www.revistacontinente.com.br
# 186
#186 ano XVI • jun/16 • R$ 13,00
CONTINENTE
E MAIS: CÉU ANITA PRESTES RIO NEGRO RICARDO CAVOLO H. P. LOVECRAFT COLETIVO ANGU PICASSO
JUN 16
ALCEU INESGOTÁVEL, MAIOR NOME VIVO DA MÚSICA PERNAMBUCANA CHEGA AOS 70 ANOS
HÉLIA SCHEPPA
O MENINO CON TI NEN TE
CAPA
CONTINENTE JUNHO 2016 | 20
DA TARDE Prestes a completar 70 anos no dia 1º de julho, o maior artista vivo da música pernambucana fala sobre novos projetos e os bastidores de sua intensa carreira TEXTO Débora Nascimento
No começo da tarde de uma bem-
vinda e ensolarada sexta-feira, depois de uma semana de maio em que o clima brincou de sol e chuva, a cidade alta de Olinda, indiferente ao barulho e à agitação de sua parte baixa, se comporta como se estivesse em um tempo longínquo. Os poucos automóveis que circulam pelas ruas estreitas e seculares interrompem o silêncio que permeia as casas coloridas. Uma delas, situada à Rua de São Bento, abriga um morador-símbolo desse lugar impregnado de história, música e alegria: Alceu Paiva Valença. Assim que passou pela porta de entrada da residência, a reportagem da Continente avistou o artista sentado no sofá posicionado no lado esquerdo da sala. Empertigado e altivo como um cacique, Alceu ainda estava se refazendo do cochilo que tirara alguns minutos antes. De óculos Ray-Ban estilo aviador, camisa preta de manga longa, concedia entrevista ao primeiro dos três veículos de comunicação que receberia naquele turno. Ao redor, Júlio Moura, seu assessor de imprensa há mais de sete
anos, se encarrega de acompanhar os ponteiros e lembrar a passagem das horas ao loquaz assessorado. Ao final da primeira entrevista, o cantor atende à nossa equipe. Para aproveitar a luz das quatro da tarde, mais propícia à fotografia, a sessão de fotos é feita de imediato. Ele não nega nenhum pedido da fotógrafa Hélia Scheppa: tira a camisa, bota a camisa, deita no chão, sobe na janela. O fotografado ideal. Ao sentar para a conversa, o compositor não espera a primeira pergunta e já vai falando – um sinal de que o roteiro de mais de 30 perguntas seria fatalmente alterado. Em cada uma de suas respostas, o artista aproveita para contar histórias hilárias, declamar poemas, cantar e/ou imitar alguém, praticamente uma performance. A função de um repórter, nessa hora, é se esforçar para sair da quase irresistível condição de espectador e tentar trazer o entrevistado de volta à questão e, assim, conduzir de alguma forma a entrevista. “Sempre fui muito tímido. Estou falando muito pra acabar com a minha timidez, mas eu fico com
CONTINENTE JUNHO 2016 | 21
vergonha. Tenho duas pessoas dentro de mim. Uma que diz, ‘Alceu, fale!’ E outra, ‘Alceu, Psssiu!’ Tem um outro que diz, ‘Alceu, por favor, está querendo aparecer?!’”, conta, entre gargalhadas, já na metade da entrevista. Essa hiperatividade foi percebida logo cedo por sua mãe, Dona Adelma, quando residia em São Bento do Una, cidade de cinco mil habitantes a 213 quilômetros de Olinda. Em pleno Agreste, na porta do Sertão, o garoto era uma espécie de Tom Sawyer. Assim como o personagem de Mark Twain, sempre estava aprontando alguma travessura e, principalmente, observando e absorvendo a cultura ao redor: os causos acerca de Lampião, os alto-falantes da feira, as quadrilhas juninas, os violeiros, os aboiadores, a literatura de cordel, os familiares que tocavam instrumentos em casa… Quando Alceu tinha sete anos, a família mudou-se para Garanhuns, e, três anos depois, para o Recife. Ele trouxe à capital pernambucana a formação cultural do interior e nunca mais abandonou essas referências sólidas, mesmo tendo contato com
