Continente #186 - Alceu

Page 1

www.revistacontinente.com.br

# 186

#186 ano XVI • jun/16 • R$ 13,00

CONTINENTE

E MAIS: CÉU ANITA PRESTES RIO NEGRO RICARDO CAVOLO H. P. LOVECRAFT COLETIVO ANGU PICASSO

JUN 16

ALCEU INESGOTÁVEL, MAIOR NOME VIVO DA MÚSICA PERNAMBUCANA CHEGA AOS 70 ANOS


Para dengue, zika e chikungunya, o remédio é prevenir.

Não há medicamentos específicos para as doenças causadas pelo Aedes aegypti. Nos três casos, o tratamento é ficar em repouso e beber bastante líquido. Alguns remédios são indicados para a dor, mas não devem ser usados os que têm ácido acetilsalicílico e anti-inflamatórios não-hormonais, pois podem causar hemorragias. A melhor solução é a prevenção: evitar água parada e descoberta em casa, para que o mosquito não se reproduza e infecte mais pessoas.

Conheça os sintomas de cada doença Dengue • Febre alta • Dores no corpo • Dores de cabeça e nos olhos • Falta de ar • Manchas na pele • Indisposição

pecontraomosquito.com.br Saiba mais: 0800.286.2828

Nos casos mais graves: • Sangramentos (nariz, gengivas) • Dor abdominal intensa. • Vômitos persistentes • Sonolência • Irritabilidade • Hipotensão • Tontura

Chikungunya

Zika

• Febre repentina acima de 39 graus • Dores no corpo, concentradas nas articulações e mais intensas do que nos casos de dengue • Dor de cabeça • Dor nos músculos • Manchas vermelhas na pele

• Febre mais baixa que nos casos de dengue e chikungunya • Olhos avermelhados • Manchas vermelhas e coceira na pele, que podem confundir a doença com alergia • Possíveis casos de diarreia e sinais de conjuntivite


Não há medicamentos específicos para as doenças causadas pelo Aedes aegypti. Nos três casos, o tratamento é ficar em repouso e beber bastante líquido. Alguns remédios são indicados para a dor, mas não devem ser usados os que têm ácido acetilsalicílico e anti-inflamatórios não-hormonais, pois podem causar hemorragias. A melhor solução é a prevenção: evitar água parada e descoberta em casa, para que o mosquito não se reproduza e infecte mais pessoas.

Conheça os sintomas de cada doença Dengue • Febre alta • Dores no corpo • Dores de cabeça e nos olhos • Falta de ar • Manchas na pele • Indisposição

Nos casos mais graves: • Sangramentos (nariz, gengivas) • Dor abdominal intensa. • Vômitos persistentes • Sonolência • Irritabilidade • Hipotensão • Tontura

Chikungunya

Zika

• Febre repentina acima de 39 graus • Dores no corpo, concentradas nas articulações e mais intensas do que nos casos de dengue • Dor de cabeça • Dor nos músculos • Manchas vermelhas na pele

• Febre mais baixa que nos casos de dengue e chikungunya • Olhos avermelhados • Manchas vermelhas e coceira na pele, que podem confundir a doença com alergia • Possíveis casos de diarreia e sinais de conjuntivite


Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

maio e junho

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco

2016

Seguindo com a programação musical do Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco, maio e junho têm grandes feras da guitarra e novidades da música pernambucana e brasileira.

THIAGO PETHIT 07/05 • SÁBADO• 17h

MIKE MORENO 14/05 • SÁBADO • 17h

ROGÉRIA 28/05 • SÁBADO • 17h

GUSTAVO RIPA 04/06 • SÁBADO • 17h

BOLE BOLE 18/06 • SÁBADO • 17h

QUINTETO ARRAIAL 25/06 • SÁBADO • 17h

RENATA ROSA 21/05 • SÁBADO • 17h

DANIEL MURRAY 11/06 • SÁBADO • 17h

PATROCÍNIO

PRODUÇÃO

APOIO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. REALIZAÇÃO

INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sáb e dom 14h as 17h


JUNHO 2016

HÉLIA SCHEPPA

aos leitores Alceu Valença nasceu em 1º de julho de 1946. Naquele ano, Luiz Gonzaga lançava a música Baião, o primeiro grande sucesso de sua carreira e que o tornaria para sempre o Rei de Baião. Nascido em São Bento do Una, Alceu recebeu toda a influência oriunda da cultura sertaneja: violeiros, cantadores, poetas populares e, claro, o mítico sanfoneiro. Desde pequeno, já demonstrava o talento para o palco: aos quatro anos, se apresentou num concurso de talentos em sua cidade, arrancando risadas da plateia ao dar cambalhotas e fazer palhaçadas enquanto outro candidato mirim cantava. Setenta anos depois, aquela criança guarda no matulão incontáveis experiências: foi jornalista, advogado, viajou o Brasil, o mundo, Oropa, França e Bahia, morou fora do país, dançou com os hippies, viveu liso, viu ditadura, democracia, atuou em filme, gravou disco, fez show, cantou no programa do Chacrinha, ficou famoso, trabalhou em novela, fez filme, escreveu livro, subiu em trio elétrico, em cavalo de pau, ganhou dinheiro, prêmio, viu fantasma, disco voador, Jaquecline Bisset, a bela da tarde. Mas, acima de tudo, foi bastante aplaudido e elogiado por onde passou. Para celebrar os 70 anos de Alceu, a Continente o entrevistou em sua residência temporária, mas afetiva, em Olinda, numa de suas vindas a Pernambuco, onde mora sua mãe, Dona Adelma, que tem 102 anos. Desde o começo dos anos 1970, o compositor vive no Rio de Janeiro, lugar onde construiu sua carreira artística desde o começo dessa década. Em conversa com a revista, o cantor abriu as comportas de sua prodigiosa memória para falar em disparada dessas lembranças todas e também sobre envelhecer, música, política, mercado fonográfico e sobre a estreia como diretor de cinema. O resultado disso são 12 páginas dedicadas ao leque moleque, bicho maluco beleza. Setenta anos depois, Alceu Valença ocupa o posto que pertencia ao seu ídolo: é hoje o maior ícone da música pernambucana vivo! Vivo! Vivo!


sumário Portfólio

Ricardo Cavolo

6 Colaboradores

7 Cartas

8 Entrevista

+ Continente Online + Expediente

Anita Leocádia Prestes Filha de Carlos Prestes e Olga Benário fala sobre a biografia do pai, feita durante 30 anos

18 Balaio

Quem será o novo James Bond?

44 Perfil

Chico Nunes Luthier que virou referência em pandeiro revela os tesouros do seu ateliê e de sua vida

48 Viagem

Rio Negro Fotógrafa Roberta Guimarães traça em texto e imagens sua incursão pela Região Amazônica

53 Claquete

Gênero Participação das mulheres cresce no cinema, mas ainda é bem menor entre cineastas

58 Cardápio

Espanhol de Salamanca mostra por que virou expoente da arte pop mundial, com suas narrativas visuais cheias de cores, otimismo e engajamento político

12

Farofa Marca da culinária pernambucana, iguaria à base de mandioca ganha diferentes assinaturas

66

Matéria Corrida José Cláudio O belo

74 Leitura

Biografias Coleção Memória perfila trajetória de políticos, jornalistas e artistas pernambucanos

80 Entremez

Ronaldo Correia de Brito O corpo enfermo do planeta

88 Criaturas

aysa M Por Lézio Junior

Palco Angu

Com estreia marcada para este mês, coletivo está de volta com Ossos, peça baseada em romance de Marcelino Freire, que adaptou o texto para a montagem

62 CAPA FOTO Hélia Scheppa

CONTINENTE JUNHO 2016 | 4


Capa

Conexão

Inquieto, criativo e profundamente ligado às manifestações tradicionais da cultura pernambucana, o artista de São Bento do Una chega aos 70 com espírito de menino

Enquanto fornecemos voluntariamente nossas informações pessoais, corporações como Google e Facebook as utilizam para monopolizar a rede

Visuais

Sonoras

Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) expõe cerca de 500 itens dedicados à poesia visual, sob curadoria de Paulo e Yuri Bruscky

Cantora paulistana lança seu quarto álbum, Tropix, com produção do marido Pupillo (Nação Zumbi), e nos conta sobre sua trajetória até o momento

Alceu Valença

20

História

68

Internet

32

Céu

82

CONTINENTE JUNHO 2016 | 5

Jun’ 16


colaboradores

Hélia Scheppa

Lézio Junior

Luiz Carlos Pinto

Roberta Guimarães

Repórter fotográfica, dedica-se à fotografia inserida no contexto da arte contemporânea

Jornalista, premiado por trabalhos em charge, ilustração, caricatura e pintura

Jornalista formado, professor da Unicap e integrante da Marco Zero Conteúdo

Fotógrafa profissional, sóciaproprietária da Imago Fotografia, com vários livros publicados

E MAIS Alcione Ferreira, fotógrafa. Allan Nascimento, estudante de Jornalismo, na Aeso, e Letras na UFPE. Beatriz Macruz, jornalista, cinéfila e colaboradora da Mostra de Cinema de São Paulo e de veículos como Carta Capital. Eric Gomes, fotógrafo e integrante do Coletivo Sexto Andar. Fernando Athayde, jornalista e músico. Leonardo Vila Nova, jornalista e músico. Rafael Medeiros, fotógrafo. Renata do Amaral, jornalista, professora doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: Prato do dia do jornalismo cultural. Renato Parada, fotógrafo. Roberto Arrais, jornalista. Ronaldo Bressane, jornalista e escritor.

ALCEU VALENÇA

LOVECRAFT

Nossa capa deste mês celebra os 70 anos do cantor e compositor, que faz aniversário no dia 1º de julho. No nosso site, disponibilizamos alguns videos raros que mostram o artista no começo de sua carreira. Entre eles, o filme A noite do espantalho (1974), dirigido pelo compositor e diretor Sérgio Ricardo, os videoclipes de Tropicana, Anunciação, Cavalo de pau e Vou danado pra Catende, gravado em 1975. Nessa gravação, o artista está acompanhado pelos ex-integrantes da Ave Sangria, Ivinho, Israel Semente, Agrício Noya, Paulo Rafael e Zé da Flauta, além de Zé Ramalho e Lula Côrtes.

Ouça, no site, em MP3, a narração do conto Dagon do escritor norteamericano, após leitura da matéria da página 76.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 6

VIAGEM Depois de viajar com a fotógrafa Roberta Guimarães pelas águas e matas do Rio Negro, na Amazônia, acesse a galeria extra de imagens que ela produziu para a seção Viagem.


cartas

EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO SERGIO LOBO

GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara

CACHAÇA

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Achei sensacional poder saber mais sobre a história da cachaça através da revista Continente de abril. Conheço muita gente que tem preconceito com essa bebida por associá-la a camadas mais pobres da população. Vou indicar a matéria para essas pessoas desinformadas e intolerantes.

Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

LUÍS AUGUSTO PAES RECIFE – PE

LIVRO DE ARTISTA A matéria de Bárbara Buril na edição de abril da Continente contextualiza historicamente muito bem e mostra a nova geração de artistas que investem em livros. As imagens são muito boas. Foi uma honra abrir com meus cadernos. Lindo demais. Meus cadernos são muito pessoais. Eu nunca mostro, mas decidi abrir pra vocês. BRUNO VILELA RECIFE – PE

DO FACEBOOK

CAPA DE MAIO Conheci Nise da Silveira em ida rápida à sua casa, em 1979, ela cercada de gatos, com aquele jeito suave e atento. Fiquei comparando-a com a imagem composta ao ler Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, e me lembrando das referências que Graciliano fez a seu respeito como presa política de 1935.

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO

protagonista e impõe o silêncio!” Parabéns ao site da Continente, a Bitu Cassundé e a todos que participaram da matéria Como a cultura pode atuar na resistência. Leitura mais que obrigatória, sobretudo para quem apoia golpe e retrocesso nas políticas públicas de cultura. A mais sóbria e completa análise que li sobre o que representa o fim do MinC, com depoimentos que incineram o medíocre senso comum golpista a enxergar cultura como algo secundário e supérfluo. Vamos resistir. BRENO PEREZ RECIFE – PE

CULTURA E RESISTÊNCIA “O anacronismo é a coreografia vigente; um passado cruel e sádico ressurge como

Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Olívia Mindêlo (repórter) Maria Helena Pôrto (revisão) Maria Luísa Falcão, Marina Moura, Ulysses Gadêlha e Victória Ayres (estagiários) Olivia de Souza (repórter - Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br

MARCELO MÁRIO DE MELO RECIFE – PE

Adriana Dória Matos (editora)

ERRATA O crédito correto da foto de Nise da Silveira, publicada na página 26 da edição 185 (maio/16), é de Mestre Júlio Santos/Projeto Fotopintura Contemporânea.

ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se

compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, redes sociais e correio. As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

CONTINENTE JUNHO 2016 | 7


ANITA LEOCÁDIA PRESTES

“É um trabalho de mais de 30 anos”

Filha dos militantes Luiz Carlos e Olga Benário Prestes conta como foi a produção da biografia acerca do seu pai, que realizou pela legitimidade das fontes, contra trabalhos que, acredita, obscurecem a memória paterna TEXTO Roberto Arrais

Anita Leocádia Prestes nasceu em 27 de novembro de 1936, na prisão de mulheres de Barnimstrasse, em Berlim, na Alemanha nazista, filha dos revolucionários comunistas Luiz Carlos Prestes, brasileiro, e Olga Benário Prestes, alemã. Anita é graduada em Química Industrial pela UFRJ, doutora em Economia e Filosofia na URSS. Com doutorado também em História pela UFF, ela é professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da instituição. Presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes, ela passou mais de 30 anos pesquisando, entrevistando e escrevendo sobre a vida do líder comunista. No final do ano passado, o resultado desse empenho foi apresentado aos leitores, a biografia Luiz Carlos Prestes - Um comunista brasileiro (editora Boitempo). Nesta entrevista à Continente, ela destacou o cuidado com os fatos e suas referências, falou com admiração sobre o pai, que foi uma das mais destacadas figuras do mundo político brasileiro no século XX. CONTINENTE Como a senhora construiu este livro e como isso ocorreu?

ANITA PRESTES Este livro é uma biografia política de Luiz Carlos Prestes, que visa exatamente retratar os fatos da forma mais comprometida possível com com a verdade, seguindo a orientação do grande historiador marxista inglês Eric Hobsbawm, que dizia que o historiador tem compromisso com a evidência; então, pontuei-me muito por essa visão. É um trabalho que levou mais de 30 anos para ser realizado. Comecei a trabalhar na temática da participação política de Luiz Carlos Prestes na história do século XX, lá no início dos anos 1980, quando meu pai estava ainda presente, vivo. A vida dele foi muito longa, 92 anos, dos quais 70 de intensidade política no Brasil e no exterior. Então, como num trabalho de historiador era impossível abordar estes 70 anos de uma vez, fui por partes. No início, não tinha nem clareza, certeza de que seria possível elaborar uma biografia, porque realmente era uma tarefa de longo prazo, não sabia o tempo que ia levar, se eu teria vida que me permitisse chegar lá. Comecei pela Coluna Prestes, até porque meu pai tinha uma memória privilegiada, principalmente sobre os acontecimentos

CONTINENTE JUNHO 2016 | 8

da Coluna. Gravamos depoimentos com ele, pesquisei vários anos em diversos arquivos no Brasil, nos depoimentos dele e dos participantes da Coluna, que ainda havia nos anos 1980. Anos atrás, fui a Moscou para pesquisar nos arquivos da Internacional Comunista, reuni todo este material, refazendo muita coisa, fazendo a pesquisa. Pesquisei períodos em que havia lacunas e cheguei, afinal, a conseguir escrever e publicar esta biografia, para a qual a editora Boitempo fez uma revisão muito cuidadosa. Trabalhamos vários meses com revisores para chegar à publicação deste livro, enriquecido com uma grande quantidade de fotos, mais de 100, com reprodução de documentos inéditos, fotos inéditas, enfim, foi um trabalho cuidadoso, feito pela Ivana Jinkings, a presidente desta editora, e de toda equipe que trabalhou no projeto. Realmente, ficou uma edição primorosa, que todas as pessoas estão achando bonita, bem-feita. A minha preocupação foi deixar uma obra comprometida com a evidência, com a verdade sobre o


DIVULGAÇÃO

CONTINENTE JUNHO 2016 | 9


que foi a vida de Luiz Carlos Prestes para as gerações atuais e futuras.

vinham também do tenentismo. Foi um movimento heroico, nobre, com objetivos nobres. A derrota foi séria, a repressão enorme, com muita gente presa, torturada. Olga Benário Prestes, minha mãe, e outra comunista alemã, Elise Ewert, foram entregues à Alemanha nazista nesse contexto. CONTINENTE A senhora falou da importância de Olga na vida de Prestes nesse período da decisão do governo de Getúlio Vargas de extraditá-la para a Alemanha nazista. Qual a sua avaliação sobre esse momento?

IMAGENS: REPRODUÇÃO

CONTINENTE A Coluna Prestes termina sua trajetória invicta, não foi derrotada. Mas, depois desse período, Prestes foi chamado pelos defensores da Revolução de 30, inclusive por Getúlio Vargas, para aderir a esse movimento armado. Como se deu o posicionamento dele diante da solicitação desse apoio à adesão ao movimento de 30? ANITA PRESTES O ano de 1930 foi muito importante na vida de Prestes e na história do Brasil. Porque, depois

liderança, a maior liderança política do Brasil na época, rompe com as classes dominantes, se recusa a ser uma liderança a serviço daquelas oligarquias agrárias que fizeram o movimento de 30, e passa por cima da trincheira da luta de classes e vai se colocar ao lado dos trabalhadores, dos explorados, dos oprimidos e vai sempre, a partir daí, de 1930 até morrer, em 1990. Ou seja, 70 anos lutando contra a burguesia, contra as classes dominantes, solidário e participando da luta dos trabalhadores, dos revolucionários brasileiros.

CON TI NEN TE

“O ano de 1930 foi muito importante na vida de Prestes e na história do Brasil, porque pela primeira vez uma liderança política rompe com as classes dominantes”

Entrevista da Coluna, que foi encerrada em 1927, como você disse, invicta - quer dizer, embora tenha enfrentado 53 combates com as forças governistas, nunca foi derrotada. E derrotou 18 generais do exército brasileiro, percorreu 25 mil quilômetros pelo Brasil, 13 estados; foi uma epopeia. Ele compreendeu que não havia forças sociais e políticas, que o Partido Comunista era clandestino, pequeno, sem condições de influir nos acontecimentos políticos. Se ele aceitasse ir para o poder, como os camaradas tenentes queriam, ele viraria uma marionete nas mãos daquelas oligarquias agrárias que fizeram o movimento de 30. Então, ele recusa. Este é um momento importante na vida dele e na história do Brasil, porque pela primeira vez uma

CONTINENTE Qual a posição de Prestes em 1935, diante da Insurreição Popular? ANITA PRESTES Ele estava no exílio e regressa ao Brasil para participar da luta contra o fascismo, sendo apenas um militante aceito nas fileiras do PCB. Mas, no Brasil, havia um decreto que considerava Prestes desertor do Exército. Significava que ele só podia atuar clandestino, porque senão seria preso. E ele vai ser o grande nome a aglutinar as forças democráticas antifascistas, anti-integralistas, em torno da ANL, maior frente única que existiu no Brasil, que agrupou diversos setores da sociedade brasileira, civis e militares. Muitos desses militares sob a influência do prestígio de Luiz Carlos Prestes, que

CONTINENTE JUNHO 2016 | 10

ANITA PRESTES Olga recebeu a tarefa da Internacional Comunista de acompanhar Prestes no seu regresso ao Brasil no início de 1935, porque ela era já uma comunista conhecida, com experiência em luta na Alemanha e participando do trabalho da Internacional, na juventude comunista na Europa, na Inglaterra, na França. Então, ela recebe essa tarefa e vem, simulando que era um casal em lua de mel, mas era uma tarefa. Nesse processo, eles realmente se entendem muito bem e acabam se apaixonando, viram marido e mulher. Ela desempenhava o papel de cuidar da segurança do Prestes e de servir como pombo-correio, de apoiá-lo, de garantir segurança para ele. Ele mesmo


reconhecia que, ao ser preso, foi ela que lhe salvou a vida, porque se interpôs entre ele e os policiais que tinham ordem de matá-lo e vacilaram. Foi uma decisão de Getúlio Vargas e Prestes sempre dizia que foi a forma que Vargas encontrou para torturá-lo, extraditando, mesmo ilegalmente, Olga para a Alemanha nazista para ser assassinada. CONTINENTE Como ocorreu o surgimento do PCdoB? ANITA PRESTES O grupo que realizou a cisão e criou o PCdoB, em que

estavam à frente João Amazonas, Mauricio Grabois e o Pedro Pomar hoje em dia falsifica a história, querendo dizer que o PCdoB vem desde 1922. Não é verdade, o PCdoB surgiu concretamente na cisão em 1962. Combateu violentamente o PCB e Prestes, que era chamado de traidor, inimigo, vendido. Hoje em dia, ficam querendo aparentar que são admiradores do Prestes. Prestes não pode mais protestar, está morto, então eles procuram se utilizar do prestígio da sua figura e do PCB para, enfim, justificar sua existência, sua política. No livro, resgato esse processo, com documentação citada e fontes que as pessoas que quiserem podem consultar sobre a criação do PCdoB.

CONTINENTE Como a senhora avalia a primeira biografia escrita sobre Luiz Carlos Prestes, de Jorge Amado, denominada de O Cavaleiro da Esperança? ANITA PRESTES Esse livro, escrito em 1941, abrange metade da vida do Prestes. Jorge Amado é um grande escritor, mas um romancista que não tinha o preparo de historiador. Estava fora do Brasil, exilado na Argentina, em Buenos Aires. Enfim, ele consegue informações, corresponde-se com pessoas aqui no Brasil, inclusive com minha avó

(que estava no México), que lhe mandam informações. Foi assim que, de forma precária, fez uma biografia mais romântica, no estilo da época que, hoje em dia, não se usa mais. CONTINENTE Em 2014, saiu outra biografia sobre Prestes, feita por Daniel Aarão Reis, Luís Carlos Prestes - Um revolucionário entre dois mundos. A senhora fez um artigo crítico sobre esse livro, o que destaca nele? ANITA PRESTES Publiquei um artigo sobre o livro porque achei que era importante esclarecer a opinião pública acerca dele. Esse artigo está publicado no site do Instituto Luiz Carlos Prestes (www.ilcp.org.br). Foi muito difundido. É um livro que, mesmo escrito por um historiador, faz

CONTINENTE JUNHO 2016 | 11

uma falsificação da história. Em que o autor, mesmo sendo da esquerda no passado, hoje em dia virou a casaca, tornou-se um intelectual a serviço dos interesses dominantes, que se dedicam a falsificar a história de Luiz Carlos Prestes, ao apresentar o líder comunista de uma forma negativa, na tentativa de invalidar o seu legado. É um livro cheio de mentiras, mexericos, fofocas, tipo da obra que um professor de História pode apresentar aos seus alunos em sala de aula como do tipo de trabalho que não deve ser feito – porque é um livro que não tem seriedade, não está baseado em fontes, as fontes não são citadas. Tem, inclusive, calúnias, como a de que a minha mãe teria abandonado um filho, o que é um absurdo. É uma tentativa de desmoralizar a figura de Olga Benário Prestes, que é uma figura muito prestigiada, que todo mundo admira, sobretudo a partir do livro do Fernando Morais, do filme Olga. Trata-se, portanto, de uma tentativa de contribuir para desqualificar a figura de Olga, da mãe de Prestes, Leocádia; é toda uma tentativa de desqualificar Prestes e toda a família dele. CONTINENTE Qual o grande legado de Luiz Carlos Prestes para as atuais e futuras gerações? ANITA PRESTES O principal legado do Prestes foi a dedicação à causa revolucionária, ou seja, à causa do socialismo ou, falando mais explicitamente, à causa de realizar transformações profundas na sociedade brasileira, que garantisse justiça social, democracia, liberdade para todos os brasileiros. Esse era o objetivo a que ele dedicou toda a vida, sem receber nada em troca. Não medindo sacrifício, tendo em vista que, para ele que conhecia bem o marxismo, avaliava que só o socialismo poderia garantir os direitos sociais, liberdade, democracia para todos os brasileiros. Dedicou a vida a isso. Digo até no meu livro que, da mesma maneira que os revolucionários cubanos resgataram o legado de José Martí para a Revolução Cubana, nós, os revolucionários brasileiros, comunistas, não poderemos avançar no processo de transformação revolucionária do Brasil sem resgatar o legado de Luiz Carlos Prestes.


DIV

1

ULG

O AÇÃ

Port


fรณlio


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

2

CON TI NEN TE

Portfólio

Ricardo Cavolo

AS CORES DO OTIMISMO TEXTO Marina Moura

Quando garoto, o espanhol Ricardo Cavolo costumava criar muitas histórias. Em vez

de escrevê-las, ele as desenhava. No estúdio de pintura do pai, munido de lápis, pincéis e tintas, aos 6 anos, o menino punha em prática o que era então sua brincadeira favorita: contar histórias por meio de imagens. Nascido em Salamanca, em 1982, hoje, Cavolo é ilustrador e utiliza diversos suportes – pôsteres, roupas, tatuagens, quadros, murais, livros, paredes, encartes de discos – para continuar realizando, mas agora de modo profissional, as ideias que o estimularam na infância. Algumas cenas que podem ser vistas no Instagram, através do qual divulga boa parte de seus trabalhos: prancha de surfe e cartas de tarô ilustradas; mural colorido, repleto de cores primárias, em rua de Seattle; retratos de Frida Kahlo e Jesus Cristo, cada um com três pares de olhos; criança curda refugiada no Iraque vestindo jaqueta jeans, em cujas costas está a pintura de um rosto feminino em tons róseos e avermelhados. Pelas fotos, é possível notar a predileção de Cavolo por tons vibrantes, alegrando os olhos de quem as vê, ainda que alguns sejam temas áridos. Além disso, boa parte das ilustrações apresenta-se de modo caleidoscópico, isto é, há sempre algum elemento dentro de outro, dando a ideia de que, mais do que uma imagem, o que está posto constitui um emaranhado de narrativas. Uma discussão relativamente superada nos tempos que correm, porém não totalmente, é a suposta separação entre belas-artes (de ordem subjetiva) e artes

CONTINENTE JUNHO 2016 | 14

Página anterior 1 TATUAGENS

érie de desenhos S com personagens russos

Nestas páginas 2 RETRATOS

Cavolo tem predileção por ilustrar rostos. Estes são o de Jaguaro (esquerda) e Frida Kahlo (direita)

LIVRO 3 Elvis Presley é um dos retratados em História ilustrada da música – 100 artistas para ouvir antes de morrer (tradução livre)


3

CONTINENTE JUNHO 2016 | 15


IMAGENS: DIVULGAÇÃO

4

CON TI NEN TE

Portfólio

aplicadas (funcionais). Se um mesmo artista pinta um quadro para expor numa galeria e cria a arte de um objeto passível de uso, qual seria a diferença em termos de procedimento? Segundo o crítico britânico John Ruskin, nenhuma; para Ricardo Cavolo, tal distinção igualmente não faz sentido. Suas obras já foram exibidas em galerias e ruas de Londres, Madri, Montreal, Barcelona, Hong Kong e Kiev. Também colaborou com marcas como Converse, Urban Outfitters, Nike e Coca-Cola. Em entrevista à Continente, o ilustrador fez questão de rechaçar possíveis diferenças no processo criativo. Trabalhar por encomenda “é um procedimento bonito, porque me faz estar em contato com as pessoas de maneira direta, para fazer algo por elas. É único, quando consigo unir a orientação dada pelo cliente ao meu estilo e modo de fazer as coisas”, afirmou. Atualmente, porém, o artista gráfico tem evitado projetos comerciais e

concentra-se no que, de acordo com ele, tem falado à sua “cabeça e coração”. Agora, está preparando um livro, uma enciclopédia ilustrada e sua linha de roupas, que devem ser finalizados ainda este ano. O espanhol explica que “acredita em uma arte comprometida” e une essa convicção aos seus estilos favoritos – a outsider e folk art. É assim que ele retrata personagens e temáticas que costumam estar à margem do imaginário artístico eurocêntrico. Um exemplo dessa faceta é a exposição Life & lives, apresentada em 2013 em Nova York. A mostra reuniu 50 retratos de personagens que pouco costumam habitar os espaços dos museus – como órfãos, prisioneiros, crianças pobres e refugiados. Entre os rostos apresentados na mostra, podemos ver o de uma muçulmana síria, uma garota afegã, um adolescente do território do Kosovo e prisioneiros russos. Uma das características marcantes do conjunto da obra de Cavolo é a presença

CONTINENTE JUNHO 2016 | 16

4 MURAL O ilustrador posa com trabalho encomendado à Urban Outfitters, em Colônia, na Alemanha

5 MÃO DA VIDA Ilustração integra coletânea com o trabalho de 45 artistas urbanos do mundo

de olhos, vários deles. Há corações, estrelas, mãos, muros e nuvens repletos de olhos. E a maior parte das pessoas por ele retratadas ganha mais de um par de globos oculares. Na opinião do artista, o olhar de alguém é o que lhe cabe de mais importante. “O natural é ter dois. Se aparecem quatro ou seis, é porque essa pessoa é especial, viu e viveu mais”, explica. São Jorge, São Sebastião e uma combatente curda são bons exemplos de personagens ilustrados com vários olhos. Já objetos e seres inanimados com olhos estampados simbolizam “a vida que pulsa dentro deles”. Ao olhar para as ilustrações de Cavolo, somos vistos de volta por personagens feitos em aquarela, tinta tipográfica ou acrílico – somos olhados por personagens repletos de vida. Encarar as imagens de Ricardo Cavolo, com seus muitos olhos e cores, tem qualquer coisa de poderosa, de otimista.


