sorrah, trará ao festival dois trabalhos de sua autoria: Ça ira e Cinderela. Quebrando o ineditismo da presença de um espetáculo infantojuvenil, Cinderela foi também escolhido para a abertura da mostra. Em parceria com os artistas do Teatro Nacional da Bélgica, o espetáculo apresenta um Pommerat pouco conhecido do público brasileiro, retomando o exercício realizado por ele nos últimos anos, a partir da manipulação de contos clássicos, como Chapeuzinho Vermelho e Pinóquio. Com Cinderela, ele propõe uma experiência intensa e desconcertante, como destacou o jornal Le Monde, ao fazer uma estimulante reflexão sobre a dor e a culpa, e apontar para o fundo trágico da infância: o medo, a solidão, os pesadelos e as esperanças a partir da morte da mãe.
MITsp faz investimento em atividades reflexivas e formativas, como a edição de programa com ensaios Em Ça ira, encontramos o artista explicitamente mais politizado. Definida como uma ficção política contemporânea, a obra reflete sobre a luta pela democracia e os mecanismos que regem as ações dos indivíduos, enfatizando a dimensão coletiva da ação política. Para o autor e diretor, importa nesse momento – quando a Europa está abalada pelo retorno do nacionalismo, da extrema direita e do conservadorismo – o mergulho na história da Revolução Francesa.
NACIONAIS
Esperado com ansiedade pela crítica teatral, o grupo Teatro de Narradores (SP) estreia na MITsp o espetáculo Cidade vodu. O terremoto de 2010
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que atingiu o Haiti, matando quase 200 mil habitantes e gerando um fluxo de emigração para o Brasil, impulsionou o grupo a levantar questões como o preconceito racial e cultural, além da liberdade de trânsito pelo mundo. Com atores haitianos e brasileiros, utilizando-se também de falas em crioulo (dialeto do Haiti), o espetáculo joga luz na situação dos imigrantes em São Paulo (SP) e Rio Branco (AC), articulando teatro, cinema e música, sob encenação do diretor José Fernando de Azevedo. Após experimentar o uso de obras da literatura brasileira contemporânea no seu espetáculo anterior, intitulado Puzzle, o diretor Felipe Hirsch retoma esse procedimento na composição de seu novo trabalho, A tragédia latino-americana. Com direção de arte de sua fiel escudeira Daniela Thomas, o espetáculo é composto por meio de fragmentos, adaptações de obras ou parte de obras da literatura contemporânea da América Latina. O elenco conta com atores brasileiros, argentinos, chilenos e mexicanos, com destaque para a presença do pernambucano Pedro Wagner. Além da seleção de espetáculos, um dos maiores pontos de diferenciação da mostra paulista, em relação às inúmeras outras realizadas, é o seu forte investimento nas atividades reflexivas e formativas. No que intitula de Olhares Críticos, a mostra desenvolve sete atividades, que vão desde debates realizados logo após as apresentações à publicação de um programa-livro com ensaios desenvolvidos por importantes pensadores do país. Mas o momento de maior vitalidade diz respeito ao Pensamento em Processo, no qual os artistas da mostra são convidados a falar sobre seus processos de criação, arquiteturas de composição e realidades geográficas. Soma-se ainda a atenção especial para a Prática da Crítica, composta por palestras e lançamento de publicações que refletem sobre o papel da crítica nos dias atuais, além da Crítica Performativa, executada
STEFAN OKOLOWICZ/DIVULGAÇÃO
4-5 (A)POLLONIA Companhia polonesa Nowy Teatr vem ao país sob direção de Krysztof Warlikowski
pela revista Antro Positivo. Durante oito horas ininterruptas, em tempo real e em frente ao público, a publicação reflete sobre uma das obras apresentadas (este ano será o Ça ira), convidando o leitor a também interferir na composição da escrita.
