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# 188
A FANTÁSTICA TRAJETÓRIA DE UM MÚSICO PERNAMBUCANO
#188 ano XVI • ago/16 • R$ 13,00
CONTINENTE AGO 16
A NOVA CARA DOS MUSEUS PELO MUNDO E MAIS: GILVAN LEMOS | GARCÍA LORCA | AQUARIUS | WORLD CINEMA
Esses alunos têm muito em comum: estudam na maior rede de ensino público do Brasil,
com 328 escolas em tempo integral. Desde 2015, quase 5 mil jovens como eles já embarcaram
para fazer intercâmbio no exterior. Isso graças ao Programa Ganhe o Mundo, uma das
iniciativas que elevam a qualidade da educação, promovendo o interesse e o aprendizado dos
alunos. Como resultado, Pernambuco tem a menor taxa de abandono escolar e 6 das 10
melhores escolas públicas de Ensino Médio do país, segundo o Enem. Na Região
Metropolitana do Recife, mais de 260 mil estudantes usam Passe Livre para ir e voltar das
aulas sem pagar ônibus. Desde 2015, 19 novas escolas foram entregues, em média, mais de
uma por mês. Educação é prioridade no estado todo. O futuro dos nossos jovens também.
Novas conquistas da educação a caminho Mais de 90 obras de infraestrutura escolar em execução.
Programa de Educação Integrada, em fase de implantação: incentivo do estado para a criação de escolas municipais em tempo integral.
Concurso público realizado em maio para a contratação de 3 mil professores.
Esses alunos têm muito em comum: estudam na maior rede de ensino público do Brasil,
com 328 escolas em tempo integral. Desde 2015, quase 5 mil jovens como eles já embarcaram
para fazer intercâmbio no exterior. Isso graças ao Programa Ganhe o Mundo, uma das
iniciativas que elevam a qualidade da educação, promovendo o interesse e o aprendizado dos
alunos. Como resultado, Pernambuco tem a menor taxa de abandono escolar e 6 das 10
melhores escolas públicas de Ensino Médio do país, segundo o Enem. Na Região
Metropolitana do Recife, mais de 260 mil estudantes usam Passe Livre para ir e voltar das
aulas sem pagar ônibus. Desde 2015, 19 novas escolas foram entregues, em média, mais de
uma por mês. Educação é prioridade no estado todo. O futuro dos nossos jovens também.
Novas conquistas da educação a caminho Mais de 90 obras de infraestrutura escolar em execução.
Programa de Educação Integrada, em fase de implantação: incentivo do estado para a criação de escolas municipais em tempo integral.
Concurso público realizado em maio para a contratação de 3 mil professores.
A G OS TO 2 0 1 6
REPRODUÇÃO
aos leitores Moacir Santos possui uma das histórias mais improváveis da música brasileira. Órfão de pai e mãe aos três anos de idade, em pleno Sertão pernambucano, desde criança enfrentou – munido de talento, autoconfiança, determinação e vocação para o bem – adversidades, como a pobreza e o preconceito racial. Trabalhou em diversas funções e locais, como a Fábrica da Macaxeira, na Avenida Norte. Quando era mal tratado em um emprego, saía e ia em busca de um outro. À procura de uma situação melhor, de banda em banda, de cidade em cidade, muitas vezes sem dinheiro, sem instrumento e apenas com a roupa do corpo, circulou por Pernambuco, pelo Nordeste, até chegar ao Rio de Janeiro, onde se tornou o primeiro regente negro da Rádio Nacional, professor da maioria dos músicos da Bossa Nova, autor de trilhas para filmes do Cinema Novo e lançou, em 1965, sua obra-prima, Coisas. Dois anos depois, resolveu tentar a sorte nos Estados Unidos, onde trabalhou como músico, arranjador e professor. Neste mês, que marca os dez anos da morte do maestro, resgatamos, através de textos da jornalista Débora Nascimento, da biógrafa Andrea Ernest Dias e do músico Sérgio Gaia, o trajeto que Moacir Santos percorreu até se tornar um gigante da música. Trazemos ainda um especial que põe em foco os museus e seus novos formatos na contemporaneidade. As ações museológicas, hoje, são múltiplas e vão além do conceito tradicional de um espaço conservador, sisudo, distante da realidade, um guardião de obras de valor. Exemplos que fogem a essa conceituação não faltam. Vão desde o Museu da Beira da Linha do Coque, no Recife, que não possui sede e, de forma itinerante, conta o processo de ocupação do bairro, ao Museum of Broken Relationships, na Croácia, que apresenta ao público as memórias de relacionamentos rompidos , enviadas por qualquer um. Inclusive, a chave que compõe a ilustração que abre a matéria é um dos objetos desse museu. Ao lado dela, os seguintes dizeres: “Você falava comigo sobre amor, me dava pequenos presentes todos os dias; esse é apenas um deles. A chave do coração. Você virou minha cabeça; você apenas não queria dormir comigo. Eu só percebi o quanto você me amava agora, depois de você morrer de Aids”. Uma peça de museu.
sumário Portfólio
Clara Moreira
6 Colaboradores
7 Cartas
+ Continente Online + Expediente
72
Gilvan Lemos Cepe Editora relança os dois primeiros romances do autor pernambucano
82
Matéria corrida José Cláudio Pintura e realidade
84 Sonoras
54 Conexão
88 Criaturas
Interatividade Aplicativos e sites institucionais de museus oferecem meios de aproximar a arte dos internautas
14
Puro Lixo Espetáculo, que faz parte do projeto Transgressão em três atos, presta homenagem ao grupo Vivencial
36 Viagem
Livros As narrativas de viagem transportam o leitor a regiões e épocas diferentes sob a ótica do autor
Formanda em Arquitetura, a desenhista, que tem uma vasta produção de cartazes para filmes e festivais de cinema, realiza seus projetos sem uso de recursos digitais
78 Palco
20 Balaio
Brasil: DNA África Documentário revela países de origem de descendentes de escravizados
Ronaldo Correia de Brito Crônica de um Recife exilado
74 Leitura
8 Entrevista
Lúcia Nagib Professora brasileira, radicada em Londres, sugere um entendimento mais amplo do termo world cinema
Entremez
Criança Cidadã Orquestra completa 10 anos com concerto comemorativo e lançamento de CD e DVD Fidel Castro Por Mello
Cardápio Molhos
Fundamental na cozinha contemporânea para molhar e acentuar o sabor dos alimentos, sua execução perfeita requer muita técnica e habilidade do saucier
58 CAPA ILUSTRAÇÃO Shiko
C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 6 | 4
Capa
Especial
O pernambucano que viveu durante anos na Califórnia, passando antes pelo Rio de Janeiro, tornou-se um dos maiores compositores e arranjadores do mundo
Instituições do século XXI fogem da imagem de “sisudas” , caracterizando-se como espaços mais efêmeros cujo foco passa a ser o sujeito e não o objeto
História
Claquete
Pesquisadores questionam a versão de que os fascistas mataram o poeta, apontando que disputas familiares podem ter sido a causa do seu assassinato
Novo filme do diretor Kleber Mendonça Filho, protagonizado por Sônia Braga, estreia em setembro no Brasil, após calorosa recepção no Festival de Cannes
Moacir Santos
22
García Lorca
62
Museus
40
Aquarius
68
C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 6 | 5
Ago’ 16
colaboradores
Ângela Pryston
Fernando Monteiro
Sérgio Gaia Bahia
Shiko
Professora do curso de Cinema e da pós-graduação em Comunicação da UFPE
Escritor e cineasta. Autor de A cabeça no fundo do entulho e Armada América, entre outros
Pesquisador, músico, compositor e arranjador, formado em Licenciatura em Música pela UFPE
Artista paraibano, ilustrador e quadrinista
E MAIS Alexandre Figueirôa, jornalista, professor universitário e doutor em Cinema pela Sorbonne IV. Andrea Ernest Dias, flautista, doutora em flauta pela UFBA e autora de Moacir Santos ou Os caminhos de um músico brasileiro. Bárbara Buril, jornalista. Cristhiano Aguiar, escritor e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Eduardo Sena, jornalista com foco em gastronomia. Flora Noberto, jornalista. Márcio Bastos, jornalista. Maria Chaves, fotógrafa. Mello, cartunista e chargista. Rafael Medeiros, fotógrafo. Rodrigo Casarin, jornalista, mantém no UOL o blog de literatura Página Cinco.
MOACIR SANTOS
CRIANÇA CIDADÃ
Em 2005, foi lançado o DVD Ouro Negro, um registro do espetáculo baseado no disco homônimo de 2001 e que fez circular novamente no mercado fonográfico brasileiro o nome de Moacir Santos. O show tem participação de diversos artistas, como Djavan, João Bosco e Ed Motta, que foram acompanhados pela Banda Ouro Negro. Ainda há a participação do próprio maestro, que sobe ao palco para cantar e apreciar o time de músicos experientes. O vídeo, um dos raros registros do artista pernambucano – personagem da matéria de capa desta edição –, está disponível no nosso site.
Assista a alguns vídeos com apresentações da orquestra, incluindo a execução de um trecho do novo álbum. Também estará disponível matéria sobre o projeto da nova sede da OCC.
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GILVAN LEMOS Leia os artigos de Osman Lins, publicados n’O Estado de S. Paulo, e o de Olívio Montenegro, no Diario de Pernambuco, ambos de 1956, sobre o romance Noturno sem música.
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR
SOBRE A CONTINENTE
FÁBIO MONTEIRO
por este que vos fala. E com fotos de Alcione Ferreira. Uma história boa de se ouvir e de se contar (que me rendeu, pelo menos, 5h de conversa, em duas visitas, e quase não cabe nas páginas da revista): menino pobre, nascido em Glória do Goitá, morou no Recife, depois foi pra São Paulo, se tornou policial militar, trabalhou no Carandiru, foi boêmio, se aposentou, voltou pro Recife, é compositor, desenhista, se emociona com os frevos e os carnavais de antigamente... e hoje faz pandeiros magníficos, espalhados pelo mundo todo!
SÃO PAULO – SP
LEO VILA NOVA
Recentemente estive no Recife para visitar minha família e fui presenteado com a Continente. Fiquei encantado com a produção das matérias e a qualidade editorial. Percebi um trabalho focado na cultura local, mas com vista para os mares e oceanos (nossa geografia propicia essas aventuras), e um diálogo profícuo entre a regionalização, a urbanização e a mundialização. Isso gera para o leitor um resultado muito bacana!
Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe
RECIFE – PE
DO FACEBOOK
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
TEATRO E GLOBALIZAÇÃO
RIO NEGRO
Belíssima a capa da Continente de julho. Arte muito bem pensada. Parabéns!
Obrigada pelo convite, Continente. Fiquei feliz de poder escrever sobre essa riqueza que é a Amazônia! Amei os sete dias que passei lá. Tive pena porque não segui pelo Rio Solimões, mas já deu para sentir que conhecer a floresta deveria ser uma obrigação para os brasileiros. Temos que dar valor à preservação da mata. Entrar em contato com a floresta é poder ter ao menos a noção de como é importante preservar o verde.
HELENILDA ALBUQUERQUE RECIFE – PE
CHICO NUNES A primeira vez que ouvi o nome “Chico Nunes” foi, se não me engano, em 2002. “É um coroa que faz uns pandeiros muito bons!”, disseram. E eu, claro, queria ter um pandeiro feito por ele! Consegui o telefone (que ele mesmo carimbava nas peles dos pandeiros – hoje, é um adesivo). Fui lá e encomendei um. De primeira, percebi a simpatia e o gosto dele por uma boa prosa. Anos depois, encomendei outro. E aquele jeitão conversador me chamou ainda mais a atenção. Acho que foi aí que me veio a ideia de, um dia, fazer uma matéria com/sobre ele. E eis que na edição de junho da Continente foi publicado o perfil de Luiz Francisco Nunes, escrito
Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Dudley Barbosa e Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Sebastião Corrêa (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Maria Luísa Falcão e Marina Moura (estagiários)
ROBERTA GUIMARÃES RECIFE – PE
CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783
Muito legal o trabalho de Roberta Guimarães (Continente #186). Sim, é verdade: o Rio Negro sempre encantou muitos viajantes. Vejam, por exemplo, as fotografias que Curt Nimuendajú fez em 1927 na única viagem que ele fez aos rios Içana, Ayari e Uaupés, afluentes do Alto Rio Negro, publicadas no livro Reconhecimento dos rios Içana, Ayari e Uaupés, organizado por mim e publicado pelo Museu do Índio. RENATO ATHIAS
redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br
RECIFE – PE
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se
compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, redes sociais e correio. As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 6 | 7
LÚCIA NAGIB
“O cinema é transnacional desde a sua origem” Professora e pesquisadora brasileira, radicada em Londres, propõe um uso diferente do termo world cinema, em que ele não se refere àquele que reage a Hollywood, mas que é identificado a partir dos seus picos criativos TEXTO Alexandre Figueirôa
CON TI NEN TE
Entrevista
O termo world cinema ganhou visibilidade nos estudos de cinema a partir do final dos anos 1990. Ele define um campo crescente no audiovisual que busca mapear e definir a cultura cinematográfica mundial a partir de uma perspectiva crítica e teórica não centrada na ideia da hegemonia da cultura europeia ocidental e de Hollywood, em particular. Uma das estudiosas mais importantes do world cinema é a professora e pesquisadora brasileira Lucia Nagib. Vivendo e ensinando no Reino Unido desde 2003, ela começou seu trabalho no campo do cinema mundial no Centre for World Cinemas, da University of Leeds, em 2005, e hoje coordena o Centre for Film Aesthetics and Cultures do Department of Film, Theatre and Television, da University of Reading. O livro Remapping world cinema: Identity, culture and politics in film (“Remapeando o cinema mundial: Identidade, cultura e política no cinema”, de 2006), organizado por Stephanie Dennison e Song Hwee Lim, foi essencial na consolidação do conceito que, desde
então, vem ampliando o seu alcance diante de um mundo globalizado e do crescimento das produções transnacionais. Nele, encontramos, entre outros, os artigos An atlas of world cinema (“Um atlas do cinema mundial”), de Dudley Andrew, e Towards a positive definition of world cinema (“Para uma definição positiva do cinema mundial”), de Lucia Nagib. Nesse artigo e nos diversos trabalhos publicados sobre o tema, Nagib rejeita a visão hollywoodcêntrica na cartografia do cinema mundial e opta por uma abordagem positiva e inclusiva do termo, em que passa a definir world cinema como um fenômeno policêntrico com picos de criação em diferentes locais e períodos. Ou seja, elimina noções de unicentrismo, primazias e coloca o cinema feito nas diversas partes do mundo – de Taipei ao Recife – em pé de igualdade, incluindo nesse mapa até mesmo o cinema hollywoodiano, que passa a ser mais um entre os outros, em vez de ser algo ao qual se deve contrapor como foi usual, por exemplo, no conceito de Terceiro Cinema, nos anos 1960.
C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 6 | 8
Atualmente, Lúcia Nagib coordena o projeto Towards an intermedial history of Brazilian cinema: Understanding intermediality as a historiographic method (“Rumo a uma história intermídia do cinema brasileiro: Entendendo a intermidialidade como um método historiográfico”), uma parceria entre pesquisadores da Universidade de Reading e da Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, que pretende revisar a história do cinema brasileiro não a partir de uma linha temporal evolutiva, mas das relações do cinema com as outras artes e meios de comunicação. CONTINENTE Lúcia, como foi o processo de criação do Centre for World Cinema, da University of Leeds? LÚCIA NAGIB Eu passei um ano como professora visitante no Birkbeck College, da Universidade de Londres, e, durante esse período, foi criada uma cátedra de World Cinema para comemorar o centenário da Universidade de Leeds; candidatei-me a ela e fui escolhida. Na Inglaterra, ao concorrer a uma cátedra, o candidato deve apresentar um projeto em que imprime o seu perfil. Então,
ALEXANDRE FIGUEIRÔA
C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 6 | 9
são. Propus um conceito positivo de world cinema, que enxerga aquilo que é específico dessas cinematografias e que as organiza segundo seus picos criativos. Olhando a história do cinema, nós identificamos várias ondas que ocorrem no mundo em função de questões econômicas, políticas, culturais, e é a partir delas que se dá a emergência de um movimento ou de uma forte corrente cinematográfica. No Brasil, nós tivemos vários desses picos, desde a idade de ouro, da bela época do cinema brasileiro, nos anos
REPRODUÇÃO
propus um conceito de world cinema um pouco diferente do que estava estabelecido. Foi até iconoclástico, porque o termo, como ele era usado, fazia sentido apenas nos países de língua inglesa, como acontece também com o termo world music, ou seja, identifica a arte produzida no resto do mundo, fora do centro, e o centro compreendido como Estados Unidos e Europa. No Brasil e em outros países, mesmo europeus, a expressão “cinema mundial” não tem esse sentido. Cinema mundial quer dizer o cinema do mundo todo.
CON TI NEN TE
Entrevista CONTINENTE Em que consistiu essa sua proposta para o world cinema? LÚCIA NAGIB O papel dos Estados Unidos no cinema mundial é muito forte por causa do peso de Hollywood. World cinema era compreendido no mundo anglófono apenas como aquele cinema que reage a Hollywood ou que não é Hollywood. É um conceito negativo, ninguém sabe o que é esse world cinema, só sabe o que ele não é. Tentei chamar atenção para isso, que o conceito deveria realmente abarcar tudo e não ser um cinema reativo. Eu estava muito insatisfeita com esse modo de olhar essas cinematografias tão ricas e tão diferentes, e obscurecer tudo que elas são simplesmente para defini-las pelo que elas não
1920, passando pelo Cinema Novo, a partir do cinema da Retomada. Assim, embora críticos de cinema e festivais ainda adotem a expressão world cinema como uma forma de identificar cinemas não anglófonos, o conceito positivo que propus ganhou relevância no meio acadêmico. CONTINENTE E esses picos criativos em diferentes partes do mundo apresentam ligações entre si do ponto de vista estético ou de linguagem? LÚCIA NAGIB Sim. Se você olhar atentamente, vai encontrar muitas características comuns entre eles. Uma dessas características é uma busca do realismo, o desejo de se revelar uma realidade escondida
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desses países. Isso aconteceu com o Neorrealismo italiano, que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial para mostrar tudo aquilo que tinha sido reprimido e escondido durante os anos do fascismo. A Nouvelle Vague também foi uma insurreição contra um cinema teatral, um cinema posado, que correspondia a uma escola que os jovens cineastas achavam retrógrada, engessada, sem vida. E, no Brasil, o Cinema Novo foi a mesma coisa. Tínhamos vivido a experiência da Vera Cruz, da Atlântida, cinemas fortemente baseados em estúdios, e o pessoal do Cinema Novo, com influência do Neorrealismo, foi para a rua, para a favela e, depois, foi para o sertão nordestino. Esse realismo é algo que conecta cinemas no mundo inteiro e é uma ilusão achar que eles estão simplesmente reagindo a Hollywood. CONTINENTE Mas alguns desses novos cinemas nos anos 1960 foram identificados com o conceito de Terceiro Cinema e se caracterizavam exatamente por uma declarada reação a Hollywood e ao cinema clássico americano e europeu. Isso não iria de encontro ao conceito positivo que você propõe? LÚCIA NAGIB Para mim, eles já se constituem world cinema, embora, naquele momento particular, fosse muito importante a demarcação da identidade nacional e a recusa do imperialismo econômico americano. Isso era forte e o que estava no horizonte era a adoção de regimes políticos que se opunham ao capitalismo, fosse ele o socialismo ou até mesmo formas mais radicais de comunismo. Mas outros momentos dos novos cinemas no mundo não se referem apenas a isso. Nós tivemos um momento do cinema brasileiro, o cinema da Retomada, por exemplo, que não se voltou necessariamente contra o establishment e não se voltava contra o cinema americano de modo algum. Longas como Baile perfumado (Paulo Caldas e Lirio Ferreira, 1996) e outros feitos no Nordeste nos meados dos anos 1990 são obras com muitas cores, muita vida, Lampião toma uísque, dança. Tem algo de bonito e belo, mesmo numa região de miséria e que não era vista da mesma maneira pelo Cinema Novo. São filmes que têm uma combinação
com a música pop, com a arte pop; a postura política nesse momento é totalmente diversa. Em Cidade de Deus (2002), Fernando Meirelles também apresenta um tipo de realismo que não tem conflito com Hollywood, usa câmera estilizada e trilha musical pop, enquanto denuncia a pobreza, a injustiça e a exclusão social. CONTINENTE Isso mostra que é preciso muito cuidado na hora de analisar os movimentos cinematográficos e os filmes. LÚCIA NAGIB Sim, são movimentos complexos. Existem os motivos que são recorrentes, que a gente vai encontrar em todas as cinematografias, mas existem as diferenças e, às vezes, essas são até mais interessantes, porque elas revelam contextos. Em Taiwan, por exemplo, encontramos um cinema que flerta com o Japão e dá as costas à China, porque, para eles, o problema é a China, e não os Estados Unidos. No novo cinema taiwanês, que é maravilhoso, com cineastas como Tsai Ming-Liang, Edward Yang ou Hou Hsiao-Hsien, existem até filmes falados em japonês, porque eles tinham uma nostalgia do tempo de quando eram ligados ao Japão. É interessante prestar atenção a esses cinemas, porque aprendemos sobre suas culturas. E, se trazemos Hollywood para a equação, só complica, a gente vai ter uma imagem distorcida disso. Há teorias que tentam analisar todos esses cinemas com base nas convenções holywoodianas, então parece que esses cinemas são rebeldes, sempre querendo quebrar alguma coisa, quando, na verdade, algumas vezes, não. Eles têm o próprio fluxo. CONTINENTE E são esses momentos localizados em um certo contexto histórico, portanto, que interessam no contexto do world cinema hoje? LÚCIA NAGIB Nós precisamos ter a generosidade de não chegar com o esquema pronto. Vamos deixar esses cinemas dizerem o que é que eles são. Existem historiadores, por exemplo, que afirmam que, na Rússia, só após Eisenstein e outros cineastas terem visto os filmes americanos é que eles mudaram completamente o seu estilo
e inventaram o cinema de montagem. Acho que, ao focalizar por aí, você perde os referenciais locais. Em vez de chegar com um esquema, vou ver o que esses filmes estão me dizendo, criar um monte de interrogações na minha cabeça e tentar explicar. CONTINENTE Nesse sentido, até o próprio cinema hollywoodiano pode ser enquadrado dentro desse contexto que você propõe para o world cinema em que todas as cinematografias são valiosas e dignas de apreciação?
“Nós tivemos o cinema da Retomada, por exemplo, que não se voltou necessariamente contra o establishment e não se voltava contra o cinema americano. Filmes como Baile perfumado (E) e outros feitos no Nordeste nos meados dos anos 1990 são filmes com muitas cores, muita vida” LÚCIA NAGIB De certa forma, sim, porque há momentos do cinema hollywoodiano que são apaixonantes e não podemos esquecê-los. Tiveram uma influência crucial, capital no modo como se faz cinema no mundo. Mas é importantíssimo ressaltar que existem coisas cruciais também nos outros cinemas, começando com Lumière e Méliès, os fundadores. E não existe uma lei que nos obrigue a ficar olhando só para Hollywood. E, se você olhar na produção de estudos de cinema, existe a predominância de livros sobre esse cinema. Isso é algo massacrante. Assim, quando lancei a minha série sobre o world cinema, que já tem 30 volumes publicados, decidi que não deveria me preocupar com essa produção.