5

CONTINENTE JUNHO 2016 | 17


FOTOS: DIVULGAÇÃO

PAIS E FILHOS Para os fãs de video games, Warcraft é um jogo conhecido. Como tantos outros, virou filme, com estreia prevista para este mês com o subtítulo O primeiro encontro de dois mundos. Peculiar é a trajetória do diretor Duncan Jones para levar o projeto à tela. Quando começou a trabalhar no roteiro, em 2012, Jones acabara de casar e sua mulher havia sido diagnosticada com câncer de mama, o que resultou em uma dupla mastectomia. Agora, com o filme prestes a ser lançado, ele comemora a gravidez da esposa – assim como, em Warcraft, um dos protagonistas festeja a paternidade. E lamenta o fato de que, para dar à luz seu projeto mais ambicioso, tenha que superar o luto por uma devastadora perda ocorrida em janeiro. Antes de morrer, seu pai aprovara os efeitos visuais do filme. David Bowie sabia, afinal, como bem representar a fantasia. (Luciana Veras)

Intérprete para 007 Os três dígitos mais famosos do mundo voltaram a ser assunto nos últimos meses. Em abril, foi anunciada a morte do cineasta Guy Hamilton, responsável por estabelecer a estética dos filmes do espião inglês, como 007 contra Goldfinger (1964), Os diamantes são eternos (1971), Com 007 viva e deixe morrer (1973) e 007 contra o Homem da Pistola de Ouro (1974). Em maio, circulou a notícia de que Tom Hiddleston (à dir. na foto acima) poderia ser o próximo James Bond. O ator teria sido visto numa reunião com Sam Mendes, diretor dos dois últimos títulos da franquia. A opção de Hiddleston para ocupar o lugar de Daniel Craig, que já recusou um “caminhão de dinheiro” para continuar no papel, foi rechaçada na internet e na imprensa. O Guardian publicou um texto defendendo a escolha de Idris Elba (à esq. na foto acima). No final do mês passado, causou furor a informação de que Gillian Anderson, estrela das séries Arquivo X e The Fall, poderia ser a próxima agente. Tudo é boato, no entanto. Um fã fez um pôster com a atriz como “Jane Bond” e ela gostou da ideia. Os entusiastas só esqueceram de um detalhe: não, não é o fato de ela ser mulher que traz um impedimento, mas o de ter nascido nos Estados Unidos. Se tem algo em 007 tão tradicional quanto a Rainha é a origem britânica do ator principal. Caso contrário, há muito tempo James Bond teria seu intérprete perfeito: George Clooney. DÉBORA NASCIMENTO

CON TI NEN TE

A FRASE

“Ao contrário do que se diz, pode-se enganar muitos durante muito tempo.”

James Thurber, escritor e jornalista

CONTINENTE JUNHO 2016 | 18

Balaio 30 DIAS DE SONHO O filme que hoje detém o posto de produção cinematográfica mais longa da história é Modern times forever, do grupo de artistas dinamarqueses Superflex, com 240 horas de duração. Mas essa posição está para ser tomada. O filme experimental sueco Ambiénce, do diretor Anders Weberg, tem previsão de estreia no dia 31 de dezembro de 2020 e conta com 30 dias de duração. O filme é descrito pelo diretor como um “filme-memória” que trata dos laços entre o tempo, o espaço e a memória. O primeiro trailer tem duração de sete horas, é um plano-sequência que registra a performance de dois artistas numa praia da Suécia. Em 2018, o diretor pretende lançar um segundo trailer, dessa vez com 72 horas. Após o lançamento simultâneo do “superlonga” em todos os continentes, Weberg planeja destruir o filme e se aposentar da sua carreira de artista visual. (Victória Ayres)


ARQUIVO

PE NA BIENAL DE SÃO PAULO Pernambuco vem ganhando espaço nas exposições da Bienal de São Paulo dos últimos anos. Em 2010, por exemplo, não só alguns artistas do estado expuseram seus trabalhos por lá, como um dos curadores foi Moacir dos Anjos. Desta vez, a Bienal leva, sob o tema Incerteza viva, quatro representantes que, se não nasceram todos em PE, conceberam sua carreira no estado. Gilvan Samico terá um apanhado de sua produção, desde gravuras mais recentes até as mais antigas do acervo do Mamam. Além do artista falecido, estão na lista de 2016 Cristiano Lenhardt e Bárbara Wagner (primeira vez) e Jonathas de Andrade (segunda). Cristiano ocupará três colunas do Pavilhão com esculturas/performances, e levará ainda uma parte da série Trair a espécie, com peças figurativas em que aflora a animalidade humana. Bárbara e Jonathas irão de linguagem audiovisual. A artista mostrará o filme Estás vendo coisas, uma parceria com Benjamin de Burca sobre o brega no Recife (foto); Jonathas, o filme O peixe, no qual propõe a pescadores um ritual de abraço com sua caça antes da morte. Para completar, Júlia Rebouças está na cocuradoria. Ela se formou e viveu no Recife e está, desde 2007, como curadora do Inhotim (MG). (Olívia Mindêlo)

Terror aqui e lá fora Há 40 anos, o Recife passou por momentos de violência e morte na manhã de 25 de julho, quando uma forte explosão irrompeu no saguão do Aeroporto Internacional dos Guararapes. Morreram o vice-almirante reformado Nélson Gomes Fernandes e o poeta e secretário de governo Édson Régis; entre os 14 feridos, o guarda-civil Sebastião Tomaz de Aquino, que teve a perna direita amputada. Até hoje, não se definiu a verdadeira autoria do atentado. Só se sabe que o candidato a ditador de plantão à epoca, o general Costa e Silva escapou, por um pentelho de sapo, de virar toucinho de fumeiro. É que ele, em vez do avião, chegou ao Recife de carro. Enquanto isso, em terras argentinas, a “merda viraria boné”. Uma junta militar composta pelo magrela Jorge Videla (Exército), Emilio Massera (Marinha) e Orlando Agosti (Aeronáutica) deu um golpe de Estado e detonou o governo de Isabelita Perón. Quase 30 mil hermanos foram torturados e assassinados. E uma das maiores afrontas à humanidade foi a do sequestro de bebês nascidos das “subversivas” mortas nos centros de detenção clandestinos, para serem criados por milicos. O que deu origem, anos depois, ao movimento das “Locas” de la Plaza de Mayo (foto). Lá e cá, repressão das brabas. LUIZ ARRAIS

CORAÇÃO DE DOUTOR CAROL EM CANNES Falecido no mês passado, aos 78 anos, Carol Fernandes ficou conhecido pelas propagandas para a TV. Sua agência, a Itaity, colecionou diversos prêmios nacionais e internacionais. Quem não se lembra, por exemplo, do comercial do cego das Casas Lux Ótica ou de Davanira? Após partir, Carol recebeu uma baita homenagem. O cineasta Kleber Mendonça Filho escolheu, bem antes da morte do limoeirense, dois dos famosos jingles das Casas José Araújo para serem tocados na saída da exibição de Aquarius no Grand Théâtre Lumière. A ciranda “Vivemos nesta terra forte/Nesse sol do Norte/De luz, de amor” foi orgulhosamente propagada em Cannes. (Luiz Arrais)

No mês passado, Milton Nascimento foi, mais uma vez, laureado pelo seu talento: ganhou da renomada Berklee College of Music o título de doutor honoris causa. Fundada em 1945, a escola, situada em Boston, já concedeu o diploma a ícones como Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Sarah Vaughan, Quincy Jones, Paco de Lucía, Herbie Hancock e Aretha Franklin. Em seu discurso, o presidente da entidade, Roger H. Brown, citou a lenda do jazz Wayne Shorter, que dissera: “Como um bem brasileiro, o valor cultural de Milton não pode ser medido. O tesouro de Milton pode ser dividido de formas ainda não imaginadas”. Filho de uma empregada doméstica, mãe solteira, que faleceu de tuberculose quando o menino estava com menos de dois anos, ‘Bituca’ foi adotado por uma professora de música, Lília Silva Campos. Como diria a estrofe de Coração de estudante, uma das mais de 300 canções do artista: “E há que se cuidar do broto/ Pra que a vida nos dê flor/ Flor e fruto”. (Débora Nascimento)

CONTINENTE JUNHO 2016 | 19


HÉLIA SCHEPPA

O MENINO CON TI NEN TE

CAPA

CONTINENTE JUNHO 2016 | 20


DA TARDE Prestes a completar 70 anos no dia 1º de julho, o maior artista vivo da música pernambucana fala sobre novos projetos e os bastidores de sua intensa carreira TEXTO Débora Nascimento

No começo da tarde de uma bem-

vinda e ensolarada sexta-feira, depois de uma semana de maio em que o clima brincou de sol e chuva, a cidade alta de Olinda, indiferente ao barulho e à agitação de sua parte baixa, se comporta como se estivesse em um tempo longínquo. Os poucos automóveis que circulam pelas ruas estreitas e seculares interrompem o silêncio que permeia as casas coloridas. Uma delas, situada à Rua de São Bento, abriga um morador-símbolo desse lugar impregnado de história, música e alegria: Alceu Paiva Valença. Assim que passou pela porta de entrada da residência, a reportagem da Continente avistou o artista sentado no sofá posicionado no lado esquerdo da sala. Empertigado e altivo como um cacique, Alceu ainda estava se refazendo do cochilo que tirara alguns minutos antes. De óculos Ray-Ban estilo aviador, camisa preta de manga longa, concedia entrevista ao primeiro dos três veículos de comunicação que receberia naquele turno. Ao redor, Júlio Moura, seu assessor de imprensa há mais de sete

anos, se encarrega de acompanhar os ponteiros e lembrar a passagem das horas ao loquaz assessorado. Ao final da primeira entrevista, o cantor atende à nossa equipe. Para aproveitar a luz das quatro da tarde, mais propícia à fotografia, a sessão de fotos é feita de imediato. Ele não nega nenhum pedido da fotógrafa Hélia Scheppa: tira a camisa, bota a camisa, deita no chão, sobe na janela. O fotografado ideal. Ao sentar para a conversa, o compositor não espera a primeira pergunta e já vai falando – um sinal de que o roteiro de mais de 30 perguntas seria fatalmente alterado. Em cada uma de suas respostas, o artista aproveita para contar histórias hilárias, declamar poemas, cantar e/ou imitar alguém, praticamente uma performance. A função de um repórter, nessa hora, é se esforçar para sair da quase irresistível condição de espectador e tentar trazer o entrevistado de volta à questão e, assim, conduzir de alguma forma a entrevista. “Sempre fui muito tímido. Estou falando muito pra acabar com a minha timidez, mas eu fico com

CONTINENTE JUNHO 2016 | 21

vergonha. Tenho duas pessoas dentro de mim. Uma que diz, ‘Alceu, fale!’ E outra, ‘Alceu, Psssiu!’ Tem um outro que diz, ‘Alceu, por favor, está querendo aparecer?!’”, conta, entre gargalhadas, já na metade da entrevista. Essa hiperatividade foi percebida logo cedo por sua mãe, Dona Adelma, quando residia em São Bento do Una, cidade de cinco mil habitantes a 213 quilômetros de Olinda. Em pleno Agreste, na porta do Sertão, o garoto era uma espécie de Tom Sawyer. Assim como o personagem de Mark Twain, sempre estava aprontando alguma travessura e, principalmente, observando e absorvendo a cultura ao redor: os causos acerca de Lampião, os alto-falantes da feira, as quadrilhas juninas, os violeiros, os aboiadores, a literatura de cordel, os familiares que tocavam instrumentos em casa… Quando Alceu tinha sete anos, a família mudou-se para Garanhuns, e, três anos depois, para o Recife. Ele trouxe à capital pernambucana a formação cultural do interior e nunca mais abandonou essas referências sólidas, mesmo tendo contato com


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: REPRODUÇÃO

as transformações musicais dos anos 1960, mais ligadas ao rock. Seu primeiro disco, lançado em 1972, em parceria com o amigo Geraldo Azevedo, é uma prova disso. O álbum foi gravado no Rio de Janeiro, cidade para onde migrou em 1970 com a intenção de viver de arte. Viajou sem dinheiro e sem apoio de Seu Décio. Ao contrário da mãe, que incentivava o filho e até o presenteou com o primeiro violão, o pai insistia em que ele fosse advogado. Alceu tentou, formou-se em Direito em 1969, mas o interesse durou poucos meses. “Meu irmão Decinho ajudou a alugar apartamento para mim. Eu não tinha dinheiro pra nada, andava quilômetros. Por isso que ando até hoje 10 mil metros por dia. Eu ia do Leme até a Glória encontrar Geraldo Azevedo. Ia a pé pra não gastar o dinheiro do ônibus”, revela. Um dos produtores do disco, o italiano Cesare Benvenuti, ofereceu seu apartamento para os dois nordestinos morarem e ensaiarem. Como a verba da gravadora Copacabana era curta, o que significava poucas horas de gravação, o produtor teve uma ideia que combinava com o espírito peralta de Alceu: acertou com o técnico de som que deixasse a chave do estúdio debaixo do tapete para que os dois músicos pudessem chegar de madrugada, na surdina, para gravar. O resultado dessa iniciativa é que Alceu e Geraldinho tiveram mais tempo para burilar seu trabalho e entraram no mercado fonográfico com o pé direito: seu disco de estreia, lançado em 1972, é um dos mais inventivos da década, com faixas de arranjos complexos, como Planetário, 78 rotações, Mister Mistério, Seis horas, Virgem Virgínia (que parece uma música da Belle and Sebastian, banda escocesa que surgiria 20 anos depois), e já trouxe, de cara, um hit, Talismã, que estava na trilha sonora da novela da TV Globo Irmãos Coragem. Nos seus créditos, o álbum ainda incluía arranjos de cordas do maestro Rogério Duprat, o mago por trás de gravações emblemáticas, como Tropicália ou Panis et circenses (1968), dos Tropicalistas, e Construção (1971), de Chico Buarque, respectivamente 2o e 3o lugar na lista da Rolling Stone dos maiores discos da música brasileira.

1

“Eu ia do Leme até a Glória encontrar Geraldo Azevedo. Ia a pé pra não gastar o dinheiro do ônibus” Alceu Valença

Apesar de funcionarem como dupla, os artistas pernambucanos tinham estilos diferentes. Por isso, decidiram não seguir juntos no mercado fonográfico. Dois anos depois, Alceu atuou em A noite do espantalho e participou de sua trilha sonora, feita em parceria com o diretor e compositor Sérgio Ricardo. A atuação foi elogiada, mas o pernambucano acabou enveredando mesmo pela música. Ainda em 1974, lançou, pela Som Livre, o primeiro disco solo, Molhado de suor, bastante elogiado pela crítica. Dentre

CONTINENTE JUNHO 2016 | 22

as faixas, está Papagaio do futuro, que se tornaria uma das composições icônicas do seu cancioneiro. Nesse mesmo ano, outros músicos pernambucanos também estiveram no Rio de Janeiro para gravar seu primeiro disco: os membros da Ave Sangria, contratada da gravadora Continental. Após o álbum ser lançado, houve um imbróglio com relação à faixa Seu Waldir e o disco foi censurado, o que provocou o fim precoce do grupo. Alceu, então, convidou os integrantes para que o acompanhassem. Com exceção dos vocalistas Marco Polo e Almir de Oliveira, todos aceitaram o convite. E Alceu passava a ser ladeado pela melhor banda de rock de Pernambuco, que incluía instrumentistas brilhantes como o guitarrista Ivson “Ivinho” Wanderley e o baterista Israel Semente. No entanto, dos remanescentes só permaneceu o guitarrista Paulo Rafael.


ALCEU E GERALDO 1 Em 1972, músicos estrearam em LP feito em parceria AVE SANGRIA 2 Alceu, ladeado por ex-membros da banda e mais Zé Ramalho COM JACKSON 3 Em 1977, artistas percorream o país no Projeto Pixinguinha

2

3

Em 1975, com esse pessoal, que incluía ainda o percussionista Agrício Noya e Zé da Flauta, e mais Zé Ramalho e Lula Côrtes, Alceu participou do Festival Abertura, da TV Globo, com a música Vou danado pra Catende, poema de Ascenso Ferreira que ele musicou. A interpretação rendeu um vídeo, hoje disponível no YouTube, extraordinário único registro ao vivo dos músicos da Ave Sangria na época. Alceu, cinco anos antes de estourar com seu primeiro grande sucesso, Coração

bobo, que seria lançado em 1980, aparece, nessa espécie de videoclipe, esbanjando toda a sua presença cênica e a “energia dos doidos”, como um Mateus hippie e roqueiro. Sem dúvida, começa a ser erguida uma lenda. Numa época em que o mercado fonográfico já tinha os seus gigantes, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Alceu engata uma carreira com músicas inusitadas, que não se pareciam com nada que tocava no rádio e nem com o trabalho de contemporâneos como Zé Ramalho e

CONTINENTE JUNHO 2016 | 23

Fagner. Canções como Tropicana, Como dois animais, Pelas ruas que andei, Anunciação, Solidão, Estação da Luz trouxeram, além da pernambucanidade na melodia, expressões pitorescas, como “olhar agateado”, e frases poéticas, como “Pele macia, ai, carne de caju!”. O músico não formatou um gênero, como o fez Luiz Gonzaga, mas criou um estilo que só faz sentido com ele próprio. Por isso, ninguém das novas gerações de músicos trilhou seu caminho. O manguebeat, por exemplo, não se referia a ele. Das bandas da década de 1990, só a Jorge Cabeleira regravou Sol e chuva em seu primeiro disco, e, há três anos, a banda de hardcore de Surubim Hanagorik realizou um disco tributo com versões de algumas composições suas. Até 1985, com pouco mais de 10 anos de profissão, Alceu Valença já possuía canções que fariam outros artistas, menos inquietos, se darem por satisfeitos. Nesse ano, mesmo realizando um som chamado de “regional”, foi convidado para integrar a programação do Rock in Rio. Algo bastante pertinente. Afinal, nenhum bandleader brasileiro possuía a postura rock’n’roll que ele transbordava no palco. Naquele ano em que o Brasil fazia sua transição da ditadura para a democracia, o músico encarava, no Maracanã, sua


CON CAPA TI NEN TE RAFAEL MOTTA/DIVULGAÇÃO

4 VALENCIANAS Com Rodrigo Toffolo, maestro da Orquestra Ouro Preto DIRETOR 5 No set de A luneta do tempo, filmado em sua terra natal, São Bento do Una

6 NO MARCO ZERO Alceu comanda multidão em show carnavalesco

DIVULGAÇÃO

4

Anunciação, mais de 1,5 milhão; e La belle de jour, 800 mil unidades. Alguns desses álbuns lhe renderam prêmios e honrarias, como Amigo da arte (2014), indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Regional. Com o disco ganhou, em 2015, o 26º Prêmio da Música Brasileira na categoria Melhor Cantor Regional. Por ano, realiza espetáculos de diferentes formatos: para o Carnaval, para o São João, para teatro (Valencianas, realizado junto à Orquestra Ouro Preto, com a qual fez shows em Portugal e na França) e para festivais de rock, como o Psicodália e o Rock in Rio. Por conta desses shows, o cantor viaja bastante. “A minha vida é o trem, é a estrada, eu vivo o tempo todo andando pra cima e pra baixo, sou um caminhador.”

5

primeira grande plateia, algo que depois seria recorrente, principalmente quando começaram a ser promovidos os shows carnavalescos no Marco Zero e no Galo da Madrugada, bloco no qual costuma entoar seus frevos e os de J. Michiles, exibindo o seu talento como o melhor cantor de frevo de rua. A propósito, o seu lado intérprete sempre é algo que fica em segundo plano, quando sua obra é abordada. Com sotaque carregado, voz rascante, ele se tornou um dos mais representativos cantores do Brasil,

assim como foram Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, ambos de maneira completamente diversa. Sabe impor a uma canção sua personalidade, dando ênfase a palavras específicas, pulsando as frases curtas de suas estrofes. Em quatro décadas de carreira, o artista lançou 36 discos (24 de estúdio, 10 ao vivo e duas trilhas sonoras), mais de 300 composições, dentre elas dezenas de sucessos. Tropicana, por exemplo, em menos de um ano, vendeu 1,6 milhão de cópias; o disco Anjo avesso, que tinha

CONTINENTE JUNHO 2016 | 24

NOVOS FEITOS

Hoje radicado no Rio de Janeiro, onde, inclusive, vota, ele diz que tem vontade de voltar a residir nessa casa onde concedeu a entrevista à Continente. “Gostaria de morar em Olinda, mas meus filhos todos moram lá (no Sudeste). Um mora em São Paulo e três no Rio, aí é meio complicado. Eu queria morar aqui. Eu gosto daqui, adoro meus amigos daqui”, ressalta. No segundo semestre deste ano, será lançado o DVD Vivo! Revivo!, baseado


LEO MOTTA/PCR/DIVULGAÇÃO

no repertório do álbum Vivo!, de 1976, e que terá o acréscimo de canções de outros discos; e serão relançados em vinil Molhado de suor (1974), Vivo! (1976) e Espelho cristalino (1977). Para o próximo ano, está previsto o lançamento do documentário Vivo - Na embolada do tempo, roteirizado por Hilton Lacerda e dirigido por Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Além do talento como compositor, cantor e ator (exibido também na novela Mandacaru, de 1997), Alceu finalizou o seu primeiro filme, A luneta do tempo, cuja ideia nasceu há 14 anos. O longa, musical narrado em cordel, é protagonizado por Irandhir Santos e Hermila Guedes, que interpretam Lampião e Maria Bonita. O elenco traz familiares, como o filho Ceceu Valença, e amigos do diretor, como o cantor Tito Lívio. A história se passa em São Bento do Una e resgata suas memórias de infância. “Pra todo mundo que chegava perto de mim, eu lia o roteiro. Era gente em avião, em tudo que é canto”, conta, aos risos. A ligação com o cinema começou em São Bento do Una, onde havia duas salas

O maior sucesso de Alceu, Cavalo de pau, que tinha a faixa Tropicana, vendeu, em menos de um ano, 1,6 milhão de cópias de projeção, as quais frequentava com a mãe (leia mais sobre isso na entrevista a seguir). No Recife, ia ao São Luiz para assistir aos filmes do neorrealismo italiano e da nouvelle vague, como Acossado. De tanto imitar o protagonista, interpretado pelo ator francês Jean-Paul Belmondo, que passava a lateral do polegar nos lábios enquanto segurava o cigarro entre os dedos, Alceu se tornou fumante, o que provavelmente contribuiu para que fosse submetido a uma cirurgia cardíaca aos 52 anos. O nome Alceu Valença pode ser pronunciado assim, com nome e sobrenome, pelo Brasil afora. Em Pernambuco, basta dizer “Alceu”, que já se sabe de quem se está falando e o que isso representa. Falar “Alceu”

CONTINENTE JUNHO 2016 | 25

6

é lembrar, em poucos segundos, sua figura irrefreável no palco, num trio elétrico ou na sacada de sua casa em Olinda, onde sua aparição saudando os milhares de foliões é uma das tradições e atrações não previstas na programação oficial, mas na programação afetiva do carnaval pernambucano. A passagem rápida do tempo talvez não tenha nos dado a exata dimensão de que esse bicho maluco beleza é hoje o maior artista vivo da música pernambucana. Por baixo da cabeleira branca que insiste em empurrar a parte tingida (“A mulher pinta o cabelo, por que eu não posso pintar?”), das rugas de incontáveis expressões faciais, das marcas na pele de tantos raios de sol e da cicatriz da cirurgia no coração bobo, vive um jovem. Logo ao saber do motivo da entrevista, ele não espera a primeira pergunta e começa: “Eu não me sinto jamais com 70 anos, mas 70 é preocupante (risos). Nunca fiquei pensando nesse negócio de idade, agora é que tem essa coisa de 70. Fiquei com vontade de botar 70 07, porque eu posso ter 7 anos como ter 70. Eu sou um menino a vida toda”.


CON CAPA TI NEN TE HÉLIA SCHEPPA

Entrevista

ALCEU VALENÇA “TEMPO É SEGREDO SENHOR DE RUGAS QUE EU TENHO”

CONTINENTE Você já tinha pensado sobre idade, sobre chegar a essa idade? ALCEU VALENÇA O tempo se dilata como um fio, cordão elástico, caminho, estrada que nos transporta. A vida é uma estrada. Então, todo mundo está indo diante da estrada que vai dar no nada, talvez. E isso são as preocupações das pessoas, mas é uma coisa contínua. Esse tempo tríplice, presente, passado, futuro, tudo ao mesmo tempo. Eu me reporto muito ao meu passado. Eu sempre falei muito no tempo.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 26

No meu primeiro disco, eu já falo da questão do tempo. O tempo em si não tem fim, não tem começo, mesmo pensado ao avesso, não se pode mensurar, buraco negro, a existência do nada, noves fora, nada. Por isso nos causa medo. Tempo é segredo, senhor de rugas que eu tenho, e marcas das horas abstratas, quando eu paro pra pensar. Isso era até uma música que ia fazer para o meu filme A luneta do tempo, que demorou tanto a ser feito, foram 14 anos.


CONTINENTE Fazer esse filme era um sonho antigo? ALCEU VALENÇA A gente vive do tempo, de lembranças, sobretudo. A gente projeta e está no presente. São lembranças da minha mãe. Minha mãe adorava cinema. São Bento do Una, minha cidade, tinha dois cinemas. Agora, não tem nenhum. Tinha o Cine Rex, onde eu, menino, ia ver os filmes com minha mãe, sempre. Todos os dias. Menino não era proibido de ir ao cinema, quando o pai levava. Depois, ficou muito careta, dizendo “proibido”. CONTINENTE Como foi a realização da trilha sonora? ALCEU VALENÇA É a primeira vez que eu faço trilha em função de alguma coisa, porque eu pensava, inclusive, que as músicas vinham através de um sopro divino. Não te direi que seria um “sopro divino”, mesmo porque não tenho religião. Tenho uma formação católica

“É muito difícil fazer, hoje no Brasil, uma arte verdadeira. Aliás, o cinema pernambucano está fazendo isso” que minha mãe tem. Mas mamãe mora à beira da praia de Boa Viagem. Ela tem 102 anos. Fica olhando o mar e diz: “Estou olhando pra Deus”. Eu pergunto, “Que Deus?” Ela: “O mar é Deus. Porque nos parece infinito.”

CONTINENTE Por que esse tempo todo? ALCEU VALENÇA Porque é muito difícil você fazer uma arte hoje no Brasil, uma arte verdadeira. Aliás, o cinema pernambucano está fazendo isso, uma arte verdadeira. Porque, primeiro, você não vai ter patrocínio, é quase tudo complicado, porque a indústria do entretenimento comeu, inclusive, a Lei Rouanet. Passei 14 anos pra poder conseguir patrocínio, era muito difícil, inclusive tive que aportar dinheiro do meu bolso. A segunda parte do filme quem pagou fui eu.

CONTINENTE Você gravou essa trilha em que ano? ALCEU VALENÇA Ah, não sei não! Faz muito tempo! Passei 10 anos fazendo essa trilha. Gravava em vários estúdios em Pernambuco e no Rio de Janeiro, de Tovinho, de Papini, no de Paulo Rafael. Depois, chamei os atores e estudei cinema com uma moça chamada Alexandra Lessa. Eu tive com ela 10 aulas. Ela é mulher de Aramis Trindade, que estava hospedado na casa do meu filho. Quando chego lá, o grande Waltinho Carvalho viu, por acaso, o que eu estava escrevendo. Ele disse: “É cinema! Vamos fazer esse filme. E eu vou dirigir com você”.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 27

CONTINENTE Então, foi ele quem lançou a ideia. ALCEU VALENÇA A vontade. Pra não ser totalmente ignorante, fui à Livraria Letras e Expressões, perto lá de casa (Ipanema, RJ), e comprei o livro de Doc Comparato. Depois, estava fazendo a história, já conversando com Waltinho, mas ele não pôde, foi fazer Budapeste, na Hungria. Depois, Andrucha me encontrou em Campina Grande, eu estava com o roteiro. Ele leu e disse: “Vamos fazer?”. Eu pensei: “Tô bem”. Pois bem, Andrucha foi fazer Casa de areia. Então, o cabra da peste, que sou eu, já tinha se lascado por causa de Budapeste, me lasquei por causa de Casa de areia. Fui à casa do meu filho e encontro Aramis e Alexandra Lessa, que é sobrinha de Roberto Lessa, que eu botei no meu filme também. Ela morou aqui (Olinda), eu a vi pequenininha. Fez cinema. Eu não sabia nada disso. Eu pensava: “Eu tô lascado, o que é que eu vou fazer?”. Aí, ela disse: “Eu sei um pouco de cinema”. Eu digo: “É? Então, me dê umas aulas”. Ela me deu aulas maravilhosas. Quando chegou em 10 aulas, eu disse: “Desculpe, mas eu quero fazer o meu filme. Não quero olhar mais nada!”. Vi muito filme, filme iraniano, eu estava interessado na gramática do filme. Eu sabia já o como e o porquê do close ser colocado ali. Não entendia mais nenhum filme, porque eu prestava atenção na parte técnica: “Isso é um travelling, uma pan…”. CONTINENTE Como está sendo a distribuição do filme, essa parte que é o calo do cinema nacional? ALCEU VALENÇA Eu ganhei em todas as críticas do Superhomem (Batman vs Superman), até o boneco do Globo bate palmas para o meu filme e fica dormindo no Superhomem versus Batman. Ele tinha 60 cinemas no Rio de Janeiro e eu tinha cinco. Então, a distribuição é problemática porque existe a coisa das grandes empresas que destroem, e também ganham dinheiro da Lei Rouanet pra fazer filmes imbecis. Mas, de uma certa maneira, foi bom, porque não estou interessado nisso. Nunca me interessei muito. Soube, há pouco tempo, que vendi com o Cavalo de pau 2,6 milhões discos. Eu


CON CAPA TI NEN TE artista. Isso foi ótimo pra mim, pra não ficar sendo subproduto. Aí, todo mundo gostava do rock’n’roll e eu estava ligado na música brasileira. Era o Fino da Bossa, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, tudo isso antes da Tropicália. Eu ouvia meu tio Rinaldo cantando Cartola, Nelson Sargento, Ary Barroso. Morei numa rua onde era vizinho de Carlos Penna Filho e de Nelson Ferreira, na Rua dos Palmares, que não tinha nem calçada. Lá passavam os blocos que vinham dos arrabaldes mais distantes, tocando frevo, maracatu, caboclinhos, na frente da minha casa. Então, eu, com nove anos, 10 anos, já ouvia tudo isso. Morava perto de mim uma cantora lírica, Maria Parísio,

pessoas tinham um preconceito idiota contra a guitarra. Não pode haver preconceito com um instrumento, porque a sanfona não é brasileira. A sanfona de Dominguinhos não é igual à sanfona que se toca na Argentina, do tango; não é igual à sanfona que se toca na França, não é igual à sanfona da Itália. Você tem que ter uma linguagem. Arte é linguagem. E os instrumentos têm timbres. Eu inventei um timbre que ninguém entendeu. Apenas Luiz Gonzaga. Eu perguntei, “Seu Luiz, o que o senhor achou do meu conjunto?” Ele disse: “Meu filho, seu conjunto é uma banda de pife elétrica”. Noutra ocasião, eu estava participando do Cool Jazz Festival em Nova York, no Carnegie Hall, onde havia pessoas do jazz, blues,

no Brasil todo e fora. Tenho um público inacreditável, porque, quando rompi com a gravadora, eu já tinha muito sucesso.

que cantava na Rádio Tamandaré, na Rádio Clube de Pernambuco.

e eu fiz o meu show. E um cara do New York Times disse que tinha adorado, que nunca tinha visto nada igual e falou: “Eu poderia dizer que o seu show é o rock que não é o rock”. Ou seja, ele via ali o timbre, mas por dentro é outra coisa. Agora, quem ficava ouvindo Yes, Beatles, inclusive dava o “Yeah!”, levantava a mão e dizia “Yeah!”… Porra! Nunca dei “Yeah!”, nunca levantei a minha mão, e cantei no Rock in Rio.