CURITIBA
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Após tamanha potência vinda da mostra paulista, o Festival de Teatro de Curitiba passa atualmente por um importante processo de restruturação. Com a redução de recursos de patrocinadores (alguns migraram seus investimentos para a MITsp), o FTC aposta, neste ano, numa nova equipe de curadores, em busca da retomada de sua força. Para isso, deverá repensar questões que se fazem urgentes, como a recorrência, em sua programação, de frágeis produções, amparadas apenas pela presença de atores globais, e os altos valores praticados nas bilheterias, ainda que faça uso de investimentos de recursos públicos através das leis de incentivos. Além disso, a compreensão de que nem sempre quantidade corresponde à qualidade, falando sobre a sua mostra paralela. Os espetáculos escolhidos para a mostra oficial, que acontece de 23 de março a 3 de abril, possuem claro investimento no trabalho dos mais atuantes grupos teatrais brasileiros, trazendo uma oxigenação à celebração dos seus 25 anos. A presença de coletivos com As Travestidas (CE), com Quem tem medo de travesti?, e o Teatro Kuny (SP), com Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias, pela discussão sobre gênero e sexualidade, apontam para um novo horizonte. A certeza que temos é de que, com tamanha capacidade de produtores, curadores e artistas em refazerem suas próprias trajetórias e questionarem seus modos de produção, poderemos bradar em São Paulo ou em Curitiba o título do espetáculo do francês Pommerat (Ça ira): “Vai rolar”.
FOTOS: DANILO GALVÃO/DIVULGAÇÃO
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TEMPORADA A água que atravessa tudo
Com diálogo entre projeção cinematográfica, áudio e dança, espetáculo verte em dança contemporânea conto A enchente, de Hermilo Borba Filho TEXTO Guilherme Novelli
Uma criada zela pelo cadáver do seu antigo senhor, em meio a uma enchente no engenho. A água entra por todo lado, vinda da chuva e do rio que transbordou. O defunto se separa do próprio caixão pela força da corrente e começa a bater nos móveis. Uma cadeira se choca contra o corpo da criada, mas ela não desiste de seu objetivo. “Seu antigo senhor está morto, mas ela é tão servil, que ainda assim precisa salvar o cadáver da enchente”, descreve Flávia Pinheiro, diretora do espetáculo de dança A enchente. Baseado no conto
homônimo de Hermilo Borba Filho, o trabalho fica em cartaz entre 16 e 26 de março, no teatro que leva o nome do escritor, no Bairro do Recife, através do projeto O Solo do Outro. Corpos que atravessam o espaço e que se atravessam entre si, com uma fluidez característica da força da água. “Dos quatro contos propostos no edital, escolhemos esse e trabalhamos com as qualidades da dança moderna de Rudolf Laban, a textura do movimento, pensando nas características da água (leveza,
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contínuo, fluido, em deslocamento através do ar). Além disso, Maria Paula Costa Rêgo, nossa dramaturga corporal, também ajudou bastante nesse trabalho com as três performers”, explica Flávia. “É uma água que atravessa, cachoeira, que vai com tudo.” O espetáculo tece um diálogo entre projeção cinematográfica, áudio, dança e é dividido em três partes. Na primeira, um prólogo sobre o rio citado no conto. Todas as imagens projetadas têm relação com o movimento do rio e o corpo das performers segue esse movimento. A segunda parte é a relação, no conto, da mulher com o defunto e os objetos que se chocam contra eles. Tudo no plano da matéria, da relação física. As bailarinas/ performers Gardênia Coleto, Marcela Aragão e Marcela Filipe trabalham neste impacto físico com os objetos. “A terceira parte é um delírio, sai do conto e amplia a ideia de enchente numa simbologia de ‘enchentes humanas’, imigrantes tentando entrar na Europa, por rio, por água, por terra… Ou do México para os EUA. Multidões passando, num momento bem oportuno para falar dessa relação de vida e morte, justamente, a ideia do conto, se a água traz a vida
1-2 A ENCHENTE Três performances traduzem em movimento o conto de Hermilo
Colocamos um monte de mulheres e o Hermilo criança, crescendo, no teatro”, explica Flávia.
PROJETO
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ou a morte. Aí, trabalhamos, de forma quase literal, com imagens midiáticas dos imigrantes projetadas. As bailarinas estão tensionando um fio que está quase quebrando”, descreve a diretora. Fica marcada no conto a ideia de gênero, a mulher empoderada, mas que não consegue salvar o cadáver. “Nós escolhemos, filosoficamente, falar sobre essa ideia de vida e morte, já que na contemporaneidade isso é algo complicado. Quem é que faz morrer e quem é que faz viver? Quem eu deixo entrar e quem eu deixo sair?”
ADAPTAÇÃO
“Aqui estou eu, de pés plantados na terra, vomitando palavras.” Hermilo Borba Filho escreveu peças para teatro e escritos sobre o ator e sobre teoria teatral, mas não escreveu nada sobre dança. Suas histórias têm muita referência ao corpo, ao carnal, às mulheres, ao sexo. “Ele era uma pessoa muito ligada às coisas da terra, tinha uma personalidade mais dionisíaca do que apolínea. Dionisíaca no sentido carnal, visceral”, comenta Leandro Oliván, autor do desenho audiovisual do espetáculo.