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CONTINENTE Mas isso é se opor a ele, de certa forma. LÚCIA NAGIB Não. É no sentido de abrir para outros cinemas. Quando estava escrevendo o artigo Towards a positive definition of world cinema, olhei para todas as histórias do cinema e notei a existência de uma fatia daqueles estudos grande demais para Hollywood. Tem algumas histórias do cinema que fazem um volume para Hollywood e um outro para os demais cinemas. Acho que existe uma desproporção. Hoje, temos uma variedade muito maior de métodos de abordagem, de interesses, e os cinemas fora de Hollywood deixaram de ser exóticos. Os filmes do tailandês Apichatpong Weerasethakul estão disponíveis para qualquer pessoa e os críticos escrevem sobre ele nos jornais e isso é normal. São obras que, há alguns anos, seriam completamente ignoradas. CONTINENTE A Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, em seu encontro anual em 2013, abriu um grande espaço para debater o conceito de world cinema. Como você vê essas discussões e reflexões sobre o world cinema no Brasil? LÚCIA NAGIB Eu acho que o Brasil é um dos melhores países para isso, muito aberto, receptivo. Tive a sorte de minha formação ter acontecido em São Paulo, onde eu abria os jornais e lia sobre filmes do mundo inteiro, sobretudo durante as edições da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, do Leon Cakoff. Ela era uma vitrine maravilhosa e com cineastas do mundo inteiro indo para lá. Também vi todo o novo cinema alemão de primeira mão graças ao Instituto Goethe, que exibia cópias dos filmes em 16 mm por todo o Brasil. Tinha ainda a Fundação Japão, que fazia festivais maravilhosos de filmes japoneses. Quando cheguei à Inglaterra, ninguém acreditava que o Brasil tivesse esse tipo de abertura aos filmes de diversas partes do mundo. CONTINENTE Essa análise mais ampla da produção do mundo inteiro é também resultado de um mundo globalizado, com mais possibilidades de trocas de informação. Isso alteraria o panorama do world cinema na medida em que a globalização impulsiona as realizações cinematográficas transnacionais?
financiamento local e que fala da história do povo inuit (esquimós), suas lendas, e você descobre, de repente, a identidade cultural deles, de uma terra, porque sua existência faz sentido naquela terra, naquele lugar gelado, e todos os mecanismos que eles desenvolvem para sobreviver num ambiente tão hostil. CONTINENTE Nesse contexto, com todas as reações locais, poderíamos afirmar que o interesse dos estudiosos do world cinema por essas cinematografias isoladas ou
REPRODUÇÃO
LÚCIA NAGIB A questão das produções transnacionais dá essa impressão de que hoje é quase impossível se falar de cinematografias nacionais, mas eu acho que não é tão simples assim, por dois motivos. Primeiro: o cinema é global e transnacional desde a sua origem. Lumière, quando criou o cinematógrafo, pretendia vender aquela máquina para vários países. Então, viajou para o Egito, Japão; ele queria espalhar o seu produto e era importante que houvesse
CON TI NEN TE
“É curioso ver que o cinema de Kleber Mendonça Filho dialoga com o trabalho de um cineasta como Jia Zhang-Ke, da China (E). Ele também está se rebelando contra algo do seu país, no caso, a construção da barragem de uma hidroelétrica”
Entrevista
filmagens nesses lugares. Por outro lado, o excesso da globalização cria a resistência do nacional, estimula alguns realizadores a querer preservar a identidade de suas culturas. Portanto, na mesma medida em que você vê cineastas e produtoras indo em busca de dinheiro de programas de incentivo internacionais, dos workshops e mostras dos festivais para fazer um filme, também vê a emergência de filmes baratos, pobres e que surgem num lugar onde menos se espera. Falo, por exemplo, desse filme maravilhoso chamado Atanarjuat (Zacharias Kunuk, 2001), o primeiro longa-metragem escrito, dirigido e atuado na língua inuktitut, feito inteiramente com
redor (2013) quanto no seu novo filme, Aquarius (2016): a expansão imobiliária tresloucada que está acontecendo no Recife, com problemas específicos e com um passado também particular. Uma história que vai lá para trás, para o período colonial e a exploração resultante do plantio da cana e da indústria do açúcar, do senhor de engenho, dos escravos que depois viraram mão de obra barata, quase escrava. E o que ele descreve do agora remete a esse passado. E, embora seja algo bastante específico daquela
localizadas é também uma ação política? Que posicionamento político seria esse? LÚCIA NAGIB Quem está determinando esse posicionamento político são os próprios cineastas. Vamos pegar o caso de Pernambuco, que é bastante curioso, pois ele escapa um pouco ao que afirmei anteriormente sobre como ocorre a preservação de uma identidade local. Embora os cineastas pernambucanos estejam captando recursos e apoios na Europa, nos Estados Unidos, para completar o orçamento dos seus filmes, existe uma grande preocupação em definir claramente de que lugar eles estão fazendo cinema. Kleber Mendonça Filho tem uma pauta política clara tanto em O som ao
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região, pelo tipo de olhar, pelo tipo de intervenção, ele se comunica com iniciativas de outros países que tiveram esse mesmo tipo de preocupação. É curioso ver que esse cinema dialoga com o trabalho de um cineasta como Jia Zhang-Ke, da China. Ele também está se rebelando contra algo do seu país, no caso, a construção da barragem da hidroelétrica das Três Gargantas, que provocou a inundação de diversas cidades e o deslocamento de milhões de pessoas, motivo do seu filme Em busca da vida (Still life, 2006). CONTINENTE Depois de tantos anos dedicados ao world cinema, você agora está coordenando um projeto sobre cinema brasileiro. O que ele traz de novo?
LÚCIA NAGIB O projeto se chama Towards an intermedial history of Brazilian cinema: Understanding intermediality as a historiographic method. Normalmente, nós compreendemos a história do cinema como um movimento evolutivo. Sai do cinema primitivo para um modo clássico e depois evolui para o moderno, e, depois, para o pós-moderno. Não acho que estamos sempre evoluindo, acredito que há idas e vindas. Avanços e retrocessos. Coisas que são consideradas ultramodernas ou experimentais, hoje; ao compararmos com o cinema dos primeiros tempos, descobrimos que muitas dessas coisas já estavam lá. Houve vanguardas em toda história da arte e o cinema é uma mistura de artes, ele é o conceito wagneriano da arte total. Nele, você tem música, literatura, pintura, fotografia, e esses meios estão entrelaçados. Assim, a proposta do projeto é ver como o cinema se relaciona com essas artes e construir uma história com base nisso, que não é evolutiva, mas que localiza momentos em que essa interação com as artes esteve mais efervescente e visível, e observar como esses momentos se relacionam. Por exemplo, analisar as chanchadas, que são filmes do gênero musical, em relação a outros momentos do cinema brasileiro em que a música também foi forte, que pode ser o cinema contemporâneo feito em Pernambuco, em que os filmes do chamado árido movie tiveram um diálogo direto com o manguebeat. Ou comparar com as produções da Vera Cruz e da Maristela, em que também havia a interação do cinema com o teatro de revista. Ver como isso criou um modo de atuação, como a música determinava a distribuição dos filmes quando saíam as marchas de carnaval. O nosso foco é intermedial, para poder dar espaço a todas essas manifestações. Às vezes, você acha que um filme não é interessante em si, mas, quando começa a olhar o modo como essas artes foram abordadas nesse filme e a influência que tiveram, começa a ver que ele fica mais interessante.
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REPRODUÇÃO
1
Port
fรณlio
CON TI NEN TE
Portfólio
2
Clara Moreira
PRIVILÉGIO DO DESENHO TEXTO Marina Moura
O tempo de Clara Moreira parece ser outro. Existe uma espécie de leveza
e desprendimento nela quando, por e-mail, escreve à reportagem da Continente: “viajei e passei alguns dias sem computador”. Clara também dá sinais de pertencer a outro tempo porque encara o ofício de desenhista como parte de sua vida mental. “Penso muito antes de desenhar. Posso demorar bastante para começar efetivamente um desenho, mas ele chega a ficar todo definido na minha cabeça. Às vezes, passo meses trabalhando uma imagem mentalmente. Outras, surge-me uma imagem inteira repentinamente”, afirma sobre seu processo criativo. Aos 32 anos, a pernambucana é formada em Arquitetura, já foi urbanista, professora, assessora parlamentar e, simultaneamente a tais atividades, sempre desenhou. Hoje, mora em Belo Horizonte e dedica-se exclusivamente à arte. Optar pelo desenho representa uma modificação no ritmo de sua rotina e impacta diretamente no trabalho que concebe, privilegiando procedimentos tradicionais e o uso de nanquim, lápis de cor e grafite. “Essa mudança foi e tem sido decisiva para o tipo de desenho que eu faço, que utiliza técnicas artesanais e necessita de tempo. Tenho mais tempo pra pensar em desenho e só penso nisso. Sinto-me muito bem”, comenta.
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1 OLINDA Clara Moreira ilustrou o livro produzido pela cineasta e jornalista Mariana Lacerda Nestas páginas 2-3 MANUAL
desenhista trabalha A diretamente no papel, sem o uso de qualquer ferramenta digital
IMAGENS: REPRODUÇÃO
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m seus trabalhos, E ela explora lápis de cor, nanquim e grafite
5-8 SÉTIMA ARTE
Clara Moreira possui um grande portfólio de cartazes para filmes e festivais de cinema
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Foi pelos corredores do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco que Clara iniciou seu percurso de desenhista profissional. Enquanto cursava Arquitetura, entrou em contato com alunos que organizavam o Cineclube Barravento, com sessões semanais de curtas-metragens. Ela passou a fazer os cartazes desses filmes, até que “vieram os festivais e os longas, convites de outros estados” e nunca mais parou. Não à toa, boa parte da produção da artista está atrelada ao cinema – ela já produziu cartazes de festivais como o Janela Internacional de Cinema do Recife e Semana dos Realizadores, além de pôsteres de filmes de Kleber Mendonça Filho, Tião, Gabriel Mascaro, Marília Rocha, entre outros. Por isso, Clara entende: “foi o cinema que me colocou no caminho do desenho”. A relação dela com a sétima arte, aliás, extrapola os limites profissionais e passa pelo vínculo afetivo que mantém com os filmes. “Diria que sou cinéfila, mas não posso afirmar de fato isso porque conheço cinéfilos e eles se
Foi o cinema que colocou Clara Moreira no caminho do desenho. Por isso, boa parte de sua produção está ligada à área dedicam muito mais ao cinema do que eu, viram e costumam ver mais obras que eu. Mas sou igual a eles naquele tipo de paixão obsessiva. Tenho saudades de filmes. Imito a vida neles. Quero me casar com um filme e posso sentir ódio de um deles.” Em tempos de interfaces e digitalização, Clara Moreira segue ilustrando no papel, e destaca: “Não sei usar o computador pra desenhar”. Não é que ela negue as ferramentas digitais nem desmereça o valor e as possibilidades desses aparatos, mas conta que nutre a intimidade com a folha em branco e o gosto pelo processo, transitando entre o planejado e o inesperado. “Gosto do fato de que o desenho no papel é fatal, é o registro
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de um tempo em que alguém ficou ali colocando pigmentos um a um, é um momento, uma umidade, uma poeira que adere, um erro incontornável.” Sobre as referências para o seu trabalho, Clara dá especial valor às parcerias profissionais que estabelece, além de um caldo difuso que engloba livros, filmes, conversas, lugares, outros artistas, memórias de infância e sua cidade natal, o Recife. Ela entende que “esse é um movimento constante, sem o propósito específico de buscar referências, mas acho que tudo me influencia”, conta ela, que, no momento desta entrevista, lia Moby Dick e ouvia Metá Metá. Clara trabalha, agora, em dois cartazes de filmes e organiza uma exposição conjunta com a artista Juliana Lapa, prevista para ocorrer no fim do ano, n’A Casa do Cachorro Preto, em Olinda. A respeito da mostra, a artista acredita que mantém um diálogo constante entre “as demandas exteriores e as questões internas”, produzindo, assim, desenhos de outros tempos, possivelmente, para citar Chico Buarque, do “tempo da delicadeza”.
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A INVASÃO DOS POKÉMONS
De volta à África Em Navio negreiro (1868), Castro Alves pergunta quem são os que sofrem “tanto horror perante os céus”. Após 128 anos da assinatura da Lei Áurea, o documentário Brasil: DNA África aponta os países de onde vieram os descendentes de alguns dos 4,8 milhões de africanos trazidos à força ao Brasil e que aqui, além da liberdade e dignidade, tiveram sua origem e passado roubados, principalmente com a mudança do nome e sobrenome praticada pelos seus “donos”. A projeto coletou o DNA de 150 pessoas dos cinco estados brasileiros que mais receberam escravizados e selecionou cinco representantes para atravessar o Oceano Atlântico numa viagem de regresso simbólico à África. Foram escolhidos o arquiteto baiano Zulu Araújo, a editora de moda carioca Juliana Luna, o jornalista maranhense Raimundo Garrone, o músico mineiro Sérgio Pererê e o percussionista pernambucano Levi Lima, que embarcaram numa jornada para conhecer o povo e a cultura de seus antepassados. Dentre os pernambucanos que participaram da coleta estão a escritora Lúcia dos Prazeres, o historiador João Monteiro, os músicos Nando Cordel, Canibal, Lucas dos Prazeres, Guitinho (Bongar) e as cantoras Lia de Itamaracá e Isaar França. “O resultado pega a linhagem materna. Sou do povo Tikar, dos Camarões. Sempre torci pelo Camarões nas copas do mundo. Minha seleção favorita. Fiquei emocionada com o resultado. Minha mãe também”, contou Isaar à Continente. A propósito, Lia descobriu que, além de Itamaracá, é também de Guiné-Bissau. DÉBORA NASCIMENTO
O killer app (“aplicativo matador”) é aquele que define a cultura em torno de uma nova tecnologia, chama atenção do público e alfabetiza os adeptos em sua linguagem. Após muitas simulações de montanhas-russas, surgiu, este mês, o killer app para a realidade aumentada, uma vertente da realidade virtual. O jogo Pokémon Go permite que colecionadores de criaturas virtuais saiam à sua caça no mundo real, através das telas de seus smartphones, a realização de um sonho para os fãs do mangá. Em poucos dias, se tornou o aplicativo mais baixado e usado do mundo, criando muitos problemas, como brigas, atropelamentos e invasões de propriedade privada, causados por usuários fervorosos. Vários estabelecimentos comerciais e empresas já foram obrigados a criar restrições ao uso do jogo, provando, assim, que os pokémons virtuais já são uma presença “real” e incômoda em nossa realidade. (Yellow)
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A FRASE
“Ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem”
Giorgio Agamben, filósofo italiano
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HERE COMES THE DARKNESS Segundo pesquisa da CNN divulgada no mês passado, o magnata Donald Trump, candidato à presidência dos Estados Unidos, aparece perigosamente à frente da candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton, ele com 41%, ela, 39%. É a primeira vez que essa inversão acontece. Até então, apenas crescia a rejeição ao postulante, principalmente entre os músicos. Além de todos os seus “atributos”, como xenofobia, machismo e autoritarismo, o empresário ainda tem o topete de utilizar canções na sua campanha sem a permissão dos autores. Os Rolling Stones, Adele, Neil Young, R.E.M., Aerosmith e Queen foram alguns dos afrontados. A mais recente vítima do uso indevido foi Here comes the sun, presente no álbum Abbey Road. Ter tocado a música na convenção “é ofensivo e vai contra os desejos dos administradores da obra de George Harrison”, escreveram os responsáveis pelo legado do Quiet Beatle. “Se fosse Beware of darkness, poderíamos ter concordado”, acrescentaram, referindo-se à composição de Harrison do álbum All things must past (1970), na qual um dos trechos alerta: “Beware of greedy leaders / They take you where you should not go” (“Cuidado com os líderes gananciosos / Eles te levam onde você não deveria ir”). (DN)
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FRIDA PARA CRIANÇAS 2016 é o ano de Frida Kahlo no Brasil. Primeiro, milhares de visitantes viram Frida Kahlo Conexões entre mulheres surrealistas no México, que circulou por São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro com 19 quadros, 13 obras em papel e fotografias que abriam uma brecha para sua intimidade. Agora, Frida e eu se propõe a levá-la a um público geralmente não associado à fruição artística – as crianças. A exposição vem do Centre Georges Pompidou, em Paris, para o Museu Histórico Nacional, no Rio, onde fica até outubro. São seis eixos temáticos – autorretrato, família, dor, Diego, natureza e Paris – e nenhum quadro, e sim diversas instalações em um ambiente com almofadas no chão e espelho no teto. A ideia é que os visitantes mirins possam experimentar, de forma lúdica e interativa, as sensações transpostas por Frida, que viveu entre 1907 e 1954, para suas criações, incluindo as excruciantes dores físicas que lhe marcaram depois do acidente e as paixões – por plantas e animais, por exemplo – eternizadas nos seus quadros. (Luciana Veras)
A PIADA MAIS ENGRAÇADA O pato é o animal que causa mais risos numa anedota. As mais divertidas têm em média 100 caracteres e a mais engraçada nem é assim tão engraçada. Isso tudo foi constatado num estudo realizado pelo psicólogo Richard Wiseman, da Universidade de Hertfordshire, no Reino Unido. Richard buscava características universais de piadas; as pessoas mandavam as suas favoritas para o site da pesquisa e davam notas a outras já enviadas. Foram mais de 40 mil piadas, traduzidas em mais de 50 línguas diferentes e avaliadas por cerca de 2 milhões de pessoas de todos os canto do mundo. Sim, e qual a piada mais engraçada? Bem, aí vai a vencedora: Dois caçadores estão numa floresta, quando um deles desmaia. Ele parece não respirar e seus olhos estão vidrados. O outro caçador, em pânico, pega o telefone e liga para a emergência: “Meu amigo está morto! O que faço?”. A atendente responde: “Calma, eu vou te ajudar. Primeiro, certifiquese de que ele está morto”. Há um silêncio, e então um tiro é ouvido. De volta ao telefone, o cara diz: “Ok, e agora?” (Janio Santos)
O último show dos Beatles Agosto de 1966 é um período sagrado no calendário da beatlemania. Foi na primeira semana que Revolver, o sétimo disco de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, saiu. Dando pistas inequívocas das experimentações sonoras que se seguiriam, o álbum trazia I´m only sleeping, Eleanor Rigby, For no one e a lisérgica Tomorrow never knows. No fim do mês, o quarteto britânico chegava a San Francisco, na Califórnia, para fazer aquele que seria seu último show oficial. Em julho, haviam sido escorraçados das Filipinas; ao não atender o pedido de visita feito pela primeira-dama, Imelda Marcos, foram agredidos no aeroporto. Estavam, portanto, já fartos da turnê. Para o Candlestick Park, cuja capacidade era de 42 mil pessoas, foram vendidos 25 mil ingressos. Consta que a banda não desejava lotar o estádio por temer possíveis reações agressivas, em repercussão à entrevista, publicada em março no London Evening Star, na qual Lennon havia dito: “Nós somos mais populares que Jesus Cristo”. A plateia de San Francisco, sem ter ideia do privilégio de assistir ao derradeiro concerto, usufruiu de apenas onze canções, tocadas na noite da segunda-feira, 29. O repertório começava e fechava com covers – Rock and roll music e Long tall Sally, respectivamente, de Chuck Berry e Little Richard – e incluía sucessos como Day tripper, Paperback writer e Yesterday. Meio século depois, os registros dessa performance seguem a circular pela internet, um dos maiores campos de preservação da memória dos Beatles. LUCIANA VERAS
EPOPEIA ONLINE A biblioteca do Vaticano disponibilizou para leitura online um livro de cerca de 1600 anos de idade: a Eneida, de Virgílio. É verdade que a edição foi escrita em latim literário, mas vale a pena observar as imagens que acompanham o poema épico. A biblioteca abriga mais de 80 mil manuscritos e textos, incluídos aí desenhos e notas de personalidades como Galileu e Michelangelo. Diante da quantidade e especificidade desses documentos, o processo de digitalização do acervo é lento, porém tem sido contínuo… E caro! A Igreja Católica prevê um gasto de 50 milhões de euros, ao longo de 15 anos, para colocar no ar todo o seu acervo. (Marina Moura)
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MOACIR SANTOS Do Sertão para o mundo De órfão de pai e mãe aos três anos, no interior de Pernambuco, a aclamado compositor, maestro, professor e arranjador nos Estados Unidos, artista construiu uma surpreendente trajetória musical TEXTO Débora Nascimento
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CAPA
No livro Jazz: a critic’s guide to the 100
most important recordings, da série The New York Times Essential Library, o crítico Ben Ratliff inseriu na sua lista, que abrange aclamados álbuns do gênero musical norte-americano, como Miles ahead (1957), de Miles Davis, e A love supreme (1965), de John Coltrane, o disco de um pernambucano nascido em pleno Sertão do Pajeú. Coisas, de Moacir Santos, lançado em 1965, não somente foi adentrado nesse seleto rol, como induziu o jornalista a levantar a seguinte questão: “Why is this man not famous?” A indagação pertinente, feita em 2002, veio um ano depois do lançamento de Ouro Negro, álbum duplo com composições do artista, determinante para trazer de volta ao mercado fonográfico brasileiro o essencial nome do compositor, arranjador, produtor, multiinstrumentista, professor e mestre de gerações de músicos.