FOTOS: HÉLIA SCHEPPA

não sabia, não me interessa; o que me interessa é a obra. Eu sou um cara de muita sorte, porque faço o que eu quero, do jeito que eu quero e tenho público. Agora, pra isso, houve também as minhas circunstâncias, as coisas que me favoreceram. À época, existia uma coisa para a música, “Disco é cultura”. Diminuíam os impostos para a música brasileira, que vendia 85%. A americana vendia 3%. E o brega vendia pouco. Quem falou isso pra mim foi João Araújo, pai de Cazuza, responsável pela Som Livre. Foram abrindo, dando as mesmas oportunidades e tirando impostos pra todo mundo e, aí, quem é detentor do poder vai ganhar de quem não tem. Hoje, sou conhecido

CONTINENTE Alceu, com toda essa referência que você tem de música nordestina, como surgiu a ideia de usar instrumentos elétricos já no seu primeiro disco, feito com Geraldo Azevedo? ALCEU VALENÇA Eu gosto de timbres diferentes. Existia uma coisa do Brasil não querer ser o Brasil. Então, todo mundo ouvia Rolling Stones. Mas eu, graças a Deus, não ouvi, apesar de ser bom. Não ouvi Beatles, a não ser quando ia numa casa e estava tocando. Eu não tinha radiola, porque meu pai não queria que eu fosse

CONTINENTE Como surgiu sua sonoridade? ALCEU VALENÇA Eu gostava de ouvir as bandas de pífanos e tinha uma música secular, A briga do cachorro com a onça. Uma vez comecei a pensar que, em vez de colocar duas flautas, que é da banda de pífano, eu poderia botar uma guitarra e uma flauta. Daria no mesmo, mas a sonoridade ficaria diferente. Só quem percebeu isso foi Luiz Gonzaga. Uma vez o encontrei na terra de Padre Cícero, Juazeiro do Norte. Ele disse (Alceu imita a voz do Rei do Baião): “Eu vim de Novo Exu só pra ver o seu show”. E eu com medo porque, nesse momento, as

CONTINENTE JUNHO 2016 | 28

CONTINENTE Queria que você contasse sobre a experiência no Rock in Rio. ALCEU VALENÇA Rock in Rio 2 (em 1991). O primeiro eu fiz e o segundo eu ia fazer. Ia cantar antes de Prince. Aí, no Rock in Rio, saí daqui, havia uns músicos daqui que estavam tocando


comigo e outros do Rio. Saímos uma semana antes pra fazer a passagem de som; fizemos. Prince veio e fez um novo palco, era um palco em cima de um palco, tinha umas rodinhas. Depois dos shows anteriores, empurravam esse palco. E, no palco, fizeram tudo certinho, passaram o som, porque não existia digitalização. Tinha que tomar nota exatamente onde estava uma coisa e a outra. Rapaz, quando eu fui cantar, o palco de Prince tinha quebrado, o que era pra mim, daqui pra aí, eu fiquei num espaço pequeno, com a minha bunda batendo no palco dele. Aí, puta que o pariu, entrei! O Lobão já tinha reclamado. Quando entro, cantei uma vez, começava a apitar, dar microfonia. Sabe por quê?

os instrumentos e equipamentos. Me concentrei, lembrei-me da apresentação que fiz aos quatro anos em São Bento do Una, da minha mãe – aí entramos. Ajustaram o som. O meu show foi considerado o melhor do Rock in Rio.

CONTINENTE Porque a mesa de som estava ajustada pra Prince. ALCEU VALENÇA Você é um gênio! Aí, pedi outro microfone e mais outro microfone, no terceiro eu joguei pra fora e saí. Quando saí, a imprensa veio toda em cima de mim. Tinha um cara chamado Dody Sirena, que é hoje o empresário de Roberto Carlos. Ele disse: “Se você cantar depois de Prince, você vai se acabar. Porque, primeiro, o público vai embora. Porque depois de Prince…” Quer saber de uma coisa? Ele é Prince e eu sou Príncipe. Vou entrar, eu agora quero fazer na frente dos jornalistas todos, eu agora exijo entrar. A kombi da gente já tinha pegado todo o material. Correram pra voltar com

dominante. Mas, sobretudo, quando chegaram os Beatles, a Jovem Guarda, esse negócio todo, aí ficou cafona ser brasileiro. Gosto das coisas do Brasil. Minha briga sempre foi essa. Não sou um cara que tem preconceito, mas teve um momento em que, por causa do Tropicalismo, a obrigação era misturar. Depois, o Brasil começou a virar uma coisa de segunda. O Brasil tem que ser de primeira. Fazer uma reforma artística. Não é uma coisa radical. É preciso que se valorize o que é teu, um jeito teu. O Brasil virou uma merda em futebol. Por quê? Quando foi imitar o outro.

CONTINENTE Do primeiro disco com Geraldo Azevedo pra cá, qual a análise que você faz do mercado fonográfico? ALCEU VALENÇA Primeiro, o Brasil era o Brasil. Quando o Brasil virou Beatles, virou uma outra coisa. O Brasil era do samba, o Brasil era do forró, o Brasil era do frevo, o Brasil era do maracatu, do chorinho… Então, entra o movimento do rock’n’roll, que eu gosto, mas não quero que seja o

CONTINENTE Como está a relação com as gravadoras?

CONTINENTE JUNHO 2016 | 29

ALCEU VALENÇA Depois que entrou a música americana. Eu não sou contra a América. Não tenho xenofobia. Mas, quando entrou, sobretudo a música anglófona, na década de 1980, entrou pra arrombar. O Brasil estava por cima de tudo. Com Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Amelinha, Elba Ramalho, Caetano Veloso, Gilberto Gil, o Brasil estava se mostrando ali. Depois, começou a mostrar outra coisa. Empurraram a música brasileira pra baixo. Mas ainda sobrava um pouquinho até a década de 1980. Depois, não existe nada. Hoje, gravo por uma gravadora bacana, digital, mas até agora o digital não conseguiu engatar. É difícil você fazer um sucesso, a não ser essas coisas que

acontecem sem ninguém esperar. Mas você não tem uma fidelização muito grande, vai fazer uma música agora, mas é tanta coisa à disposição, que não se sabe o que ouvir. Eu não uso muito isso. Mas fui escutar Luiz Gonzaga, escutei e já passei pra outra coisa. CONTINENTE É uma nova forma de ouvir música. ALCEU VALENÇA Uma nova forma de ouvir música. Mas acho que, daqui a um pedaço, vão encontrar uma maneira para que se consiga fazer um sucesso real via internet. Bem o que é que se estabelece atualmente? Ainda existe rede de rádios, é claro que dentro dela têm suas exceções. Mas a maioria é toda do jabaculê. Essas pessoas estão


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: HÉLIA SCHEPPA

realmente destruindo, por exemplo, quem não tem uma grande plataforma de lançamento. Existem pessoas que estão fazendo músicas brasileiras maravilhosas, que não conseguem espaço, é horrível. E eu alertei sobre isso há muito tempo e ninguém me ouviu. CONTINENTE Desses artistas novos, que estão lançando discos, de quem você gostou? ALCEU VALENÇA Eu não posso conhecer e eu não posso nem nominar quem não deu certo, e que é bom, porque fica chato. Nominar pessoas que eu sei que eram ótimas, que faziam um trabalho maravilhoso e que, de repente, não aconteceram. Se eu disser isso, fica chato, porque aí estou dizendo que o cara é um “perdedor”. O cara ou a cara. Mas é muito complicado, você faça uma análise e observe que, depois de Chico César, Lenine, Zeca Baleiro, Marisa Monte, quem foi que surgiu com um trabalho autoral? Eles ainda pegaram o final da indústria fonográfica. A pirataria passou pra internet. Pois bem, então acabou nesse sentido. Para pessoas como eu, que têm os seus sucessos, é ótimo. Mas eu sou brasileiro, eu gosto de música. Gosto de arte e tal. Meu pai tinha alguma coisa, tinha fazenda, era procurador do estado. Mas ele não queria que eu fosse artista. Porque achava que haveria dificuldade. Hoje é que é difícil!

“Existem pessoas que estão fazendo músicas brasileiras maravilhosas, que não conseguem espaço. É horrível” CONTINENTE Como é a sua relação com a crítica? ALCEU VALENÇA Não me comove muito essa coisa de fazer um show pra agradar o crítico. Não me interessa isso. Os críticos falam. Às vezes, eu critico os críticos. Por exemplo, em determinado momento, não é todo crítico, os que são quase sempre moderninhos e não conseguem entender a história. Aí chega um cara pra falar, “Alceu botou maracatu dos dois baques”, eu não botei um maracatu no meu disco. Meu disco é de São Bento do Una. Não tem maracatu lá. Não existe. Então, ele ouviu falar que em Pernambuco tem maracatu e confundiu uma coisa com a outra. Mas num elogio inacreditável. Ele está me elogiando, mas está me elogiando de uma maneira errada. Pois bem, se eu vou botar a entrada do circo de Nagib (em A luneta do tempo), eu tenho que botar uma música árabe. Estou certo? Aí botei, (cantarola), que é o aboio, que

CONTINENTE JUNHO 2016 | 30

é árabe. Só que eu coloquei, ao mesmo tempo, uma cítara pra poder ser trilha sonora para o personagem. Sabe o que o crítico botou? “Alceu se inspirou em George Harrison.” Meu Deus! George Harrison falava sobre música indiana, que tem uma relação com a gente, mas não é igual, é diferente. Eu estou falando da música ibérica brasileira com uma relação com os árabes mouros que passaram na Península Ibérica cinco séculos e que veio pra cá o aboio. Vão terminar dizendo que o meu filme podia ter um pouco da música da Dinamarca, se aparecesse alguém da Dinamarca. De BonoVox, pronto! E, se tiver alguém parecido com Mick Jagger, aí… Eu fiquei arretado com Mick Jagger! Sabe por quê? Quem deveria ter ido para Cuba era eu e a música brasileira! Sempre gostei dessas coisas de aventura. Saí daqui, fui para o Peru. Peguei um avião no Peru e fui pra Cuba fazer um festival. Eles, do rock’n’roll, nunca foram lá! CONTINENTE Mas John Lennon quis ir com os Beatles duas vezes e Fidel Castro não autorizou. ALCEU VALENÇA John Lennon pensava muito. O Mick Jagger, que, aliás, canta muito bem, ele nunca falou. Lá vai agora pra Cuba. Aí, eu faço uma pergunta a você: Quem pagou? Quem foi que pagou? Foi o governo cubano?


“Meu pai não queria que eu fosse artista. Porque achava que haveria dificuldade. Hoje é que é difícil! ”

CONTINENTE Os Rolling Stones iam gravar um DVD. ALCEU VALENÇA Eu sou um cara perguntador. Fui a Cuba. Era uma ditadura. Agora, determinadas coisas eram mentira. O povo era alegre, o povo dançava. Aí, depois, chegou uma blogueira esculhambando, dizia que não tinham internet… Como é que pode haver uma blogueira sem internet?! Eu penso geopoliticamente a vida toda. Pelo amor de Deus, não me falem mais em comunismo, em neocomunismo! Só existe um, que é o gordinho de lá da Coreia do Norte! O resto não existe. Então, por amor de Deus, pensar é preciso, é preciso conceituar, é preciso raciocínio, eu sou um doido, agoniado, eu conceituo, é preciso que se olhe o conceito, olhar para uma coisa, olhar os dois lados, no mínimo. Eu olho pra frente, pra trás, pra cima e no retrovisor do tempo, aí eu vou pra frente do tempo. São tantas e tantas coisas que eu previ. Por exemplo, previ que o Muro de Berlim ia cair. Sabe por que caiu? Vou dizer agora: por causa do papel higiênico em Berlim Oriental. Não existia bunda de comunista que aguentasse aquilo! Fui ao banheiro lá e, quando saí, eu disse: O muro caiu! DÉBORA NASCIMENTO

CONTINENTE JUNHO 2016 | 31


ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

Conexão CONTINENTE JUNHO 2016 | 32


INTERNET Um espaço (não tão) livre e democrático

O espaço virtual é considerado a expressão da perfeita esfera pública, capaz de grande pressão política, mas a plataforma é hoje controlada por duas grandes empresas mundiais TEXTO Luiz Carlos Pinto

A internet já foi considerada o

terreno por excelência do exercício da política – um espaço de livre expressão e liberdade, a esfera pública perfeita e que revolucionaria o mundo, pressionando e cobrando democraticamente governos, explicitando injustiças. Parte dessa expectativa se deveu à utopia que alimentou sua construção na década de 1960 – na forma de uma estrutura distribuída, descentralizada, baseada em servidores autônomos. Entretanto, o cenário atual é o da acelerada transformação da internet na pior e mais extrema forma de repressão e dominação já vista na história da humanidade – controlada por poucas plataformas de comunicação e gerenciada por algumas corporações. O cenário mais pessimista é o de que esse Leviatã pós-moderno seja estruturado por duas grandes empresas (Google e Facebook), com o agravante de serem espécies de braços longos do sistema de vigilância global imposto pelos Estados Unidos. A transformação acelerada dessa invenção em mais um espaço controlado e limitador das capacidades expressivas, entretanto, não é um fato dado. A internet ainda é um terreno em disputa. Mas, na sua configuração atual, projetada para eliminar a voz

CONTINENTE JUNHO 2016 | 33

da maioria e dar evidência à voz das elites dos países do Ocidente, as narrativas divergentes dos poderes instituídos global e localmente estão fortemente ameaçadas. Pior: a perda da capacidade emancipatória que a internet já teve é também resultado do modo acrítico com o qual as tecnologias hoje disponíveis são usadas. A reconquista desse espaço como campo de ação e articulação política dependerá, nos próximos anos, do aprendizado crítico do uso das redes sociais, da capacidade de apropriação de linguagens e da salvaguarda da privacidade – aliás, um dos temas de maior relevância política deste século.

BOLHAS ALGORÍTMICAS

Há alguns anos, pesquisadores da cultura digital e ativistas ao redor do mundo se acostumaram à ideia de que a internet e suas potencialidades emancipadoras estão sob ataque. Os fronts dessa disputa são basicamente dois: as legislações e os recursos tecnológicos que limitam o direito à comunicação. Esses campos se expressam de diversas maneiras. Uma delas é a formação de bolhas de interesse estabelecidas por algoritmos. O caso típico é o Facebook. Nessa rede, os usuários navegam em um fluxo de informações que lhe são


FOTOS: DIVULGAÇÃO

1 MARCO KONOPACKI Para o pesquisador, navegação acrítica dos usuários pode gerar bolhas de arrogância e intolerância interpessoal HIPERCONECTIVIDADE 2 Fenômeno social contemporâneo evidencia o alheamento e o autocentramento coletivo

Conexão 1

oferecidas em função de seus interesses pessoais, de suas conversas, das navegações que fazem em outros sites, das conversas que têm ao telefone, em trocas no WhatsApp (empresa do Facebook), dos encontros físicos com outros usuários, em função ainda das conversas que têm pessoalmente ou via telefone, das afinidades eletivas com outros usuários da rede, de compras realizadas na web ou não, entre muitas outras atividades que formam os perfis de interesse e de consumo dos seus usuários. O desenho desses perfis é tão bem-feito, que “os números recentes mostram que os usuários do Facebook passam em média cinco horas por dia ligados à plataforma”, afirma Marcio Moretto, professsor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. A maior parte desse tempo é gasto em interações programadas pela empresa de Mark Zuckerberg. “A consequência para a política pode ser, na verdade, a construção da não política. A política pode ser entendida como a ‘economia da coexistência’, ou seja, um ambiente em que as pessoas negociam e fazem

De acordo com Marcio Moretto, usuários do Facebook passam, em média, cinco horas por dia ligados à plataforma acordos para poderem viver em sociedade. Mas, para isso, é preciso que haja diálogo e empatia a fim de que cada ser humano entenda ser parte de algo maior e diverso, e possa se colocar no lugar do outro para produzir entendimentos comuns”, afirma Marco Konopacki, coordenador de projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS–Rio). “Quando se criam essas bolhas, as consequências podem ser a intolerância, a arrogância ou, pior ainda, o medo do outro, simplesmente por desaprendermos, aos poucos, a lidar com a diferença”, completa. Parece familiar? Por um lado, há uma total opacidade do funcionamento dos algoritmos: “Há quem defenda a

CONTINENTE JUNHO 2016 | 34

necessidade de um debate mais profundo sobre os termos de uso e maior transparência em relação aos algoritmos adotados pelas plataformas, de modo a esclarecer limites e possibilidades de atuação em cada uma delas”, afirma a analista do centro independente de pesquisa interdisciplinar InternetLab, Beatriz Kira. Por outro lado, há a quase total transparência dos dados dos usuários. Não fosse a entrega sistematicamente voluntária destes às suas redes de preferência – as bolhas de afinidade –, o poder de barganha das redes sociais junto ao mercado e aos governos, seu poder de edição da web e, no final, seu poder político, não seria tão grande. A multiplicidade de narrativas e do encontro de ideias não estaria tão ameaçada. “As redes sociais não são feitas (e refeitas, porque os algoritmos estão sempre mudando, sendo aperfeiçoados) para o debate político, mas para venderem coisas e pessoas”, completa Rafael Evangelista, pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor) da Universidade de Campinas.

PERFIS DOS USUÁRIOS

Esse processo não se restringe às redes sociais. Está se expandindo para outros sites na web e não há sinais de que vai parar: alguns dos principais portais de notícias no mundo já fornecem conteúdo em função dos perfis dos usuários, que são criados por meio do rastreio de informações pessoais feito nos computadores, nos e-mails, nas interações nas próprias redes, no histórico de consumo pago com cartões de crédito, entre outros. “Definitivamente, essa é uma tendência. Não sei se grandes portais brasileiros investem nisso, mas creio que, se não o fazem, é questão de tempo”, afirma Moretto.


Há 10 anos, o advogado norteamericano Lawrence Lessig argumentava que um novo campo de legislação havia emergido. O que um dos inventores do Creative Commons propunha está se realizando plenamente agora: os controles sobre o ambiente digital podem ser vistos como uma normatividade paralela, ou externa, ao escrutínio dos canais democráticos de regulação. Com efeito, tanto leis quanto normas sociais são introjetadas pelos indivíduos maduros e integrados à sociedade. A aplicação das legislações aos comportamentos que contrariam o que definem tais leis é feita por intermédio de instituições cujo funcionamento é público. O que vem sendo chamado de regulação arquitetônica ou pelo código, no modelo de Lessig, funciona de forma diferente: os processos sociais ou a intervenção de instituições ou de indivíduos, no âmbito de uma economia de bens simbólicos, em face às amplas possibilidades de digitalização e das redes de informação, estão sendo progressivamente ameaçados e reduzidos.

Não fosse a entrega voluntária de dados por parte dos usuários, o poder das redes sociais não seria tão grande As razões desse processo são, de forma mais evidente, comerciais: fazer o usuário passar a maior parte de tempo possível naquele espaço murado, que lhe oferece a todo tempo informações que lhe são úteis e interessantes para que a exposição publicitária seja mais efetiva. Mas a edição da web começou de uma forma um pouco diferente, com o estabelecimento do Google como mecanismo de busca dominante – o que implicou em uma primeira concentração de poder e de informação (ou se preferir, de informação sobre informação). Esse sistema de busca acabou se tornando o mapa, o direcionador da rede, o lugar que quase todo mundo usa para saber onde está o

CONTINENTE JUNHO 2016 | 35

2

quê. Se esse mapa manipula, ou se, simplesmente, não podemos saber se ele está manipulando, porque não temos acesso a como ele funciona, já é um problema por si só. Nos Estados Unidos, 76% das buscas são feitas no Google – dados da Thoughtworks Foundation. A média global oscila em torno de 85%. No Brasil, é diferente. Segundo a Serasa Experien, a empresa de Mountain View detém 95,2% das buscas na internet brasileira, por meio do Google Brasil e das demais versões do site focadas em outros países. O segundo lugar é ocupado pelo Bing, da Microsoft, e estima-se que essa posição privilegiada só é possível porque a empresa de Bill Gates força a barra e associa seu serviço a dois produtos integrantes do pacote que vende: o Messenger (mensageiro instantâneo) e o navegador Internet Explorer. Qual a consequência disso? A falta de pluralidade do mapa que o Google faz da internet e que as pessoas usam para se deslocar. Mas o maior prejuízo está na forma da progressiva perda do hábito da navegação não linear, em que a curiosidade era


DIVULGAÇÃO

Conexão 3

alimentada por hiperlinks nos conteúdos e se desenhavam percursos muito pessoais e plurais de acesso e produção de informação.

CONCENTRAÇÃO DE TRÁFEGO

A concentração de tráfego decorrente do processo de edição da web e da pluralidade das narrativas (que era típica da internet em seus anos iniciais) é agravada pelo fim iminente da neutralidade da rede. É fácil entender o sentido desse termo, que nos últimos tempos se tornou mais popular no Brasil. Ele indica que “quem controla os cabos (e toda a estrutura física) por onde passam os dados e informações precisa ser neutro em relação a essas informações”, afirma o professor Sérgio Amadeo, da UniABC. Também é fácil compreender os efeitos da possível queda do princípio da neutralidade (com a qual, aliás, a internet foi construída): a melhor analogia é com a TV paga. Se a neutralidade cair, a internet se transforma em algo parecido com uma TV a cabo, na qual algumas pessoas

A concentração de tráfego decorrente do processo de edição da web é agravada pelo fim iminente da neutralidade da rede e algumas empresas decidem o que você pode ver ou não, quem verá mais conteúdo com qualidade mediante pagamentos extras. A consequência da consequência: basicamente, esse sistema reorienta a visibilidade de ideias e crenças, que deixam de circular livremente. Isso é o contrário do projeto original da internet. Hoje, há tecnologias disponíveis que permitem discriminar os conteúdos na rede criando pistas com velocidades diferentes, o que estabelece uma competição desigual por visibilidade na web, o que, por sua vez, também contraria o projeto original da internet. A ideia original era que um “site qualquer que eu pudesse hospedar, até mesmo em casa, de

CONTINENTE JUNHO 2016 | 36

forma doméstica, estaria tão facilmente acessível quanto o site de uma grande empresa jornalística”, afirma o pesquisador Rafael Evangelista. “Daí se derivava a ideia de que, a partir de qualquer lugar do mundo, se tinha acesso a qualquer conteúdo. Isso já não é mais verdade”, completa. As razões dessa alteração são políticas e econômicas e se expressam, como já mencionado, por meio de tecnologias e de legislações. Na prática, quem lança mão dessas tecnologias são empresas de telefonia e governos – algumas vezes, essas corporações o fazem por interferência legal ou ilegal de governantes. Como funciona? Muitas empresas de telefonia identificam que boa parte do tráfego de dados de alguém é devido ao download de filmes e músicas, ou a serviços de streaming como da Netflix. E concluem que poderiam faturar mais, pois aquele conteúdo ocupa demais suas estruturas. Nesses casos, acionam filtros que reduzem a velocidade do serviço – mais ou menos igual a quando se interfere no fluxo de água


3 PROVEDORES Em 2013, a Netflix entrou em disputa com a Comcast, maior provedora de internet nos EUA, porque esta empresa tentou cobrar ao canal de streaming pelo tráfego diferenciado que gerava

de uma mangueira, ou quando se interfere no fluxo de amadurecimento de uma democracia. Assim, na prática, a neutralidade da rede é garantida legalmente (leia o texto a seguir), mas é aviltada facilmente. As tentativas em curso são de atribuir status jurídico e legal ao que as empresas de telecom já fazem. (Sobre o caso brasileiro, leia texto da página 40 sobre as consequências da CPI dos Crimes Cibernéticos.) O caso emblemático é a questão que envolveu a Comcast (maior provedora de internet nos Estados Unidos e terceira maior empresa provedora de serviços de telecomunicações desse país) e a Netflix, em 2013, nos Estados Unidos. A empresa tentou cobrar à Netflix pelo tráfego diferenciado que gerava. Durante as negociações, a Comcast reduziu a velocidade dos dados do Netflix e, quando o acordo foi selado, a velocidade voltou ao normal. Mais: o Facebook estabeleceu acordos com provedores para receber tratamento diferenciado. Em muitos casos, a navegação em suas páginas não é descontada do pacote dos clientes desses provedores. Isso explica, ao menos em parte, a estabilidade da navegação nessa rede social. Esses acordos estabelecem um pedágio seletivo gerando forte desigualdade competitiva na web. Os provedores, por seu lado, fazem isso para atingir seus clientes de alguma forma. O argumento das empresas de telecom é que elas construíram a estrutura e que, por isso, podem tarifar e monetizar da maneira que lhes aprouver. É um argumento falacioso. Mais ainda no caso brasileiro: a construção dessa infraestrutura foi financiada em sua maior parte com dinheiro público por meio de empréstimos, subvenções, redução de tarifas de importação e/ou foi herdado dos processos de privatização do sistema Telebras durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O entendimento da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da OEA, assim como da Relatoria

Especial para a Liberdade de Expressão da ONU, é de que a internet é uma infraestrutura pública construída para o bem público, deve ser encarada como tal e protegida igualmente como bem público – como a água e a eletricidade. A internet pode parecer esse lugar em que todos têm as mesmas condições de falar e serem ouvidos. Mas, na verdade, o tráfego está cada vez mais concentrado em portais, plataformas de algumas poucas corporações americanas. As plataformas que concentram a maior parte do conteúdo da internet são centralizadas e de código fechado. Isso significa que seu funcionamento é decidido por poucas pessoas e de forma não transparente, o que permite a realização de operações invisíveis aos usuários – como o acesso a nossas informações pessoais por agências de governo. Mas as restrições impostas pela quebra de neutralidade, legal ou não,

A consequência imediata da quebra de neutralidade é o fechamento e a redução de conteúdo livre na rede também impedem a criatividade. Criações como o YouTube e o Vimeo não teriam sido possíveis sem a neutralidade de rede. Seus criadores não precisaram pagar a mais por testar suas engines, nem de autorização de ninguém. Essa cultura da autorização – mais um conceito desenvolvido pelo jurista Lawrence Lessig que está se confirmando – mina a criatividade e as possíveis formas de expressão ainda não inventadas.

MERCADO

A consequência mais imediata da quebra da neutralidade é o fechamento e a redução de conteúdo livre na rede, ou seja, a restrição à informação, cultura e conhecimento disponíveis. E, se o mercado não é competitivo, se ele é marcado por oligopólios, a implementação de tais restrições é ainda mais violenta. E tende a ser feita por quem administra

CONTINENTE JUNHO 2016 | 37

a estrutura física de banda larga. Essas empresas controlam a oferta do serviço e limitam as opções de acesso, além de fazer lobby para a aprovação de leis e regulamentações que flexibilizem a neutralidade de rede – vide as pressões recentes sobre a CPI dos Crimes Cibernéticos. O cenário é ainda mais grave, quando analisamos a infraestrutura internacional. Mais de 70% dos principais troncos da rede pertencem a uma única empresa, a Leve. No Brasil, Vivo, Tim, Claro e Oi concentram quase 100% do mercado de celulares, 76% dos telefones fixos, 60% do mercado de televisão a cabo e 86,7% da banda larga fixa. Com as conexões via TV por assinatura (tecnologias cable modem, MMDS e wireless), a situação é de ainda mais concentração (a NET ocupa sozinha 24,21% do mercado). E as conexões via provedores confirmam o gargalo: embora existam no Brasil 1.761 provedores, essas empresas fazem uso de apenas quatro estruturas de rede – a Embratel detém 41,2% desse mercado, seguida da Oi/ Telemar (31,6%), Brasil Telecom (26,9%), Telefônica – GVT/Vivo (15,3%), segundo dados da Pesquisa Teleco Provedores de Banda Larga. Observar que, nesses percentuais, de março de 2008, a Oi/Telemar e a Brasil Telecom ainda não eram contabilizadas como uma só empresa. A aquisição da BrT só se daria após acordo fechado no dia 25 de abril de 2008, à noite, o que pôs fim à maior disputa acionária da história do país. O negócio só foi possível com a mudança da Lei Geral de Telecomunicações, que, antes da intervenção do governo federal, não permitia a fusão entre a Telemar e a BrT – cujo fruto é a Oi, maior empresa de telecomunicações da América do Sul. A concentração de estruturas físicas facilita outro front de redução da pluralidade na rede, formada pelas legislações de direitos autorais. Com efeito, essas legislações servem como argumento para a retirada de conteúdo de sites, quando não de censura mesmo – aliás, uma das possíveis modificações ao Marco Civil da Internet sugerida no relatório da CPI dos Crimes Cibernéticos.


ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

Conexão

CONTRADISPOSITIVOS Como barrar a dominação?

Há caminhos possíveis de se criar uma cultura de segurança que reduza o controle e promova espaços em que os usuários da rede não estejam sendo observados

Ok, há um projeto de dominação dos

espaços cibernéticos em andamento que reduz ou ameaça a potência de políticas e narrativas contra-hegemônicas. Diante disso, o que fazer? Como orientar a ação política em um sistema global de vigilância pan-óptica atualizado? A maior parte dos especialistas ouvidos aponta para a necessidade de uma

disposição crítica em relação às tecnologias em geral e em relação às redes sociais em particular. As saídas parecem apontar para um aprendizado mais sofisticado em massa, que inclua conhecimentos básicos de criptografia e de programação. “Penso que é importante construirmos uma cultura de

CONTINENTE JUNHO 2016 | 38

segurança que promova espaços em que possamos nos comunicar sem a preocupação de estarmos sendo observados. Ferramentas de criptografia são a chave para criar esses espaços”, afirma Márcio Moretto, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, com pesquisas em Inteligência Artificial. “Ambientes pan-ópticos, de vigilância constante, como o Facebook, inibem a articulação de toda uma sorte de ideias e de relações. Penso, porém, que cultivar os espaços de segurança não significa abandonar as plataformas mais populares. Essas, com todas as suas limitações, são um espaço importante de articulação política e social e devem ser usadas, desde que criticamente”, completa Moretto. No mesmo sentido, o administrador, pesquisador e desenvolvedor de softwares Marco Konopacki defende a importância de disseminação de recursos “para que mais pessoas possam entender o que são os códigos, como programá-los, como quebrá-los e, principalmente, como transgredi-los”, afirma.