Filho de um senhor de engenho de Palmares, Pernambuco, Hermilo se mudou para Recife na adolescência após a falência de sua família. Na vida adulta, carregava consigo a contradição do passado aristocrático e um presente que buscava desligarse dele. “Queríamos pôr em cena essa contradição entre o aristocrata e o homem do povo, trazer à tona essa característica de Hermilo com imagens dele, mas ressignificando a sua história. Acabamos criando um personagem dele nos vídeos para contracenar com a dança. Usamos imagens de cineastas do cinema experimental Found Footage e comecei a desenvolver uma narrativa visual de como teria sido a infância de Hermilo”, conta Leandro. Numa das cenas, as bailarinas manipulam tábuas de madeira. Ao mesmo tempo, são projetadas em vídeo várias imagens de mulheres famosas da história do cinema experimental mundial. “Imagens conhecidas do cinema para falar sobre as mulheres, o trabalho delas, criando a ideia ficcional de colocarmos Hermilo naquele universo feminino.
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Idealizado pelo produtor cultural e artista Arnaldo Siqueira, em 2002, o projeto O Solo do Outro é voltado para o diálogo e o intercâmbio da criação artística, juntando artistas com percursos e formações distintos num mesmo local, e propondo uma provocação para tirá-los de uma zona de conforto: “Comecei a perceber que no Recife, e não apenas no Recife, o diálogo sobre criação artística é um pouco engessado. No Brasil, há bons artistas, mas pouco diálogo sobre o processo de criação. São vários nichos, mas pouco intercâmbio de ideias”, opina Arnaldo. O modelo do projeto, realizado desde a sua criação no Centro Cultural Apolo Hermilo, através da Prefeitura do Recife, foi inspirado nas residências artísticas muito comuns nas artes plásticas, em que vários artistas/ criadores ocupam um mesmo local durante um período de tempo e convivem lado a lado. “O segundo ponto foi, justamente, colocar os artistas em contato uns com os outros e também com alunos e o público interessado, juntar opiniões bem diferentes sobre o fazer artístico e colocá-las como em atrito, conflito de estéticas e poéticas, apostando num resultado a partir desse cruzamento, já que nas artes cênicas existe mais tensão nas relações do que ações complementares”, continua. A atual coordenação do projeto é de Carlos Carvalho, diretor do teatro Hermilo Borba Filho e um estudioso da obra do escritor. A proposta do atual edital é levar Hermilo para a dança. “Carlos veio com a ideia, escolheu quatro contos do escritor e me consultou. Eu disse que o desafio seria bom, já que Hermilo era dramaturgo e teórico do teatro, mas não chegou a trabalhar com dança. A gente anteviu que poderia ter substância ali, ser um bom substrato para a criação”, revela Arnaldo.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
RECIFENSES
Não precisa nem ter nascido no
Recife mas, claro, ter nascido no Recife já é um ponto a mais, um sinal de nobreza, de precedência, de preponderância. Não nasci aqui mas aceito que se dê esse título de superioridade aos recifenses natos. Seguindo a teoria de Jorge Luís Borges, de que os verdadeiros europeus são os argentinos porque, estes sim, querem e sentem orgulho de ser europeus, assim também posso ou poderia, mediante tal asserção, nascido em Ipojuca, me considerar recifense, como outros nascidos mais longe, alguns até cultivando um certo rancor, transformados em recifenses a pulso, sem terem sido consultados, alegando sempre que são de outro lugar melhor, mais nobre, sei lá mais o que. Há recifenses, nascidos ou não, que fazem questão de demonstrar vocação para morar em Nova Iorque, um século atrás em Paris, ou no Rio ou São Paulo, considerando o Recife duro exílio, sem perderem a esperança de algum dia “chegarem lá”. Há pessoas para as quais o lugar é o de menos. Bem ou razoavelmente amadas ou alimentadas,
sua terra é a que lhes dá de comer e onde se sentem bem. Perdi-me nessa protofonia, quando apenas pretendia referir alguns hábitos recifenses. Quer dizer, o indivíduo não precisa tê-los para ser recifense. Ser recifense não obriga a nada. Por exemplo, ter raiva de todo mundo é um hábito recifense, embora nem todo recifense tenha raiva de todo mundo. O sujeito que vem de fora se sente rejeitado, acha a sociedade recifense fechada, seita secreta que nem sempre depende de dinheiro, ou nem só dinheiro, nem de moral, pois dentro dela há indivíduos de toda espécie. (Uma vez uma amiga que faz parte dessa elite, pessoa de conduta ilibada, diga-se de passagem, como eu tivesse encaminhado ao irmão dela uma jovem recém-formada de minha família, porque o tal irmão era da área e poderia orientá-la, essa minha amiga, ao tomar conhecimento do fato, me disse indignada: “José Cláudio, você é louco? Você não sabe que meu irmão é um crápula?” Confesso que acreditava que naquela esfera a ética fosse um dos pontos fundamentais.)