CON CAPA TI NEN TE FOTOS: REPRODUÇÃO
as transformações musicais dos anos 1960, mais ligadas ao rock. Seu primeiro disco, lançado em 1972, em parceria com o amigo Geraldo Azevedo, é uma prova disso. O álbum foi gravado no Rio de Janeiro, cidade para onde migrou em 1970 com a intenção de viver de arte. Viajou sem dinheiro e sem apoio de Seu Décio. Ao contrário da mãe, que incentivava o filho e até o presenteou com o primeiro violão, o pai insistia em que ele fosse advogado. Alceu tentou, formou-se em Direito em 1969, mas o interesse durou poucos meses. “Meu irmão Decinho ajudou a alugar apartamento para mim. Eu não tinha dinheiro pra nada, andava quilômetros. Por isso que ando até hoje 10 mil metros por dia. Eu ia do Leme até a Glória encontrar Geraldo Azevedo. Ia a pé pra não gastar o dinheiro do ônibus”, revela. Um dos produtores do disco, o italiano Cesare Benvenuti, ofereceu seu apartamento para os dois nordestinos morarem e ensaiarem. Como a verba da gravadora Copacabana era curta, o que significava poucas horas de gravação, o produtor teve uma ideia que combinava com o espírito peralta de Alceu: acertou com o técnico de som que deixasse a chave do estúdio debaixo do tapete para que os dois músicos pudessem chegar de madrugada, na surdina, para gravar. O resultado dessa iniciativa é que Alceu e Geraldinho tiveram mais tempo para burilar seu trabalho e entraram no mercado fonográfico com o pé direito: seu disco de estreia, lançado em 1972, é um dos mais inventivos da década, com faixas de arranjos complexos, como Planetário, 78 rotações, Mister Mistério, Seis horas, Virgem Virgínia (que parece uma música da Belle and Sebastian, banda escocesa que surgiria 20 anos depois), e já trouxe, de cara, um hit, Talismã, que estava na trilha sonora da novela da TV Globo Irmãos Coragem. Nos seus créditos, o álbum ainda incluía arranjos de cordas do maestro Rogério Duprat, o mago por trás de gravações emblemáticas, como Tropicália ou Panis et circenses (1968), dos Tropicalistas, e Construção (1971), de Chico Buarque, respectivamente 2o e 3o lugar na lista da Rolling Stone dos maiores discos da música brasileira.
1
“Eu ia do Leme até a Glória encontrar Geraldo Azevedo. Ia a pé pra não gastar o dinheiro do ônibus” Alceu Valença
Apesar de funcionarem como dupla, os artistas pernambucanos tinham estilos diferentes. Por isso, decidiram não seguir juntos no mercado fonográfico. Dois anos depois, Alceu atuou em A noite do espantalho e participou de sua trilha sonora, feita em parceria com o diretor e compositor Sérgio Ricardo. A atuação foi elogiada, mas o pernambucano acabou enveredando mesmo pela música. Ainda em 1974, lançou, pela Som Livre, o primeiro disco solo, Molhado de suor, bastante elogiado pela crítica. Dentre
CONTINENTE JUNHO 2016 | 22
as faixas, está Papagaio do futuro, que se tornaria uma das composições icônicas do seu cancioneiro. Nesse mesmo ano, outros músicos pernambucanos também estiveram no Rio de Janeiro para gravar seu primeiro disco: os membros da Ave Sangria, contratada da gravadora Continental. Após o álbum ser lançado, houve um imbróglio com relação à faixa Seu Waldir e o disco foi censurado, o que provocou o fim precoce do grupo. Alceu, então, convidou os integrantes para que o acompanhassem. Com exceção dos vocalistas Marco Polo e Almir de Oliveira, todos aceitaram o convite. E Alceu passava a ser ladeado pela melhor banda de rock de Pernambuco, que incluía instrumentistas brilhantes como o guitarrista Ivson “Ivinho” Wanderley e o baterista Israel Semente. No entanto, dos remanescentes só permaneceu o guitarrista Paulo Rafael.