Isso implica o uso de softwares que inibam vigilância e monitoramento, navegadores que ocultem as informações pessoais de seus usuários, softwares livres e sistemas operacionais abertos. Todos esses recursos permitem uma redução de bloqueios, filtros de espionagem e de sistemas de vigilância sobre os indivíduos e coletivos. “Não se trata mais de lutar contra os filtros, mas de aprender a se relacionar com eles de maneira crítica, compreender não só sua dinâmica de funcionamento, mas também seus efeitos em nossa comunicação”, completa Márcio Moretto. Para o doutorando em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Paulo Faltay, “é necessária a abertura e escrutínio de como funcionam as ferramentas, plataformas, aparelhos, bem como o desenvolvimento de projetos que desmistifiquem seus mecanismos internos ou obscurecidos”, afirma. Ele entende a necessidade de um processo pedagógico que mostre como as tecnologias podem ser diferentes, reduzindo assim aspectos coercitivos ou normativos que elas possam impor aos usuários. Segundo o pesquisador, também é necessário criar condições “para intervenção nos meios, proporcionando às pessoas o estatuto de agentes da ação”.

PRIVACIDADE

O conhecimento crítico das tecnologias e redes, entretanto, precisa andar de mãos dadas com outra ideia e prática de privacidade. Caso contrário, não adianta munir-se de recursos que protejam a integridade de informações trocadas, informações pessoais, dados geográficos, se ainda assim o usuário não protege sua privacidade. É comum o argumento segundo o qual as informações trocadas em chats, e-mails, em conversações em fóruns, Skype e outros recursos não têm nada demais, nada a esconder. “A questão é que uma das bases da democracia é a privacidade”, afirma o sociólogo Sérgio Amadeo, em consonância com a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da ONU: sem privacidade, não há liberdade de expressão, pois a falta de privacidade é um elemento de intimidação. A imprensa, por exemplo, precisa manter a confidencialidade de

suas fontes e de sua informação. Para fazer jornalismo investigativo, para combater a corrupção oficial, ou para denunciar o crime organizado. A hiperconexão a que as sociedades contemporâneas estão habituadas gerou o entendimento de que a privacidade acabou – em parte, porque os serviços “que tornam a vida mais fácil” não cobram dinheiro, cobram a própria pessoa –, mas isso não é claro a todos: seu mapa mental desenhado nas buscas do Google, suas interações, suas preferências políticas e de consumo, suas relações, seus hábitos públicos e os mais privados também. O desafio parece ser a tomada de consciência da necessidade de se manter em privado as informações pessoais – pois é justamente a entrega delas que compra o conforto da vida digital. É também a falta de uma tomada de consciência da necessidade de se aprender mais sobre tecnologias que abre as possibilidades da vulnerabilidade. Herbert Marcuse, filósofo alemão da célebre Escola de Frankfurt, foi um dos intelectuais que elaboraram uma

O conhecimento crítico das redes precisa ser acompanhado de outra prática de privacidade contundente crítica às formas típicas de controle e de fechamento do universo político da sociedade industrial. Sua obra ainda hoje é uma referência importante para entender esses temas. Mas nem a mais pessimista de suas expectativas se compara à vida social marcada pela dominação centralizada, controle cultural e conformismo individual que se depreende do que a antiga rede de redes está se transformando. Entretanto, mais do que algo dado, a internet se constrói também pela conexão, por iniciativas. Construir infraestruturas autônomas, independentes, não ficar à mercê de iniciativas que não controlamos – ou que são alheias a esses objetivos – é parte importante.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 39

Um bom e recente exemplo disso é o aplicativo DefesaZap, que permite o envio de vídeos com denúncias de violência cometida por policiais militares, guardas municipais, policiais civis, membros das forças armadas, entre outros. O material é enviado de forma anônima, usando um sistema encriptado, à equipe do DefeZap, e assim pode servir como material para avisar às autoridades responsáveis e cobrálas. Os vídeos ainda passam a compor um banco de dados sobre as abordagens abusivas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

NAVEGAÇÃO ANÔNIMA

Iniciativas como o DefesaZap fazem uso da tecnologia de encriptação de dados – um conjunto de metodologias que permite o anonimato e o envio seguro de informações. A mais notória das aplicações desse princípio é o TOR – rede global descentralizada cujo funcionamento permite ao usuário mascarar sua localização, dificultando, assim, a sua identificação. Isso é feito de uma forma que garante matematicamente que quem recebe o pacote não saiba de onde ele se originou, e que seu provedor não saiba o que você está enviando ou acessando. A melhor forma de usar essa rede para navegar na web é usando o navegador de mesmo nome. Um recurso a mais além do TOR é encriptar a navegação e para isso é necessário usar endereços de sites que ofereçam certificados de segurança. Quem já fez compras na internet deve ter percebido que o endereço no navegador passa a contar com um S (ex: https://meusite.com). Nem todos os sites oferecem esse serviço, que permite que a navegação em seu conteúdo seja privada. Mas é possível fazer o navegador sempre procurar acessar sites dessa forma segura: existem complementos que podem ser instalados no navegador (como o HTTPS Everywhere). Também é interessante usar serviços de e-mail seguro, ou seja, que tenham uma política transparente e de respeito à privacidade de seus usuários. Boas opções são o Riseup, Aktivix e Autistici. LUIZ CARLOS PINTO


ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

Conexão

LEGISLAÇÃO O necessário Marco Civil

Tramita no Congresso Nacional projeto de lei, criado sob pressão da sociedade civil, que trata da proteção de dados pessoais na web e da instituição da Política de Dados Abertos

Antes de ser afastada do seu cargo,

Dilma Rousseff tentou consolidar medidas relacionadas a políticas da internet, entre elas a regulamentação do Marco Civil da Internet, o encaminhamento para o Congresso do projeto de lei que trata da proteção de dados pessoais e a instituição da Política de Dados Abertos. Em linhas gerais, as sanções presidenciais atendem a solicitações da sociedade civil que foram explicitadas em quatro audiências públicas, cujo principal objeto era a regulamentação das regras para a rede no Brasil.

O decreto que regulamenta o Marco Civil da Internet (nº 8.771/2016) sancionado pela presidenta proíbe acordos entre empresas de serviço e conteúdo e de acesso para priorização de dados – salvaguardando, assim, nos termos legais, a neutralidade. A regulamentação estabelece padrões em relação à privacidade e proteção de dados pessoais dos usuários. Um dos maiores avanços nesse sentido foi a criação da regra que orienta os provedores de serviços web (como Facebook e Google, por exemplo) a gerar “a menor quantidade possível de

CONTINENTE JUNHO 2016 | 40

dados pessoais, comunicações privadas e registros” em geral. O primeiro reflexo disso é que as empresas devem excluir as informações coletadas depois que a finalidade que justificou a coleta tiver sido alcançada. A orientação é, como se vê, contrária ao modelo de negócios predominante na web. Eventualmente, empresas provedoras de aplicações são cobradas legalmente a disponibilizar dados cadastrais de seus usuários. A lei não esclarecia como devem proceder empresas que não armazenam esse tipo de informação. A regulamentação estabeleceu que “o provedor que não coletar dados cadastrais deverá informar tal fato à autoridade solicitante, ficando desobrigado de fornecer tais dados”. O decreto ainda tornou mais exigentes os requisitos para solicitações de dados cadastrais, estabelecendo a exigência da fundamentação legal e motivação para a autorização do levantamento desses dados. As autoridades que os solicitarem devem informar quais pessoas estão sendo investigadas no processo.


garantias dos usuários na rede”, afirma Beatriz Kira, analista do InternetLab. As sugestões às quais a analista se refere tratam da possibilidade de bloqueio por ordem judicial de sites e aplicativos sem representação no Brasil, diretamente na camada de infraestrutura da internet. A única exceção, incluída no texto final após o recente e polêmico bloqueio do WhatsApp, são os aplicativos de serviços de mensagens instantâneas, que não poderão ser bloqueados. Ou seja, desfazem os efeitos da regulamentação aprovada por Dilma. “Esta proposta foi recebida pela sociedade civil organizada, pelo setor empresarial e por parte da academia (centros de pesquisa, como o InternetLab) com muita preocupação”, afirma Beatriz Kira. “Isso porque a eventual aprovação do projeto possibilitaria a banalização de bloqueios de provedores de aplicações, uma medida que deveria ser excepcional e que, em regra, afeta milhões de usuários. Além disso, o texto proposto também colocaria em risco plataformas utilizadas para produção e difusão de conhecimento, que poderiam ser Preocupada em se aproximar de potenciais apoiadores contra seu impeachment, a então presidenta também procurou tratar de um histórico problema no país: uma legislação específica sobre privacidade de dados pessoais. Desde outubro de 2015, uma proposta de lei descansava na mesa de Dilma. Na véspera da votação no Senado que aprovou seu afastamento, a mandatária encaminhou, em regime de urgência, à Câmara um Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados Pessoais. Esse texto cria normas para coleta e tratamento de dados pessoais – tanto em meio digital, quanto em meio físico.

CIBERCRIMES

O relatório da CPI dos Crimes Cibernéticos ainda paira como um fantasma sobre os avanços que o Marco Civil da Internet e sua regulamentação representam para a garantia de narrativas dissonantes, liberdade e direito de expressão na internet. “Apesar da versão final do relatório não incluir algumas das propostas iniciais mais problemáticas, as sugestões aprovadas ainda representam um enorme risco ao espírito do MCI e às

O relatório da CPI dos Crimes Cibernéticos paira como um fantasma sobre os avanços apresentados pelo Marco Civil

atual configuração de forças do Poder Legislativo brasileiro, o cenário é imprevisível”, completa. Essas propostas ainda estão no estágio inicial do trâmite legislativo, pois ainda serão debatidas em ambas as casas do Congresso antes de serem aprovadas e transformadas em lei. “O Brasil tem hoje a legislação reconhecidamente mais avançada do mundo para a internet. Algumas das propostas do relatório da CPI depõem contra a imagem que construímos”, afirma Demi Getschko, do Comitê Gestor da Internet (CGI). “Algumas dessas propostas preveem o bloqueio de serviços intermediários, sobretudo de aplicações sediadas fora do Brasil. Isso é muito próximo das práticas correntes em países ditatoriais como a China”, completa. É possível afirmar que há uma movimentação orquestrada para a emergência de legislações que limitam a liberdade de expressão na internet? As possíveis alterações no Marco Civil da Internet brasileira se enquadrariam nesse processo? Os especialistas consultados para esta reportagem compreendem que há, sim, essa movimentação, que se verifica em diversos países, em diferentes continentes, com níveis de industrialização e de cultura digital diversificados.

DIPLOMACIA 2.0

O caso paradigmático dessa articulação entre governos e intervenções sobre o livre fluxo de informação em rede é a aliança estabelecida entre o governo dos Estados Unidos e os principais bloqueadas para todos os usuários fornecedores de serviços em rede. O caso algum indivíduo compartilhasse caso é bem-contado pelo professor indevidamente conteúdos protegidos por Pablo Ortellado, no artigo O controle das direitos autorais, por exemplo”, esclarece. mídias sociais como instrumento da política Outro ponto polêmico do relatório externa americana. No texto, o pesquisador final da CPI é o projeto de lei que esclarece que a aproximação entre o modifica o Marco Civil da Internet para governo e Google, Facebook, Yahoo, autorizar que provedores de aplicações Skype, Microsoft se deu ainda no assegurem a retirada automática de final do segundo governo Bush, com conteúdos repetidos, cujos originais a percepção de que o controle das já tenham sido deletados por ordem empresas de mídia social era um ativo judicial, após notificação da parte a ser explorado. Ainda que tardia, essa interessada. “Essa proposta flexibiliza a percepção alargou o campo de atuação regra do MCI, segundo a qual conteúdos da diplomacia norte-americana. gerados por terceiros só deverão ser Essa diplomacia 2.0 procura atualizar removidos pelas plataformas mediante a estratégia de influenciar públicos ordem judicial, e representa uma ameaça estrangeiros a aderirem a interesses à liberdade de expressão online”, afirma nacionais norte-americanos. A Beatriz Kira. “No entanto, diante da introdução das novas tecnologias na

CONTINENTE JUNHO 2016 | 41


DIVULGAÇÃO

1

diplomacia pública mudava a orientação tradicional que, em vez de tentar persuadir o público estrangeiro a adotar uma visão americana completa, se contentava em desviá-lo de trajetórias indesejáveis de radicalização. Essa orientação foi bem- delineada pelo então subsecretário para Diplomacia Pública, James Glassman, num artigo publicado no New York Times em 2008. O objetivo não era persuadir recrutas potenciais a se tornarem americanos ou europeus, mas desviá-los do caminho de se tornarem terroristas. “Fazemos isso ajudando-os a construir redes (virtuais e físicas) e contramovimentos – não apenas políticos, mas culturais, sociais, atléticos e de outros tipos. (…) Ainda que conquistar os corações e mentes fosse um feito admirável, a guerra de ideias precisa adotar o objetivo imediato e realista de desviar segmentos impressionáveis da população de serem recrutados pelo extremismo violento”, escreveu Glassman. Mas a motivação fundamental para a criação de uma diplomacia pública 2.0 nasceu da tentativa de superar a impressão que os cidadãos estrangeiros tinham dos Estados Unidos como uma nação que sistematicamente desrespeitava as posições alheias. Nisso, as redes sociais são fundamentais. Ou como escreve Ortellado: essas

1 LIBERDADE DA INTERNET

Estratégia do governo dos EUA, chamada por Clinton de “Estadismo do século XXI”, consiste em conquistar adesão das empresas de tecnologia

ferramentas poderiam contornar a fama de impositor intransigente dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que defenderiam sua posição numa estratégia de soft power, já que: I) tinham uma estrutura descentralizada e participativa que encarnava os “valores (democráticos) americanos”; II) ofereciam múltiplas alternativas de trajetórias individuais, possibilitando rotas de desvio dos percursos de radicalização; III) eram operadas por empresas sediadas nos Estados Unidos; e, por isso, IV) as vozes presentes nelas poderiam ser apoiadas e estimuladas, de maneira “que nossa posição fosse ouvida, mesmo se atores do governo americano não fossem responsáveis (diretos) por essa posição”. A estratégia diplomática passou a construir vínculos entre ativistas com interesses convergentes com os americanos, empresas de tecnologia da informação e o Departamento de Estado. Em essência, é nisso que consiste a moderna estratégia de utilizar as plataformas digitais como instrumento da política externa americana. Mas é no governo Obama que essa relação se aprofunda.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 42

Em 2010, o ex-presidente Clinton nomeou de “Estadismo do século XXI” a inclusão de estratégias baseadas nas novas tecnologias em um sentido mais amplo que a diplomacia 2.0 do governo anterior. No início daquele ano, a Casa Branca promoveu “um encontro entre a secretária (Hilary Clinton) e diversos executivos da área de tecnologia de informação, entre eles o diretor da Google, Eric Schmidt, Jason Liebman, da Howcast, e Jack Dorsey, do Twitter. Duas semanas depois, a secretária proferiu seu famoso discurso sobre a liberdade da internet. O encontro e o discurso que o sucedeu marcam o delineamento da estratégia americana de fusão de novas tecnologias e política externa e a adesão de empresas de tecnologia a essa estratégia”, escreve o professor Ortellado. As diretrizes buscavam armar dissidentes com tecnologias de informação e comunicação de modo que estes se comunicassem e promovessem ideais próamericanos. A aliança entre empresas de tecnologias da informação e provedores de serviço de redes foi explicitada num artigo do final de 2010 da Foreign Affairs, coassinado pelo presidente da Google, Eric Schmidt, e o assessor da secretária Hillary Clinton, Jared Cohen. Nele, os produtos das empresas de tecnologia de informação são considerados “políticos” que equivalem às “armas” da Era da Informação, e enquanto os governos podem apenas “advertir”, as empresas podem efetivamente “fazer”. Esse movimento pelo qual a Google e outras empresas e fundações privadas passaram a implementar as diretrizes da política externa americana pode ser visto na realização, ainda em 2010, do evento Internet at Liberty, organizado pela Google em Budapeste, tradicional foco das políticas de promoção da democracia desde os anos 1990. O auge dessa aliança foi publicizada pelo caso Edward Snowden, o oficial da Agência de Segurança Nacional americana que demonstrou que os sistemas de vigilância dos EUA e da Grã-Bretanha têm acesso privilegiado aos sistemas, serviços e redes sociais do Facebook, Google, Yahoo, Amazon, Skype, Microsoft, Apple, Youtube, AT&T e Sprint, AOL. LUIZ CARLOS PINTO


ANDANÇAS VIRTUAIS

MÚSICA Estação de rádio KEXP aproxima-se do público da música alternativa http://kexp.org/

Seattle (EUA) é berço de artistas notáveis da música mundial, como Ray Charles, Jimi Hendrix, Quincy Jones, Nirvana e Pearl Jam. Na cidade, funciona a rádio

KEXP (90.3 FM). Segundo as diretrizes da rádio, os artistas recebidos pela KEXP normalmente não são apoiados por ONGs tradicionais de arte ou meios

de comunicação comerciais. O elenco de 40 DJs que integra o staff visa à variedade e à peculiaridade dos artistas convidados. Jazz e rock alternativo são as vertentes mais comuns, trazendo nomes como Ben Harper, The Suffers, Daughter, Portugal. The Man, entre muitos outros. Todavia, representantes diversos ganham espaço e notoriedade, como Gogol Bordello (banda multiétnica de gypsy punk), Ladysmith Black Mambazo (grupo vocal masculino sulafricano) e a banda tuaregue Tinariwen, influenciada pelo blues e pela música árabe. No seu canal no YouTube, a KEXP disponibiliza vídeos das apresentações, na íntegra ou por música. Engenheiros de som e profissionais do audiovisual produzem os registros que vão para a web, entregando um material de alta qualidade para fruição do público. KEXP ainda é afiliada da Universidade de Washington e da organização americana 501 (c) 3, uma ONG de arte, além de receber doações individuais dos ouvintes e incentivadores. ULYSSES GADÊLHA

BILLBOARD

POPFUZZ

MILITÂNCIA

CARBONO

Site cria gráficos em que aponta os hits musicais entre 1959 e 2015

Coletivo de Maceió publica agenda cultural e conteúdo editorial em site

Blogueiras Negras quer motivar escrita colaborativa de gênero

Publicação online propõe diálogo entre experiências artísticas e científicas

http://polygraph.cool/history/

http://popfuzz.com.br/

http://blogueirasnegras.org/

http://revistacarbono.com/

Todo ano, a Billboard elege os melhores hits musicais, com listas de top 5, top 10 ou top 100. Porém, com a velocidade da indústria fonográfica, é difícil acompanhar a história das músicas eleitas como melhores ao longo dos meses e, mais ainda, ao longo dos anos. O site polygraph se dedica a mostrar em gráfico, desde 1958 até 2015, mês a mês, o sobe e desce das top 5 músicas de acordo com a lista da publicação, possibilitando ao leitor resgatar a memória das canções mais tocadas, podendo pesquisar nomes de artistas para ver que músicas do ídolo já estiveram no top 5.

O Coletivo Popfuzz atua em Maceió desde 2005 e existe como associação desde 2011, organizando eventos tais como o Festival Maionese e o Popfuzz Apresenta, que dá visibilidade à música autoral. No seu site, é possível acompanhar todas as atividades do coletivo e ficar por dentro dos eventos e projetos que ele promove e realiza, como o selo independente Popfuzz Records. Além do calendário cultural por ele organizado, é possível ver conteúdos editoriais produzidos pelo grupo, como colunas e vídeos.

Blogueiras Negras foi criado com o propósito de motivar mulheres negras e afrodescendentes a produzirem conteúdo textual sobre qualquer tema que seja do seu interesse. Com textos que falam de arte, saúde, educação e resistência, o site colaborativo tem na sua equipe nove mulheres que fazem a curadoria dos textos publicados, priorizando temáticas que versem sobre as vivências femininas, sejam elas referentes à militância, como a interseccionalidade do feminismo negro com o transfeminismo, ou ao estilo de vida cotidiano, como moda e esportes.

Surgida em 2012, com apoio da Fundação Nacional de Artes (Funarte), a revista Carbono está em seu oitavo número e se propõe a tratar de temáticas relativas à natureza, ciência e arte. Cada edição se organiza a partir de uma ideia central, desenvolvida em entrevistas, ensaios, relatos, vídeos, projetos artísticos ou reportagens. Turismo; Início do mundo; Sono, sonho e memória; Dinheiro; Gravidade; Guerra e Encontro foram as temáticas exploradas pela publicação até o momento.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 43


CHICO NUNES De pandeiros e recordações Ele é luthier, cantor, compositor, desenhista e ex-policial militar do Carandiru. Em 22 anos, soma quase 1.200 pandeiros feitos por suas mãos TEXTO Leonardo Vila Nova FOTOS Alcione Ferreira

CON TI NEN TE

Perfil

“A pessoa é para o que nasce”, disse

Poroca, uma das três Ceguinhas de Campina Grande. A frase virou o título do documentário de 2004 que traz as irmãs como protagonistas, mas serve muito bem para nos dar a dimensão de quem é Chico Nunes. Embalado pelos caminhos e descaminhos da vida, parece ser perseguido por uma predestinação benfazeja: a arte. Dela, nunca quis fugir. Nasceu para isso. Dono de uma mente curiosa e inquieta, este senhor de 78 anos é daquelas pessoas vocacionadas para múltiplos fazeres, embora tenha sido sempre a música quem o pegou de jeito. Nascido Luiz Francisco Nunes, em Glória do Goitá (PE), Chico é um artista, apesar de não se considerar um. Tarefa impossível é defini-lo com apenas um predicado. Militar aposentado, é também cantor, compositor, desenhista, dentre várias coisas que já se arriscou a fazer. Mas foi como luthier que se notabilizou entre músicos de Pernambuco, e também fora dele. Por suas mãos, pandeiros tomam vida há 22 anos, e ganham o Brasil e o mundo. Seu nome se tornou uma espécie de

chancela quando se fala no instrumento, praticamente um “sinônimo de categoria”, como se diz das marcas que substituem o nome que se dá a um objeto, produto. É da pequena área de serviço do apartamento onde mora, no Recife, que saem os instrumentos que produz, os seus “Chicos Nunes”. Lá, madeiras, peles, peças de metal estão espalhadas por todos os lados. Formas, prensas, marretas, colas e todo o material necessário para confeccionar o instrumento dividem espaço com roupas no varal e despensa. Chico já produziu quase 1.200 pandeiros. É possível encontrá-los em vários estados, como Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Paraná e Bahia, e em todos os continentes, exceto na África, ele observa. Franceses, israelitas, escoceses, cubanos, ingleses já bateram à sua porta em busca do famoso instrumento. O ofício, ele aprendeu sozinho, sem professor ou apostila. “Continuo aprendendo até hoje”, assevera. Tudo começou por necessidade. Boêmio, costumava frequentar as rodas de choro do Quintal do Cosme, na Estrada da

CONTINENTE JUNHO 2016 | 44

Batalha, em Jaboatão dos Guararapes. Num dos intervalos, observou alguns pandeiros encostados e se arriscou a tirar som de um deles. “Achei que tinha jeito pra coisa e fui tocar. Gostei do negócio!” No dia seguinte, estava na Rua da Concórdia, no centro do Recife, procurando um para comprar. Perguntou ao atendente qual o melhor que tinha para samba. Ao experimentar, disse, na lata: “Rapaz, esse pandeiro não presta!”. Apesar de o vendedor exaltar a famosa marca do instrumento, Chico rebateu: “Esse pandeiro até pra jogar no lixo paga imposto”. Partiu para encontrar um que lhe agradasse. Foi a Fortaleza (CE) e Campina Grande (PB), territórios de outros luthiers, mas se cansou.


Determinou-se, então, a criar o próprio pandeiro. Pediu dicas de madeiras, materiais e formas de fazer. Sozinho, foi dando os primeiros passos na luteria. E foi na prática que se empenhou em alcançar a sonoridade desejada, já que o primeiro pandeiro que fez “ficou uma desgraça”, como ele diz. Mesmo assim, conseguiu um comprador, o que o estimulou a continuar a produção. Não parou mais. Ele criou um tipo muito particular de pandeiro, que se reconhece, de imediato, ao empunhar. O instrumento, de leveza incomum, ganhou uma almofada estrategicamente instalada na área em que se segura, tornando o manuseio mais confortável para o músico. Apenas o pandeiro de Chico Nunes possui esse

Natural de Glória do Goitá (PE), Chico aprendeu a fazer o instrumento sozinho, depois de frequentar rodas de choro acolchoado, que se tornou uma marca registrada, além da qualidade do som, já atestada e aprovada por quem é do ramo. Para chegar ao resultado final, ele lida com madeiras (cedro), peles (bode), latão e demais materiais. Confecciona tudo: aro, platinelas, tarraxas, porcas, com exceção apenas das ruelas. Todo o processo – que inclui hidratar a madeira,

CONTINENTE JUNHO 2016 | 45

conferir a ela o formato circular, aplicar ceras, vernizes, colocar a pele – dura 20 dias. A produção é de, em média, cinco pandeiros por mês. Todos devidamente registrados numa lista, manuscrita, na qual ele coloca, um a um, os nomes dos clientes. Entre alguns eles, estão Isaar, Silvério Pessoa, Walmir Chagas, Maestro Forró, Santana e Benito di Paula.

PRAZERES

Apesar dos 78 anos e da aposentadoria, a vida de Nunes é de dedicação total ao ofício. Não há um dia sequer em que não mexa nos pandeiros, seja saindo à rua para comprar os materiais necessários ou no trabalho de feitura propriamente dito. “Hoje em dia, ele trabalha muito mais do que quando


ACERVO PESSOAL

CON TI NEN TE

Perfil 1

não era aposentado”, diz a esposa, Zita, com quem Chico vive há 55 anos. Ele também dedica noites à dança no Clube das Pás, nutre paixão pelo Carnaval, pelo futebol, por contar histórias. Conversar com Chico é de puxar a cadeira e tomar um bom cafezinho. Do dilúvio bíblico às células-tronco, tudo entra no seu colóquio afiado e sagaz. Tem sempre uma opinião na ponta da língua e adora destilar frases cáusticas, mas bem-humoradas. Consegue passar horas a fio relembrando fatos e momentos muito específicos, com uma riqueza de detalhes que impressiona. Nisso, sua vida torna-se um prato cheio! Desde a infância pobre, quando morava numa “casa de taipa, coberta de capim, sem luz e sem água”, no Alto Santa Terezinha, passando pela época em que viveu em São Paulo, até os dias de hoje, ele desanda a contar tudo, sem restrições ou empecilhos da memória. Entre álbuns de fotografia, desenhos, recortes de jornal, letras de música, ele se debruça sobre um tanto do que viveu, tendo o samba, o choro e o frevo como trilha sonora afetiva. A música, sua paixão de primeira instância, soberana, está presente desde muito cedo. A primeira composição foi feita aos 12 anos,

Em São Paulo, ele passou num concurso para a Polícia Militar, mas nunca deixou de conciliar a vida de PM com a música despretensiosamente, e lembra a Escola de Samba 4 de Outubro, do Alto Santa Terezinha. À época, o diretor de harmonia da agremiação, Mariano, abandonou a função por conta de um aborrecimento. Preocupado com sua ausência, a poucos meses do próximo Carnaval, Chico compôs, em verso e melodia: “Avisa à turma que tem ensaio/ e nós precisamos de você/ sem diretor de harmonia/ a nossa escola não pode vencer/ tu és a alma desse povo/ tu és a nossa tradição/ pega no apito, Mariano/ e venha animar o povo da nossa região”. A música havia agradado à diretoria da 4 de Outubro, que começou a ensaiá-la. Até que, dois meses antes da folia, Mariano retomou o posto. “Ele voltou com um samba já pronto. Claro que o pessoal ficou com a música dele, não com a minha. Ninguém ia sair com um samba de um menino, né?”

CONTINENTE JUNHO 2016 | 46

2

O talento ali apontado só viria cutucá-lo muito tempo depois, longe de casa. Aos 21 anos, Chico passou num concurso para a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Depois de oito anos trabalhando como PM nas ruas – “Eu não prendia nem uma mosca!”, lembra –, foi transferido para a Casa de Detenção de São Paulo (o Carandiru), onde seguiu pelos próximos 22, até se aposentar, em 1988. O clima duro, pesado e hostil não o furtaram de se deparar com rodas de choro formadas por detentos de bom comportamento. O interesse de Chico pela música despertou novamente a vontade de compor e o levou a conhecer a noite paulistana. Passou a frequentar as rodas de samba e choro e foi apresentado a muita gente, a exemplo do cantor Noite Ilustrada, com quem manteve uma amizade de 36 anos. Também conheceu o “ponto dos artistas”: o Bar Cometa, na Avenida São João. Lá era o reduto de músicos, frequentado por cantores e compositores como Francisco Petrônio, Roberto Silva, Jair Rodrigues, Originais do Samba e tantos outros. “Fiquei meio ‘assim’! Nunca tinha visto esses caras na minha frente! Pra ver um artista desse, a gente tinha que ir ao cinema.” Antes um novato, aos poucos, Chico foi se tornando um deles.