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Vamos tratar de assuntos mais leves. Ver surgir o mansíssimo Capibaribe nos lugares mais inesperados, como pegando modorra meio-dia em ponto aproveitando a sombra dos manguezais, a indefinível cor da sua água, cor de caldo de cana, de mel, de lama do mangue com reflexos do azul do céu, indiferente à impressão que nos cause: o contingente aqui somos nós, fala baixo. O irresistível apito do homem do cuscuz, que quando ouço instintivamente viro a cabeça para todos os lados, sendo nisso cúmplice um taxista com quem costumo andar, Mané “Vela”, de vista melhor do que a minha: “Lá vai ele ali, seu Zé”. Abro aqui um parêntese. Há alguns domingos, Regina Casé, no programa Esquenta, chamou um rapaz: “Feijão!” Quando o rapaz apareceu, ela se virou para a câmera e disse: “Chamam ele de ‘Feijão’ porque é preto. Você já viu chamarem alguém de ‘Arroz’ porque é branco?” Se tivesse acesso, lhe diria que “Arroz”, não, mas conheço um que se chama “Vela” porque é branco, e outro que se chama “Café”. Alguém chama: “Café!” Ele responde: “Royal.
REPRODUÇÃO
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Honestamente café.” Eu até conheci Regina Casé, se não me engano casada com um pintor que participava do Prêmio Dior, de que também participei, no Rio de Janeiro, ocasião em que conheci também Jorginho Guinle, uma simpatia, até disse que me visitaria em seguida aqui, um ótimo pintor, mas morreu dias depois, na flor da idade, morte que senti. Como também conheci o escultor Sérgio Camargo, jantamos juntos lado a lado na mesma mesa, lembro de ele ter dito: “Que história é essa de artista querer ser gente? Pintor é vagabundo. No dia em que perdermos essa ideia, de que somos vagabundos, nós é que estamos perdidos”. Voltando ao assunto do apito do cuscuzeiro. Eu fico doidinho. Esqueço que sou diabético. Basta vê-lo ao longe, o tabuleiro de lata, hoje de alumínio, o estradinho fechado no ombro. Momento de felicidade. Prenúncio de felicidade: a felicidade mesmo é quando ele levanta a tampa da caixa, quando vejo as divisões, cuscuz com ou sem coco, as tiras de canjica. A maioria vem de Dois Unidos e em Olinda da Vila Popular. Como o Capibaribe, eles podem surgir
Se me perguntassem qual o som da felicidade eu responderia o do apito do homem do cuscuz em qualquer bairro, em qualquer volta do caminho, na parte da tarde e até o escurecer. Se me perguntassem qual o som da felicidade eu responderia o do apito do homem do cuscuz. Tabuleirinho que me seduz, mais achatado, silencioso, é o do homem do doce japonês. Outro parêntese. O delegado de Ipojuca quando eu era menino, eu doido por doce japonês ou qualquer outro, era um sargento gordão, de que os meninos morriam de medo. Lá vem na rua, de barro naquela época, o menino Jabuti gritando: “Doce japonês!” O sargento parou, mandou arriar o tabuleiro, comeu um pedaço do doce e disse ao menino: “Cabra! Você não sabe que estamos em guerra com o Japão?” Sabia lá Jabuti pra que
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JAPONÊS
Carvão sobre papel, 21 x 12 cm, 2016, de José Cláudio
lado ficava o Japão! “Se você sair por aí gritando ‘Doce japonês’ eu metolhe na cadeia”. Comeu outro pedaço de doce e foi embora. Jabuti botou o tabuleiro na cabeça e saiu gritando: “Doce! Ói o doce!” Tanto o vendedor de cuscuz quanto o do japonês, primeiro tiram do ombro e abrem o estradinho em xis, botam a lata em cima e a “rudia” (rodilha) nas travessas do encontro das pernas em xis do estrado. Este, doce japonês, ainda é para mim mais mortal. Açúcar puro e coco ainda mais. Gostam de ficar parados em algum lugar muito frequentado, porta de banco etc. Coco, amendoim, goiaba, batata doce. Fico em dúvida e experimento mais de um. Gostava também de pirulito, meio desaparecido ultimamente, ou sou eu que deixei de andar na rua, as pernas já sentindo o peso da idade. Inda alcancei o homem da bolinha de cambará. Por hoje só deu para falar de doce. Faltou mel de engenho, o homem vendendo numa cabaça e gritando: “Mé novo di ingein!” Aliás o rei de todos os doces. Com farinha principalmente...