ALCEU E GERALDO 1 Em 1972, músicos estrearam em LP feito em parceria AVE SANGRIA 2 Alceu, ladeado por ex-membros da banda e mais Zé Ramalho COM JACKSON 3 Em 1977, artistas percorream o país no Projeto Pixinguinha
2
3
Em 1975, com esse pessoal, que incluía ainda o percussionista Agrício Noya e Zé da Flauta, e mais Zé Ramalho e Lula Côrtes, Alceu participou do Festival Abertura, da TV Globo, com a música Vou danado pra Catende, poema de Ascenso Ferreira que ele musicou. A interpretação rendeu um vídeo, hoje disponível no YouTube, extraordinário único registro ao vivo dos músicos da Ave Sangria na época. Alceu, cinco anos antes de estourar com seu primeiro grande sucesso, Coração
bobo, que seria lançado em 1980, aparece, nessa espécie de videoclipe, esbanjando toda a sua presença cênica e a “energia dos doidos”, como um Mateus hippie e roqueiro. Sem dúvida, começa a ser erguida uma lenda. Numa época em que o mercado fonográfico já tinha os seus gigantes, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Alceu engata uma carreira com músicas inusitadas, que não se pareciam com nada que tocava no rádio e nem com o trabalho de contemporâneos como Zé Ramalho e
CONTINENTE JUNHO 2016 | 23
Fagner. Canções como Tropicana, Como dois animais, Pelas ruas que andei, Anunciação, Solidão, Estação da Luz trouxeram, além da pernambucanidade na melodia, expressões pitorescas, como “olhar agateado”, e frases poéticas, como “Pele macia, ai, carne de caju!”. O músico não formatou um gênero, como o fez Luiz Gonzaga, mas criou um estilo que só faz sentido com ele próprio. Por isso, ninguém das novas gerações de músicos trilhou seu caminho. O manguebeat, por exemplo, não se referia a ele. Das bandas da década de 1990, só a Jorge Cabeleira regravou Sol e chuva em seu primeiro disco, e, há três anos, a banda de hardcore de Surubim Hanagorik realizou um disco tributo com versões de algumas composições suas. Até 1985, com pouco mais de 10 anos de profissão, Alceu Valença já possuía canções que fariam outros artistas, menos inquietos, se darem por satisfeitos. Nesse ano, mesmo realizando um som chamado de “regional”, foi convidado para integrar a programação do Rock in Rio. Algo bastante pertinente. Afinal, nenhum bandleader brasileiro possuía a postura rock’n’roll que ele transbordava no palco. Naquele ano em que o Brasil fazia sua transição da ditadura para a democracia, o músico encarava, no Maracanã, sua
CON CAPA TI NEN TE RAFAEL MOTTA/DIVULGAÇÃO
4 VALENCIANAS Com Rodrigo Toffolo, maestro da Orquestra Ouro Preto DIRETOR 5 No set de A luneta do tempo, filmado em sua terra natal, São Bento do Una
6 NO MARCO ZERO Alceu comanda multidão em show carnavalesco
DIVULGAÇÃO
4
Anunciação, mais de 1,5 milhão; e La belle de jour, 800 mil unidades. Alguns desses álbuns lhe renderam prêmios e honrarias, como Amigo da arte (2014), indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Regional. Com o disco ganhou, em 2015, o 26º Prêmio da Música Brasileira na categoria Melhor Cantor Regional. Por ano, realiza espetáculos de diferentes formatos: para o Carnaval, para o São João, para teatro (Valencianas, realizado junto à Orquestra Ouro Preto, com a qual fez shows em Portugal e na França) e para festivais de rock, como o Psicodália e o Rock in Rio. Por conta desses shows, o cantor viaja bastante. “A minha vida é o trem, é a estrada, eu vivo o tempo todo andando pra cima e pra baixo, sou um caminhador.”
5
primeira grande plateia, algo que depois seria recorrente, principalmente quando começaram a ser promovidos os shows carnavalescos no Marco Zero e no Galo da Madrugada, bloco no qual costuma entoar seus frevos e os de J. Michiles, exibindo o seu talento como o melhor cantor de frevo de rua. A propósito, o seu lado intérprete sempre é algo que fica em segundo plano, quando sua obra é abordada. Com sotaque carregado, voz rascante, ele se tornou um dos mais representativos cantores do Brasil,
assim como foram Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, ambos de maneira completamente diversa. Sabe impor a uma canção sua personalidade, dando ênfase a palavras específicas, pulsando as frases curtas de suas estrofes. Em quatro décadas de carreira, o artista lançou 36 discos (24 de estúdio, 10 ao vivo e duas trilhas sonoras), mais de 300 composições, dentre elas dezenas de sucessos. Tropicana, por exemplo, em menos de um ano, vendeu 1,6 milhão de cópias; o disco Anjo avesso, que tinha
CONTINENTE JUNHO 2016 | 24
NOVOS FEITOS
Hoje radicado no Rio de Janeiro, onde, inclusive, vota, ele diz que tem vontade de voltar a residir nessa casa onde concedeu a entrevista à Continente. “Gostaria de morar em Olinda, mas meus filhos todos moram lá (no Sudeste). Um mora em São Paulo e três no Rio, aí é meio complicado. Eu queria morar aqui. Eu gosto daqui, adoro meus amigos daqui”, ressalta. No segundo semestre deste ano, será lançado o DVD Vivo! Revivo!, baseado
LEO MOTTA/PCR/DIVULGAÇÃO
