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# 187
#187
O FENÔMENO DA CIRCULAÇÃO MUNDIAL
ano XVI • jul/16 • R$ 13,00
CONTINENTE JUL 16
E MAIS: RAQUEL ROLNIK | EUSTÁQUIO NEVES | YOKO ONO | PAI EUCLIDES
JULHO 2016
aos leitores
Em tempos de mídias digitais e de contatos rápidos e diretos entre povos, países e culturas, as artes, de modo geral, têm sido palco de trocas e ressignificações constantes. Com o teatro não é diferente. Hoje, coletivos brasileiros estão circulando por festivais fora do país e conseguido estabelecer diálogos bastante profícuos. Porém, esse trânsito não é algo novo. Desde a década de 1990, convivemos com o termo globalização, porém os casos de conectividades entre países remontariam a séculos antes, nos anos 1500, quando das grandes navegações. Com o passar dos anos, essa troca cultural só fez aumentar e se consolidar. Atento a esses fluxos, o teatrólogo Christopher Balme coordena o projeto História Global do Teatro, promovido pela Ludwig Maximilians Universität de Munique, Alemanha. Seu objetivo é pensar o papel do teatro nesse processo, que, por ser anterior ao cinema, à internet e à TV, foi um dos primeiros instrumentos para o intercâmbio de realidades estrangeiras. Suas reflexões provocaram a matéria de capa desta edição.
KARINA FREITAS
Há séculos, grupos teatrais cruzavam os mares, levando espetáculos ao Novo Mundo, em excursões que se mostravam um negócio lucrativo. Essa circulação foi fundamental, por exemplo, para que a cultura francesa se propagasse. Nesse contexto, a atriz Sarah Benhardt, primeira a ser considerada uma estrela mundial, trouxe ao Brasil uma montagem de Fedra, no século XIX. Antes disso, na Europa, grupos italianos de commedia dell’arte circularam países, mesmo que perseguidos pela Igreja, que se opunha ao seu caráter francamente profano. Nesses trânsitos, alguns gêneros teatrais se consolidam e se impõem mundialmente. Hoje, os musicais americanos se massificaram, fazendo com que peças da Broadway, como O Rei Leão e Cats, se tornassem verdadeiras franquias. No Brasil, montagens nessa linha têm ganhado espaço junto ao público, tanto na realização de espetáculos originais como aqueles já bemsucedidos. No entanto, essa globalização teatral, que pode gerar padronização, também é capaz de provocar diálogos entre grupos de vários lugares.
sumário Portfólio
Eustáquio Neves
6 Colaboradores
7 Cartas
8 Entrevista
+ Continente Online + Expediente
Raquel Rolnik Professora e urbanista comenta as transformações das cidades brasileiras a partir de programas habitacionais
20 Balaio
Olivia de Havilland Última remanescente do elenco principal de E o vento levou chega aos 100 anos
36 Conexão
Drones Pequenas aeronaves não tripuladas influenciam o consumo, a arte e a guerra
46 História
Antonio Benetazzo Projeto recupera a produção do artista e militante assassinado pela ditadura militar
72
74 Leitura
Romances Ana Cássia Rebelo e Beatriz Bracher expõem questões femininas em Ana de Amsterdam e Azul e dura
O fotógrafo atua como um arqueólogo, trabalhando questões étnicas, religiosas, sociais em imagens submetidas a um sofisticado processo de manipulação
14
78 Entremez
onaldo Correia de Brito R Diálogo exemplar
80 Sonoras
Mixagem Este processo, que acontece após a gravação, amplia o potencial do som e é determinante no resultado final da música
84 Claquete
Baseados em documentos Filmes que fazem uso de arquivos históricos em sua argumentação afirmam a força da palavra na construção narrativa
88 Criaturas
Sylvester Stallone Por Tiago Hoisel
Matéria corrida
José Cláudio Cícero Dias, Vladimir e eu
Cardápio Café
Surgem no Recife pequenas cafeterias de rua que propõem um contato mais próximo com o cliente, apostando na qualidade e variações de filtragem da bebida
52 CAPA ILUSTRAÇÃO Karina Freitas
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Capa
Viagem
Muito antes das mídias digitais, os espetáculos teatrais funcionaram como um eficiente canal de comunicação entre povos, dentro do processo de globalização
Vilarejo incrustado nas montanhas do Himalaia, em território indiano, é a casa do Dalai Lama e local de resistência do povo tibetano
Tradição
Visuais
A bela história do babalorixá da Casa Fanti Ashanti, de São Luís (MA), falecido em 2015, que foi impactado por seus dons espirituais ainda na infância
Os 60 anos de carreira da japonesa estão na exposição Dream come true, em cartaz no Malba de Buenos Aires, com previsão de cumprir temporada no Brasil
Teatro
22
Pai Euclides
60
McLeod Ganj
40
Yoko Ono
64
CONTINENTE JULHO 2016 | 5
Jul’ 16
colaboradores
Bernardo Fonseca de Machado
Clarissa Macau
Lia Beltrão
Renata do Amaral
Antropólogo, ator e dramaturgo do grupo de teatro Cia. Em Versão
Jornalista, especialista em estudos cinematográficos pela Unicap
Jornalista. Trabalha com edição de livros budistas
Jornalista, professora doutora em Comunicação Social pela UFPE
E MAIS Guilherme Novelli, jornalista. Joana Sultanum, fotógrafa. Karina Freitas, designer e ilustradora. Luciene Leszczynski, jornalista. Marcelo Costa, jornalista, doutorando em Comunicação pela UFPE. Editor do site Cinédoc21, atua também como roteirista e diretor. Mariana Camaroti, jornalista, radicada em Buenos Aires. Renata Amaral, musicista e pesquisadora. Tiago Hoisel, ilustrador e quadrinista. Yellow, designer, músico, mestre em Ciências da Linguagem e professor de Jogos Digitais.
MAIS TEATRO
MIXAGEM
Nesta edição, destacamos o teatro como elemento de comunicação entre os povos, resgatando seu papel histórico de fazer circular pelo mundo culturas e informações, muito antes da consolidação das mídias digitais. Como material extra, vamos disponibilizar, em destaque e na íntegra, a matéria de capa da edição 113, de maio de 2010, dedicada à ópera. A série de reportagens e artigos detalha o gênero, tido por muito como elitista, mostrando que ele demanda uma equipe gigante de produção, e que não encontrou ainda, no Brasil, uma política cultural que consiga torná-lo mais acessível.
Após ler a matéria da seção Sonoras, assista ao documentário In my life, sobre o trabalho do produtor George Martin, falecido em 8 de março deste ano.
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HISTÓRIA Conheça mais obras do artista militante ítalo-brasileiro Antonio Benetazzo, assassinado na ditadura militar, cujo legado está sendo recuperado em livro, exposição e documentário.
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO HALLINA BELTRÃO
GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
INTERNET CONTROLADA
ENTREMEZ
Excelente texto de Luiz Carlos Pinto sobre a internet como espaço democrático (Continente #186). De fato, Google e Facebook há tempos deixaram para trás a filosofia de empresas “do bem” para se tornarem grandes monopólios, testando, inclusive, os seus poderes de influência em campanhas políticas, percepção social e desenvolvimento econômico. Imaginar que o Google/Facebook entrega para cada usuário o que a empresa quer que ele veja é tão analógico quanto ligar a TV aberta para esperar pelo Jornal Nacional. Internet precisa ter mais a ver com escolha, descoberta e diálogo. Acho que perdemos um pouco disso nos últimos anos, com muita velocidade. Mas será que não estamos vivendo o mesmo movimento cíclico da internet que ajudou a criar o próprio Google e o Facebook? Só nos resta esperar para ver e participar desse movimento ao mesmo tempo assustador e desafiador.
Acabo de ler – com grande prazer, embora também com tristeza – o artigo de Ronaldo Correia de Brito sobre a leitura em Portugal e sua viagem ao Porto (coluna Entremez da Continente #185). Foi muito bom reencontrá-lo mais uma vez através das palavras.
THIAGO MARINHO
CLAUDIA GOMES OLIVEIRA
RECIFE – PE
RECIFE – PE
JOSÉ CASTELLO CURITIBA – PR
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olivia de Souza (repórter - Continente online)
DO FACEBOOK
Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação)
ALCEU VALENÇA
Agelson Soares (tratamento de imagem)
Parabéns à revista pela homenagem ao nosso grande e genial Alceu Valença! Também quero adquiri-la aqui, no Rio de Janeiro. ANA ANGÉLICA RODRIGUES DE OLIVEIRA RIO DE JANEIRO – RJ
Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Maria Luísa Falcão, Marina Moura, Ulysses Gadêlha e Victória Ayres (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br
Viva Alceu! Tomara, meu Deus, tomara, uma nação solidária, sem preconceitos, tomara, uma nação… ITA MARQUES
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Ele merece nosso carinho e respeito, porque é um artista sério que fala da nossa cultura com expressividade.
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RAQUEL ROLNIK
“O direito dos moradores se tornou irrelevante” Professora e urbanista paulistana discorre sobre as consequências da transformação urbana no Brasil das últimas décadas, foco de seu livro Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia na era das finanças TEXTO Luciana Veras
CON TI NEN TE
Entrevista
De 2008 a 2014, a urbanista paulistana Raquel Rolnik foi relatora especial para o Direito em Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Era um posto para o qual sua trajetória profissional a conduzira com naturalidade. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, diretora de Planejamento da cidade de São Paulo entre 1989 e 1992 e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades entre 2003 e 2007, Rolnik permanece uma das vozes mais lúcidas no debate sobre a urbe, suas contradições e suas perspectivas no Brasil. Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia na era das finanças, publicado pela Boitempo, é, ao mesmo tempo, um resgate das experiências acumuladas durante a relatoria e um “encontro de duas trajetórias”. “Consegui registrar o que vi e elaborar a partir de tudo que conheci ao olhar a questão da moradia no contexto urbano pelo mundo. Ao mesmo tempo, busquei refletir sobre minha cidade e sobre as questões urbanas em todo o Brasil. Passei anos lutando e acreditando em uma cidade
para todos, participando de gestões democráticas populares”, diz a autora em entrevista por telefone, numa manhã de sábado – único instante disponível numa agenda repleta de aulas, pesquisas, viagens e reflexões. Raquel Rolnik se assume “absolutamente estupefata com as transformações que aconteceram na política urbana” e que tal constatação a impeliu a escrever o livro: “O rumo que isso tomou nos últimos 10 anos me fez ver que era muito importante ajudar a entender o que estava se passando aqui e, ao mesmo tempo, no resto do mundo. Falo de um processo absolutamente comum em ambos os casos, porém repleto de singularidades e especificidades”. E o que aproxima, portanto, Brasil, Cazaquistão, Reino Unido, Estados Unidos e África do Sul, alguns dos países retratados em Guerra dos lugares? A existência de milhares de “sem-lugar” e “a submissão da política urbana ao sistema imobiliário financeiro”, na visão da urbanista. Foi também sobre essas consequências em todo planeta, portanto, que ela conversou com a Continente.
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CONTINENTE Guerra dos lugares fala sobre moradia em um mundo governado por um capitalismo feroz. No caso do Brasil, o que sobressai hoje? Como avalia as políticas criadas para mitigar o déficit habitacional? RAQUEL ROLNIK Temos que entender, antes de mais nada, a própria história da política habitacional. Historicamente, o foco estava na produção de conjuntos habitacionais na periferia, desde a experiência do Banco Nacional da Habitação, o BNH. Ali havia uma política e um financiamento em larga escala, até metade da década de 1980, quando o BNH foi extinto. Desde aquela época, tomava-se, a partir da ideia de casa própria e individual, a produção de conjuntos habitacionais como modelo e única alternativa possível. Acontece que o programa Minha Casa Minha Vida é muito mais uma política econômica, com seus grandes pactos políticos, do que propriamente habitacional. É uma máquina de produção de casas, com subsídio do governo, para que as pessoas possam, finalmente, comprar o seu apartamento. Mas é um programa inspirado num modelo
MARTIN HUNTER/THE GUARDIAN/DIVULGAÇÃO
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urbanização incompleta, terra barata é onde não tem cidade. É fora da cidade. Estruturalmente, o modelo pressupõe uma moradia extremamente mallocalizada, dentro da tradição que vem lá da experiência chilena. Para reduzir o custo da moradia de baixa renda para quem ainda não têm casa, é preciso limpar a área que hoje é ocupada por assentamentos informais de baixa renda, assentamentos autoconstruídos, por favelas e ocupações. Há grandes interesses no mercado imobiliário por usos mais rentáveis para esses lugares.
veio do Chile, continua reproduzindo a exclusão. Agora, claro que teve importância muito grande no Brasil o governo reconhecer a necessidade de investimentos do orçamento público em moradia. Foi um enorme avanço, fruto de anos de debates. É importante dizer que ter uma casa, mesmo que seja um apartamento com infraestrutura minimamente construída, é melhor do que a situação anterior. Mas moradia não é só a casa; é também o conjunto de elementos no entorno. É preciso reconhecer os avanços dessa
FOTOS: DIVULGAÇÃO
testado pela primeira vez no Chile de Pinochet, nos anos 1970, e ainda em vigor, sendo reproduzido, de forma semelhante, no México e em outros países emergentes no mundo. E é um programa que tem muito a ver com a ideia de um paradigma neoliberal. Dentro dessa lógica, o importante é o mercado produzir. Qualquer coisa que for produzida pelo mercado, vai ser consumida pelos mais pobres – desde que tenham acesso ao crédito, que vai ser garantido pelo Estado, através de subsídios muito altos.
CON TI NEN TE
“O Minha Casa Minha Vida é muito mais uma política econômica, com seus grandes pactos políticos, do que propriamente habitacional. É uma máquina de produção de casas, com subsídio do governo”
Entrevista CONTINENTE Em 2015, a Continente trouxe o debate sobre o papel da arquitetura e do urbanismo na concepção das cidades contemporâneas. Uma das fontes ouvidas foi Guilherme Wisnik, que fez ressalvas ao Minha Casa Minha Vida, justamente por esses conjuntos habitacionais se localizarem em periferias, afastados da infraestrutura e do resto da cidade. RAQUEL ROLNIK A forma como o modelo é estruturado pressupõe, justamente, terrenos mal-localizados. Existe o preço máximo que o Estado paga por moradia e é ele que paga para as pessoas comprarem esse produto, que atingem um valor máximo de venda. A única forma que as construtoras têm de ter lucro é pagando muito barato pela terra. Acontece que, no nosso modelo de cidade segregada, com
Como lugar para pobre viver não é rentável, eles limpam a área. E essa limpeza tem uma ligação forte com a produção em massa de conjuntos habitacionais na periferia. CONTINENTE O modo como as cidades vão se configurando, com extremos cada vez mais apartados, não termina construindo uma narrativa sobre os tempos atuais? RAQUEL ROLNIK As pessoas tendem a achar que o problema da moradia é a favela e que a favela gera exclusão e violência. Aí raciocinam: vou tirar essas pessoas daqui, desmanchar esse lugar e com isso acabar o problema. Contudo, o que se percebeu na experiência chilena é que a questão é muito mais complexa. Esse modelo que está aí, que
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política e, ao mesmo tempo, evidenciar seus limites, que têm a ver com a montagem e a lógica do programa. CONTINENTE E assim as metrópoles vão expulsando os pobres do centro. RAQUEL ROLNIK Sim, e isso tudo tem a ver com abertura de frentes de expansão para um capital imobiliário e financeirizado que, nas últimas décadas, tem ampliado sua presença e sua força política nas cidades do mundo. O Recife é exemplo muito claro disso. A remoção em massa das terras ocorre nos territórios onde depois aporta esse complexo imobiliário financeiro. Depois de 30 anos da implementação dessa política, em Santiago, por exemplo, não existem mais favelas. A totalidade da moradia popular
está nas periferias metropolitanas e em condições absolutamente criticáveis do ponto de vista urbanístico e social. São guetos de pobres. CONTINENTE Essa constituição não ajudaria a consolidar uma “arquitetura do medo”? No Recife, por exemplo, vemos cada vez mais edifícios altos com muros enormes, ruas escuras pelas quais as pessoas não circulam e os espaços públicos esvaziados. RAQUEL ROLNIK Uma das melhores definições que já ouvi do Recife veio do geógrafo Jan Bitoun, que
observa globalmente. E qual é a grande questão recente da política urbana do Recife? No debate sobre o projeto do Cais José Estelita, percebemos que a cidade se submeteu a essa lógica. O melhor uso para aquele lugar nunca seria o mais rentável do ponto de vista dos investimentos financeiros. A pergunta fundamental para definir o destino de um lugar é: do que uma cidade mais precisa? O que deseja quem mais necessita de apoio para existir nesse espaço? Nos anos 1980, nas regiões metropolitanas, o centro
No entanto, a repercussão do Ocupe Estelita possibilitou um debate maior sobre o uso dos espaços públicos, não apenas em Pernambuco, mas no país inteiro. RAQUEL ROLNIK O Ocupe Estelita nos fez pensar na questão da cidade como um todo, pois se tratava de uma terra pública, e do uso dessa terra pública em uma enorme oportunidade que o Estado teve para pensar em fins de interesse público e de operações não mercantis. Em uma terra privada, vale a política liberal, internacionalmente mercantilizada e financeirizada. O que vem acontecendo é
“As pessoas dizem ‘a cidade precisa ser densa, vamos trazer as pessoas para morar no centro’. Certo, mas aí se propõe uma verticalidade através de construções que não vão adensar, e, sim, gerar renda”
trabalha na UFPE. Embora a cidade tenha desigualdade nas condições de moradia, uma de suas características é uma configuração de proximidade física entre os assentamentos e bairros mais nobres. É muito diferente de cidades como Brasília, ou mesmo São Paulo, em que essa dicotomia centro/ periferia é mais clara. O Recife sempre foi diferente. Há uma quantidade enorme de assentamentos populares tradicionais, extremamente bemlocalizados, misturados no tecido urbano. A estratégia é fazer cirurgia seletiva, tirando daqui para poder disponibilizar essa terra, outrora ocupada pelos territórios populares, para a frente de expansão do mercado imobiliário financeirizado. Isso se
da política urbana passava por uma ideia de inversão de prioridades; era absolutamente necessário reconhecer os direitos dos moradores, da vida deles no entorno da cidade. Esses lugares eram prioridade absoluta. O pensamento foi invertido na década de 2000, quando o direito dos moradores se tornou irrelevante. Embora se saiba da hegemonia do mercado imobiliário, esse não é fenômeno novo. O que é novo nele é a força dessa financeirização do imobiliário, que hoje detém muito mais poder sobre as cidades, e a submissão total da política urbana. CONTINENTE Sobre o Estelita: há quem defenda o projeto do Novo Recife por acreditar que aquela área estaria condenada ao abandono.
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que essa lógica tem sido aplicada para a terra pública. Há uma medida provisória em curso no Congresso Nacional, a MP 700/2015, que permite a desapropriação de terra e sua subsequente incorporação através de PPPs (parcerias públicoprivadas), concessões e planos urbanísticos. É um perigo. Numa escala maior, o projeto do Estelita tem a ver com isso – com a ideia de usar a terra pública como um ativo financeiro. Há a noção de não entender o público como comum, como uma propriedade coletiva dos cidadãos, e, sim, de compreender a terra pública como um ativo financeiro para gerar rentabilidade e recursos para o empreendedor privado. Tudo passa a se resumir à renda e grana. A primeira questão envolvida
no Estelita é: para que servem as terras públicas? O segundo elemento importante é a crença na eficiência da revitalização, na reabilitação de terras abandonadas, e também a ideia de adensamento defendida no projeto. Há uma falácia enorme em torno da palavra “adensamento”.
DIVULGAÇÃO
CONTINENTE Por quê? RAQUEL ROLNIK A primeira coisa é que se confunde adensamento construído com adensamento demográfico. Os lugares mais densos nas nossas cidades
vários assentamentos populares, com gente morando em um cotidiano bem vivo. Como propor uma revitalização com a remoção dessas pessoas? É esquisito. A região dos armazéns estava largada, é verdade, mas a cidade precisa e merece um uso público desse lugar. Volto a dizer que a pergunta fundamental é: qual a melhor forma de ocupar esse lugar hoje para que atenda à função social da cidade e da propriedade? Me parece que, no caso do Recife, com suas demandas gigantes e várias outras descumpridas pelos governantes, torres
CON TI NEN TE
Entrevista não têm um prédio; são as favelas, as ocupações. Densidade quer dizer muita gente em pouco espaço. O modelo de construções de edifícios, como a nossa história opera, nos mostra que há muita área construída para pouca gente. Apartamentos grandes, escritórios grandes, e pouca gente dentro. Historicamente, no Brasil, defendia-se a ideia de que construir prédios gerava, por si só, adensamento. Mas não gera. Há uma pegadinha aí. As pessoas dizem “a cidade precisa ser densa, vamos trazer as pessoas para morar no centro”. Certo, é maravilhoso, mas aí se propõe uma verticalidade através de construções que não vão adensar, e, sim, gerar renda. No caso específico dessa região, cujos armazéns estavam abandonados, há
corporativas e seus jogos de poder não seriam a melhor resposta. Há uma discussão, sim, de qual é o melhor projeto, mas se trata, sobretudo, de uma discussão sobre quem decide o futuro da cidade. Ao estar no centro do debate, o Movimento Ocupe Estelita denuncia que, independentemente das ilegalidades e legalidades do processo, já é um marco do planejamento urbano que aquilo possa ter acontecido dentro de um plano diretor. Há algo errado na regulação urbanista e, nesse caso e em muitos outros, é a sua submissão total e absoluta frente ao sistema imobiliário. CONTINENTE Em um dos capítulos de Guerra dos lugares, você fala de unlock land values, da insegurança da posse no
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contexto dos grandes eventos e de como isso gerou ainda mais cidadãos “sem-lugar”. Como percebe isso neste ano de Olimpíadas no Rio de Janeiro? O Brasil sentiu isso na época da Copa? RAQUEL ROLNIK Tanto num caso como no outro, observando os modelos que a gente viu pelo Brasil com a organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, a tentativa do que se quis implantar na Cidade da Copa, ou o que está sendo realizado na Vila Olímpica, no caso do Rio de Janeiro, o que se vê é um pretexto através do qual são erguidos os projetos complexos do sistema imobiliário financeiro. Nesses casos, com mais facilidade, pois, para se obter um suposto consenso em torno de tais projetos, ocorreram violação de direitos e o não atendimento da própria legalidade e se passou por cima dos processos democráticos de discussão e debates. Nenhum dos projetos foi elaborado com participação pública e popular. Esse é um malogro muito pior do que um 7 x 1. Mas isso não chega na mídia, chega? Essa operação midiática em torno do megaevento não ocorreu apenas no Brasil. Houve processos semelhantes na Cidade do Cabo, na África do Sul, na Índia e também na preparação de Pequim para sediar as Olimpíadas de 2008. Na maquinaria do megaevento, e para não se questionar o consenso em torno dele, a ligação do unlock land values é retirar o uso pouco rentável daquela terra por parte dos pobres em nome de um outro uso. Nesse contexto das Olimpíadas, isso vai aparecer, por exemplo, no Porto Maravilha, um projeto muito discutido e observado no Rio por servir como âncora para as operações de city marketing. A venda desse grande porto para o mercado internacional inclui fundos de investimentos internacionais em que o capital estrangeiro financia a construção de torres corporativas e hotéis. É um tipo de produto imobiliário vendável nesse modelo e nesse circuito. Assim como o modelo que estava se armando com a Cidade da Copa, é o tipo de projeto com uma nova contratualização entre o Estado e o privado, que confere mais poder ao ente privado ao conceber uma regulação pública com menos participação popular e com objetivo final de entregar tudo ao privado. CONTINENTE Dentro desse contexto em que interesses públicos e privados se confundem,
Ministério da Cultura apresenta:
e assim se negligencia uma ideia de cidade, como pensar em formas de resistência? RAQUEL ROLNIK Penso que tudo acaba ativando novas possibilidades de porosidades e resistência. O Ocupe Estelita é o melhor exemplo de um movimento que vem emergindo em várias capitais brasileiras – de contestação da política urbana e de luta pelo direito à cidade e por alternativas para se pensar em outras políticas para o planejamento e desenvolvimento urbanos. Isso é muito importante, mas será que vamos ter força para reverter
Patrocínio:
“A Cidade da Copa é um tipo de projeto que propõe uma nova forma de contratualização, conferindo muito mais poder ao ente privado, ao conceber uma regulação pública com objetivo de entregar tudo ao privado”
essa história? Esses movimentos já encontraram complicações grandes, mas é essencial e imperativo, até, que se ampliem e se articulem. A cidade, hoje, é o palco dos nossos movimentos sociais brasileiros e tem enorme importância política. É nela que operam os movimentos em torno da questão do transporte, pregando a redução da tarifa, e é nela que estão as reivindicações sobre os modos de circular, em torno da questão do uso e da destinação dos espaços públicos. Disso tudo está saindo a formulação de um novo paradigma do direito à cidade. Todos esses movimentos nos dão esperança de que poderemos, sim, reconstruir a plataforma de uma reforma urbana com direito à cidade.