“Ele é um dos Jedis: ele, o Villa, o Tom. É um desses caras gigantescos, aquela mão de proteção em cima da gente, das nossas criações, do que a gente tem pra fazer daqui pra frente”, afirmou Ed Motta, nos bastidores da gravação do DVD Ouro Negro (2005), registro do espetáculo baseado no disco homônimo, no qual interpretou Orfeu, uma das canções moacianas, assim como Nanã, que têm mais fama que o seu autor. “Quando descobri a música de Moacir Santos, fiquei em transe com isso. Só escutava o Moacir Santos. Comecei a fazer vários temas usando as unidades de tempo que ele usa: seis, cinco, nove, as unidades de tempo diferentes, essa coisa afro. Uma coisa que me identificou muito foi o cuidado que ele sempre teve com a organização da base, que não é muito uma tradição da música brasileira. A música brasileira tem mais uma preocupação assim: o arranjo, que está na frente, as flautas ou
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o sopro, ou cordas e tal, o piano meio livre, e a base está sempre meio livre, ninguém fala com a base, ninguém fala pro baterista ou pro baixista é assim ‘bum, bum’. Com Moacir Santos era tudo amarradinho. Tudo aquilo faz parte da construção, da arquitetura da música dele: o desenho do contratempo, o desenho do baixo”, esmiúça. O carioca Ed Motta foi um dos músicos que voluntariamente se transformaram em seguidores e propagadores da obra do “Mestre Jedi” da música brasileira. O mesmo aconteceu com os conterrâneos Zé Nogueira e Mário Adnet, responsáveis por resgatar o maestro para o Brasil com o projeto Ouro Negro. “A memória no Brasil não é cultivada. Você vê que até os grandes nomes correm perigo de desaparecer. É uma questão de educação que passa obrigatoriamente pela política praticada aqui. Fora isso, tem a questão de mercado, que é muito imediatista
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CON CAPA TI NEN TE FOTOS: ACERVO MOACIR SANTOS/REPRODUÇÃO
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e vem evoluindo assim. Moacir é arte, é patrimônio cultural. Temos tentado divulgá-lo sempre através dos shows e dos projetos que fizemos, Ouro Negro, Choros & alegrias, o CD de minha irmã, Muiza Adnet, As canções de Moacir Santos, e os cancioneiros Moacir Santos em três volumes, além do relançamento de Coisas, o único disco de Moacir gravado no Brasil. São projetos de vida”, atestou o coprodutor do álbum Ouro Negro e autor, ao lado do saxofonista Zé Nogueira, das transcrições dos arranjos originais, lançadas em três livros de partitura (Coisas, Ouro Negro e Choros & Alegria), iniciativa que contribuiu para difundir a obra de Moacir entre instrumentistas. Mário Adnet concorda que Ouro Negro ajudou a despertar o interesse de muitos especialistas, ouvintes e músicos, como Wynton Marsalis, que se refere ao pernambucano como “mestre” ou “The Brazilian Duke Ellington”. O trompetista nova-iorquino, quando veio ao Brasil em março e abril de 2015, com sua orquestra, passando por cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, executou temas de dois compositores nordestinos: o alagoano Hermeto Pascoal
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(Bebê e O ovo) e Moacir Santos (Coisa Nº 2 e Coisa Nº 8). A apresentação na capital pernambucana aconteceu em plena praia de Boa Viagem, no palco aberto do Parque Dona Lindu, para um público de cinco mil pessoas, dentro do projeto Do Frevo ao Jazz, do maestro Spok. “Moacir se tornou mais conhecido na costa oeste, onde viveu por quase 40 anos. Fizemos um concerto com o Marsalis na França, no festival de jazz de Marciac, em 2005, para 7 mil pessoas, e depois com a Banda Ouro Negro no Jazz at Lincoln Center, em 2010. Em 2014, a Jazz at Lincoln Center Orchestra, comandada por Wynton, incorporou boa parte da obra de Moacir Santos ao seu vasto repertório e já fizeram vários concertos pelos EUA e pelo mundo. Acho que essa circulação internacional leva vantagem, com certeza, pelo nível cultural”, comemora Mário Adnet. Moacir Santos decidiu morar nos Estados Unidos em 1967, aproveitando a boa recepção da trilha que compôs para o filme Love in the Pacific. Dois anos antes, havia lançado uma obra-prima, Coisas, mas sem grande repercussão. Quando este disco surgiu, o cenário
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musical no Sudeste do país em 1965 era o seguinte: Arrastão, de Edu Lobo e Vinicius, interpretada por Elis Regina, vencia o I Festival da Música Brasileira; Chico Buarque lançava o seu primeiro LP; Roberto Carlos soltava o álbum Jovem Guarda, desdobramento do estrondoso sucesso do programa homônimo da TV; os Beatles invadiam as rádios e as vitrolas das casas. Ou seja, o ambiente estava bastante favorável às “músicas dos festivais”, ao rock e à rebarba da Bossa Nova (como O fino da bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues). O máximo de jazz que chegava ao país era Ol’man Mose, de Louis Armstrong, que ficou famosa na versão A história de um homem mau, do LP Roberto Carlos canta para a juventude. Diante de uma dificuldade financeira que o fez pensar até em trabalhar como taxista – a ditadura militar havia desmantelado a Rádio Nacional, emissora de radiodifusão mais importante da época e onde Moacir trabalhava como regente desde 1948 –, o artista resolveu tentar a sorte nos Estados Unidos. Cumpria, então, mais uma vez, a sua sina de viajante, iniciada desde que saiu de Flores, aos 14 anos, rodando todo
REPRODUÇÃO
1 AOS 17 ANOS Três anos depois de fugir de sua casa, em Flores NOS EUA 2 Moacir Santos and the Fabulous Prees, grupo montado nos anos 1970 para shows eventuais VISITA AO BRASIL 3 Com o maestro Edésio Alves em Serra Talhada, em 1980
4 FREE JAZZ Em 1985, músico volta ao país para abrir a primeira edição do festival
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o interior de Pernambuco, o Nordeste, até chegar ao Rio. Enquanto reunia a documentação para a imigração, em 1967, Moacir descobriu a sua data de nascimento num registro de batismo de uma igreja em São José do Belmonte. Encontrou um documento em que estava escrito “Muacy” (sem sobrenome), datado de 1926. Mesmo sem ter certeza de que aquele Muacy se tratava dele mesmo, quis crer que sim e relatou que aquela foi uma das maiores alegrias de sua vida. Quando chegou aos Estados Unidos, residiu inicialmente em Newark (Nova Jersey), depois se estabeleceu em Pasadena, na Califórnia, onde morou até sua morte em 6 de agosto de 2006. Naquele país deixou para trás a pouco provável chance de conquistar em terras brasileiras a fama e o reconhecimento à altura de seu talento. “Tom Jobim dizia que, no Brasil, é proibido o aborígene sair da taba. Moacir Santos foi um dos que saíram e o Brasil fez desabar sobre seu nome um manto de silêncio. Pois chega de silêncio. Nanã sabe das coisas e diz que chegou a hora de o Brasil saber de Moacir, reaprender Moacir, merecer
“Moacir é arte, é patrimônio cultural. Temos tentado divulgá-lo sempre através dos projetos” Mário Adnet Moacir”, escreveu o jornalista e escritor Ruy Castro no encarte do CD Ouro Negro. Moacir voltou ao Brasil em algumas raras ocasiões, para visitar os familiares de sua esposa Cleonice e amigos na Paraíba e em Pernambuco. Em 1985, foi convidado para abrir a primeira edição do Free Jazz Festival. Em 1996, recebeu do Governo Federal a comenda da Ordem do Rio Branco, mas a cerimônia aconteceu na embaixada brasileira em Los Angeles. Naquele ano, foi homenageado do Brasil Summerfest, em Nova York. Nos Estados Unidos, o pernambucano construiu uma sólida carreira como compositor, trilhista, arranjador e docente, sendo membro da Associação de Professores da Califórnia. Na década
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de 1970, lançou, pela renomada Blue Note, os álbuns The Maestro (1972, indicado ao Grammy), Saudade (1974) e Carnival of the spirits (1975), além de Opus 3 nº 1 (1979), pela Discovery Records. Trabalhou, inclusive, numa função que não contribuía para conquistar a tão merecida fama reivindicada por Ben Ratliff: foi ghost writer de Henry Mancini e Lalo Schifrin, escrevendo trechos de arranjos para composições. Por conta disso, há a desconfiança de alguns músicos de que sua mão esteja por trás das gravações originais dos temas da Pantera Cor-de-Rosa (Mancini) e de Missão: Impossível (Schifrin). A flautista carioca Andrea Ernest Dias é outra discípula de Moacir Santos que conheceu a obra do maestro no começo dos anos 2000, quando foi convidada para participar da gravação do projeto Ouro Negro. A musicista ficou estupefata com a qualidade daquelas músicas e, tal como os demais convocados para essa iniciativa de Mário Adnet e Zé Nogueira, após o registro de seu instrumento, permanecia no estúdio para assistir aos outros takes, algo incomum entre instrumentistas contratados.
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O crescente interesse pela obra moaciana fez a musicista focar o compositor como alvo de sua tese de doutorado na Universidade da Bahia. O estudo acabou se transformando no extraordinário livro Moacir Santos, ou Os caminhos de um músico brasileiro (2014), uma mistura de biografia com análise musical, que será relançado neste mês de agosto pela Cepe Editora, em coedição com a Folha Seca, para festejar os 90 anos do nascimento do artista (comemorado no dia 26 de julho). Em parceria com a Cepe, o Conservatório Pernambucano de Música realiza no dia 23 deste mês, às 19h, no Teatro Santa Isabel, o concerto com a Banda Sinfônica do CPM, sob regência de Marcos Ferreira Mendes. O programa terá as músicas premiadas nas duas edições do Prêmio de Composição Moacir Santos, promovidas pelo CPM em 2008 e 2012, Caldeirão (Julião Adelino), Pitombando no baião (Paulo Arruda), Abaiãonado e Frevando (José Nilson Lopes), Frevando em Recife (Marcos Ferreira Mendes) e mais três composições do homenageado, Paixão segundo Moacir, Coisa Nº5 e Coisa Nº6. Encerrando a
apresentação, será executado O berço (3º movimento da Suíte Ouro Negro), resultado do doutorado em Música do ex-professor do Conservatório, Sérgio Gaia Bahia. A entrada é a compra da publicação (R$ 30).
PROJETOS
Neste ano, ainda estão sendo preparadas mais reverências a Moacir, como o novo disco do Grassmass, projeto do músico pernambucano Rodrigo Coelho. “Tributos a Moacir dentro do jazz existem aos montes. O objetivo principal é aproximar as gerações mais novas de sua obra. É uma re-visão de seus temas mais mântricos, com synths no lugar dos sopros, mantendo a percussão tribal, mas numa paisagem sonora mais densa. Tudo gira em torno dessa apropriação da musicalidade africana, não no sentido arqueológico de revisitá-la, mas de entendê-la como semente de uma nova estética musical, um novo ‘afrofuturismo’”, explica o ex-baixista da Jorge Cabeleira. O repertório de Tribute to Moacir Santos, que traz duas inéditas de Coelho, é baseado principalmente em Coisas com
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versões permeadas por sintetizadores, drum machines, piano, baixo, guitarras, bateria e percussão (gravada por Lucas dos Prazeres). Duas faixas estão disponíveis: Coisa nº 4 (download através do site The Wire) e Coisa nº 2, no SoundCloud. “O encontro entre o passado e o futuro, entre a música de raiz e a música universal, é algo que sempre me fascinou. Quando ouvi Coisas, onde toques de candomblé se fundiam a um gênero contemporâneo como o jazz, percebi que essa busca ressoava de forma universal”, complementa. De mais uma audição de Moacir, surgia outro arrebatamento e um trabalho decorrente. O compositor e músico paulista Lucas Bonetti estudava Instrumento Popular do bacharelado em Música da Faculdade Santa Marcelina (SP) quando, durante uma aula de percussão, ouviu pela primeira vez uma composição do artista: Maracatu, nação do amor (April child). Ficou tão impressionado que passou a pesquisar a obra moaciana. “O mais interessante para mim na carreira do Moacir é sua diversidade de facetas. Em todas as suas áreas de atuação, ele tem produções muito
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relevantes, desde seus arranjos na época da Rádio Nacional até suas músicas compostas para cinema, além de ter atuado brilhantemente como professor e gravado diversos discos seminais. Sempre há algo novo para ser descoberto em sua obra”. Esse estudo evoluiu para um mestrado na Unicamp, em 2012, com o objetivo de pesquisar suas composições para cinema. “Primeiro, houve um resgate dos filmes, pois muitos estavam perdidos e não tinham sido relançados comercialmente em novos formatos. Depois disso, todas as inserções musicais foram devidamente decupadas para se iniciar o processo de transcrição. Levei seis meses para transcrever todos os parâmetros musicais, como estrutura formal, instrumentação, linhas melódicas e harmonizações. Depois disso, consultei diversos músicos especialistas, como Proveta, André Mehmari e Fernando Corrêa, para refinar as transcrições, e esse processo de revisão durou mais seis meses”. Em 2014, depois de defendida a dissertação, o projeto foi contemplado no edital do Rumos Itaú Cultural. Inicialmente, o apoio visava a divulgação das partituras em livro. “Mas como a ideia era uma publicação de distribuição gratuita, para poder facilitar o acesso a esse material, decidi, junto aos produtores do Rumos, que uma plataforma online viabilizaria também o acesso a trechos dos filmes. De fato, essa é uma das funcionalidades mais interessantes do site: poder assistir aos excertos audiovisuais simultaneamente com as transcrições da trilha em partitura.” O Trilhas Moacir Santos (trilhasmoacirsantos.com) abrange partituras das composições do maestro para o cinema brasileiro no início da década de 1960, no período anterior ao lançamento de Coisas. Os filmes que tiveram suas composições transcritas e analisadas foram: Ganga Zumba (Cacá Diegues, 1963), Seara vermelha (Alberto D’Aversa, 1964), Os fuzis (Ruy Guerra, 1964) e O beijo (Flávio Tambellini, 1965). Nessa pesquisa, Bonetti identificou células embrionárias da obra-prima que Moacir lançaria em seguida. “Imediatamente depois de finalizar o mestrado sobre suas trilhas musicais, com o foco em suas produções
5 OBRA-PRIMA Coisas, primeiro LP de Moacir Santos, foi lançado em 1965 6 OURO NEGRO Álbum duplo reúne diversas músicas do maestro MOACIR 7 Com Mário Adnet (E) e Zé Nogueira (D), responsáveis pelo projeto Ouro Negro LUCAS BONETTI 8 Músico resgatou trilhas sonoras do maestro para o cinema brasileiro
Estão sendo preparados vários projetos referentes a Moacir Santos: filme, relançamento de livro, disco, shows, pesquisa brasileiras, iniciei um projeto de pesquisa de doutorado, também na Unicamp, investigando a sua produção norte-americana. Em 2015, pude morar por aproximadamente quatro meses na Califórnia para realizar uma pesquisa de campo, financiada pela Fapesp, como parte do doutorado em andamento”, relata Bonetti, que ainda está preparando a produção do disco de estreia do seu grupo, Ágar-Ágar Trio, focando seu repertório especificamente nas adaptações das trilhas musicais de Santos. “É uma forma de ressignificar as partituras transcritas por mim para o projeto”, completa. Assim como escreveu músicas para o cinema, o próprio Moacir Santos renderia, com sua história, um filme. E este deve ser realizado. O cineasta pernambucano Daniel Aragão afirma que já deu início ao projeto. “O filme é uma ficção, finalizei o roteiro já nessa minha última passagem pela
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Califórnia, mas não sei quando o longa será produzido. Vou ter que esperar o destravamento de tudo, possivelmente dentro de dois anos iniciarei. Minhas negociações com os produtores norteamericanos dependem de uma certa estabilidade no Brasil. Mas o roteiro está lindo”, adiantou o diretor. A trajetória cinematográfica do nosso Ouro Negro foi brevemente descrita pelo sambista e letrista de algumas composições de Moacir, Nei Lopes: “Só mesmo o destino, com os vários nomes que tem, para transformar um negrinho do interior de Pernambuco, nascido menos de quatro décadas após a abolição da escravatura e órfão aos 3 anos de idade, em um dos músicos brasileiros mais reconhecidos, nacional e internacionalmente, em todos os tempos. Pois este é o resumo da história do maestro Moacir Santos, que, aos 14 anos, nem sabia ao certo sua idade nem a grafia de seu nome. E que, impulsionado por uma força estranha, veio vindo, do interior de Pernambuco para o Recife, do Recife para João Pessoa, de João Pessoa para o Rio de Janeiro, do Rio de Janeiro para Los Angeles e de Los Angeles para o mundo.” E, assim, bem do jeito de Moacir, serena e elegantemente, seu legado e sua fama vão se expandindo.
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Entrevista
MOACIR SANTOS JR. “MEU PAI DIZIA: ‘COMPONHO MÚSICA PARA O UNIVERSO!’” Principalmente após Moacir Santos ter construído uma carreira musical ímpar e inatacável, os elogios de colegas, críticos e fãs em torno de sua obra formaram uma voz uníssona. Mas, os que tiveram a chance de conhecer o artista pernambucano pessoalmente, acrescentam qualidades a ele: a de um homem cortês, elegante, disciplinado, simpático e bastante generoso. Nesta entrevista, seu filho, Moacir Santos Jr., dá mais detalhes sobre a personalidade do pai, as lembranças que o maestro tinha de Pernambuco, o cotidiano pessoal e profissional tanto em sua casa, no Rio de Janeiro, onde o arranjador dava aulas para futuros ícones da bossa nova, quanto na Califórnia, onde o compositor e multi-instrumentista estabeleceu uma respeitável carreira internacional e faleceu em 6 de agosto de 2006. Nessa residência em Pasadena, Moacir Santos Jr., músico amador e militar reformado, mora e preserva o legado paterno. CONTINENTE Havia um interesse do maestro em retornar a Pernambuco para fazer algum concerto?
MOACIR SANTOS JR. Sim, imagino que ele pensava nisso. Há um sabor especial em rever sua própria pátria. CONTINENTE Como foi perceber o carinho das pessoas com relação a Moacir Santos, na sua vinda a Pernambuco, para o Festival Moacir Santos, no Teatro Santa Isabel, em 2013? MOACIR SANTOS JR. Incrível! Fiquei impressionado como os brasileiros estenderam o seu amor a ele para mim. Havia muitos que vieram de cidades distantes, como Flores, por exemplo, apenas para assistir ao festival. E tentaram me saudar pessoalmente, apertar as minhas mãos, ou tirar fotos comigo, em memória, respeito amoroso ao meu pai, celebrando a sua vida. Durante a sessão da mesa redonda, ouvi depoimentos de três jovens senhoritas sobre quanta influência positiva meu pai teve sobre elas, sobre o sucesso em suas vidas. Foi muito forte e emocionante ouvi-las uma por uma. Depois, tive que contar uma piadinha em relação ao meu pai e eu, para fazer as pessoas sorrirem por um momento. CONTINENTE Quais eram as memórias mais recorrentes que ele tinha de Pernambuco? Do que mais gostava de lembrar do Nordeste do Brasil? MOACIR SANTOS JR. Houve ocasiões demasiadas para nomeá-las especificamente. No entanto, descobri uma coisa, que eu tinha curiosidade por anos: o porquê de papai gostar tanto de tapioca. Até que eu tive experiência própria, quando visitei a cidade de Olinda em 2013. Tapiocas são deliciosas!
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CONTINENTE Sua casa no Rio de Janeiro era bastante frequentada por músicos, os alunos de Moacir. Quais as lembranças mais vivas que você tem desse período? Há alguma história específica que poderia nos contar? MOACIR SANTOS JR. A nossa casa foi sempre cheia de músicos. Posso imaginar facilmente estar rodeado por eles. Quando coloco um CD de Baden, lembranças surgem de Vinicius, meu pai e Baden compondo. Eles foram mestres de letras. Eu me lembro de Nara Leão tomando cafezinho com minha mãe, à espera do seu horário de aula. Eu gostava quando eles vinham, eu me tornava um garçom. Imagine minha mãe preparando uns “salgadinhos”, todos eles tocando ou falando sobre um verso, isso ou aquilo sobre alguma música famosa nascendo ali mesmo. CONTINENTE Quais músicas Moacir costumava ouvir em casa? MOACIR SANTOS JR. Música clássica, relaxante e de meditação. CONTINENTE Moacir deixou muitas composições inéditas? Se sim, você já sabe como esse material será utilizado? MOACIR SANTOS JR. Eu preservo seu estúdio em casa. Está quase da forma como ele deixou. Exceto quando Andrea (Ernest Dias) passou um tempo na Califórnia, enquanto estava analisando a música de meu pai. Eu dei pleno acesso, para o sucesso da sua realização acadêmica. Ainda é difícil para mim mexer nos pertencentes de meu pai. CONTINENTE Além de ter sido lançada uma biografia sobre Moacir Santos, está sendo planejado um filme sobre ele. Quais outras obras em torno do maestro são preparadas? Haverá relançamentos de discos? MOACIR SANTOS JR. Não no momento. Mas gostaria de produzir um CD com um mix das músicas dele. CONTINENTE Além de genial, seu pai demonstrava ser um homem confiante, generoso e otimista. Mas havia algo de que se queixava? MOACIR SANTOS JR. Nunca houve queixas. Ele foi naturalmente uma pessoa positiva, um mestre excelente, mais do que se poderia medir, e carismático. Sua biblioteca aqui em casa demonstra que era também um intelectual. Durante a minha adolescência, soube que meu pai ficou
ACERVO MOACIR SANTOS/REPRODUÇÃO
1 MOACIR SANTOS JR. Esteve no Recife em 2013 para participar de festival em homenagem ao pai
órfão com a idade de três anos. Mas nunca vi ou ouvi meu pai reclamar sobre a vida. Ele tinha esta forte personalidade e ambição de chegar ao estrelato no mundo da música. Ele já tocava bem vários instrumentos. Além disso, estudou bastante música com os melhores mestres daquela época. Foi generoso com pessoas, ajudandoas, doava instrumentos musicais. Foi um grande motivador, sendo outra de suas qualidades. Poderia compartilhar diversas histórias, que se transformariam num livro. Tenho saudade de meus pais imensamente. Assim que ele chegou ao estrelato, minha mãe já estava ao lado dele, proporcionando um grande apoio na vida. Meu pai costumava dizer que éramos o “Trio de Ouro”. Sinto-me abençoado sendo filho deles. CONTINENTE Pelo tanto que ele realizou, dava a impressão de que era um workaholic. Era assim mesmo? Como era a rotina de Moacir? Gostava de ficar em casa? Gostava de viajar? MOACIR SANTOS JR. Admirava sua autodisciplina e metodologia. Ele tinha um sistema cotidiano para o estudo. Estava sempre analisando e ansioso para aprender, isso era a sua marca registrada ou estilo. Quando ia para um compromisso, ou simplesmente ter seu carro lavado, enquanto esperava, estava sempre lendo um livro. Impressionante! Ele gostava de viajar ao Brasil. Enquanto, aqui na Califórnia, ele ia à praia ou observar a Mãe Natureza nas montanhas. Ele me ensinou a nadar, quando eu era garoto no Rio de Janeiro. Ele nadava como um peixe. Foi um pai muito legal! Desde que eu era criança, sentia algo especial sobre meu pai, uma admiração; eu queria ser como ele. Não tinha ideia sobre seu talento musical e o gênio que ele foi. No início, no Rio, vivíamos no subúrbio. Eu o esperava chegar da Rádio Nacional, sentava no muro da frente de casa. Então, ele chegava, sempre me trazia uma fruta ou um biscoito. Gosto de biscoito champanhe por causa dele. Ele entrava em casa, cumprimentava minha mãe com um beijinho, removia seu casaco do terno, gravata. Arregaçava as mangas da camisa, lavava as mãos e dizia: “Cleo, vou levar o nosso príncipe para um passeio de bicicleta enquanto você termina de preparar o nosso jantar”. Era nosso ritual familiar, um trio unido. Meu pai foi quem me
“TRIO DE OURO” 2 Moacir Santos Jr., ladeado pela mãe, Cleonice, e o pai, em 1950
“Sentia algo especial sobre meu pai. Queria ser como ele. Não tinha ideia sobre seu talento musical e o gênio que ele foi” ensinou como usar corretamente faca e garfo em configuração social, e muitas outras conveniências. Fui criado de forma disciplinada num adorável ambiente e em meio à música. CONTINENTE Do que ele mais gostava com relação à música? Compor, gravar, arranjar, tocar, ouvir ou realizar shows? MOACIR SANTOS JR. A música era o seu mundo! Compor facilmente foi outra habilidade que ele também possuía, fui testemunha disso. Era incrível! CONTINENTE De qual disco dele você mais gosta? E por quê? MOACIR SANTOS JR. Eu gosto de todos os CDs, mas existem algumas faixas que tocam a minha alma. Por exemplo,
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Astral Whine. Papai escreveu esta música em Nova York. Minha mãe não se sentia bem. Ele teve que caminhar à farmácia, estava nevando. Ele, então, pedia mentalmente a Deus pela cura dela e, ao mesmo tempo, sua inspiração musical surgiu, ele escreveu essa linda composição. Gosto de todos os discos dele, mas Coisas tem uma vantagem em relação aos subsequentes. Foi um álbum que transmitiu a assinatura do talento dele. Eram composições à frente de seu tempo. Elas hoje são joias, agarram qualquer um por sua exclusiva riqueza de ritmo, melodia e qualidade. Relembro claramente do que ele me dizia: “Componho música para o Universo!” CONTINENTE Do que ele mais tinha orgulho na vida e na carreira? MOACIR SANTOS JR. Meu pai foi um homem da humildade. Percebia-o satisfeito com as realizações de alto nível em sua carreira musical. Mas a sua ambição era escrever música clássica. Ele já havia escrito trilha sonora para vários filmes; o próximo passo seria escrever música clássica. DÉBORA NASCIMENTO
LÍDIO PARENTE/DIVULGAÇÃO
CON CAPA TI NEN TE
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COMPOSIÇÕES Coisas sobre Moacir Santos TEXTO Andrea Ernest Dias
Meu primeiro contato com a obra de
Moacir Santos foi como instrumentista nos shows e CDs do projeto Ouro Negro, em 2001. A iniciativa de Zé Nogueira e Mario Adnet permitiu ao Brasil redescobrir o compositor e semeou sua influência sobre as novas gerações de instrumentistas, arranjadores e pesquisadores acadêmicos. Desde então, já são 15 anos dedicados ao estudo de sua vasta obra musical e inúmeros os seus desdobramentos. Destaco, além da discografia que compilou sua produção musical – os
CDs Ouro Negro e Choros & alegria, o relançamento do CD e LP Coisas e o DVD Ouro Negro –, a realização de duas edições do Festival Moacir Santos, o site Trilhas Musicais de Moacir Santos, de Lucas Bonetti, sobre sua atuação como compositor para o cinema, e o livro Moacir Santos, ou Os caminhos de um músico brasileiro, que lancei em 2014, pela Folha Seca e que agora, em 2016, terá segunda edição publicada numa parceria entre a Folha Seca e a Cepe, por ocasião das comemorações dos 90 anos de Moacir.