no repertório do álbum Vivo!, de 1976, e que terá o acréscimo de canções de outros discos; e serão relançados em vinil Molhado de suor (1974), Vivo! (1976) e Espelho cristalino (1977). Para o próximo ano, está previsto o lançamento do documentário Vivo - Na embolada do tempo, roteirizado por Hilton Lacerda e dirigido por Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Além do talento como compositor, cantor e ator (exibido também na novela Mandacaru, de 1997), Alceu finalizou o seu primeiro filme, A luneta do tempo, cuja ideia nasceu há 14 anos. O longa, musical narrado em cordel, é protagonizado por Irandhir Santos e Hermila Guedes, que interpretam Lampião e Maria Bonita. O elenco traz familiares, como o filho Ceceu Valença, e amigos do diretor, como o cantor Tito Lívio. A história se passa em São Bento do Una e resgata suas memórias de infância. “Pra todo mundo que chegava perto de mim, eu lia o roteiro. Era gente em avião, em tudo que é canto”, conta, aos risos. A ligação com o cinema começou em São Bento do Una, onde havia duas salas
O maior sucesso de Alceu, Cavalo de pau, que tinha a faixa Tropicana, vendeu, em menos de um ano, 1,6 milhão de cópias de projeção, as quais frequentava com a mãe (leia mais sobre isso na entrevista a seguir). No Recife, ia ao São Luiz para assistir aos filmes do neorrealismo italiano e da nouvelle vague, como Acossado. De tanto imitar o protagonista, interpretado pelo ator francês Jean-Paul Belmondo, que passava a lateral do polegar nos lábios enquanto segurava o cigarro entre os dedos, Alceu se tornou fumante, o que provavelmente contribuiu para que fosse submetido a uma cirurgia cardíaca aos 52 anos. O nome Alceu Valença pode ser pronunciado assim, com nome e sobrenome, pelo Brasil afora. Em Pernambuco, basta dizer “Alceu”, que já se sabe de quem se está falando e o que isso representa. Falar “Alceu”
CONTINENTE JUNHO 2016 | 25
6
é lembrar, em poucos segundos, sua figura irrefreável no palco, num trio elétrico ou na sacada de sua casa em Olinda, onde sua aparição saudando os milhares de foliões é uma das tradições e atrações não previstas na programação oficial, mas na programação afetiva do carnaval pernambucano. A passagem rápida do tempo talvez não tenha nos dado a exata dimensão de que esse bicho maluco beleza é hoje o maior artista vivo da música pernambucana. Por baixo da cabeleira branca que insiste em empurrar a parte tingida (“A mulher pinta o cabelo, por que eu não posso pintar?”), das rugas de incontáveis expressões faciais, das marcas na pele de tantos raios de sol e da cicatriz da cirurgia no coração bobo, vive um jovem. Logo ao saber do motivo da entrevista, ele não espera a primeira pergunta e começa: “Eu não me sinto jamais com 70 anos, mas 70 é preocupante (risos). Nunca fiquei pensando nesse negócio de idade, agora é que tem essa coisa de 70. Fiquei com vontade de botar 70 07, porque eu posso ter 7 anos como ter 70. Eu sou um menino a vida toda”.
CON CAPA TI NEN TE HÉLIA SCHEPPA
Entrevista
ALCEU VALENÇA “TEMPO É SEGREDO SENHOR DE RUGAS QUE EU TENHO”
CONTINENTE Você já tinha pensado sobre idade, sobre chegar a essa idade? ALCEU VALENÇA O tempo se dilata como um fio, cordão elástico, caminho, estrada que nos transporta. A vida é uma estrada. Então, todo mundo está indo diante da estrada que vai dar no nada, talvez. E isso são as preocupações das pessoas, mas é uma coisa contínua. Esse tempo tríplice, presente, passado, futuro, tudo ao mesmo tempo. Eu me reporto muito ao meu passado. Eu sempre falei muito no tempo.
CONTINENTE JUNHO 2016 | 26
No meu primeiro disco, eu já falo da questão do tempo. O tempo em si não tem fim, não tem começo, mesmo pensado ao avesso, não se pode mensurar, buraco negro, a existência do nada, noves fora, nada. Por isso nos causa medo. Tempo é segredo, senhor de rugas que eu tenho, e marcas das horas abstratas, quando eu paro pra pensar. Isso era até uma música que ia fazer para o meu filme A luneta do tempo, que demorou tanto a ser feito, foram 14 anos.
CONTINENTE Fazer esse filme era um sonho antigo? ALCEU VALENÇA A gente vive do tempo, de lembranças, sobretudo. A gente projeta e está no presente. São lembranças da minha mãe. Minha mãe adorava cinema. São Bento do Una, minha cidade, tinha dois cinemas. Agora, não tem nenhum. Tinha o Cine Rex, onde eu, menino, ia ver os filmes com minha mãe, sempre. Todos os dias. Menino não era proibido de ir ao cinema, quando o pai levava. Depois, ficou muito careta, dizendo “proibido”. CONTINENTE Como foi a realização da trilha sonora? ALCEU VALENÇA É a primeira vez que eu faço trilha em função de alguma coisa, porque eu pensava, inclusive, que as músicas vinham através de um sopro divino. Não te direi que seria um “sopro divino”, mesmo porque não tenho religião. Tenho uma formação católica
“É muito difícil fazer, hoje no Brasil, uma arte verdadeira. Aliás, o cinema pernambucano está fazendo isso” que minha mãe tem. Mas mamãe mora à beira da praia de Boa Viagem. Ela tem 102 anos. Fica olhando o mar e diz: “Estou olhando pra Deus”. Eu pergunto, “Que Deus?” Ela: “O mar é Deus. Porque nos parece infinito.”