Apoio:
Recife
A Orquestra Criança Cidadã é um projeto social brasileiro, incentivado pela Lei Rouanet, que vem mudando a vida de 330 jovens de 07 a 21 anos através do ensino da música desde 2006, nas localidades do Coque (Recife) e Camela (Ipojuca). Os alunos recebem gratuitamente: aulas de instrumentos de cordas, sopros e percussão, luteria e arqueteria, e teoria musical; atendimento psicológico, médico e odontológico; reforço escolar; três refeições diárias; e bolsas de estudos e intercâmbios. A gerência do projeto é da Associação Beneficente Criança Cidadã (ABCC). CONTINENTE JULHO 2016 | 13
EXÉRCITO BRASILEIRO
Realização:
EUSTÁQUIO NEVES/DIVULGAÇÃO
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FOTOS: MUSEU AFRO BRASIL/DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
Eustáquio Neves
COMO UM ARQUEÓLOGO TEXTO Luciana Veras
“O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível,
o tempo é nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo”… Assim transcorre uma passagem de Lavoura arcaica, escrito por Raduan Nassar em 1975, que bem poderia servir de epígrafe para a obra do fotógrafo e artista visual mineiro Eustáquio Neves. Nascido em 1955, na pequenina Juatuba, José Eustáquio Neves de Paula é um cidadão do mundo. Já morou em Belo Horizonte, São Paulo e Londres, viveu em um povoado de 240 habitantes chamado Extração e hoje reside em Diamantina. Se houvesse seguido o roteiro para o qual parecia destinado, seria químico industrial. Mas largou a profissão para se dedicar à fotografia. Nesse mergulho artístico, rastreia as evidências da passagem das horas, dos anos, das décadas. “Tempo é primordial. Ao longo da minha carreira, fui aprendendo isso. Cada coisa tem seu tempo. Quando você o respeita, tudo flui de uma forma natural”, situa. Neves olha, conversa e trabalha como um arqueólogo. Sem afobação alguma, examina seus objetos de análise para neles ressaltar o transcurso da vida: “No meu trabalho, faço uma interpretação do mundo à minha volta, com vários recortes. A partir deles, tento criar uma narrativa com pequenas fábulas e vários tempos, já que uso diversos negativos. De alguma forma, com todas essas camadas, quero contar aquela experiência visual de vivência com o que está no meu entorno”. Foi assim, por exemplo, na série Arturos (1993-1997), em que observou uma comunidade em Contagem (MG) em que homens negros revivem ritos afro durante a festividade de Nossa Senhora Aparecida do Rosário, propondo
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FOTOS: CAPIBARIBE CENTRO DA IMAGEM/DIVULGAÇÃO
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ealizado em 1997, ensaio de R Eustáquio sobre as peladas de várzea é um de seus trabalhos mais notórios
Nestas páginas 2 CARTAS AO MAR
érie alude aos registros de navios S negreiros no Cais do Valongo (RJ)
3-4 MÁSCARA DA PUNIÇÃO A partir de um retrato de sua mãe (acima), fotógrafo desenvolveu trabalho delicado que envolve colagens e fotopintura (ao lado) 3
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FOTOS: EUSTÁQUIO NEVES/DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
um olhar delicado sobre o sincretismo religioso no Brasil. A mesma sutileza é percebida nas fotografias que compõem Futebol (1997), um dos seus trabalhos mais notórios. Nelas, o artista visual busca não glamorizar uma “pelada” e, sim, enxergar o fenômeno agregador por trás do esporte nacional. “Essas fotos estavam prontas na minha cabeça desde muito tempo. Havia um lugar por onde eu passava todo dia de metrô em Belo Horizonte e sempre via as pessoas jogando bola, até que um dia me chamou a atenção ao ponto de querer registrá-las. Não sou uma pessoa ligada ao futebol, nem mesmo tenho um time, mas sei que é um esporte que socialmente agrupa as pessoas de diferentes classes, independentemente de dinheiro. Quis olhar para o futebol por esse viés”, relembra. Ele transcende a estética para estabelecer conexões profundas com
os itens amealhados nessa arquelogia étnica, religiosa, social. Em O tempo em camadas, exposição com as séries Objetivação do corpo (1999), Máscara da punição (2004) e Dead horse (2009) que o Capibaribe Centro da Imagem/ CCI sediou em fevereiro deste ano, no Recife, percebia-se a experimentação dos negativos não como pirotecnia visual, mas para ampliar o horizonte narrativo de cada obra e revelar tanto do processo como do próprio artista. Máscara da punição, por exemplo, surgiu de uma fotografia antiga da sua mãe, manipulada de modo a exibir o artefato que cobria a boca dos escravos acusados de roubar mantimentos. O mesmo se deu no conjunto imagético de Valongo: Cartas ao mar, mostrado ao longo de 2015 no Rio de Janeiro e no Museu Afro Brasil, em São Paulo. Em uma alusão aos navios negreiros vindos da África, foi criado a partir de uma pesquisa que o fotógrafo fez nos arquivos públicos e na zona portuária da capital carioca. Durante séculos, o Cais do Valongo foi o principal porto de chegada dos escravos – há
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estimativas de que mais de dois milhões de africanos desembarcaram ali. Eles eram negros como Eustáquio Neves; suas vidas e mortes, até hoje, tendem a ser desconsideradas na historiografia oficial brasileira. Para o artista, contudo, a sobreposição de memórias nessas imagens específicas – interferências como carimbos e texturas de tinta dão ao espectador múltipla oferta de significados – simboliza uma reflexão sobre o papel da arte. “Cabe à arte sempre questionar e sempre tentar trazer mudanças com seu questionamento. O que faço hoje, por exemplo, só existe por conta de Arthur Bispo do Rosário”, revela, mencionando como referência o artista negro, pobre e sergipano falecido em 1989, que, ao transitar entre a genialidade e a loucura, redefiniu parâmetros na arte contemporânea brasileira. Como nas peças manufaturadas por Bispo do Rosário, as experiências e os tempos de Eustáquio Neves estão contidos nas suas imagens. “Meu trabalho é autobiográfico. São minhas origens, de onde venho, como vim parar aqui. Afinal, por que estou aqui?”, arremata.
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5 ARTUROS Nos anos 1990, o fotógrafo acompanhou ritos afro de homens negros de Contagem (MG) em festa a Nossa Senhora
6 OBJETIVAÇÃO DO CORPO Série revisita o nu de forma crítica enquanto experimenta delicadas manipulações dos negativos e ampliações
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ESTRATÉGIA PARA OS FÃS
Cem anos de doçura Olivia de Havilland detém alguns marcos na história do cinema. Em 1942, a primeira a concorrer com a irmã ao Oscar de Melhor Atriz; em 1943, a primeira atriz a ganhar um processo contra a Warner; em 1965, tornou-se a primeira mulher a presidir o júri de Cannes e agora, em 1º de julho, a primeira estrela de Hollywood a chegar aos 100 anos. Com isso, é também a única viva dos quatro atores principais de E o vento levou (1939), pelo qual recebeu indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante – em 1940, a premiação agraciou, de forma inédita, a atuação de uma atriz negra, Hattie McDaniel. A segunda indicação veio em 1942, por A porta de ouro, quando disputou com Joan Fontaine, que venceu por Suspeita (Hitchcock). A perda agravou a já difícil relação entre as irmãs famosas. Naquele ano, Olivia passou a questionar o estúdio, que só lhe oferecia papéis com o mesmo perfil. Sua crítica foi punida com seis meses na “geladeira”. A Warner ainda exigiu um retorno financeiro pelo tempo. A atriz, então, processou a empresa e venceu. Em meio à procura por personagens mais diversificadas, a artista recusou papéis que teriam sido importantíssimos para ela, como Mary Hatch (A felicidade não se compra) e Blanche DuBois (Uma rua chamada pecado) – este ficou com Vivien Leigh, que conquistou o segundo Oscar, o primeiro foi por E o vento levou. Hoje, com duas estatuetas de Melhor Atriz, Olivia, nascida há 100 anos no Japão, vive na aprazível Rue Benouville, em Paris, com a serenidade de sua mais marcante personagem, a doce Melanie Hamilton. DÉBORA NASCIMENTO
Seguindo a estratégia de integrar os seus elencos com o público, a Netflix lançou dois teasers da quarta temporada de Orange Is The New Black, no dia 16 de junho, com a participação da web celebridade Inês Brasil. Num vídeo, a brasileira é recepcionada pelas detentas Poussey, Big Bo, Sophia, Daya e Alex no refeitório do presídio de Litchfield. “Se me atacar, eu vou atacar!”, anuncia Inês, hostilizada pelo sarcasmo das personagens. Ela também aparece presa numa cela solitária, conversando com a detenta Paipes. Essas ações tiveram ampla repercussão e viralização no Facebook. Em maio, os integrantes da série Sense8, das irmãs Wachowski, gravaram cenas na Parada LGBT de São Paulo, buscando essa aproximação com os fãs. A Netflix costuma utilizar as redes sociais para estreitar a comunicação, uma vez que seu sistema facilita o reconhecimento da identidade dos espectadores, desde a faixa etária e o sexo até a quantidade de horas assistidas pelo usuário. (Ulysses Gadêlha)
CON TI NEN TE
MURAKAMI E OS FÃS Desde 2012, o nome do escritor japonês Haruki Murakami surge na lista dos possíveis vencedores do Nobel de Literatura e no rol dos favoritos nas casas de apostas. Nunca ganhou, para desapontamento dos fãs. Mas o autor da trilogia 1Q84 tem feito muito para mitigar a tristeza dos seus seguidores. Em 2015, durante um mês, ele respondeu a centenas de perguntas enviadas para seu website – de pedidos de aconselhamento profissional e afetivo a dicas de como lidar com gatos. Agora, oferece um tour virtual por seu escritório, mostrando os 10 mil LPs da sua coleção e os objetos na mesa de trabalho – talismãs, canecas, dezenas de lápis com pontas afiadas. Mais importante do que qualquer premiação, ele costuma repetir, são os fãs, autointitulados harukists. E ele sabe bem como cativá-los. (Luciana Veras)
A FRASE
“É preciso amar não a si mesmo na arte, mas a arte em si mesma.”
K. S. Stanislávski, dramaturgo russo
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ARQUIVO
SEDUÇÃO COMO ARMA Uma das características do cinema noir é a presença de uma bela e misteriosa mulher, geralmente uma espiã, que seduz um homem para extrair alguma informação e/ou para assassiná-lo. Na primeira metade dos anos 1940, enquanto nas telas eram exibidos filmes como O Falcão Maltês (1941), a tática das protagonistas desse gênero passava a ser usada durante a Segunda Guerra Mundial para matar nazistas. Uma dessas heroínas da vida real foi a holandesa Freddie Oversteegen (foto). Ela e sua irmã, Truus, com 14 e 16 anos, respectivamente, convocadas pelo exército de seu país, serviram como iscas para os inimigos. Cada uma delas seduzia um militar num bar, levava-o para uma floresta e, lá, o alvo era surpreendido. Antes de sua mãe pedir divórcio, as moças viviam num barco, em que a família, que era comunista, abrigava judeus. Elas, hoje com 90 e 92 anos, conseguiram escapar do destino cruel da conterrânea Hannie Schaft, descoberta e morta pouco antes do fim da guerra e eternizada no drama The girl with the red hair (1981). Agora, as senhoras, assim como as protagonistas dos filmes noir, também vão parar nas telas, mas no documentário do cineasta holandês Thijs Zeeman, Duas irmãs na resistência. (DN)
Memória transgênera Tudo se deveu a uma pesquisa de doutorado. O professor do departamento de Letras do College of the Holy Cross (MA), K.J. Rawson, queria reunir material impresso que documentasse a recente cultura LGBT nos EUA. Acabou criando uma rede colaborativa por todo o país, em arquivos públicos e privados, que resultou no site Digital Transgender Archive. Funcionando como uma comunidade digital, aberta a novas colaborações, o endereço reúne material vasto, em que se destacam as publicações afirmativas como a revista Turnabout (acima), que publicou fotografias, ilustrações e pequenas narrativas de transgeneridade. O zine Vanguard, publicado em São Francisco, assim como vários dos materiais disponíveis, pode ser lido na íntegra, em PDF. Há o humor como um traço comum entre as publicações, embora também se encontre o erotismo, o drama, o lamento e a voz de luta. Acessar esses materiais traz a clara percepção de como as pessoas enfrentaram os obstáculos que a mentalidade dominante de cada época ofereceu para os que pretendiam assumir diferentes sexualidades, desde recomendações sobre como lidar com os próprios sentimentos e a família, na década de 1960, ao escracho drag queen e o mais recente crossdressing. ADRIANA DÓRIA MATOS
ARTE FAZ BEM À SAÚDE
PRÊMIO AO REPOUSO
Uma pesquisa realizada pela Universidade da Califórnia aponta que assistir a um bom filme, ouvir um disco de qualidade ou visitar uma exposição interessante traz benefícios à saúde. Os pesquisadores entrevistaram 200 jovens, que responderam perguntas sobre o seu dia, o que tinham feito, o que tinham experienciado. Na sequência, eles coletaram amostras de suas gengivas e bochechas, a fim de verificar os níveis de citocina, proteína cuja maior presença se detecta quando o corpo está lutando contra uma infecção e que também está relacionada à depressão. Cruzando os dados, chegaram à conclusão de que aqueles que tinham tido experiências positivas, inspiradoras e contemplativas apresentavam menores taxas de citocina. (Mariana Oliveira)
Passando por esgotamento nervoso e crises de ansiedade, a artista visual sul-coreana WoopsYang resolveu promover uma competição que privilegiasse o repouso e relaxamento. Foi desse modo que, em 2014, ela criou o Space Out, em Seul, evento que reúne pessoas dispostas a não fazerem absolutamente nada. Ao longo de 90 minutos, os participantes não podem rir, cochilar, conversar, checar o relógio ou usar aparelhos eletrônicos. Além disso, a cada 15 minutos a frequência cardíaca de cada um é mensurada. Quem tiver a frequência mais estável ganha a competição. Este ano, houve um recorde: mais de 2 mil se inscreveram para as 70 vagas. “Acho que nos sentiríamos melhor fazendo nada se fizéssemos isso em grupo”, contou WoopsYang em entrevista à Vice. (Marina Moura)
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KARINA FREITAS
CON TI NEN TE
CAPA
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O DIÁLOGO ENTRE POVOS TEATRAIS Um dos primeiros meios de comunicação mundial, o teatro fez circular globalmente culturas e informações para além-mares, antes das mídias eletrônicas existirem TEXTO Clarissa Macau
“Falamos da globalização enfaticamente desde os anos 1990. Mas esse processo começou bem antes. Ao observarmos as grandes navegações e depois as linhas aéreas deslocando pessoas entre potências mundiais e outros países, notamos o consequente crescimento da comunicação cultural no mundo. Qual a importância do teatro nessa história? É o que nós queremos saber”, diz o teatrólogo Christopher Balme, à frente do projeto História Global do Teatro, promovido pela Ludwig Maximilians Universität de Munique, Alemanha. O mundo está na quarta fase da chamada globalização, o conceito que designa a integração entre sociedades intercontinentais econômicas, políticas e culturais. Anteriores ao cinema, à internet e à TV, representações teatrais foram dos primeiros instrumentos para o intercâmbio de realidades estrangeiras.
No século XIX, por exemplo, as produções artísticas não apenas tratavam de difundir cultura, mas eram fábricas de dinheiro e fama. A primeira atriz a ser considerada uma estrela mundial foi a francesa Sarah Bernhardt, célebre pelas cenas de morte impecáveis. A integrante da companhia Comédie Française se apresentou na Europa, Oceania e viajou nove vezes aos EUA de navio, com peças de autores franceses importantes, como o trágico neoclássico Jean Racine e o realista Victor Hugo. Sarah passou pela primeira vez no Brasil em 1886. A sua vinda foi anunciada por toda a imprensa carioca e os ingressos dos seus espetáculos esgotaram rapidamente na capital do império. Balme vê esse fenômeno pontual como um motivador da globalização. “Sarah ajudou a circular o próprio nome pelo mundo e acabou popularizando a cultura francesa. Caso
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contrário, hoje não conheceríamos a peça Fedra, de Racine, no Brasil ou na Austrália”, observa. Excursões que atravessavam o Atlântico se mostravam como negócio lucrativo a companhias que não recuavam diante do cansaço de longas viagens, perigo de doenças como a febre amarela ou das condições precárias para apresentações. Em carta a amigos, registrada no artigo Uma francesa nas terras dos papagaios (2011), de Ezequiel Gomes, Sarah Bernhardt descreveu o Brasil: “Mas que teatro! Ratos e camundongos por toda a parte. Luzes tão fracas, que cenas matutinas parecem ter lugar à meia-noite. Não há acessórios, apenas um sofá duro que me arrebenta as costas. Contudo tenho rido muito”. Os primeiros casos de diálogos artísticos internacionais aconteceram séculos antes, nos anos 1500, quando o Brasil e o continente americano tinham sido recém-descobertos.
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Grupos italianos de commedia dell’arte, compostos por amantes do improviso cênico, viajavam por recônditos lugares do planeta fugindo das instituições religiosas – a Igreja não aceitava os princípios renascentistas dos brincantes, que não colocavam a religião como motivo central das peças – e, é claro, em busca por dinheiro num universo que já ensaiava o capitalismo. “A commedia dell’arte configura a antiguidade da globalização, que começou com Cristóvão Colombo, em 1492, através do descobrimento do Novo Mundo, do tráfico de escravos e das colonizações, originando os novos países e os encontros entre eles, que se intensificaram no século XIX, com as criações tecnológicas dos navios e do telégrafo”, situa Balme. Com o passar dos séculos, diferentes nações travaram contatos através de acordos econômicos, manifestações artísticas e também conflitos. Países mais novos, como o Brasil, ou aqueles que se encontravam em decadência, como Portugal, a partir do século XVI, copiavam os hábitos culturais cosmopolitas de Londres, Berlim, Paris, Moscou e, posteriormente, Nova York, cidades situadas em países vencedores de batalhas como a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais. Hoje, estudiosos apontam como formato teatral mais globalizado o gênero musical de peças americanas da Broadway (Nova York), como O Rei Leão e Cats, largamente consumidos como franquias milionárias espalhadas pelo globo. Balme opina: “Quando rodamos o mundo e percebemos a tendência de um produto que está em Pequim e é produzido por outros profissionais de forma idêntica no Rio de Janeiro, notamos o risco da padronização que a globalização pode causar”. O educador da Royal Holloway University de Londres, Dan Rebellato, trata o termo globalização no seu livro Teatro e globalização (2009) como o meio de gerar lucros apenas aos investidores da indústria cultural. Já o intercâmbio de informações é definido por ele como cosmopolitismo. “Se confundirmos os dois termos, parece que, ao criticarmos capitalismos globais, somos contra o diálogo intercultural. O cosmopolitismo é o crescimento da empatia para com os outros e suas artes”, afirma.
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Autora do artigo Teatro, paisagem e territórios (2012), Silvana Garcia observa que, se pensarmos na globalização como hegemonia de certos modelos, não estamos falando de teatro universal: “A arte pode ser um lugar para transformar o ponto de vista, deslocar o que se tornou hábito, e promover contrapontos às práticas dominantes”.
EUROCENTRISMO
O território europeu tem sido o mais fértil terreno para a interação do teatro. “Enquanto algumas manifestações teatrais, sobretudo do Oriente, mantinham seus segredos guardados, o europeu facilitou o acesso comunicacional.
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Estabeleceu critérios pedagógicos e didáticos desde a Idade Média; o teatro como catequese, como espelho da sociedade, como formador de opinião”, explica o professor de Artes Cênicas da UFPE e encenador João Denys. Em meados do século XIX e começo do XX, os atores brasileiros se queixavam da chegada de trupes europeias de Portugal ao Brasil. Os artistas portugueses ocupavam espaço físico, econômico e conquistavam o público nativo. Organizadora do livro Rotas de teatro entre Brasil e Portugal (2012), a carioca Maria Helena Werneck conta que, no início dos anos 1800, houve um hiato artístico no país preenchido por estrangeiros. “Intelectuais
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1 SARAH BERNHARDT
Atriz francesa lotou casas de espetáculo de vários países, com peças como Fedra
apostavam na presença portuguesa para sanar a falta de novidades, mas acabaram se decepcionando. Os portugueses não queriam correr o risco de fazer uma renovação teatral e deixar de produzir dinheiro. O que se fazia era o que havia de sucesso no mundo inteiro e a intenção era mais divertir que educar”, afirma. O repertório cênico vinha de Paris, a principal referência artística daquele momento, que exportava dramaturgias do melodrama, romantismo e, com sorte, alguns acessórios tecnológicos de iluminação. O realismo, retratando a burguesia com seus conflitos sociais, e as comédias do Teatro de Revista – ambos oriundos da França – fizeram florescer o gosto pelos estudos teatrais no Brasil. No livro Factos e impressões (1922), a atriz portuguesa Lucinda Simões comenta: “Todos os artistas (de palcos portugueses e brasileiros) são franceses de coração. O regulamento que nos dirige é o da comédie française”. Apesar de o realismo não ter durado muito tempo no país, vencido
Entre o século XIX e o início do XX, predominavam na programação cênica do Brasil o realismo e o teatro de revista
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pela popularidade das comédias, produziu importantes obras, como Demônio familiar, de José de Alencar. Embora a França tenha a proeminência na formação das plateias e mesmo da crítica teatral, há uma base eurocêntrica nessa constituição. “Dionísio, da Grécia, Shakespeare, da Inglaterra, Stanislavski, da Rússia, Brecht, da Alemanha, Grotowski, da Polônia.” Ao refletir sobre isso, o dramaturgo e autor da peça Regurgitofagia (2004), o carioca Michel Mellamed comenta: “O que chamamos de teatro europeu parece algo tão vasto e em diálogo tão estreito com a nossa produção, que parte do melhor teatro europeu está sendo feito no Brasil e vice-versa, hoje em dia”.
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2 O VIOLINISTA NO TELHADO
Peça de Joseph Stein expressa a cultura dos migrantes judaicos em Nova York
Mesmo as produções contemporâneas mais prolíficas de teatro, como as norte-americanas, foram tocadas pela cultura europeia. Segundo o pesquisador de dramaturgia americana, o novaiorquino David Savran, “os musicais de Nova York originaram-se de culturas de imigrantes de classe operária da Irlanda, Inglaterra, Rússia e Alemanha, com suas operetas”. Muitos desses europeus que chegaram a Nova York, a partir de meados de 1880, possuíam ascendência judaica. Eram poetas, músicos e atores que levaram ao país óperas populares e o teatro iídiche, originando as peças da Broadway que, além de entreter, instruíam a audiência sobre temas como o preconceito social. Integram esse perfil peças como Of thee I sing, com libreto de George Gershwin, que teve a primeira montagem em 1931, e O violinista no telhado, de Joseph Stein, musical que ficou sete anos em cartaz nos EUA, desde sua estreia em 1964. “Os imigrantes eram tidos como invasores. Indesejados no universo da economia, os judeus se lançaram em negócios próprios e expressaram o que sentiam através da arte, acabando por dominar este setor na América. Ajudaram os afro-americanos a criar a musicalidade jazz, muito empregada nos espetáculos, e exportaram talentos para o cinema hollywoodiano”, esclarece David Savran. Após o período de guerras, os EUA tornaram-se a principal vitrine artística ocidental. Tennessee Williams, autor de Um bonde chamado desejo (1947) – entre outros que fugiam aos padrões das peças da Broadway, calcadas na moral e nos bons costumes, como Eugene O’Neill e Arthur Miller –, começou a ser encenado em outros países, estimulando o pensamento sobre os valores sociais de esquerda. No livro Panorama do rio vermelho – Ensaios sobre o teatro americano moderno, a teatróloga Iná Camargo Costa menciona que “montagens de Miller e Williams feitas por companhias de Cacilda Becker e Tônia Carrero se tornaram mitológicas entre nós (brasileiros)”.
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3 PANTOMIMES JAPONAISES
No final do século XIX, companhias do Japão apresentavam espetáculos na Europa seguindo modelos do teatro ocidental
FESTIVAIS
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OS ORIENTAIS
Já o teatro oriental, que valoriza o gesto e o ritual antes da palavra do drama, como se dá com o Nô japonês e Kathakali indiano, até hoje se mantém conhecido e praticado em pequenos círculos, fora do seu universo de origem. O Japão, por exemplo, por suspeitar que os missionários europeus visassem a conquistas políticas em seu território, manteve-se insulado por dois séculos, até 1858. Após sua abertura, houve troca de saberes. “As traduções de peças europeias e americanas no Japão motivaram o surgimento dos shingeki, dramas modernos de influência ocidental. Certa época, houve culto ao dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, autor de Casa de bonecas, que influenciou os japoneses no ódio às instituições e à moral burguesa, trazendo também discussões feministas em suas peças de tese realista, que exortavam as mulheres a participar do mundo”, afirma Darci Kuzano, autora de Os teatros Bunraku e Kabuki: Uma visada barroca (2011). Artistas vanguardistas ocidentais, como Bertold Brecht, do Teatro Épico, e Antonin Artaud, do Teatro da Crueldade, foram tocados pelo orientalismo em suas obras. “Creio que o cerne do encantamento recíproco Oriente-Ocidente foi porque os ocidentais se encantaram com o antirrealismo oriental e os japoneses se surpreenderam com a novidade do realismo ocidental.
Artistas ocidentais de vanguarda, como Bertold Brecht e Antonin Artaud, foram tocados pelo orientalismo Conceitos como existência (“Ser ou não ser”, de Hamlet), liberdade e Era Moderna, adquiridos nos Estados Unidos e na Europa, inexistiam nos países orientais”, diz Kusano. Em 1899, o grupo do performer japonês Otojiro Kawakami foi o primeiro a chegar à América e Europa. Aplaudido por artistas como Sarah Bernhardt e Pablo Picasso, adaptava seu trabalho a um modelo de teatro ocidental, transformando cenas, antes introspectivas, em melodrama ou em lutas com samurais. No Japão, suas peças mais famosas foram de influência europeia, como uma produção de Otelo, de William Shakespeare. O japonês o achava perfeito para insinuar críticas políticas. “Nos anos 1960, jovens do teatro contemporâneo alegavam que o teatro nipônico havia perdido a sua identidade de tanto imitar o Ocidente. Os diretores Tadashi Suzuki, Shogo Ohta e Juro Kara voltaram a dar ênfase ao desempenho físico dos atores, como na época dos teatros tradicionais”, conta Kusano.
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No século XX, e também nestes primeiros anos do XXI, as turnês das companhias de teatro de país em país foram paulatinamente substituídas pelos festivais, que se espalharam pelo mundo. “É uma circulação mais restrita de público, constituído de artistas e pesquisadores. A lógica econômica resiste de modo diferente. O que é mercantilizado são os valores estéticos, como o experimentalismo e os recursos tecnológicos na cena”, esclarece a professora e pesquisadora de artes cênicas Maria Helena Werneck. “Hoje, no lugar dos empresários que convocavam os atores para as travessias oceânicas, existem curadores estrangeiros que assistem aos espetáculos em diferentes países para convidar grupos ao seu continente”, diz Werneck. Alguns sucessos mundiais de trabalhos brasileiros surgiram assim, como o Macunaíma (1978) do TBC. Outro exemplo é a peça Dizer aquilo que não pensamos em línguas que não falamos, do Teatro da Vertigem, que foi para o festival francês de Avignon, em 2014. “Os principais festivais acontecem na Europa, mas o teatro contemporâneo americano também tem sua força. Os dois eixos do norte são os mesmos de sempre, lá está o dinheiro, a liberdade para experimentação com o financiamento de diferentes formas”, completa. A criadora da revista virtual de teatro Questão de Crítica, Daniele Ávilla Small, comenta aspectos positivos da globalização: “Lidamos com a crescente aceleração da informação. Se a informação está na frente do conhecimento e se a aceleração está acarretando déficit de experiência, então o teatro, que é um lugar de resistências à aceleração, pode oferecer uma experiência singular. O teatro é o lugar de parar, de desligar o celular, de olhar e de escutar, de pensar e perceber. A globalização talvez só faça o teatro ter mais valor”.
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MUSICAIS Ao estilo Broadway
Gênero que une música popular, dança e drama se popularizou no Brasil, tanto em adaptações de textos estrangeiros como em produção nacional
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Os brasileiros são os maiores frequentadores estrangeiros dos shows da Broadway, atrás apenas dos ingleses, de acordo com pesquisas da organização oficial de marketing e turismo da cidade de Nova York, a NYC & Company. Entre 2005 e 2015, o público de brasileiros aumentou em mais de 80%. Renato Rufino é diretor internacional de vendas de espetáculos pelo site Broadway.com. Nascido no Brasil, o paulista mora há 25 anos nos Estados Unidos. Quando vem ao país, vê que os compatriotas já conhecem o seu produto de estilo anglo-americano inspirado em personagens da Disney e em best-sellers, que mistura música popular, dança e drama. “Faço feiras na Europa, Ásia e América do Sul. Antigamente, quando falávamos dos musicais americanos, tínhamos de explicar detalhadamente do que se tratava. Agora, quando vou a São Paulo, sabem o que estamos
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fazendo. Porque as produtoras locais apresentam há algum tempo suas versões baseadas nas peças da Broadway”, relata ele, que em 2013 preparou um coquetel para empresários no Teatro Renault de São Paulo, no qual foi apresentada a primeira versão brasileira da peça da Disney, O Rei Leão. Renato Rufino também é funcionário da produtora Broadway Across America. Viaja ao redor do mundo prospectando quais musicais estrangeiros podem ser interessantes para o público norteamericano. “Na Austrália, foi criado o espetáculo King Kong, que foi vendido para a West End de Londres e com previsão de estreia para este ano na Broadway. Em Nova York, o espetáculo terá que ser mais sofisticado através de composições e roteiros adaptados. Para isso, cerca de U$200 milhões serão investidos. Tudo para agradar aos críticos da cidade, que podem tornar os espetáculos um sucesso, ou derrubálos. Há dois anos, por exemplo, o show do Homem-Aranha precisava vender um milhão em dinheiro por dia, mas rendia metade disso. Foi obrigado a encerrar”, explica.