DESAMAR Celebração ao (des)amor
GABRIEL MASCARO/DIVULGAÇÃO
Série organizada por Gabriel Mascaro reúne relatos e imagens de anônimos que recortaram ex-amores de suas fotografias TEXTO Marina Moura
Visuais Cena 1: Após romperem um namoro de quatro anos, Drazen Grubisic e Olinka Vistica não sabiam o que fazer com os objetos que remetiam ao relacionamento, tampouco eram afeitos à ideia de desfazer-se deles. Foi assim que, em 2006, fundaram o Muzej Prekinutih Veza (Museu dos Relacionamentos Malogrados), em Zagreb, na Croácia, onde é exibido o que restou do amor deles e de outras pessoas. O acervo conta com itens de vários lugares do mundo – como vestidos de casamento nunca usados, recipiente para lágimas, chaves, ursinhos de pelúcia, cartas e um buquê de papel (este último, aliás, pertenceu à jornalista e escritora brasileira Vanessa Barbara) – cada
um acompanhado de legendas situando rapidamente em que contextos foram descartados. Cena 2: A artista visual francesa Sophie Calle recebeu um e-mail do então namorado, o escritor Grégoire Bouillier, no qual terminava o romance dos dois. Ela convidou 107 mulheres de diferentes idades e profissões para responder à mensagem de Bouillier e opinarem sobre o término. Esse é o mote da instalação Prenez soin de vous (Cuide de você), numa referência à última frase do e-mail. A mostra exibe a imagem dessas pessoas, entre conhecidas e desconhecidas, vídeos com a interpretação delas, frases, gráficos e painéis – uma espécie de relicário
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às avessas, cujo centro se baseia não na lembrança do amor, mas no que fazer após o seu fim. Cuide de você foi apresentada na Bienal de Veneza de 2007 e no Brasil, exibida no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Cena 3: “O que fazer com os retratos de amor? Como se relacionar com a memória fotográfica de uma pessoa ou presença outrora querida, que agora passa a assombrar mais que um fantasma?”, foram os questionamentos iniciais do cineasta e artista visual pernambucano Gabriel Mascaro. Ele coletou fotos aleatórias através de conhecidos e desconhecidos com a pergunta: “Sabe de alguém que teria cortado o retrato com tesoura no processo
conta “do eminente desaparecimento de uma técnica e prática sentimental muito peculiar de intervenção na imagem”, afirmou à Continente. Em tempos de digitalização e da queda no número de fotografias impressas, deletam-se fotos inapropriadas à lembrança, para apagá-las. Na contramão desses tempos, o artista fez questão de “grafar um gesto no tempo” e reunir o que chama de “micronarrativas”. Ao longo da realização da série, Gabriel prezou por encontros aleatórios e teve a preocupação de filtrar as malogradas histórias de amor para manter anônimos os 13 participantes. As marcas de tesoura cega nas fotos, a precariedade dos cortes, a assimetria deles chamaram a atenção do pernambucano, que resolveu também recolher e registrar os objetos cortantes. Mascaro interpretou a tesoura
“É um favor que você me faz levar esse retrato, mas da tesoura eu vou sentir muita falta, porque era da minha mãe. Eu lembro do som dela cortando tecidos para fazer as roupas” de separação?” Eis o procedimento que culminou na obra Desamar, série que reúne 13 fotografias impressas de anônimos, a tesoura utilizada para suprimir o examor da imagem e um pequeno depoimento sobre cada um deles. Os diferentes cenários supracitados se assemelham, primeiramente, por se utilizarem da temática de desilusão amorosa – uma devastação sempre íntima e pessoal – como mote para criações artísticas e, portanto, tornadas públicas. O segundo ponto é que, em diferentes recortes temporais, as três obras seguem a tendência de desmistificar a visão abstrata que se tem da arte contemporânea e necessitam da colaboração direta
de outros indivíduos e do cotidiano deles, exteriores à cena artística, para realizarem sua empreitada em caráter coletivo. Pode-se observar, ainda, que os artistas vão buscar suas bases na realidade, no que aconteceu de fato – objetos que fizeram parte de uma história de amor, um e-mail que realmente pôs o fim a uma relação, fotografias pessoais cortadas, indicando a destruição amorosa –, para transpor a realidade em criação, confundindo e mesclando o real com a arte.