CONTINENTE Por que esse tempo todo? ALCEU VALENÇA Porque é muito difícil você fazer uma arte hoje no Brasil, uma arte verdadeira. Aliás, o cinema pernambucano está fazendo isso, uma arte verdadeira. Porque, primeiro, você não vai ter patrocínio, é quase tudo complicado, porque a indústria do entretenimento comeu, inclusive, a Lei Rouanet. Passei 14 anos pra poder conseguir patrocínio, era muito difícil, inclusive tive que aportar dinheiro do meu bolso. A segunda parte do filme quem pagou fui eu.
CONTINENTE Você gravou essa trilha em que ano? ALCEU VALENÇA Ah, não sei não! Faz muito tempo! Passei 10 anos fazendo essa trilha. Gravava em vários estúdios em Pernambuco e no Rio de Janeiro, de Tovinho, de Papini, no de Paulo Rafael. Depois, chamei os atores e estudei cinema com uma moça chamada Alexandra Lessa. Eu tive com ela 10 aulas. Ela é mulher de Aramis Trindade, que estava hospedado na casa do meu filho. Quando chego lá, o grande Waltinho Carvalho viu, por acaso, o que eu estava escrevendo. Ele disse: “É cinema! Vamos fazer esse filme. E eu vou dirigir com você”.
CONTINENTE JUNHO 2016 | 27
CONTINENTE Então, foi ele quem lançou a ideia. ALCEU VALENÇA A vontade. Pra não ser totalmente ignorante, fui à Livraria Letras e Expressões, perto lá de casa (Ipanema, RJ), e comprei o livro de Doc Comparato. Depois, estava fazendo a história, já conversando com Waltinho, mas ele não pôde, foi fazer Budapeste, na Hungria. Depois, Andrucha me encontrou em Campina Grande, eu estava com o roteiro. Ele leu e disse: “Vamos fazer?”. Eu pensei: “Tô bem”. Pois bem, Andrucha foi fazer Casa de areia. Então, o cabra da peste, que sou eu, já tinha se lascado por causa de Budapeste, me lasquei por causa de Casa de areia. Fui à casa do meu filho e encontro Aramis e Alexandra Lessa, que é sobrinha de Roberto Lessa, que eu botei no meu filme também. Ela morou aqui (Olinda), eu a vi pequenininha. Fez cinema. Eu não sabia nada disso. Eu pensava: “Eu tô lascado, o que é que eu vou fazer?”. Aí, ela disse: “Eu sei um pouco de cinema”. Eu digo: “É? Então, me dê umas aulas”. Ela me deu aulas maravilhosas. Quando chegou em 10 aulas, eu disse: “Desculpe, mas eu quero fazer o meu filme. Não quero olhar mais nada!”. Vi muito filme, filme iraniano, eu estava interessado na gramática do filme. Eu sabia já o como e o porquê do close ser colocado ali. Não entendia mais nenhum filme, porque eu prestava atenção na parte técnica: “Isso é um travelling, uma pan…”. CONTINENTE Como está sendo a distribuição do filme, essa parte que é o calo do cinema nacional? ALCEU VALENÇA Eu ganhei em todas as críticas do Superhomem (Batman vs Superman), até o boneco do Globo bate palmas para o meu filme e fica dormindo no Superhomem versus Batman. Ele tinha 60 cinemas no Rio de Janeiro e eu tinha cinco. Então, a distribuição é problemática porque existe a coisa das grandes empresas que destroem, e também ganham dinheiro da Lei Rouanet pra fazer filmes imbecis. Mas, de uma certa maneira, foi bom, porque não estou interessado nisso. Nunca me interessei muito. Soube, há pouco tempo, que vendi com o Cavalo de pau 2,6 milhões discos. Eu
CON CAPA TI NEN TE artista. Isso foi ótimo pra mim, pra não ficar sendo subproduto. Aí, todo mundo gostava do rock’n’roll e eu estava ligado na música brasileira. Era o Fino da Bossa, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, tudo isso antes da Tropicália. Eu ouvia meu tio Rinaldo cantando Cartola, Nelson Sargento, Ary Barroso. Morei numa rua onde era vizinho de Carlos Penna Filho e de Nelson Ferreira, na Rua dos Palmares, que não tinha nem calçada. Lá passavam os blocos que vinham dos arrabaldes mais distantes, tocando frevo, maracatu, caboclinhos, na frente da minha casa. Então, eu, com nove anos, 10 anos, já ouvia tudo isso. Morava perto de mim uma cantora lírica, Maria Parísio,
pessoas tinham um preconceito idiota contra a guitarra. Não pode haver preconceito com um instrumento, porque a sanfona não é brasileira. A sanfona de Dominguinhos não é igual à sanfona que se toca na Argentina, do tango; não é igual à sanfona que se toca na França, não é igual à sanfona da Itália. Você tem que ter uma linguagem. Arte é linguagem. E os instrumentos têm timbres. Eu inventei um timbre que ninguém entendeu. Apenas Luiz Gonzaga. Eu perguntei, “Seu Luiz, o que o senhor achou do meu conjunto?” Ele disse: “Meu filho, seu conjunto é uma banda de pife elétrica”. Noutra ocasião, eu estava participando do Cool Jazz Festival em Nova York, no Carnegie Hall, onde havia pessoas do jazz, blues,
no Brasil todo e fora. Tenho um público inacreditável, porque, quando rompi com a gravadora, eu já tinha muito sucesso.