Profissionais de vendas de espetáculos no padrão “Broadway” viajam o mundo prospectando público e clientes O dinheiro que custeia as apresentações dos EUA vem de fundações de caridade e multinacionais, que doam em troca da isenção de taxas públicas. Os empresários norte-americanos, com o desejo de expansão econômica, montaram empresas como a Disney Theatrical Productions, que criam catálogos de franquias de peças, figurinos, roteiro e licença para serem vendidos internacionalmente. Sobre o negócio, o dramaturgo inglês Dan Rebellato critica: “Shows como Cats e Mamma mia são produções engenhosas apresentadas no mundo inteiro, mas se inserem num objetivo de lucro. A peça O Rei Leão é uma ‘enorme’ propaganda para a venda dos seus
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suvenires”. De forma similar aos norte-americanos, o Brasil aderiu ao financiamento através do mecenato, pela Lei de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet, em 1991. Os montantes vertidos para megaproduções dos musicais brasileiros são altos. Segundo matéria publicada pelo jornal O Globo (“Concentração de verbas públicas para musicais divide a classe musical”, publicada em janeiro de 2013), por exemplo, “a empresa Aventura e Entretenimento levantou R$10,6 milhões às temporadas carioca e paulista de Rock in Rio, o musical”. Enquanto isso, cada edital público, como o Myrian Muniz, da Funarte, e os Fundos de Cultura oferecem cerca de R$ 300 mil por estado, valor que deve ser dividido entre uma dezena de companhias não comerciais. A professora da Unirio e pesquisadora de histórias globais de teatro, Maria Helena Werneck, aponta, em entrevista à Continente, os limites do mecenato brasileiro, “O Estado brasileiro nunca tomou para si a tarefa de produzir teatro. Esses teatros servem para conservar a tradição e incentivar
Página 25 1 KING KONG Austrália criou musical, que
já foi vendido para Londres e Estados Unidos
Nestas páginas 2-3 O REI LEÃO E CATS
Produções da Broadway tornaramse marcas lucrativas, faturando inclusive pela venda de suvenires
artisticamente, como faz a França. O governo subsidia o teatro nacional da Commedie Française, encenando peças tradicionais ou contemporâneas”.
ARMA DE PROTESTO
Desde o Renascimento, o teatro é um negócio. No século XX, após a Segunda Guerra Mundial, reivindicações em favor dos direitos humanos e contra a barbárie se somaram às tendências socialistas de proteção da arte pelo Estado, difundidas pela União Soviética. Na conferência A arte secreta do teatro, proferida em 8 de dezembro de 2012, em São Paulo, o encenador italiano Eugênio Barba, criador do Teatro Antropológico, apontou a transformação dessa arte em algo para além do mercado. “Os jovens fizeram oposição aos governos tiranos. A total ruptura da hierarquia na universidade, a chegada do rock e do feminismo indicavam que muitos não queriam mais fazer teatro para ganhar dinheiro, mas para usá-lo como arma de protesto.” Hoje, as ações artísticas são prejudicadas pela crise econômica mundial, que assola o Ocidente desde 2008. Ao realizar cortes nas despesas governamentais destinadas à arte, as nações tentam se equilibrar economicamente, ameaçando a existência de seus teatros nacionais e pequenos grupos engajados. A Alemanha, nação conhecida por incentivar a cultura, hoje lida com o problema, assim como outros países europeus. Os alemães estão em meio a uma polêmica na qual se perguntam: “É responsabilidade do Estado alemão cuidar da cultura?”. Segundo o artigo Patronage and crisis: German theatre and cultural politics (2012), de Jonas L. Tinius, “Relatórios governamentais de 2010 convocaram museus, teatros e festivais (alemães) a ‘estruturarse como empresas modernas’. Sem isso, cada parte da instituição cultural fechará até 2020. Os pesquisadores, ao
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compararem estatísticas da Alemanha, Suíça e Áustria, defendem que um patrocínio cultural desorganizado criou ‘muito do mesmo em todos os lugares’. A concepção da solicitação governamental é: ‘(…) pedimos mais espírito empresarial, mais envolvimento com as necessidades da audiência. E o conhecimento de que arte não vai mudar os problemas do mundo’”. Por mais suspeito que pareça, esse é o veredito da maioria dos governantes do mundo.
VERSÃO BRASILEIRA
No final dos anos 1990, o Brasil estava pronto para tornar realidade o sonho de artistas e empresários em construir uma espécie de Broadway brasileira. Para o crítico musical Ubiratan Brasil, o
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formato das peças americanas se insere facilmente em nosso público, como é o caso de Hair spray ou A gaiola das loucas, dirigidas por Miguel Fallabella. “Desde pequenos, somos habituados a viver com a cultura americana, desenhos da Disney, filmes dramáticos e de aventura. Parte de nosso imaginário é construído a partir de conceitos americanos. Assistir a um musical típico da Broadway não nos é estranho”, constata. No Rio de Janeiro e em São Paulo, há uma notável fidelização de audiência aos musicais. A produtora Aventura Entretenimento é uma marca importante na indústria músico-teatral brasileira. “Começamos fazendo musicais internacionais, como o Mágico de Oz.
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Absorvi a técnica, o jeito, modos de escrever. Até que o público e o elenco amadureceram”, afirma Aniela Jordan, uma das donas da empresa, criada em 2008 e que hoje investe em biografias brasileiras, tendo em seu portfólio sucessos de audiência como Elis – A musical, que versa sobre a vida da cantora Elis Regina, e Chacrinha, sobre o rei dos auditórios. As peças dialogam com as estéticas televisiva e cinematográfica. “A tendência é fugir de padrões. Trazemos parcerias de fora do musical. Quando convidei o (diretor de novelas) Dennis Carvalho para fazer Elis, ele, que nunca tinha dirigido uma peça, apavorou-se. Mas olha o resultado: 250 mil espectadores e um Prêmio Shell de melhor atriz para Laila Garin, uma das atrizes que interpretam Elis. A ideia é trazer um olhar de outro segmento para quebrar a influência de musical americano”, conta a empreendedora. O ator Léo Bahia, 24 anos, encenou peças elogiadas como a montagem universitária de The book of mórmon, e interagiu com 420 profissionais na megaprodução Chacrinha,
De acordo com críticos, o musical brasileiro diferenciase do norteamericano por buscar encenações originais interpretando também Lúcia, na versão de João Falcão para a Ópera do malandro. “No musical, apesar de ser um processo compacto, existe pesquisa. O ator tem um lucro maior, por conta do grande interesse do público e patrocínio”, diz Bahia. Há quem qualifique de engessado o gênero musical. O coordenador do Prêmio Bibi Ferreira, que é específico para musicais paulistas, Marllos Silva, diz que o musical é diferenciado no país. “Há apenas uma produtora no Brasil, a T4F, que produz musicais no formato de franquia baseado na Broadway. As outras adquirem os direitos do texto e das músicas, mas suas encenações são originais. Há liberdade de criação, com menor espaço para improvisos e erros.”
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A versão nacional do musical alemão Cabaré – lançado primeiramente nos palcos de Nova York, em 1966, e depois na versão cinematográfica, protagonizada por Liza Minnelli – é um exemplo. A peça brasileira é considerada mais densa que a original da Broadway. Crítico teatral, Miguel Arcanjo Prado diz que o musical é capaz de oferecer mensagens profundas para um público amplo. “A versão com Claudia Raia ressaltou o horror ao nazismo e o lugar da mulher artista. Já o musical Priscilla, a rainha do deserto falou de respeito ao homossexual.” Contrariando a ideia dos musicais caros, com ingressos que variam entre R$ 20 e R$ 300, o ator Cleto Baccic juntou-se à produtora Atelier de Cultura para disponibilizar gratuitamente ao público de São Paulo musicais de alto padrão de qualidade. A madrinha embriagada e O homem de La Mancha, ambos dirigidos por Miguel Falabella foram apresentados no Teatro Sesi da Avenida Paulista. “O público é o mais variado possível e pode vivenciar um espetáculo antes restrito às classes abastadas. Pessoas são atraídas pelo gênero e começam a procurar no teatro musical uma vertente da cultura”, diz Cleto. Misturando as linguagens do musical com o protesto, e seguindo exemplo das peças da década de 1960,
Artigo
BERNARDO FONSECA MACHADO AS ASPIRAÇÕES TRANSNACIONAIS Quando se trata de musicais no
4 ELIS, A MUSICAL
A produção dialoga com a estética televisiva e com a cinematográfica
5 GAIOLA DAS LOUCAS Miguel Falabella adaptou o texto e atuou ao lado de Diogo Vilela
Rei da vela e Roda-viva, dirigidas por Zé Celso Martinez, o carioca Felipe Vidal e seu grupo de pesquisa Complexo Duplo montou o espetáculo Contra o vento – Um musicaos. “A temática nostálgica fala sobre o Solar da Fossa, uma pensão pela qual vários artistas tropicalistas, como Gilberto Gil e Gal Costa passaram. Trocando nomes de personagens e inserindo composições originais, conseguimos atingir perfil mais ‘dionisíaco’, longe do teatro disciplinado euroamericano e retornando às raízes de um protesto político alegre e brasileiro”, diferencia. O antropólogo Bernardo Fonseca Machado está escrevendo o estudo Empreededorismo na “Broadway brasileira” (leia artigo dele ao lado). Fonseca observa que é nesse gênero que muitos brasileiros têm seu primeiro contato com o teatro: “O musical atrai mais facilmente. Além do apoio da grande mídia, tem convenções próximas das ensinadas no cinema e na novela. Enquanto uma pesquisa experimental tem um público muito mais demorado de se fazer, o teatro linear chama a família”. CLARISSA MACAU
Brasil, é comum ouvirmos que “o país é o terceiro maior produtor do mundo, ficando atrás somente da Broadway, em Nova York, e de West End, em Londres”. Essa afirmação circula no boca a boca de atrizes e atores, nas entrevistas concedidas em coletivas de imprensa, nos momentos de negociação para patrocínio, em jornais e revistas impressos, e assim por diante. O Brasil aparece como uma promessa – econômica e artística – no que concerne à produção de teatro musical. Todas as vezes em que ouvi a declaração, perguntei curioso: “Qual a fonte dessa informação?”. Gostaria de saber quem havia promovido a pesquisa, conhecer os dados, quais eram os critérios para a análise e classificação dos países… Contudo, meus interlocutores, até o momento, não souberam me responder. Sendo assim, a informação circula sem que seja questionada sua origem. Não estou dizendo que ela seja falsa – não tenho dados para dizer isso –, mas chama a atenção para que sujeitos envolvidos com musical gostem de acreditar na protuberância da produção brasileira. A pergunta que podemos realizar é: por que essa frase faz sentido, mesmo sem a comprovação factual de sua veracidade? Quando falamos de teatro musical, uma das palavras que vêm a mente é “Broadway”. Trata-se de um distrito espacial em Nova York, que passou a ser considerado relevante por seus espetáculos musicais de grande porte e apuro técnico e artístico. Atualmente, há produções estadunidenses que levam a marca “Broadway shows”, acontecendo no Brasil, na Alemanha, Argentina, Austrália, China, Coreia do Sul,
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Escandinávia, Filipinas, França, Holanda, Japão, Noruega e Tailândia. Por exemplo, a Coreia do Sul, desde os anos 1980, é palco de espetáculos musicais americanos. Segundo a socióloga Hyunjung Lee, a noção de “Broadway” transcendeu a definição de uma mera localização física e passou a evocar glamour, sucesso global e a corporificação daquilo que seria um teatro “outro” e “superior”. O impacto dos musicais da Broadway na Coreia do Sul levou, nos anos 1990, à criação de uma versão coreana dos musicais, isto é, espetáculos criados no formato Broadway, mas com conteúdo local. Segundo a pesquisadora, os produtores alegam que uma peça com estilo Broadway permitiria ao país asiático assumir uma identidade global, em diálogo com o “Ocidente”. Talvez o Brasil não seja tão diferente da Coreia do Sul. Notamos como paira certo desejo de importação dos musicais da Broadway: atuar num musical e assisti-lo representam valores importantes para alguns. É como se, ao incorporar “o outro”, “o estrangeiro”, via músicas, danças e histórias, nossos intérpretes e nosso público assumissem sua alteridade e pudessem se tornar algo diverso do que cotidianamente são. É como se os musicais fizessem sentido experimentados no “corpo” nacional – na própria pele dos brasileiros –, como se houvesse uma ânsia por absorção e experiência. Afirmar que o Brasil é “o terceiro maior produtor de musicais do mundo” seria uma das maneiras de inserir o país em uma suposta rota global de circulação de teatro, de signos e de valores. E essa aspiração não está presente somente no Brasil. A circulação de bens culturais (como espetáculos musicais) pelo globo nos ajuda a compreender o fluxo de informações, capital e repertórios simbólicos em âmbito transnacional. Há algo em comum pairando nos diversos reinos.
CON CAPA TI NEN TE
JOSÉ CARLOS DUARTE/DIVULGAÇÃO
FESTIVAIS Comunidades internacionais
No Brasil, como em outros países, esses encontros deixaram de ser vitrines e passaram a ser espaços de pesquisa e trocas entre agentes teatrais
Os festivais deixaram de ser
vitrines e passaram a ser espaços de convivência. Grandes festivais como o de Teatro de Curitiba, o LatinoAmericano, em São Paulo, o Cena Brasil Internacional, no Rio de Janeiro, e o Janeiro de Grandes Espetáculos, no Recife, afinam-se à tendência contemporânea de diálogos entre referências exteriores e novos parâmetros interculturais. Grupos e encenadores brasileiros têm conquistado espaços em festivais estrangeiros como o Mouseonturm, em Frankfurt, e o Festival Internacional de Teatro Anton Tchekhov, em Moscou, casos de, por exemplo, Antonio Araújo, do Teatro da Vertigem, de São Paulo, e Christiane Jatahy, da Cia Vértice, do Rio. Apesar da existência de nomes já consolidados, o crítico Ubiratan Brasil acredita que a participação brasileira não é suficiente. “Vivemos de exemplos raros de companhias que buscam algum reconhecimento no exterior, mas voltam com alguns prêmios sem, contudo, uma possibilidade de continuidade. Temos que exibir mais nossas produções. Como os grandes mercados são fechados, só nos restam os festivais”, diz.
A dificuldade não está apenas em acessar outros países, mas o território nacional. As próprias cidades se mostram como terrenos espinhosos. Morador do Recife, o ator Pedro Vilela, ex-membro do grupo Magiluth e atual gerente da plataforma de ações teatrais Trema!, aponta: “Vivemos num lugar com diversos prédios abandonados, sem uma cultura de ocupação por parte das pessoas, nem dos artistas. Há também a dificuldade de circulação pelo Brasil, porque se exige custo de criação, produção e execução. No teatro, há espacialidade. A equipe precisa se locomover com diferentes equipamentos para todo canto e nada pode faltar”. Com o Magiluth, ele visitou quase todo o Brasil, até mesmo o Amazonas, uma das regiões mais inacessíveis para os artistas. Conseguiu a façanha graças a editais públicos. Contudo, mesmo sem apoio, os grupos projetam iniciativas para que a cultura do teatro não se perca na cidade. Foi assim que Vilela, junto ao ator Thiago Liberdade e à produtora Maria Rusu, decidiu criar, em 2012, um festival totalmente independente de
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editais ou leis em suas primeiras edições. O Trema! – Festival de Teatro do Recife tem o objetivo de trazer influentes grupos de pesquisa para a cidade. “O fazer é caro, mas está em prática a reflexão em torno dessas novas possibilidades de compartilhamento. Se o estado não dá conta, precisamos criar estrutura. Foi extremamente importante trazer o grupo mineiro Espanca! em 2013, por exemplo. Um dos principais grupos do país. Criamos novas modalidades de cachê, porque eles sabem que não temos os recursos justos. Mas, ao mesmo tempo, existe o nosso desejo de recebê-los e o deles de vir”, conta Vilela. Em 2016, no final do mês de abril, o evento ganhou a primeira versão com patrocínio, contabilizando um orçamento de cerca de R$ 60 mil. “A mobilização do público nos últimos anos provocou visibilidade para conseguirmos um pequeno, mas primordial, auxílio da prefeitura do Recife e do estado de Pernambuco”, diz.
1 INTERCÂMBIO
O grupo português Mala Voadora participou do Trema!, em 2015, apresentando o espetáculo Hamlet
trabalha com improviso. Uma pesquisa praticamente simultânea à apresentação. Já o Mala é diferente, eles só levantam o espetáculo após ensaiarem dois ou três meses.”
INTERCÂMBIOS
Em maio do ano passado, a terceira edição do Trema!, recebeu dois grupos internacionais, o português Mala Voadora, versátil e de humor refinado, e o brasileiro-argentino Mazdita, que busca concretizar performances humanas interagindo com dispositivos eletrônicos. A casa de Vilela virou um dos albergues. Não foram poucas as vezes que hospedou atores de outros estados e países. O lisboeta Jorge Andrade, do Mala Voadora, foi um dos hóspedes do pernambucano com quem, ainda quando ele fazia parte do Magiluth, começou a produzir alguns projetos dramatúrgicos. Espécie de residência sem patrocínio, na qual cada grupo passava 15 dias no país do outro. “Quando o Magiluth viajava para Portugal ficava na sede deles – uma estrutura bastante diferente da nossa brasileira -, que conta com teatro e lofts, que podem abrigar grupos em residência”, lembra Vilela.
Para se viabilizarem, os festivais criaram modalidades de cachês, acomodações e lugares de apresentação “Nós nos conhecemos no Cena Internacional. Impressionei-me com a vitalidade do Magiluth. Era algo com discurso e corpo. O fato de falarmos o português também nos uniu. O Mala Voadora sempre procura qualidade artística em pessoas fora do nosso habitat, para uma imersão em outra realidade”, diz Andrade. Pedro Wagner, membro do grupo pernambucano, compara os perfis teatrais. “O ambiente dos festivais é uma possibilidade para trocarmos metodologias. O Magiluth
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O grupo Mala Voadora, que já viajou por 14 países apoiado pelo governo português, está acostumado a estabelecer parceria com estrangeiros. “Chegamos a fazer peças nas quais conversamos nós em português e o outro grupo na sua língua. É interessante confrontar o que é estranho.” Foi o caso do grupo britânico Third Angel, companhia que utiliza o hibridismo com o cinema, desenho, standy up comedy e a live art. O integrante Alexander Kelly comenta: “O grande ponto da colaboração é construir algo que nenhum dos grupos envolvidos possa fazer só”. Artistas do Brasil e da Argentina se juntaram para formar o Coletivo Mazdita. O argentino Leandro Olivan e a brasileira Flavia Pinheiro, com colaboração de outros estrangeiros, usam táticas de guerrilhas baseadas na improvisação. Trabalham através da quebra das fronteiras entre performances, teatro e tecnologia. “O Coletivo Mazdita pesquisa o desenvolvimento de dispositivos eletrônicos que estabelecem uma relação entre o corpo em movimento e o espaço com os objetos. Através de plataformas interativas, propomos intervenções urbanas, instalações e vídeos. Atualmente, trabalhamos na pesquisa Organ City Rizoma, um entorno rizomático de captura de movimento, e no procedimento Diafragma, que envolve o corpo e as tecnologias de produção de ruídos, imagens e sensações”, diz Pinheiro. Dessa forma, buscam transformar, principalmente em países latino-americanos, os espaços públicos de grandes cidades numa conexão complexa entre humanos e corpos estranhos artificiais, símbolos das extensões de nossa natureza no mundo. (CM)
CON CAPA TI NEN TE EDITORA PERSPECTIVA/DIVULGAÇÃO
Entrevista
JACÓ GUINSBURG “NUNCA SE TEVE TANTA REPULSA E VONTADE DE CONHECER O OUTRO” “Críticos vivem falando que o
teatro está em crise e continuam escrevendo sobre ele. Seu poder de comunicação diminuiu, mas a arte está em plena atividade”, ressalta o pensador da Moldávia, radicado ainda criança no Brasil, Jacó Guinsburg. Com 95 anos e voz firme, ele acredita que o teatro, a cada dia, toma mais consciência do que é o ser humano. Há cerca 50 anos, o professor, ensaísta e crítico cuida de uma das mais importantes editoras de livros do Brasil, a Perspectiva, que tem mais de 200 títulos de autores nacionais e internacionais, entre os quais vários que colaboram na ampliação do conhecimento sobre as artes cênicas. Entre obras de sua autoria estão o Dicionário do teatro brasileiro e Aventuras de uma língua errante, na qual discorre sobre a circulação de teatro ídiche e judeu pelo mundo. Nesta entrevista, Guinsburg comenta sobre a circulação mundial do teatro, com suas impressões sobre as mudanças dessa arte no último século, a influência judaica no teatro internacional e o desejo do artista em conhecer culturas estrangeiras. CONTINENTE Como o senhor, em quase 100 anos de vivência, observa os processos de mudança do teatro? JACÓ GUINSBURG A mudança decorre da tomada de consciência do teatro e de suas próprias possibilidades diante do seu local de origem. As conceituações vieram limitadas por determinadas culturas. À medida que essas foram tomando consciência de si, por análise da ordem sociológica, antropológica e estética, a sua ampliação tornou-se natural, de modo que os conceitos que serviam de base para o teatro convencional passaram
a sofrer uma transformação. Às vezes, quando se falava em dramaturgia, só se pensava no texto. Hoje, já se verificou que a dramaturgia não nasce só do desejo de quem escreve a peça. Mas de colocações que existem na cultura humana. O teatro é um produto da vivência humana e, assim, o que é dramaturgia tem uma abrangência muito maior do que aquela que estava limitada por determinados conceitos socialmente aceitos. CONTINENTE O teatro ídiche e judeu foi uma grande influência para a Broadway. Como os judeus se inseriram no teatro norte-americano? JACÓ GUINSBURG Os judeus influenciaram como tantos outros. Por exemplo: a ópera italiana teve muita influência na ópera americana. Você encontra muitos nomes de atores e de diretores ítalos. É a mesma coisa, acontece que o Novo Mundo estava em pleno desenvolvimento e havia uma grande recepção de ideias. Já o teatro judeu começou a se desenvolver na Europa oriental, principalmente no império saarista,
“O Ocidente foi aceitando as heranças teatrais de outros povos como dados na sua própria formulação de teatro” depois foi proibido na língua de origem ídiche por milênios. Assim, muitos atores imigraram para os EUA e tiveram um enorme impacto no teatro americano. A partir desse interesse contínuo pelo teatro das gerações vindas dos imigrantes que saíram do Leste Europeu para lá, no século XIX, até hoje se pode ligar os judeus à Broadway, Hollywood ou ao Actors Studio. Alguns atores judeus tiveram teatros próprios que eram frequentados também por imigrantes e famílias teatrais. Como a constituída por Stella Adler, filha de um dos maiores atores da língua ídiche, Jacob Adler, que era um judeu russo. Além disso, o teatro judeu havia começado com uma proposta
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estética mais definida por buscas políticas e sociais, que influenciaram os esquerdistas. Outros levaram aos EUA ensinamentos de Stanislavski e Meyerhold. A grande concentração judaica se integrou ao próprio movimento de cultura nova-iorquina, um dos focos mais importantes da cultura americana moderna. CONTINENTE Existe um teatro autenticamente brasileiro? JACÓ GUINSBURG As culturas são produtos nos quais os cruzamentos de ideias são fundamentais. A mistura do branco, índio e negro resultou numa cultura que se colocou para o outro. De modo que, quando um brasileiro interpreta
predomínio europeu que começa a se dissolver a partir do século XX em função da globalização dessa cultura. A linguagem inicial da tecnologia, que hoje é universal, foi a ocidental. Mas muita coisa que o Ocidente desenvolveu, na verdade, não nasceu no Ocidente. Vide a pólvora, a bússola, de certa forma parte do teatro também.
Shakespeare, é teatro brasileiro. Mas, se ele vai interpretar uma peça, candomblé, ou ritual indígena, dizer que isso está no gene já é contestável. As individualidades culturais são causas de processos, não causas determinantes. As características cruzam com numerosas outras. Ninguém vive sem sua cultura, mas isso é transformado através da sua maneira de ver as coisas. CONTINENTE Qual o motivo do teatro eurocêntrico ainda ser o mais conhecido no mundo? JACÓ GUINSBURG A partir do Renascimento, o mundo europeu cresceu em termos de desenvolvimento técnico e político,
que o colocou como dominante no mundo. O seu poder de invenção se universalizou de tal modo, que ele englobou muita coisa de outras culturas. Isso não quer dizer que o teatro oriental não tivesse tido repercussão no seu contexto. Se fosse feito um levantamento de espectadores nos seus continentes, talvez fosse até maior que o teatro ocidental. No processo de imposição, o Ocidente foi aceitando as heranças teatrais dos outros povos como dados na sua própria formulação de teatro. Pensadores como Eugênio Barba e Jerzy Grotowski, vencidas as restrições de época e mentalidade, acabaram introjetando todos os elementos possíveis. Houve o
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CONTINENTE Existem dramaturgos que tiveram contato direto com outras culturas. Como Eugênio Barba, que ambicionava abraçar tradições cênicas de outros continentes. De onde parte esse desejo pela busca do outro e sua cultura, e como isso transforma o pensamento artístico? JACÓ GUINSBURG O “outro” é inerente ao ser humano. O problema da cultura é o infinito que sempre está abrindo as fronteiras para o desconhecido. Temos as vanguardas apocalípticas que querem acabar com tudo, refazer, e com o tempo se tornam integradas com as ideologias do seu tempo, mesmo querendo destruir tudo no início. Todas as formas políticas, filosóficas surgem da inovação por vezes negando o que estava ao seu lado. Os horizontes se modificaram. Não se pensa a Austrália como há 100 anos. Quando eu era adolescente, era distante, hoje é ali. Porém, essa consciência não quer dizer que estamos integrados. A própria globalização gera o movimento contrário. Então, você nunca teve tantas reivindicações localistas como hoje, a globalização trouxe a consciência e o meio de comunicar a consciência. O outro se tornou maior que essa relação. Isso tudo gerou uma consciência de diversas culturas e, ao mesmo tempo, diria, uma distinção maior do outro. Veja, o catalão quer ser só catalão, não quer mais ser espanhol. Essas coisas já existiam. Era de ordem tribal, depois passou à ordem regional e à ordem nacional. Foram ordens que se sobrepuseram, mas não se eliminaram. Essas noções de parentesco ainda existem. Essa consciência do próximo gera tanto as barbaridades quanto os movimentos de simpatia e de compreensão. Nunca se teve tanta repulsa e vontade de se conhecer o outro. (CM)
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Conexão DRONES O futuro está no ar
Ainda sem legislação específica, uso das pequenas aeronaves modifica a forma como nos relacionamos com consumo, arte e guerra TEXTO Yellow
O ruído é a matriz do nome. No original em inglês, o termo drone significava “zangão”, o inseto e seu zumbido. A denominação surgiu no começo da Segunda Guerra Mundial, quando aeronaves-rádio controladas eram usadas como alvos para a prática de tiro. A metáfora não parava aí. Zangões são machos sem ferrão, que as abelhas matam após o acasalamento. Os drones são úteis, portanto, porém dispensáveis, feitos para serem descartados após o uso. Hoje, o termo é praticamente sinônimo de pequenas aeronaves não tripuladas com várias hélices. Mas não podemos resumir os drones aos quadricópteros, tampouco aos equipamentos voadores. Os dispositivos para a realização remota de tarefas tomam diversas formas, dos submarinos que exploraram a carcaça do Titanic às sondas que reviram pedras em Marte. O conceito também não é novo.