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UMA CABEÇA MUSICAL
Os primeiros sons que povoaram a infância de Moacir Santos foram os da tradição cultural nordestina, o baião, o dobrado, o choro, o maracatu e o frevo, ouvidos e praticados nas bandas filarmônicas e jazz-bands do Alto Sertão pernambucano, as jézi. A partir da chegada do rádio no Sertão, nos anos 1930, Moacir começa a ouvir também gêneros orquestrais clássicos e populares. Desde criança, ele já demonstrava suas impressionantes habilidades como clarinetista e saxofonista, além de tocar todos os outros instrumentos da banda de música. No Recife, nos anos 1940, foi apresentado como “O saxofonista negro” no programa Vitrine, de Antônio Maria e José Renato, da Rádio Clube de Pernambuco. Foi também o efervescente ambiente do rádio que o acolheu no início de sua vida profissional, na Rádio Tabajara, na Paraíba, e depois no Rio de Janeiro, na Rádio Nacional, ainda na década de 1940. Ali, entre os grandes maestros arranjadores de ascendência europeia, como
RACHEL GUEDES/DIVULGAÇÃO
1 NO SANTA ISABEL Festival Moacir Santos foi organizado por Andrea Ernest Dias
Radamés Gnattali e Lyrio Panicalli, Moacir Santos compreendeu que novas dimensões da música poderiam surgir para si próprio. Foi então que criou um sistema multidisciplinar para o aprendizado de harmonia, contraponto, orquestração, fuga e estilo, estudando simultaneamente com vários professores. A leitura voraz de teorias e tratados de todos os períodos da história da música – da ars antiqua ao atonalismo – deu a Moacir os elementos de que necessitava para incluir sua música na categoria dos mestres.
ENCONTRO 2 Andrea com o seu biografado, alvo do estudo do doutorado em música
CONSCIÊNCIA MUSICAL
Nos anos 1950, Moacir Santos teve em Guerra-Peixe um de seus principais mentores. O maestro petropolitano exerceu forte influência sobre seu pensamento musical, ensinando-o a organizar suas ideias para além da intuição, a estruturar suas composições e a valorizar sua bagagem cultural. Igualmente próximo do sistemático dodecafonista H. J. Koellreutter, de quem se tornaria assistente, Moacir demarcou assim o início de sua “fase de consciência musical”. Entre fins dos anos 1950 e meados dos 1960, Moacir Santos começou a conceber a impactante sonoridade pela qual viria a ser reconhecido como um grande e original autor. Ao gravar o LP Coisas, apenas com suas composições, lançado pela pequena e inovadora gravadora Forma, em 1965, acrescentou forte acentuação afro-brasileira à sonoridade dos sopros influenciada pelas filarmônicas e jazz-bands de sua juventude. Assim, ao mesmo tempo em que marcava o seu “gol de placa” na discografia brasileira, determinava os rumos de seu futuro como compositor. Nos anos 1960, Moacir, hoje também reconhecido como o “patrono da bossa nova”, dava aulas para músicos que desejavam aprender mais sobre “música superior”, nas palavras de Baden Powell. Os conhecidos afrossambas de Baden e Vinicius trazem a influência direta dos ensinamentos de Moacir sobre modalismo. Além de Baden, entre seus alunos estavam Sérgio Mendes, Paulo Moura, Dori Caymmi, Nara Leão, Airto Moreira, Flora Purim, Paulinho da Viola, Carlos Lyra e Nelson Gonçalves. “Era uma febre, todos queriam estudar
Os primeiros sons que povoaram a infância de Moacir foram os da tradição cultural nordestina, o baião, o maracatu e o frevo comigo”, Moacir dizia. Nesse período criou e aplicou os Ritmos MS, pequenas células rítmicas que, combinadas entre si, resultavam em um excelente material para a composição de melodias. Trabalhando incansavelmente nos estúdios do Rio de Janeiro (e num breve período em São Paulo também), Moacir Santos foi se tornando os “tantos” da famosa frase do parceiro e amigo Vinicius de Moraes em Samba da bênção. Entre esses “tantos”, estava o compositor de trilhas sonoras para o Cinema Novo e para a produção hollywoodiana Amor no Pacífico. Este filme constitui um novo ponto de inflexão em sua trajetória: os Estados Unidos se tornaram, então, uma nova perspectiva profissional para o maestro e sua moradia definitiva, a partir de 1967.
ASSINATURA MUSICAL
Inicialmente instalada na região de Newark, Nova Jersey, em pouco tempo a família Santos se transferiu para a costa oeste. Na Califórnia, Moacir trabalhou na equipe de compositores de Lalo Schifrin e Henry Mancini, foi acolhido pelos músicos jazzistas e
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consolidou sua reputação de maestro, arranjador, compositor e professor. Assim como no Brasil, onde era cercado por admiradores e amigos musicais, nos EUA, Moacir criou fortes laços de amizade com artistas da estatura de Horace Silver, Clare Fischer, Gary Foster, Curt Berg, Justo Almario, Mark Levine, Steve Huffsteter, o casal Paul e Sheila Smith, e muitos outros. Sua casa era uma espécie de embaixada frequentada por músicos brasileiros em busca dos bons papos, da boa música e do famoso feijão de Cleonice Santos, sua esposa e musa de toda a vida. João Donato, Gilberto Gil e Roberto Carlos estavam entre esses frequentadores. A discografia norte-americana de Moacir Santos pelos selos Blue Note e Discovery Records o inseriu definitivamente na categoria dos estilistas do jazz. O ritmo foi seu grande aliado, e o compositor de Nanã surpreendeu os americanos ao apresentar – no LP Maestro, indicado ao Grammy de 1972 – o mojo, padrão que estabeleceu como uma de suas marcas mais originais. O mojo foi uma grande inovação musical que se contrapôs ao ritmo da bossa nova com o qual os músicos americanos estavam familiarizados. No mojo de Moacir estão os elementos do baião, do maracatu, da ciranda, de sua negritude pernambucana, enfim. Aplicado a polirritmias em compassos pares e ímpares, ele se
CON CAPA TI NEN TE REPRODUÇÃO
TRECHO MOACIR SANTOS, OU OS CAMINHOS DE UM MÚSICO BRASILEIRO
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integra às harmonias e aos contrapontos sofisticados, aos andamentos lentos e rápidos, às surpreendentes linhas de baixo, às adoráveis melodias e aos timbres de suas orquestrações. Em muitas das entrevistas que Moacir Santos concedeu ao longo de sua vida, uma pergunta era inevitável: “Por que chamou sua música de ‘coisas’?”, a que ele respondia: “Os compositores eruditos chamam suas músicas de opus. Desejei ser um compositor erudito, mas não ousei. Então, ‘coisas’ é minha tentativa de ser um deles”. E foi Guerra-Peixe quem solucionou o “conflito” de Moacir Santos, em um aparte durante o Depoimento para a posteridade de
3 BIOGRAFIA Livro será relançado pela Cepe Editora em coedição com a Folha Seca
Moacir ao MIS-RJ, em 1992: “Não existe música popular ou erudita. A música não tem vontade própria para escolher ser isto ou aquilo. Existe, sim, o músico erudito, aquele que estudou, que domina as próprias ideias para além da inspiração por meio de técnicas próprias para isso”. Inventividade, permanência, desdobramentos insuspeitos e o condão de nos dar notícias de nós mesmos. A música de Moacir, hoje reconhecida onde quer que ela ressoe, tornouse um clássico e, como tal, um território a ser infinitamente explorado.
Durante o breve retorno ao Rio para tomar as providências necessárias à mudança, Moacir foi recebido com entusiasmo pelos amigos e colegas, e convidado a comandar um programa semanal na extinta TV Continental. O programa Coisas de Moacir Santos apresentava suas músicas e um convidado especial a cada semana, indo ao ar às quartas-feiras, às 20 h. O primeiro a participar foi o cantor e amigo Luiz Cláudio Castro. Apesar de o programa ser promissor, os cachês não eram pagos regularmente, o que deixou Moacir ainda mais desestimulado para permanecer no Brasil, se por acaso ainda restasse alguma dúvida quanto à sua transferência para os Estados Unidos. Para a obtenção dos vistos no consulado americano foi-lhe exigido o registro de seu batismo. Foi nesse momento que Moacir Santos saiu em busca do documento nos cartórios e paróquias de sua terra natal. Estava também saudoso de sua Flores, que queria rever antes de partir. “Moacir chegou dos Estados Unidos com a pele boa, todo bem-tratado. Depois de três meses no Sertão, voltou ao Rio todo despelado, descascado, a pele toda ressecada, parecia um jacaré!”, contou Cleonice, bem-humorada. Com a burocracia consular resolvida, Moacir foi à Rádio Nacional reivindicar direitos trabalhistas ainda pendentes, e, como parte de seu acordo final com a rádio, recebeu as passagens aéreas para a viagem aos Estados Unidos, no trecho Rio-Washington. A viagem foi feita em um velho e quase desabilitado avião militar da Força Aérea Brasileira, para surpresa do casal, que achava ter recebido bilhetes para um Boeing 707. Seria a primeira viagem da aeronave, após inúmeros reparos. O avião não tinha escada apropriada e os passageiros deveriam subir a bordo por uma escada de pintor. No dia marcado, o avião decolou da Base Aérea do Galeão às 5 horas. Com autonomia de voo de 12 horas, viajava à baixa altitude e às 17h deveria pousar. Entretanto, a primeira escala forçada para reparos do avião foi em Brasília, onde o casal Santos encontrou amigos que os hospedaram naquela noite. A segunda aterrissagem, também de emergência devido a um vazamento de óleo, foi feita num pasto, em meio às vacas, ainda em território brasileiro. Viajando junto com as bagagens, sentados em bancos laterais de madeira e lona e se segurando em uma barra de ferro ao centro, estavam oficiais, esposas de militares, crianças e o casal Santos, suando de medo e calor. Não havia serviço de bordo, alimentos ou água para beber. Cleonice estava especialmente abalada, pois eles haviam deixado o filho no Rio de Janeiro, aos cuidados de familiares. As escalas se sucederam. No então território federal do Amapá, os passageiros tiveram que repartir o lanche que levavam e tomar banhos de balde. Na quarta escala, já em Trinidad e Tobago, Moacir Santos foi o primeiro a descer do avião, pois, entre tantos oficiais brasileiros, era o único passageiro que falava inglês. Ao desembarcarem, passaram por entre militares com fuzis e baionetas até chegarem ao portão do aeroporto. Moacir assumiu a liderança do grupo, que foi conduzido a um hotel onde puderam se alimentar, tomar banho e descansar. A quarta escala foi em Miami, e Moacir quis encerrar as aventuras aéreas ali mesmo, mas Cleonice insistiu que fossem até Washington, onde chegaram após seis dias de viagem. De Washington, o casal tomou um ônibus para Newark, no estado de Nova York, onde se estabeleceram, ainda em 1967. Um ano depois, Moacir Santos Jr. juntou-se aos pais na nova vida americana.
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REPRODUÇÃO
Artigo
SÉRGIO GAIA BAHIA MOACIR SANTOS, UM CAPÍTULO À PARTE NA MÚSICA BRASILEIRA Há 15 anos, o lançamento no Brasil do disco duplo Ouro Negro (Universal Music/2001) trazia ao público do país um compositor pernambucano pouquíssimo conhecido por aqui, mesmo no meio profissional e acadêmico da música. A capa toda escura, em cujo centro se via o rosto de um músico negro usando boina, deixava vislumbrar, talvez, um sambista de velha guarda, ou intérprete de gênero brasileiro semelhante. Ao menos foi essa a minha impressão, ao ter acesso àquela embalagem luxuosa de um artista de quem eu nunca ouvira falar. A audição do CD, contudo, revelaria uma surpresa. O compositor em questão, Moacir Santos (1926–2006), não se encaixava aparentemente em nenhum gênero previamente definido da música brasileira ou do jazz, mas trazia uma espécie de estilo híbrido que, eu viria a saber depois, poderia muito bem rotularse de maneira própria. Quanto mais familiaridade fui criando com aquele artista ao longo dos anos, mais eu o percebia como algo à parte na história da música brasileira, uma espécie de “capítulo extraviado”. Tal percepção se daria, em parte, devido à sua trajetória sui generis, que levara o menino sertanejo de Flores, do Pajeú, a fugir com uma banda pelo interior do estado, passando pelo Recife e João Pessoa, até chegar ao Rio de Janeiro, em 1948. Ali, Moacir, já multi-instrumentista e compositor de choros, se tornaria maestro arranjador da Rádio Nacional, estudaria composição com nomes como Guerra-Peixe e Hans-Joachim Koellreutter, e seria professor e parceiro de diversos artistas da bossa nova, tais como Baden Powell, Vinicius de Moraes, Nara Leão e Sérgio Mendes. Criaria
Ele não se encaixava em um gênero definido da música brasileira ou do jazz, trazia uma espécie de estilo híbrido trilhas sonoras junto a cineastas como Ruy Guerra e Cacá Diegues e imigraria, em 1967, para os Estados Unidos, onde passaria a residir em Pasadena, Califórnia, trabalhando como professor, arranjador e trilhista, até falecer, em 2006. Como artista solo, Moacir havia estreado no Rio de Janeiro, em 1965, com o LP Coisas, fusão homogênea de música popular urbana, referências afro-brasileiras (toques de candomblé, entre outras) e elementos eruditos; uma música de caráter
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muito distinto de algumas correntes contemporâneas, tais como a bossa nova e o samba jazz. Esta seria a linha mestra seguida pelo artista ao longo de sua posterior discografia – quatro lançamentos nos Estados Unidos nos anos 1970; além do já citado Ouro Negro (2001) e do Choros & alegria (2005), lançados no Brasil. Meu crescente contato com o estilo de Moacir me levaria a uma curiosidade constante sobre como o artista construía sua música. Que processos, afinal, ele utilizava para dar forma a peças aparentemente simples, mas que, por trás da superfície, escondiam relações minuciosas? Vale dizer, inicialmente, que esse estilo é construído por um peculiar senso de economia. Num contexto de música instrumental em boa medida jazzística, Moacir utiliza pouquíssimas estruturas nas quais os instrumentos de sopro executam juntos as notas
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dos acordes (técnica conhecida na linguagem do jazz como voicings). O mesmo pode-se dizer da utilização de contrapontos mais complexos, ou do uso de melodias de fundo (contracantos). Tais recursos são usados pelo artista apenas pontualmente, em trechos bemdefinidos da música, como meios de contraste e produção de clímax. Na maior parte da peça, Moacir prefere lançar mão de uma de suas marcas registradas: o destaque para a linha melódica principal, frequentemente tocada por mais de um instrumento em diferentes registros (graves, médios e agudos). Como resultado, suas texturas são límpidas, indicando claro apego do artista a seus temas melódicos, como ocorre, por exemplo, em Coisa nº 2, do disco Coisas. Esta mesma peça, aliás, demonstra outras escolhas importantes de sonoridade. Ao fazer os sopros tocarem juntos uma sequência de acordes, Moacir alterna verticalmente as madeiras (saxofones, flautas etc.) e os metais (trompetes, trombones etc.), sempre privilegiando os registros confortáveis para cada instrumento. Tal escolha gera uma sonoridade em que timbres individuais se mesclam, de modo a soarem como uma espécie de “timbre único” (o que chamamos no jazz de blendability), resultando, no caso de Moacir, em texturas sempre aveludadas. Porém, mesmo nos trechos em que todos tocam juntos, a preocupação do artista com cada instrumento é nítida, de modo que a linha de cada um guarda perfeito sentido melódico.
CONDUÇÃO PARALELA
Em muitas de suas peças, Moacir transparece também suas influências eruditas, sobretudo aquelas advindas do século XIX. Naquela época da música, havia se tornado um pouco mais frequente algo que chamamos de “condução paralela” das vozes, quando melodias simultâneas movemse de uma nota para outra sempre na mesma direção e pela mesma distância. A harmonia resultante dessa prática contrariava, por vezes, o tipo de discurso harmônico do período histórico anterior (o classicismo de Haydn, Mozart e Beethoven).
Moacir Santos abusa da condução paralela em muitas passagens marcantes de suas peças, como no início de Coisa nº 3 (disco Coisas) ou em Amalgamation, peça do disco Ouro Negro. Era comum, ainda, que, durante as trocas de acordes, Moacir movesse apenas uma nota, ou poucas notas, por mínimas distâncias, criando um estilo harmônico fluido e coeso. Embora tal prática possa resultar em harmonias mais tradicionais, com frequência ela produz trechos que não podem classificar-se como tal. De forma geral, esses traços também se consolidariam no século XIX, sobretudo, com a música de Wagner e Liszt, sendo mais um ponto de ligação entre Moacir e suas preferências eruditas. Porém, um dos elementos que mais chamam a atenção das pessoas sobre Moacir Santos é, certamente, a forma pela qual ele trabalha a informação afro-brasileira em sua música.
Um dos elementos que chamam a atenção é a forma pela qual ele trabalha a informação afro-brasileira em sua música Nesse sentido, vale aqui um breve exercício comparativo. Lembremos que a música popular que nos é mais familiar é geralmente organizada num esquema de compasso. Se pensarmos em Satisfaction, dos Rolling Stones, por exemplo, veremos que é fácil acompanhar seu ritmo dividindo-o mentalmente como uma constante sequência de 1–2–3–4 (compasso quaternário), em que o 1 soa sempre como a batida mais forte. Mas, se em vez disso, pensarmos num frevo, veremos que a contagem mais adequada passaria a ser a de 1–2 constantemente repetida (compasso binário), onde o 2 soa como tempo forte. Uma valsa, por sua vez, dividese claramente como um constante 1–2–3 (compasso ternário), sendo o 1 o tempo mais forte. No caso da música africana, muitos de seus processos rítmicos ocorrem na música de Moacir Santos
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de maneira estilizada. Um deles diz respeito, justamente, a organizações nas quais a divisão em compassos não soa de forma tão clara, assim como a definição do “tempo forte”. Em Coisa nº 3, por exemplo, Moacir escreve sequências de figuras rítmicas que, pela divisão irregular e acentuação deslocada, acabam soando de forma ambígua. O próprio artista costumava recomendar a seus alunos de composição, como exercício didático, a escrita dessas sequências que ele intitulou de Ritmos MS. Às vezes, esse processo resultava, no caso de Moacir, em certos gêneros brasileiros, tais como baião, afoxé, samba etc. Outras vezes, contudo, resultava em ritmos de caráter indefinido e intrigante. Estes e muitos outros procedimentos encontrados na obra moaciana revelam que ela se organiza como uma espécie de “rigorosa seleção de grãos”, na qual um artista
com vasta carga de estudo teórico decide utilizar elementos muito específicos dentre tudo aquilo que chegou a conhecer. Nos últimos anos, resolvi me propor um desafio: analisar os processos criativos de Moacir Santos com o propósito de utilizá-los numa composição de minha autoria, que viria a se chamar Suíte Ouro Negro – do Sertão à Califórnia. O título, obviamente, faz referência à singular trajetória do compositor e cada um dos movimentos da peça baseiase numa de suas fases criativas. O I Movimento – Viajante diz respeito à “fase brasileira”, marcada pelas constantes migrações de Moacir pelo país até o lançamento do LP Coisas, em 1965. Uma mescla de gêneros brasileiros, como baião e bossa nova, foi escolhida para contar essa parte da história. Já o II Movimento – Sopro do mundo trata da “fase americana” do compositor,
relativa à sua ida para os Estados Unidos, em 1967, e as consequentes relações que sua música estabeleceria com o cenário jazzístico da época. Para tanto, uma espécie de híbrido entre afoxé e dixieland foi a direção por mim escolhida. Por fim, o terceiro e último movimento da suíte, intitulado O berço, baseia-se na chamada “fase madura”, quando Moacir volta a lançar material no Brasil com o disco Ouro Negro, em 2001. O movimento busca adaptar os procedimentos moacianos a um frevo, retratando o retorno do artista ao seu país e o inédito acolhimento do público que caracterizou esta fase. Aplicar os processos criativos de Moacir à minha própria música tem sido um constante desafio criativo. Afinal, como compor uma suíte que os utilize sem, ao mesmo tempo, resumirse a eles? Ou melhor: como criar baseado na estética moaciana de modo a levá-la adiante, seguindo uma direção
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autoral em vez de produzir uma mera cópia? Este seria, provavelmente, um bom desafio para qualquer compositor que pretenda aprender os processos deste artista singular. Vale acrescentar que, durante um recente período de pesquisa nos Estados Unidos, pude constatar o alto nível de reconhecimento que Moacir conquistou junto a músicos americanos de excelência. Diversos artistas por mim contatados para entrevistas responderam prontamente às minhas solicitações com grande reverência à figura do “mestre” Moacir, tal como o trompetista Wynton Marsalis o chamou explicitamente num concerto recente em São Paulo. Fica muito claro que Moacir Santos ainda é um nome da música pernambucana com muito a ser descoberto pelos artistas locais e, sobretudo, pelo público brasileiro em geral.
DIVULGAÇÃO
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Viagem
LITERATURA Como viajar sem sair do lugar
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Narrativas de viagens levam o leitor a regiões e épocas diferentes, acompanhando o autor em seu deslocamento, suas impressões, dúvidas e angústias, num exercício de empatia TEXTO Rodrigo Casarin
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1 AMIR KLINK
Navegador brasileiro leva-nos a lugares inóspitos e intocados do globo
solitárias da Antártica. Suas histórias são impulsionadas pelo motor interno da expansão da consciência, que alarga o alcance da noção de quem somos, de quem é o outro, do que é o mundo, do que compõe esse oceano de diversidades de múltiplos níveis e dimensões onde estamos inexoravelmente imersos, como partículas supostamente inteligentes do grande mistério da existência.” A citação acima é o trecho de abertura de Viagens, textos, interfaces, prefácio escrito pelo doutor em Ciências da Comunicação e viajante Edvaldo Pereira Lima para o livro Em trânsito — Um estudo sobre narrativas de viagem, resultado de uma pesquisa de doutorado realizada por Renato Modernell. Mas viagens do quilate das mencionadas pelo prefaciador costumam ser exceções na vida de qualquer pessoa – a não ser para aquelas que trabalham no campo ou dispõem de tempo e dinheiro para tais empreitadas. Na maioria dos casos, além de viagens esparsas, o que sobra para cada um é buscar alternativas para conhecer outros cantos do mundo. Uma forma de realizar deslocamentos incríveis pode ser a
Como gênero literário, as narrativas de viagem têm uma longa história, que inclui descobertas, aventura e conquista “As viagens têm um valor arquetípico. Especialmente as mais ousadas, para lugares distantes, de caráter exploratório. São uma força que move homens e mulheres de todos os tempos e de todas as partes a saírem da zona de conforto para se arriscarem na experiência do diferente, do estranho, do novo. Viajantes desse quilate são movidos mais do que pela simples curiosidade. São impelidos por um movimento psíquico, profundo, que faz um Richard Burton arriscarse à degola, explorando sob disfarce a Meca reservada exclusivamente aos muçulmanos em peregrinação, proibidíssima aos infiéis. Que faz um Amyr Klink abandonar o quase paraíso tropical de Parati para colocar a pele à dura prova nas geladíssimas águas
leitura de narrativas de viagens, tanto a de livros de ficção quanto de não ficção. Enquanto o corpo do leitor repousa onde ele se sente confortável, sua mente o transporta não apenas para lugares diferentes, mas também para épocas remotas. Mais que isso, em tempos de fácil acesso a imagens e informações de praticamente qualquer canto do planeta, acaba sendo uma experiência enriquecedora, lúdica e esclarecedora acompanhar um autor e vivenciar seu deslocamento através de suas impressões dos destinos, dúvidas e angústias. A viagem por meio de livros e, portanto, pela experiência de terceiros, acaba proporcionando ao leitor-viajante um grande exercício de deslocamento e empatia.
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Isso, principalmente, na narrativa de viagem moderna. No artigo Viagens reais, viagens literárias, Sandra Nitrini, professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP, aponta a mudança desse tipo de texto ao longo dos últimos séculos.“O gênero narrativa de viagem tem uma longa história. Para se ter uma ideia geral de sua transformação, tomando-se como ponto de partida o século XVI, o século das descobertas, a crítica tem assinalado a passagem da narrativa de descoberta e aventura, na qual o mundo exterior e seu (re)conhecimento seriam o alvo principal, à narrativa de uma experiência, que colocaria o indivíduo viajante no centro de suas preocupações. Esta evolução temática é acompanhada por uma profunda transformação das modalidades narrativas da literatura de viagem: a relação pseudo-objetiva de um narrador-personagemtestemunha perde progressivamente vigor e pertinência, para dar lugar à narrativa pseudosubjetiva de um narrador-personagem-ator: seu propósito não é mais apresentar um universo mais ou menos novo e desconhecido, mas o de dar conta dos ecos deste universo na individualidade de quem viaja e observa.” Há diversos textos de grande relevância histórica que se encaixam na primeira onda, por assim dizer, da narrativa de viagem. Exemplo que nos é bastante caro é a carta que Pero Vaz de Caminha envia a Portugal logo que as caravelas lusitanas chegam ao Brasil. “Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e fruitos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos”, escreve no relato sobre as terras e hábitos que desconheciam até então. Outro nome cujas anotações dos deslocamentos ficaram famosos foi o de Marco Polo, comerciante italiano que registrou em diversos textos o que viu na Rota da Seda que ligava seu país à China. Indo na direção radicalmente oposta de Caminha e Polo temos o contemporâneo Amyr Klink. Difícil
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Viagem
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pensar em uma viagem que represente melhor o “universo na individualidade” do que atravessar o Oceano Atlântico sozinho, dentro de um barco. Apesar de a aventura ser o grande mote de Cem dias entre céu e mar, são o aspecto pessoal, os sentimentos, as sensações e angústias de Klink que sobressaem na narrativa da obra, um dos best-sellers recentes do gênero no Brasil.