que cantava na Rádio Tamandaré, na Rádio Clube de Pernambuco.
e eu fiz o meu show. E um cara do New York Times disse que tinha adorado, que nunca tinha visto nada igual e falou: “Eu poderia dizer que o seu show é o rock que não é o rock”. Ou seja, ele via ali o timbre, mas por dentro é outra coisa. Agora, quem ficava ouvindo Yes, Beatles, inclusive dava o “Yeah!”, levantava a mão e dizia “Yeah!”… Porra! Nunca dei “Yeah!”, nunca levantei a minha mão, e cantei no Rock in Rio.
FOTOS: HÉLIA SCHEPPA
não sabia, não me interessa; o que me interessa é a obra. Eu sou um cara de muita sorte, porque faço o que eu quero, do jeito que eu quero e tenho público. Agora, pra isso, houve também as minhas circunstâncias, as coisas que me favoreceram. À época, existia uma coisa para a música, “Disco é cultura”. Diminuíam os impostos para a música brasileira, que vendia 85%. A americana vendia 3%. E o brega vendia pouco. Quem falou isso pra mim foi João Araújo, pai de Cazuza, responsável pela Som Livre. Foram abrindo, dando as mesmas oportunidades e tirando impostos pra todo mundo e, aí, quem é detentor do poder vai ganhar de quem não tem. Hoje, sou conhecido
CONTINENTE Alceu, com toda essa referência que você tem de música nordestina, como surgiu a ideia de usar instrumentos elétricos já no seu primeiro disco, feito com Geraldo Azevedo? ALCEU VALENÇA Eu gosto de timbres diferentes. Existia uma coisa do Brasil não querer ser o Brasil. Então, todo mundo ouvia Rolling Stones. Mas eu, graças a Deus, não ouvi, apesar de ser bom. Não ouvi Beatles, a não ser quando ia numa casa e estava tocando. Eu não tinha radiola, porque meu pai não queria que eu fosse
CONTINENTE Como surgiu sua sonoridade? ALCEU VALENÇA Eu gostava de ouvir as bandas de pífanos e tinha uma música secular, A briga do cachorro com a onça. Uma vez comecei a pensar que, em vez de colocar duas flautas, que é da banda de pífano, eu poderia botar uma guitarra e uma flauta. Daria no mesmo, mas a sonoridade ficaria diferente. Só quem percebeu isso foi Luiz Gonzaga. Uma vez o encontrei na terra de Padre Cícero, Juazeiro do Norte. Ele disse (Alceu imita a voz do Rei do Baião): “Eu vim de Novo Exu só pra ver o seu show”. E eu com medo porque, nesse momento, as
CONTINENTE JUNHO 2016 | 28
CONTINENTE Queria que você contasse sobre a experiência no Rock in Rio. ALCEU VALENÇA Rock in Rio 2 (em 1991). O primeiro eu fiz e o segundo eu ia fazer. Ia cantar antes de Prince. Aí, no Rock in Rio, saí daqui, havia uns músicos daqui que estavam tocando
comigo e outros do Rio. Saímos uma semana antes pra fazer a passagem de som; fizemos. Prince veio e fez um novo palco, era um palco em cima de um palco, tinha umas rodinhas. Depois dos shows anteriores, empurravam esse palco. E, no palco, fizeram tudo certinho, passaram o som, porque não existia digitalização. Tinha que tomar nota exatamente onde estava uma coisa e a outra. Rapaz, quando eu fui cantar, o palco de Prince tinha quebrado, o que era pra mim, daqui pra aí, eu fiquei num espaço pequeno, com a minha bunda batendo no palco dele. Aí, puta que o pariu, entrei! O Lobão já tinha reclamado. Quando entro, cantei uma vez, começava a apitar, dar microfonia. Sabe por quê?
os instrumentos e equipamentos. Me concentrei, lembrei-me da apresentação que fiz aos quatro anos em São Bento do Una, da minha mãe – aí entramos. Ajustaram o som. O meu show foi considerado o melhor do Rock in Rio.