Em 1965, o engenheiro John W. Clark descreveu, no artigo Remote control in hostile environments, publicado pela revista New Scientist, uma proposta para a operação de ações em ambientes hostis através do uso de veículos operados à distância por pessoas situadas em locais seguros. A máquina telequírica (neologismo criado por Clark para “tecnologia de manipulação à distância”) deveria ser considerada “um alter ego para o homem que a opera. Sua consciência é efetivamente transferida para um corpo mecânico invulnerável, com o qual é capaz de manipular instrumentos ou equipamentos quase como se os estivesse segurando com suas próprias mãos”. A vantagem de tal dispositivo seria permitir a presença humana em lugares inóspitos, e o engenheiro forneceu um modelo com o batiscafo, que é um presciente exemplo dos submarinos não tripulados que se tornaram corriqueiros hoje.
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Os dois espaços em que acontece a ação telequírica são divididos por uma fronteira assimétrica. Ela bloqueia os perigos do ambiente hostil às pessoas que operam o drone, enquanto permite a interferência dessas pessoas na zona em que ele atua. Tal assimetria é dissecada em A teoria do drone, de Grégoire Chamayou, livro publicado no Brasil pela Cosac Naify. O filósofo francês produz uma profunda recapitulação da história dos drones, porém foca em uma análise crítica do uso dessas máquinas na guerra e seu profundo impacto nas relações exteriores e na escalada do terrorismo, o que, acredita, é uma resposta lógica à injustiça da chacina promovida pelos Estados Unidos com seus ataques a países como Paquistão, Iêmen e Somália, sob a chancela da interminável “guerra ao terror”. A propaganda americana chega ao cúmulo de criar o estresse
tecnologia emergente, que abandonou de vez o jornalismo para se dedicar ao que, na época, era apenas um hobby. As filmagens aéreas são um dos campos mais influenciados pelos drones. Basta ligar qualquer canal de TV durante alguns minutos, e vemos imagens aéreas ágeis e nítidas, impossíveis de serem captadas por helicópteros ou gruas. Canais inteiros, como o dedicado a esportes de aventura off, devem sua estética às belas imagens capturadas por drones, que permitem closes de tirar o fôlego em surfistas e alpinistas. Porém, a indústria audiovisual está longe de liderar o ranking das que mais usam essas aeronaves. Na mesa-redonda Empreendedorismo no setor de drones, que aconteceu em 12 de maio, durante a terceira edição DroneSHOW Latin América, em São Paulo, o organizador da feira e mediador do debate Emerson Granemann soltou: “90% do mercado de drones é militar,
Essas pequenas aeronaves não tripuladas dominam cada vez mais programas de TV e mercados pós-traumático para os pilotos de drones, desmontado por Chamayou, que demonstra que a própria definição da psicopatia já exclui o operador, que não corre risco algum enquanto perpetra a violência.
START-UPS VOADORAS
Segundo a revista Forbes, o uso comercial de drones em setores como fotografia, imóveis e energia deve gerar este ano, apenas nos Estados Unidos, investimentos de 2,3 bilhões de dólares. Em 2025, o impacto econômico deve dobrar, superando 5 bilhões. As aeronaves não tripuladas fizeram com que Chris Anderson, editor-chefe da revista Wired, entre 2001 e 2012, e autor do livro A cauda longa, largasse o emprego para fundar as empresas DIY Drones e 3D Robotics. Uma das pessoas que compreenderam melhor a economia digital, ele ficou tão entusiasmado com as possibilidades mercadológicas da
e 10%, comercial. Desses, pelo menos 7% estão na agricultura.” Segundo os debatedores, grande parte do uso comercial dos drones se dá em mapeamento de terrenos, inspeção de lavouras e fertilização. Ainda existem empresas investindo em tecnologias de segurança privada, enquanto outras apostam em parcerias com o setor público, no desenvolvimento de soluções para polícias e corpos de bombeiros. O próprio evento nasceu da necessidade da empresa MundoGEO, dedicada à geomática, de discutir e disseminar informações sobre a ferramenta que estava provocando o maior crescimento no setor, os drones de mapeamento geológico. Entre os participantes da mesa, estavam representantes de empresas de filmagem aérea, vigilância, geomática e aeromodelismo. Todos os participantes concordavam que o crescimento do
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mercado está reprimido por um só fator: a demora da aprovação de uma regulamentação nacional para o setor. Por enquanto, as empresas brasileiras que já produzem tecnologia e inovação tentam se adequar às exigências de normas estrangeiras, como as da França, para não sofrerem muitas mudanças quando a lei brasileira for aprovada.
REGULAMENTAÇÃO
Durante alguns anos, a maior promessa para o uso de drones era para o setor de entregas. Várias redes comerciais multinacionais, como Amazon, Taco Bell e DHL, e serviços públicos, como os Correios da Austrália, desenvolveram tecnologias para permitir entregas automatizadas, feitas por drones. Porém, órgãos de regulamentação como o FAA americano ainda não foram convencidos da capacidade dos aparelhos de realizar voos autônomos, chegando a exigir que operadores humanos mantenham, em todos os momentos do percurso, contato visual com o aparelho. Curiosamente, para o uso militar, o telecomando pode acontecer a milhares de quilômetros de distância, sem maiores questionamentos. Henrique Foresti, também conhecido como Mineiro, é idealizador da Plataforma Robô Livre e especialista em Robótica no C.E.S.A.R. Com relação aos drones, ele atesta que existe uma distância entre a legislação e a prática. “Disponibilizamos modelos autônomos em um projeto que desenvolvemos com a Chesf, por exemplo, validamos o conceito, mas, pela legislação, esse sistema não pode operar.” O projeto do C.E.S.A.R utilizaria VANTS (equipamentos usados para voos experimentais) autônomos para inspecionar linhas de transmissão de energia, que são capazes de voar através de ambientes sujeitos a fortes rajadas de vento e obedecendo a uma rota pré-programada ao longo das linhas de transmissão do objeto de inspeção. Durante o voo, as aeronaves captam imagens que permitem a visualização de seus elementos, por exemplo: cabos, emendas, espaçadores e isoladores. Quando necessário, suas manobras podem ser comandadas por uma estação remota através de um piloto humano, que terá à sua disposição monitores que reproduzem
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ARTE
Conexão 2
em tempo real as imagens captadas pelas câmeras. A iniciativa pode ser conferida em http://www.embarcados. com.br/inspecao-de-linhas-detransmissao-com-vants/. O projeto está suspenso, por enquanto, porque a legislação da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), em vigor, que é a mesma que já existia para aeromodelos, não permite o uso de aeronaves autônomas. A falta de legislação completa para o setor, não apenas no Brasil, tem sido um dos grandes empecilhos à aplicação mais ampla dos drones em áreas como vigilância, mapeamento e entregas. A popularização das maquininhas voadoras apresenta, de fato, vários riscos às pessoas, e a regulamentação deve ser cuidadosa, encontrando um delicado ponto de equilíbrio entre inovação e segurança. Atualmente, os drones que são usados com mais frequência em situações que podem comprometer a segurança das pessoas são os de captura de imagens aéreas. Tem sido cada vez mais corriqueira a presença do aparelho documentando encontros de multidões, como eventos esportivos, passeatas e espetáculos. Porém, acidentes são constantes. Um aparelho caiu sobre pessoas em um protesto na Avenida Paulista, em 15 de março de 2015, e o cantor Enrique Iglesias sofreu um corte na mão enquanto tentava interagir com um drone no palco,
2 VOO DA ÁGUIA Em 2014, esta foto ganhou concurso do site Dronestagram de imagens feitas com o equipamento
durante um de seus shows, em 30 de maio do ano passado. Uma pesquisa no YouTube mostra vários exemplos de acidentes e demonstrações da pungência das hélices dos dispositivos, verdadeiros liquidificadores voadores. Outro risco do uso dos drones é a interferência dos controles nas frequências de rádio. Isso motivou o Departamento de Transporte dos Estados Unidos a instituir a obrigatoriedade de registro de todos os já milhares de drones em uso no país, permitindo às autoridades identificar os donos de aparelhos pegos operando em espaço aéreo restrito. Já a Anac usará os primeiros pilotos de drones a pedirem certificação para comandar aeronaves não tripuladas com mais de 25 quilos como teste para criar os critérios necessários à emissão de futuras licenças. Quem quiser operar drones mais pesados terá de possuir o documento, segundo regulamentação que a agência deve publicar em julho. A partir de então, deverão começar a surgir os primeiros cursos de habilitação para pilotos do aparelho, com autorização do MEC e diploma DRT, que será exigido para a operação dos veículos maiores.
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A empolgação inicial do mundo das artes com a nova tecnologia resultou em muitas coreografias aéreas, como as do grupo Parrot Minidrones e Drone 100, com 100 drones ao som de uma orquestra, que aconteceu em um aeroporto de Hamburgo, em janeiro. Um pouco mais interessante foi o espetáculo musical LOOP>>60Hz Transmitions from the Drone Orchestra, montado no Teatro Barbican, em Londres, com aeronaves especialmente projetadas pelo arquiteto Liam Young e música composta e executada ao vivo por John Cale, ex-integrante do Velvet Underground. Os aparelhos do espetáculo possuem diferentes formas e produzem sons distintos, que se mesclam à trilha sonora de Cale, que, por sua vez, também é repetitiva e monotônica, um tipo de música que também é chamada de drone. O engenheiro de software e artista multidisciplinar espanhol Lot Amorós, atualmente trabalhando no Medialab da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, é um dos criadores do Flone, drone de software e hardware livres, projetado para ser montado e controlado através de smartphones. É composto por uma estrutura de madeira de corte a laser que pode ser facilmente reparada. O artista realiza workshops para ensinar a construir e fazê-lo voar. Seus grupos de estudos normalmente são realizados para a conscientização de comunidades que estão sofrendo com imposições da especulação imobiliária, como a Vila Autódromo e Morro da Providência, no Rio de Janeiro, e no Parque Augusta, na região central de São Paulo. O projeto mais interessante e revolucionário do espanhol é, no entanto, o Dronecoria. Trata-se de uma junção de tecnologia, arte e ativismo ecológico. Ele já utilizou o aparelhinho para disseminar sementes pela Floresta Amazônica e pela Mata Atlântica, numa forma de mostrar que eles podem ser usados para combater o desmatamento. O futuro dos drones na arte pode vir a mostrar que são apenas um modismo, ou novas aplicações, provavelmente com a união da tecnologia com a popularização de óculos de realidade virtual, que renovarão o interesse de artistas pela mídia.
ANDANÇAS VIRTUAIS
FOTOGRAFIA Publicação colaborativa se propõe apresentar portfólios de jovens fotógrafos e refletir sobre este campo artístico e documental revistaold.com
Felipe Abreu, um dos criadores e editores da revista OLD, escreveu, no seu primeiro número, em maio de 2011, que sempre sentiu falta
“de uma publicação brasileira que discutisse a fotografia brasileira com uma perspectiva documental, artística, pessoal”. Desde então, e
agora já na edição de número 58, a OLD dedica-se, mensalmente, a divulgar portfólios e entrevistar pessoas da área fotográfica, sempre de modo colaborativo. É possível fazer a assinatura da revista impressa ou ler o conteúdo na íntegra, online. A mais recente edição, de junho, conta com uma série fotográfica da pernambucana Adelaide Ivánova, com fotos que tratam do desencontro dela, que atualmente vive na Alemanha, com o espaço transformado do Recife, sua cidade natal. Ensaios de Gustavo Gomes, Yannis Karpouzis, Xavier Sánchez, Camila Pastorell e José Diniz também participaram da edição. O conteúdo desta e de edições anteriores está disponível para leitura online, no formato Issu. Interessados em colaborar com a revista podem enviar e-mail para revista.old@ gmail.com, com textos ou ensaios fotográficos de no mínimo 13 imagens em baixa resolução. MARINA MOURA
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Brain Pickings discute com elegância temas como filosofia e literatura
Periódico eletrônico publica poesia, traduções, ensaios, entrevistas e artes visuais
Política do corpo contra ditadura do cabelo liso é tema de web reportagem
Site traz listas sobre cinema, música, literatura e fotografia para direcionar internautas
brainpickings.org
zunai.com.br
cantodosclassicos.com
A búlgara Maria Popova, que já trabalhou em jornais como The New York Times e The Atlantic, criou, em 2006, o blog Brain Pickings, que utiliza para escrever textos sobre design, filosofia, entre outros temas, sendo o mais constante deles a literatura. No início, Brain Pickings tinha um caráter de anotações, reflexões e insights, e a autora enviava seus textos apenas para alguns amigos. Hoje, num projeto elegante e atraente, o conteúdo tem sido acompanhado por um público bem maior que o inicial e Popova já mantém uma campanha para que os leitores colaborem financeiramente com a manutenção de suas “colheitas do cérebro”.
Criada em 2003, a Zunái é um periódico eletrônico quadrimestral com foco em textos de ficção, sobretudo poesia. A revista também tem seções dedicadas a traduções literárias, ensaios, entrevistas e opinião. Além disso, divulga trabalhos de fotógrafos e artistas visuais. No número mais recente, de junho, um dos destaques foi o especial com três depoimentos sobre o tradutor de russo Boris Schnaiderman, falecido aos 99 anos em maio. O professor Lucio Agra, a tradutora Marlova Aseff e a poeta Simone Homem de Mello escreveram relatos afetivos acerca do legado intelectual de Schnaiderman.
unicap.br/webjornalismo/ revolucaocrespa
O processo de transição capilar, passando do cabelo alisado para o crespo ou cacheado, marca a vida de muitas mulheres. Esse comportamento, relacionado à autoaceitação e ao empoderamento, foi o tema da web reportagem Revolução crespa, das jornalistas Amanda Souza e Bianca Bion. O trabalho esclarece o processo de transição e seus métodos, ouve o depoimento de mulheres que viveram tal experiência, expõe os relatos sobre racismo e identificação de padrões estéticos, além de uma volta pelo mercado de cosméticos, que adere à postura política de questionar “a ditadura dos lisos”.
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“Dez filmes essenciais da Nouvelle Vague Francesa”, “Dez filmes conectados com a filosofia de Michel Foucault”, “Oito grandes histórias de George Orwell que você precisa ler” são algumas das listas que constam na página principal do Canto dos Clássicos. Feito à maneira de blog, com a colaboração de 10 editores, o site tem a prerrogativa de unir a arte aos seus temas por meio das listas, estratégia profícua para a leitura na internet, consolidada pelo Buzzfeed, porque atende a interesses específicos. Contando com 73 mil seguidores no Facebook, o site funciona informalmente como mediador entre o público geral e itens da história da arte.
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MCLEOD GANJ Lugar de devoção, tradição e amor
1 DHARAMSHALA Entre 1989 e 2009, a cidade registrou a chegada de cerca de 80 mil refugiados tibetanos
Morada do Dalai Lama, vila fincada nas montanhas dos Himalaias, numa área cedida e protegida pelo governo indiano, abriga, em silêncio, a resistência do povo tibetano em exílio TEXTO E FOTOS Lia Beltrão, de Dharamshala, Índia
Eu não sabia nada. Não sabia das montanhas nevadas e do vale a perder de vista, assim, da minha varanda. Não sabia da força dos velhos e da elegância das mulheres. Não sabia das histórias de resistência, das fugas às cegas pelos Himalaias, das dezenas de monges e monjas que atearam fogo ao próprio corpo. Não imaginava que fosse possível que coexistissem com a dura realidade de uma vida em exílio gestos tão doces, crianças tão livres. Não sabia que cada comércio da vila onde vim morar por quase um ano exibia – cercada por velas, flores, frutas, tigelas cheias d’água – uma fotografia do Dalai Lama. Não por decreto, mas por devoção, por tradição, por amor. Não sabia que tradição, devoção e amor eram, para a maioria dos moradores do lugar, uma coisa só. E que cada uma dessas palavras adquiriria para mim, uma ocidental aqui na Índia, um sentido que eu não sabia ser possível.
McLeod Ganj é uma vila tibetana fincada nas montanhas dos Himalaias, no estado de Himachal Pradesh, extremo norte da Índia. É a primeira morada de muitos refugiados e sede do governo tibetano em exílio, concentrando importantes instituições, desde o Parlamento até a Faculdade de Medicina e Astrologia tibetana. A morada desse que é um dos líderes religiosos mais populares do planeta é tecnicamente um tibetan settlement, uma área cedida – e protegida – pelo governo indiano ao governo tibetano em exílio, dentro dos limites da cidade de Dharamshala. Entre 1989 a 2009, Dharamshala registrou a chegada de cerca de 80 mil refugiados tibetanos: homens, mulheres e crianças que, pondo em risco as próprias vidas, deixaram o Tibete, quase sempre em fugas de dias e até semanas de caminhada
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pelas montanhas dos Himalaias. Esse número tem diminuído drasticamente a cada ano, na medida em que as táticas de controle e segurança do exército chinês tornam-se mais desumanas e brutais. O tema da ocupação do Tibete pela China, e mais especificamente as autoimolações de tibetanos como forma de protesto contra o massacre cultural, ambiental e social que tem ocorrido no país desde 1959, esteve no primeiro lugar entre os 10 assuntos menos midiatizados do mundo, segundo um ranking da revista Time em 2011. Um silêncio midiático que faz um triste paralelo com a própria vila. Apesar dos monumentos em homenagem aos tibetanos que atearam fogo no próprio corpo, em manifestação por um país livre, e de um museu dedicado a contar a história de destruição – que infelizmente segue
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a pleno vapor –, paira na cidade uma espécie de mudez pactuada sobre o tema. Por motivos de segurança, é necessário guardar segredo. Talvez para esquecer, suportar e superar a dor também.
RESILIÊNCIA
Mas há vozes que sempre escapam. Pude ouvir o relato de um monge sobre sua fuga pelas montanhas na fronteira do Tibete com o Nepal aos 14 anos. A narrativa sobre ter passado três dias sem comer, ter tido seu tênis destruído nos dois primeiros dias de caminhada e andar de pés descalços com a neve até quase a cintura era contada com uma leveza inacreditável. Ele ria sinceramente, relembrando os próprios pensamentos infantis, como: “Melhor encontrar os guardas chineses, quem sabe eles nos ofereçam alguma comida”. Histórias como essa estão presentes no coração de cada família, nos templos onde se reúnem os monges, na principal escola da cidade – onde crianças são tolhidas, às vezes
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2 MEMÓRIA No Museu do Tibete, fotos de pessoas que atearam foto ao corpo em ato de protesto 3-5 NAMGYAL Monastério é a morada do Dalai Lama, que é visto pelas ruas de Dharamshala
nos seus gestos, a virtude que advém do trabalho duro, do esforço constante em seus estudos e práticas religiosas. Novidades sobre aulas e cursos com gueshes e rinpoches – como são chamados os professores da tradição – são tema constante das conversas nos cafés e nas ruas, e claro, atualizações sobre a agenda do Dalai Lama e sua programação na cidade estão sempre na pauta dos encontros.
DALAI LAMA
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para sempre, do convívio com os pais, para ter a chance de falar sua língua e educar-se dentro de sua própria cultura. A realidade do exílio tibetano na Índia não é um acontecimento que pertence ao passado, é algo tragicamente atual, experimentado por um povo cuja capacidade de resiliência é extraordinária. Tanto que essa comunidade de refugiados, fundada em 1960, é hoje um importante ponto turístico da Índia. Pequena – cerca de 10 mil habitantes –, atrai não apenas ocidentais que praticam ou se interessam pelo budismo tibetano, mas também, e cada vez mais, os próprios indianos, que agora integram uma galopante classe média. A vila, que há cerca de 10 anos não possuía mais do que algumas pousadinhas e alojamentos baratos, hoje já esbanja lojas sofisticadas, alguns bons e caros hotéis, e muitos cafés moderninhos servindo expresso de qualidade – produto raro na terra do chai. Aos domingos, famílias indianas com suas roupas coloridas enchem as estreitas ruas da cidade, prestando reverências
Os debates filosóficos, comuns à pratica religiosa, acontecem diariamente nos pátios de monastérios da vila
às deidades nos templos budistas, comprando suvenir dos tibetanos e comendo os famosos momos – espécie de pastel cozido no vapor. “Os indianos vão a McLeod para sentir que não estão na Índia”, falou-me uma amiga do Rajastão. Mas, mesmo com o frenesi do turismo, é possível sentir no ar, impregnado nas ruas e nas montanhas, o perfume do darma, os ensinamentos de Buda. Os tradicionais debates filosóficos, prática fundamental dentro do treinamento monástico, acontecem diariamente nos pátios dos muitos monastérios da vila. Por todos os lados, monges e monjas vestidos em seus trajes bordôs exibem, na expressão de seus rostos e
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McLeod, na verdade, parece girar física e sutilmente em torno do Dalai Lama. Por entre as árvores do bosque ao redor do complexo do Monastério Namgyal, onde está localizada sua casa, há um caminho de pedras, cheio de bandeiras, rodas de oração e estupas – esculturas simbolizando o corpo de Buda. Em tibetano, o ato de dar voltas em torno de locais sagrados tem um nome próprio: kora, uma prática comum entre budistas. Todos os dias é possível encontrar tibetanos, especialmente idosos, com uma bengala em uma mão e uma japa mala (espécie de rosário) em outra, recitando mantras e girando as rodas de oração com suas sílabas sagradas em tintas coloridas. Em McLeod, a sensação é de que não apenas as pessoas, mas os animais, os negócios, as ideias estão todos em kora, orbitando como planetas em torno desse poderoso referencial de ética, bondade e bom senso que é o Dalai Lama. Há poucos anos, era ele o líder político do governo tibetano em exílio. Assim, também a política se movia – e para muitos ainda se move – em kora ao seu redor. Oficialmente, o governo tibetano em exílio adota em relação à ocupação chinesa uma postura chamada de “abordagem do Caminho do Meio”, em referência a um famoso e revolucionário ensinamento do próprio Buda. Essa abordagem está descrita da seguinte maneira na
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006 MANDALAS
Círculos mágicos de areia são meticulosamente construídos pelos monges
007 FLAGRANTE
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ibetanas se T preparam para apresentação de dança em cerimônia pública
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Devotos e visitantes circulam o bosque do monastério recitando mantras
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página oficial do Dalai Lama: “O povo tibetano não aceita a atual situação de domínio do Tibete imposta pela República Popular da China, mas, ao mesmo tempo, não busca independência para o país”. Essa postura está baseada na convicção de que “se os povos tibetanos e chineses são capazes de coexistir em pé de igualdade, isso serve como base para garantir a unidade das nacionalidades, estabilidade social e integridade territorial da República Popular da China”.
A abordagem do Caminho do Meio foi adotada pelo governo tibetano apenas depois de anos de tentativa de diálogo sobre a independência do Tibete com o governo chinês, sem sucesso. Se, por um lado, ela é a radicalização corajosa do princípio da não violência, por outro, deixa muitos tibetanos e ativistas da causa por um Tibete livre com uma sensação de completa impotência. Muitos estudiosos da cultura tibetana e do budismo têm lançado luz nesse entrelaçamento entre política
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e religião no processo da diáspora. Da Universidade de Freiburg, na Alemanha, uma jovem socióloga de 28 anos resolveu tomar esse tema como objeto de estudo para um artigo acadêmico e explorou a relação entre o budismo tibetano e a luta por soberania, na percepção daqueles que viveram a diáspora e o exílio na Índia. An Qi Liu é asiática, ativista política, feminista. Tem se aproximado do budismo com precisão científica e devoção, tal qual se sugere nos monastérios. Sua nacionalidade: chinesa.
An Qi e eu nos conhecemos em um retiro budista aos pés dos Himalaias, e ela foi a primeira – e única – pessoa da China que conheci na Índia, uma vez que é politicamente arriscado para um chinês visitar comunidades tibetanas em exílio. Ela contou que, até ir morar na Europa, acreditava que os tibetanos estavam “muito felizes em serem parte da China”. E mais: qualquer pessoa que viesse falar o contrário, ela rebateria com agressividade. Depois de viver mais de quatro anos na Alemanha, sua postura mudou radicalmente. Recentemente, encontrou monges tibetanos em exílio em McLeod que, ao descobrirem que ela era chinesa, disseram felizes: “Que legal! Somos do mesmo país!”, ao que ela respondeu: “Não, vocês não podem dizer isso! Eu sou chinesa, vocês são tibetanos!”. Hoje, ela adota uma postura política pró-Tibete e entende os riscos reais desse envolvimento para sua própria vida. “Voltar para a China é sempre tenso para mim. Há sempre o risco de uma prisão.”
O princípio da não violência foi adotado pelo governo tibetano desde as tentativas frustradas de diálogo com o governo chinês NÉCTAR
Ouvi um monge indiano falar que é incalculável a bondade dos tibetanos com a Índia: eles foram capazes de transplantar perfeitamente para o seu país a filosofia budista oferecida pelos pânditas (brâmanes letrados) indianos, preservando nos mosteiros os ensinamentos que conduzem os seres à liberação do sofrimento (mesmo quando eles tinham desaparecido na terra onde surgiram). Para ele, o fato de a Índia, sendo um país paupérrimo e cheio de problemas internos, ter em 1959 aberto suas fronteiras e oferecido sua terra para ser a nova morada de centenas de milhares de refugiados tibetanos é apenas o começo do pagamento dessa dívida de bondade.
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Essa fala revela a força do secularismo indiano – que não é teórico, é cultural. Não há nada mais emocionante do que testemunhar a reverência sincera dos turistas indianos às deidades budistas. Com mãos em prece, em um templo radicalmente diferente do seu, eles rezam com devoção, capazes de admirar profundamente o “outro”, o diferente, sem precisar mudar nada. Capazes de ajoelhar-se para o que não é seu – e que não precisa ser. Distante dessas montanhas – no Brasil, na China, na Europa –, parece que vivemos um tempo de intolerância e ódio, e diariamente ateamos fogo, não em nosso corpo em protesto, mas em nossa própria capacidade de transformação e amor, deixando o fascismo se espalhar como um vírus. Nesse tempo, o coração espaçoso dos indianos e a resistência pacífica e firme dos tibetanos são como néctar. É água fresca para quem tem sede. Definitivamente, o “outro”, o diferente, não é o problema. Falta de amor é.