RUMO AO ORIENTE
Mas voltemos às narrativas nas quais o mundo exterior também ganha um belo retrato, dividindo as atenções com o universo interior dos escritores. Um dos autores mais procurados nesse campo é o norte-americano Paul Theroux, um apaixonado por trens que já escreveu sobre mais de 20 viagens. Em sua primeira experiência de deslocamento transformada em livro, saiu de Londres, perambulou por Bombaim, Kuala Lumpur, Saigon e diversas outras cidades e vilarejos até chegar a Tóquio. Da Inglaterra para o Japão e de novo para casa, utilizou quase que exclusivamente o transporte ferroviário, indo pelos famosos trilhos
A literatura é farta em relatos de viagem ao Oriente, ponto de atração e fuga aos padrões culturais dos ocidentais do místico Expresso Oriente e voltando pela congelante Transiberiana. A viagem aconteceu no começo da década de 1970 e foi registrada em O grande bazar ferroviário, um clássico do gênero. O trajeto foi refeito por ele há alguns anos e registrado no livro Trem fantasma para a Estrela do Oriente (2008), que, além de uma narrativa de viagem, constitui-se um precioso registro das mudanças ocorridas nesses lugares. As viagens feitas por Theroux são marcadas também pela gente que encontra pelo caminho. São desde encontros fortuitos – o taxista, a recepcionista do hotel – até escritores renomados. Um desses grandes momentos se deu com Jorge Luis Borges, em Buenos Aires, durante uma viagem
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que cortava a América de norte a sul. Nesse fragmento de narrativa, presente em Até o fim do mundo, Theroux coloca o leitor na sala de um dos maiores artistas de todos os tempos. “Não havia tapetes no chão, para que o homem cego não tropeçasse; nenhuma mobília mal colocada contra a qual ele pudesse colidir. Não se via um grão de poeira no chão brilhante. As pinturas eram indefinidas, mas as gravuras em metal eram identificáveis […]. Havia uma grande variedade de livros. Um canto era quase todo ocupado por edições da Everyman, os clássicos em traduções inglesas – Homero, Dante, Virgílio…”, escreve, antes de contar como foi o encontro com o mestre argentino, que termina com Borges convidando-o a voltar na noite seguinte para lhe fazer uma leitura de Edgar Allan Poe. As viagens de Theroux costumam ser um tanto convencionais, ainda que marcadas pela aventura. Há autores viajantes que optam por elementos pouco habituais para lhes fazer sair de casa, o que, invariavelmente, acaba propiciando experiências singulares também ao leitor. O italiano Tiziano
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2 CAMINHA
carta do escrivão A de armada tornou-se o marco de fundação do Brasil
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EXPRESSO ORIENTE
Há uma tradição de relatos literários sobre o trem que leva ocidentais ao Oriente
4 PAUL THEROUX
Norte-americano é autor de mais de 20 livros sobre viagens
5 TIZIANO TERZANI
Autor italiano empreendeu viagem pelo sudeste asiático em busca de adivinhos e de uma estranha profecia
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Terzani, por exemplo, deixou sua terra natal e partiu para o Extremo Oriente sem pegar aviões por um motivo um tanto quanto excêntrico. Se Theroux fez caminho semelhante pela convicção de que por terra viajamos melhor – aproveitando cada cultura e dando mais tempo a nós mesmos para desfrutarmos os lugares –, Terzani seguiu por chão graças a uma profecia: um adivinho tinha lhe dito que não voasse de jeito nenhum ao longo do ano de 1993; as chances de morrer eram enormes. Daí surgiu o livro Um adivinho me disse, que leva o leitor ao sudeste asiático, onde o autor recorrentemente procura outros adivinhos para confirmar ou não tal profecia. “Eu era o primeiro estrangeiro para quem lia o futuro. Seu
método consistia em partir do ano do nascimento, perguntar um número inferior a 109, e com uma varinha de prata fazer complicadas contas nas cinzas, cancelá-las, fazer outras e traçar da vida um quadro que em um instante estava ali e no instante seguinte desaparecia com um simples movimento da caixa que devolvia às cinzas uma superfície lisa, sem marcas. Gostava dessas verdades porque eram mais efêmeras que os horóscopos escritos no papel”, relata em certo momento, colocando quem lê a obra também à frente daquele futurologista do outro lado do mundo, na primeira metade da década de 1990. Outro escritor que vai para aqueles cantos do planeta propulsionado por
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uma razão heterodoxa é Nick Tosches, que deixou Nova York e perambulou pela Tailândia, Camboja e Hong Kong e com um objetivo claro: encontrar alguma casa de ópio para vivenciar a esfumaçada tradição relegada e ilegal em praticamente todo o mundo, o que invariavelmente leva autor e leitor para uma viagem pelo submundo dos países por onde passa. “É uma cidade de muitas cobras. A noite é abrandada apenas pelo brilho suave das lanternas coloridas. Com o canto do olho, vejo uma enorme criatura rastejando perto de mim: uma píton de espessura assustadora. Mas seus olhos se erguem e fitam os meus, e são olhos humanos: é um mendigo sem ombros retorcendo-se sinuosamente por entre as mesas, sobre a terra escura e fria. Seu olhar humano fica gélido como o de uma naja”, escreve, registrando um desses momentos nem sempre solares que costumam marcar qualquer viagem que não se limite a um resort em que se passa dias isolados da realidade. Claro que viver o que Theroux, Terzani, Tosches e muitos viajantesescritores – como Airton Ortiz, talvez o Paul Theroux tupiniquim, ainda que sem preferência pelos trens – viveram é a melhor opção para qualquer um. Só assim se pode ter as próprias vivências e reflexões sobre cada experiência. No entanto, se a quantidade de lugares a se conhecer é muito maior do que os recursos disponíveis, deslocar-se na companhia de escritores costuma ser um aprendizado deveras enriquecedor.
ARTE A PARTIR DE OBRA DE MAGRITTE
CON TI NEN TE
ESPECIAL
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EM ACERTO COM O PRESENTE Instituições, antes compreendidas apenas como lugares em que se guardavam objetos “de valor”, têm sua percepção ampliada, tornando-se mais imateriais, efêmeras e inclassificáveis TEXTO Olivia Mindêlo
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CON ESPECIAL TI NEN TE REPRODUÇÃO
Um homem catava pregos no chão./ Sempre os encontrava deitados de comprido,/ ou de lado,/ ou de joelhos no chão./ Nunca de ponta./ Assim eles não furam mais – o homem pensava./ Eles não exercem mais a função de pregar./ São patrimônios inúteis da humanidade./ Ganharam o privilégio do abandono. Manoel de Barros, no poema O catador
Houve certa vez, num pequeno município da República Dominicana, uma habitante tida por muitos como uma pessoa excêntrica. No linguajar popular interiorano, essa senhora era, na verdade, vista como a louca da cidade. A “loucura” dela consistia em andar com um saco de papel na mão, no qual havia sempre uma surpresa aos olhos de quem, entregando-lhe uma moedinha, poderia espiar o seu conteúdo. Na sua coleção impermanente e itinerante, cabia de tudo: um bicho, um bibelô de cabelo, uma pedra colorida, um brinco e até um prego; enfim, pouco importava. A cada dia, havia uma maravilha diferente que ela catava e levava à sua bolsa secreta. O sociólogo Gilberto Freyre também tinha mania de catar coisas. Juntava rótulos de cigarro e cachaça, chapéus de palha e couro, bonecos de barro, bonecas de pano e uma infinidade de ex-votos, famosos objetos dos pagadores de promessa. Gostava ele, desde moço, de juntar ainda pedaços de casas coloniais demolidas, como traves, madeiras, tijolos e, sim, muitos pregos, antigos, enferrujados, resistentes. Esses pregos que “ganharam o privilégio do abandono”, como diria Manoel de Barros, são hoje parte do acervo do Museu do Homem do Nordeste (Muhne), no Recife, espaço idealizado por Freyre lá pelos anos 1920, quando escreveu um significativo artigo de jornal. No texto, Freyre sinalizava a ideia de um museu que fosse nosso, de um “tipo novo”; não do “outro”, mas da “gente”, da gente “luso-tropical”, nordestina. Considerando ter isso acontecido em uma época na qual museu era quase tão-somente local de relíquias intocáveis ou simplesmente ambiente para ver achados arqueológicos, a imaginação museológica de Freyre foi, e é, por muitos considerada de vanguarda – independentemente das revisões feitas hoje acerca de seu pensamento. Um prego não é somente um prego. Nunca foi. E um museu também não
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o é. Pelo menos, não se resumirmos sua acepção àquele lugar dos séculos XVIII, XIX ou mesmo XX, especialista em passados empoeirados. Embora alguns espaços, particularmente em seus discursos, ainda estejam nesse momento-lugar, pensemos no tempo histórico que por ora nos ocorre… Imagine que, no Rio de Janeiro, várias pessoas saiam às ruas para realizar, eventualmente, uma espécie de desfile puxado por estandarte, no qual exibem um objeto pessoal do seu cotidiano, de valor afetivo, e o nome disso é museu: Museu de Cortejo, “museu-performance”, “museu-acontecimento”. Imagine que depoimentos de moradores de uma comunidade circulem através de uma “ciclotela”, de onde é possível assistir, em diferentes lugares, sua história de ocupação e resistência no território, e o nome disso é museu: Museu da Beira da Linha do Coque, no Recife. Imagine que pertences de uma população remanescente de palafitas são expostos como parte de sua história e que essa mesma população pega esses objetos emprestados
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quando necessita, e o nome disso é também museu: Museu da Maré, no Rio de Janeiro. Imagine que o seu coração também seja um museu, suas relações malogradas e suas lágrimas, todas dignas de acervo e exposição. É o que acontece, por exemplo, na Croácia, onde o Museum of Broken Relationships nos mostra as memórias de relacionamentos rompidos. Nem é preciso ir muito longe para perceber o quanto iniciativas assim têm se multiplicado, a ponto de museu ser hoje uma palavra muito mais larga do que o ideal canônico pode sustentar. Eis, portanto, um dos conceitos da cultura em forte disputa na contemporaneidade e, por isso, em constante tensão e elasticidade, capaz de alargar, ou ao menos problematizar, seus significados e seus significantes. A nós, viventes do século XXI, essa noção chega, portanto, com novas feições. Mais humanas? Talvez. Lembrando versos do poema O catador, de Manoel de Barros, mencionado na epígrafe, “catar coisas inúteis garante a soberania do Ser./ Garante a soberania de Ser mais do que Ter.”
MAÍRA ACIOLI
1 ACERVOS
A história dos museus está ligada ao colecionismo privado
SER OU NÃO SER
A história dos museus remete ao colecionismo privado, que ganhou direcionamentos institucionais na modernidade. Ao longo do tempo, diversificaram-se seus arranjos e olhares. Falando de senso comum, poderíamos dizer que as ações museológicas contemporâneas se tornaram múltiplas, a ponto de estarem anos-luz daquilo que convencionamos, um dia, chamar museu, palavra cuja tradição imprimiu a imagem de um lugar “sisudo”, “conservador”, “parado no tempo”. Se é certo que algumas instituições mais convencionais ainda guardam certa similaridade com esses rótulos, reforçando alguns estereótipos do campo, e mantendo sua relevância social, também o é que tal acepção histórica está longe de dar conta da complexidade de uma categoria que se manifesta de forma cada vez mais dinâmica pelo mundo afora. E não importam quantas versões de “colecionismo” e coleções se apresentem – caso se apresentem. Mesmo se observarmos a definição oficial de museus defendida pela
Projetos diferentes têm se multiplicado, a ponto de museu ser hoje uma palavra muito mais larga que o conceito canônico Recomendação Unesco (documento de 2015) e utilizada pelo Icom – Conselho Internacional de Museus, servindo como parâmetro para a comunidade internacional, teremos dificuldade em chegar a um consenso sobre o que é museu hoje – sobretudo se levarmos em consideração alguns exemplos mencionados acima. Segundo o Icom, “um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e exibe uma herança tangível e não tangível da humanidade e seu meio para fins de educação, estudo e entretenimento”. Essa borda conceitual e consensual sofreu alterações ao longo
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2 ITINERANTE
O Museu da Beira da Linha do Coque apresenta a história de ocupação do bairro
do tempo, ampliando seu escopo, mas existem museus atuando fora dela, o que torna essa definição algo tão limítrofe quanto a pergunta “o que é arte?”. Só para começar, há museus impermanentes, temporários; há museus com fins lucrativos; e há museus atuando sem um acervo fixo ou para um público muito restrito, embora acredite estar a serviço de toda a sociedade. Segundo Carlos Brandão, expresidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia ligada ao Ministério da Cultura (MinC), o Brasil também adota a definição do Icom, que contempla desde os museus tradicionais, como o da República ou o Histórico Nacional – ambos sob gestão do Ibram, no Rio de Janeiro – até instituições cuja atividade está em parques, casas particulares ou lugares menos usuais. Carlos Brandão (leia entrevista com ele na página 46) reconhece, contudo, que mesmo tendo o conceito do Icom se modificado ao longo do tempo, abarcando as transformações sociais, ainda há, seja por exigências de normatização ou funcionamento dos espaços, experiências, digamos assim, fora da “caixinha”, mas sem deixar de ser pontos de memória a serviço de uma comunidade. O caso da senhora da República Dominicana que abre esta reportagem, por exemplo, foi contado por Brandão, ao lembrar a visita que fez ao país da América Central. “É ou não é um museu?”, indagou, animado, sobre a senhora e sua ação performática. “Para mim é, mas se encaixa na categoria museu? Não. A categoria ‘museu’ está numa lei. Então, a gente sempre se questiona, porque, na verdade, na minha concepção, aquilo era um museu, mas se você for olhar pela definição, não vai se encaixar. Não tem acervo permanente, não tem uma série de critérios que a gente usa… Mas percebe como essa definição de museu está sempre em perigo, sempre sendo questionada?”, problematizou ele, vendo de forma positiva a celeuma. O historiador Francisco Sá Barreto, coordenador da graduação de
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DIVULGAÇÃO
LEGENDA À ESQUERDA O NOME DA ROSA
Museologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), acredita que museu é uma palavra complicada, por conta da tradição, do lugar que ocupa. “Geralmente, é atrelada ao tradicional, ao velho, ao adormecido, e, em sua renovação, transformou-se num grande mercado de entretenimento”, analisou ele, referindo-se a iniciativas de um “circuito turístico global”, como o Louvre, o Guggenheim ou mesmo o recém-inaugurado Museu do Amanhã, no Rio. O museólogo e poeta Mario Chagas, por sua vez, não vê a palavra museu como uma questão, e sim o uso que se faz dela. “Há uma conexão tão forte dessa palavra com a poesia, que não vejo nenhum problema; o problema é a ideia que estão alimentando de museu. Qual é essa ideia? Temos que ocupar essa palavra, nas universidades, nas instituições, transformar práticas e ideias a ela vinculadas”, defendeu Chagas, professor da UniRio – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e funcionário do Ibram, onde atua particularmente na gestão do Museu da República (RJ).
ORIGENS E MITOS
Na mitologia greco-romana, Museu é o nome dado a uma figura cuja história permanece um tanto obscura, mesmo em publicações populares no assunto, como O livro de ouro da mitologia – História de deuses e heróis, de Thomas Bulfinch. O autor registra apenas que se trata de um personagem cuja tradição aponta como filho de Orfeu, arquétipo ligado à música. A Museu, por sua vez, “são atribuídos poemas sacros e oráculos”. Também nos conta Bulfinch sobre Memória, ou Mnemósine, deusa que teve com Júpiter as filhas Musas, deusas do canto e da memória. Diz o mito que cada uma tinha um encargo especial, seja na literatura, na ciência ou nas artes. Não é à toa que, no site www.museus. art.br, “a palavra museu, de origem grega, significa ‘templo das musas’, e já era usada em Alexandria para designar o local destinado ao estudo das artes e das ciências”. No geral, dáse ao termo esse sentido, remetendo a um lugar, o “templo das musas”, e não ao semideus, embora perpasse aí uma matriz cultural comum.
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No projeto de modernidade, os museus reforçariam o poder do Estado, da escola, das instituições
Seja qual for a origem da palavra, o arcabouço histórico-mitológico ainda se faz presente e enseja aquilo que persiste no mundo dos museus, a despeito das mudanças: a sacralidade. O caráter sagrado se perpetua e está na base da tradição desde que os museus passaram a ocupar uma centralidade social entre os séculos XVIII e XIX, na Europa. Na verdade, segundo escrevem os historiadores Cláudio Umpierre Carlan e Pedro Paulo Funari, no artigo Patrimônio e colecionismo: algumas considerações, essa história vem de antes. De acordo com os autores, a ideia de patrimônio nasceu em Roma, remetendo a “tudo o que pertencia ao pai”, um acúmulo de valor aristocrático e privado. Na Idade Média, entrou em cena a Igreja Católica e seus
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bens de valor divino – e tão logo o culto aos santos e a valorização das relíquias cristãs se popularizariam. No Renascimento, a ideia de guardar, preservar, recuperar e colecionar objetos “de valor” vem somar sentidos à noção de acúmulo, e o colecionismo passa a virar moda entre os mais abastados e, antes de se tornar hobby, “foi a primeira expressão de uma hierarquia política, econômica e social”, como pontuam os autores. Entre os reis, ter coleções foi, junto ao status, uma forma de recuperar o passado romano, identificando-se com ele. E então também vieram as coleções numismáticas (moedas) e, no século XVIII, as primeiras expedições arqueológicas pelo mundo. As coleções de história natural, muitas de cientistas independentes caçadores de borboletas e insetos, também surgem com tal processo. Nesse contexto, nascem os primeiros museus: o Britânico, na Londres de 1753, e o Louvre, na Paris de 1793. O Louvre, aliás, é considerado o primeiro museu público da história, nascido com os ideais libertários da Revolução Francesa, embora seu
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O museu parisiense faz parte do “circuito turístico global”, atraindo milhares de visitantes
espaço tenha servido à monarquia, como palácio dos reis da França. “Os museus cumprem uma agenda importante no projeto de modernidade. Eles reforçam o poder do Estado, da escola, das instituições de um modo geral”, afirma Francisco Sá Barreto, lembrando que o Louvre recebe hoje, por ano, mais visitantes do que todos os museus brasileiros juntos. Dados da própria instituição parisiense revelam estes números: mais de 9 milhões de visitas anualmente.
DAS MUDANÇAS
De acordo com o coordenador do curso de Museologia da UFPE, há fatalmente a ideia do novo entre os museus, pois existiu um “grande campo” investindo no projeto de mexer no seu conceito, em especial nos anos 1970, quando vários agentes e instituições procuram romper com essa noção tradicional. “O grande problema é que as iniciativas se mantiveram excessivamente concentradas no aparelho. Mesmo ecomuseus e museus comunitários mudaram a tipologia, mas conservaram o museu como uma entidade. A
instituição é a questão, é preciso discutir essa estrutura e a lógica de produção do bem cultural”, assinala o historiador, para quem a Antropologia – matriz da grade curricular do curso da UFPE – é uma chave para a “reflexão crítica sobre a cultura”. Mario Chagas reconhece que ainda existe um apego à institucionalização dos museus. “Mas há também uma experiência de desterritorialização, de deslocamento, que propicia outras visões”, contrapõe. Para o museólogo, se, por um lado, “existe uma prática celebrativa da memória do poder, apenas interessada na permanência desse poder”, por outro, existe um incentivo ao “poder da memória”, que é libertador. “É uma memória do presente, que, sem estar aprisionada, se projeta no futuro como promessa de vida. Existe essa possibilidade e tem espaço para isso”, argumenta Chagas, que passou a se envolver com a área nos anos 1970, a partir da percepção de que havia uma “museologia biófila”, comprometida com a vida, com a sua potência. Diante disso, é preciso observar o potencial político que tangencia os museus – e a própria vida. Não por acaso, foram eles, ao longo do tempo e ainda hoje, instituições utilizadas na manutenção de uma identidade nacional, de amplo valor simbólico. Mesmo que aí exista uma gênese afetiva, coleções são tudo, menos inocentes. Dentro desse contexto, contudo, os museus também passaram a ser vistos como agentes de desenvolvimento, agentes transformadores. Eis aí um dos sentidos que o “novo” nos museus tem sido trabalhado, com representações e configurações diferentes do início da sua história, embora haja, ainda nessa mesma configuração, o “novo” orbitando em torno de ideais do capitalismo cultural global, que posiciona a cultura de forma homogênea e instrumentalizada. “Essa mudança de paradigmas museológicos ou a redefinição do que seria ‘o objeto’ do campo museológico tem se dado ao longo da história dos museus e da museologia, e acompanha o processo de alargamento das noções
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de cultura, de patrimônio cultural e de sua diversidade, que vêm sendo institucionalizadas pela Unesco e seus estados-membros, a partir das disputas pelas hegemonias epistemológicas adotadas em suas dinâmicas sociais e arranjos de poder, do ponto de vista político, econômico e intelectual”, explica a jornalista e antropóloga Vânia Brayner, atualmente em intercâmbio do doutorado em Portugal, onde desenvolve a tese Territórios de poder e de memórias rebeldes – Caminhos da sociomuseologia em Pernambuco, Brasil.
MUSEOLOGIA DO SUJEITO
Entre as mudanças de paradigma às quais se referem diferentes especialistas, está a virada de perspectiva. Se, antes, tínhamos objetos como valor máximo, canonizado de um museu, hoje parece ser o indivíduo o foco da questão – até porque, como nos lembra Mario Chagas, são os seres que produzem os objetos. Mais ainda: as comunidades. Escolares, estudantis, vizinhas, ricas, pobres, de classe média. Como diz o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, uma “museologia do sujeito”. Tudo leva a crer, portanto, que estamos em um tempo de se fazer um museu “com a comunidade e não para a comunidade”, como já dizia a museóloga paulista Waldisa Rússio, nos anos 1970–1980. Que estamos num tempo em que o museu quer dialogar mais com o presente do que com o passado. “Podemos dizer que, no Brasil, a museóloga paulista Waldisa Rússio foi a primeira a desenvolver uma produção teórica e metodológica comprometida com os processos de transformação social, mesmo sendo combatida fortemente por seus próprios pares”, lembra Vânia Brayner. “Num momento de extrema repressão das liberdades individuais e coletivas no país, Rússio não abria mão da presença dos movimentos sociais nos museus brasileiros, e vice-versa, e influenciou e continua a influenciar fortemente na formação de importantes profissionais brasileiros.” Nesse cenário, a Museologia Social ganhou força e adeptos, colocando-se como um dos novos parâmetros teóricos e práticos da atuação museal. Não por acaso, os museus voltam-se, ainda que às vezes só no discurso, à ideia de
CON ESPECIAL TI NEN TE participação e desenvolvimento social, além de representação e diversidade. A questão da participação, atrelada ainda à noção de diversidade, agência e mudança social, é problematizada por George Yúdice, professor do Programa de Estudos Americanos da Universidade de Nova York, no artigo Museu molecular e desenvolvimento cultural. Para ele, não basta haver um discurso de inclusão, pluralidade e democracia nas instituições, mas um repensar de modelo museológico como um todo, que lide com as inevitáveis exclusões e as negociações entre as pressões capitalistas e sociais. “Dizer que é de todos não quer dizer que seja de todos”, lembra Gleyce Kelly Heitor, coordenadora pedagógica da Escola do Olhar, programa de educação do Museu de Arte do Rio (MAR). “Faz parte do processo histórico, da natureza e da ideia de museu não ser para todos. Um lugar onde poucas pessoas produzem sentido sobre muitas. O museu é o lugar da fala hegemônica; então, como construir processos contra-hegemônicos nesse contexto?”, questiona a historiadora. Para ela, é preciso haver uma reescrita da história, uma abertura nos procedimentos institucionais, e ainda são raras as experiências que fazem isso. Mesmo assim, reconhece e reforça as mudanças, dando exemplos de memória como resistência e ativismo de museus comunitários e outras vivências, muitas vezes temporárias, seja para resistir à especulação imobiliária no Coque (PE) ou às remoções causadas pelas Olimpíadas na Vila Autódromo (RJ). Isso muda o lugar do discurso, traz outras perspectivas. “O grande desafio é repensar a representatividade, rever os lugares de autoridade e partilhar os espaços de produção de novas representações”, pontua Gleyce Kelly, para quem a articulação com os movimentos sociais produziu uma demanda por outros “lugares de fala”. É de comum acordo entre os especialistas que não basta o museu ser tecnológico ou até comunitário para ser contemporâneo. Que o espetáculo não garante o novo, assim como o modelo social não assegura a inclusão. É preciso considerar, como diz Gleyce, que museu “são muitas possibilidades”, cujo horizonte é estar em constante movimento de se repensar.