RECORTADOS
No ensaio fotográfico, Mascaro procurou fazer perdurar uma cartografia do desafeto, ao se dar
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como uma ferramenta poderosa e um elemento de interpretação das imagens, em suas palavras “um instrumento de potência para assentar lembranças e produzir um novo lugar para os personagens do retrato”. O que vemos são tesouras para cortar tecido, unha, papel, todas envelhecidas, lâminas gastas, tomadas por ferrugem e tão arruinadas quanto o amor a que se referem. Elas estão ali para nos fazer compreender o que um dos personagens da escritora italiana Natália Ginzburg certa vez proferiu: “Mas não se amam apenas lembranças felizes. A certa altura da vida, percebe-se que se amam as lembranças”.
GABRIEL MASCARO/DIVULGAÇÃO
Visuais
Os depoimentos que também fazem parte de Desamar não se assemelham a cartas de amor, pois não se dirigem diretamente ao outro nem aguardam por uma resposta. Todas as falas, no entanto, contêm o indivíduo que se foi e sentimentos que variam da raiva, mágoa, alívio à saudade – “Ele não vai se esquecer de mim nem tão cedo”, “Passado apagado!”, “Não quero falar nada sobre ela”, “É um grande favor que você me faz levar esse retrato embora”, “Hoje, eu acompanho ela só pelo Facebook”. “Eu faço de tudo para lembrar as feições do rosto dele e não consigo” é uma das declarações mais melancólicas do conjunto, porque evidencia justamente as mazelas de lembrar e esquecer, duas instâncias da memória que frequentemente estão em interseção. Se é verdade que a ausência é relativamente
“Ele me ligou e acabou por telefone. Eu estava no açougue de vovó e a tesoura de desossar galinha foi a primeira coisa que vi. Ele hoje se arrepende, mas não sou mulher de voltar atrás. Passado apagado!” bem-suportada e o recorte da fotografia funciona como tentativa de encontrar alívio perante a lembrança, esquecer o outro – De que cor eram seus olhos, seus cabelos? Como sorria para a foto? – mostra-se tão desalentador quanto lembrar-se dele.
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Em seu livro Fragmentos do discurso amoroso, o escritor e filósofo francês Roland Barthes observa que “a ausência amorosa só tem um sentido, e só pode ser dita a partir de quem fica – e não de quem parte; eu, sempre presente, só se constitui diante de você, sempre ausente”. Barthes completa: “Na ausência amorosa sou, tristemente, uma imagem descolada, que seca, amarelece, encarquilha”. O projeto fotográfico de Mascaro dialoga sobretudo com a ausência do outro, e sua subtração da foto é uma metáfora do que ocorreu na intimidade. As imagens e palavras de Desamar tentam, a todo custo, na visão do artista, “suprimir um tempo, ausentar um rosto, corpo ou presença”. Porém, ao evidenciar esse ausente, ao evocá-lo, seja no papel cortado, seja no depoimento, “o vestígio faz da ausência uma nova presença”, aponta.