REPRODUÇÃO
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História CONTINENTE JULHO 2016 | 46
ANTONIO BENETAZZO Obra de uma vida interrompida Assassinado na ditadura militar, artista e militante ítalo-brasileiro tem agora sua memória e obra recuperadas num trabalho institucional que resulta em exposição, livro-catálogo e documentário TEXTO Luciene Leszczynski
Que a passagem da ditadura
militar no Brasil foi marcada pela censura e forte repressão à liberdade de pensamento e expressão, desde o campo político ao artístico, muito já se descobriu hoje em dia. Os impactos daquele período, porém, ainda se avolumam para o estudo e entendimento da história recente e futura deste país, como a violência perpetrada contra a cultura brasileira ao cercear e, por vezes, até extinguir a manifestação de artistas desafetos ao regime. No campo das artes, o assassinato do artista e militante político Antonio Benetazzo pelo aparelho da ditadura é um cruel exemplo dessa violência, que extrapola o crime contra a vida, atingindo a cultura artística. A fim de recuperar parte dessa história e revelar o trabalho desse artista, a inédita obra de Benetazzo foi recentemente descoberta pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) de São Paulo, sendo apresentada em exposição, livro-catálogo de arte e documentário. “Até hoje, mesmo quem pesquisa a obra artística do período ditatorial
desconhece a existência de Benetazzo. Esse projeto, mais do que uma reparação ao indivíduo, que teve sua vida, memória e produção suprimidas da história devido a uma opção política, permite dar amplo acesso à obra dele para a população”, diz Marie Goulart, da Coordenação de Direito à Memória e à Verdade da SMDHC. Nas cerca de 200 obras encontradas em posse de amigos e familiares pelo curador do projeto, Reinaldo Cardenuto, é possível identificar o estilo singular do artista Antonio Benetazzo, que era um pesquisador voraz, apaixonado pela arte, história e filosofia. O material compilado refere-se ao período de apenas nove anos, entre 1963 e 1972. “Em pouco tempo de produção, a partir de uma intensa pesquisa estética que notamos presente, Benetazzo alcançou tal singularidade, que entra como um componente da história da arte do Brasil”, aposta Cardenuto. Da mesma geração de Claudio Tozzi, sua obra guarda influências do trabalho de Sergio Ferro, que foi seu professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo
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(USP), e também alguma proximidade com a obra de Wesley Duke Lee, todos artistas plásticos brasileiros que despontavam numa trajetória artística na época da produção de Benetazzo. “A gente não pode esquecer que era alguém muito jovem, que morreu aos 30 anos, e ainda estava num processo de formação”, comenta Cardenuto. De acordo com ele, o artista experimentava a influência de uma grande chave modernista, como da obra realizada por Kandinsky. Numa série de desenhos com nanquim, identificada pelo curador da mostra no processo de pesquisa da estética de Benetazzo, é possível constatar tal proximidade com a obra do artista russo a partir do uso de pontos, linhas e planos. Após recolher dezenas de quadros, desenhos, fotografias e objetos espalhados em vários lugares, e a partir da identificação do conjunto de obras encontrado, Cardenuto organizou o material em grupos, procurando atribuir um sentido cronológico, estilístico e poético. A catalogação rendeu então 13 séries distintas – mas não necessariamente isoladas entre si – do
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História
que foi o processo de criação do artista identificado pelo curador. Com isso, na medida em que o trabalho artístico de Benetazzo começa a ser estudado, passa a adquirir lugares estéticos e históricos.
O CAMARADA BENÊ
Nascido na Itália em 1º de novembro de 1941, Benetazzo imigrou ainda pequeno, aos nove anos, com a família para o Brasil. Na infância, morou no Litoral Norte de São Paulo, e já esboçava seu lado artístico, chegando a ganhar um concurso para a criação do brasão da cidade de Caraguatatuba. “Ele desenhava o tempo todo, fazia parte da persona dele”, conta a irmã quatro anos mais nova, que prefere não ser identificada. Na adolescência, em busca de maior proximidade com a capital paulista, foi morar com um tio em Mogi das Cruzes, onde cursou o ensino técnico-científico, atual Ensino Médio. Nessa época, desenhava-se
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1 AUTORRETRATO O desenho foi uma das técnicas utilizadas por Benetazzo
também o seu engajamento político, com a sua participação na constituição ou direção dos grêmios estudantis dos colégios em que estudou. Em 1962, entrou para o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e aprofundou sua militância estudantil. Trabalhou para a criação do Centro de Cultura Popular, ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), sendo logo após eleito como um dos dirigentes da entidade. Foi morar em São Paulo, onde ingressou na USP, cursando simultaneamente as faculdades de Filosofia e Arquitetura, enquanto dava aula em cursinhos preparatórios para o vestibular. “O Benê era um cara brilhante, inteligentíssimo e muito estudioso. Aos amigos e, sobretudo, aos alunos, buscava passar tudo o que sabia”, recorda o artista plástico e escritor Alípio Freire, com quem Benetazzo manteve amizade no final da década de 1960. Alípio conta que conheceu
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2 CONJUNTOS Erotismo é tema que se evidencia em série de nus
Benetazzo em 1966, quando foram escalados para prepararem juntos o material de divulgação para o Congresso da União Estadual dos Estudantes (UEE). Nesse primeiro contato, percebem uma grande afinidade com relação à visão de mundo e ao interesse pelas artes. Posteriormente se reencontram, quando Alípio vai para o cursinho preparatório de Arquitetura, e a amizade se solidifica. Em uma passagem narrada por Alípio, eles seguiam de carona em um carro pela Av. Paulista e, ao cruzarem a esquina da Rua Augusta, Benetazzo pede para descerem, pois queria mostrar explicar ao companheiro a concepção das cadeiras Barcelona (assinadas por Mies van der Rohe) que haviam chegado ao Brasil e compunham o mobiliário no Conjunto Nacional. “Ele era assim. Nessa época, dava aula no Instituto de Arte e Decoração (Iadê), era um cara ocupadíssimo, estava a par de tudo o
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3 e 4 ATIVISMO Política mais panfletária está presente na obra
que acontecia no mundo e fazia questão de compartilhar esse conhecimento”, relembra o amigo, que diz ter conhecido as ideias do pensador Michel Foucault através dele. Quando Benetazzo quis utilizar um texto do livro As palavras e as coisas nos cursos em que dava aula, pediu ao amigo que traduzisse para ele. “Não que ele não soubesse, pois falava bem o francês, bem como outras línguas, mas porque estava mesmo sem tempo. E foi assim que eu conheci Foucault. Acho que fui o primeiro tradutor de Foucault no Brasil”, brinca Alípio, já que o livro havia sido publicado na França apenas um ano antes desse episódio, ocorrido em 1967. Nessa época, Benetazzo se desliga do PCB para militar na Dissidência Estudantil de São Paulo (Disp). Em 1968, participa do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, onde é preso com cerca
Entre 1970 e 71, Benetazzo esteve em Cuba. Um ano depois, em 1972, quando retornou ao Brasil, foi torturado e morto de 800 delegados e dirigentes do movimento estudantil. Em julho de 1969, já integrando a Ação Libertadora Nacional (ALN), abandona as aulas no cursinho preparatório e na universidade e passa a viver na clandestinidade.
CLANDESTINIDADE
“É o momento em que Benetazzo toma uma decisão sem volta na sua vida. É a hora em que ele entra na clandestinidade, vincula-se à luta armada e decide sair do país”, destaca Cardenuto. “Nesse período, a sua
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trajetória se torna um pouco obscura, porque a gente não sabe qual foi esse percurso fora do país”, acrescenta. O que se sabe é que, em 1970, ele esteve em Cuba e viveu por lá cerca de um ano, voltando em 1971 ao Brasil, onde seria torturado e morto um ano depois, em outubro de 1972, numa ação do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). “Mas o dado é que, quando ele tomou a decisão de viver clandestinamente, espalhou suas obras, distribuindo-as entre os amigos. É um movimento simbólico e significativo da vida dele porque é alguém que está no limite, sabe do risco de sua decisão e, de certa maneira, procura espalhar sua memória e seu processo criativo. Ele doa um pouco da sua própria identidade para outras pessoas”, reflete Cardenuto.
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No Brasil, de 1971 até sua morte, Benetazzo integra a direção nacional do Movimento de Libertação Popular (Molipo) e trabalha ainda como redator do jornal Imprensa Popular, órgão oficial de comunicação do movimento. Na clandestinidade, Benetazzo se distancia, pelo menos aparentemente, de sua produção artística, evitando ser reconhecido como tal. Para a irmã de Benetazzo, era tão forte a identificação dele como artista plástico, que tirar isso da sua vida era mesmo uma forma de disfarce. Nessa época, ele se restringia a desenhar na casa da amiga Zuleika Alvim, que fez questão de lhe comprar material de pintura para que pudesse extravasar seu lado artístico enquanto frequentava a residência dela nos seus momentos de descanso. Na opinião de Cardenuto, essa bifurcação da vida de Benetazzo entre o militante e o artista fica mais evidente nesse período, já que o grupo de atuação política que frequentava não tinha conhecimento do seu trabalho artístico, enquanto que a família e antigos amigos de escola não sabiam da sua militância política.
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5 MATERIAL A amiga Zuleika Alvim estimulou Benetazzo a criar, oferencendo estrutura para que trabalhasse 6-8 EXPERIMENTAÇÃO Obras de caráter figurativo e abstracionista estão presentes igualmente no acervo do artista
História
ABSTRAÇÃO E FIGURAÇÃO
É a partir do trabalho de pesquisa e curadoria realizado por Cardenuto que se aprofunda a dimensão artística da obra de Benetazzo, pois, apesar de sua profícua produção, essa faceta do artista mantinha-se restrita aos amigos e familiares que zelavam por seu legado. No conjunto da obra compilada por Cardenuto, os primeiros trabalhos lembram o uso de técnicas impressionistas, que aos poucos são abandonadas pelo abstracionismo. “Era alguém que estava experimentando muitas possibilidades, procurando uma identidade artística que é localizada a partir de 1968”, afirma o curador. De acordo com ele, até certa altura da vida como artista, a abstração e a figuração se encontram separadas na obra de Benetazzo. Até os anos de 1966 e 1967, o trabalho pendia ora para o figurativo, como nas obras identificadas explicitamente como políticas, ora tonava-se mais abstrata, apontando
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para um lugar fora do tempo histórico, com características do Absoluto, como na série intitulada Haikai. “Para mim, o Benetazzo ficou muito dividido entre esse dois polos da abstração e figuração, até o dia em que juntou tudo numa mesma obra”, comenta o curador. Essa união entre o figurativo e o abstrato se evidencia na série Gestação dos monstros, que inicia abstrata e termina figurativa, com a apresentação de criaturas evidentemente influenciadas pelos desenhos de Goya. Ou no conjunto denominado
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Corpo e sexualidade, em que os trabalhos mesclam a abstração com traços impressionistas. Nesta série, Benetazzo explora o nu feminino em desenhos de evidente erotização, mas que também pendem para a abstração. Característico do trabalho de Antonio Benetazzo, o experimentalismo evidencia-se a cada descoberta do curador, como quando encontra na biblioteca do militante (preservada na casa da irmã) um catálogo do artista alemão Julius Bissier, cuja obra guarda relação com
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várias produções de Benetazzo. “Era alguém que estava numa pesquisa constante, principalmente influenciado por artistas do modernismo europeu”, constata o curador. “Além desse lado pesquisador, podemos dizer que ele foi um artista que trabalhou no papel, e não em madeira, por isso que a gente fala de desenho e não de pintura. Ele usava vários tipos de papéis, como o pardo usado para embrulhar carne no açougue.” Em algumas obras mais recentes, também é possível notar que Benetazzo ensaiou uma convergência com a pop art, mas não se pode dizer até onde isso iria, porque há essa ruptura da produção com a sua morte.
LIVRO-CATÁLOGO
A expressão Permanências do sensível, que dá título ao livro-catálogo lançado pela SMDHC e à exposição que esteve em cartaz até 29 de maio no Centro Cultural São Paulo, sintetiza a história de Antonio Benetazzo, unindo o lado político ao estético no trabalho de sua obra. “Procurei vincular memória e estética, para dar conta da necessidade da permanência e do sensível, que são de fato a grande intenção desse projeto”, explica o curador da mostra, que também é codiretor do documentário Entre
Antonio Benetazzo foi influenciado pelo modernismo europeu e por artistas brasileiros de sua geração imagens (Intervalos), que trata da ausência causada pelo apagamento da memória de um artista. Para Marie Goulart, da SMDHC, o resgate do trabalho artístico de Benetazzo é uma forma de contribuir para esclarecer sobre a produção de um artista que se tornou invisível em decorrência da violência de Estado, largamente promovida no período da ditadura. “Além do crime de homicídio, a morte de Benetazzo foi um crime contra a cultura brasileira, aspecto que a exposição
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também faz questão de evidenciar. A ditadura promoveu uma severa perseguição política contra aqueles que resistiam e se levantavam contra ela, mas as arbitrariedades do regime também atingiram todos, indiscriminadamente, ao censurar, perseguir e impedir que a produção e expressão cultural circulassem livres”, ressalta Marie. Além da importância artística, o resgate da obra de Antonio Benetazzo é também considerada política hoje em dia, pois está vinculada à memória do país e tomada de significados para o aprendizado do contemporâneo. “Enquanto houver uma pessoa levantando na rua um cartaz pedindo a volta da ditadura, o resgate dessa memória vai continuar sendo fundamental, pois, como nação, ainda não tivemos uma verdadeira superação desse processo”, opina Cardenuto.
Cardápio
MODOS O momento das cafeterias de rua
O Recife vive boom de pequenos estabelecimentos unidos para fomentar propostas intimistas, com investimento no espaço e na formação de baristas TEXTO Renata do Amaral FOTOS Joana Sultanum
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01-1-2 A VIDA É BELA
Isabele Almeida envolveu toda a família no seu café, que funciona na Várzea
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A predileção dos brasileiros pelo
café não é nenhuma novidade – uma pesquisa coordenada pela Embrapa Café indica que ele é a segunda bebida mais consumida no país, atrás apenas da água. No Recife, porém, ele vem sendo protagonista de um fenômeno recente: a proliferação das cafeterias de rua. Se, antes, essas lojas praticamente só existiam nos centros de compras da cidade, em forma de franquias com pouca personalidade, nos últimos três anos, elas resolveram respirar ar livre. Com investimento
na formação dos baristas e foco no pequeno negócio, elas vêm mudando o hábito de tomar café na cidade. Também chama a atenção a relação que os donos das cafeterias desenvolvem entre si. Em vez de concorrência, a palavra aqui é cooperação, tanto que eles têm realizado ações conjuntas para divulgar a cultura do café de rua. No final do ano passado, inverteram a lógica do cartão fidelidade, tão comum em estabelecimentos que vendem comida, e criaram o cartão
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infidelidade. Em vez de consumir vários cafés no mesmo local e ganhar um por causa disso, a ideia era justamente o contrário: ir a sete locais diferentes, experimentar a bebida em cada um deles e depois voltar ao preferido para degustar o brinde. Em maio, foi a vez do Recife Coffee, evento que reuniu 15 cafeterias que precisavam atender a pelo menos três de quatro critérios: ter barista na casa, servir café do tipo especial, funcionar voltado para a rua e ser um pequeno negócio. Cada uma das casas preparou um menu com um café, um salgado e um doce a preço convidativo. “Muitas vezes, as pessoas estão tão focadas na competitividade, que nem conseguem entender nossa união”, afirma Tallita Marques, do Malakoff Café Gourmet. “Nosso lema é que juntos somos mais fortes.” O evento foi organizado coletivamente, de forma independente. Para a barista Lidiane Santos, do Espaço Sensorial do Café, professora de boa parte dessa nova geração de donos de cafeterias, todos estão unidos em busca de um só objetivo: mostrar que existem cafés diferenciados na cidade. São locais na contramão das grandes redes, com o dono presente, em que o cliente é chamado pelo nome. Além do tratamento mais afetivo, o cuidado com o grão é outra característica que une os empreendimentos. A maior parte das novas casas de café se distribui pela chamada zona norte do Recife – na verdade, trata-se da área que inclui bairros como Aflitos, Casa Forte, Espinheiro, Graças, Jaqueira e Parnamirim. Mas bairros fora desse circuito também contam como representantes. É o caso do A Vida é Bela Café, na Várzea, aberto por Isabele Almeida em fevereiro. Formada em Hotelaria, ela prestava consultoria em gestão de restaurantes, já trabalhou em
empresa multinacional e começou vendendo brownie em uma bicicleta. Isabele cresceu na Várzea e viu no café uma oportunidade de envolver seus pais, que ainda moram lá. A mãe faz o bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro que leva o nome do café, além das receitas de macaxeira, milho com goiabada e cenoura com chocolate. O pai, que é aposentado e trabalha com ferro, faz o coador de pano à venda na loja. O irmão é dono do Carambola Café, especializado em crepes e tapiocas, a poucas ruas dali. “Trabalhar com comida é mais complexo do que as pessoas pensam. E o negócio é familiar, o que também não é fácil”, conta. “Mas sempre me deu prazer atender, servir, receber as pessoas.” O café fica diante da Praça do Rosário, com jeito de interior. Ali, Isabele vê as professoras dos tempos de escola passando pela rua, enquanto fica de olho nas mesinhas na calçada. “Apesar da proximidade da UFPE, o bairro também tinha que aceitar o café e o movimento nos fins de semana comprova que
As cafeterias de rua têm feito parcerias para estimular o consumo do café e a experiência sensorial com essa bebida isso aconteceu”, comenta. Para ela, o hábito de tomar café fora de casa ganhou força depois que as grandes redes abriram alas. Agora, os clientes estão em busca de um atendimento mais cuidadoso, além de prestar mais atenção à qualidade dos ingredientes, em vez de querer algo padronizado. O A Vida é Bela tem um ambiente retrô, com direito à parede de quadro-negro riscada de giz e vitrola portátil Crosley tocando de Beatles a Barry White. Estão à venda objetos de designers locais e pequenos quadros com frases como “tomar café eu vou, café não costuma falhar”, parafraseando a música Andar com fé, de Gilberto
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Gil. A escolha dos fornecedores também valoriza os talentos do bairro, como o português Fernando Maia, responsável pelo pastel de belém. Os escondidinhos servidos na hora do almoço são feitos pela mãe de Isabela, com frango, carne de sol, camarão e carne de jaca para os vegetarianos. Os cafés são preparados com os grãos Mitsuo Nakao (MG), que tem denominação de origem controlada, e Yaguara (PE).
FILTRO PREMIADO
Também fora do circuito mais procurado pelas cafeterias, o Malakoff Café Gourmet abriu as portas em março do ano passado, no Prado. O casal Tallita Marques e Alan Cavalcanti – ela jornalista, ele consultor com formação em Gestão Pública – queria investir em algo que fosse bom para os dois e optou pelo café, por ele estar presente em todos os momentos do dia. “Queria ter inspiração diária no trabalho”, conta ela. Alan foi à Semana Internacional do Café, em São Paulo, para conhecer
Cardápio melhor o mercado. A opção foi ousada: apostar nos métodos filtrados no lugar do espresso, versão mais conhecida pelo consumidor. Única na cidade especializada nessa forma de extração, a casa oferece 11 tipos diferentes, sendo um a frio, o chamado cold brew, que pode ser aromatizado com canela ou anis, por exemplo. Alan, que fez o curso de barista no Espaço Sensorial do Café, explica que café não é só amargor. Tudo depende da intenção do cliente, cujo paladar pode preferir uma bebida mais suave, embora diferente do “chafé”. Ele conta que, dependendo do método, a mesma proporção de água e café pode resultar em bebidas bastante diferentes. A moagem e o tempo de extração interferem na intensidade do amargor. As características do café – doçura, acidez, amargor e corpo – mudam segundo a técnica utilizada. O espresso libera óleos essenciais devido à temperatura e pressão, por isso apresenta uma camada de crema. O japonês hario tem tempo de extração menor do que um filtro comum, por sua abertura maior na base. O aeropress, que funciona como um êmbolo, é mais forte e aromático. A prensa francesa resulta num café mais suave e pede moagem mais grossa. O globinho faz o “espectador” (todos são feitos à vista do consumidor) se sentir em um laboratório. A casa tem até um filtro vietnamita que foi doado por um cliente. Tudo no Malakoff gira em torno do café: ele está até na decoração, com luminárias feitas com filtros. O espaço, segundo os donos, acabou virando um local de troca de informações sobre café. “Havia uma demanda reprimida de coffee lovers, muita gente que já entendia de café, mas não tinha onde trocar conhecimento”, conta Tallita. Além de ficarem curiosos com a alquimia dos filtrados, os clientes querem aprender a fazer um café melhor em casa e experimentar vários métodos.
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Os grãos usados na casa são o Arte Café (MG), mais cítrico, nos filtrados, e o Yaguara (PE) no espresso, com torra média para maior flexibilidade. Alan afirma que as casas mantêm uma parceria, mas que cada uma buscou sua identidade. Os eventos são pensados como estratégia de negócio, pois a maioria dos proprietários tira seu sustento do café. “Temos focos diferentes, mas sempre no café”, diz. Como ninguém vai todo dia ao mesmo lugar, a ideia é um indicar o outro, atestando sua qualidade. “Nosso objetivo é oferecer uma experiência sensorial com o café. Somos slow coffee, um café sem pressa”, defende Alan. A opção já vem dando frutos: o Malakoff ganhou
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o prêmio de Cafeteria Revelação no Guia de Cafeterias do Brasil 2016, que ressaltou a variedade de métodos.
LABORATÓRIO
Tallita conta que a tecnologia foi fundamental na organização das cafeterias, pois tudo começou com um grupo no aplicativo Whatsapp. Antes de abrir o Malakoff, eles foram ao Ernesto Café pedir sugestões. Pouco depois, era a vez de o Café do Brejo ir em busca de dicas, dessa vez no Malakoff, e assim por diante, até formar essa rede. Um dos elos entre os então futuros proprietários de cafés foi a professora Lidiane Santos, que abriu o Espaço Sensorial do Café em agosto de 2015. Antes disso, porém, a barista
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LIDIANE SANTOS
A barista montou o Espaço Sensorial do Café, onde dá aulas e forma novos profissionais
4 MALAKOFF
O estabelecimento investiu nos métodos filtrados ao invés do conhecido espresso
5 CAFÉ COM DENGO
A proposta é oferecer um ambiente acolhedor, aconchegante, no qual o cliente se sinta em casa
formada pelo Coffee Lab, em São Paulo, em 2009, espalhava as sementes do café por outros locais do Recife. Ela se interessou pela bebida por causa do Arte Café e Confeitaria, loja de sua família em Gravatá. Psicopedagoga de formação que até então trabalhava em escolas com crianças de três a seis anos, passou a ser treinadora do grão Arte Café (nenhuma relação com o nome da confeitaria). Em 2012, começou a ministrar a disciplina de Estudos e Serviços de Chá e Café na Uninassau. “Foi um laboratório que me impulsionou a estudar cada vez mais”, lembra a professora, que deu início a uma disciplina de foco semelhante na Faculdade
A técnica utilizada é determinante para dar características como doçura, acidez, amargor e corpo ao café Metropolitana, em 2016. Lidiane obteve a certificação da Associação Brasileira de Café e Barista em 2013. Como toda sua formação foi feita no Sudeste, ela queria oferecer os cursos no Recife e resolveu abrir um espaço dedicado ao café. Lidiane é a professora do curso de barista, mas conta com outros profissionais
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para cursos como o de latte art (que “desenha” o café com o movimento de colocar o leite na xícara), com o professor Gabriel Aguiar (AL), e análise sensorial com a professora Michelle Melo (PE), que busca desconstruir os sabores da bebida. As aulas de harmonização da bebida com comidas usam ingredientes como queijo, chocolate e até um surpreendente sorvete de limão. Segundo a professora, quando a harmonização acontece com um café de qualidade, a necessidade de açúcar adicional diminui. A Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic) classifica os grãos em três categorias, de acordo com uma avaliação global de todas as características sensoriais do produto. O café pode ser considerado tradicional (quando recebe nota, em uma escala de 0 a 10, entre 4,5 e 5,9), superior (entre 6 e 7,2) ou gourmet (entre 7,3 e 10). O Programa de Qualidade do Café considera que exemplares com nota inferior a 4,5 não são recomendáveis. Para serem gourmet, os grãos precisam ser 100% da espécie arábica de origem única ou com blend, ou seja, uma combinação de origens diversas. Já o termo café especial passou a ser usado pela Associação Americana de Cafés Especiais (Specialty Coffee American Association) em 1974. A metodologia utilizada para identificar cafés dessa categoria inclui uma análise sensorial realizada por degustadores profissionais de vários países, verificando 10 atributos: aroma, uniformidade, ausência de defeitos, doçura, sabor, acidez, corpo, finalização, balanço e conceito final. É preciso ter no mínimo 80 pontos para entrar para a classificação. O Brasil conta com a Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, sigla em inglês) como entidade certificadora.
EUDES SANTANA/DIVULGAÇÃO
Cardápio
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DENGO DOCE
Apaixonada por gastronomia, a bióloga Natália Valença queria abrir um negócio com o namorado, o administrador de empresas Victor Cordeiro. Ainda não sabiam exatamente o que seria, até encontrar a casa onde o Café com Dengo se instalaria em dezembro do ano passado, nos Aflitos. Foi amor à primeira vista. “Parece que veio um negócio dizendo assim: café, café, café. Ou seja, o café veio até a gente”, acredita. “Queria poder oferecer algo de qualidade ao cliente, um café realmente quente, com calor humano”, afirma. A ideia era fazer um local com cara de casa, cheio de plantas e onde animais de estimação são bem-vindos. “Eu olho e vejo a casa da minha avó, no Janga”, conta, lembrando que na infância estava sempre na cozinha com ela, raspando as panelas. A saudade do pai, que tomava leite condensado com café – e não o contrário –, deu origem ao Café Condensado. A doçura também está na sobremesa mais pedida do local, o Meu Dengo Doce, que leva
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Nessas cafeterias é possível conhecer e provar diferentes cafés
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Plantação do arábica typica, em Taquaritinga do Norte
rabanada, doce de leite, sorvete de creme e farofa de leite em pó. O almoço acompanha a proposta slow coffee, com pratos caseiros preparados na hora. Com cerca de 50 lugares e 12 mesas, a cafeteria serve espresso, coado e “café com cara de sobremesa” do grão pernambucano Yaguara. Natália conta que gostava de café, mas não entendia muita coisa sobre o assunto. Quando começou a fazer cursos de barista e latte art, encantouse pelo tema. Não imaginava que a bebida era tão complexa, com tantos tipos de torras, métodos, serviços. Começou a visitar as casas que já existiam para conhecer seus donos e foram todos muito receptivos. “Fazemos café colaborativo”, brinca. O cuidado com o grão, além da vontade de disseminar a cultura do café de qualidade, é a característica que une as cafeterias. “O café é o foco. O resto é complemento.”
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Artesanal, orgânico e ecológico
Fazenda agrestina produz café sob a sombra de árvores nativas, permitindo que o seu plantio seja possível no clima seco da região Não há mais onças na Fazenda Vale
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da Onça, em Taquaritinga do Norte, município do agreste pernambucano, localizado a 164 quilômetros do Recife. Mas o animal que vivia naquela região está no nome não apenas da fazenda, mas também do café Yaguara Ecológico, o único café especial produzido no estado. Em tupi-guarani, yaguara quer dizer onça. Ali, os grãos crescem não enfileirados, mas distribuídos por todo o terreno, sombreados por árvores. Isso permite que o plantio do café seja realizado no clima seco do Agreste. “Mais que orgânicos, somos ecológicos”, explica o americano David Peebles, por ali desde 1978. É a filha de David, Tatiana Peebles, que está no comando da produção dos grãos 100% arábica typica, “que produz qualidade e não quantidade”. Ao lado do marido Juscelino Felipe da Silva, da filha Eleonora e dos cachorros Beauregard, Chico e Luna, Tatiana conta que existe produção de café no local há mais de 200 anos e que Taquaritinga do Norte chegou a ser o sexto maior exportador do Brasil nos anos 1930. A fazenda foi ampliada aos poucos, pela compra das propriedades que iam sendo abandonadas ao longo dos anos. As casas dos antigos moradores, algumas com mais de um século, foram preservadas. Quando perguntam qual a área coberta por cafés, Tatiana não sabe precisar, pois os pés estão em toda parte. A ênfase é na policultura, com árvores frutíferas convivendo com a criação de animais. A propriedade é autossustentável – ela brinca que, se o mundo lá fora acabasse, eles sobreviveriam tranquilamente. Ela ressalta que a distância entre o campo e a mesa está cada vez maior e muita gente não tem noção da dificuldade envolvida na produção de alimentos até chegar ao consumidor final. “O elo entre as pessoas e o campo está quase inexistente”, lamenta.