Entrevista
CARLOS BRANDÃO “OS TEMPOS EXIGEM MAIS EFICIÊNCIA NA GESTÃO” Zoólogo de formação, Carlos Roberto Ferreira Brandão atuou por mais de um ano como presidente do Instituto Brasileiro de Museus, o Ibram, deixando o cargo no último mês de junho. Qualquer um que lide com a tarefa de pensar políticas públicas para museus neste país e, mais ainda, executá-las em uma autarquia federal ligada ao Ministério da Cultura, sabe do peso dessa função. Em entrevista à Continente, o gestor, também professor e pesquisador da USP, fala sobre os perfis contemporâneos dos museus, suas possibilidades para além das definições e a força dessas instituições como centros de memória, elemento fundamental da constituição de uma sociedade. Leia trechos dessa conversa a seguir. CONTINENTE O senhor acompanha a construção das políticas públicas para museus desde os anos 1980. Como analisa as mudanças no contexto brasileiro e latino-americano? CARLOS BRANDÃO Os museus começaram a sofrer processos de revisão de seus objetivos, junto a uma série de outras instituições, a partir de maio de 1968, com a revolução dos estudantes em Paris. Nessas manifestações, eles colocavam em xeque o papel dos museus tradicionais, sobretudo o Museu do Louvre, e os museus reagiram a isso, mudando a perspectiva de sua atuação, ampliando o seu escopo e incorporando novas tecnologias, novas formas de fazer cultura. Isso acabou reverberando aqui na América Latina, numa reunião de 1970 que até hoje é chamada de Mesa de Santiago, uma mesa-redonda organizada pelo Icom (Conselho Internacional
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de Museus), que propunha que os museus adotassem um papel mais contundente de desenvolvimento social. No caso brasileiro, em 2003, tivemos um processo muito importante de escutar os profissionais, e muitos contribuíram para um documento que ficou conhecido como Política Nacional de Museus, que antecedeu a Política Nacional de Cultura, e isso acabou embasando a criação do próprio Ibram. CONTINENTE Como, diante desse contexto, o Ibram tem atuado? CARLOS BRANDÃO Na verdade, o Ibram foi criado em 2009, quando recebeu essa denominação, mas já vinha atuando desde antes como Demu (Departamento de Museus), incorporando no seu cotidiano essa filosofia e essas funções. Por exemplo, durante vários anos, oferecemos oficinas sobre constituição de museus, capacitação, inventário das referências das comunidades… Então, o Ibram já vem atuando dentro dessa perspectiva, que chamamos de museologia social, há bastante tempo. Claro que, como todo órgão público, ele não está imune às crises, às dificuldades. Nossas atividades também foram se aperfeiçoando, adequando-se a certas normas de controle, e tudo isso gerou a necessidade de a gente mudar um pouco a nossa forma de atuação. Hoje, temos uma capacidade mais limitada do que tínhamos antes, para oferecer essas oficinas presenciais pelo Brasil inteiro. O Ibram não tem recursos suficientes para atender a todas as demandas. Por isso, estamos buscando maneiras alternativas, apostilando essas oficinas e criando plataformas digitais que deixem de exigir a presença de um professor em cada museu, por exemplo. CONTINENTE Vemos uma quantidade crescente de museus hoje, mas existe grande dificuldade no Brasil com a manutenção desses equipamentos culturais. Quais são os principais problemas? CARLOS BRANDÃO Estamos passando por uma crise e os museus não estão imunes. O Estado brasileiro está diminuindo, na verdade. Os museus também estão sofrendo esses efeitos. Tanto os museus do Ibram quanto os de outras esferas públicas
JANINE MORAES/ DIVULGAÇÃO
importante que os museus podem oferecer à sociedade. CONTINENTE De um lado, temos um boom dos museus tecnológicos, de alto investimento. Do outro, museus comunitários. O que é mais importante: a estrutura ou a narrativa? CARLOS BRANDÃO A narrativa é o mais importante. A questão tecnológica entra como suporte à narrativa. A não ser que seja um museu tecnológico, quer dizer, que tenha a tecnologia como o seu tema de trabalho. Mas, por exemplo, a tecnologia aplicada no Museu da Língua Portuguesa era para divulgar a língua, ou seja, um apoio de que o museu se utilizava para tratar dos conceitos ligados à língua. Mas não era a tecnologia pela tecnologia.
e particulares. Os museus privados ainda têm algumas possibilidades melhores, mas isso é dinâmico, depende muito das circunstâncias. Vemos que a tendência é aumentar o número de museus, mas os tempos exigem mais eficiência na gestão. CONTINENTE Estamos diante de uma mudança de paradigmas dos museus ou de uma diversidade típica da fragmentação contemporânea? CARLOS BRANDÃO São dois movimentos simultâneos. Ao mesmo tempo em que contestamos as formas ultrapassadas, vão se propondo novas maneiras. Hoje, há uma multidão de tipos de museu. Na plataforma MuseusBR (online), por exemplo, eles podem se definir como quiserem, mas um museu nunca é de um tipo só. Museu pode ser histórico, mas especializado na história das relações de trabalho ou com forte viés religioso. Mesmo os museus de arte eram todos museus de arte e agora, museu de arte moderna, de arte contemporânea, de belas-artes. Isso ocorre em todas as áreas. Os
“A interatividade virou uma moda, mas todo museu é interativo. Existe uma interação intelectual com o objeto” museus estão se multiplicando e isso é uma reação à fragmentação que a sociedade vem vivendo. Essa fragmentação pode ser vista como um enriquecimento. Temos mais tipos de museus e a cidade se vê de maneiras diferentes. CONTINENTE Por que é importante ir a um museu? CARLOS BRANDÃO Porque o museu é um centro de memória e ela é importante na constituição de uma sociedade para serem evitados erros que já foram cometidos no passado, para a inspiração nas coisas boas que aconteceram, para conhecer a história das manifestações culturais. Tudo isso compõe um painel muito
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CONTINENTE Embora a tecnologia acabe atraindo também… CARLOS BRANDÃO A interatividade nos museus, durante certa época, virou uma moda, mas todo museu é interativo. Existe uma interação intelectual com o objeto. Agora, se é necessário botar a mão ou não, vai depender do assunto que está sendo tratado, da estratégia e da possibilidade que o museu tem. Você pode ter um museu no qual não possa encostar, mas interagir com ele muito bem, e outros em que você coloca a mão em tudo, mas a interação intelectual não é perfeita. CONTINENTE Qual a sua utopia de museu? CARLOS BRANDÃO É o museu do futuro. Seria muito interessante que a gente tivesse um museu que musealizasse as nossas ideias de utopia e de futuro. Acho que o Museu do Amanhã, e aí vem minha crítica, se restringiu à questão mais ambiental, que, claro, é importantíssima, mas existem outras expectativas de futuro. Sempre fui fascinado por Julio Verne, por exemplo, o que ele imaginava que ia ser o futuro. Algumas coisas ele acertou, outras não. Isso talvez seja o que diferencia o bicho- homem de outros bichos: nós somos capazes de projetar o futuro. A gente erra muito quando faz isso, mas essa capacidade é instigante e ainda não encontrou espaço nos museus. OLÍVIA MINDÊLO
CON ESPECIAL TI NEN TE SOMERSET HOUSE/DIVULGAÇÃO
CONCEITOS As pessoas e o que elas fazem são o museu
Projetos como o do Ferrowhite Museo Taller e do Memorial da Resistência de São Paulo apontam a preservação da história que se pretende extinguir TEXTO Luciana Veras*
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1 MUSEU DA INOCÊNCIA Aberto em 2012, exibe objetos colhidos por duas décadas pelo escritor turco Orhan Pamuk
compreenderia “a Casa das Onze Janelas, localizada na Rua Siqueira Mendes, s/n, Cidade Velha”. O Espaço Cultural Casa das Onze Janelas é um museu de arte contemporânea em atividade desde 2002. Ao se cumprir o decreto, será fechado. A decisão segue a provocar reações de artistas e curadores do país inteiro. “A situação é de uma grande irresponsabilidade e incompetência administrativa. Por que fechar um museu que é uma referência nacional e que tem um acervo relevante para instalar um centro gastronômico? Bem na frente do Mercado Ver-o-Peso e do complexo das Docas há muitos casarões abandonados que poderiam abrigar essa nova iniciativa. Por que
Atualmente, além do “museu-espetáculo”, surgem iniciativas que propõem outras maneiras de interagir com o público
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Em 20 de junho de 2016, o Diário Oficial do Estado do Pará publicou o decreto de nº 1.568, cuja atribuição pode ser resumida na primeira sentença: “Cria o Polo de Gastronomia da Amazônia e dá outras providências”. Três dias antes, o governador Simão Jatene (PSDB), obedecendo a diversos artigos da Constituição Federal e da Estadual e “considerando que é atribuição do Estado regular e fomentar as atividades econômicas”, havia assinado a legislação, que trazia no seu artigo 2º a informação de que o polo gastronômico
manter essa dinâmica de inaugurações sem se preocupar com a manutenção do que já existe?”, indaga a curadora e pesquisadora pernambucana Cristiana Tejo. Ante a repercussão, o chef paulistano Alex Atala, cujo Instituto ATÁ se candidataria a gerenciar o projeto do polo, anunciou sua desistência, ressaltando “a inflexibilidade do governo do Pará e a ausência de real diálogo”. Além de um questionamento sobre política cultural no Brasil, o episódio engendra uma reflexão sobre a missão dos museus na era fluida da contemporaneidade. Para essas instituições, em um mundo efêmero e hiperconectado, como lidar com a preservação da memória e sob que viés estruturar essa atuação? Em dezembro de 2015, quando a Continente visitou o Museu do Amanhã, na Praça Mauá, no Rio de Janeiro, o curador Luiz Alberto Oliveira partilhou a definição do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, responsável pelo projeto: “Um museu do século XXI tem que ser como as catedrais medievais, provocando em quem entra uma sensação de arrebatamento”.
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Contudo, a noção do enlevo e o feixe de luz na sociedade que um museu contemporâneo é capaz de proporcionar não derivam apenas do porte arquitetônico do Rijksmuseum, em Amsterdam, do arrojo da fachada do New Museum, em Nova York, ou da vasta coleção audiovisual do Centre Georges Pompidou, em Paris. Um contraponto perfeito ao modelo de museu-espetáculo que se difunde pelo mundo e atrai grande quantidade de público é o Ferrowhite Museo Taller, vinculado ao instituto cultural de Bahía Blanca, uma cidade portuária a 600 km de Buenos Aires, na Argentina. “Museo taller” significa um “museu oficina”. Para nele entrar, não se paga entrada e seu cartaz de divulgação contém o lema que recepciona o visitante em letras maiúsculas – “O MUSEU COMEÇA LÁ FORA”. “Talvez porque este museu não seja tanto um edifício, uma coleção de objetos ou as imagens e os textos que estão repartidos pelas suas salas, mas, sim, um conjunto de ferramentas para perceber e interpretar o mundo de maneira um pouco mais atenta. Podiase dizer que este museu – no qual tanto se fala de trens, caminhões e barcos – não é exatamente um lugar, mas um veículo. Um veículo para historicizar nossa relação com o entorno”, explica à Continente o diretor Nicolás Testoni. Ele reconta a trajetória do Ferrowhite, inaugurado em 2004, no espaço onde outrora funcionava a Usina General San Martin, provedora de energia para Bahía Blanca. “A intenção foi recuperar o edifício como espaço de conservação do Museo del Puerto de Ingieniero White, instituição que deu início às suas atividades em 1987. Simultaneamente, surgiu a ideia de alojar também uma grande coleção de objetos das ferrovias, dos trens e do porto, que um grupo de ferroviários deixou sob a responsabilidade da prefeitura quando as ferrovias argentinas foram privatizadas no começo dos anos 1990”, detalha Testoni. Os funcionários pressentiam que, na ressaca do processo de privatização, ocorreria a aniquilação de parte crucial de sua própria história – daí a apropriação afetiva e, por conseguinte, a salvaguarda da memória. “Quase todas as coisas de propriedade do Ferrowhite estão aqui porque alguns ferroviários souberam
CON ESPECIAL TI NEN TE REPRODUÇÃO
tirá-las com ou sem permissão dos seus chefes e conseguiram levá-las para as suas casas. Ninguém ousava dizer, entretanto, que eles as tinham roubado. ‘Guardaram’ quando viram qual seria o destino da empresa estatal, ou seja, quando ficou evidente que o verdadeiro roubo era aquele que acontecia diante dos olhos e com a assinatura do ministro. Em uma Argentina na qual a destruição da empresa ferroviária acontecia com a aprovação do próprio Estado, esses ferroviários, capazes de roubar do ladrão, deixavam-nos, com o seu tesouro, uma pergunta muito difícil de responder: do que somos donos neste museu? A respeito das coisas, sim, pode-se colocar uma etiqueta de inventário, mas nunca sobre a pergunta. E é da vitalidade dessa pergunta que acreditamos que dependa a potência política deste museu municipal: da possibilidade de examinar com lupa os modos em que se repartem os bens produzidos na nossa sociedade”, condensa Nicolás Testoni.
MEMÓRIA SIMBÓLICA
“Potência política” é um argumento que fortalece um aspecto essencial em qualquer museu – a possibilidade de formar cidadãos através do resgate de uma memória que transcende os objetos compilados naquele determinado acervo. Uma memória simbólica, social, afetiva como em Ferrowhite e, portanto, política. Em Memory, history, oblivion (Memória, história, esquecimento), palestra apresentada em Budapeste, em 2003, dentro da conferência Memórias aterrorizantes? História na Europa depois do autoritarismo, o filósofo francês Paul Ricoeur (1913–2005) reforçava a importância de lembrar: “Em relação ao difícil conceito da sobrevivência das imagens do passado, seja qual for a conjunção feita entre as noções de reconhecimento e de sobrevivência do passado, o reconhecimento, tomado como um dado fenomenológico, permanece uma espécie de ‘pequeno milagre’. Nenhuma outra experiência dá a certeza da presença real da ausência do passado. Ainda que não estando mais lá, o passado é reconhecido como tendo estado. É claro que podemos colocar em dúvida uma tal pretensão de verdade, mas não temos nada melhor do que
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a memória para nos assegurar de que alguma coisa se passou realmente antes que declarássemos lembrar-nos dela”. Isso se dá no Museu da Inocência, aberto em abril de 2012, em Istambul, com objetos que o escritor Orhan Pamuk começara a recolher duas décadas antes. No romance homônimo, lançado em 2008, ele narra a gênese, o ápice, o ocaso e a subsequente perpetuação do caso de amor entre Kemal, o herdeiro de uma abastada família de Istambul, e sua prima distante Füsun. Impossibilitado de desposar a amada por convenções sociais, o narrador começa a recolher qualquer objeto relacionado a ela e à paixão que o consome – bitucas de cigarro, batons, lençóis e talheres usados, bibelôs, pentes, escovas de dente… Na ficção, ao longo de 83 capítulos, Pamuk esculpe a obstinação do protagonista em criar um museu para abrigar o acervo afetivo. “O que pode ser mais lindo que passar as noites cercado pelos objetos que nos ligam às nossas memórias e conexões sentimentais mais profundas?”, devaneia Kemal, na página 539 de O museu da inocência. Na realidade, porém,
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tanto livro como casa expositiva são um resgate das transformações sociais da Turquia, de uma sociedade patriarcal e machista e de um mundo em irreversível marcha. Entre janeiro e abril deste ano, o Museu da Inocência aportou na Somerset House, em Londres. Em conversa por e-mail com a Continente, a curadora da exposição, a britânica Shonagh Marshall, comenta a experiência idealizada pelo escritor turco: requisitar ao visitante que atente para o modo como os objetos podem contar histórias. “A criação de Orhan Pamuk consiste em múltiplas camadas de imaginação; concebidos conjuntamente, o livro narra a saga dos personagens centrais e o museu mostra as coisas que guardam suas memórias. Acredito que essa é uma exploração bastante interessante da maneira pela qual os museus exibem objetos para alinhavar narrativas. E, propondo perguntas sobre verdades e inverdades, quando uma história é acoplada a um objeto, pode ela ganhar um significado e uma interpretação completamente diferentes”, observa.
KEIKO NIWA/DIVULGAÇÃO
2 FERROWHITE “Museu oficina” refere-se a trens, barcos e caminhões
3 TENEMENT MUSEUM Montado em antigo prédio de residência de imigrantes, em Nova York
Como pontua o historiador pela UFPE Sérgio Salles, “sem eles, não se constrói a memória de um povo, muito menos uma sociedade”. “Museus são ferramentais fundamentais para nos levar a refletir sobre nossa história. Um museu auxilia a construir uma visão mais crítica do mundo em que vivemos e a compreender o atual processo histórico”, complementa o professor recifense.
ARQUIVOS ABERTOS
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Em 2014, o Museu da Inocência foi agraciado com o European Museum of the Year Award/ EMYA, prêmio concedido pelo Fórum dos Museus Europeus. Segundo Shonagh Marshall, o grande desafio, ao transportar uma parte dele para a Inglaterra, era recriar a magia que qualquer um sente ao entrar na sede na Turquia. “Queríamos trazer uma ideia dessa narrativa fantástica através dos objetos. Ao trazer para a Somerset House 13 vitrines, das 83 que compõem o museu em Istambul, pedimos aos visitantes que considerassem as memórias imbricadas naqueles itens à mostra. Porque, antes de alcançar o mundo fictício de Orhan Pamuk, você desvia para cima e para baixo nas sinuosas ruas de Istambul, as mesmas ruas por onde Kemal e Füsun andaram no romance. Ao cruzar aquele limiar, você já os considera pessoas de verdade, o que significa que aqueles objetos expostos parecem mais alojados nas memórias. Quando estávamos aprontando a exposição em Londres, estávamos cientes disso, então passamos muito
Um museu com “potência política” tem a possibilidade de formar cidadãos pela recuperação de suas memórias tempo trabalhando com a cenografia para criar essa sensação de uma cidade que atua como pano de fundo para a narrativa”, destaca a curadora. A primeira itinerância do Museu da Inocência “foi extremamente bemrecebida em Londres”, diz Shonagh Marshall. “A maneira como esses contos humanos vão sendo narrados dentro da exposição é um caminho para compreender e explorar a história daqueles objetos no nível pessoal. Histórias sociais são instigantes para o visitante contemporâneo”, acrescenta a curadora da Somerset House. Os museus, pois, assumem um papel nada estanque; são menos um relicário e mais um mecanismo vivo, acutilante até, que convida, provoca, comunica e semeia.
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No caso do Brasil, por exemplo, como entender o processo histórico contemporâneo sem descer aos porões da ditadura? Como decantar as mudanças sociais e políticas no país sem analisar o que aconteceu de 1964 para cá? “Os primeiros arquivos dos tempos do regime militar estão começando a ser abertos. Os estudos desse período, de uma maneira mais séria e aprofundada por parte dos historiadores, estão sendo realizados agora. Gerar reflexão sobre tudo isso é indispensável, inclusive para a produção de obras mais esclarecedoras. E o papel de gerar reflexão de um museu, por exemplo, pode ser a partir de uma memória positiva, como é o caso do Cais do Sertão, em Pernambuco, ou também a partir de tempos sombrios e nebulosos, como o Memorial da Resistência de São Paulo. É imperativo refletir sobre os momentos difíceis da nossa história para compreender o que vivemos hoje”, ratifica Sérgio Salles. O Memorial da Resistência de São Paulo funciona desde 2009 no térreo da Estação Pinacoteca, no Largo General Osório, região central da capital paulista. Fica no espaço onde operava, entre 1940 e 1983, o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops/SP. Sua existência é símbolo, espelho e tradução da resistência, como descreve sua coordenadora, a museóloga Kátia Felipini Neves. “O arquivo do Deops foi um dos primeiros liberados para consulta, pois fazia parte do Arquivo Público do Estado. No âmbito do processo de revitalização do centro da cidade, começaram a trabalhar no edifício em 1999 e, em 2002, foi inaugurado o Memorial da Liberdade, no espaço pequeno das celas.
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Em 2004, a Secretaria de Cultura cedeu o espaço para ser o anexo da Pinacoteca do Estado. Então, de um lado, a Pinacoteca gerenciava a estação, do outro, o Arquivo Público, cuidando do espaço das celas. Acontece que o projeto do Memorial da Liberdade era muito criticado pelos ex-presos políticos. As paredes tinham sido pintadas, por exemplo. As pessoas que haviam sido prisioneiras ali reivindicavam que o lugar fosse melhor aproveitado em termos educativos e culturais”, relembra a coordenadora. Quando o lugar foi rebatizado como Memorial da Resistência, ela integrou uma equipe que imergiu na história para preparar uma proposta de ocupação. “A primeira coisa que fiz foi chamar os presos para fazer a coleta de testemunhos. Quem sabe da memória de um local é quem esteve lá. Além do apoio de outras organizações, foi fundamental trabalhar com os protagonistas. O Memorial é uma experiência particular no Brasil contemporâneo. Seu projeto museológico traz uma exposição de longa duração organizada, justamente, com o auxílio dos protagonistas, dos atores principais que viveram tudo. Desde a década de 1960, na visão da sociomuseologia, são eles que devem estar inseridos em todos os processos”, conta Kátia Felipini Neves. São as vozes de quem padeceu sob tortura naqueles quartos, nas engrenagens do sistema repressivo arquitetado pela ditadura militar, que são ouvidas quando o visitante caminha pelos cômodos que antes eram celas. “Uma parte muito viva do memorial é justamente a emoção. Embora na sala inicial usemos outros suportes infográficos para montar uma linha do tempo, costurando fatos relevantes da história do Brasil e do mundo desde a Proclamação da República, em 1889, nesses espaços onde viviam os presos não somos nós que estamos falando, e, sim, eles mesmos. É o lugar da testemunha que dá uma carga de informação e emoção. Nem os jovens, nem os mais velhos, nem todas as pessoas que viveram esse passado conhecem a nossa história recente. Essas informações do Memorial da Resistência não existem nos livros escolares. Queríamos, com elas, mostrar a fragilidade da democracia. A nossa
4-5 DITADURA O Memorial da Resistência reconta a história de presos políticos, no edifício onde alguns deles foram detidos e torturados
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democracia tem que ser valorizada e aprimorada constantemente”, sustenta a coordenadora. Com 270 metros quadrados, o Memorial da Resistência é bem menor do que a Pinacoteca ou outros museus mais conhecidos de São Paulo, como o Museu do Futebol. Recebe, no entanto, cerca de 72 mil a 80 mil pessoas por ano, numa recompensa para o investimento em uma programação com rodas de conversas com ex-presos políticos, com visitas educativas com crianças entre cinco e 11 anos e com um olhar aprofundado para o passado a fim de apreender o contemporâneo. “Seja um museu de ciência, de arte, comunitário ou de tecnologia, é preciso tratar a questão de direitos humanos. O
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desafio dos museus contemporâneos é falar desses temas e vincular seu acervo a questões atuais. Não se pode fechar os olhos para a pobreza generalizada ou para os imigrantes”, vaticina Kátia Felipini Neves.