PROJETO
Em 2015, antes de concluir Desamar, Gabriel Mascaro recebeu o convite do fotógrafo Gilvan Barreto para participar do livro-CD Orquestra Pernambucana de Fotografia (OPF). O projeto, inédito, reúne artes visuais e música em uma homenagem à criatividade pernambucana. A OPF, idealizada por Gilvan e produzida por Pupillo e Berna Vieira, reúne nove ensaios fotográficos acompanhados por nove canções, que dialogam entre si livremente. Nomes como Bárbara Wagner, Ana Farache, Beto Figueiroa, além do próprio Gilvan, contribuem com fotografias para a orquestra. Otto, Karina Buhr e Jorge Du Peixe estão entre os músicos envolvidos. No caso da série de Mascaro, ele conta que enviou seu trabalho diretamente para a curadoria da OPF, sem qualquer interferência
“Faz tempo que ele não está mais entre nós. Tinha apenas este único retrato com ele. Antes de partir, ele me pediu desculpas pelo que fez de errado. Hoje, faço de tudo para lembrar o rosto dele e não consigo.” e sem saber sequer quem seria sua “dupla” no livro-CD. “Quando descobri que o cantor iria ter contato com meu trabalho e se inspirar na minha série, fiquei muito feliz.” O ex-vocalista da banda Cordel do Fogo Encantado, Lira, compôs uma música homônima, com versos como:
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“Cortei nosso retrato/ rasguei sua cabeça/ meu amor”. Desamar, a série, é como um tempo presente insuportável. Flutua entre dois momentos: o de referência a um passado vago, anterior ao das fotografias recortadas, o tempo de amor; e o momento em que estamos diante de um discurso, uma imagem sobre o ausente, diante de fotos destroçadas, pedaços de angústia, desamor. Ao manipular a ausência, Mascaro define seu trabalho como um “microinventário antirromântico” e acredita que expor a intimidade de terceiros é um modo de agenciar encontros e reorganizar experiências. Ao coletar fotografias, tesouras e relatos para criar sua série fotográfica, Gabriel Mascaro, ao mesmo tempo que escancara a dificuldade de exterminar os vestígios do amor, eterniza-o, ainda que pela ausência.
ANDRÉ VICENTE GONÇALVES
Visuais
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FOTOGRAFIA Uma abertura para o mundo Com o projeto Windows of the World, que já passou por diversas cidades, o português André Vicente Gonçalves registra as mais diversas culturas através das janelas TEXTO Daniela Lacerda, de Portugal
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Metafórica em essência, a janela é tema recorrente no universo da arte, abrindose a um panorama de interpretações e reflexões geralmente associadas à ideia de passagem. No trabalho de André Vicente Gonçalves, ela se basta: não é percurso, e, sim, destino. O olhar não atravessa, para. Não importa o que está além, mas a fronteira. O fotógrafo português já
1 VIAGENS Coleção de Veneza é rica em texturas
clicou quase 4 mil delas em diversas cidades europeias. E o projeto – de vida – é alargar o olhar até contar com registros de todos os países. André Vicente é autor de Windows of the World, conjunto de ensaios sobre janelas que começou a ser publicado no site do fotógrafo (www. andrevicentegoncalves.com), em meados de 2015, e logo viralizou. O trabalho chamou a atenção da imprensa e foi apresentado em diversas publicações e continentes, incluindo títulos como CasaVogue, CNN, The Telegraph
e The Washington Post – ele conta que, nas primeiras semanas, chegava a receber cerca de 15 solicitações de entrevista por dia. “É uma forma diferente de viajar. Tento captar a identidade de cada região a partir de suas janelas”, define. No momento, há 20 álbuns online: Albufeira, Atalaia, Ericeira, Évora, Guimarães, Lisboa, Montemoro-Novo, Porto, Santa Susana, Sesimbra e Vendas Novas (em Portugal); Burano, Veneza e Trento (na Itália); Barcelona (na Espanha); Bucareste (Romênia); Londres + Notting Hill (Reino Unido); Alpes europeus (duas colagens). Antes de partir, o fotógrafo faz uma pesquisa sobre a cidade, identifica elementos típicos da arquitetura local e escolhe um deles como guia – em Lisboa, por exemplo, o ponto de partida foi o azulejo. Em cada viagem, chega a fotografar de 100 a 200 janelas por dia, uma a uma, na luz da manhã e da tarde. “Costumo me afastar da parte turística; o que dá mais prazer é descobrir a cidade como ela é”, afirma. Nesse enveredar, a percepção inicial incorpora novos olhares e sentimentos, que tanto podem render ensaios extras (o bairro de Notting Hill, em Londres, acabou ganhando uma série exclusiva), como modificar o enredo original, passando a funcionar como fio condutor. “Não há nenhum conjunto que chegue do princípio ao fim com aquilo