REPRODUÇÃO

3

1 CARNAVALESCO

Chico desfilando no Cordas e Retalhos, bloco em que nutre seu amor pela folia

Entre composições surgidas na época, finalmente Chico conseguira emplacar uma: Contratempo, gravada em 1970, pelo grupo Samba Seis. Certo dia, ele se depara com a apresentação da música no Almoço com as Estrelas, programa de grande audiência da TV Tupi. “Ainda fiquei encucado: ‘Será que é a minha?’ E era!” Pouco depois, a música já era a quarta mais pedida da programação. Era sinal de que o sucesso batia à sua porta. Entusiasmado, pensou em largar o trabalho e se dedicar a compor. Porém, Noite Ilustrada tratou de trazê-lo de volta à realidade. “Ele disse: ‘Fique quieto aí, vá com calma! Compre, no máximo, um tamborete novo e tá tudo certo’!”. Chico seguiu o conselho e continuou numa vida dividida: montou seu grupo de choro, que se apresentava nas noites paulistanas e continuou cumprindo carga horária no Carandiru. A dureza que era o seu trabalho na carceragem o marcou profundamente. “Tinha dias que eu tomava três Diasepam antes de sair de casa.” Ainda assim, continuou a enviar músicas para artistas, embora sem a receptividade de Contratempo. “Nunca mais fiz um grande sucesso. Hoje em dia, gravo mais pra preencher meu ego.” Ele acredita que o temperamento forte, não aberto a concessões, o fez perder chances de ter várias de suas músicas

2 PRODUÇÃO

O luthier faz todo o processo, como hidratar a madeira para que fique circular

gravadas. “Teve um ano em que eu dei 13 fitas pra cantores diferentes, com quatro ou cinco músicas cada. Nada!”, recorda. “Eu não gosto de demagogia! Nunca quis que ninguém gravasse uma música minha só porque era meu amigo”, conta, lembrando que poderia também ter associado seu nome a artistas famosos, o que recusara. “Deixei de gravar uma música minha com Jackson (do Pandeiro), chamada Vivendo e aprendendo, porque me neguei a colocar o nome dele em parceria comigo.” Com a aposentadoria, veio a “libertação”. Dois anos depois, estava de volta ao Recife.

O COMPOSITOR

Nunes tem mais de 40 músicas gravadas, dentre várias compostas. Em geral, sambas e choros, que ganharam as vozes de artistas como Walmir Chagas, Nena Queiroga, Cris Nolasco. Frevos também estão entre suas composições. Já participou, na condição de diretor, de agremiações como Galo da Madrugada e Bloco das Flores. Folião da “velha guarda”, o que o emociona é o “carnaval de antigamente”. “A (Avenida) Nossa Senhora do Carmo é o pé de poeira do Carnaval. Quando vejo aquelas agremiações desfilando, não consigo parar de chorar, porque

CONTINENTE JUNHO 2016 | 47

3 NA TV

ua música S Contratempo foi gravada na década de 1970, pelo grupo Samba Seis

me lembra a boa vontade e a força daquele povo pobre, mas feliz da vida de fazer seu Carnaval.” Além disso, já desenhou e confeccionou flabelos de 15 desses blocos. Ele também desenha. “Eu desenhava capas de discos ou fotos de jornal e mandava pelos correios, pros artistas, aos cuidados da gravadora. Junto, uma fita K7, com músicas minhas.” Entre os consagrados – como Martinho da Vila e Alcione –, apenas um lhe respondeu: Chico Buarque. Nunes guarda até hoje a carta que recebeu do xará famoso, em 1979. No entanto, ele não se comprometeu a gravar nada. Parabenizou e disse que encaminharia sua fita à Philips. Ficou a recordação. Sem dúvida, as recordações são o bem mais precioso de Chico. Apesar de se divertir ao contar suas histórias, para ele, “recordar não é viver”. O tempo de Chico é hoje. Os desenhos, seus pandeiros, suas novas composições, tudo isso vivifica sua alma. Sem vaidade alguma, contempla sua trajetória: “Eu vivo cada segundo. Um minuto, na minha idade, é muito tempo! Eu já vi o Náutico perder um campeonato em um minuto”, arremata, com um bom humor desencanado, porém atento, de quem se arriscou a tudo, exceto a deixar a vida passar em branco.


CON TI NEN TE#44

Viagem

CONTINENTE JUNHO 2016 | 48


AMAZÔNIA Quatro dias no Rio Negro Fotógrafa relata breve viagem pelas águas e pela Floresta Amazônica, em que a natureza grandiosa convida os forasteiros ao respeito e à observação TEXTO E FOTOS Roberta Guimarães

Algumas leituras, mesmo sem termos a intenção, nos fazem reconhecer um local através dos personagens criados pelo autor. Reconhecimento que não é necessariamente visual (construído por uma imagem real), aliás, por mais das vezes apenas imaginário. Foi assim quando cheguei a Manaus para seguir numa excursão pelo Rio Negro. Algumas crônicas do manauara Milton Hautom, que estão no livro Um solitário à espreita, me fizeram viajar com seus personagens. Sobretudo a narrativa sobre a avó Samara – que, aos 91 anos, jogou os aparelhos auditivos num tanque de enguias porque o zumbido que ouvia lhe lembrava carapanãs, como os amazonenses chamam mosquito –, e o vendedor de frutas da crônica O homem-floresta. Escreve Hatoum: “(…) um caboclo equilibrando-se na rua de pedras, um pomar suspenso oscilando sobre a cabeça invisível, a voz trinando sons tremidos pelo vento que vinha do Rio Negro. (…) avistava o arbusto humano carregado de frutas e ouvia as palavras tapebá, ingá, sorva, tucumã, graviola, jatobá, cupuaçu, bacaba; palavras (sons) que nunca mais deixei de ouvir por onde andei e morei”. O homem-floresta de Milton Hautom me fez voltar à infância no Bairro da CONTINENTE JUNHO 2016 | 49

Madalena, onde ficava a casa da minha avó, à beira do Rio Capibaribe. Víamos e ouvíamos o homem-fruta, com seu balaio cheio de mangas, cajás, jambos e oitis. O conto de Hautom me lembrou do quanto tínhamos mais contato com a natureza, ainda nos idos anos 1960 e 1970. Os quintais eram repletos de árvores frutíferas. Na zona norte do Recife, não era raro encontrar nas casas, como hoje em dia o é, jambo, sapoti, cajá e manga. O personagem do conto me lembrou a importância de conhecer a Floresta Amazônica, como forma de conscientização para a necessidade da preservação. A Amazônia representa 42% do território nacional, três milhões e 500 mil quilômetros quadrados é a porção pertencente ao espaço brasileiro. A hileia (mata virgem, inexplorada) amazônica possui uma das maiores biodiversidades do mundo. A sua flora apresenta mais de 30 mil espécies descritas, cerca de 10% das plantas de todo o planeta. E a sua fauna é riquíssima: com cerca de mais de 1.000 espécies de aves, com mais de 1.300 espécies de peixes, além de vários répteis, anfíbios, mamíferos e insetos. Nossa viagem à Amazônia foi a comemoração dos 80 anos de minha mãe, que escolheu como presente visitar a floresta com todos os seus seis


O mundo mágico e mítico do índio está sempre acompanhado pelo respeito à natureza, seja através do uso das plantas que curam, das que ornamentam o corpo para os rituais ou das cerimônias para aquisição e agradecimento do alimento que vem da floresta. Após esse primeiro contato na comunidade Cipiá, seguimos a viagem pela Floresta Amazônica com o privilégio da companhia do índio Piro, o guia que nos trouxe a sua paixão pela Amazônia e nos apresentou alguns segredos da fauna do Rio Negro. Subimos o rio com destino à região de Jaraqui, para uma inserção na mata. Na caminhada dentro da floresta, fomos apresentados a várias espécies que servem ao extrativismo: a castanheira, árvore da castanha-dopará, que lá eles chamam de castanhado-brasil; o breu branco, que serve para sinusite; a seringueira, de onde se extrai o látex para a produção da borracha; o cipó mata-mata, cuja fibra é utilizada para confecção das redes de pesca e de dormir; o cipó-saracura–mirá, que ajuda na redução da malária, da hepatite e do cansaço físico; a árvore da carapanaúba, que significa carapanã (mosquito) e ubá (árvore). Ao mastigarmos as fibras da casca da árvore do mosquito temos atenuadas a febre e as tremedeiras da malária. Neste trajeto, também encontramos fruto da sorva (Couma utilis), de cujo látex se faz a goma de mascar, e o jambu, erva típica da Região Norte que é utilizada na culinária amazonense e deixa a língua dormente.

1

CON TI NEN TE#44

Viagem 2

filhos. Ao chegarmos a Manaus, antes de subir o Rio Negro, fomos conhecer o Núcleo Cultural Indígena Cipiá, situado na Praia do Tupé, na região do Baixo Rio Negro, a 45 km da capital. Essa comunidade, com cerca de 35 pessoas de etnia Dessana, da família linguística tukano, faz parte da Central de Turismo Comunitário da Amazônia. Com base nos princípios da economia solidária e do comércio justo, a central cria o elo entre as iniciativas comunitárias e os interessados em visitá-las. Ao nos aproximarmos da comunidade Cipiá, ouvimos a música que vinha da oca. O grupo tukano se apresentava para visitantes. Conhecemos algumas instalações, e nos dirigimos ao local de onde vinha

o som. A cada apresentação, o cacique Domingos explicava qual era a finalidade da dança. O sentido de comunidade era visível ao observarmos a roda. Jovens, idosos, crianças, inclusive uma de colo que tentava mamar enquanto a mãe dançava, participavam da cerimônia. Após algumas danças, o cacique Domingos solicitou que só os homens ficassem para a apresentação do ritual do jurupari. O nome do ritual é referência a uma espécie de trompete, instrumento confeccionado com tronco de paxiúba, palmeira encontrada na floresta. Só os homens podem tocá-lo. As mulheres da aldeia devem apenas escutar seu som, mas não ver o instrumento, nem mesmo participar da cerimônia. Ela é considerada sagrada pelos dessanas.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 50

ÁGUA PRETA

O Rio Negro, de água preta, não apresenta uma fauna tão rica como a do Solimões, de água branca, principalmente na variedade de peixes. Mas, para nós da cidade, essa característica traz uma grande vantagem, porque quase não encontramos mosquitos quando percorremos as suas águas. Por conta do PH ácido, abaixo de 4,0, os insetos não conseguem se reproduzir nesse ambiente. Enquanto os mosquitos são raros no percurso ribeirinho, as formigas são abundantes em terra. A cada hectare de floresta tropical, podem ser encontrados 8 milhões de formigas. Elas usam os troncos das árvores mirmecófitas (plantas que vivem


1 INDÍGENAS

Comunidade da etnia Dessana habita região do Baixo Rio Negro

2 TAPIOCA

Iguaria é preparada em grandes porções no fogão à lenha

3 GUIA

O índio Piro realiza trabalho de turismo e conscientização com os visitantes

4 BOTO-COR-DE-ROSA uristas apreciam o T banho de rio com o mamífero marinho

3

4

CONTINENTE JUNHO 2016 | 51

associadas a uma colônia de formigas) como abrigo. O nosso guia, o índio Piro, fez uma demonstração de como os nativos utilizam o fluído da formiga-tapiba como repelente. Ele retirou as formigas que estavam alojadas por trás do caule da árvore e começou a esfregá-las nos braços. Como me aproximei demais para fotografar, as formigas que caíram dos braços do guia subiram pelas minhas botas e pernas. Uma dica para quem for entrar na floresta: mesmo com calça comprida, não esqueça de enfiar a boca da calça dentro das botas, assim não dá espaço para invasores. Fui mordida por uma dezena de formigas, com reações que ficaram na pele por mais de duas semanas. Por conta desse contato tão próximo, entendi a expressão de Euclides da Cunha, quando chamou a Amazônia de “inferno verde”. Excessiva umidade, um calor infernal e a inabilidade do homem urbano com os extremos da floresta, mesmo através de uma pequena experiência com algumas poucas tapibas. À noite, de volta à embarcação, experimentamos o tambaqui. Além de ser uma delícia, é um peixe que se alimenta apenas de frutas e sementes da floresta, inclusive de sementes da seringueira. O tambaqui engorda


5

CON TI NEN TE#44

Viagem por seis meses, aproveitando-se da produção farta no período das cheias, e assim mantém uma reserva para o período de seca. No terceiro dia na Amazônia, fomos conhecer duas comunidades ribeirinhas, uma indígena, chamada Três Unidos, que fica no Rio Cuieiras, afluente do Rio Negro, e a outra na região do Ariaú. Na comunidade de Três Unidos, fomos visitar o Núcleo de Conservação e Sustentabilidade, que é coordenado pela FAS (Fundação Amazonas Sustentável), e abriga uma escola que atende os alunos da etnia Kambeba, moradores do local, e outros de mais de 15 comunidades da região. No núcleo, os alunos aprendem técnicas de conservação e manejo da floresta. De Três Unidos, seguimos para o Ariaú, para conhecer a casa de Dona Neide e sua tapioca maravilhosa. Quase do tamanho de uma pizza média, a iguaria era dividida em tamanhos

menores, após retirada do fogo. É impressionante o tamanho do forno à lenha por ela utilizado. E a estética das tapiocas sobre a grande base de ferro, sendo giradas por Dona Neide, dava beleza à cena. Em busca de ver mais de perto um pouco da fauna amazônica, no último dia da nossa viagem, fomos para a região de Três Bocas, no Arquipélago das Anavilhanas. No trajeto, avistamos araras e tucanos e uma ave conhecida como cigana (Opisthocomus hoazin), uma espécie quase dinossáurica. O seu sistema digestivo assemelha-se ao das vacas. Ela tem duplo esôfago, que lhe permite fermentar grandes quantidades de folhas. Vimos também a jaçanã (galinha d’água), cuja curiosidade é que ela põe os ovos, mas quem cuida dos filhotes é o macho. Dessa vez, não tivemos a sorte de ver, ou melhor, de ouvir o uirapuru (Cyphorhinus aradus), também conhecido como capitão-domato. Seu canto se propaga pela floresta. Ele se reproduz a cada cinco anos, talvez por isso seja tão raro vê-lo. Nosso guia, com mais de 10 anos de atividade, disse que só ouviu seu canto três vezes.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 52

5 EMBARCAÇÃO Percurso ao longo do rio é feito de forma confortável

Mas a grande expectativa, no final da viagem, era poder encontrar e nadar com o boto-cor-de-rosa. Na região do Ariaú, é onde acontece o encontro com os botos. Após a liberação para o banho, a maioria das mulheres estava temerosa. Diz a lenda que os botos têm o dom de engravidar aquelas que por eles se encantam. É essa grandiosidade da floresta, com uma natureza tão enigmática, que faz o ser humano se apequenar. Não seria ruim esse sentimento, se fosse transformado em respeito e preservação. A Região Amazônica tem um gigantesco potencial, mas é necessário utilizar seus recursos de forma renovável. Como disse o guia Piro para o grupo dos visitantes: “A mãe natureza é uma farmácia ao ar livre, mas tens que conhecê-la. Não a desprezes. Não sei por que viestes de tão longe, o que te atraiu, como tu veio, se foi obrigado… não sei. Aqui está pleno de vida, de energia… Simplesmente, respeite e preserve.”


BANANEIRA FILMES/DIVULGAÇÃO

Claquete

1

MULHERES O gênero por trás do filme

Em 2015, das 2.606 obras audiovisuais

Participação das cineastas nos filmes lançados no país é crescente, embora ainda seja um percentual menor que o dos longas dirigidos por homens TEXTO Luciana Veras

CONTINENTE JUNHO 2016 | 53

– filmes, séries televisivas, programas de variedade e videoclipes – que receberam o Certificado de Produto Brasileiro da Agência Nacional do Cinema/ Ancine, 74% haviam sido dirigidas por homens. Às cineastas mulheres, coube apenas a fatia de 19%. Estudo realizado pelo Observatório do Cinema e do Audiovisual e por outros setores da Ancine, e apresentado em março no seminário internacional Rio Content Market, reporta que, dos 128 longas-metragens nacionais exibidos no país entre janeiro e dezembro do ano passado, 99 (o que corresponde a 77,3%) tinham assinatura masculina. Apenas 19 títulos, ou 14,8%, traziam o nome de uma mulher no crédito principal. Por coincidência, dois dos lançamentos programados para este primeiro semestre de 2016 consistem em importantes contribuições para refletir sobre os índices recentes. Sinfonia da necrópole (2014), de Juliana Rojas, em cartaz em algumas capitais desde abril, e Mate-me por favor (2015), de Anita Rocha da Silveira, com estreia prevista para este mês, são exemplos de filmes


VITRINE FILMES/DIVULGAÇÃO

Claquete

2

que simbolizam mais do que o longa inicial em uma carreira já salpicada de curtas. São produções com significativa presença feminina, tanto na equipe técnica como no enredo ficcional. Sinfonia da necrópole é uma história que Juliana Rojas rascunhou quando ainda cursava Cinema na Escola de Comunicações e Artes na USP – na qual conheceu Marco Dutra, com quem dividiu a realização dos curtas Lençol branco (2004), Um ramo (2007) e do longa Trabalhar cansa (2011). Na trama, alinhavada como um musical, Deodato (Eduardo Gomes) vira funcionário em um cemitério paulistano e precisa lidar com as diretrizes de otimização espacial repassadas pela executiva Jaqueline (Luciana Paes), o que inclui jogar fora restos humanos esquecidos e/ou abandonados para comercializar novos túmulos. “A cidade natal da minha mãe, São Vicente de Minas, tem apenas 12 mil habitantes. Vi que já não havia mais lugares para enterrar as pessoas. Se a cidade cresce, o cemitério tem que acompanhar. Pesquisei que isso é comum em todos os cemitérios. Quando fazem um levantamento dos túmulos, descobrem muita sepultura abandonada, e assim eles remanejam para as gavetas e botam para vender. É uma prática semelhante ao processo

Para Maria do Rosário Caetano, há um olhar feminino na nova safra do cinema brasileiro, com destaque para Que horas ela volta? de reurbanização e especulação nas grandes cidades. Imaginei que o musical pudesse ter o tom e a ironia para tratar disso com a crônica e a alegoria do humor. Acho importante falar sobre o lugar em que você está agora. São Paulo, como Recife, é uma cidade complexa”, comenta a diretora paulistana à Continente. Neste que é seu primeiro longa solo, ela montou um time cujas “cabeças”, no jargão cinematográfico, eram mulheres: direção de fotografia de Flora Dias, montagem de Manoela Ziggiatti, som direto de Gabriela Cunha e a preparação vocal de Cecilia Spyer. “Sempre senti diferença no tratamento, quando tive que ser a tomadora de decisões. Acho, mesmo, que as coisas estão mudando para deixar isso tudo de maneira mais equilibrada, inclusive nas equipes. Mas o fato é que, quando o homem é firme e forte, ele sabe o que quer; quando uma mulher é firme e

CONTINENTE JUNHO 2016 | 54

forte para exercer liderança, surgem os clichês, como se fosse um peso ou uma deficiência nossa”, diz. Embora tão surrados, os clichês ainda se fazem presentes – no discurso da atriz Patricia Arquette ao receber o Oscar de melhor atriz coadjuvante por Boyhood em 2015, ela cobrava igualdade de oportunidades e salários para as mulheres na indústria cinematográfica dos Estados Unidos. Ainda em 1972, a crítica norte-americana Pauline Kael (1919-2001) concedeu uma entrevista à revista Mademoiselle, incluída no volume Conversations with Pauline Kael (University Press of Mississippi, 1996). Nela, já dizia: “Quando uma mulher se torna crítica, os termos com que ela é geralmente descrita indicam a condescendência e a hostilidade de que os homens parecem nem se dar conta. Quando meus livros são resenhados, sou descrita como reclamona, nervosa, gasguita ou impressionista – esse é um favorito, por sugerir, claro, que a mulher não possui uma mente tão boa, mas que consegue, de algum jeito, extrair impressões, embora não consiga organizá-las”.

SELEÇÃO

É preciso, pois, que haja mulheres não apenas fazendo ou resenhando filmes, mas também nas comissões que os selecionam. Assim pensa a cineasta carioca Anita Rocha da Silveira, que em março levou Mate-me por favor ao festival New Directors/New Films, parceria entre o Film Society Lincoln Center e o Museum of Modern Art/MoMA em Nova York. “Era um festival em que 30% dos filmes selecionados eram de mulheres. Gosto de tentar fazer essa média quando estou nos festivais, que geralmente apresentam de 10 a 15% de filmes dirigidos por mulheres. Creio que uma maior participação feminina no cinema passa não apenas pela composição da equipe, ou por trazer as mulheres como protagonistas, mas também por ter mais mulheres na banca de seleção dos festivais e nas curadorias”, pondera. No seu primeiro longa, ela cooperou com a ampliação dos espaços destinados às mulheres no set e na tela. A produção foi da Bananeira Filmes, de Vania Catani; direção de arte e cenografia de Dina Salém Levy; figurino de Ana Carolina


MARIO MIRANDA FILHO/DIVULGAÇÃO

3

4

FLICKFILM/DIVULGAÇÃO

Lopes; montagem de Marilia Moraes e platô da pernambucana Brenda da Mata. As protagonistas eram Bia (Valentina Herszage) e suas três melhores amigas Renata, Michele e Mariana (respectivamente, vividas por Dora Freind, Julia Roliz, Mariana Oliveira), alunas de um colégio particular da Barra da Tijuca que exacerbam as experiências com sexo e morte em reação a uma série de feminicídios. Todo o enredo se ancora na premissa de examinar o mergulho das adolescentes da Zona Sul carioca nessa contraditória maré de sentimentos, hormônios e violência. Para Mate-me por favor, ela levou boa parte dos amigos que a ladearam nos curtas O vampiro do meio-dia (2008), Handebol (2009) e Os mortos-vivos (2012). “Tive abertura e liberdade para trabalhar com as pessoas com quem já tinha uma dinâmica. Foi um ambiente incrível, sem sinal de sexismo. Mas reconheço que nenhuma equipe é bastante feminina ainda. Lembro que, no primeiro dia, chegou um cooler para mim no qual estava escrito ‘diretor’. Vania foi lá e botou um ‘a’ do lado. Se, na maioria das vezes, é um diretor, faz sentido que a equipe do catering achasse que fosse outro”, lembra a cineasta. Com o “primeiro longa” a circular e repercutir, tanto ela como Juliana Rojas percebem um amadurecimento artístico. “Com relação aos curtas, há uma diferença grande para articular a dramaturgia por questão de ritmo e duração. Você precisa pensar tudo de modo diferente. É um desafio, ainda mais depois que eu fiz o Trabalhar cansa com o Marco Dutra. Dirigindo sozinha, a tomada de decisões precisa ser mais rápida”, argumenta Juliana. Já Anita ressalta a maior visibilidade: “É uma audiência enorme, mais pessoas vendo o seu trabalho, e um projeto em que se podem desenvolver mais os temas. Sem dúvida, você tem uma vitrine maior. Em 2012, fui com meu último curta para Cannes e só dei uma entrevista para um jornal português”. Desde que Mate-me por favor passou no Festival de Veneza, em setembro de 2015, seguindo depois para o Festival do Rio e a 39ª Mostra Internacional de São Paulo, já se foram dezenas de entrevistas. A jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano, que acompanha há décadas – de perto e com afinco – a

DIVULGAÇÃO

Página 59 1 MATE-ME POR FAVOR

Roteiro enfoca sexo e violência na adolescência

Nestas Páginas 2 SINFONIA DA NECRÓPOLE

Musical usa ironia para falar de urbanização

JULIANA ROJAS 3 Diretora montou equipe de maioria feminina ANITA ROCHA DA SILVEIRA 4 Para ela, primeiro longa amplia responsabilidade e visibilidade CAROLINA HELLSGÅRD 5 Diretora sueca reconhece a necessidade de “ser mais dura no set” 5

produção cinematográfica brasileira, ratifica a relevância de atingir o marco do “primeiro longa”. “Estrear no longa é fundamental para que as mulheres ganhem visibilidade. Precisam superar a síndrome do sequenciamento de suas carreiras, pois muitas param no segundo ou no terceiro longa. Mas creio que, de agora em diante, elas não vão parar mais. Cresceu de forma exponencial a consciência de que são hoje uma das forças renovadoras do cinema brasileiro”, afirma à Continente. Ela enxerga as duas jovens cineastas (Juliana tem 33 anos, Anita, 30) como responsáveis, também, por “um olhar feminino na nova safra do cinema brasileiro”. “No caso de Anita da Silveira, sua protagonista absoluta em Mate-me por favor é uma adolescente, que parece ter muito dela quando jovem estudante. O cinema de Juliana Rojas, mesmo com personagens

CONTINENTE JUNHO 2016 | 55

masculinos muito fortes, também tem um olhar muito sensível para as mulheres – vide a deliciosa, ousada, atrevida até, personagem de Luciana Paes em Sinfonia da necrópole, que se impõe quando entra, motorizada, com a incumbência de executar tarefa que poderia ser masculina, e rouba a cena”, situa Maria do Rosário. Para ela, nesse contexto de renovação, é imprescindível sublinhar o êxito de Que horas ela volta?, que fez mais de 400 mil espectadores. O filme de Anna Muylaert narra o reencontro entre Val (Regina Casé), a empregada de uma família de classe alta em São Paulo, e Jéssica (Camila Mardila), sua filha que sai de Pernambuco para fazer vestibular na USP. “Anna criou protagonistas femininas absolutas. Os homens são coadjuvantes. Ela cercouse de mulheres em postos-chave, a começar pela fotógrafa uruguaiobrasileira Barbara Alvarez, e vem


FLICKFILM/DIVULGAÇÃO

Claquete

6

mergulhando tanto na representação da mulher no cinema, que seu próximo filme terá este tema: a ‘normalização’ cotidiana da opressão à mulher. Algo que já se automatizou de tal forma, que nem é percebido”, pontua.

OUTRAS FILMOGRAFIAS

É interessante perceber que outras cineastas, em países diversos, também têm se voltado para radiografias femininas em seus longas-metragens inaugurais. Em Autorretrato de uma filha obediente (Romênia, 2015), distribuído no Brasil pela Supo Mungam Films, a diretora Ana Lungu partiu de um episódio relativamente banal para abordar as perspectivas (ou a ausência delas) na vida de uma jovem adulta, estudante, solteira, porém amante de um homem casado, em Bucareste. “Comecei a trabalhar no script há alguns anos, quando meus pais se mudaram do apartamento em que morávamos juntos e fiquei para morar sozinha numa casa de três quartos. Quis ter um cachorro porque, quando eu era criança e estava crescendo, eles não queriam me dar um cão”, rememora. Autorretrato de uma filha obediente, feito por Ana Lungu sem financiamento – “não tínhamos dinheiro algum, chamei meus amigos para trabalhar de graça” – e com apoio de Cristi Puiu (diretor

Cineastas estrangeiras ratificam a importância de chegar ao primeiro longa para demarcar novos territórios na carreira de A morte do senhor Lazarescu), é centrado em Cristiana (Elena Popa), narrado sob o ponto de vista dela e construído com habilidade e bom humor. Em janeiro de 2015, o filme foi selecionado para a 44ª edição do Festival de Rotterdam dentro do programa Signals: What the F?!, cujo foco recaía nas “diferentes interpretações do feminismo contemporâneo” e nos filmes “que tanto desafiam como celebram esse debate”. “Foi muito bom estar em Rotterdam nesse contexto. No meu país, nunca senti nenhuma desvantagem por ser mulher. Mas a minha geração tem muito mais homens fazendo filmes do que mulheres. Imagino que em muitos países seja assim também”, explica Ana, que conversou com a Continente durante a 39ª Mostra de São Paulo. Um outro filme exibido no festival paulista, Wanja (Alemanha, 2015), trouxe ao Brasil a sueca Carolina Hellsgård, com trajetória semelhante à de Anita

CONTINENTE JUNHO 2016 | 56

Rocha da Silveira, Juliana Rojas e Ana Lungu: vários curtas-metragens no currículo e um esforço para demarcar um novo território com a passagem para o longa. “O pulo entre os curtas e o primeiro longa é um passo enorme na Alemanha, na Suécia e acredito que em qualquer lugar do mundo. O trabalho não é muito diferente. A distinção é que você consegue fazer um curta em uma semana e para um longa você precisa de, no mínimo, seis semanas. E com certeza precisa ser mais dura no set”, reflete a cineasta radicada em Berlim. Em Wanja, a personagem-título (interpretada por Anne Ratte-Polle) é uma ex-presidiária que, após sete anos encarcerada, anseia por uma readaptação. Ao conhecer a jovem Emma (Nele Trebs), estabelece uma dúbia relação. “A ideia foi pegar esse aspecto mais clássico de alguém que sai da prisão e busca se reintegrar à sociedade – que já foi feito muitas vezes, não é novidade. Tentei fazer a minha própria versão, combinando com elementos da minha vida e sem procurar categorizar os encontros na jornada de Wanja, deixando aberto ao espectador”, conta a diretora, que participou de dezenas de festivais ao redor do mundo, entre eles a Berlinale, o Filmmoor Women’s Film Festival on Wheels, em Istambul, e Women Make Waves Film Festival, em Taiwan.


INDICAÇÕES SUPO MUNGAM FILMS/DIVULGAÇÃO

BOX

O CINEMA DE KUROSAWA

Dirigido por Akira Kurosawa Com Com Takashi Shimura, Toshiro Mifune, Setsuko Hara, Isao Numasaki Versátil Home Vídeo

MUSICAL

CHI-RAQ

Dirigido por Spike Lee Com Nick Cannon, Wesley Snipes, Teyonah Parris Roadside Attractions

Com venda exclusiva pela Livraria Cultura, o digistack contém três DVDs do mais consagrado cineasta japonês, com cinco filmes (Viver, de 1952; Ralé, de 1957; Juventude sem arrependimento, de 1946; Um domingo maravilhoso, de 1947, e Anatomia do medo, de 1955). Também, o inédito Uma mensagem de Kurosawa, de 2000, documentário que oferece um retrato sobre seu processo de criação e a relevância de sua obra no Japão.

O principal cronista da experiência negra norte-americana adaptou a comédia grega Lisístrata, de Aristófanes (escrita em 411 a.C.), para o clima de violência de South Side, em Chicago, lugar com comunidade predominantemente afro-americana e onde o número de assassinatos por ano corresponde ao de um país em guerra. O filme, uma espécie de musical em tom de sátira, tem início quando as mulheres se organizam contra a violência do lugar depois que uma criança é morta.

DOCUMENTÁRIO

DRAMA

7

6 WANJA Filme exibido na 39ª Mostra de SP aborda reintegração de uma ex-detenta

7 AUTORRETRATO DE

Tanto Wanja e Autorretrato de uma filha obediente, como também Mate-me por favor e Sinfonia da necrópole, seriam aprovados no teste Bechdel-Wallace, batizado em homenagem à cartunista norte-americana Alyson Bechdel. “O teste foi originalmente criado para avaliar filmes, mas hoje é destinado a variadas mídias. Trata-se de questionário que estudiosos aplicam ao analisar um filme de ficção: tal obra apresenta pelo menos duas mulheres que conversam entre si sobre algo que não seja um homem? A narrativa adiciona pelo menos duas personagens femininas que tenham nome? Surgiu depois que uma personagem dos quadrinhos Dykes to watch out for, de 1985, externou tais preocupações. Alyson dividiu o crédito com a

amiga Liz Wallace, o que lhe sugerira o questionamento”, contextualiza a jornalista e pesquisadora Maria do Rosário Caetano. Mais de 30 anos depois, a regra, e não a exceção, é naufragar no teste. “As pesquisas mostram que muitas obras contemporâneas falham nesse teste”, continua Maria do Rosário. Filmes, séries televisivas, programas de variedade e videoclipes, portanto, prosseguem como um território a ser ocupado por uma maior presença feminina. Como diria a lendária crítica Pauline Kael, que em 1972 e por toda a carreira questionou a misoginia em Hollywood: “Claro que sempre houve obstáculos para as mulheres fazerem o que querem, mas surgiram caminhos e brechas que fomos capazes de encontrar”.