IMIGRANTES
Nos Estados Unidos, Donald Trump, candidato republicado à presidência, tem propagado a xenofobia e defendido medidas agressivas contra os imigrantes. Decerto, ele está alheio à constatação de que aquela nação não se fundaria sem os que lá aportaram da Inglaterra ou, ainda, sem os judeus, russos, romenos, japoneses, africanos e europeus que da pátria americana fizeram o seu lar. Talvez faça mais sentido para a
MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO/DIVULGAÇÃO
sociedade americana o que o filósofo francês Paul Ricoeur apregoava em 2003: “O lugar do esquecimento no campo que é comum à memória e à história deriva da evocação que é feita do dever de memória: este pode ser igualmente expresso como um dever de não esquecer”. Ganha força, nesse sentido e ante a atual propagação de discursos de ódio e intolerância, a existência do The Lower East Side Tenement Musem, em Nova York. Um tenement é um edifício que poderia ser descrito como um conjunto habitacional; uma coleção de apartamentos que eram alugados e, muitas vezes, compartilhados por famílias inteiras. No final do século XIX, o Lower East Side era um dos bairros de Manhattan mais povoados por estrangeiros. O número 97 da Orchard Street era um prédio em que os cômodos conjugados abrigavam os judeus alemães Gumpertz, os católicos italianos Baldizzi e os irlandeses Moore; as lojas do térreo eram de propriedade de pessoas como os alemães Caroline e John Schneider. Hoje, o visitante tem a chance de conhecer os aposentos tal qual eram ocupados mais
Um elemento importante na aquisição de conhecimento e informação em museus é a emoção
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de um século atrás – graças aos esforços de Ruth Abram e Anita Jacobson, que fundaram o museu em 1988. “Elas queriam construir um museu que honrasse os imigrantes. Para Ruth, esses edifícios nova-iorquinos eram o lugar perfeito: essas humildes construções para múltiplas famílias foram as primeiras moradias americanas de milhares de estrangeiros”, recorda o diretor de comunicações do The Lower East Side Tenement Musem, Jon Pace. Quando a dupla visitou a Orchard Street, encontrou um ambiente que parecia congelado no tempo, “como se as pessoas que ali habitavam tivessem partido sem nada levar”. Foram anos de restauro para que os primeiros apartamentos pudessem
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ser abertos. Hoje, o museu emprega 100 funcionários e acolhe 220 mil pessoas anualmente. Os passeios, ao custo médio de US$ 25, são feitos tanto para os apartamentos como para a vizinhança, que mantém a atmosfera miscigenada de que é feita Nova York. E assim como Nova York segue a receber imigrantes, o museu se expande para continuar radiografando tal fluxo. O número 103 da Orchard Street foi adquirido e está sob reforma para abrigar “as histórias dos imigrantes pós-Segunda Guerra Mundial, os sobreviventes do Holocausto, os migrantes de Porto Rico e os chineses que se mudaram para o Lower East Side”, como o diretor de comunicações antecipa à Continente. Turistas e curiosos só poderão conhecê-lo em julho de 2017. Até lá, o The Tenement Museum continuará proporcionando uma experiência distinta das ofertadas pelo Museum of Modern Art/MoMA ou pelo Whitney Museum. “Somos um museu histórico que narra a história de como nos tornamos americanos e do papel profundo que a imigração desempenhou e segue desempenhando na formação de uma identidade nacional em evolução. E, embora não nos posicionemos politicamente sobre a crise da imigração atual, o argumento que fundou o museu segue atual: a diversidade que os imigrantes trouxeram para esse país é uma das pedras fundamentais da democracia americana”, afirma Jon Pace. Imigração, repressão, histórias de amor e objetos surrupiados para recontar metamorfoses políticas, sociais e culturais de uma cidade, uma sociedade ou um país sinalizam a dificuldade da enquadrar ou restringir um museu contemporâneo. Ao discorrer sobre Ferrowhite, que dirige na Argentina, Nicolás Testoni parece falar de todas as instituições ouvidas para esta reportagem: “O principal patrimônio deste museu não são os objetos, nem sua arquitetura, nem sua suposta curadoria engenhosa, e, sim, as pessoas que o fazem. Ou, explicando melhor, o que todas as pessoas são capazes de fazer quando se juntam. O que é, afinal, que se preserva?”. Lembrar é resistir. * Colaborou Hallina Beltrão
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Conexão 1
INTERATIVIDADE Museus do mundo à mão
Ferramentas como o Google Art Project, Kunstmatrix e sites institucionais de museus como o MoMA e o Tate Modern aproximam a arte do internauta TEXTO Bárbara Buril
O que há em comum entre as
experiências de apreciar os afrescos dos maiores artistas da Renascença, como Michelângelo, Rafael e Botticelli, na Capela Sistina, presencialmente, através de uma longa viagem entre o Brasil e a Itália, ou virtualmente, pelo site do Vaticano? Trata-se de uma questão complexa que coloca, em
debate, tanto os entusiastas como os detratores da tecnologia. A pergunta pode ser formulada, de maneira mais ampla, da seguinte forma: quais são os reais impactos da tecnologia na arte? Em última análise, a tecnologia teria ampliado as possibilidades da arte, como defendem os entusiastas da técnica, ou a teria despotencializado,
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como se pode ver nas críticas do filósofo frankfurtiano Walter Benjamin, por exemplo, sobre a perda da aura da obra de arte em uma era que passou a reproduzi-la massivamente? Sem dúvidas, o problema é delicado e essa reportagem não busca se lançar a uma tentativa de respondê-lo. Na verdade, o que se quer mostrar aqui é que as exposições de arte ganham novas possibilidades com a internet e podem ser experienciadas de maneiras diferentes. Se elas são melhores ou piores do que as experiências presenciais, tudo parece depender do que as pessoas realmente buscam ao visitá-las. Mas, de fato, o que se sente é que não há nada em comum entre as possibilidades de estar na Capela Sistina presencialmente (na companhia de um grande público de turistas, muito barulho, reclamações dos vigias de flashs, mas acompanhada por uma sensação de pequenez humana
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1-2 CAPELA SISTINA A visita virtual oferece um panorama detalhado e asséptico, a presencial, a materialidade da arquitetura e da presença humana
diante da grandiosidade arquitetônica do espaço) e a de visitá-la pelo site do Vaticano (de onde brota uma música clássica que parece querer nos situar naquele ambiente renascentista, sem barulhos, sem qualquer vestígio de uma vivência arquitetônica tão essencial para uma experiência artística, mas com uma precisão de imagem que os olhos humanos não conseguem captar presencialmente). Embora haja ganhos e perdas em ambas as situações, o que importa é que, diferentemente da visita in loco, a virtual é acessível para a maior parte das pessoas e, nesse ponto de vista, o Vaticano está distante de nós a um clique. Assim, vários museus e galerias do mundo têm se adaptado ao ambiente virtual, ora dando a possibilidade aos internautas de realizarem uma visita em 360 graus, ora disponibilizando, na internet, uma vasta catalogação das obras de seus acervos. O Google
também tem cumprido um papel fundamental na inserção do mundo da arte na internet, através do Google Art Project, uma parceria estabelecida com algumas das mais aclamadas instituições de arte do mundo para disponibilizar dezenas de milhares de obras de arte de mais de seis mil artistas online e para realizar visitas em 360 graus a partir da ferramenta do Google Street View. Através do Google Art Project, é possível fazer um tour virtual com alta qualidade visual em importantes espaços culturais do mundo, como o Museu de Arte Islâmica do Catar, o Musée d’Orsay, em Paris, o Museu Nacional de Tokyo, o Palácio de Versalhes e até o Santuário Histórico de Machu Picchu, no Peru. O Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), também pode ser acessado virtualmente. Pelo site, o internauta é redirecionado para o site do Google Arts & Culture e pode visitar as dezenas de galerias e espaços do instituto. Na visita pelo Street View, não é possível saber exatamente os nomes das obras, mas, como no site do espaço cultural no Google Arts & Culture há
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uma catalogação de todas as obras, é possível identificar quais são as criações encontradas na visita em 360 graus. O arquiteto e mestrando em Arquitetura na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Rafael Rangel, por exemplo, que realiza pesquisa sobre a relação entre a arte e os espaços arquitetônicos no Inhotim, tem utilizado o Google Street View para tirar dúvidas sobre detalhes de algumas galerias do espaço. “Acredito que essa ferramenta pode ser bastante positiva como complemento da visita presencial, mas não como essencial. Por exemplo, já visitei o Inhotim inúmeras vezes, mas, em alguns momentos, tenho dúvidas sobre as cores e as formas da arquitetura de alguns espaços, aí eu faço a visita virtual.” Por defender que a vivência em uma exposição de arte depende da imersão do sujeito em um espaço arquitetônico que, por essência, é multissensorial, Rafael vê um limite no potencial de afetar as sensibilidades dos sujeitos pelos museus virtuais. “Estando em casa, no computador, você não vai sentir o frio, o barulho, não vai entender o espaço, se o teto é alto ou baixo, por exemplo. São certas limitações que a gente encontra no museu virtual. Por isso, na minha opinião, a visita ainda é fundamental”, defende. Para fins de pesquisa, por outro
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VISITAS
SETE LUGARES, UM PARA CADA DIA DA SEMANA Capela Sistina www.vatican.va/various/ cappelle/sistina_vr/
Google Art Project www.google.com/culturalinstitute/
Instituto Inhotim www.inhotim.org.br/visite/tour-virtual/
Kunstmatrix www.kunstmatrix.com
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Conexão
3 KUNSTMATRIX Shot by both sides, exposição virtual do fotógrafo berlinense Kai von Kröcher, é uma das mais visitadas na plataforma 4 INHOTIM Além da presencial, Instituto mineiro disponibiliza visita virtual pelo Google Art Project
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lado, ele acredita que a possibilidade de navegar virtualmente pelos museus pode ser extremamente enriquecedora.
COLEÇÕES
Outra iniciativa bastante interessante, que tem aproximado a arte da internet, é o portal Kunstmatrix, uma galeria de arte virtual que realiza exposições online de qualquer artista que se inscreva no site e monte a própria exposição. Basta acessá-lo, logar, escolher o espaço expositivo mais adequado para a quantidade de obras a serem exibidas e colocar as obras nas paredes virtuais. Um processo interativo e simples. Depois de montada, a exposição pode ser visitada por qualquer pessoa que acesse o site da galeria. Além disso, cada obra exposta aparece com o preço de venda e a compra pode ser realizada pelo próprio site, que recebe uma porcentagem sobre a venda. Também é possível pagar por um serviço opcional de curadoria oferecido pelo portal. Para quem não quer comprar nada, mas apenas fazer uma visita despretensiosa, há algumas sugestões do Kunstmatrix das exposições mais
visitadas. As mostras criadas pela Galerie Friedmann-Hahn, por exemplo, que existe num endereço físico em Berlim, estão entre as mais frequentadas no site. A exposição Shot by both sides, do fotógrafo berlinense Kai von Kröcher, cujo ateliê está situado no bairro artístico de Kreuzberg, em Berlim, é a segunda mais visitada do site, depois da mostra Cap Ferrat und Purple Rain, de outro artista berlinense, Rainer Baier. Apesar de o tour virtual por essas exposições funcionarem bem, sem problemas técnicos, o Kunstmatrix se mostra mais bem-sucedido porque dá a oportunidade aos visitantes de conhecerem novos artistas europeus, verem as obras individualmente e lerem o texto curatorial. Além das visitas virtuais em 3D, também é possível conhecer os acervos de museus importantes do mundo pelo acesso aos seus portais, que tem disponibilizado imagens e descrições detalhadas da maior parte das obras que compõem suas coleções. Não é como uma visita que simula ou que reproduz virtualmente o espaço físico do museu, mas é um modo de ter
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MoMA www.moma.org/collection
Tate Modern www.tate.org.uk/art
Museu Guggenheim www.guggenheim.org/collection-online
acesso a essas obras de maneira até mais detalhada – ideal para fins de pesquisa. No site do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), é possível ver 68 mil das 200 mil obras do acervo. Basta digitar o nome do artista. O brasileiro Helio Oiticica, por exemplo, tem 12 obras digitalizadas e, ao clicar em cada uma delas, tem-se acesso a uma breve história sobre o contexto artístico da obra, a técnica, dimensão e mesmo uma descrição sobre como ela foi adquirida. O Tate Modern, em Londres, propõe uma experiência mais interativa. Além de poder acessar a coleção do museu através de um glossário temático que direciona o passeio de modo mais eficaz e orientado, com indicações de filtros como “barroco”, “arte cinética”, “body art” ou “Bauhaus”, e com explicação detalhada sobre cada um dos termos, o internauta também pode criar um álbum próprio com obras da coleção, de acordo com seu interesse temático. Já a coleção online do Guggenheim pode ser acessada de acordo com filtros de datas, técnicas e movimentos artísticos. Em uma época em que a interação parece ter ganhado mais importância do que a apreciação da arte, são estratégias bem-sucedidas que buscam se adequar a um contexto de papel bastante ativo e protagonismo nunca antes outorgado àqueles que eram meros espectadores de obras de arte: nós, os visitantes.
ANDANÇAS VIRTUAIS
VIOLÃO Acervo digital reúne discografias, partituras, escritos, dicionário, vídeos e imagens que traçam a história do instrumento no Brasil violaobrasileiro.com/
Há 20 anos, o jornalista e produtor cultural Alessandro Soares dava início a uma extensa pesquisa que reunia documentos e informações sobre um
dos mais populares instrumentos do país, o violão. Daí veio a necessidade de reunir e compartilhar materiais no site Acervo Digital do Violão Brasileiro. Alessandro
é responsável pela curadoria do que define como “obra aberta”, sempre passível de novas colaborações. O portal conta com discografias, partituras, biblioteca com publicações disponíveis para download, vídeos, imagens e uma linha do tempo, com início em 1834. Há ainda um dicionário do violão brasileiro, iniciativa inédita que reúne os mais diversos violonistas, desde os pioneiros no instrumento, no século 19, até talentos da nova geração. O portal também promove o Concurso Novas, que, anualmente, desde 2012, incentiva e premia composições para violão solo. O júri é formado por consagrados virtuoses e compositores contemporâneos: Fábio Zanon, Sérgio Assad, Marco Pereira e Elodie Bouny. Para participar, deve-se enviar a partitura por PDF e um vídeo doméstico. É possível entrar em contato com os organizadores do concurso através do e-mail contatos@violaobrasileiro. com.br. MARINA MOURA
APP
MÚSICA
LITERATURA
COMPORTAMENTO
Aplicativo cultural organiza e sugere melhores exposições e oferece aulas sobre arte
Jornalista e músico faz apanhado do rock independente nacional
Revista trimestral gratuita aposta em produções inéditas de prosa e poesia
Site privilegia os eixos de cultura e comportamento, com histórias variadas
artik.in/pb/
rockjovem.com.br/
revistaparenteses.com.br/
riscafaca.com.br/m
O aplicativo Artikin, disponível gratuitamente para IOS e Android, lista exposições em cartaz de acordo com a localização geográfica do usuário, incluindo mostras que estão em evidência e outras independentes – e para cada uma há um pequeno texto introdutório e elucidativo, além de informações sobre preço e horário. O app utiliza filtros inteligentes, com tags diversas, e organiza as mostras por data de encerramento ou contagem regressiva. Já o canal Artikin no YouTube oferece aulas com conceitos-chave da arte, com temáticas como expressionismo, campos de cor e abstracionismo.
Prestes a se formar em jornalismo pela UFPE, o então estudante Danilo Galindo pensou que o seu trabalho de conclusão poderia tratar de algo que vivencia constantemente: o rock independente. Membro da banda Amandinho, Danilo pesquisou outros grupos no Brasil, selos e festivais, além de entrevistar pessoas envolvidas na área. Foi assim que, após alguns meses, colocou no ar o site Rock Jovem. Agora, ele dá continuidade ao projeto e segue “produzindo um conteúdo jornalístico sobre a cena independente”, afirmou à Continente.
Em sua 11ª edição, a revista Parênteses é uma publicação literária independente e gratuita, idealizada pelos paulistanos Lubi Prates e Bruno Palma e Silva. Distribuída exclusivamente online a cada três meses, pretende difundir produções preferencialmente inéditas de poesia e prosa, além de traduções e ensaios fotográficos – não existe qualquer delimitação temática, o foco concentra-se na obra de cada autor. Já colaboraram com a Parênteses nomes como Noemi Jaffe, Ana Guadalupe, Felipe Nepomuceno e Bruna Beber.
Cobrindo temas de cultura e comportamento, o Risca Faca surgiu da necessidade de privilegiar um “jornalismo aprofundado, grandes histórias, personagens interessantes, análises incomuns”, como consta em sua descrição. Para isso valem todos os formatos: áudio, vídeo, quadrinhos ou textos. O coletivo rejeita a pecha de “sisudo ou cabeçudo” e quer mesmo é tratar de tudo o que renda uma boa história. A variedade de assuntos é outra marca do portal: vai de uma etnia indígena quase em extinção à experiência de jogar o game Stardew Valley.
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Cardápio MOLHO Do disfarce à glória
Criado para salgar e temperar a comida, e esconder o odor de alimentos deteriorados, esse elemento é hoje um fundamental enaltecedor de sabores TEXTO Eduardo Sena FOTOS Rafael Medeiros
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“Nem disfarce, muito menos complemento. Molho é sacerdócio.” Não lembro qual o dono das aspas, mas foi um desses chefes apresentadores de reality shows gastronômicos, que adoram emplacar um aforismo para dar uma lição em algum participante desastrado. Entretanto, a sentença ajuda a compreender a mudança de status dos molhos, desde que a gastronomia se tornou um valor cultural dentro da sociedade, passando a ser tão analisados quanto o ponto correto de uma
carne, exigindo dedicação especial do cozinheiro em sua confecção. “É tanta responsabilidade, que, em grandes brigadas de cozinha, existe um chef de partida especialista nesta preparação, o saucier. Em equipes menores, os cozinheiros têm várias funções. Mas, normalmente, o responsável pelo molho é sempre o mesmo”, explica Taciana Teti, professora do curso de Gastronomia da Faculdade Boa Viagem. Mas nem sempre foi assim. Apesar de terem origem incerta, os molhos nasceram em meados do século
17 como fruto da necessidade de salgar e temperar por igual um alimento. “Também eram fortemente utilizados para esconder o odor dos ingredientes que se encontravam em estado de deterioração. Feitos em princípio à base de vinagre e sal, aos poucos, foram sendo incrementados com azeite, cebola e outros tipos de temperos”, explica a pesquisadora Maria Lucia Gomensoro, no livro Pequeno dicionário de gastronomia. A partir daí, foram os franceses que aprimoraram o recurso, desenvolvendo uma ampla cartela de desdobramentos
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dessas combinações molhadas, buscando otimizar as receitas. Nas cocções contemporâneas, não existe um consenso entre os profissionais de cozinha para uma definição da função de um molho. Mas, em comum, a certeza do seu caráter de composição e de união de sabores em pratos de todo o mundo. “Atualmente, o grande objetivo dele é, de fato, ‘molhar’ o alimento, deixando-o mais saboroso e brilhante. Porém, também é utilizado como forma de acentuar o sabor de alguns alimentos”, afirma Taciana Teti. Já seu par de profissão, o chef Rogério Costa, à frente do francófilo Mingus, acredita que estamos falando de um enaltecedor de sabor. “Quando você pega um molho bem-feito em cima de uma carne, é possível extrair outras propriedades dessa proteína”, defende. “Ele amparará o ingrediente principal de um prato, seja ele uma carne, um peixe ou uma massa, servindo como elemento de ligação aromática para a valorização do todo”, opina Luciana Sultanum, professora do curso de Gastronomia da Faculdade Senac, e cujo trabalho bebe na fonte da escola clássica francesa. A propósito, essa diretriz da cozinha de Carême segmenta os molhos em quatro grupos que, em uma analogia com o corpo humano, são tecidos que geram diversas células. “Temos os de base escura, que nascem a partir do demi glace. Os de base clara, cuja base é o bechamel, também conhecido como molho branco. Há, ainda, as emulsões frias, em que a maionese é o pilar, e, por fim, as emulsões quentes, sustentadas pelo molho holandês”, lista Teti. “É por meio da base escura, por exemplo, que se obtém o famoso molho madeira. Já o bechamel rende molhos de queijo; a maionese, o molho tártaro, o aioli; e o holandês, o clássico béarnaise”, completa Rogério Costa. Mas não podem ser esquecidos os molhos contemporâneos e os clássicos de cada país, como os italianos pesto e de tomate; o guacamole mexicano; o teriaki japonês, o rubro agridoce chinês, os currys tailandeses, só para citar alguns.
MOLHO/CALDO
Apesar desse amplo repertório de combinações, é preciso pontuar que nem tudo que é molhado é molho. Há uma linha tênue que o distingue de
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outros estados líquidos da gastronomia. Profissional dos que mais prezam pelo rigor técnico na confecção desses preparos, o chef Hugo Prouvot destaca que ele deve ter a força de sabor que deve enjoar, se tomar de colheradas, como uma sopa, por exemplo. “Há um tempo, foi popularizado o termo redução, não como técnica espessante de concentração de sabores, mas como um produto final, o que é escorregadio. Uma redução de fruta é um coulis, uma calda. Há reduções que são molhos, e reduções que não são”, dissocia. “O molho precisa do prato. Não funciona sozinho, como um suco ou uma sopa”, resume o chef Joca Pontes, do Ponte Nova. Discurso harmônico mesmo entre os profissionais do setor passa pela
“O molho precisa do prato. Não funciona sozinho, como o suco ou sopa”, explica o chef Joca Pontes, do Ponte Nova importância de um bom caldo para a excelência do resultado final do molho, sobretudo na cozinha clássica, na qual ele resulta da longa cocção de ossos, aparas de carnes, legumes e aromáticos. “A execução de molhos não é simples e exige uma boa noção prática do profissional, uma vez que se utiliza de técnicas para transformar ingredientes
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básicos em um produto final com cor, aroma, textura e sabor que marcam bastante o prato final do qual ele fará parte”, acredita a professora Luciana Sultanum. De sua parte, Taciana Teti garante que a base correta de caldo do osso promoverá aos bons molhos escuros uma trama espessante para adquirir a textura de napar, ou seja, uma leve camada aveludada em cima da carne. Outro acordo entre os cozinheiros passa pelas características que o molho deve reunir para obter um resultado feliz: sabor, cor, textura e brilho. Para a obtenção desses elementos, refinamento técnico. “No caso do clássico molho de carne, é preciso estar reduzido ao ponto certo, não ter espessantes (farinha de trigo), ser ‘montado’ na manteiga (monter au beurre) e, por fim, o crucial, que seria estar com sal e pimenta bem-dosados”, lista Joca Pontes. E tanta dedicação em torno de um aparente papel coadjuvante vem sendo reconhecida de outra forma. É que se nota que os clientes estão mais próximos de boas experiências gastronômicas ao reconhecer a qualidade de uma emulsão bem-feita, de um molho bem-reduzido. “A exigência aumentou. É como se, antes, você pudesse errar no molho, hoje, não”, acredita Rogério Costa, que produz mais de 10 tipos de molhos para o cardápio do Mingus. Essa mudança também abriu horizontes para diferente cenário. O da maior liberdade de criação para o cozinheiro, que passou a realizar intervenções nesse receituário, utilizando ingredientes antes considerados inusitados. “Buscam-se novas texturas, temperaturas diferentes, porém, sempre com o objetivo de acentuar o sabor da preparação, ou talvez, ‘brincar’ com as sensações no paladar do comensal”, avalia Teti. Por outro lado, mesmo diante dessa nova prática, é importante frisar que a metodologia clássica serve como principal base nos restaurantes que, em grande parte, têm referência nos princípios gastronômicos franceses. “São, certamente, os itens que tomam mais tempo e trabalho nas cozinhas profissionais, já que representam um grande diferencial no resultado final dos pratos. Mesmo para a intervenção, a base é muito importante”, acredita Luciana Sultanum.