CONTINENTE Porque a mesa de som estava ajustada pra Prince. ALCEU VALENÇA Você é um gênio! Aí, pedi outro microfone e mais outro microfone, no terceiro eu joguei pra fora e saí. Quando saí, a imprensa veio toda em cima de mim. Tinha um cara chamado Dody Sirena, que é hoje o empresário de Roberto Carlos. Ele disse: “Se você cantar depois de Prince, você vai se acabar. Porque, primeiro, o público vai embora. Porque depois de Prince…” Quer saber de uma coisa? Ele é Prince e eu sou Príncipe. Vou entrar, eu agora quero fazer na frente dos jornalistas todos, eu agora exijo entrar. A kombi da gente já tinha pegado todo o material. Correram pra voltar com
dominante. Mas, sobretudo, quando chegaram os Beatles, a Jovem Guarda, esse negócio todo, aí ficou cafona ser brasileiro. Gosto das coisas do Brasil. Minha briga sempre foi essa. Não sou um cara que tem preconceito, mas teve um momento em que, por causa do Tropicalismo, a obrigação era misturar. Depois, o Brasil começou a virar uma coisa de segunda. O Brasil tem que ser de primeira. Fazer uma reforma artística. Não é uma coisa radical. É preciso que se valorize o que é teu, um jeito teu. O Brasil virou uma merda em futebol. Por quê? Quando foi imitar o outro.
CONTINENTE Do primeiro disco com Geraldo Azevedo pra cá, qual a análise que você faz do mercado fonográfico? ALCEU VALENÇA Primeiro, o Brasil era o Brasil. Quando o Brasil virou Beatles, virou uma outra coisa. O Brasil era do samba, o Brasil era do forró, o Brasil era do frevo, o Brasil era do maracatu, do chorinho… Então, entra o movimento do rock’n’roll, que eu gosto, mas não quero que seja o
CONTINENTE Como está a relação com as gravadoras?
CONTINENTE JUNHO 2016 | 29
ALCEU VALENÇA Depois que entrou a música americana. Eu não sou contra a América. Não tenho xenofobia. Mas, quando entrou, sobretudo a música anglófona, na década de 1980, entrou pra arrombar. O Brasil estava por cima de tudo. Com Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Amelinha, Elba Ramalho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, o Brasil estava se mostrando ali. Depois, começou a mostrar outra coisa. Empurraram a música brasileira pra baixo. Mas ainda sobrava um pouquinho até a década de 1980. Depois, não existe nada. Hoje, gravo por uma gravadora bacana, digital, mas até agora o digital não conseguiu engatar. É difícil você fazer um sucesso, a não ser essas coisas que
acontecem sem ninguém esperar. Mas você não tem uma fidelização muito grande, vai fazer uma música agora, mas é tanta coisa à disposição, que não se sabe o que ouvir. Eu não uso muito isso. Mas fui escutar Luiz Gonzaga, escutei e já passei pra outra coisa. CONTINENTE É uma nova forma de ouvir música. ALCEU VALENÇA Uma nova forma de ouvir música. Mas acho que, daqui a um pedaço, vão encontrar uma maneira para que se consiga fazer um sucesso real via internet. Bem o que é que se estabelece atualmente? Ainda existe rede de rádios, é claro que dentro dela têm suas exceções. Mas a maioria é toda do jabaculê. Essas pessoas estão
CON CAPA TI NEN TE FOTOS: HÉLIA SCHEPPA
realmente destruindo, por exemplo, quem não tem uma grande plataforma de lançamento. Existem pessoas que estão fazendo músicas brasileiras maravilhosas, que não conseguem espaço, é horrível. E eu alertei sobre isso há muito tempo e ninguém me ouviu. CONTINENTE Desses artistas novos, que estão lançando discos, de quem você gostou? ALCEU VALENÇA Eu não posso conhecer e eu não posso nem nominar quem não deu certo, e que é bom, porque fica chato. Nominar pessoas que eu sei que eram ótimas, que faziam um trabalho maravilhoso e que, de repente, não aconteceram. Se eu disser isso, fica chato, porque aí estou dizendo que o cara é um “perdedor”. O cara ou a cara. Mas é muito complicado, você faça uma análise e observe que, depois de Chico César, Lenine, Zeca Baleiro, Marisa Monte, quem foi que surgiu com um trabalho autoral? Eles ainda pegaram o final da indústria fonográfica. A pirataria passou pra internet. Pois bem, então acabou nesse sentido. Para pessoas como eu, que têm os seus sucessos, é ótimo. Mas eu sou brasileiro, eu gosto de música. Gosto de arte e tal. Meu pai tinha alguma coisa, tinha fazenda, era procurador do estado. Mas ele não queria que eu fosse artista. Porque achava que haveria dificuldade. Hoje é que é difícil!