UMA FILHA OBEDIENTE

om seus diálogos, primeiro longa C de Ana Lungu seria aprovado no Teste Bechdel-Wallace

DAFT PUNK UNCHAINED

Dirigido por Hervé Martin Delpierre Com Guy-Manuel de Homem-Christo, Thomas Bangalter, Giorgio Moroder BBC Worldwide Productions

O primeiro filme sobre o fenômeno da cultura pop Daft Punk explora a revolução cultural promovida pelo duo formado pelo luso-francês GuyManuel de Homem-Christo, e pelo francês Thomas Bangalter. Através de gravações raras e inéditas, além de entrevistas exclusivas com colaboradores como Kanye West e Pharrel Williams, o documentário revela que, por trás dos capacetes estão dois artistas em constante busca por criatividade e renovação.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 57

CREED

Dirigido por Ryan Coogler Com Michael B. Jordan, Sylvester Stallone, Tessa Thompson Warner Bros. Entertainment

O mais recente longa da franquia Rocky procurou dar passos independentes após seu ótimo desfecho em Rocky Balboa, de 2006. Criando uma espécie de spinoff da saga do “garanhão italiano”, o diretor Ryan Coogler buscou dar um novo sentido à clássica história do pugilista amador que enfrenta seus limites e dificuldades para vencer um grande desafio. No filme, Rocky treina Adonis Johnson, filho do falecido Apolo Creed, seu antigo rival dos ringues e grande amigo.


FAROFA Uma grande companhia

Usada sobretudo como acompanhamento de pratos com molho, a iguaria à base de mandioca é feita em diferentes versões e está na nossa memória afetiva TEXTO Renata do Amaral FOTOS Rafael Medeiros

Cardápio

1

CONTINENTE JUNHO 2016 | 58


Na praia, ao lado de um galeto

assado, ela dá nome ao pejorativo adjetivo de “farofeiro”. Mas também pode ser muito chique nas mesas natalinas, com direito a castanhas, passas e outras frutas secas. Quando se fala em farofa, versatilidade é a palavra-chave. Por aqui, a pesquisadora Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, autora de História dos sabores pernambucanos, ressalta a importância da iguaria em terras maurícias: “Farinha, farofa e pirão acompanham quase todos os pratos pernambucanos”. E, além do sabor, ela pode vir guarnecida também de boas memórias e histórias. Apesar de a farinha de mandioca ter origem indígena, a receita da farofa não era conhecida pelos índios. “Farofas são farinhas temperadas, refogadas em geral em cebola e alho, e outros condimentos. Índio não comia farofa nem nada refogado. O tempero (pimenta e, raramente, sal) vinha por adição à comida já pronta”, esclarece o sociólogo Carlos Alberto Dória, no texto Churrasco com farofa. Por ser uma guarnição de característica mais ressecada, ela nunca vem sozinha no prato. “Ela sempre é um complemento a algo caldoso, uma adição. Como o pão na açorda portuguesa, amolece”, completa. O autor acredita que a farofa seja uma adaptação da paçoca, usada como método de conservação para alimentar os bandeirantes que desbravavam novas terras em busca de ouro e prata. “A utilização da farinha na culinária brasileira dá o mingau e o pirão, primeiramente. Dá também a paçoca, de onde deve ter derivado a farofa. O uso da paçoca, assim como do cuscuz paulista, foi para respaldar as entradas no sertão, o bandeirismo, assim como a lida com o gado, quando se levava o farnel já pronto. Aí, quanto menos umidade, maior longevidade da comida”, justifica. Dória propõe uma classificação culinária diferente em seu livro Formação da culinária brasileira: escritos sobre a cozinha inzoneira: em vez de ordenar os pratos de acordo com o momento da refeição (entrada, prato principal e sobremesa), técnica ou ingrediente, ele opta pela diferença

CONTINENTE JUNHO 2016 | 59


Página anterior 1 COZINHANDO ESCONDIDINHO

arofa de bolão, de ovo e F de jerimum integram os acompanhamentos da casa

Nestas páginas 2 ALTAR COZINHA ANCESTRAL

arofa da casa, bem como F outros pratos, tem origem na cozinha dos orixás

MÖER CONFORT FOOD 3 Serviço de entrega de refeições tem a iguaria como carro-chefe

Cardápio 2

entre secos e molhados, numa espécie de gradação. “Se acompanharmos a sequência dos pratos brasileiros onde a água vai rareando, o alimento ficando mais seco, quando se tempera o ‘pirão’ sem acrescentar água, chegamos à farofa – seja de mandioca, seja de milho”, defende. O Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define que a palavra vem de falofa, da língua africana quimbundo, falada em parte de Angola, e indica uma mistura de farinha com gordura ou água, e eventualmente outros alimentos. Maria Lecticia afirma que os escravos já faziam farofa e que a primeira referência ao termo surge no livro Reminiscência de viagens e permanência nas províncias do Norte do Brasil, de Daniel Parish Kidder (1815– 1892), que dizia: “Usava-se muito a farinha de mandioca preparada com gordura, pimenta e vinagre, ao que chamam farofa”.

Na culinária brasileira, a farofa, mistura de farinha e gordura, acompanha pratos de carne, em geral, ensopados EXPERIÊNCIA

Responsável pelas panelas do restaurante Altar Cozinha Ancentral, Carmen Virginia Santos se considera uma amante da farofa e ressalta os vínculos de afetividade que ela desperta. Para o lado positivo e para o negativo, inclusive: na infância, caso não raspasse a comida do prato, sua avó a obrigava a comer uma tigela cheia de farofa como castigo, acompanhada de charque salgado, sem escaldar. Por outro lado, na hora de agradar, a farofa vinha com charque escaldado, manteiga e coentro,

CONTINENTE JUNHO 2016 | 60

moldada nas mãos e oferecida na boca das crianças. “Muita gente já teve essa experiência”, lembra. Como acredita que a farofa complementa algo que falta na refeição, Carmen Virgínia quis criar um capítulo só para elas no restaurante, no qual a maioria das carnes aparece ladeada por essa guarnição. São várias as opções: a farofa de bolão vem ao lado da galinha de cabidela; a de batata-doce tem um aspecto mais molhado por causa do tubérculo amassado; a de dendê, com cebola e frango desfiado, é para as moquecas; a de cachaça é feita “dando um susto” com a bebida na panela; e a de banana-comprida é lembrada com carinho pela chef porque foi a primeira receita que ela apresentou em um programa de televisão. Carmen Virgínia aprendeu a cozinhar fazendo comida de santo – é iabassê, ou seja, filha de santo responsável por cuidar da cozinha dos orixás – e aperfeiçoou a técnica na Faculdade Senac. Segundo ela, o santo que mais gosta de farofa é Exu, cuja oferenda mais comum é o padê, feito com metade de farofa branca e metade de farofa de dendê. Seus irmãos Ogum e Odé também comem, mas sem grandes exigências, com mais simplicidade. “Exu come tudo que a boca come”, explica ela, que prefere comprar farinha do tipo “quebradinha” e considera que Vicência e Lajedo têm boas casas de farinha tradicionais. No Möer Confort Food, serviço de entrega de refeições que completou um ano em maio, a farofa é a estrela. Todos os pratos podem vir acompanhados por ela ou por uma minissalada. O chef Romero Petribú conta que, desde que se iniciou na cozinha, sempre gostou de preparar o prato, que era muito pedido pelos colegas quando ele morava em Águas de São Pedro, em São Paulo, onde fez o curso de cozinheiro


do Senac em 2003. A Farofa Möer, desenvolvida por ele ao longo dos anos, leva farinha de pão e de mandioca, “temperos secretos” e carnes e presuntos picados na ponta da faca. Quando morou em Marselha e Lion, na França, há 10 anos, já trabalhando na área de gastronomia, Romero tentou introduzir a farofa em alguns locais, mas não houve boa aceitação. A dificuldade em encontrar a farinha foi superada com idas a lojas de brasileiros, mas os franceses consideravam o prato muito seco para seu paladar. De volta ao Recife, ele optou por abrir o delivery em vez de um restaurante, para não precisar administrar o salão da casa. Em breve, também pretende vender os pratos prontos em lojas, fazendo a empresa funcionar como uma mini-indústria.

SUSTANÇA

O chef Rivandro França, do Cozinhando Escondidinho, também vai além das propriedades gustativas do prato. Ele conta que foi criado em uma família muito humilde, na qual a farofa era a guarnição principal à mesa – muitas vezes, era ela que

A farofa pode ser elaborada com diferentes tipos de insumos acrescidos à farinha, como banana, jerimum e ovo complementava o feijão no lugar do arroz, em forma de farofa de bolão, também conhecida como farofa d’água. “Ela foi meu sustento por vários anos quando eu era pequeno”, rememora. “Há um sentimento maior envolvido.” Seus avós tinham uma casa de farinha no município de Pedra de Fogo, na Paraíba, mas ele não gostava da versão produzida por eles porque era uma farinha mais bruta, com muitos resquícios de goma. Hoje, ele compra uma farinha de textura média de um vendedor que está há 45 anos no Mercado de Casa Amarela, que funciona como “despensa” do seu restaurante, a poucas ruas dali. O cardápio traz farofa de dendê acompanhando

CONTINENTE JUNHO 2016 | 61

3

moqueca e sururu e farofa de bolão ao lado do bode, galinha de cabidela e pratos com molho. O menino que se deliciava com papa de farinha com leite na infância defende que a farinha é o início de tudo e responsável por dar “sustança” às refeições. “É um dos primeiros grandes produtos da mandioca”, diz, lembrando que o folclorista Luís da Câmara Cascudo a chamava de “rainha do Brasil”. Para preparar a farofa de bolão, ele ferve a água, adiciona manteiga de garrafa, apaga o fogo, acrescenta a farinha e deixa ela hidratar para depois “ciscar” com um garfo e separar os grânulos. Na hora de servir, põe pimenta biquinho para enfeitar e coentro para temperar – há quem coloque o coentro na água, mas ele prefere fazer isso depois, para conservar o frescor e o aroma da erva. Além de vir na companhia dos pratos principais, a receita também pode ser pedida separadamente. Rivandro chega a se emocionar quando pedem 15 porções extras no fim de semana. “Hoje, as pessoas comem por gostar”, afirma.


Palco

COLETIVO ANGU Sobre o que vai do sangue aos ossos

Novo espetรกculo do grupo fecha trilogia com texto recriado para o palco por Marcelino Freire, a partir do seu prรณprio romance, Nossos ossos TEXTO Allan Nascimento FOTOS Eric Gomes

1

CONTINENTE JUNHO 2016| 62


Urubus têm no olfato um aliado para a sobrevivência. Por terem garras pequenas, são aves sem habilidades para a caça, e identificar a matéria em decomposição é a alternativa na busca por alimento. Em Ossos, espetáculo do Coletivo Angu a partir do primeiro romance de Marcelino Freire, urubus são tipos que surgem nas passagens mais fétidas das vidas encenadas, alimentando-se dos piores sentimentos dos personagens ao passo da condução narrativa. Comem tudo aquilo que é abominado, descartado, mas, em uma das cenas, deixam claro: urubus também amam. Assim, a morte, o abandono, a fuga e o suicídio compõem o cardápio do que é servido a eles no palco, na montagem que marca o reencontro entre o grupo e o autor, com estreia marcada para 11 de junho, no Teatro Apolo, no Recife. Invocadas, as aves pretas são recorrentes, mas não alcançam, isoladas, o status de narradoras da história. Em Ossos, outra figura que dá norte à trama é um escritor, que, a princípio, numa espécie de prólogo, se apresenta como Marcelino Freire e, em seguida, surge como o dramaturgo Heleno de Gusmão, pernambucano de Sertânia, que desiste de tentar a carreira nos tablados do Recife para ir atrás do grande amor em São Paulo – em um projeto frustrado que desencadeia toda a tragédia subsequente. Em Nossos ossos, romance que serve de base à peça, o êxodo de Heleno se revela falho em sua principal motivação, mas a cidade que o abriga reserva para ele uma trajetória artística de reconhecimento internacional. Desprezado pelo homem por quem se aventurou, o escritor passa a procurar consolo nos michês da Estação da Luz, construindo uma relação de afeto (pelo menos de sua parte) com Cícero, conterrâneo cujo destino é ser assassinado e ter seu corpo registrado como indigente no Instituto Médico Legal (IML). Para garantir uma morte digna ao rapaz, Gusmão decide localizar o paradeiro dos familiares dele e entregar-lhes o cadáver, um périplo que se revela uma viagem também ao seu universo interior e às suas paisagens de origem. CONTINENTE JUNHO 2016| 63


Palco

2

Na versão teatral do livro, a adaptação é assinada pelo próprio Marcelino, que voltou à obra e incluiu contornos à condução da trama. Se é possível identificar passagens autobiográficas na história (o autor é também nascido em Sertânia e construiu carreira em São Paulo), ele brinca com esses elementos no texto cênico. Em Ossos, essas semelhanças são postas de forma mais explícita, mais até do que no romance. “Quando escrevo um conto, é uma outra pessoa que fala. Já aqui tem muito de mim. Vocês entendem?”, questiona, ainda no prefácio da peça, o Marcelino vivido pelo ator André Brasileiro, que também dá vida a Heleno – dando a ilusão de que um é o alter ego do outro.

“No livro já existe essa confusão entre mim e o protagonista Heleno de Gusmão. No palco, quis reforçar isto. Quis dar corpo, alma e osso a esses elementos reais e inventados. Quis fazer um certo ‘teatro’. Ironia pura. E confissão, de alguma forma. Confesso: ele, Heleno, sou eu no palco. Creiam nisto…”, diz o escritor em entrevista por e-mail à Continente.

TEXTO DRAMÁTICO

Ossos é o primeiro espetáculo do grupo a ser montado a partir de um texto teatral, além de ser também o primeiro a partir de um romance. “Nas outras montagens, fazíamos o que chamamos de transcriação, que era criar em cima do próprio autor. Não havia

CONTINENTE JUNHO 2016| 64

uma adaptação. Agora, há um texto dramático e foi preciso se debruçar sobre ele, mas, claro, fazendo isso dentro da filosofia do grupo”, explica Marcondes Lima, diretor da peça. “Marcelino escolheu transformar a história em texto teatral, sem manter o texto integral. Ainda na fase de leituras, ele fez interferências na adaptação e decidiu incluir a figura do autor”, conta. O processo de composição dos personagens, então, foi conduzido de uma maneira diferente da que o coletivo está habituado. Nos espetáculos que compõem o repertório do grupo – Ópera, a partir de contos de Newton Moreno; Essa febre que não passa, dos contos de Luce Pereira; e Angu de sangue e Rasif – Mar que arrebenta, estes dois também de Freire –,


Página anterior 1 OSSOS

Montagem conta com cinco atores em cena, preparados para atuar em grandes ou pequenos espaços Nesta página 2 PREPARAÇÃO

Com direção de Marcondes Lima, espetáculo foi montado a partir da premissa de levar literatura pernambucana aos palcos

nudez, ou que aparente isso”. Dessa convocatória, foram escolhidos 20 atores para os testes e, destes, cinco foram chamados para a etapa final. “Os cinco passaram uma semana com a gente, em um processo que não apenas foi de escolha, mas também de formação. Passamos juntos uma semana experimentando cenas e percebendo o sentimento dos atores”, detalha Marcondes. Dessa experiência, passaram a compor o elenco de Ossos Daniel Barros, que recentemente estreou pa(IDEA) – Pedagogia da libertação, apresentado no último Trema! Festival, ao lado de Júnior Aguiar; e Robério Lucado, do elenco do Cabaré Diversiones, do Vivencial.

ESPETÁCULO COMPACTO

todos os atores interpretavam, na fase de ensaios, todos os personagens da peça, e, a partir desses experimentos, eram extraídos elementos para a criação dos papéis. Para Ossos, esses experimentos foram deixados de lado, mas mantendo a improvisação na etapa de desenho das figuras. Outra novidade na elaboração do espetáculo foi um workshop para escolher dois novos atores que pudessem dar vida aos michês da trama. Uma chamada foi divulgada nas redes sociais do grupo procurando um ator jovem de 18 a 25 anos, com as seguintes atribuições: “másculo, bonito e sensual, ou que aparente isso; sem pudores em cena, ou que aparente isso; desencanado com

O Coletivo Angu se mantém fiel à sua proposta inicial de levar a literatura pernambucana para os palcos. Na nova montagem, são mantidas a dicção e a fluidez do romance, mas sem seguir tudo o que está no livro, alternando a estrutura da trama e a maneira de contar a história. A agilidade oral e as figuras humanas que caracterizam toda a obra de Marcelino – e que foram absorvidas pelo Angu em 12 anos de estrada – estão presentes no espetáculo. “Quis ser um autor diferente: um no romance, outro na peça. Esse jogo me seduziu. A grande dificuldade foi não tornar o texto literário demais. Criar outras situações. Imaginar a cara e o trejeito de cada personagem. Limar alguns personagens na hora da adaptação. E inaugurar, na peça, um novo narrador. Daí a criação dos urubus. Eles que costuram, fúnebres, a narrativa”, conta o autor, que pela primeira vez adaptou uma obra sua para o teatro. “Eu já havia escrito o livro. Tudo o que quis compor, contar, dizer já está lá no livro. Como escrever e viver tudo de novo? Precisei contar

CONTINENTE JUNHO 2016| 65

por uma outra ótica, inventar outros impulsos. O difícil foi encontrar o tom, uma nova história a partir do corpo do romance. O bom é que, se alguém disser assim ‘Gosto mais do livro’, fui eu quem escreveu. ‘Gostei mais da peça’, fui eu também quem escreveu”, pontua Marcelino, que explica, no entanto, que a construção dramatúrgica em Ossos não é fruto de um voo solo. “O grupo foi fundamental para a costura do texto. Todos me ajudaram dando dicas, apontando caminhos. O Coletivo Angu de Sangue é muito lindo. Tenho muito o que agradecer a eles. Esta peça fecha uma trilogia de trabalhos meus com eles que começou com sangue (do Angu de sangue) e agora vai aos Ossos. Sempre com a alma deles, lá dentro, no meio, guiando tudo.” Do texto extenso, Marcondes buscou construir um espetáculo compacto. São seis atores em cena. Além dos já citados André Brasileiro, Robério Lucado e Daniel Barros, fazem parte do elenco Arilson Lopes, Ivo Barreto e o próprio Marcondes, que interpreta Estrela, a transexual que faz performances evocando grandes divas da música brasileira – como Carmen Miranda, que ganha citação em um número de Taí.“Precisávamos fazer um espetáculo que pudesse se adequar tanto ao palco de grandes teatros quanto aos espaços alternativos. É uma montagem mais seca, até porque não teríamos como subsidiar um elenco maior”, justifica o diretor da peça, que tem Ceronha Pontes na assistência de direção e trilha sonora assinada pelo músico Juliano Holanda. O espetáculo também provoca reflexões políticas. Traz para o palco aqueles que Marcelino define como “defuntos sociais”, mas com a perspectiva de que é preciso sempre ir até o fim. “O livro já era uma discussão do Brasil enquanto nação. Cada um, digamos, fazendo a sua parte para erguer o país, levantar uma pátria verdadeira, juntar os ossos dela. Heleno de Gusmão faz a parte dele. Diante do atual cenário político brasileiro, Ossos ganha ainda mais relevância em cena. Apesar de tudo, do fracasso no amor, da morte da utopia, da perseguição reacionária, resistiremos.”


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

O BELO

Disse Jairo Lima, amante dos

pré-socráticos, que na Grécia a ideia do belo estava ligada à ideia da virtude, beleza e virtude sendo quase sinônimos, acrescento eu no meu pouco discernimento na matéria, já que o que é virtuoso é belo e o que é belo é virtuoso. Tinha muita vontade de ler O belo e o conveniente, o primeiro ensaio juvenil de Santo Agostinho. Infelizmente se perdeu. Basta algo ter se perdido para aumentar nossa curiosidade, assim como, ainda sobre Santo Agostinho, o livro Hortêncio, de Cícero, de tanta importância na sua formação. O que queria dizer Santo Agostinho com esse título? Será que, para ele, como no caso dos gregos com a virtude, a noção da beleza estaria ligada à da conveniência ou, pelo contrário, o título sugere oposição entre os dois termos? Ou nem uma coisa nem outra? No livro Confissões o autor, já convertido, fala sem mágoa dessa perda, como se dissesse que tudo o que pensava naquela primeira época fosse puro equívoco, não valendo a pena lembrar. Mas dá algumas

pistas: “Por esse tempo ignorava estas verdades e amava as belezas terrenas. Caminhava para o abismo e dizia a meus amigos: ‘Amamos nós alguma coisa que não seja o belo? Que é o belo, por conseguinte? Que é a beleza? Que é que nos atrai e afeiçoa aos objetos que amamos? Se não houvesse neles certo ornato e formosura, não nos atrairiam’ ”. E: “Eu notara e via que nos mesmos corpos se devia distinguir a beleza proveniente da união das suas partes — o todo — e a resultante da sua apta acomodação a alguma coisa, como, por exemplo, a parte de um corpo ao seu todo, ou o calçado ao pé, e outras semelhantes. Essas considerações borbulhavam no meu espírito desde o fundo do coração. Escrevi, por isso, os tratados De Pulchro et Apto, creio que em dois ou três livros. Vós o sabeis, meu Deus. Eu já me esqueci. Já os não possuo. Desapareceram-me, não sei como” (Confissões, cap. 13, O que é o belo). Ainda: “Definia o belo ‘o que agrada por si mesmo’; e o conveniente ‘o que agrada por sua acomodação a alguma coisa’.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 66

Distinguia-os e comprovava-os com exemplos hauridos dos corpos” (cap. 15, O problema do belo e do mal). O grande interesse que O belo e o conveniente podia oferecer é de ter sido escrito quando o autor ainda não tinha, por assim dizer, subido aos céus com tripa e tudo, vivendo, como nós, vida terrena, antes de tomado pelos gozos celestiais. Vamos trazer o belo mais para perto. Já dizia o futurista Marinetti (1876-1944), com o que hoje toda a população do mundo concordaria: um automóvel em movimento é mais belo que a Vitória de Samotrácia. Sou mais esta, diga-se de passagem, em primeiro lugar porque nunca entendi de automóvel — o que não quer dizer entenda tanto de qualquer outra coisa — e, segundo, porque algum dia o automóvel será substituído por outro artefato bélico. Estava pensando no que teria sido ou é o belo para mim e por acaso botei a mão no livro de Carlos Scarinci A gravura no Rio Grande do Sul/1900-1980 e daí para frente só conseguia pensar na minha própria


REPRODUÇÃO

conversão e no novo mundo em que entrei ao largar tudo e me dedicar à pintura, não me deixando de passar pela cabeça, deparando-me com o livro de Scarinci, o episódio do “Toma e lê” de Santo Agostinho, embora a comparação seja totalmente ridícula. Mas já que toquei no assunto, não posso deixar o leitor sem a referência, caso não possua (cap. 12, A conversão): “Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de súbito, ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de menino, se de menina. Cantava e repetia frequentes vezes: ‘Toma e lê; toma e lê’. (...) Abalado, voltei aonde Alípio estava sentado, pois eu tinha aí colocado o livro das Epístolas do Apóstolo [São Paulo], quando de lá me levantei. Agarrei-o, abri-o e li em silêncio o primeiro capítulo em que pus os olhos: ‘Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revestivos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites’”.

Já dizia o futurista Marinetti: um automóvel em movimento é mais belo que a Vitória de Samotrácia Há dias me perguntava sobre esse livro de Carlos Scarinci. Na verdade há tempos, não que me preocupe extremamente, mas sentia falta da consciência existente entre os pintores e gravadores da época em que comecei, 1952, e sua total ausência hoje, bem expressa no título de outro livro, de Aracy Amaral, Arte para quê?/a preocupação social na arte brasileira 1930-1970. Me encanta, me maravilha, a arte engajada, participante ou que outro nome se lhe dê e que, usando uma expressão de Paulo Vanzolini, “se interessa pelo Brasil”. Conheci Carlos Scarinci quando, em São Paulo, éramos alunos de gravura de Lívio Abramo, com quem

CONTINENTE JUNHO 2016 | 67

1 ARTE SOCIAL anúbio Villamil D

Gonçalves, da série Xarqueadas, 1952, xilogravura de topo

1

também estudou Gilvan Samico depois de nós, digo vaidosamente, como, antes disso, ainda sem nunca ter saído daqui, pude conhecer Danúbio Gonçalves, levando-o a Ipojuca para mostrar canavial. Muitos anos depois, conheci Mário Gruber, tendo alugado para ele uma casa ao lado da minha. Também estive com Renina Katz mais de uma ocasião. Nunca deixei de ter por eles grande admiração, juntamente com o grupo de Porto Alegre: além de Danúbio, Carlos Scliar, Vasco Prado, Edgar Koetz, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti, Francisco Stockinger, Trindade Leal, com quem convivi quando trabalhamos e moramos no Centro Carneiro Ribeiro, com quem me correspondi durante muitos anos, seu último endereço na última cidade do Brasil, Santa Vitória do Palmar, à beira do Arroio Chuí, fronteira com o Uruguai, gente que faz parte integrante de mim, mesmo os que não conheci pessoalmente, mas através de sua arte, nutriram-me e até hoje nutrem.


FOTOS: REPRODUÇÃO

Visuais 1

HISTÓRIA Momentos marcantes da poesia visual

Mostra em cartaz no Mamam até 25 de julho reúne cerca de 500 itens nacionais e alguns estrangeiros representativos do gênero TEXTO Marina Moura

CONTINENTE JUNHO 2016 | 68

Em 1964, o crítico e escritor mexicano

Octavio Paz escreve um ensaio intitulado A rotação dos signos, no qual afirma que “o poema deixa de ser uma sucessão linear e assim escapa à tirania tipográfica que nos impõe uma visão longitudinal do mundo, como se as imagens e as coisas se apresentassem umas atrás de outras e não, como realmente ocorre, em momentos simultâneos e em diferentes partes de um mesmo espaço ou em espaços diferentes”. Não se pode dizer que a declaração de Paz é premonitória, mas consegue interpretar um cenário cujas experimentações nos diversos campos artísticos já vinham ocorrendo, com a função plástica do poema explorada no fim do século XIX pelo francês Mallarmé – que tem por objetivo “elevar uma página à potência do céu estrelado” –, ou mesmo pelos concretistas brasileiros e a preocupação com o espaço gráfico do poema, na metade do século XX.


Naquele momento, as barreiras que costumavam delimitar os gêneros passam a fazer cada vez menos sentido. Não é mais o caso de questionar em que linguagem se enquadra determinada obra – será arte literária ou visual? –, mas perguntar-se onde está a arte. Quando, no mesmo texto, o mexicano fala que a nova “palavra poética se apoia na negação da palavra” ou que o poema deve “ampliar seu campo de criação”, é difícil não associar tais declarações à visão do artista pernambucano Paulo Bruscky, em seu ateliê no Bairro da Boa Vista, separando diversos itens que serão expostos na mostra História da poesia visual brasileira. Em uma manhã de maio, enquanto recebia a reportagem da Continente no local, ele enumerava alguns poemas visuais que guarda no seu arquivo: um pássaro azul construído com latas por artistas populares; livro-móbile, a ser pendurado na parede; cartazes com uma ou nenhuma frase; e um brinquedo que articula pedaços de madeira e fitas de cetim, conhecido como traca-traca. “A poesia visual pode ser uma colagem, pode ter letra, pode não ter, não tem uma forma em si e não existe regra fechada”, explicou ele. A definição de obra aberta, dada por Bruscky, integrando som, visualidade, língua, ressoa as últimas palavras de Octavio Paz, para quem o “poema será recriado coletivamente”.

EXPOSIÇÃO

A mostra História da poesia visual brasileira ocupa os três andares do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), e fica aberta ao público entre os dias 1º de junho e 25 de julho. Com cerca de 500 itens, todo o material foi retirado do arquivo de Paulo Bruscky, que assume, com o jornalista e pesquisador Yuri Bruscky, seu filho, a curadoria da exposição. Uma das inovações da mostra é incluir diferentes movimentos que se utilizaram da poesia visual e “fazer um cruzamento de informações, inclusive do exterior, mostrando que, na arte conceitual, nada vem do nada”, aponta Paulo. A mostra vai englobar obras do Concretismo, poemas/ processo, poemas modernistas, poesia-práxis, marginal, eletrônica, sonora e arte-correio, poesia visual

CAIXA PRETA 1 Augusto de Campos e Julio Plaza usam linhas e geometrias para fazerem versos PLANETAS VISUAIS 2 O Brasil vivia o Concretismo, quando o artista realizou este trabalho, em 1957

“A poesia visual pode ser uma colagem, pode ter letra, pode não ter, não existe regra” Paulo Bruscky na publicidade e em objetos e brinquedos populares. Além das obras em si, será possível entrar em contato com um “farto apanhado documental, composto por fotografias, cartazes, catálogos, títulos, jornais, revistas, cartas e filmes”, escrevem os curadores no texto de abertura. Eles fizeram um levantamento e incluíram experiências isoladas de poemas visuais ocorridas em diferentes épocas e desvinculadas de movimentos de vanguarda. Gregório de Matos, Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade são alguns autores que possuem uma faceta experimental e que terão poemas expostos. Outra preocupação dos organizadores

CONTINENTE JUNHO 2016 | 69

2

foi colocar uma linha do tempo no espaço expositivo – com publicações nacionais e mundiais marcantes que possam explicar e dar ao público um vasto panorama dessa modalidade artística –, que inicia no século XVII e segue até o presente. Simultaneamente à mostra, será lançado um livrocatálogo, de 300 páginas, com todos os manifestos e reproduções das principais obras. Deficientes visuais podem fazer uma visita guiada sem a necessidade de marcação prévia. A mostra conta com audiodescrição para cegos e alguns poemas estão disponíveis em braille. É o caso de Anticéu (1984), de autoria de Augusto de Campos. Nos versos “Ex estrelas em braille/ Palavras sem palavras/ na pele do papel”, o artista relaciona a linguagem verbal à experiência tátil e sensorial. Os curadores ainda vão ministrar três oficinas de poesia visual para alunos do ensino médio. A ideia é coletar materiais em desuso, em locais como oficinas mecânicas e mercados públicos, e estimular a criatividade dos estudantes.