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Não é apenas a forma de plantio que difere daquela da maioria dos outros produtores, mas também o processamento. O primeiro grão é colhido três anos depois do plantio do pé, mas a safra mesmo só vem com cinco anos. Enquanto a maior parte dos outros locais faz colheita com máquina, lá ela é realizada manualmente, uma vez por ano, com três a quatro meses de duração, pois apenas os frutos maduros são colhidos. Grãos verdes são considerados uma falha, então é necessário ter paciência para esperar o tempo de cada um. A sombra aumenta o tempo de maturação, mas em compensação o café desenvolve mais açúcar. Quem toma seu cafezinho diário não faz ideia, mas são necessários 60 frutos para produzir uma só xícara de café espresso. Depois da seleção e da secagem, é a hora da torrefação. Ela leva apenas 12 minutos, mas é uma fase de grande importância. Cada safra tem uma torra diferente, segundo suas características, e apenas grãos do mesmo tamanho podem ser torrados ao mesmo tempo, para que não queimem. Essa fase só acontece após a encomenda dos pacotes, pois assim o café se conserva mais fresco quando chega à xícara. A torra média resulta em um sabor mais cítrico; a escura, em um gosto mais achocolatado. O mundo dos cafés, como o dos vinhos, conta com tantas variáveis, que suas combinações são quase infinitas. Segundo normas internacionais, um café especial só pode apresentar de zero a cinco defeitos a cada 300 gramas, o que exige um processamento cuidadoso. “Ainda assim, muitas vezes restaurantes cinco estrelas não servem bom café”, afirma David, que prefere manter a produção em baixa escala. “Melhor ter pouquinha coisa, mas de boa qualidade”, complementa. “Somos um bicho em extinção”, diz Tatiana, sobre a opção pela produção artesanal. Como as onças que dão nome ao local. RENATA DO AMARAL
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Tradição
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PAI EUCLIDES Senhor completo, senhor total
Babalorixá da Casa Fanti Ashanti, de São Luís, recebeu sinais de seus dons espirituais ainda menino de seis anos, os quais honrou até sua morte, em agosto de 2015 TEXTO Guilherme Novelli FOTOS Renata Amaral
Ele já sabia que partiria. Foi à funerária, escolheu o próprio caixão, deixou tudo arrumadinho para não dar trabalho a ninguém. Escolheu até as roupas que vestiria. O medo dele era “dar trabalho”. Dizia que não tinha medo da morte, tinha medo era de ficar dando trabalho para as pessoas. Na hora da partida, estava preparado, já tinha cumprido sua missão aqui na Terra. Um mês antes de seu falecimento, há um ano, no período das festas, disse para sua irmã Maria das Graças: “Gracinha, eu estou como uma vela que o pavio está para apagar”. E ela retrucou, emocionada: “Não fala isso, porque quem vai primeiro sou eu”. Ele, então, completou: “Um de nós vai ter de ir primeiro e estou achando que sou eu quem está com o pavio apagando”. E manifestou seu cuidado e preocupação com todas as irmãs e parentes, pois pressentia que em breve não estaria mais lá para conduzir a espiritualidade deles. No período que precedeu seu falecimento, encontrou o sobrinho Henrique de Menezes, recém-chegado de São Paulo, num fim de tarde em São Luís, Maranhão. Sentado na cadeira,
disse a ele: “Essa casa não pode parar, viu? Tem que continuar. Você está longe, mas nunca deixe de estar perto, porque você foi o primeiro que aprendeu o toque do tambor para ensinar aos outros”. Não era apenas sobre o tocar que ele disse isso, mas sobre o estar junto na Casa Fanti Ashanti, para fazer parte do alicerce espiritual, da egrégora do terreiro. “Isso aqui não pode parar, tem muito tempo de história e vocês não vão deixar essa casa se acabar. Se fizerem isso, vou perseguir vocês nos seus sonhos. Procurem dar continuidade nas coisas, não pensem que eu vou deixar as coisas se acabarem”, acrescentou, com aquele jeito meio arredio e despachado de falar. Pai Euclides Talabyan, um dos babalorixás mais importantes do Brasil, respeitado também por líderes espirituais africanos, faleceu no dia 17 de agosto de 2015 na capital maranhense. E então deixou seu terreiro ao encargo dos seus seguidores, da sua família. A Casa Fanti Ashanti, centro de tradições afrobrasileiras sagradas e profanas – como o Tambor de Mina, o Candomblé, a Cura, o Baião de Princesas, o Canjerê, o Tambor
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de Taboca, o Divino Espírito Santo e o Samba de Angola –, fundada em 1958, ainda está de luto, permanece fechada até setembro para completar o ciclo de um ano da morte de seu Pai. No dia do seu falecimento, foi respeitado luto oficial num templo de Ouidah no Benim, país africano que Euclides conheceu e com o qual compartilhou dons espirituais. Anos atrás, em sua viagem à mesma Benim, Euclides tinha se impressionado com as semelhanças entre os cultos africanos e os de seu terreiro, dizendo que nos dois clãs, apesar da distância geográfica, são cultuadas as mesmas divindades.
PRIMEIROS BAQUES
Foi aos seis anos de idade, em 1944, que Euclides entrou em transe pela primeira vez. Começou a levar esses baques em casa, na escola, na rua, em qualquer lugar e a qualquer hora. Achavam que era algum problema de saúde, uma alucinação. Ele trepava em árvores, andava pela rua, dançava, invadia matagais, e os moleques iam atrás, dizendo: “Euclides tá doido! Euclides tá doido!”.
CON TI NEN TE 1
Tradição
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Sua mãe não aceitava, levou-o para o médico, depois para o hospital psiquiátrico. Fizeram exames, mas não constataram nenhuma doença. Sua tia Isaura dançava Tambor de Mina e já sabia do que se tratava. Levou-o às escondidas ao terreiro do Egito, onde Euclides dançou pela primeira vez incorporado, aos 11 anos de idade. No transe, sentia como se estivesse dormindo ou anestesiado, não entendia aquilo tudo, mas já tinha sido escolhido por Olodumaré, senhor do Destino, para a empreitada espiritual
que marcaria sua vida. E nada de dona Romana Anunciação Ferreira, sua mãe, conceber que o filho pudesse ser um líder espiritual. Achava que terreiro era lugar de cachaceiro, sem-vergonha, pederasta, que o dom do filho era coisa do demônio, uma doença. Euclides incorporava várias entidades, entre elas, o mestre de cura Adamor Serra de Andrade. Aos domingos, as pessoas se amontoavam em volta de sua casa para se benzer, pegar conselhos, remédios. Além do inconveniente com a mãe, outro
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problema era que ele não tinha nenhum controle sobre as entidades, não sabia como evocá-las. Aquilo tudo, de certa forma, o amedrontava. Brinquedo de Cura ou Pajelança é uma tradição maranhense ligada às tribos de índios locais que se difundiu, justamente, com a miscigenação dos povos, do índio, do negro e do branco. Euclides começou a procurar vários curandeiros, várias entidades para fazer sua iniciação na Pajelança, recebendo um não atrás do outro, até que um dia, já no início da década de 1950, procurou um curador famoso, José Reis, que concordou em iniciá-lo. Euclides levou os materiais para seu encruzo no Sítio do Jambeiro, Bairro do Anjo da Guarda, São Luís, lugar do brinquedo, que naquela época era mato fechado. Já de madrugada, José Reis incorporou Antônio Luís Corre Beirada, que disse para Euclides, cantando versos improvisados: “Nem Zé Reis nem ninguém tem condições de te encruzar, te iniciar. Quem fizer isso morrerá ou então você morrerá”. Outra entidade, Rei Sebastião, disse que ele não precisaria ser encruzado, tinha um dom de nascença, e que, se ele fizesse uns rituais por conta própria, seria bem-sucedido. E pediu que voltasse no dia seguinte, que ele ensinaria algumas coisas. Foi com uma discípula bem cedo, no dia seguinte, para o Rio do Batatã, de água doce. Caminharam muitas horas, entrando mata adentro para chegar ao local. Estavam assustados, em todo canto havia cobras cinzentas, marrons, verdes, pelo chão, pelos galhos de árvore. Na margem do rio, tentavam acender vela e vinha cobra nadando por cima d’água. Era pássaro para todo lado também cantando, bicho de tudo quanto é jeito. De repente, Corre Beirada se manifestou em Euclides, começou a cantar, e outras entidades começaram a se manifestar nele, também, completando o processo de chamar a linhagem dos espíritos. Ele acordou já em casa, às duas da tarde, e se deu conta de que o Corre Beirada tinha se manifestado em sua matéria e ido embora, terminando a sua iniciação. Já adulto, costumava dizer que a ancestralidade, as incorporações não eram fruto do acaso e, sim, um chamado, uma vocação, entidades superiores conduzindo-o para alguma tarefa, algum ritual.
1-2 COMUNIDADE A relação de Pai Euclides com os membros do terreiro foi de ensinamento e compromisso ALTAR 3 Como em outras casas religiosas, a Casa Fanti Ashanti dedica festas e honrarias às espiritualidades
LEGADO
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TEMPO, RITMO
O babalorixá foi um músico exímio, intuitivo, com sabedoria nata. Cantava afinado, sabia fazer abertura de vozes em terças, quintas, nonas, além de ser um ritmista muito preciso, técnico. Qualquer batida que estivesse fora do ritmo, corrigia, redirecionava. Tocava vários instrumentos de percussão: pandeiro, tambor, caixa, tambor de mina, tambor de crioula, tambor de taboca… Levava esse senso de tempo e ritmo para a sua rotina. A pontualidade era uma de suas marcas registradas. O tempo sempre regeu a vida dele. Se o ensaio da percussão fosse marcado para as 15h, não tinha cinco minutos de tolerância, não. Se ninguém chegasse na hora, ele começava sozinho, e pronto. Dormia depois do almoço, dava uma cochilada, descansava, tomava banho, café e, às 15h, chegava para treinar seu sobrinho Henrique, responsável por ensaiar os outros tocadores da casa. Tomava banho impreterivelmente às 17h. Quando dava seis da tarde, se retirava e ia descansar, não atendia mais ninguém. Se trancava, se isolava dentro de casa. Dormia cedo e acordava cedo. Era vizinho de parede de Dindinha, sua irmã mais velha. Combinava com ela que quem acordasse primeiro chamaria o outro.
Euclides era metódico e rígido no cumprimento dos rituais religiosos que conduzia. Tinha que ser executado tudo do seu jeito, não tinha acordo. “Tem que ser do meu jeito, vocês não sabem o tanto que eu tenho medo de fazer alguma coisa errada, então eu me preparo para isso.” Nunca prescindia da companhia de sua irmã mais velha,
Pai Euclides era filho de Olodumaré e incorporava várias entidades, com o mestre de cura Adamor Serra de Andrade a Dindinha. “Dindinha, eu preciso de ti mais do que nunca.” Os dois não se desgrudavam, eram muito apegados. “Meu Pai, quando o senhor vai fazer essas coisas aqui, tanto do lado de lá como do lado de cá, eu também me preparo para, quando o senhor precisar de mim, eu não errar”, dizia para ele a irmã. À tarde, os dois iam para a porta da rua e ficavam conversando. Quando dava a hora do jantar, ele entrava. Não fazia nada com pressa, estabanado. Impunha sempre o tempo dele, onde quer que fosse, até em presença de autoridades.
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Era uma característica bem particular de Pai Euclides congregar, não fazer distinção, trazer várias manifestações afro-brasileiras para a Casa Fanti Ashanti. Devido ao seu incomum dom espiritual, que abriu caminho em várias direções das tradições sagradas e profanas, é considerado um símbolo de resistência e ativismo da cultura afro-brasileira. Euclides era curioso, pesquisador, lia muito sobre tradição. Manteve vivo um calendário cultural religioso e profano na Fanti Ashanti de dar inveja a qualquer outro terreiro, pela diversidade e a grandiosidade de suas festas, tornando-se um personagem importante de difusão dessa cultura. É autor de livros e CDs que falam de temas do Baião de Princesas, Tambor de Mina, Cura, publicações escritas sobre os fundamentos religiosos e a importância da religiosidade africana no Maranhão e no Brasil. Seu legado também se espalha imaterialmente, na imensidão de filhos de santo que têm terreiros espalhados pelo país e pelo mundo, baseados na metodologia dele, e ainda antigos seguidores ou admiradores. Como a ancestralidade chegou para ele de forma bastante natural, quase sem influência de nenhum mestre, quando foi para a África viu que tudo o que aprendeu era autêntico e igual ao que tinha lá. Eram as mesmas doutrinas, praticamente. As mesmas entidades, inclusive, pois quando chegou a um terreiro do Benim, sentiu que uma pessoa estava dançando incorporada com o mesmo sinhô que ele incorporava. E assim ele foi deixando muita saudade, história, arte incrustada nos corações de quem ficou e presenciou sua alegria, sua vitalidade, sua dança, seu amor: “Envolto no branco do branco, dorme no branco do branco, de dentro do branco rebrilha, ilumina o rumo do rumo, senhor completo, senhor total, pai” (Poema tirado do livro Oriki de orixá, que Pai Euclides gostava de recitar).
MINORU NIIZUMA/ DIVULGAÇÃO
YOKO ONO Uma arte relacional
Exposição Dream come true, da artista japonesa, está em cartaz no Malba até 31 de outubro, abrangendo 60 anos de carreira TEXTO Mariana Camaroti, de Buenos Aires
Visuais
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DIVULGAÇÃO
1 CUT PIECE Performance realizada pela artista em 1964, no Carnegie Hall 2 WAR IS OVER! Artedoor de Yoko e John Lennon ocupa cidade de Nova York, em 1969
Passaram-se 60 anos desde que Yoko Ono começou a sonhar com um mundo melhor e a tratar de sensibilizar o público para que este se tornasse ativo em sua obra e, assim, fosse somado a um movimento global em defesa da paz, da conservação do meio ambiente, da sanidade mental e da igualdade de gênero. Observando o mundo e lendo as notícias e redes sociais de hoje, o sonho de Yoko – compartilhado com seu marido e parceiro artístico John Lennon – continua sendo mais do que atual. É necessário e urgente, na medida em que países sucumbem em conflitos armados, milhões de migrantes e refugiados se deslocam, a temperatura do planeta sobe e histórias de violência dos mais variados gêneros aterrorizam a sociedade, somando-se a estes problemas o fato de esta mesma sociedade exasperar-se em gestos de intolerância em rede virtual. Pioneira no questionamento do conceito e do objeto de arte, Yoko rompeu fronteiras tradicionais que dividem disciplinas artísticas, concentrando-se na arte conceitual e participativa. Não importa o material
A artista japonesa concentrou sua obra na arte conceitual e participativa, usando vários suportes e mídias – texto, escultura, filme, música, instalação – ou o canal –, exposição em museu, cartazes em via pública ou redes sociais. A linguagem clara, universal e poética é sua matéria-prima para transmitir ideias ao público, que, por sua vez, precisa atender às suas solicitações e adotar um papel ativo para que as obras se concretizem. Logo, esta obra se esfuma e o que resta é a sensibilização, a mensagem, a mudança de conceito. Coerente com seu engajamento político e social e fiel à arte conceitual, essa japonesa de 83 anos, que se mantém em plena atividade, defende em sua obra a filosofia de que um indivíduo é
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parte do outro, que devemos nos conectar física e espiritualmente e que as ações feitas de forma coletiva trazem maiores benefícios individuais e para a sociedade. Yoko é a autora da ambiciosa mostra Dream come true, em exposição no Museu de Arte Latino Americana de Buenos Aires (Malba) até 31 de outubro. É a primeira vez que a sua obra desembarca em território argentino e está previsto que uma exposição sua seja realizada também no Brasil. Com mais de 80 trabalhos, representados em objetos, eventos, rituais e ações, a coleção é resultado de uma exaustiva pesquisa do museu e da artista, das seis décadas de trabalho, e traz suas “instruções” mais importantes. Em Imagine a paz, o púbico deve marcar, em um enorme mapa, o lugar em que deseja que haja paz no mundo. Em sua Pintura de teto, pintura do sim, de 1966, através da qual ela conheceu Lennon, o público recebe a instrução “suba a escada, observe a pintura do teto com uma lupa e encontre a palavra Sim”. Essa mesma
ODED LOBL/ DIVULGAÇÃO
3 INSTALAÇÃO Pintura de teto, pintura do sim, criada em 1966, convida o visitante à participação
Visuais
4 WATER EVENT Propostas de ação feitas pela artista foram registradas em impressos, como neste de 1971
“É importante notar que, se as instruções de Yoko são voltadas para o mundo em si, é porque também o levam e condensam. Não são uma criação em si mesma que pretende ser meramente comunicada, mas tentam devolver, em quem as escuta, a consciência desse lugar, desse mundo em que estão”, interpreta Perez Rubio. “Por isso, a obra dela pode ser lida como um corpus teórico com uma agenda política, desde o começo até hoje.”
ALÉM DO MUSEU
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palavra é espalhada em cartazes em avenidas e em botons, como uma instrução e ação positiva, um desejo de afirmação e autoafirmação. Também fazem parte da mostra Peça voo (com a instrução “voa”) e Peça sorriso (“passe uma semana rindo”), ambas de 1963, e o filme Sorriso (1968), no qual se vê a cara de John Lennon em primeiro plano, com a boca entreaberta e indiferente no início, culminar com um gesto de franca alegria. Estão também presentes suas peças sussurradas, com as quais, desde 2001, incentiva que as pessoas usem, penduradas às roupas, palavras como Sonhe, Toque e Ria. “Yoko é uma artista de uma coerência incrível, com obra de
características próprias, com conceitos, ideia de arte e compromisso político que se desprendem da sua própria arte”, atesta um dos curadores da mostra, Agustín Perez Rubio. “O uso de materiais é o que menos importa. A linguagem é sua primeira ferramenta, e daí ela escolhe se compõe em instalação, escultura, som ou filme. Seu compromisso é a conexão de um com outro e isso tem a ver com a cultura oriental”, completa. O título da mostra – Dream come true – pode ser lido como uma metáfora da sua trajetória artística, mas também uma referência à atual situação mundial, que pode ser melhorada por meio de uma participação coletiva e intercâmbio criativo.
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A mostra extrapola as paredes do Malba e ganha as ruas com frases e instruções – como “Renda-se à paz” – transmitidas em rádio e impressas em jornal, assim como mensagens transmitidas pelas redes sociais. Yoko começou a mobilizar o público dois meses antes da inauguração, com uma convocatória pela internet chamada Ressurgimento. Nela, convida mulheres de toda a América Latina a enviarem fotos dos seus olhos e um relato sincero, com suas próprias palavras, de alguma violência de gênero que tenham vivido. A experiência, realizada recentemente na Cidade do México e que seguirá por outros países até tornar-se um livro, busca liberação e cura do trauma através da história compartilhada. As capturas dos olhos e textos enviados estão expostas na instalação Ressurgimento na mostra no Malba. “As obras de Ono são fundadas em um conceito que vai se cristalizando, não tem uma dimensão psicológica, associações, subjetividades. Sua elaboração material está determinada, em boa medida, pelo espectador e participante”, explica um dos curadores, Gunnar B. Kvaran, que também é diretor do Museu Astrup Ferley, de Oslo.
REPRODUÇÃO
VIDA, AMOR E OBRA
Nascida em 1933 em Tóquio, Japão, Yoko Ono mudou-se com a família para os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Viveu entre as cidades de Tóquio, São Francisco e Nova York, sendo esta última a que escolheu para viver. Sua família queria que estudasse música, mas ela preferiu seguir seus sonhos e tornouse a primeira mulher matriculada no curso de Filosofia da universidade japonesa Gakushuin. Mais tarde, formou-se em Poesia e Composição Contemporânea no Sarah Lawrence College, Nova York. Na cosmopolita e frutífera cidade para a arte de vanguarda, iniciou sua carreira ligada à arte conceitual e passou a fazer parte do grupo neovanguardista Fluxus. Participou de performances e de happenings dos anos 60. Sua obra ganhou projeção e atraiu interesse, incluindo o de Peggy Guggenheim e Marcel Duchamp. Também capturado pelo seu trabalho, John Lennon quis conhecer a artista, o que aconteceu em 1966. Os dois se apaixonaram e
Nascida em Tóquio em 1933, Yoko migrou com a família durante a 2ª Guerra, vivendo entre LA, NY e sua cidade natal compartilharam ideias, bandeiras de paz e amor e a vida artística. Vinculados à música pop, eles criaram a banda Plastic Ono Band, realizando eventos em defesa da paz mundial, como o Bed In, em Amsterdã (1969) e Montreal (1968). Deitados numa cama, eles convocaram a mídia e o interesse do público clamando contra a guerra e a favor do amor. Yoko realizou filmes conceituais, como Fly, e discos marcados pelo experimentalismo, alguns deles junto com Lennon. Após o assassinato do ex-beatle, em 1980, ela reduziu sua produção e deixou entrever em sua obra seu sentimento de perda. Porém, a partir de 1989, retoma exposições,
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com esculturas relacionadas à sua produção da década de 1960. A partir dos anos 2000, mantém-se muito ativa com intervenções em espaços públicos, internet e colaboração com artistas musicais. Sua filosofia motivadora e instruções positivas, coesas, permaneceram em uma linha de tempo e não se contaminaram pelas experiências vividas – mudança de país, ser vítima de preconceito e ter testemunhado o assassinato do marido – e a carga negativa que Yoko recebeu ao longo da vida. Acusada e odiada por muitos, por supostamente ter separado os quatro garotos de Liverpool, e lembrada apenas como “a viúva de Lennon”, a artista soube construir uma obra autêntica e fértil, emanando otimismo, serenidade e amor. Monta e inaugura exposições pelo mundo, enquanto nutre diariamente seus 4,8 milhões de seguidores no Twitter com mensagens de inteligência emocional, libertação e afeto, mantendo viva a memória do seu grande amor.
DING MUSA/ DIVULGAÇÃO
Visuais CORPO O sujeito como meio de expressão artística Livro registra os 10 anos da mostra anual Verbo, que se firma como encontro para a fruição da efêmera arte da performance TEXTO Marina Moura
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Em 1959, uma das primeiras ações
do grupo de vanguarda Fluxus – que propunha o fim de museus e galerias de arte – foi promover um concerto satírico ao ar livre: a atração do evento era destruir um piano ou violino, numa referência ao manifesto Arte autodestrutiva, de Gustav Metzger. Durante a década de 1960, o coletivo promoveu eventos públicos e anárquicos em países europeus, como Alemanha, e nos Estados Unidos. Precursor da arte conceitual, o Fluxus também lançou as bases da performance, cujo
Um dos pilares da arte performática está assentado, segundo o curador Fernando Oliva, na “relação tensa, estranha, afetiva e familiar, entre o performer e o espectador”. Não se pode negar, contudo, que, atualmente, há o suporte de tecnologias capazes de documentar e registrar performances, podendo prescindir, inclusive, da presença do outro, mas seu espaço de atuação mais profícuo continua a ser o aqui e agora. Pensando na necessidade de criar mecanismos e iniciativas que contemplassem os artistas performáticos, em 2005, a curadora e crítica de arte Daniela Labra, em parceria com a Galeria Vermelho, em São Paulo, criou a Verbo, mostra de performance arte anual. Ao longo de 11 edições, já passaram por lá cerca de 500 artistas nacionais e internacionais, com mais de 300 ações, todas abertas ao público.
Um dos pilares desta manifestação artística é a “relação tensa, estranha e afetiva entre o performer e o espectador” Assim, a Verbo se consolida como uma proposta de relevo na área e, agora, lança livro homônimo que conta a história da mostra.
COMPILAÇÃO
conteúdo se confunde com o corpo do artista, a um só tempo sujeito e meio da expressividade artística. Por sua natureza deliberadamente efêmera, poucas obras produzidas pelo grupo se mantiveram ao longo do tempo. Ainda hoje, a performance sustenta-se dessa mesma efemeridade: o corpo do artista, a obra e o público se conjugam para se transformarem em elementos estéticos da arte performática, atrelada ao tempo em que ocorre e, por isso, não pode ser replicada.
A obra apresenta, por meio de fotos e textos, a cronologia de 10 anos da Verbo. Além de Marcos Gallon, diretor artístico da mostra e organizador da publicação, há escritos dos curadores Fernando Oliva, Agnès Violeau (França) e Liliana Coutinho (Portugal); dos artistas Carla Zaccagnini (Argentina) e Jaime Vallaure e Rafael Lamata, “Los Torreznos” (Espanha); da arquiteta e urbanista Marta Bogéa e da jornalista especializada em cultura e arte Teté Marinho. Em 2005, a organização da Verbo convidou artistas para participarem da mostra e, seguindo o mesmo procedimento em 2006, contou com o apoio de fundações da Finlândia e do País de Gales. Já em 2007, o
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processo de seleção foi democratizado, e qualquer um pôde submeter seu projeto à avaliação do evento. Nesse ano, houve 350 projetos inscritos e 33 selecionados. A grande procura foi um susto positivo para o júri (composto por Daniela Labra, Marcos Gallon e Eduardo Brandão) e já mostrava a relevância de garantir espaços para a performance. A partir de 2008, e durante as cinco edições seguintes, foi criado, paralelamente ao festival, o seminário Verbo Conjugado, com o objetivo de discutir questões atuais acerca da arte performática e da relação que guarda com outras modalidades artísticas. O destaque de 2014, para comemorar a décima edição do evento, foi a realização de atos performáticos nos espaços públicos, para além da Vermelho. No ano passado, artistas selecionados e convidados dividiram a cena com uma exposição de fotos, vídeos e instalações. O que podemos observar, diante do retrospecto, é que, tal como a performance, uma linguagem híbrida, cambiante, efêmera, a mostra Verbo tomou para si tais características e tem procurado ser um lugar de autonomia artística, no qual “não há o objetivo de formular uma teoria unificada acerca da performance arte, uma verdade maior e melhor que as outras”, afirma Gallon, na introdução ao livro. A Verbo pode ser vista como uma tentativa de “libertação do ato performático, deixando de lado qualquer tipo de cobrança no sentido de ‘dizer’ ou ‘narrar’ algo”, nas palavras de Fernando Oliva, quando escreve Uma nova performance para um novo público.
ORIGENS
Não se pode deixar de notar que, junto à origem da performance enquanto paradigma artístico, importantes movimentos político-culturais vieram à tona, como o dos hippies, das feministas, dos LGBTs e ecologistas. A linguagem performática naturalmente absorveu tais questões e, por isso, veio carregada das causas reivindicativas que emergiram à época, apresentando ao público corpos em cenas contestadoras, que faziam questão de negar o mercado da arte e os desajustes do sistema capitalista. O diretor artístico da Verbo, Marcos Gallon, refuta quaisquer contradições que possam existir no fato de a
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Visuais Vermelho, sendo uma galeria comercial, promover um festival de performance. Para ele, é importante diferenciar o contexto dessa modalidade nas décadas iniciais de seu desenvolvimento – em que havia um espaço de combate à fetichização da arte – e o que se vê nos tempos presentes. “A arte atual incorporou estratégias do sistema de produção, reprodução, edição, distribuição e comercialização do mercado. Ou seja, o capital, como em todos os âmbitos da sociedade contemporânea, passou a ditar as regras no campo da arte, e a performance, por mais contundente, feroz e atrevida que seja, e é, não está fora desse eixo”, afirma, em entrevista à Continente. Não se trata de uma relação apaziguadora entre os artistas performáticos e a crítica ao conjunto de valores, mas, antes, uma tentativa de “manter seu potencial crítico”, diz Gallon, dentro desse mesmo cenário que critica. A artista visual pernambucana Juliana Notari, que participou das edições de 2006 e 2008 da Verbo, entende que, ainda hoje, a performance mantém seu status de linguagem arredia, rebelde, “e por isso ela é potente”, mas reconhece que “o sistema sempre dá um jeito de englobar a arte”. No entanto, acredita que “a arte está sempre se reinventando, então há a possibilidade de burlar, criando ruídos e fissuras dentro do próprio sistema”. Para Notari, a performance continua a ser, no escopo das artes visuais, uma das linguagens mais interessantes e combativas. “Querem aprisioná-la a um museu, a uma instituição, e ela vai saindo por ali, pela tangente. Inventando novas maneiras de sobreviver. Como ela é, por natureza, difícil de ser adaptada, domesticada pelas instituições, pelo poder que circula o mundo da arte, fica às vezes sem espaço”, acredita. Por conta de tais ambivalências e da dificuldade de se inserir nos cenários artísticos tradicionais, Juliana Notari enxerga a Verbo como uma das poucas plataformas no Brasil que procuram “divulgar, incentivar e abrir as portas para os artistas que se propõem a trabalhar com a performance”.