que eu tinha imaginado. Às vezes, tenho uma ideia com relação a uma cidade, mas, quando olho todas as fotografias, vejo que há um padrão no qual não tinha pensado anteriormente e que faz mais sentido.” O processo de edição consome, usualmente, três semanas. André Vicente desloca as imagens escolhidas para uma fachada fictícia com 32 janelas (e apenas janelas): quatro na vertical, oito na horizontal, avizinhadas de acordo com suas cores, traços, texturas. São essas composições, chamadas de coleções, que ele apresenta ao público. Inicialmente, o trabalho só podia ser visto na plataforma digital, mas novas frestas foram se abrindo. Em agosto de 2015, realizou uma exposição em Brasov (Romênia), durante a terceira edição do festival de cultura urbana
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Boehmian Square. Neste 2016, planeja lançar o primeiro livro do Windows of the World, focado apenas em Portugal – se tudo der certo, cada país clicado pelo fotógrafo ganhará uma versão impressa. O projeto também se materializa em painéis montados para clientes, que podem ser encomendados no site, e assim passa a viajar independentemente do autor, redesenhando o mapa inicialmente traçado. Esse reconfigurar de rotas e desejos é familiar para André Vicente. Natural do Alentejo, no Centro-Sul de Portugal, ele cursou Engenharia Informática na cidade de Évora, onde nasceu, e estudou alguns meses em Trento, na Itália, por meio de um programa de intercâmbio. Talvez o curso fosse mais interessante por lá, disse a si mesmo. Não era. Decidiu ter uma conversa com os pais, matriculouse numa nova graduação, dessa vez em Fotografia, e começou a trabalhar como freelancer para publicações de vários países, muitas vezes associando as demandas profissionais à paixão por viagens, por aventura, pela natureza e, claro, por janelas. “Reuni as milhares de fotos que havia feito de acordo com cada cidade ou região e comecei a criar as coleções que deram origem ao projeto Windows of the World. O resultado é um estudo sobre arquitetura e estética urbanas, salientando a singularidade das janelas mundo afora”, explica André Vicente, na apresentação da série em seu blog. Para nós, espectadores, é como se, ao emoldurar tão assertivamente o nosso olhar, o fotógrafo nos instigasse a fantasiar, conjecturar, supor. Porque embora funcione, em certa medida, como um registro documental, o projeto satisfaz menos a curiosidade e mais o deleite visual e mental. Não se aprofunda, nem pretende, na história de cada cidade, estilo, endereço, janela. Apenas sugere e suscita: a vontade de contemplar, de pesquisar, de visitar ou de simplesmente divagar pelas possibilidades insinuadas em cada imagem, isoladamente ou como parte do mosaico desenhado por André Vicente. Talvez resida aí, na provocação às aventuras intelectuais do espectador e nessa “rancièriana” autonomia do imaginário, a mais luminosa superfície do projeto.
CON TI NEN TE
Criaturas
Marcel Duchamp por Alexandre Dantas
Existe um ímã de geladeira que diz: “Duchamp é inocente”. A ironia não é à toa. O nome do artista
francês (1887-1968) virou a referência da experimentação contemporânea, a partir do ready-made, objetos prontos que passam a ser arte. Os maiores símbolos são o seu urinol e a sua roda de bicicleta. Duchamp é ainda conhecido como o expoente do Dadaismo, que, em 2016, comemora 100 anos.
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Pernambuco. Tão fácil de chegar como de se encantar.
HUB
AZUL A instalação do centro de conexões da Azul Linhas Aéreas no Aeroporto Internacional do Recife/Guararapes – Gilberto Freyre torna ainda mais convidativa a sua vinda ao Estado. Com o Hub Azul, você agora conta com muito mais opções de chegar à capital pernambucana, que passa a ser a única do Nordeste conectada, por voos diretos, a todas as outras capitais e as principais cidades da região. Ficou mais fácil aproveitar toda a diversidade cultural e turística de Pernambuco, onde 180km de belas praias estão à sua espera. São assim as nossas boas-vindas: procurando encantar cada vez mais você.
• Recife interligada com todas as capitais e as principais cidades do Nordeste. • 64 voos diários para 24 cidades. • Até 6.496 pessoas transportadas por dia. • A Azul reconhecida com o selo de empresa aérea low-cost mais pontual do mundo (Official Airline Guide, 2016).
www.revistacontinente.com.br
# 183
#183 ano XVI • mar/16 • R$ 13,00
CONTINENTE
ESPECIAL A SUSTENTÁVEL MODA DO INTERIOR E MAIS CIBELE FORJAZ FESTIVAIS DE TEATRO GABRIEL MASCARO
MAR 16
CHICO NO CINQUENTENÁRIO DO MÚSICO, REMONTAMOS O CAMINHO QUE LEVOU À CRIAÇÃO DO MANGUEBEAT E À CONSTRUÇÃO DE SEU ÍCONE