ANA ARAÚJO/DIVULGAÇÃO

3 SELEÇÃO Arquivo dos Bruscky é fonte da mostra

Visuais

3

HOMENAGENS

História da poesia visual brasileira será dedicada a artistas que não se encaixaram totalmente em nenhum movimento de vanguarda: o recifense Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) e o carioca Wlademir Dias-Pino (1927). “São dois grandes poetas e anteciparam importantes tendências”, justifica Paulo Bruscky a respeito da escolha. Ambos terão vitrines específicas, que irão contemplar suas produções de livros, poemas visuais e cartazes. A opção por esses autores indica a intenção curatorial de afastar o protagonismo que tem sido dado apenas ao Concretismo – como se não houvesse antes ou depois na criação experimental do país – e faz justiça ao imenso legado de personagens que têm permanecido quase sempre à margem das exposições sobre o tema. A produção do artista plástico, tradutor, fotógrafo, professor e poeta Vicente do Rego Monteiro teve início no período pós-guerra e foi imediatamente rechaçada pela imprensa pernambucana. Em Soneto em defesa da arte abstrata, ele aproveitou para alfinetar os intelectuais da

Obras de Vicente do Rego Monteiro e Wlademir Dias-Pino são lembradas na exposição curada por Paulo e Yuri Bruscky época: “Diga-me por que a crítica recusa/ O poema da Arte Abstrata. Nada/ Melhor consegue desenhar sem figura”. Note-se que boa parte do reconhecimento e dos prêmios recebidos pelo autor vieram da França, país responsável pela maioria de suas referências estéticas e onde costumava passar longos períodos. Publicou, em 1952, numa edição bilíngue, o livro Concrétion/Concreção, no qual brinca com substituições, desvios e inversões de sílabas nos termos. Sobre a obra, que faz parte da exposição organizada por Bruscky, o crítico Sebastien Joachim observou: “o poeta usa a página como uma tela, e em poucas páginas aciona uma grande diversidade de meios”.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 70

4 VICENTE Poema 100% nacional é apontado como o primeiro tipógráfico do país

Vicente lançava, desse modo, as bases constitutivas do Movimento Concreto brasileiro de 1956. Outro destaque é o Poema 100% nacional, de 1941, construído a partir de uma sequência numérica e de imagens que remetem ao jogo do bicho. Com apelo humorístico e elementos visuais e sonoros, Vicente do Rego Monteiro produziu aquele considerado o primeiro poema tipográfico do Brasil. Além disso, quando foi editor da revista Renovação, o pernambucano publicou obras de Jorge de Lima – mistura de colagens e palavras –, também na década de 1940, e as intitulou de Poesias-fotoplásticas, indicando sua consciência apurada do experimentalismo poético e o entendimento de que a separação por gêneros artísticos mostrava-se insuficiente já naquele momento histórico. “O que se coloca no lugar do código (verbal), quando este é destruído?”, eis o provocativo modus operandi poético do designer gráfico, ilustrador, pintor e poeta visual Wlademir DiasPino. Afastando-se de afirmações que soassem como dogmas, o carioca propôs leituras ativas e deslocadas do sentido cartesiano. Em 1956, publicou o livro-poema A AVE, por ocasião da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A obra se desenvolve a partir das frases “Ave voa dentro de sua cor/ polir o voo mais que a um ovo”, que, ao longo das páginas, vão mudando de posição e se condensando até a estrutura do fonema. Tal nível de experimento e desconstrução representou muito bem a “radicalização sintática do movimento concretista”, como notou o filólogo, tradutor e crítico Antônio Houaiss. Wlademir rompeu, porém, com o Concretismo e foi um dos criadores do poema/processo, em 1967, que dava muito mais ênfase à imagem que o movimento anterior. No ano seguinte, haveriam de lançar um manifesto que, em plena ditadura militar, expandiria consideravelmente a ideia


REPRODUÇÃO

de poema/poesia – e faria com que esses termos também se referissem, por exemplo, a performances, pinturas ou objetos. Outra marca do poema/ processo é a sua potência política e, em consequência, a importância atribuída ao espectador no universo da obra. Um dos cartazes de poesia visual de Wlademir, que poderá ser visto pelo público recifense, toca justamente neste ponto, e diz: “Quem olha é responsável pelo que vê”. De acordo com Paulo Bruscky, o carioca ainda “conseguiu prever o poema por computador na década de 1940”. Parte desse acervo e outras experiências de poesia eletrônica também se farão presentes no Mamam.

HERANÇA

O Fluxus, atuando sobretudo entre 1962 e 1978 na Europa e América do Norte, constituiu um grupo de artistas contrário às convenções, valorizando o lúdico e o acaso na criação poética. Um dos seus princípios era o entrelaçamento entre arte e cotidiano. Ken Friedman, membro do Fluxus, escreveu: “Se não há fronteira entre arte e vida, não deveria haver entre diferentes formas de arte. (…) Imagine uma forma de arte que seja composta 10% de música, 25% de arquitetura, 12% de desenho, 18% de ofício de sapateiro, 30% de pintura e 5% dos mais diversos cheiros. Como seria essa arte?”. Este pensamento influenciou toda uma geração de poetas visuais brasileiros, que desenharam “a possibilidade de uma outra cartografia e entendimento, ou melhor, a tentativa de, não só mudar o discurso, mas nossa relação contratual com a linguagem”, nas palavras do crítico e artista espanhol Adolfo Monteiro Najas, presentes no texto de parede da História da poesia visual brasileira. Fica evidente na exposição que quem a visita é mais um participador – para tomar de empréstimo um termo do Fluxus – que um espectador. Ler, ouvir, tocar, enxergar são verbos imperativos e muitas vezes ocorrem simultaneamente na fruição desses poemas visuais, que são verdadeiras zonas ambíguas, abertas, capazes de alargar os limites sensitivos e de significação. Ou, como definiu o jornalista e crítico Mário Pedrosa, entrar em contato com os poemas visuais é um “exercício experimental de liberdade”.

4

CONTINENTE JUNHO 2016 | 71


MUSÉE NATIONAL PICASSO-PARIS/ JEAN-GILLES BERIZZI/ DIVULGAÇÃO

Picasso: Mão erudita, olho selvagem

INSTITUTO TOMIE OHTAKE – SP

Tel: 11 2245.1900 22 Mai – 14 Ago

1

RETROSPECTIVA Cronologia da erudição selvagem de Pablo Picasso

Exposição, em cartaz até 14 de agosto em São Paulo, no Tomie Ohtake, traz obras que foram mantidas pelo próprio artista em sua casa, até integrarem o Musée Picasso–Paris TEXTO Beatriz Macruz, de São Paulo

CONTINENTE JUNHO 2016 | 72

Desde 22 de maio, o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, apresenta obras marcantes da coleção pessoal do próprio Pablo Picasso. São mais de 150 obras, entre pinturas, esculturas, fotografias e desenhos, sob curadoria da francesa Emilia Philippot, e, em sua maioria, inéditas no país. Batizada de Picasso: Mão erudita, olho selvagem, esta é a maior retrospectiva do artista realizada no país desde 2004, que fica em cartaz na cidade até 14 de agosto, antes de ir para o Rio de Janeiro e, em seguida, para Santiago do Chile. A curadora Emilia Philippot, também curadora do Musée Picasso–Paris, define o conjunto de obras em exposição como os “picassos de Picasso”, já que o acervo de onde provém, do museu parisiense, é constituído de trabalhos que o artista espanhol guardou consigo durante toda a vida, e que foram doados pela família para a criação da instituição na capital da França. São obras de uma seleção pessoal


MUSÉE NATIONAL PICASSO-PARIS/ DIVULGAÇÃO

do artista espanhol, mas o apelido “picassos de Picasso” denota também a sua multiplicidade e a diversidade formal e temática, acertadamente evidenciadas por conta da decisão didática da curadoria, de organizar a mostra em um percurso ao mesmo tempo cronológico e temático. Segundo Carolina de Angelis, do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake, a opção pela ordem cronológica é um recurso que facilita a compreensão da exposição por parte dos distintos públicos, mas é também “um meio de mostrar as diferentes etapas e facetas do artista ao longo da sua vida, numa progressão de técnicas, estilos, referências e temas”. De fato, a exposição permite-nos acompanhar as diversas fases da formação do pintor “da mão erudita”, que desconstruiu o rigor formal da representação e fundou o Cubismo junto com o artista Georges Braque. Também pode-se perceber como o seu olhar estava aberto a criar a partir de tudo o que se passava à sua volta – é possível conferir, por exemplo, os esboços em aquarela de figurinos e cenários do espetáculo de balé Pulcinella, dos Ballets Russes, nos quais trabalhou nos anos 1920, logo após, curiosamente, sua fase cubista mais radical, quando era casado com Olga Koklova, bailarina da mesma companhia. Entre as mais de 150 obras, destacam-se também os estudos para o quadro que se converteu no marco do Cubismo, Les demoiselles d’Avignon, de 1907; A morte de Casagemas, retrato de 1901, de sua famosa “fase azul”; a enorme escultura cubista Violão (1924), e o impressionante e libidinoso O beijo, que Picasso fez já no fim da vida, em 1969, quando, diz-se, alcançou sua fase mais erótica e cheia de vida. Além das obras, dois curtasmetragens completam a experiência do visitante; o documentário Guernica, de Alain Resnais e Robert Hessens, uma espécie de filme-ensaio sobre o povoado homônimo, retratado na obra mais famosa de Picasso; e Le mystère Picasso, de Henri-Georges Clouzot, que faz uma reflexão sobre o processo criativo do artista. É inevitável, em uma retrospectiva de Pablo Picasso, mencionar a Guernica, sua indiscutível obra-prima de 1937, e

1 O BEIJO (LE BAISER) Óleo sobre tela pintado pelo artista em 1969, em Mougins, é obra presente na mostra FASE AZUL 2 Obra de 1903, Retrato de um homem (Portrait d’homme) integra obras da série de pinturas nessa paleta de cor

Entre as mais de 150 obras expostas, há pinturas, esculturas, desenhos e fotografias definidas como os “picassos de Picasso” talvez a melhor tradução de seu olhar selvagem, que o nome da exposição enfatiza – ainda que o quadro esteja impedido de sair do Museo Reina Sofia, em Madrid, devido ao risco de danificação. Na impossibilidade de expor a enorme pintura que retrata o horror da guerra civil espanhola em toda sua magnitude, a curadoria optou por apresentar uma reportagem videofotográfica, realizada por Dora Maar, que documenta fragmentos dos estudos para o quadro. Em certo momento, a narração em off que acompanha a projeção dos fotogramas questiona: “Como dizer a uma mãe que o seu filho morreu?”. A Guernica talvez seja a resposta a essa pergunta: a impossibilidade de qualquer relato ou representação diante do horror. Ao mesmo tempo, paira a sensação de que toda a obra de Picasso é permeada por esta questão: criar para além da possibilidade, ou da

CONTINENTE JUNHO 2016 | 73

2

impossibilidade, da representação. A Guernica pertence à fase mais engajada do pintor, em que ele afirma que a pintura é uma arma de guerra, tanto para o ataque como para a defesa. Um depoimento de Picasso acompanha as obras de seus primeiros anos como pintor: “Ao darmos forma à mente, ficamos independentes. A mente, o inconsciente, a emoção, é tudo a mesma coisa. Então entendi porque eu era pintor”. Entre a erudição (e a destruição) formal de Les demoiselles d’Avignon, e a emoção selvagem que salta de obras como o já citado O beijo e da aura mítica da Guernica, começamos a compreender quem era esse pintor. A exposição no Tomie Ohtake é a maior retrospectiva do artista espanhol no Brasil, desde a realizada pela OCA em 2004, e tem apoio do grupo espanhol Arteris, que também patrocinou as mostras de Salvador Dalí e Joan Miró no mesmo instituto. Segundo a pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake, Carolina Dangelis, o êxito da mostra vai além da quantidade de obras trazidas e do grande número de público, e “está pautada na qualidade do trabalho exercido pela parceria das instituições e pela importância de trazer um artista tão completo e essencial para a história da arte quanto Picasso”.


FOTOS: REPRODUÇÃO

Leitura 1

BIOGRAFIAS Personagens de histórias marcantes

2

Em julho serão lançados três títulos da Coleção Memória, em que as figuras públicas Armando Monteiro e Pelópidas Silveira e o jornalista Carlos Garcia são retratadas TEXTO Marina Moura

C O N T I N E N T E J U N H O 2 0 1 6 | 74

Um dos objetivos do gênero biográfico é resgatar a história de indivíduos que, a despeito de terem vivido trajetórias socialmente relevantes, de algum modo se diluíram no imaginário nacional. Para suprir certa lacuna entre personalidades pernambucanas que se destacam em suas respectivas áreas, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) idealizou a Coleção Memória, lançando luz sobre essas pessoas, em suas dimensões pública e privada. Iniciado com uma biografia de Magdalena Arraes, o projeto tem continuidade com mais três obras a serem lançadas este mês, cujos atores são: Armando Monteiro Filho (1925), Carlos Garcia (1934) e Pelópidas Silveira (1915– 2008). A escolha dos autores das biografias passou pela familiaridade deles com o universo dos biografados e, sobretudo, pelo fato de serem todos jornalistas, pois, para tomar de


TRECHOS

ARMANDO MONTEIRO Flashes da vida e do tempo Mario Helio

“Homem consciente desde a juventude dos haveres e deveres, Armando Monteiro Filho jamais ignorou que a roda da fortuna é caprichosa e inconstante. Sabendo distinguir tão claramente valor e preço, nunca deixou que o ‘ter’ fosse mais importante do que o ‘ser’.”

CARLOS GARCIA Um mestre no meio do redemoinho Homero Fonseca

“Apesar da militância contra o regime autoritário, Carlos Garcia tinha opiniões claras sobre o limite entre ideologia e jornalismo. Numa entrevista sobre ética profissional, defendeu que, seja qual for sua ideologia, o jornalista tem acima de tudo o dever de ser fiel à realidade.”

PELÓPIDAS SILVEIRA O homem que amou demais uma cidade Evaldo Costa e Aquiles Lopes

“Diálogo direto com a população era considerado importante para Pelópidas desde sua primeira passagem pelo posto de prefeito. Ele criou o hábito de visitar os mercados públicos de madrugada para conversar com comerciantes, trabalhadores e também com parte da clientela que preferia fazer suas compras antes que as agitações do dia tornassem tudo mais difícil.”

3

empréstimo a fala de Fernando Morais a respeito das biografias, “há minúcias que só o jornalista vê”. Armando Monteiro Filho – Flashes da vida e do tempo é de autoria de Mario Helio. A obra se organiza em uma espécie de reportagem biográfica, ou, nas palavras do autor, “revelações de um testemunho”. E é possível ver as faces geométricas de Armando, para além do empresário e político que iniciou a carreira em 1950, como deputado estadual. O livro, na verdade, vai na contramão do que acreditava Ortega y Gasset, quando dizia que o homem é a sua circunstância. Vemos todos os caminhos percorridos por Armando, não só nos diversos momentos da República, mas nas tentativas de se tornar atleta, contendas familiares ou no desenvolvimento de uma lógica política pouco atrelada à sua situação de menino de engenho. Assim, fragmentos compõem de

1-3 BIOGRAFADOS Retratos históricos de Armando Monteiro, Pelópidas Silveira e Carlos Garcia

modo lúcido um amplo painel do que tem sido sua vida. Escrito por Homero Fonseca, Carlos Garcia – Um mestre no meio do redemoinho, conta, entre outras coisas, a história daquele que, sendo chefe da sucursal do Estadão no Recife, na década de 1970, foi responsável por guiar uma geração de jornalistas expressivos, como Cristina Tavares, Geneton Moraes Neto e Xico Sá. Ao todo, há 19 depoimentos, entre repórteres, amigos e familiares, sobre Garcia e suas lições, nas quais muitas vezes aproximava o ofício à literatura – “Acho que jornalista deveria ler Graciliano Ramos todo dia”, diz em uma delas. A obra passa ainda pelo terrível momento em que Carlos Garcia foi preso e torturado pelo regime militar. Duas vezes prefeito do Recife (1955 e 1963), secretário do governo do estado e articulador político, a

CONTINENTE JUNHO 2016 | 75

trajetória do engenheiro Pelópidas Silveira é um símbolo da rara união entre “ética e política”, escrevem os autores Evaldo Costa e Aquiles Lopes. Em Pelópidas Silveira – O homem que amou demais uma cidade, temos o retrato de um pioneiro em gestões públicas, que sempre privilegiou as classes menos favorecidas, e por isso também sofreu grande rejeição dos que o consideravam um “prefeito comunista”. Sua biografia aposta no visionarismo urbanístico de Pelópidas, um dos pioneiros do Brasil ao estimular a criação das associações de bairro, fiscalizar, do ponto de vista sanitário, as feiras livres, além de calçar ruas e já naquela época atentar para a fluidez no tráfego. Os três livros serão lançados no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), em julho próximo. Outras obras da Coleção Memória estão no prelo e devem ser publicadas ainda este ano. É o caso das biografias da pintora Tereza Costa Rêgo (1929), do cantor Claudionor Germano (1934) e do artista multimídia e poeta Montez Magno (1934).


LOVECRAFT Um gentleman de alma perturbada

Com a entrada no domínio público, a obra do escritor norte-americano, cultuada entre segmentos do terror, encontra novo reconhecimento dentro da cultura pop TEXTO Fernando Athayde

JANIO SANTOS

Leitura

CONTINENTE JUNHO 2016 | 76

Contista diabólico e insano, Howard Phillips Lovecraft foi um dos responsáveis por conceber o gênero de horror como o conhecemos hoje. Nascido em 1890 e falecido em 1937 (há quase 80 anos, portanto), teve uma vida breve de 47 anos, repleta de bizarrices, sendo criador de uma mitologia seminal para as gerações de escritores de fantasia posteriores. Contemporâneo de um mercado editorial que não se interessava pelo que escrevia, H. P. Lovecraft nunca chegou a alcançar o sucesso, e passou décadas apenas reverenciado por fãs como Neil Gaiman e John Carpenter. Com a chegada do novo milênio e a sua obra posta em domínio público, porém, o autor tem encontrado maior reconhecimento, especialmente dentro do universo da cultura pop. Descendente de diplomatas ingleses, Lovecraft nasceu e cresceu em Providence, Rhode Island, estado situado em New England, região que agrupa seis províncias na costa oeste dos Estados Unidos. O escritor teve uma infância marcada pela insanidade. Sua mãe o vestia de menina para evitar o contato com outras crianças do mesmo sexo, e seu pai, um caixeiro-viajante natural de Nova York, morreu internado num manicômio antes de ele completar oito anos de idade. Assim, Lovecraft acabou criado por sua família materna, que possuía muito dinheiro, um casarão de vários quartos em Providence e, principalmente, uma biblioteca com os grandes clássicos literários da época. Nela, ainda na primeira década de vida e por intermédio de seu avô, o autor conheceu As mil e uma noites, leitura que o levou à literatura. Aos seis anos, Lovecraft já sabia ler e escrevia poemas infantis, bem distantes do eixo temático de sua obra. Apesar disso, estima-se que foi na infância que o escritor concebeu o nome Abdul Alhazred, descrito por ele em diversos contos como o “árabe louco”, criador do Necronomicon, o livro dos mortos, um grimório em que estariam listados todos os demônios, criaturas, feitiços e rituais mais diabólicos que o homem já conhecera. Quando adolescente, Lovecraft tomou nota do trabalho de Edgar Allan


REPRODUÇÃO

1

Poe e sua capacidade criativa tomou nova proporção. A literatura gótica de Poe, seus temas sombrios, bem como a própria escolha de escrever através de narrativas curtas, forneceram-lhe a inspiração que faltava para que se aventurasse a escrever e publicar. O autor, que por toda a vida se recusou a aceitar qualquer trabalho formal, dedicou-se exclusivamente à literatura, antes mesmo de completar 20 anos, embora só tenha entrado no mercado editorial quando já beirava os 30. Essa entrada tardia teve dois motivos centrais. Primeiro, devido à morte de seu avô, que o abalou e fez com que sua família se mudasse para uma casa mais modesta, deixando para trás não somente as memórias do jovem Lovecraft, mas também toda a biblioteca que o educou e o fez tomar gosto pelo ato de escrever. Depois, pelo fato de a temática sombria e fantástica de seus escritos não ter respaldo frente ao mercado editorial da época. Recluso e dividindo o mesmo teto que a mãe neurótica, Lovecraft vivia deprimido pela dificuldade de encontrar espaço para suas publicações. Até que, em 1923, foi fundada a revista pulp de horror e ficção científica Weird Tales, que abriu portas para que o escritor não só encontrasse uma casa editorial, como também construísse amizade com vários artistas da época. A partir desse período, Lovecraft passou a se comunicar por meio de cartas com escritores como Robert E. Howard, criador do Conan, o Bárbaro, e Robert Bloch, que escreveu o romance Psicose, posteriormente adaptado para o

cinema por Alfred Hitchcock. Nessas cartas, Lovecraft dividia detalhes de seu estilo narrativo, planos e, sobretudo, a busca por desenvolver e explorar a criação de sua mitologia. Ainda hoje, esse material é a maior fonte de informações sobre a vida e obra do escritor. No Brasil, algumas dessas cartas foram recentemente traduzidas e lançadas pela editora Hedra como apêndices dos livros de contos do autor.

ESTILO NARRATIVO

“Então, de repente eu vi. Com um leve rumor que marcou sua chegada à superfície, a coisa apareceu acima das águas escuras. Vasto como um Polifemo, horrendo, aquilo dardejava como um pavoroso monstro saído de algum pesadelo em direção ao monólito, ao redor do qual agitava os braços escamosos ao mesmo tempo que inclinava a cabeça hedionda e emitia sons compassados.” O trecho faz parte do conto Dagon, primeira publicação realizada por Lovecraft, em 1919. Tinha apenas sete páginas e saiu no jornal The Vagrant. A história, ambientada na Primeira Guerra Mundial e escrita em primeira pessoa, traz o relato de um oficial da marinha viciado em morfina, que é capturado pelas forças rivais e consegue fugir, passando dias à deriva num barco velho. À beira do delírio, o oficial se vê diante de Dagon, uma divindade que habita as profundezas do oceano, e enlouquece perante a grandeza da criatura, até acordar numa cama de hospital, dias depois. Nesse conto, embora seja o primeiro de Lovecraft, é possível tomar nota

CONTINENTE JUNHO 2016 | 77

1 WEIRD TALES Fundada em 1923, revista abriu as portas para H.P. Lovecraft

de alguns elementos que jamais deixarão seus escritos. O arco narrativo envolvendo um homem comum que avança rumo ao desconhecido e, por fim, enlouquece, é sempre o mote de suas histórias. Talvez por isso sua predileção seja escrever em primeira pessoa, do ponto de vista do louco, daquele que confronta o caos e não suporta o que vê. E aí entendamos que, para Lovecraft, a metáfora para a loucura e para o desconhecido é a dimensão do próprio cosmo diante do homem. Assim, quando o oficial da marinha se vê diante de Dagon, a mensagem contida naquela cena é a de que a humanidade não é nada frente ao que está além da sua compreensão. Além disso, o gosto pela linguagem rebuscada e o uso recorrente de adjetivos também são características predominantes em sua literatura, o que chega a ser contraditório pelo fato de sua maior referência ser Edgar Alan Poe, dono de um estilo objetivo e claro. No documentário Lovecraft: Medo do desconhecido (2008), de Frank H. Woorward, o escritor britânico Neil Gaiman chega a dizer que o texto de Lovecraft “não é moderno nem dinâmico; não é sequer eficiente e, em alguns momentos, chega a ser risível”, mas reconhece que isso não está relacionado com a grande influência exercida pelo autor na formação do horror. A questão é que o brilhantismo da obra de Lovecraft não está em um ou dois contos específicos, mas


DIVULGAÇÃO

2 RE-ANIMATOR A narrativa foi vertida para o cinema por Stuart Gordon, em 1985

Leitura

apenas o mais famoso dentre outros semelhantes, como Shogoth, Shub Niggurath e Yth. Um fato interessante é que, poucos anos após a morte do autor, o argentino Jorge Luís Borges publicou o conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, sobre um obscuro país chamado Uqbar e uma série de conspirações envolvendo a criação de um novo mundo. Tal proximidade com a estética lovecraftiana seria desvendada em 1975, quando Borges dedicou sua então mais recente publicação, O livro de areia, à memória de H. P. Lovecraft, revelando-se um grande admirador do contista de Providence.

EDIÇÕES 2

na edificação de uma mitologia única: os mitos de Cthulhu. O autor entendia muito bem a dinâmica que fundamenta a tradição cultural dos povos e se destacou por ter conseguido convertê-la numa experiência estética. Assim, ao reunir todos os contos de Lovecraft, o que temos é a construção de um complexo e fragmentado universo de lendas, mitos, criaturas e personagens que, por vezes, se encontram, interagem, contradizem-se e, sobretudo, caminham rumo à loucura. Em A sombra vinda do tempo, por exemplo, que conta a história de um professor universitário que desmaia em sala de aula e acorda somente anos depois com a notícia de que, enquanto ele estava desacordado, uma outra personalidade assumiu seu corpo, nós somos apresentados a algumas criaturas com cabeça de estrelado-mar e asas de morcego. Essas criaturas, embora nada acrescentem ao desenrolar da história e façam parte de um grande e enfadonho apêndice introduzido bruscamente no meio do texto, são fundamentais para o desenvolvimento de outro conto de Lovecraft, o famoso Nas montanhas da loucura. Nele, a trama centra-se numa expedição ao Ártico, onde uma equipe de cientistas acaba por encontrar os

A relevância de Lovecraft está na edificação de uma mitologia, baseada num complexo universo de lendas cadáveres das benditas criaturas e passa por maus bocados. Assim como um grande bestiário, Lovecraft também gerou um vocabulário próprio e até regiões geográficas. O conto de estreia, Dagon, seria anos depois relacionado à baía da cidade fictícia de Innsmouth, onde uma população de adoradores do Deus-peixe mora, como visto na história A sombra de Innsmouth. Além disso, a cidade de Arkham e a Universidade Miskatonic não somente se tornaram cenários recorrentes e importantes dentro de sua mitologia, como foram expandidas para outras obras e linguagens, vide a homenagem realizada pela DC Comics ao batizar o manicômio de Gotham City, a cidade do Batman, de Asilo Arkham. A impronunciável palavra Cthulhu, criada pelo autor, nomeia a mais importante das criaturas colossais e diabólicas de Lovecraft, sendo

CONTINENTE JUNHO 2016 | 78

Em 1919, Lovecraft mal tinha conseguido entrar no mercado editorial, quando sua mãe teve um surto psicótico e foi mandada para o mesmo manicômio no qual seu esposo morrera anos antes. O escritor, que dependia financeiramente dela, foi obrigado a deixar a casa e ir morar com as tias. Nessa época, ele chegou a atuar como ghostwriter para conseguir se manter, publicando até textos encomendados pelo ilusionista Harry Houdini. A relação entre os dois, que era tortuosa e logo teve fim, foi explorada com maestria literária e visual pelos roteiristas Hans Rodionoff e Keith Giffen e pelo ilustrador argentino Enrique Breccia na obra Lovecraft, uma biografia em quadrinhos sobre o autor, em que suas criaturas e vida pessoal aparecem entrelaçadas. Em 1921, o editor George Julian Houtain, que conhecia o trabalho de Lovecraft das suas poucas publicações realizadas até então, convidou-o para escrever um conto na sua revista. Asim surgiu Dr. Herbert West: Re-animator, trabalho que o próprio Lovecraft condenou como a pior coisa escrita por ele. A ironia é que o texto, que permanece inédito no Brasil, foi adaptado para o cinema em 1985, pelo diretor Stuart Gordon, sob o nome de Re-animator, tornando-se um clássico trash da década de 1980 e dando início a uma série de adaptações


INDICAÇÕES cinematográficas de baixo custo da obra do escritor. O próprio Stuart Gordon ainda dirigiu Do além, em 1986, Herança maldita, em 1995, e Dagon, em 2001. Quando a Weird Tales foi fundada em 1923 e Lovecraft passou a se dedicar com exclusividade à publicação, sua vida começou, enfim, a tomar um novo rumo. Nesse período, ele conheceu a também escritora Sonia H. Greene, uma mulher mais velha e divorciada com quem se casou naquele mesmo ano. O casal foi morar em Nova York, onde havia muito mais oportunidades. O problema é que Lovecraft fora educado para ser um gentleman e tinha dificuldade em lidar com o cosmopolitismo novaiorquino. Xenofóbico e até racista, o autor jamais se adaptou e o casamento dele com Sonia ruiu antes mesmo de completar um ano. Sobre o conservadorismo do escritor, o cineasta mexicano Guillermo Del Toro afirmou que os trabalhos de Lovecraft “podiam até mesmo ser referência para a época, mas eram, essencialmente, um registro antiquado dos ideais de um gentleman criado em New England”. Como alguém que cresceu entre livros e sob uma mecânica educacional aristocrática, neurótica e rigorosa, Lovecraft tinha um fascínio genuíno tanto pela literatura quanto pelas sete belas artes e pelas próprias ciências naturais. Contos como A música de Erich Zann e O modelo de Pickman, por exemplo, são trabalhos em que Lovecraft expõe seu gosto apurado pela arte clássica e busca pela erudição. Eles foram escritos após o rompimento

com Sonia, quando o escritor voltou a Providence e viveu um período de grande efervescência criativa, publicando ininterruptamente seus contos na Weird Tales, período também em que sua já citada mitologia foi criada e expandida. Em 1936, porém, no auge de sua capacidade criativa, o escritor passou a sofrer pequenos problemas de saúde, um atrás do outro, até que foi diagnosticado com um câncer terminal no início de 1937 e morreu poucos dias depois, no dia 15 de março. Após seu falecimento, dois de seus amigos e correspondentes, August Derleth e Donald Wandrei, fundaram a editora Arkham House, a fim de preservar a obra e as ideias contidas nos mitos de Cthulhu. A editora, que permanece em funcionamento, não só publicou Lovecraft, mas abriu espaço para o gênero de horror. Foi graças à iniciativa de Derleth e Wandrei que nomes como Stephen King e Neil Gaiman descobriram o escritor norte-americano. O legado de Lovecraft é um catálogo de possibilidades estéticas aberto à contribuição de autores que se aventuraram a conhecê-lo. Não seria injusto dizer, nesse contexto, que cada um que utiliza os mitos de Chutulhu, como base para seu trabalho, deixa lá uma marca. O próprio Robert E. Howard chegou a contribuir com a expansão da mitologia antes de morrer, em 1936. Nunca lançada no Brasil, a antologia de contos Nameless Cults reúne todos os contos escritos por Howard dentro do universo lovecraftiano.