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Em sua primeira participação na mostra, a artista apresentou Symbebekos, um caminho de garrafas de vidro quebradas, o qual atravessava descalça. Juliana já havia feito a ação performática anteriormente, mas, na ocasião, o clima estava muito frio e ela fez um aquecimento que deixou o seu corpo superquente. O resultado é que a artista se cortou bastante, mas não sentiu dor, devido ao choque de temperatura. Ela lembra que “o objetivo não era se machucar, e,
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sim, passar ilesa por ali”. A situação aponta para um outro elemento caro à performance e de onde vem boa parte da sua força – a imprevisibilidade. “A arte performativa se constrói com o público, o tempo e o espaço, e, por isso, o artista não tem controle total do próprio trabalho”, avalia. O resultado inesperado gerou um estreitamento com os espectadores, e, na opinião dela, foi emocionante. “Parecia um caminho oriental, representando o caminho da vida mesmo, com rastros de sangue.”
RAFAEL CAÑAS/ DIVULGAÇÃO
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VERBO 2016
A 12ª edição da Verbo acontece entre os dias 26 e 30 deste mês, na Galeria Vermelho. Ana Montenegro, Juliana Moraes, Wilson Sukorski, Coletivo Cartográfico, Enrique Jezik, Fabiano Rodrigues e Marc Davi são alguns dos confirmados. Um dos destaques dessa edição da mostra é a artista espanhola Dora Garcia. Na obra The artist without a work, ela propõe uma visita guiada a uma exposição de arte sem qualquer objeto. O trabalho sugere vários questionamentos
referentes às artes conceituais e, sobretudo, à performance arte, que rechaça a lógica do sistema e dos espaços institucionalizados. Para Marcos Gallon, este é um exemplo de que, na performance, “como em qualquer campo do saber ou da prática, o produto artístico acabado é por natureza apenas uma sombra do que queria ser originalmente”. Essa ideia, aliás, nos remete às investidas do abstracionista Jackson Pollock (1912–1956), que jamais fazia esboços e arremessava tintas sobre a
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1 JULIANA NOTARI
Em Symbebekos, artista caminhou em meio a cacos de vidro na galeria
2 BLUEGORILLA
Dueto de dança de Olivia Reschofsky e Alice Pons é realizado desde 2013, nas ruas
tela, em sua técnica de action painting (pintura em ação). Assim como na obra de Garcia, o que importava a Pollock era menos o produto acabado que a sua feitura. É do processo que falamos em primeiro lugar quando nos referimos à performance, mas não só: é do entendimento de que o processo do corpo é a própria arte.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
CÍCERO DIAS, VLADIMIR E EU É sobre o filme Cícero Dias - o
compadre de Picasso de Vladimir Carvalho. Eu vi o mundo... ele começava em Cícero Dias. Confirmei isso depois de assistir a esse belo filme. Isto é, eu já sabia; mas foi no filme, me vendo falar, que me convenci. Vladimir me pôs à vontade, me filmou do jeito que eu estava e como vivo normalmente em casa, nu da cintura para cima, e fui falando como de mim para mim. Ninguém precisou me ensinar arte moderna depois da exposição de Cícero Dias em 1948, eu com 16 anos, em estado bruto. Mal tinha saído do internato do Colégio Marista, na atual Avenida Conde da Boa Vista, rua naquela época, não conhecia ninguém e nem sei como soube da exposição. Não me passava pela cabeça seguir pintura. Não sabia o que queria estudar depois do colegial. Fui estudar direito, justamente no lugar da exposição de Cícero Dias três anos antes, Faculdade de Direito do Recife. Costumo datar meu ingresso no mundo da pintura da ocasião em que
encontrei por acaso Ivan Carneiro, excolega de colégio, bem em frente da minha casa, isto é, casa dos meus pais, recém-chegados de Ipojuca, na Rua de Santa Cruz. Ivan não se lembrava do meu nome nem eu do dele. Mas ao vê-lo, e ele a mim, sabíamos um do outro o suficiente para ele me perguntar: “Ainda gosta de desenhar?” Foi assim que fui convidado a tomar parte na fundação do Atelier Coletivo, dirigido por Abelardo da Hora. A essa altura pois, 1952, eu cursava a Faculdade de Direito mas logo, em vez de ir para a Faculdade, ia direto para o Atelier Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife, a partir desse encontro fatal com Ivan Carneiro. Conheci Picasso através de Cícero Dias. Para mim, Picasso era confiável em consequência do aval de Cícero Dias. Acho até que os herdeiros de Cícero Dias deviam me ressarcir de ter gasto todo o dinheiro que tinha, anos depois, 1980, para ver a retrospectiva de Picasso no Moma, The Museum of Modern Art, New York, Pablo Picasso: A Retrospective, 22 de maio a 16 de setembro. Ao mesmo tempo me
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pergunto quem maior herdeiro do que eu, que venho me alimentando deles, de Picasso e de Cícero, durante toda a vida. Hein, Dóris? No filme dá para ver melhor do que nunca o quanto Cícero Dias é “solar”, palavra que emprego no meu depoimento no filme, é puro e pagão, como sua vista é limpa de preceitos e preconceitos e como tudo é paisagem de canavial, do banho de rio aos murais da Secretaria da Fazenda, a mesma coisa as aquarelas iniciais e a época abstracionista, visão essa ajudada pelas fusões que o cinema oferece ou provoca, as imagens se fundindo na nossa mente. Foi muita felicidade de Vladimir alcançar o pintor ainda em vida assim como sua mulher e outros que o conheceram mais de perto. Cícero Dias é um desses pintores que quanto mais se sabe sobre ele mais ele cresce, inteiro e único, uma coisa só, sem nunca se ter imposto limites de qualidade nenhuma. Uma vez perguntei a ele um tanto imbecilmente qual era a última moda em Paris, ele respondeu: “É você engajar-se com você mesmo
REPRODUÇÃO
e fazer o que quiser”. Que retrato dele mesmo e de todo grande pintor! Sua combinação de cores não tem igual em toda a história da pintura, a claridade, a cor-de-barro e verde-cana, nele tão natural como se respirasse. Como disse sua mulher Raymonde no filme, ele sempre vivia no Recife. Vladimir pinta um belíssimo quadro, não sei se de Cícero ou dele, com aquela mulher nova saindo do banho de rio, rio intimista, rio de dentro as canas, não o que nos acompanha durante o filme que sai de debaixo de um teto, debaixo das pontes, ora o Cabibaribe, ora o Sena. Tocante, aquele cavalo de pobre andando por dentro das ruínas da casa-grande, escombros de nossos sonhos, de nossa própria vida, de um Pernambuco que ficou parado no ar, como o quarto de Manuel Bandeira, nos quadros de Cícero Dias. O autor do filme não se poupou, nos levando a Cícero com o maior amor em cada metro da fita. Por acaso estou escrevendo com uma canetinha preta que solta a tinta fácil e leio: “made in Vietnam”. Ai,
Conheci Picasso através de Cícero Dias. Para mim, Picasso era confiável em consequência do aval de Cícero Dias Vladimir, quanta coisa a gente viu, eu hoje com oitenta e quatro anos, você com oitenta e dois - oitenta e três. Quem jamais teria ouvido naquela época esse nome Vietnam? Quando a guerra, a Segunda Grande Guerra, que a primeira a gente não alcançou, acabou, a gente pensava que tinham se acabado todas as guerras da face da terra, restando os pecados de cada um. Como foi a guerra lá em João Pessoa? Em Ipojuca papai vendeu na loja muito pano preto para tampar as janelas nos exercícios de blecaute. Eu queimei o dedo botando caco de vidro na chama do cuviteiro para empretecer e através do vidro esfumado olhar o eclipse do sol, os urubus pousando nos coqueiros
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1 AMIZADE ícero Dias e C
Pablo Picasso
2 VLADIMIR CARVALHO irigiu o filme Cícero D Dias - o compadre de Picasso
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meio-dia em ponto para dormir pensando que era de noite e eu ligava o fenômeno à guerra, “Viva o Brasil morra o eixo”, a faixa atravessando de um lado ao outro da rua, a orquestra de Zé Marinho atrás tocando o Hino Nacional. Foi com essa mentalidade que entrei interno no Colégio Marista para voltar ao mundo pela exposição de Cícero Dias. Pena você não ter botado no filme o depoimento enxuto que saiu no catálogo É tudo verdade: “Cedo o nome de Cícero Dias era ouvido em casa por conta do meu pai, que curtia a arte e a literatura. Ele próprio era desenhista e escultor. Quando da polêmica exposição de Cícero, em 1948, no Recife, viajou para ver o que acontecia e de volta teve calorosa discussão com um meu tio, arquiteto e muito reacionário, que considerava um embuste a arte moderna. Esse clima foi de total influência na minha formação, e tornou-me sempre atento ao novo, sem preconceitos. Assim Cícero Dias - o compadre de Picasso aconteceu de forma espontânea, nunca deliberada”.
HALLINA BELTRÃO
Leitura ROMANCES Mulheres diante de si mesmas
Em Ana de Amsterdam e Azul e dura, Ana Cássia Rebelo e Beatriz Bracher expõem personagens que olham para dentro com melancolia TEXTO Marina Moura
C O N T I N E N T E J U L H O 2 0 1 6 | 74
tirania dos filhos, Ana Cássia Rebelo senta-se em frente ao computador e escreve”, ele nos informa. O trecho é revelador, porque dá a dimensão do que trata a escrita de Ana Cássia (autora) e de Ana Clara (narradorapersonagem): ao decidir escrever, uma mulher carrega consigo todas as dificuldades que o gênero lhe impõe e, que em alguma medida, impedem ou adiam-lhe a escrita. Dito isso, vamos às apresentações. Ana Cássia Rebelo nasceu no ano de 1972, em Moçambique, e mudou-se para Portugal quando tinha cinco anos. Jurista e funcionária pública, é divorciada e mãe de três filhos. Desde 2006 mantém um blog, cujo título Ana de Amsterdam (http:// ana-de-amsterdam.blogspot. com.br/) refere-se à música de Chico Buarque, da qual lhe atrai especialmente o verso Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada, sendo
O relato confessional de Ana Clara é avesso aos papéis anteriormente indentificados com o feminino
A supremacia do ponto de vista
masculino faz-se presente tanto nos espaços físicos quanto nas estruturas mentais, e não poderia deixar de produzir ecos no cenário da literatura contemporânea. Ao abrir o livro Ana de Amsterdam (Biblioteca Azul, 2016), deparamo-nos com um prefácio, assinado pelo crítico português João Pedro George, incomum aos textos de apresentação de obras escritas por homens. “Assim que a casa sossega, ultrapassada a barreira dos afazeres domésticos, livre dos protestos e da
ela mesma filha de uma alentejana e um goense. Em 2015, publicou em seu país um livro homônimo, que reúne postagens do blog no formato de diário íntimo ficcionalizado. A narrativa em primeira pessoa é feita pela personagem Ana Clara – advogada, esposa, mãe –, que declara, em tom de ironia: “Só conheço pessoas realizadas, razoáveis, sãs. A minha irmã tem as contas em dia, a nova secretária nunca come fruta sem ser lavada e, ontem, uma criança censurou-me por atravessar a rua fora da passadeira”. O relato confessional de Ana Clara é avesso aos papéis anteriormente identificados com o gênero feminino e se constrói a partir da problematização do que supostamente está relacionado à realização pessoal das mulheres. Assim, está posta a geografia de uma mulher com o olhar atento às suas diversas
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maneiras de ser e estar no mundo – a maternidade, a sexualidade e o corpo que experimenta o envelhecimento são dimensões frequentemente analisadas e questionadas em Ana de Amsterdam. Outro fator que permeia todo o discurso da narradora e funciona como mediador da realidade é a depressão, manifestada em sentimentos que saltam da melancolia ao desespero. “Às vezes, tenho a sensação de que dentro do meu corpo habita um bicho voraz que se alimenta da minha tristeza. Uma espécie de tumor que cresce à medida que os dias passam iguais”, escreve. No prefácio, Pedro Jorge faz questão de frisar que, em Ana Cássia, a escrita não é uma extensão de episódios depressivos, mas uma espécie de sublimação deles. Aqui, narrar “não substitui o Xanax nem o Cipralex, mas ajuda a esquecer, por instantes, a dor, a reclusão doméstica, a vitalidade diminuída”. O interesse da personagem no discurso que constrói não passa pelo simples lamento ou desabafo, nem configura-se como mero transbordamento de emoções. A impressão que temos é de que, para a narradora, a literatura funciona como um projeto de compreensão da própria vida. Nesse sentido, é pertinente, aliás, a observação feita por Jacqueline Rose, biógrafa da poeta estadunidense Sylvia Plath (1932–1963) e que também pode se aplicar à análise dos escritos de Ana: “Não estou interessada em saber se ela era patológica ou não (…) Só podemos fazer afirmações do tipo se estivermos seguros de nossa própria sanidade, o que considero uma posição moralmente inaceitável”.
MATERNIDADE
Se, por um lado, rechaça o instinto materno como única via possível para a relação com os filhos, Ana Clara admite “um amor táctil, quase obsceno” a um dos pequenos, João, e teme que, quando ele crescer, “seu corpo deixará de ser o meu corpo”. Há, portanto, um entendimento de que o sentimento pelas crianças tem muito de físico, e em diversas passagens ocorre a diluição dos limites do que seria a identidade dela e a dos filhos. Em outra situação, a narradora se põe nua em frente ao
FOTOS: DIVULGAÇÃO
1 ANA CÁSSIA
Leitura
REBELO
o seu livro, a N personagem narradora é Ana Clara, “advogada, esposa, mãe” BEATRIZ BRACHER 2 Autora cria personagem de meia- idade, numa narrativa permeada pela tristeza
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do meu corpo. Passo a ser um mero invólucro. Uma cabaça. Um casulo.” Um dos ápices de sinceridade da autora é quando confessa: “Amo os meus filhos. Com fúria, com certo desespero. Quero-lhes bem. Mas não me basta o que têm para me oferecer”. A força de Ana de Amsterdam encontra-se justamente nessa consciência de que as coisas, as pessoas e as posições ocupadas pela personagem não são capazes de lhe proporcionar plenitude enquanto indivíduo. “Não fora o desejo e a insatisfação, e seria uma mulher moderadamente feliz”, afirma.
AZUL E DURA 2
espelho e não gosta do que vê. “Depois de alguma hesitação, resolvi enfrentála. Afinal, pensei, foi por ali, por tal abertura, que os meus filhos abraçaram o mundo. Foi ela, a minha vagina, que se dilatou e lhes franqueou a chegada. Foi ela que mos trouxe. (…) Portanto, nem que fosse pelos meus filhos, eu deveria enfrentar a minha vagina.” O momento, extremamente íntimo, é associado por ela aos pequenos, que com sua presença física deveriam diluir o mal-estar que experimenta com o próprio corpo. A passagem
é mais um exemplo de que há um tipo de cumplicidade de Ana Clara para com os filhos que não pode ser compreendida de maneira lógica, mas através das marcas e da história de seu corpo. No romance, ainda há espaço para os fracassos e incômodos da maternidade. O mesmo corpo, com frequência associado e circunscrito à esfera maternal, dá sinais de esgotamento dessa atribuição. “Detesto estar grávida. Sempre detestei. Perco o controle
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Tanto a escrita fragmentada quanto o mote narrativo de Ana de Amsterdam assemelham-se ao livro de estreia da paulistana Beatriz Bracher, Azul e dura (Editora 34, 2010). Na obra, Mariana, narradora de meia-idade, organiza antigas anotações e se propõe a escrever um relato que abarque as várias faces de sua vida – dona de casa, esposa, mãe. “Tenho quarenta e dois anos e dois filhos. Tomás tem dezessete, Gabriela tem quinze”, apresenta-se. Como é o caso de Ana Clara, a história de Mariana é também permeada pela tristeza provocada pela depressão. A preocupação de não
INDICAÇÕES tornar a narrativa refém do aspecto depressivo de sua personalidade é aqui evidente: “É essencial que o que vai ser escrito não seja fruto da depressão nem do antidepressivo. Ambos geram sentimentos banais. Não são pensamentos, a doença está no comando”. Em dado momento, Mariana diz que “lembrar dói”. A leitura de Azul e dura é algo como um relicário aflito diante da extrema dificuldade de ser e “estar dentro do que é do que sempre foi esperado”. E mais uma vez a maternidade é questionada em sua impossibilidade de preencher todas as lacunas femininas: “Ser parte, ter uma função clara, igual, ter gestos, pensamentos e preocupações iguais, iguaizinhas a todas as mães na sala de espera do pediatra, na feira com o carrinho de bebê, sorrindo orgulhosa dos elogios ao filhote”. Ainda assim, quando afirma continuar “a história das mulheres da minha família”, a protagonista coloca-se como corpo indissociável dos seus rebentos. Diante do nascimento do filho mais velho, Mariana compreende que “Tomás iria crescer exatamente da mesma maneira que os bebês crescem e não era eu que estava no mundo, Tom e eu éramos um mundo, imenso e protegido, igual a todos os outros criados antes e depois de mim”. Percebemos, desse modo, que Mariana e Ana Clara exploram as arestas da maternidade em todas as suas dimensões. Sobre a estrutura do romance moderno, a filósofa alemã Hannah Arendt (1906–1975) afirma
que “muito embora as histórias sejam resultado inevitável da ação, não é o ator, e sim o narrador que percebe e ‘faz’ a história”. A força da narrativa, então, está em quem e como conta, e não exatamente no teor do relato. Ora, que as duas narradoras sejam também protagonistas dos livros em questão já nos dá uma ideia do caminho escolhido pelas autoras. Não são textos permeados por uma série de acontecimentos sucedendo-se a outros. São fragmentos de cotidiano, brigas, afetos, trabalhos, sonhos e impressões que buscam dar conta do sentido da experiência de cada uma, revelando as entranhas das personagens. A Ana Clara e Mariana interessa reinventar a vida de maneira viável à narrativa que constroem. Não é exatamente o encontro com o outro que elas esperam para desabafar, mas o encontro com o discurso literário, que em ambos os casos possui um valor catártico, voltando-se para as protagonistas no sentido de apreender, aceitar, entender o próprio destino. Como se a identidade de cada uma só pudesse ser finalmente reconhecida através do exercício da literatura, para compor um retrato de si que nunca viram. “Não há dúvida, apenas porque somos de algum lugar é que somos alguém”, afirma a personagem de Azul e dura. E é sobretudo no espaço narrativo que as duas se encontram consigo. Escrever, para elas, portanto, é uma maneira de se saberem vivas.
POESIA
ROMANCE
Edição do autor
Carambaia
LÉO ASFORA Além das palavras
MAX BLECHER Corações cicatrizados
Em sua primeira incursão na produção poética, o produtor cultural Léo Asfora reúne textos que produziu entre 1988 e 2015 e os apresenta ao leitor em ordem cronológica. Alinhava essa produção o desejo de expressão de uma dor existencial que acompanha o autor desde muito cedo. Numa construção quase sempre em verso livre, Asfora também se ocupa de rimas.
Publicado originalmente em 1937, e baseado na experiência do autor, o livro acompanha o tratamento de Emanuel, estudante de Medicina que é diagnosticado com tuberculose óssea. O protagonista parte para um sanatório, onde descreve a vida de limitações impostas pela doença e o convívio entre os enfermos. A leitura torna-se horizontal, quando o personagem passa a viver deitado.
CONTOS
TEATRO
NEWTON MORENO Ópera e outros contos Edição do autor
Vinte e cinco narrativas integram o primeiro livro de contos do encenador. São histórias de personagens desprovidos, postos em situações que vão do dramático ao grotesco. Destaque para as histórias mais bem-urdidas, O livro e Ressurreição, dramas familiares que ganham notas fantásticas, pela iminente perda da visão, na primeira, e a volta da mãe morta, na segunda.
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VASSÍLI TOPORKOV Stanislávski ensaia – Memórias É Realizações
Toporkov foi ator de prestígio em Moscou entre os anos 1920–40 e que trabalhou com Stanislávski em três montagens teatrais, entre as quais se destaca a de O tartufo, de Molière. Neste livro, escrito entre os anos 1948 e 1950, o ator testemunha como amadureceu a centralidade da ação nos sistemas e métodos criados por Stanislávski.
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
DIÁLOGO EXEMPLAR O médico residente R1 de ortopedia nunca leu um romance, nem um livro de contos, novelas ou teatro. O mesmo diagnóstico se aplica aos mais de sessenta colegas que o precederam. Iahweh prometeu a Abrahão que perdoaria Sodoma se encontrasse dez justos na cidade. Os residentes de traumatologia e ortopedia, no hospital onde trabalho como clínico, jamais leram um único livro de literatura, apenas os resumos fornecidos pelos cursinhos e pela internet, nas provas dos vestibulares. Pedi à circulante de sala que chamasse o residente R1, pois não posso entrar no centro cirúrgico, a menos que me vista adequadamente. – Bom dia, mestre, ele me cumprimenta enfarruscado. – Bom dia. Você esqueceu de evoluir o paciente que transferimos para a clínica médica. Havíamos acertado que alguém do nosso serviço faria a evolução. – Eu não dou pareceres porque sou R1. Só o R2 faz isso. A resposta evasiva baixa minha paciência um andar. – Sei, mas ele precisa ser
acompanhado pelo traumatologista. – Transfira de volta que eu acompanho. Trata-se de um doente de 25 anos, portador de diabete juvenil. Sofreu acidente de moto e fratura, há alguns meses. Tinha sido operado, mas evoluiu com infecção dos ossos da perna – no local onde colocaram haste e parafusos – e uma artrite séptica no joelho. Ao usar um antibiótico, houve reação alérgica grave, comprometendo o rim e a pressão arterial. Avaliamos que se beneficiaria num serviço com especialidades clínicas, podendo ser acompanhado pelo ortopedista. Foi transferido e, no dia seguinte, operado novamente. Sangrou durante a cirurgia, piorando a função renal e o quadro clínico. O diálogo com o residente R1 continua, porém os meus instintos belicosos subiram à cabeça e a paciência desceu aos pés. – Enlouqueceu? O doente precisa continuar na clínica médica. Ele só necessita de um parecer ou acompanhamento do traumatologista. – Então peça por escrito, que o R2 vai dar.
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– Não foi isso que acertamos, não vou solicitar parecer, porque não faz sentido. Quero que o paciente seja visto e examinado. – Então, mande ele de volta ou peça um parecer. – Peça você!, ordeno aos gritos. – O que é isso doutor? Um ortopedista pedir parecer a um ortopedista? Desespero-me com os absurdos, a conversa não evolui. – Mas isso é kafkiano. Desculpe, você nunca leu Kafka, nem sabe de quem se trata, digo quase chorando. – Ou sofisma, afirmo em voz baixa. O jovem médico também não sabe o que é sofisma, pois nunca estudou filosofia. – Que cinismo! Berro e encaro o meu interlocutor. Ele também desconhece a doutrina filosófica grega dos cínicos, que acreditavam não ser possível conciliar leis e convenções estabelecidas com a vida natural autêntica e virtuosa. Mas, juro, eu não pensava em algo tão superior, meu desejo era apenas chamá-lo de desavergonhado e debochado.
ARTE SOBRE IMAGENS DE DIVULGAÇÃO
O elevador da minha paciência sofre queda vertiginosa e atinge a garagem. Resolvo o impasse com cinco palavrões, mais adequados do que a vã filosofia. Ameaço: vou comunicar ao chefe dos residentes e do serviço. Deixo o bloco cirúrgico com suas tragédias corriqueiras, que já nem comovem de tão repetidas e banalizadas. Caminho cego e transtornado. Sou um velho ridículo, fora do tempo. Tenho dúvida se os médicos residentes, que mantêm um contato apressado e superficial comigo, além de me olharem com desconfiança ou indiferença, seriam pessoas melhores se tivessem lido volumes de literatura. O filósofo judeu-austríaco Hermann Broch estava convencido, nos últimos anos de sua vida, em relação à criatividade e ao trabalho, da primazia do conhecimento sobre a literatura, da ciência sobre a arte. Acreditava na primazia absoluta e inviolável da ética e da ação. Os médicos residentes com quem trabalho são pessoas comprometidas com a ciência e a ação, vivem ocupados com o aprimoramento da técnica, não sobra tempo para questões que eles talvez considerem menores,
A vida do paciente possui importância não porque represente o bem mais elevado, mas porque é o triunfo da ciência sobre a morte como as da filosofia, da psicologia, da arte e das humanidades. Técnica, para eles, tem pouco a ver com a arte de curar, um significado que herdamos dos gregos. Platão definia o objetivo real de toda arte médica como a preservação ou recuperação da saúde. Também defendia como verdade auto-evidente que um dos deveres do médico seria permitir que morressem aqueles que ele não conseguia curar, sem prolongar a vida dos doentes por artes médicas injustificadas. Em oposição, a filosofia cristã e pós-cristã assumiu, de início tacitamente e, a partir do século XVII, de modo cada vez mais explícito, que a vida é o mais alto bem, o valor em si, e que o não-valor absoluto é a morte. Partindo dessas reflexões de Hannah Arendt, que transcrevo aleatoriamente,
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pergunto sobre o novo médico, este a quem interessa o êxito de sua técnica e ciência. A morte é um não-valor, ele não a aceita porque significa o fracasso do conhecimento em que se ampara. A vida do paciente possui importância não porque represente o bem mais elevado, mas porque é o laboratório do triunfo da ciência sobre a morte. O médico deixou de ser alguém preocupado com a saúde, ou um auxiliar na busca para alcançála, como na filosofia cristã. Transformou-se no protagonista, o que escolhe entre o que é bom e o que é mau, arbitrando sobre fazer ou não fazer. O doente assumiu o lugar de antagonista, uma ameaça à ação do médico. Embora mesmo desconhecendo, os médicos ainda se orientam pela filosofia cristã, porém esqueceram o seu bem mais elevado, a compaixão, que não se trata de um relacionamento entre aquele que cura e o ferido, conforme escreveu Pemma Chödrön. Mas, de um relacionamento entre iguais. No lugar da compaixão, um Frankenstein maluco, alimentado por hastes, parafusos e pinos, dá as ordens de consumo do que a indústria terapêutica produz.