“Existem pessoas que estão fazendo músicas brasileiras maravilhosas, que não conseguem espaço. É horrível” CONTINENTE Como é a sua relação com a crítica? ALCEU VALENÇA Não me comove muito essa coisa de fazer um show pra agradar o crítico. Não me interessa isso. Os críticos falam. Às vezes, eu critico os críticos. Por exemplo, em determinado momento, não é todo crítico, os que são quase sempre moderninhos e não conseguem entender a história. Aí chega um cara pra falar, “Alceu botou maracatu dos dois baques”, eu não botei um maracatu no meu disco. Meu disco é de São Bento do Una. Não tem maracatu lá. Não existe. Então, ele ouviu falar que em Pernambuco tem maracatu e confundiu uma coisa com a outra. Mas num elogio inacreditável. Ele está me elogiando, mas está me elogiando de uma maneira errada. Pois bem, se eu vou botar a entrada do circo de Nagib (em A luneta do tempo), eu tenho que botar uma música árabe. Estou certo? Aí botei, (cantarola), que é o aboio, que
CONTINENTE JUNHO 2016 | 30
é árabe. Só que eu coloquei, ao mesmo tempo, uma cítara pra poder ser trilha sonora para o personagem. Sabe o que o crítico botou? “Alceu se inspirou em George Harrison.” Meu Deus! George Harrison falava sobre música indiana, que tem uma relação com a gente, mas não é igual, é diferente. Eu estou falando da música ibérica brasileira com uma relação com os árabes mouros que passaram na Península Ibérica cinco séculos e que veio pra cá o aboio. Vão terminar dizendo que o meu filme podia ter um pouco da música da Dinamarca, se aparecesse alguém da Dinamarca. De BonoVox, pronto! E, se tiver alguém parecido com Mick Jagger, aí… Eu fiquei arretado com Mick Jagger! Sabe por quê? Quem deveria ter ido para Cuba era eu e a música brasileira! Sempre gostei dessas coisas de aventura. Saí daqui, fui para o Peru. Peguei um avião no Peru e fui pra Cuba fazer um festival. Eles, do rock’n’roll, nunca foram lá! CONTINENTE Mas John Lennon quis ir com os Beatles duas vezes e Fidel Castro não autorizou. ALCEU VALENÇA John Lennon pensava muito. O Mick Jagger, que, aliás, canta muito bem, ele nunca falou. Lá vai agora pra Cuba. Aí, eu faço uma pergunta a você: Quem pagou? Quem foi que pagou? Foi o governo cubano?
“Meu pai não queria que eu fosse artista. Porque achava que haveria dificuldade. Hoje é que é difícil! ”
CONTINENTE Os Rolling Stones iam gravar um DVD. ALCEU VALENÇA Eu sou um cara perguntador. Fui a Cuba. Era uma ditadura. Agora, determinadas coisas eram mentira. O povo era alegre, o povo dançava. Aí, depois, chegou uma blogueira esculhambando, dizia que não tinham internet… Como é que pode haver uma blogueira sem internet?! Eu penso geopoliticamente a vida toda. Pelo amor de Deus, não me falem mais em comunismo, em neocomunismo! Só existe um, que é o gordinho de lá da Coreia do Norte! O resto não existe. Então, por amor de Deus, pensar é preciso, é preciso conceituar, é preciso raciocínio, eu sou um doido, agoniado, eu conceituo, é preciso que se olhe o conceito, olhar para uma coisa, olhar os dois lados, no mínimo. Eu olho pra frente, pra trás, pra cima e no retrovisor do tempo, aí eu vou pra frente do tempo. São tantas e tantas coisas que eu previ. Por exemplo, previ que o Muro de Berlim ia cair. Sabe por que caiu? Vou dizer agora: por causa do papel higiênico em Berlim Oriental. Não existia bunda de comunista que aguentasse aquilo! Fui ao banheiro lá e, quando saí, eu disse: O muro caiu! DÉBORA NASCIMENTO
CONTINENTE JUNHO 2016 | 31
www.revistacontinente.com.br
# 186
#186 ano XVI • jun/16 • R$ 13,00
CONTINENTE
E MAIS: CÉU ANITA PRESTES RIO NEGRO RICARDO CAVOLO H. P. LOVECRAFT COLETIVO ANGU PICASSO
JUN 16
ALCEU INESGOTÁVEL, MAIOR NOME VIVO DA MÚSICA PERNAMBUCANA CHEGA AOS 70 ANOS