SÉRIE

ELENA FERRANTE História do novo sobrenome Biblioteca Azul

NOVELA

HAN KANG A vegetariana Devir

Segundo livro da tetralogia napolitana evidencia o início da vida adulta das amigas Lenu e Lila, na década de 1950. Ferrante aborda o casamento e o estudo como mecanismos de sublimação da pobreza e de fuga de um destino traçado pela família. Essas alternativas, no entanto, mostramse carregadas de profunda violência .

A escritora sul-coreana Han Kang faz parte da nova leva de autores de seu país que praticam uma literatura politizada a partir de temas transversais. Nesta obra, há três novelas que se conectam e tratam da decisão da protagonista de não mais comer carne. O ato tem diversas implicações pessoais e sociais, e é analisado sob os pontos de vista de familiares.

ROMANCE

QUADRINHO

ANDRÉA FERRAZ A sutileza do sangue Coqueiro

Com capítulos curtos, Andrea Ferraz apresenta personagens do município de Floresta, sua terra natal. O livro de estreia da autora mostra um sertão que parte de vivências e da conturbada relação com a família para construir o enredo. Em vez da comum aridez com que se coloca a paisagem sertaneja, a autora opta por uma descrição lírica e bemhumorada do lugar.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 79

JOÃO FLÁVIO DA SILVA (ORG.) Tô Miró A Casa do Cachorro Preto

O poeta Miró da Muribeca teve alguns de seus textos adaptados para os quadrinhos. Pelas mãos de Raoni Assis, Flavão, Ayodê França, Shiko e Christiano Mascaro, 30 dos seus poemas/crônicas foram transpostos para o desenho e mantiveram a característica de explorar o imaginário urbano do autor. A oralidade foi bem-explorada.


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

O CORPO ENFERMO DO PLANETA

à Schneider Carpeggiani O silêncio está com os dias contados. (Parece a enigmática sentença de um oráculo. Qual o significado do silêncio em tempos de uma guerra de rugidos?) Agora, quando ninguém se demora entre os rochedos... Poema de Neruda, imaginando que na falta do silêncio não se escutará a voz da poesia, dos poetas vivos e mortos. A menos que os nossos sentidos contaminados, o martelo, o estribo e a bigorna da audição, vibrem em cadência sob o estresse do ruído, e se confundam as formas. Para alguns o poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se num momento, afirma Octavio Paz. Buzinas e freios, milhões de decibéis em trios elétricos, zapps,

chamadas telefônicas, bips de respiradores, vruuum, rrraaat, crrreeec, helicópteros, trens, vagões, lanchas, roçadeiras a gasolina, tratores, guindastes, empilhadeiras, e oito bilhões de humanos alheios aos apelos de Whitman. Ecoem estes versos, os tons das almas e as frases das almas. Continuem falando, faladores! Cantem, cantores! Escavem, modelem as palavras da terra! Não compreendem a santidade do poeta, seus versos revolucionários, o silêncio estático do movimento. E acometidos pela ignorância proclamam o barulho, a falsidade, as apostasias, as palavras condenadas à tecla delete, sem verdade ou fé. Aplaudem os discursos dos políticos corrompidos pela mentira, as falas dos atores viciados em truques, a prosa de escritores anódinos, e a justiça enferrujada, cega apenas de um olho – com o outro enxerga e

CONTINENTE JUNHO 2016 | 80

manipula os interesses próprios. Possesso Fernando Pessoa esbraveja. Tirem esse lixo da minha frente! Metam-me em gavetas essas emoções! Daqui pra fora, políticos, literatos, Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs, Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida. O poeta tornou-se um enfermo entre os escombros do silêncio, constipado de palavras, amordaçado e deprimido pelo que soa mais alto e faz calar as epifanias em sua garganta. Sobressaem as criaturas esmagadoras, espelhadas e sem temperatura. Desprovidas de neurônios sensitivos, sem registro de afeto, elas rugem e amedrontam, escarnecem e manobram as engrenagens. O sagrado corpo da Terra adoece ao contágio dessas bactérias, as formas de sensibilidade fraquejam.


HALLINA BELTRÃO

João alertara sobre esses, no livro do Apocalipse. Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente. Quem dera fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca; Pois dizes: estou rico e abastado, e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu. O silêncio poderia ser o remédio para o corpo enfermo do planeta? Um grande silêncio de imobilidade, aquele que precede a criação. Solene, com o sim no lugar do sim e o não no lugar do não. E só e bastante. Porém, o seu tempo foi declarado extinto,

Não compreendem a santidade do poeta, seus versos revolucionários, o silêncio estático do movimento aprisionaram-no como libélulas em camadas de calcário fóssil. Na sua morte calam as vozes de gerações e desaparece o que a natureza possui de mais oculto e misterioso. Anunciam o derradeiro silêncio, prenúncio à alienação do homem contemporâneo, que precisa reaprender a sentir. E a desejar além das falas e

CONTINENTE JUNHO 2016 | 81

dos falsos inúteis, conforme escreveu o poeta Wordsworth. O mundo nos envolve; tarde ou antes, Na compra e venda esvai-se nosso bem. Pouco de nosso a Natureza tem; Jogamos a alma fora, vis mercantes! Os mares, que ao luar se expõem galantes, O uivante vento, que ora está, porém, Encolhido qual flor dormente além... Disso, de tudo, estamos dissonastes; Nada nos move. – Oh Deus! Antes fosse eu Algum pagão em gasta fé nutrido! Assim, num doce prado, qual ateu Jamais me sentiria tão perdido: Iria ver no mar surgir Proteu, E ouvir Tritão no búzio retorcido.


FOTOS: RENATO PARADA

Sonoras

CONTINENTE JUNHO 2016 | 82


CÉU A força da delicadeza

Em Tropix, seu quarto álbum, produzido pelo marido, o baterista pernambucano Pupillo, a cantora paulistana aproxima a Tropicália do pós-punk eletrônico TEXTO Ronaldo Bressane

“Mas a delicadeza pode ser uma força”, me devolveu a amiga, se espreguiçando. “Ser delicada não te impede de ser forte”, ela desenvolvia, enquanto enrolava os cabelos ruivos numa trança, os olhos azuis gelando qualquer contestação. Levantou-se e foi buscar outro gim-tônica; no ar, uma voz bisava o que ela havia acabado de me dizer. “Logo que o perfume do invisível te inebriou/ você me viu/ e o mundo também/ E o que estava quietinho ali/ se mostrou, meu bem”. Quando a amiga voltou com o drinque, eu já sabia como começar este texto sobre a Céu. Agora que chega a seu quarto álbum de estúdio em 12 anos, já se pode afirmar que a carreira de Maria do Céu Whitaker Poças, 35 anos, tem um desenho todo particular — traçado em nanquim 0.01, pena finíssima. Lançado no fim de março, Tropix é outra releitura da forma como a cantora paulistana veio ao mundo: a delicadeza. “Por delicadeza perdi minha vida”, escreveu Rimbaud. Pois é com esta qualidade que Céu ganha a sua. Quando a conheci, em 2005, ela lançava o primeiro álbum, CéU, e conseguia ser ainda mais tímida que hoje. Nossa primeira entrevista foi na Livraria da Vila; no movimentado café eu mal ouvia a sua voz: lembro que pedi várias vezes para que repetisse as respostas. Ela dizia só ter criado couro para subir ao palco depois de um episódio bizarro. Começou a carreira participando de shows de amigos e fazendo pockets em lugares como o restaurante Grazie a Dio e a

Galeria Ouro Fino, em São Paulo, onde encarava o microfone meio durona. Pouco antes, tinha passado uns meses em Nova York e treinava a voz em cafés onde cantava bossa nova — para pagar as contas, trabalhava faxinando e lavando prato em bares. “Eu cantava Eu sei que vou te amar, toda concentrada, e quando chega naquela última parte, mais dramática, em que a gente tem que fazer uma pausa”, Céu contava, “Escuto um cara berrando pro garçom: ‘Me traz uma picanha!’”. Quase chorou — de raiva, de humilhação.

Céu começou a carreira cantando bossa nova em cafés de Nova York e bares de São Paulo, depois se afastou do gênero Em nosso segundo encontro, 11 anos depois, agora no café do Espaço Cult, sempre na Vila Madalena onde a cantora oferece o ar de sua graça — ela mora ali perto, na Vila Beatriz —, riu da recordação da maldita picanha e lembrou outro show fundamental para fazê-la criar um espaço todo seu em uma apresentação. “Aí fui pra Paris e fiz um evento no La Cigalle, um lugar de jazz chiquésimo; aquela plateia cheia de pessoas de cabeça branca e eu uma menina tímida… Foi difícil, quase deu branco. Mas daquele show pra frente foi

CONTINENTE JUNHO 2016 | 83

que comecei a encarar os shows com mais leveza”, ela diz. Filha da artista plástica Carolina Whitaker e do maestro Edgar Poças, que se notabilizou por compor as canções do grupo infantil Balão Mágico, nos anos 1980, em fins dos anos 1990 Céu conheceu o produtor Antonio Pinto, com quem morou em Nova York, e, através dele, Beto Villares. Tanto Antonio quanto Beto produziram trilhas para o cinema nacional e internacional (Antonio indicado a Emmys e Oscars) e a produtiva união com a cantora criou uma expressão ao mesmo tempo local e global. Cedo Céu percebeu que o som que buscava demandaria uma produção com visão “glocal” — no nível do São Paulo confessions (1999), álbum produzido pelo músico sérvio-paulista Suba, que se tornou, pela originalidade conceitual e perfeição técnica, um influente modelo a quem buscasse refundir ritmos brasileiros através da eletrônica, com um apego especial pela bossa nova. (Antes de morrer tragicamente em 1999, Suba produziria o clássico Tanto tempo, de Bebel Gilberto.) Céu, no entanto, se afastou da bossa nova, gênero tão afeito a novas cantoras no Brasil, para percorrer um caminho próprio — mas, apesar da distância, sua voz doce, pequena, colocada e afinadíssima lembra o registro de Astrud Gilberto. A cantora surgiu em uma época ainda reticente de compositoras — havia Marisa Monte, Vanessa da Matta, Cibelle —, cena que hoje tem a companhia de


MAÍRA GAMARRA/DIVULGAÇÃO

menina tímida de jaqueta jeans que vi na Livraria da Vila. Havia concedido cinco entrevistas antes da chegada da Continente, mas sua ansiedade era por outro motivo: dali a alguns dias ela sairia em longa turnê. Raridade em um meio tão volátil como a MPopB, a turnê de lançamento somava 30 shows em mais de um mês de apresentações entre Europa, EUA e Brasil. Por pelo menos três semanas seguidas ficaria longe de sua Rosa Morena. Na escola, a filha, hoje com sete anos, nem sempre pode acompanhar a mãe nas turnês, como em outras ocasiões — a menina já preencheu quatro passaportes. Caseira, Céu nem via a hora de voltar.

PÉ NA ESTRADA

Sonoras 1

um time muito mais diversificado, como as amigas Anelis Assumpção, Tulipa Ruiz, Karina Buhr e Ava Rocha. Suas composições, bem como suas escolhas, como Bob Marley e a dupla Bosco-Blanc em CéU, receberam tratamento técnico finíssimo, que seria mantido em Vagarosa (2009), Caravana Sereia Bloom (2012) e no recente Tropix. A mesa de comando do estúdio, agora ocupada pelo marido Pupillo e o multi-instrumentista francês Hervè Salters (General Elektrik), já pertenceu, fora Villares e Pinto, a músicos como Gustavo Lenza e a Gui Amabis — este, o pai de sua filha Rosa Morena. Entre os músicos que tocaram em seus álbuns estão Lúcio Maia, Jorge DuPeixe, Dengue e Pupillo (da Nação Zumbi), Fernando Catatau e Dustan Gallas (do Cidadão Instigado), Bruno Buarque, Curumin, Rodrigo Campos, Thiago França, Guizado e o parceiro de todas as horas Lucas Martins — “um verdadeiro quem é quem na cena brasileira”, conforme citou o guitarrista e jornalista Luiz Chagas em recente crônica no Estadão. Inquieta, Céu também gravou com Rica Amabis, Seu

“Hoje me sinto em casa no palco. Claro que antes fico nervosa: há um frio na barriga eterno” Céu Jorge, Herbie Hancock; formou com as amigas Anelis Assumpção e Thalma de Freitas o trio Negresko Sis; seu primeiro álbum, CéU, vendeu 500 mil cópias, e o terceiro, Vagarosa, 150 mil; foi indicada quatro vezes ao Grammy Latino; homenageando um ídolo de adolescência, excursionou cantando o clássico álbum Catch a fire de Bob Marley; logo antes de Tropix, gravou um álbum ao vivo no Centro Cultural Rio Verde, no epicentro de sua Vila Madalena. Céu estava ansiosa no Espaço Cult. Cabelos encaracolados cheios, escondendo os olhos e as famosas pintinhas — citadas na canção Grains de beauté, de Vagarosa —, sapatos e camisa brilhantes, a postura de Céu, mais segura, contrastava com a daquela

CONTINENTE JUNHO 2016 | 84

“Pegar estrada deixa você sujeito a coisas sem controle”, ela diz — em uma frase muito significativa para quem afirma ser do dominador signo de “Satanáries”. “Hoje me sinto em casa no palco. Claro que antes eu fico nervosa: existe um frio na barriga eterno. Mas já curto dançar, me soltar. Só que na estrada rolam umas coisas louconas. Vou muito pra Alemanha, onde tem um cara que vai em todos os shows — e eu sei que ele vai estar lá de novo. No começo ficava muito assustada. Ele é gigante e fica na frente do palco, regendo a gente, a banda toda, briga com o baterista, chocha o show!”, ri. “Só na décima música é que acha bom. É a loucura dele. Tenho um outro fã que foi nazi, tinha banda de metal; já me disse que ouvindo meu som e os Beastie Boys é que virou o oposto, e hoje me segue também”, conta. Céu faz questão de afirmar que seu esquema lá fora é de rock, não de cantora brasileira. “Estar em uma banda me ensinou a me virar”, diz, com o peso de ser dos poucos brasileiros a participar do programa de Jools Holland. “É demais, um monte de artista foda fazendo um puta som, respeito total com os músicos e ninguém estressado: muito astral”, empolga-se. “Podia ter um programa assim no Brasil. O Holland não tem ego, faz questão de deixar o músico brilhar. Quando acabou, falei pra produtora: please come to Brazil!”. Quando reclamo que Tropix é apenas seu quarto disco em 12 anos, ela reclama de volta. “Mas é porque o músico brasileiro vive de show, tem que fazer muito show pra pagar as contas. Quando


FABIANO FEIJÓ/DIVULGAÇÃO

1 RECBEAT

Artista encerrou a edição de 2013 do festival realizado no carnaval do Recife

2 SONANTES Projeto paralelo da cantora com Dengue, Gui Amabis, Pupillo e Rica Amabis

vai compor?”, questiona. “Fora isso, há poucos lugares para tocar. O Sesc é maravilhoso, paga bem e dá toda a assistência, mas por contrato não deixa a gente fazer shows muito antes nem muito depois. E é um dos raros lugares em que o ingresso é barato. Se eu vou fazer shows em casas de jazz, que custam mais caro, o fã reclama”, explica. E quando ela compõe, como compõe? “Escrevo letras, inícios de letras, não escrevo narrativas. Sempre tive relação mais forte com música. A letra veio depois. Hoje gosto muito de ler Neruda, Mia Couto, Manoel de Barros. Nesse minuto estou lendo a biografia do Kraftwerk. Meu processo é orgânico, recorta e cola, sou meio doidona, pego uma parte, colo em outra, junto, faço as músicas na cabeça, jogo no piano, uso o (software) Garage Band… De Sangria eu só tinha melodia, aí pedi a letra pro Lira e virou aquele bolero com bongô”, descreve. Do processo da criação, Céu passa a contar como foi o de gravação. “O Caravana Sereia Bloom foi lo-fi, esse é hi-fi”, contextualiza. “Tem a ver com Kraftwerk, samba, bolero e trip-hop. Queria fazer uma ode brasileira às máquinas. Só que a nossa máquina é enjoadinha, enferruja com a maresia”, brinca. “Quando estava no final do Caravana, senti que precisava contar uma nova história. O Pupillo sabia o que eu queria — ele tem essa loucura de fazer beats o tempo todo, então rolava um processo de pré-criação do disco entre a gente. Aí vi que queria trabalhar com alguém de fora, fazer um power trio só baixobateria-synth. E acabei conhecendo o Hervé através do Curumin. Ele faz um soul pop animal, eu o vi nas turnês em San Francisco e Berlim: toca muito, manja muito de harmonia, é loucão no palco. Curti a vibe do cara e o convidei para vir passar uma semana gravando com a gente. Levei pra padaria, dei um açaí, aí o Hervé começou a entender tudo e deu certo… até foi meu parceiro numa música”, diz, rindo, sobre Varanda suspensa, que descreve a casa do avô em São Sebastião.

2

GAROTA DA BANDA

Em vez de fazer a diva, Céu prefere ser “a garota da banda”, como nos álbuns de jazz. Daí Tropix ter um som tão preciso, seco, equilibrado, com a mesma fisionomia do começo ao fim. “Era um sonho fazer um disco com a mesma turma.” Ser ariana a torna uma cantora muito controladora? “Acho que hoje a gente tem mulheres mais fortes na cena, como a Tulipa, a Karina. Mas sei delegar. Administro a minha casa! Curto me cercar de gente legal, aí confio”. O baterista da Nação Zumbi, apesar de produtor do disco, tem presença discreta. “Ele trabalha para a música”, Céu justifica. “Entende do que a música precisa — trouxe de volta a tamba junto com o pitch eletrônico, por exemplo. É

CONTINENTE JUNHO 2016 | 85

moderno e velho ao mesmo tempo; tem muita elegância”, elogia. Não deixa de ser curioso que Céu lance o quarto álbum no mesmo ano em que Afrociberdelia, primeiro disco em que o marido mangueboy tocou, completa duas décadas. O manguebeat foi uma influência fundamental na sua criação. “Escutei manguebeat a primeira vez em Nova York e fiquei chocada: traduzia tudo o que queria ouvir. O Brasil tem essa cultura do possível, e o manguebeat traduzia o que acontecia fora de um jeito nosso, de realizar as coisas da maneira que a gente pode. É uma continuidade do modernismo e do tropicalismo, e hoje você vê as pessoas trazendo referências contemporâneas e mundiais sem perder o foco no Brasil”,


REPRODUÇÃO

3 TROPIX Quarto álbum de Céu foi produzido pelo baterista da Nação Zumbi, Pupillo

Sonoras 3

ensina, elogiando as composições de Jorge Du Peixe, que outra vez comparece como parceiro, em A nave vai. “Jorge conduz a voz de maneira diferente, é imagético, pega muitas coisas que ouve na rua — uma coisa que eu também gosto de fazer”, diz. Pupillo apresentou ainda uma referência central, que acabou permeando toda a sonoridade lo-fi: a banda paulistana Fellini, que era amada por Chico Science. No marco zero do manguebeat, há o registro de um show chamado Zumbi canta Fellini em que a banda pernambucana só tocou músicas da banda paulista. “Eu não conhecia! Foi o Pupillo quem mostrou os discos Amor louco e Fellini só vive duas vezes. Fiquei louca! Foi difícil escolher o que gravar, mas acabamos pegando Chico Buarque song. A outra opção era Teu inglês, porque meu inglês também é ruim, eu sempre falo mal nas entrevistas lá fora (risos). Estava ouvindo muito pós-punk e foi legal rever SP ali. Fiquei tão apaixonada, que hoje eu quero fazer um disco só cantando Fellini.” De fato, a sonoridade eletrônica de Tropix tem mais a ver com os anos 1980 — embora o belo clipe em preto e branco de Perfume do invisível, dirigido pelo cineasta Esmir Filho, aproxime Céu dos globos espelhados dos anos 1970. A sinestésica canção tem uma influência frequente para Céu: os quadrinhos — o título é homônimo do safado álbum de Milo Manara. “Esmir é incrível, eu tava a fim de trabalhar com ele há muito tempo. O clipe ficou lindo e tem muito a ver

“Escutei manguebeat a primeira vez em Nova York e fiquei chocada: traduzia tudo o que queria ouvir”, diz a cantora com o conceito do disco: minimalista, com um ruído na maquininha.” Outro livro a surgir como pano de fundo é Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak, na suave A menina e o monstro — um lullaby que trata da complexa relação entre mãe e filha. Concluindo a seção de parcerias, o ouvido esperto de Céu chamou Dinho, da banda goiana Boogarins, para concluir Camadas. “É das melhores bandas da atualidade. O Dinho chegou no estúdio, pegou o violão e acabou a música em uma hora. Eu tinha iniciado a melodia com letra, ele continuou. Ele é muito legal, a voz, o jeito de tocar”, elogia. Fellini, Nação Zumbi, Boogarins: intuitivamente, Céu traçou em seu álbum a linha evolutiva da MPopB lisérgica.

GESTOS POLÍTICOS

Inevitável, já que a entrevista se deu um dia após a massiva manifestação pró-impeachment, falar de política. Naquele domingo, Céu não havia saído de casa. “Eu estava indignada! Manifestar é importante, reformar é importante, mas mudar o governo para a direita usando subterfúgios

CONTINENTE JUNHO 2016 | 86

eu acho um infortúnio para nossa democracia, 50 mil passos pra trás”, ela afirma. “Protestar contra a corrupção é legítimo, eu adoraria estar lá se fosse só por isso. Só que nessa confusão estão acontecendo manobras perigosas. Tenho medo do que o Brasil pode virar. Nossa memória curta pode nos trair”, adverte. Política é também, de certo modo, o cenário de Rapsódia brasilis. “É a história de uma menina de família aristocrática que prefere ficar na cozinha. Me sentia melhor naquele lugar. E também é sobre o Brasil, essa relação da babá, criação, terceirização de filho. Como você contrata uma pessoa que faz tudo o que você não faz, que limpa a sua sujeira, mas é alguém com quem você nunca se relaciona?”, confronta. “Por que você contrata uma pessoa e veste ela de branco? Eu nunca tive babá. Quando viajava, às vezes levava a professora da Rosa. A moça que trabalha em casa é um anjo em minha vida, mas nunca contratei alguém o tempo todo para a Rosa. Daí essa música, que é uma reflexão sobre casagrande e senzala… uma relação que ainda acho estanha.” “O sussurro pode ser mais alto que um grito… um recado pode ecoar mais longe que uma manchete na primeira página… um redemoinho pode conter mais diabos que um tornado… e um fiapo de nuvem pode trazer uma chuva mais pesada que uma nuvem cúmulo-nimbo”, minha amiga dizia, já no terceiro gim-tônica, enquanto eu finalizava este texto. O modo de Céu falar de política, discreto, pode ser mais tonitruante que as histerias políticas tramadas em Brasília. “A música Bobagem é sobre feminismo. Cumadi, também. Gosto de falar de modo pontual, não sou falastrona. A mulher ficou sobrecarregada com tanta coisa que resolveu fazer. São conquistas. A gente paga um pato por isso, mas é bom saber que a mulher saiu da casinha!” O tempo acabava e Céu olhou para cima antes de voltar às fotos. “Acho que vai chover”, afirmou, meio distraída, se despedindo. Sim, sem dúvida a delicadeza é uma força: naquela hora o firmamento só continha um fiapo de nuvem… mas pouco tempo depois o mundo caiu sobre a Vila Madalena.


INDICAÇÕES POP

BEYONCÉ LEMONADE Columbia Records

Beyoncé faz surpresa aos fãs com a estreia mundial do filme Lemonade, que consiste em uma sequência de clipes do álbum homônimo. Neste projeto, a cantora resgata referências da cultura negra, criando uma narrativa sobre racismo e machismo, com sonoridades distantes das batidas R&B dos seus antigos álbuns. O álbum possui referências que vão de Martin Luther King a Outkast, e ritmos do country ao gospel, enaltecendo as ramificações estéticas da negritude e das mulheres.

ROCK ALTERNATIVO

RADIOHEAD A MOON SHAPED POOL La Fabrique Studios

No nono álbum do grupo britânico há uma preocupação com a construção musical, consistindo no uso de elementos sonoros relacionados à estética clássica, com solos de pianos, corais e instrumentos como violoncelos. Estes sempre estiveram presentes na trajetória do Radiohead, porém são levados ao extremo neste lançamento. Os sons eletrônicos e as guitarras distorcidas ainda aparecem em A moon shaped pool, mas a narrativa que remete à solidão e ao eu é realçada pelos arranjos orquestrais escolhidos pela banda.

POP

METAL ALTERNATIVO

Independente

Reprise Records

LARISSA BAQ VOA A cantora e instrumentista Larissa Baq rodou o mundo em turnê, apresentando, com seu jeito doce de cantar, um tipo de música feita por jovens talentosos da música popular e do pop. VOA se assemelha ao som de nomes como Dani Black, Tono e 5 a Seco. Também se assemelha ao rock psicodélico da banda Boogarins. Inseparável de sua guitarra, da qual sabe extrair diversas texturas sonoras, e também engajada na composição de temas mais ternos e apaixonados, Baq afirma que suas referências vão de Chet Baker e Bach à Siba e Ed Sheeran.

DEFTONES GORE

Na língua inglesa, o termo “gore” pode se vincular a um subgênero do cinema de terror marcado por representações gráficas de sangue e violência, mas também se refere a uma variação do death metal que aborda, em suas letras, essa mesma temática. As 11 canções do álbum demonstram equilíbrio entre a raiva e a introspecção, a morte e a paixão, além do sentimento de independência e o aspecto criativo do ser humano. Músicas como Heart/Wires expressam essa dicotomia temática, com uma longa abertura melódica.

Baile de rabeca

IDENTIDADES POPULARES ENTRE A ZONA DA MATA E O RECIFE O novo disco do instrumentista e cantor Maciel Salú, Baile de rabeca, reúne 10 canções que mesclam a produção contemporânea com a música de raiz. Quarto álbum de carreira solo, este remete ao imaginário entre a Zona da Mata e a periferia da capital, itinerário vivido pela família Salustiano, que partiu do município de Aliança para a Cidade Tabajara, em Paulista. A mesclagem envolve ritmos como forró de rabeca, samba, marchinha, coco e cúmbia. A faixa Cadê o rabequeiro? lembra os trejeitos das canções de Luiz Gonzaga, só que evocando a vida na Zona da Mata. Estão presentes instrumentos específicos do cavalomarinho, como a rabeca e o pandeiro. Esse hibridismo é consequência do estilo de Maciel Salú, que tem buscado produzir sons a partir de trocas, de experimentações. A vivência no Recife é capaz de resultar em personagens como O vendedor ambulante, título de um

CONTINENTE JUNHO 2016 | 87

samba que é quase uma “peleja amorosa”. O disco também tem espaço para celebração e devoção, como na música Mãe divina (Morro da Conceição). “Quem escutar vai perceber que tem coco, novena católica e candomblé. É um sincretismo religioso e musical”, explica o artista. As gravações do Baile de rabeca aconteceram no Fábrica Estúdios (Recife), com produção musical de Rodrigo Samico. A direção musical e os arranjos foram assinados por Maciel Salú e toda a equipe de músicos que o acompanha no novo projeto. A capa do álbum é uma homenagem aos brincantes e às festas que aconteciam em Chã de Camará, em Aliança. No projeto gráfico, assinado por Priscila Moreira e Walton Ribeiro, com fotos de Alcione Ferreira, a atmosfera das festas foi revivida. Uma campanha no Kickante arrecadou R$ 3,2 mil para a produção do projeto. ULYSSES GADÊLHA


ee CON TI NEN TE

Criaturas Maysa

por Lézio Júnior

Casada com o empresário André Matarazzo, Maysa (1936-1977) tinha tudo para ser somente uma das

badaladas socialites do país. No entanto, ignorou a expectativa da família e da sociedade para transformar em carreira o que consideravam só um hobby: a música. Divorciou-se aos 21 anos e se tornou a cantora e compositora mais bem- paga do país nos anos 1950, e a primeira a realizar turnês mundiais. Foi, possivelmente, também, a mais farrista.

CONTINENTE JUNHO 2016 | 88


Para dengue, zika e chikungunya, o remédio é prevenir.

Não há medicamentos específicos para as doenças causadas pelo Aedes aegypti. Nos três casos, o tratamento é ficar em repouso e beber bastante líquido. Alguns remédios são indicados para a dor, mas não devem ser usados os que têm ácido acetilsalicílico e anti-inflamatórios não-hormonais, pois podem causar hemorragias. A melhor solução é a prevenção: evitar água parada e descoberta em casa, para que o mosquito não se reproduza e infecte mais pessoas.

Conheça os sintomas de cada doença Dengue • Febre alta • Dores no corpo • Dores de cabeça e nos olhos • Falta de ar • Manchas na pele • Indisposição

pecontraomosquito.com.br Saiba mais: 0800.286.2828

Nos casos mais graves: • Sangramentos (nariz, gengivas) • Dor abdominal intensa. • Vômitos persistentes • Sonolência • Irritabilidade • Hipotensão • Tontura

Chikungunya

Zika

• Febre repentina acima de 39 graus • Dores no corpo, concentradas nas articulações e mais intensas do que nos casos de dengue • Dor de cabeça • Dor nos músculos • Manchas vermelhas na pele

• Febre mais baixa que nos casos de dengue e chikungunya • Olhos avermelhados • Manchas vermelhas e coceira na pele, que podem confundir a doença com alergia • Possíveis casos de diarreia e sinais de conjuntivite


www.revistacontinente.com.br

# 186

#186 ano XVI • jun/16 • R$ 13,00

CONTINENTE

E MAIS: CÉU ANITA PRESTES RIO NEGRO RICARDO CAVOLO H. P. LOVECRAFT COLETIVO ANGU PICASSO

JUN 16

ALCEU INESGOTÁVEL, MAIOR NOME VIVO DA MÚSICA PERNAMBUCANA CHEGA AOS 70 ANOS


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.