REPRODUÇÃO
Sonoras
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MIXAGEM Ampliando o potencial do som
1 ABBEY ROAD
No estúdio, Brian Epstein, empresário dos Beatles, observa George Martin e Geoff Emerick na gravação da banda
Tratamento tecnológico aplicado após a gravação de uma música determina como soará um registro fonográfico TEXTO Marina Suassuna
Por trás de toda obra musical
gravada em estúdio, há uma busca por determinada linguagem, que vai ser lapidada até chegar à sua versão disseminada ao público. Se uma música soa pop, com uma sonoridade mais bem-acabada, ou se traz uma pegada mais suja e crua, não se deve única e exclusivamente ao desempenho dos músicos. Ao escutar uma música no rádio, no celular, no computador ou em qualquer plataforma de reprodução, não estamos ouvindo somente a gravação bruta do artista, mas também o tratamento estético conhecido como mixagem, que é responsável pelo acabamento, pelo contorno definitivo da canção. Esse trabalho tem origem no início do século XX, com o desenvolvimento das tecnologias de produção musical, que permitiram a manipulação do som depois de gravado. Nesse contexto, a mixagem foi vista como uma forma de tornar a proposta estética do artista mais clara depois da gravação editada, com mais apelo ao ouvinte e com um alto nível de fidelidade em relação ao som original. Até então, o processo de produção em estúdio se restringia à gravação da performance dos músicos ao vivo, como num show, sem a possibilidade de sofrer interferência
depois de pronta, o que comprometia, certamente, a maneira como o ouvinte assimilava a música. Tecnicamente falando, a arte de mixar consiste em pegar a gravação bruta e combinar os timbres, estabelecer um equilíbrio entre os volumes da voz e de cada instrumento, o posicionamento e o processamento individual de cada fonte gravada, a variação de dinâmica, a utilização de efeitos. Trata-se de uma verdadeira engenharia manipulada em softwares de computador e somada a uma mesa analógica, conhecida como mixer. Há ainda os profissionais que optam exclusivamente pela mixagem digital. E como traduzir o processo de mixagem e sua importância para um leigo? Um dos engenheiros de som e produtores mais atuantes do Recife, Buguinha Dub, sintetiza: “Imagina uma salada de frutas, a mixagem é isso. Tem que ter o dom de juntar as frutas certas pra dar aquele sabor”. Para ele, uma das principais contribuições da mixagem está relacionada à identidade que o artista carrega. “Com o acesso às tecnologias, as bandas hoje conseguem gravar um disco inteiro e fazer uma mixagem sozinhas em casa. Mas a boa mixagem, com um profissional da área num
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estúdio, é o que vai dar identidade à banda. Caso contrário, o som vira um ótimo arquivo digital. A banda fica com um disco bom, gravado, mas sem uma identidade própria que o público reconheça logo no começo.” Cabe ao profissional de mixagem realçar os aspectos artísticos da música, aqueles elementos e detalhes que fazem do disco um produto musicalmente atraente. Algo semelhante ao trabalho de um fotógrafo ou editor de vídeo. “Mixar é trabalhar o instrumento que é mais importante para certa parte da música e colocá-lo em primeiro plano. Tem instrumento que é importante na introdução da música e, quando chega na estrofe, o que mais conta é a voz. Então, aquilo que está atrapalhando a voz vai ficar mais escondido, desfocado no background”, explica Leo D, que assina a mixagem de discos importantes da música pernambucana, como Nadadenovo (2004), do Mombojó, Tem arte na barbearia (2006), do Bonsucesso Samba Clube, Novas lendas da etnia Toshi Babaa, (2011), da Mundo Livre S/A, Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito (2015), de Johnny Hooker, e Destemida (2016), da Bande Dessinée. É comum o técnico de mixagem ser também o produtor do disco. Quando as duas funções são desempenhadas por pessoas diferentes, elas trabalham
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2 BUGUINHA DUB
“A boa mixagem é que vai dar identidade à banda”
Sonoras 2
juntas, pois a função do mixador é traduzir, viabilizar tecnicamente a concepção e as diretrizes musicais estabelecidas pelo produtor para determinada música ou disco. O profissional de mixagem precisa saber qual ferramenta vai proporcionar a sonoridade que se pretende alcançar. Para isso, é essencial dominar habilidades técnicas como o uso de processadores externos, plugins, equalizadores, compressores de volume e efeitos especiais com reverbs, ecos e delays. Mas, tão importante quanto o conhecimento técnico é a sensibilidade do mixador. Em matéria publicada na Continente de n° 164, de agosto de 2014, sobre o projeto Rozenbac, o produtor e engenheiro de som Bactéria se referiu ao mixador como sendo mais um profissional a somar à música, o que significa que sua assinatura estilística faz a diferença no resultado final do trabalho, acrescentando bastante à obra em termos de linguagem.
AUTOR INVISÍVEL
O que seria, por exemplo, dos Beatles sem George Martin, responsável pelo acabamento de boa parte das músicas do quarteto de Liverpool e, por isso, chamado de “quinto Beatle?” Da mesma forma que o pop rock nacional não seria o mesmo sem o veterano Liminha, um dos mais solicitados produtores e técnicos de som do país. Em seu estúdio no Rio de Janeiro, o Nas Nuvens, foram mixados discos do Rappa, Paralamas do Sucesso,
O profissional de mixagem precisa saber qual ferramenta vai proporcionar a sonoridade que se pretende alcançar Gilberto Gil, Vanessa da Mata, Titãs, Lulu Santos, Jota Quest, Cidade Negra, entre outros. É de Liminha a mixagem que consolidou o álbum da Lama ao caos (1994), da Nação Zumbi - disco importante da música brasileira -, projetando-o internacionalmente. O mixador, portanto, não deve ser visto como um mero apertador de botões ou clicador de mouse. Sua participação é de natureza autoral. De acordo com David Byrne, no livro Como funciona a música, esses técnicos “eram tão responsáveis pelo som dos discos quanto os próprios compositores e músicos. No fundo, a autoria de uma gravação e da música em geral estava sendo distribuída, dispersada. Foi ficando cada vez mais difícil determinar quem era responsável pelo o quê, ou quem tomava as decisões que afetavam a música que chegava a nós.” Embora o papel do mixador revele muito sobre a natureza de uma obra, sua visibilidade é quase sempre mínima. Menos para aqueles que se dispõem a mergulhar num disco e dissecá-lo de cabo a rabo, incluindo aí o conhecimento da ficha técnica. Seria
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importante, portanto, que o mixador fosse reconhecido pelo público de música, pois sem este profissional as gravações não chegariam aos nossos ouvidos com o mesmo impacto que as perpetuou. A mixagem é que mantém o valor de uma canção gravada, sobretudo por incorporar efeitos e habilidades que não podem ser conseguidos numa performance ao vivo. Na opinião do engenheiro de som Fábio Henriques, este é o caso do álbum homônimo do Rage Against the Machine, de 1992, cuja mixagem de Andy Wallace contribuiu para tornálo um clássico do rock. Autor da série de publicações conhecida como Guia de mixagem e tendo mais de 200 CDs e DVDs na bagagem, Fábio considera o trabalho de Wallace um exemplo claro de mixagem competente, que evidenciou o caráter revolucionário do som e da temática da banda.
ESPECIALISTAS
Na prática, os artistas que gostam do trabalho de determinado engenheiro de mixagem voltam a escolhê-lo, e, com isso, o profissional acaba se especializando em determinado estilo. Buguinha Dub, por exemplo, embora trabalhe com artistas de variados matizes, é mais requisitado para discos ou canções que envolvam reggae e dub. “O reggae tem uma coisa do pulsar do coração que move. Tem uma galera que toca reggae, mas que não é regueira, não sabe timbrar nesse estilo nem tem uma pegada de baixo pulsante característico do gênero. Então eles me procuram na intenção de uma mixagem que atenda a esse formato”, explica. Já Léo D criou uma conexão maior com as bandas de rock, pop e eletrônica. “Gravei várias bandas da cena de rock do Recife dos anos 1990, como Dona Margarida Pereira e os Fulanos, Conservados em Formol, Rive Raid. Eles me procuravam porque não conseguiam o som que queriam em outros estúdios. Acabei unindo o útil ao agradável, porque sempre me identifiquei mais com esses gêneros.”
INDICAÇÕES Certas características que definem a música são próprias do mixador, como o timbre da voz, as texturas de instrumentos, a ambiência e a espacialização que é feita na música. Ao mesmo tempo, esses elementos devem estar a serviço da proposta estética do artista. “Penso que quando me procuram para mixar, é porque querem algo do meu som. Apesar de que gosto que fique a cara da banda. Procuro sempre pesquisar, saber o que o artista quer”, diz Buguinha Dub, que, além das bandas de reggae, traz no currículo trabalhos ao lado de Racionais MC’s, Cordel do Fogo Encantado, Nação Zumbi e Emicida. Responsável pela sonoridade de bandas do brega local como Kitara, Vício Louco, Musa e Michele Mello, o guitarrista e mixador Tiquinho Lira deixa transparecer seu estilo ao inserir guitarras com pegada de rock, mas sem descaracterizar a essência do brega. “Era uma coisa que a turma da mixagem de brega usava pouco. Então comecei a explorar de maneira sutil. Até porque tenho influência de bandas como Pink Floyd, Led Zeppelin, Rush e não vejo um estilo musical como barreira para explorar outros ritmos. Costumo não ter muitas regras nas gravações”, diz o técnico, cujo maior desafio foi mixar canções para o cantor Latino no ritmo da bachata, um híbrido entre bolero com tango e outras influências, em que precisou ressaltar os violões, os bongôs e a percussão. É o estilo de música que vai nortear, em primeiro lugar, a forma como o
mixador trabalhará. Embora as ferramentas sejam as mesmas para qualquer situação, mixar um reggae, uma música pop, romântica, punk ou eletrônica envolve conceitos e procedimentos diferentes e, para isso, o profissional precisa conhecer as particularidades de cada estilo. “Um engenheiro de mixagem é capaz de mixar qualquer estilo que ele conheça, tudo é uma questão de memória musical. Só não faço música eletrônica, pois não tenho afinidade com essa sonoridade e, por isso, não terei um bom resultado”, conta Beto Neves, dono do Mosh Estúdios, em São Paulo, um dos mais antigos do Brasil. Ele ficou conhecido por mixar discos viáveis comercialmente, sobretudo da música baiana, como Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Carlinhos Brown e Harmonia do Samba. Sua discografia também inclui mixagens de rock com Dave Matthews Band, pop com Shakira, sertanejo com Lucas Lucco, jazz com Cesar Camargo Mariano. “Mixar é a arte da repetição, quanto mais você mixa, melhor fica o resultado”, pontua. Ainda que a mixagem seja fundamental para o resultado final de uma música, trata-se de uma etapa da produção em estúdio que não deve chamar mais atenção que a obra em si. Quando isso acontece, algo está errado. Assim, “antes de tentar identificar qual o reverb usado na caixa”, pondera Fábio Henriques, “tente perceber se a música é boa, se a letra é boa, se o arranjo é bom.” Afinal, uma boa mixagem é aquela que entende, respeita, traduz e amplifica o potencial do artista.
SOUL MUSIC
RAP
BMG
Modo Diverso
MAYER HAWTHORNE Man about town
RICO DALASAM Orgunga
Mayer Hawthorne mistura, em sua sonoridade, soul music, jazz e blues. Assim, sua música é como um prisma para os ouvintes, liberando o êxtase na pista de dança. O novo disco do cantor, DJ e multiinstrumentista, quarto álbum de sua carreira, se debruça sobre temas leves, que permitem ao público se envolver na trama entre o suíngue e a letra. Esse novo trabalho retoma características iniciais de Hawthorne, que resgata o R&B dos anos 1960 e 70. Pensado para provocar o prazer pela fuga da realidade e por meio da fruição desse groove.
O paulista lança seu primeiro disco, Orgunga, a história sobre seus três maiores orgulhos: ser rapper, negro e gay. “Negros, gays, rappers, quantos no Brasil?/Deve haver vários/Tantos tão bons quanto os foda”, diz, na faixa Dalasam, quase uma autobiografia. Para imprimir uma marca, Rico toca R&B, funk e eletrônico com flautas indianas e percussões. O álbum também busca fugir do lugar-comum das gírias gays, priorizando um jeito pessoal de contar histórias, de transmitir seu comportamento e divertir o público com a dança.
POP
ROCK
StereoMono
Independente
MAHMUNDI Mahmundi No meio da onda pop das intérpretes brasileiras, a cantora e compositora Marcela Vale, ou Mahmundi, lança o primeiro disco, com batidas eletrônicas, mas puxando para a música oitentista, synthpop e disco. O álbum traz 10 faixas que pulsam diversas influências. O lo-fi, o indie e a própria MPB se materializam num som dançante e suave, com a voz doce de Marcela, fotografada num perfil em contraluz para a capa do disco. Desaguar e Eterno verão são canções que marcam o ouvinte, pela levada, pelo sentimento de fruição, de curtição que desprendem.
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STONE BREEZE Stone Breeze Depois de uma longa carreira experimentando o metal alternativo, os pernambucanos do Hanagorik montaram um projeto que trouxesse elasticidade ao som da banda. Assim nasce o Stone Breeze, cujo álbum (disponível nas plaformas de streaming) reúne canções como Time to run, que variam entre peso e leveza, com influências do southern rock ao grunge. É possível perceber semelhanças com o som de Foo Fighters, Stone Temple Pilots, Soundgarden e Pearl Jam. A ideia geral é ater ao rock1’n’roll para ter mais liberdade sonora.
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LINGUAGEM O filme como texto
Episódios históricos que inspiraram obras fílmicas mostram como a palavra potencializa relação com o documento TEXTO Marcelo Costa*
Claquete 1
Um filme pode apontar caminhos tortuosos e lugares insondáveis. Um sonho, uma memória de infância, uma sensação, uma história ouvida, livro ou notícia de jornal… inúmeras são as possibilidades quando se quer contar uma história ou apenas vislumbrar imagens visuais e sonoras. O fato é que um filme, embora composto de imagens e sons, também pode decorrer da função factual e vernacular da palavra: a escrita enquanto registro, enquanto comunicação de primeira ordem, no que ela tem de mais denotativo e concreto. Seja nos autos de um processo ou nas confissões pessoais de um diário, a palavra pode assumir o peso de um documento de inestimável valor histórico e narrativo. Exemplos marcantes de um passado recente parecem depor nesse sentido, como nos casos do Diário de Anne Frank e O Julgamento de Nuremberg, episódios
emblemáticos que inspiraram filmes homônimos, mas que parecem obedecer a uma relação mais ilustrativa do que intrínseca entre texto e narrativa audiovisual. Dois dos melhores filmes que aportaram nos cinemas brasileiros em 2016 guardam relação direta com páginas de relatórios judiciais e diários. Em A bruxa, o roteirista e diretor Robert Eggers baseou-se numa ampla pesquisa de documentos e autos processuais para construir uma narrativa amparada no fanatismo cristão e no universo místico que caracterizavam a Nova Inglaterra do século 17, mais precisamente na década de 1630. Logo na primeira sequência, somos apresentados ao “julgamento” de um homem que tenta defender a devoção religiosa de sua família junto a um tribunal formado por membros da comunidade. Ainda que não se saiba bem as razões da
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acusação, a simples suspeita de heresia é suficiente para sentenciar a família a deixar o vilarejo. Afastados da vida social, resta aos integrantes – patriarca, mulher e cinco filhos – viver isolados ao lado do bosque; aqui uma representação mística da natureza e do que ela pode prover de encantador e assustador a um só tempo. O desaparecimento do bebê, sob os cuidados da irmã, é o mote que suscita a desconfiança sobre forças malignas advindas do bosque, ou presentes dentro do seio familiar: teria sido ele levado por um lobo? Por uma bruxa? Talvez resida aí o maior mérito do filme; ao tornar indiscernível a natureza da ameaça, se externa ou interna à família, A bruxa problematiza a questão do demoníaco dentro do paradigma da culpa cristã. Num esforço de reflexão e autoculpabilidade, os membros da família começam a duvidar da fé de si mesmos e dos entes
1 O ABRAÇO DA SERPENTE Diários de etnólogos inspiraram o filme colombiano
mais próximos, como se tudo fosse um castigo divino ou demoníaco que se abateu sobre a casa. Tudo isso é habilmente construído no nível da sugestão: o elemento mais aterrorizador do filme talvez seja a atmosfera de desconfiança que circunda os personagens, e que os coloca em contato com o que há de bestial na natureza. A fotografia em claros-escuros remonta a alguns nomes da pintura flamenga e ao horror das figuras de Goya; e as competentes caracterização de época e mise-en-scène colaboram para uma experiência do medo de forma convincente e crescente. Para além do texto em si, as pesquisas dos processos, das condenações por bruxaria e documentos da época parecem ter sido decisivas nessa composição do mito da bruxa, inspirado na relação íntima entre mulher e natureza, que ganha forma na bela e assustadora sequência final do filme.
Dois dos melhores filmes estreados em 2016, no Brasil, guardam relação com páginas de diários e relatórios judiciais Homólogos a essa argumentação fílmica são os registros de diários de dois importantes etnólogos que inspiraram O abraço da serpente (2015), magistral filme colombiano dirigido por Ciro Nogueira. Aqui, as memórias registradas dão lugar a uma história contada em dois tempos narrativos, separados por 40 anos e interligados pelo personagem do índio Karamakate. Único sobrevivente de sua tribo, o nativo é o elo entre os cientistas e uma espécie de guia na busca
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pela yakruna, planta medicinal com propriedades mágicas em vias de extinção – qualquer semelhança com a ayahuasca não é mera coincidência. No primeiro momento, o jovem índio resolve ajudar Theo, o cientista alemão Theodor Koch-Grunberg (1872–1924), embora perceba que nem sempre ele é cordial com os indígenas, e que mantém a tiracolo um índio “civilizado” como vassalo protetor. E é justamente nesses fios de tensão, nas fraturas culturais e etnográficas, nas relações ocultas ou explícitas de dominação que o filme funciona com maior força. Como no momento em que o etnólogo reluta em deixar sua bússola em uma tribo, e é prontamente rebatido por Karamakate, para quem o homem branco se arroga a posse do conhecimento. O fato é que o trabalho do etnólogo e explorador alemão ainda é uma base documental importante para os estudos dos povos nativos do Brasil e do norte da América do Sul, com vários livros publicados sobre o tema. Teria sido, inclusive, uma das fontes de referência de Mário de Andrade na composição de Macunaíma. No segundo momento, um sábio e estoico Karamakate ajuda Evan, o americano Richard Evans Schultes (1915–2001), fundador da etnobotânica moderna, a refazer o caminho do seu antecessor, cujos diários traz em mãos. Mas, embora se baseie nas descrições dos diários, o filme não recai na armadilha do discurso científico e antropológico, e dedica-se a criar uma narrativa ficcional sobre um processo colonizador mais dizimador do que civilizador. É isso que é colocado em jogo na representação do violento processo de catequese dos nativos, no messianismo catártico que expõe a face religiosa e teatral da alienação, ou no ambiental e humanamente exploratório ciclo da borracha. Situações que remontam a um passado não tão distante e que parecem dizer muito sobre o atual estado de coisas.
FOTOS: DIVULGAÇÃO
2 A BRUXA Longa teve roteiro escrito a partir de consulta a atos processuais AFERIM! 3 Filme trata da busca de um foragido em que a brutalidade se dá pelo discurso do velho oficial
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Na verdade, a relação entre texto e imagem também tem aqui um caráter mais ilustrativo e narrativo do que propriamente sintático. As situações descritas e encenadas apontam para o valor histórico, etnográfico e humano, para além dos diários. Nesse sentido, O abraço da serpente revela-se uma experiência imprescindível para se compreender os efeitos devastadores da presença dos colonizadores em territórios indígenas. Deveria integrar o conteúdo programático de aulas de História e Humanidades em escolas e universidades da América do Sul, ao menos. Sobretudo em tempos de enfraquecimento de políticas indigenistas e de preservação humana e ambiental. Sobretudo
quando a lógica desenvolvimentista se sobrepõe à natureza, e a máquina antropológica do progresso continua a lubrificar suas engrenagens.
OUTRAS REFERÊNCIAS
A relação entre cinema e escrita, entretanto, parece decorrer de algo mais profundo do que o mero esforço ilustrativo. Um bom exemplo disso é o cinema de Robert Bresson. Sempre interessado em pensar o cinema enquanto escrita, o francês desenvolveu um estilo próprio a partir de narrativas construídas como sintaxe, no qual à palavra era consentido um lugar de precisão e concretude; e muitas vezes de rarefação ou ausência, como no
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comovente A grande testemunha (1968). Em outras situações, a palavra fazia sentir-se como presença estruturadora dos seus filmes, como em Diário de um padre (1950), que já conferia ao texto a concretude do registro, numa adaptação do livro Diário de um pároco de aldeia, de Georges Bernanos. Mas é sobretudo em O processo de Joana D’Arc (1962) que a palavra assume a corporeidade aqui ressaltada. Baseado nos autos dos processos de Joana D’Arc, o filme parte da força do texto para compor um retrato realista do julgamento da heroína francesa. Valendo-se de não atores, sob a crença no condicionamento espontâneo dos gestos – advogados e juízes deram corpo e rito ao tribunal –, Bresson recorre à estética de contenção dramática que o imortalizou. Nada fingido, nenhuma sensação forjada seria consentida, apenas o corpo, a fala e a verdade que ressoa neste ato de presença. Eis o seu filme mais textual, construído no embate entre uma Joana D’Arc destemida e confrontadora e os seus inquisidores. Oposição concebida pela alternância de planos médios entre juízes e acusada no duelar dos diálogos. Nesse sentido, é interessante contrapor à Joana D’Arc de Bresson – sempre de pé, em planos frontais, desafiadora e consciente do peso de sua palavra – a personagem do retumbante O martírio de Joana D’Arc (1929), de Carl Th. Dreyer: de joelhos, assustada e humilhada por seus algozes, e cuja expressividade no rosto e olhar se sobrepõe à força da palavra. Ainda no cinema francês, e dentro de uma prerrogativa bressoniana, é possível apontar outro exemplo inspirador. Baseado no livro de Michel Foucault, também intitulado Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão… (1976), o filme de René Allio reconstitui o célebre caso de parricídio, cometido por um jovem de 18 anos numa pequena cidade francesa, em 1835. Ao aliar os autos judiciais do processo, os relatórios
INDICAÇÕES médicos e as reveladoras memórias manuscritas do próprio condenado, Pierre Rivière… edifica-se sobre o aparato textual dos registros. Isso fica muito evidente na própria estrutura narrativa pensada por Allio, em que, à leitura das sentenças dos juízes, somam-se as memórias em tom confessional do acusado, os depoimentos de lavradores e camponesas da pequena cidade – todos devidamente identificados de acordo com os autos –, e, por fim, os relatórios médicos que davam conta da saúde e da alienação mental do jovem. Tudo isso possibilitado por uma carpintaria eficaz e diversificada, em que as locuções em off combinamse às encenações do crime propriamente dito, das situações de litígio familiar que o teriam motivado, e dos testemunhos na corte, filmados como depoimentos de um documentário. O travelling de apresentação do júri, identificando-os um a um, parece reforçar a sensação e o rigor de um filme baseado nos autos do processo, assim como algumas escolhas estéticas sugestivas da ideia de registro. Seja ele imagético, como o uso de fotografias, ilustrações e gravuras; ou textual, como o acompanhamento da escrita a punho das memórias do protagonista – recurso também utilizado em Diário de um padre. É também no ano de 1835 que se passa o filme Aferim!, de Radu Jude, vencedor do Urso de Prata de melhor diretor no Festival de Berlim 2015. Passado na província de Valáquia, o filme é uma espécie de faroeste à romena, e reafirma o ótimo cinema praticado no país.
Dois homens montados a cavalos cruzam paisagens descampadas, filmadas em planos abertos e em lindo preto e branco, com cordilheiras ao fundo. São eles um velho oficial coxo, Constandin, e seu jovem filho Ionita, espécie de aprendiz. Eles cruzam a província à procura de um cigano fugitivo. Dentro de nossa lógica escravocrata não é difícil traçar paralelos: os ciganos são escravos e os protagonistas, versões oficiais do capitão do mato. A busca pelo foragido revela a brutalidade de uma época em que ao discurso oficial e religioso era permitida toda horda de violência verbal ou física. Isso fica claro na abordagem dos oficiais aos ciganos, aqui chamados de corvos, ou no discurso do “sábio” padre que destila preconceitos e estereótipos contra judeus, turcos, egípcios, ciganos e absolve os distintos romenos em nome de Deus. Tudo isso construído por um linguajar muito próprio, em que há uma recorrente animalização do trato em expressões como corvo fedorento, rato do demônio, vaca estúpida ou ratazana nojenta. É a composição da vulgaridade de uma época pelo linguajar e seus modos que confere à palavra e à fala um papel de importância. Sobretudo quando sabemos que situações e diálogos foram retirados da pesquisa de documentos e processos do período representado. Os modos de discurso de uma época (re)definindo o papel da palavra no cinema; e o cinema pensado enquanto escritura. *Colaborou Caio Zatti
BIOGRAFIA
PASOLINI
Dirigido por Abel Ferrara Com Willem Dafoe, Riccardo Scamarcio, Ninetto Davoli Imovision
TELEVISÃO
THE GENIUS OF PHOTOGRAPHY Dirigido por Tim Kirby BBC
Nesta cinebiografia de Pier Paolo Pasolini, Abel Ferrara procurou fazer um recorte minimalista ao reviver os últimos dias de vida do polêmico diretor italiano. Na madrugada de 2 de novembro de 1975, o corpo do cineasta, figura central do cinema do século XX, foi encontrado numa praia nos arredores de Roma. De maneira poética e intimista, Ferrara encontra liberdade para reencenar esses últimos momentos sem se ater fielmente aos acontecimentos.
Dividida em seis partes, esta série da BBC explora todos os aspectos da fotografia no curso de 170 anos, desde o daguerreótipo até as modernas técnicas digitais. Estão presentes as fotos mais marcantes – e as histórias por trás delas e de seus fotógrafos. Acompanhamos a história da fotografia a partir de gênios como Man Ray e Walker Evans, até nomes mais contemporâneos como Richard Avedon, Sally Mann e Martin Parr.
DOCUMENTÁRIO
BOX
Dirigido por Kent Jones Com Mathieu Amalric, Wes Anderson, Olivier Assayas Artline Films
Dirigido por Michelangelo Antonioni Com Gabriele Ferzetti, Monica Vitti, Lea Massari, Marcello Mastroianni Versátil Home Video
HITCHCOCK/ TRUFFAUT
Fã confesso de Alfred Hitchcock, François Truffaut conduziu em 1962 uma série de entrevistas com o cineasta britânico, que posteriormente se transformaram num livro. O objetivo de Truffaut era restaurar a imagem de Hitchcock como um autor, mais do que um mero showman. O documentário de Kent Jones mescla as gravações de áudio da época com entrevistas de importantes diretores como Martin Scorcese e Wes Anderson.
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TRILOGIA DA INCOMUNICABILIDADE
Realizada no início da década de 1960, a trilogia de Michelangelo Antonioni é um dos marcos do cinema moderno e uma profunda análise da alienação no mundo contemporâneo. Dela fazem parte os filmes A aventura, de 1960; A noite, de 1961 e O eclipse, de 1962. O box reúne, além dos três filmes em versões restauradas, extras com documentários sobre o diretor italiano, depoimentos de atores, trailers da época, entre outros.
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Criaturas
Sylvester Stallone por Tiago Hoisel
Rambo, Rocky, Falcão, Cobra: não são poucos os filmes protagonizados por Sylvester Stallone cujos títulos evocam os personagens principais. Nascido em 1946, em Nova York, o ítalo-americano pode até ter suas habilidades dramáticas – e sua voz arrastada - questionadas, mas se impõe pela presença e pelo carisma. Chega aos 70 anos amparado no sucesso de bilheteria de Creed, lançado no ano passado, quando, pela sétima vez, interpretou o pugilista Rocky Balboa. CONTINENTE JULHO 2016 | 88
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# 187
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O FENÔMENO DA CIRCULAÇÃO MUNDIAL
ano XVI • jul/16 • R$ 13,00
CONTINENTE JUL 16
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