Eleitos
OS TRÊS MOLHOS MAIS USADOS EM RESTAURANTES
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UM DESAFIO À QUÍMICA
É esse alicerce técnico que garante, por exemplo, o êxito de um béarnaise, considerado o rei dos molhos, e um dos mais difíceis e clássicos de todos eles. “Se não souber fazer um béarnaise, não pode ser considerado um chef. Aliás, ele não é nem um cozinheiro”, sentencia o restaurateur Nicola Sultanum. Feito à base de gema, estragão, cebola picada, redução de vinho branco, umas gotinhas de limão, sal, pimentado-reino, (muita) manteiga e (muito) cuidado, a emulsão é considerada uma improbabilidade química por unir elementos que não se juntam. Ou, pelo menos, foi ensinado que não: água e gordura. Fino acompanhamento para os grelhados, o molho amarelado que, junto ao corte de entrecôte e fritas sequinhas, forma um dos ménages mais celebrados na cozinha mundial, é a receita mais fácil de dar errado no mundo. Está a um piscar de olhos de se tornar um punhado de ovos untuosamente mexidos ou uma maionese equivocada. “Ele nem sempre vai ficar igual e isso é sua mágica. Tê-lo no cardápio do restaurante é um grande desafio, é o tipo de preparo que para a cozinha”, depõe Nicola. Para o chef Rogério, que
1-2 BÉARNAISE Feito à base de manteiga, gema, estragão, vinho branco, cebola, limão, sal e pimenta, este é considerado o “rei dos molhos”
executa a receita na casa, o béarnaise tem que ter sabor, a cor e, acima de tudo, a textura. Para conseguir o intento, alguns testes de laboratório comprovam que a temperatura ideal de cocção deve ser igual a 65º C. Mais que isso, coagula. No Mingus, um dos poucos endereços que oferecem a iguaria na cidade, o molho é preparado sob a técnica de banho-maria para o controle ideal da temperatura. O mérito não é só do chef. “Às vezes, sem que se dê conta, ele foi ajudado pela interação correta entre partículas de gordura, graças à qual elas se mantêm em suspensão. Essa interação, que envolve forças de atração e de repulsão, é que assegura estabilidade e consistência a um béarnaise”, explica a química Renata Cruz. Qualquer alteração nos ingredientes – na quantidade ou na qualidade – ou no modo de preparálos pode romper o sutil equilíbrio que determina a intensidade daquelas forças, levando o molho ao lixo. Então, podemos chamar um molho de complemento?
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Em meio a tantas opções de receitas, independentemente do segmento gastronômico do restaurante, seja ele um bistrô francês, um contemporâneo, um variado ou uma cantina italiana, as cozinhas têm uma paleta de molhos que não podem faltar por trás dos salões. A Continente pediu aos chefs que participaram desta reportagem para escolherem três molhos para trabalharem exclusivamente com eles na rotina nos estabelecimentos em que atuam ou prestam consultoria. O molho de carne, na versão demi glace, o bechamel e o tomate apareceram em quase todas as respostas, pelas possibilidades que geram dentro da cozinha. Os restaurantes utilizam, sobretudo, os molhos demi glace, que são preparados à base de aparas de carnes e vegetais, além de aromáticos (ervas e especiarias), principalmente para acompanhar carnes vermelhas, e normalmente, vinho. O bechamel também é bastante utilizado no mercado para derivar outros molhos, como o de queijo, por exemplo. Além desses, podemos citar o de tomate, que é um clássico mundial, utilizado em diversos pratos.
Regionais
VINAGRETE, PIRÃO DE QUEIJO E MOLHO DE COCO Apesar do conceito de molho estar associado a um padrão clássico e eurocêntrico, dentro do que se entende por cozinha nordestina, as derivações contemporâneas criaram identidade local (ainda que do ponto de vista da tradição culinária não sejam considerados “molhos”). Como comenta o chef Joca Pontes, podemos encontrar três exemplos dessa apropriação regional. “É o caso do vinagrete, que utilizamos em churrascos, cozidos de carne e de peixe, no pirão de caranguejo. Do pirão de queijo coalho, que, apesar de ser um acompanhamento da carne de sol, se torna um molho. E do molho de coco, com bastante coentro, que serve de base aos cozidos de frutos do mar da nossa região.”
JANIO SANTOS
CON TI NEN TE
História
GARCÍA LORCA Esta morte não foi política
Oito décadas depois do assassinato do poeta andaluz, novas pesquisas tornam evidente a motivação do fato antes interpretado como ideológico: um crime de matriz familiar TEXTO Fernando Monteiro
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No século 20, nenhuma das figuras exponenciais da cultura (e foram muitas) teve a vida ligada a fatos extremos da luta política tão tragicamente quanto Federico García Lorca, o grande poeta espanhol assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada VíznarAlfaca, na sua província natal. Lorca era andaluz, e foi fuzilado dois dias depois de preso por uma milícia fascista, na Granada da Alhambra encarapitada nos morros da cidade e, até hoje, a memória de Federico segue preenchendo a história granadina e contribui para fazer de Andaluzia um dos destinos turísticos mais carismáticos da Europa.
De certo modo, Granada se tornou duas legendas: Alhambra & Lorca – uma no seu esplendor arquitetônico e outro nos seus cantares “gitanos” e, por fim, no pranto de condenado à morte quase podendo ser ouvido pelos amigos e pela família detentora de boas propriedades de gente abastada, na cidade e no campo. Quando alguém as visita, é impossível não se perguntar como foi possível o fuzilamento sumário, a agressão covarde e fatal contra o membro mais destacado – intelectualmente – daquela linhagem andaluza enraizada num lugar em que todos se conheciam. É claro, de imediato tudo foi atribuído ao descontrole do fascismo, nas três etapas: a da intenção de prender, a da decisão de nem “julgar” e a da ordem, por fim, de executar sem mais delongas. Quem foi o responsável? E por quê? Essa pergunta esteve posta desde que começou a circular largamente a notícia da morte do homem que, segundo relatos da época, chorou na madrugada, diante do inacreditável fato de que iriam realmente fuzilá-lo de face para aquela manhã clara da Andaluzia que ele, filho da região, havia cantado em versos imortais. Existiriam “motivos” políticos para a ousadia de matar um poeta já muito conhecido, um jovem com um vasto círculo de amizades na Espanha e também no exterior? Sabemos que fascistas são temerários (a palavra é essa), mas sempre houve algo de estranho nesse crime, além de obscuridades diversas, telefonemas vários, discussões, ordens e contraordens… e até uma arma apontada para a autoridade militar de Granada – por um fascista da Falange! – em defesa veemente do preso. É necessário, na verdade, recontar um pouco da tragédia, desde antes daquela manhã fatídica e, para isso, devemos ver Federico, ainda em Madri, sendo desaconselhado à ideia de seguir “para casa”, justamente para fugir dos perigos da capital, naquele primeiro ano da Guerra Civil. Os amigos tentaram fazê-lo desistir da viagem e permanecer entre eles. Alegavam que, na pequena Granada, ele estaria muito “mais exposto” do que na grande cidade, porém o poeta retrucou que lá,
na sua Andaluzia, todos o conheciam e sabiam das suas origens. Ninguém conseguiu demovê-lo do intuito de assim se proteger e, dias depois, o poeta viajaria para Granada – e para a morte.
ÓDIOS ENTRE MUROS
Os amigos de Lorca tinham razão. O poeta encontraria, na Granada antigamente “mágica”, os eflúvios de ódios desatados à direita e à esquerda, no estreito ambiente limitado pelos muros seculares. Sim, ele era conhecido, para bem e para mal, como poeta e jovem boêmio de vida mais ou menos dissipada (e gostariam de dizer, claramente, a palavra derrisória para homossexuais: “vida de maricón”)… A cidade estava inevitavelmente alterada por medos, rumores e rancores velhos de antes da guerra. Circulavam boatos em torno de prisões já decretadas, e o seu nome teria sido mencionado. Assim, de acordo com recomendações
A face que devemos encarar é a de um Lorca distante de um paladino de esquerda, próximo à de um poeta apolítico familiares, Federico se transfere da sua casa para, algumas ruas depois, uma mansão de amigos dos Lorca-García: os Rosales, igualmente bem-relacionados e com integrantes da Falange (a sinistra agremiação política identificada com o “nacionalismo” de Franco) dentro de casa, do mesmo modo como também havia um poeta adolescente, Luis Rosales, mais tarde autor da obra-prima La casa encendida. A mudança parecia segura e conveniente para a segurança do belo rapaz das noitadas madrilenas. Neste momento no qual acompanhamos FGL seguindo para abrigar-se no meio dos Rosales, é preciso notar uma primeira discrepância, talvez, com relação ao futuro matiz da lenda que, após o crime, começará a ser fixada pela última manhã do poeta máximo da moderna literatura espanhola (em termos de repercussão internacional). Dela, dessa aurora nascida para a morte – inesperada –,
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viria a se compor um retrato sacrificial, isto é, a efígie de Federico Garcia Lorca coberta de sangue, vítima republicana a mais ilustre possível: havia sido fuzilado o bardo do “amor bruxo”, o cantor do romanceiro das estradas de saltimbancos, o vate andaluz, o “herói” em queda pelo lado esquerdo do peito varado pelas balas da Guarda Civil e outras hostes fascistas que levaram o ditador Franco a esmagar a Espanha por quatro décadas de autoritarismo, repressão violenta e controle absoluto de um povo tão difícil de domar quanto um miúra bravo nas plazas de areia e sangue. Sangue, sim, se derrama por toda a ardente Península Ibérica, mas, ali na Espanha, ele se concentra como coágulos nos cristos deitados nas catedrais escuras, no espetáculo dos touros (e dos toureiros) feridos e nas graves sequelas de um conflito interno que, em agosto de 1936, envolveria o gênio de Andaluzia até arrastá-lo para morrer como um animal de abate, naquele morticínio maldito para todos. Esse “para todos” introduz a maior parte das dúvidas que vinham se alargando, há anos, sobre quem realmente matou Lorca, ou seja, sobre quais nomes e quais motivos provavelmente se ocultaram num assassinato que ganhou a aura, imediata, de barbaridade máxima nessa confusa quadra da história do país de Cervantes. E, desde já, parece que temos de abandonar uma querida certeza acalentada por décadas: a do Lorca sacrificado em nome da ideologia – pois há que encarar a face, menos exposta, de um poeta lírico que não foi nenhum quixote, ou que não pretendia ser um paladino das esquerdas e, pelo contrário, estava em fuga das bandeiras e das fumaças da frente de combate. Federico era praticamente apolítico – segundo a unânime opinião dos que o conheceram – e até teria nutrido, num certo momento, uma velada simpatia por “governos fortes”, por autoridades que pudessem pôr “ordem” naquela casa, mais do que caótica, da Espanha da primeira metade do século passado. Isso foi confirmado por Luis Rosales, a respeito de um artista no auge do sucesso, como poeta e dramaturgo, quando a guerra estalou, fratricida. Naquela altura, mais do que nunca, ele era um Lorca vivaz em Madri, um
IMAGENS: REPRODUÇÃO
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História
ser risonho e animado na capital onde mantinha outros interesses muito para além da política (que nenhum dos seus colegas da famosa “Residência dos Estudantes” e amigos das letras, do teatro e da boêmia de Madri enxergaram, jamais, no horizonte do rapaz bem-nascido, bonito e dândi de todas as fotografias do mito que veio a se tornar Federico, o Assassinado). Esse é o primeiro degrau que se tem que firmar, a fim de galgar os patamares mais obscuros da tragédia. Ela surpreende, antes de mais ninguém, o povo de Granada, e a verdade – ou o que parece ser a “verdade”, tantos anos depois – vem se insinuando no território mais íntimo da família do poeta, entre parentes insultados e queixosos de negócios em sociedade com o pai de Lorca, o “patriarca” Federico García Rodriguez.
QUEM MATOU LORCA?
Todos que leram a obra do irlandês Ian Gibson (que serviu mais ou menos de “cânone” para estabelecer a versão do assassinato eminentemente “político”) decerto lembram o nome do pai do poeta como apenas uma referência ao marido de Vicenta Lorca, no registro da filiação do artista caído “sob os disparos pelas costas, feitos pelos fuzis do ódio fascista” etc.
Para Miguel Caballero, A casa de Bernarda Alba traz pistas sobre a morte de Lorca, já que expõe os conflitos da família Nada a contestar sobre a periculosidade dos “ódios fascistas” (é claro), porém as pesquisas mais fundas foram, recentemente, bem mais eficazes no levantar das discórdias e invejas no seio dos quatro ramos familiares, no caso de Lorca: os Roldán, os Benavides, os Alba e os García da linhagem paterna do poeta assassinado. Longe da idealidade firmada – com as melhores intenções – por Gibson, de imediato ouçamos o historiador andaluz Miguel Caballero, dentre outros que foram revolver os quintais domésticos, na retaguarda de Víznar-Alfaca: “Afirmar que mataram Lorca por ser homossexual e ‘vermelho’ é uma simplificação que já não se admite. As verdadeiras razões de seu assassinato devem ser buscadas na sua própria família”. Outro pesquisador incansável, Manuel Ayllón, arquiteto e autor de Granada, 1936 (Editorial Stella Maris),
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também é taxativo sobre isso: “Lorca não era um problema político, não ‘militava’ no sentido estrito, e podia ser extravagante, incômodo e meio afrontador nos seus hábitos joviais, mas nunca foi um perigo para absolutamente ninguém; politicamente, não era visado pelos fascistas, uma vez que era inofensivo. Na realidade, contra ele não houve sequer uma ordem de detenção assinada. Federico foi simplesmente levado da casa dos Rosales, que lutaram para libertá-lo no minuto seguinte e não descansaram nos dois dias subsequentes. O poeta Luis Rosales, irmão de dois falangistas, foi visitá-lo, pelos dois dias, na prisão perto de Granada. Ninguém imaginava que ele corresse qualquer risco de vida, ali adentro. Seguiam tentando tirá-lo de lá, quando veio a incrível notícia da sua morte por um pelotão que incluía membros do quarteto de famílias proprietárias da Vega de Granada que, então, estava dando bons lucros a Federico Rodriguez e aos seus Lorca-García”… Não é, de modo algum, “teoria conspiratória” surgida 80 anos depois. Nem envolve somente as pesquisas de Caballero e Ayllón, mas começou a abalar até as antigas certezas de Gibson, que está, no momento, empenhado em rever suas descrições, desde o “sequestro” no dia 17 até a execução apenas dois dias depois, sem julgamento e causando, mesmo, alguma desagradável surpresa nos círculos mais próximos do quartelgeneral de Francisco Franco. Claro: um fuzilamento tão brutal não seria, jamais, a melhor propaganda para os fascistas empenhados em tomar o poder na Espanha culta, também. Aliás, consta que as primeiras notícias sobre a morte de Lorca foram veiculadas por eles, os nacionalistas, pretendendo que o poeta houvesse sido vítima da “loucura republicana” (ironia das ironias) e, quando a Guarda Civil emergiu como a assassina de FGL, fez-se um silêncio sepulcral sobre o assunto, por parte dos amigos do futuro ditador.
VINGANÇA LITERÁRIA
Miguel Caballero é quem traz mais uma surpreendente pista: “A chave para abrir o cofre de estranhezas em torno do fuzilamento sumário de Lorca esteve desde sempre ali, representada,
escrita de punho e letra pelo poeta: trata-se de um presságio fatídico que, agora, oito décadas depois do crime, assume outra dimensão. A casa de Bernarda Alba foi uma vingança literária – enfatiza o historiador granadino. Caballero vê a famosa peça – que correu mundo – como um dos fios de meada da morte, os quais vêm sendo desenrolados por mais de uma dezena de pesquisadores que investigam a história da família desde a metade do século XIX. Naquela época, a Vega de Granada estava em poder de uma aristocracia residente em Madri, e que viria a cair em ruína financeira no alvorecer do século seguinte. As terras foram, então, adquiridas por um grupo da burguesia ascendente em Andaluzia, no qual figuravam o pai de Lorca e seus parentes, os Roldán e os Alba. Caballero descreve: “Eles foram comprando as terras de modo coletivo, através de sociedades. E estes campos vão adquirindo muito valor com o plantio açucareiro, enquanto a Granada de 21 engenhos se converte numa das províncias mais ricas da Espanha. O pai de Lorca participa como acionista de vários deles. E a disputa começa com a divisão dos lucros e mais uma tentativa de dividir as terras, porque nem todos tinham a mesma sombra nem a mesma água, sendo daí que surgiram os primeiros desentendimentos entre os Roldán, os Lorca e os Alba. Uma mesma família, na verdade, porque eram endogâmicos: casavam-se entre si, a fim de manter as terras antes de mais nada”… Ora, para a tragédia rural A casa de Bernarda Alba, Federico García Lorca foi se inspirar em personagens reais, entre as quais avulta Francisca Alba Sierra, uma mulher forte e que se comporta da forma tirânica mostrada nos palcos, para desagrado dos Alba de carne e osso, pouco afeitos às licenças poéticas. Para eles, a peça cheirava mal e tinha insinuações insultuosas. Os Lorca possuíam uma residência de verão granadina – a Huerta de San Vicente –, que foi assaltada em 9 de agosto de 1936 por alguns primos de Federico, do ramo dos Roldán, tidos como conspiradores contra a República. Além dos Roldán, o historiador Miguel Caballero lembra que outros familiares estiveram implicados nos atos de
1 FAMÍLIA Lorca (à esq.), em 1912, com seus pais, Vicenta e Don Federico, e os irmãos mais novos Concha e Paco LA BARRACA 2 García Lorca (centro) ladeado pelos companheiros do grupo teatral
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detenção e execução de Federico, nomeadamente Antonio Benavides, que era sobrinho-neto da primeira mulher do pai do poeta (e que será o homem acusado de disparar, pelas costas, contra a sua cabeça, na manhã desatada de ódios redimidos não só no plano da política de mistura com os preconceitos). Além desse pano de fundo – nada teatral –, existiu ainda uma ameaça vinda diretamente da poesia de Lorca, para a sua vida prestes a findar tragicamente: consta que, no dia 19, ele foi levado para a morte por um pelotão comandado pelo oficial da Guarda Civil (Nicolás Velasco Simarro), que teria se sentido pessoalmente ofendido pelos versos de Romance de la Guardia Civil Española, em virtude de referências à dura repressão da Guarda contra uma greve em Málaga. Mais: o ressentimento pessoal de Simarro pode ter sido “bem-reforçado” pelo fato de esse oficial haver desempenhado funções – pagas por um Roldán (Alejandro Benavides) – no caso de uma fuga de um grupo de camponeses da Vega, sempre objeto de disputas mesquinhas com o pai de Lorca…
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Uma rede de ódios e intrigas familiares começa a assumir a frente do assunto “assassinato do poeta”. Seu cadáver jaz em algum lugar da estrada, na vala comum na qual teria sido abandonado e encoberto de areia e pedras andaluzas? Talvez não. A própria família é, ainda hoje, totalmente contrária (?) a buscas mais profundas por lá. O que é muito estranho. Todos os Lorcas velhos parecem saber que Federico não se encontra mais naquela vala há muito tempo, tendo sido de imediato exumado (ainda naquele agosto aziago, há 80 anos), como certamente não o seria, no caso de um horrível crime político, que a Guarda Civil naturalmente teria todo interesse em camuflar de incertezas, ao longo do tempo. Essa é mais uma nota que soa falsa na orquestração das obscuridades que aproximam o García Lorca póstumo dos piores motivos de discórdia entre familiares, em cenário ainda mais violento do que o de um romance como Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Mais uma vez, talvez a vida imite a arte, se é que não a supere de muito.
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AQUARIUS Uma mulher, suas memórias e o dever de resistir Com Sônia Braga na pele da protagonista Clara, longametragem do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho chega ao Brasil após repercussão em Cannes TEXTO Luciana Veras
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“Aquarius é um filme sobre memória
e sobre história, que não são muito valorizadas na nossa cultura”, define o realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho. É, portanto, do acúmulo e da ação do tempo e das camadas de significados das lembranças – de uma mulher e seus objetos, de um apartamento, de uma cidade – que se erige seu segundo longa-metragem de ficção, que abre hors concours o 44º Festival de Gramado no dia 26 e estreia em todo país em 1° de setembro. Versos como os de Hoje, de Taiguara (1945-1996), uma das canções tocadas na íntegra no filme, operam como esteio e motor da jornada da protagonista Clara, vivida por Sônia Braga: “hoje, trago em meu corpo as marcas do meu tempo/ meu
o resumo retificado – Clara é uma crítica de música aposentada que mora em um apartamento em um edifício antigo cobiçado por uma construtora, que vislumbra a demolição. Todos os outros moradores venderam suas casas, ela não. Para Kleber Mendonça Filho, a descrição inicial não deixa de ser acurada. “Não tem um DeLorean estacionado do lado de fora do prédio, mas Aquarius é uma viagem no tempo”, comenta, referindo-se ao automóvel da trilogia De volta para o futuro. “A própria Clara é uma viagem no tempo. O filme traz essa viagem de uma maneira não científica, ao mesmo tempo em que é um filme de gênero, porque ameaça ser um suspense mas não é um suspense mesmo, embora tenha sequências bem tensas. Parece com um filme italiano dos anos 1960, estrelado por Anna Magnani. Clara não deixa de ser uma heroína bem clássica”, observa o cineasta, que escreveu o roteiro em 2012, depois de O som ao redor iniciar carreira em festivais internacionais. Em O som ao redor, o urbanismo predatório e seu impacto na
Dividida em três capítulos, narrativa do filme convida o espectador a mergulhar na jornada de Clara desespero, a vida num momento/ a fossa, a fome, a flor, o fim do mundo”. A personagem traz no seu corpo as marcas do tempo – a cicatriz de uma mastectomia, as rugas que não esconde, o cabelo grande que não apara. Sua casa, o único apartamento ocupado do edifício Aquarius, situado na orla de Boa Viagem, zona sul do Recife, carrega suas próprias marcas – móveis que lá estão há décadas, centenas de discos de vinil, livros, obras de arte. Antes do anúncio da seleção do longa para o Festival de Cannes, a sinopse que circulava era: aos 65 anos, Clara é uma crítica de música aposentada com a habilidade de viajar no tempo. Com a confirmação da participação em Cannes, veio
capital pernambucana já eram problematizados na narrativa – assim como as relações entre a urbe e os que nela vivem, também presentes em outros trabalhos do diretor, a exemplo dos curtas Eletrodoméstica (2005) e Recife frio (2009). Aquarius concilia esse olhar para aspectos sociopolíticos com o convite para acompanhar Clara. Questionado pela Continente se a gênese era o desejo de falar de uma mulher que esbanja vitalidade e coragem na flor da idade, ou a vontade de mirar a cidade e suas contradições, o diretor indica a convergência: “Tudo veio junto, mas desde o início entendi que o protagonista nunca seria um homem. A cena em que Clara está dormindo na rede e se levanta para
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abrir a porta e ter dois homens indo falar com ela nunca seria interessante do ponto de vista dramático se ela fosse um homem. A mulher enfrenta mais obstáculos numa sociedade machista”. Essa cena-chave é apresentada na metade do primeiro dos três capítulos de Aquarius – O cabelo de Clara, O amor de Clara e O câncer de Clara. “As pessoas amam a sequência de abertura, mas muitas ficam intrigadas e vêm me perguntar – ‘mas por que você colocou no filme aquelas cenas de 1980?’. Acham que ‘demora demais’. Para mim, talvez seja uma maneira tradicional de contar a história, já que eu poderia começar direto com Sônia, hoje, com 65 anos. Tem filme hoje em dia que, com 40 segundos, já acontece o primeiro drama. Acho que é sempre preciso um investimento de paciência para ir construindo as peças. Em 1980, vemos o prédio, a fachada, a garagem, quando vai para hoje em dia, o prédio está diferente, sem ninguém, vazio. Pode parecer bobo, mas é preciso localizar o espaço”, observa o diretor. Há tempo na narrativa para o espectador se ambientar com Clara, seu apartamento e suas memórias, assim como houve tempo para Kleber repassar as cenas com o elenco, em um prédio também em Boa Viagem, antes de filmar no Oceania, na beiramar – onde, por sua vez, a equipe da arte, comandada por Juliano Dornelles e Thales Junqueira, passou 20 dias a preparar o lar de Clara. A organicidade nas relações entre os personagens e aquele ambiente é notável – talvez fruto das quatro semanas de ensaio, talvez porque o filme de fato engendra uma feliz confluência entre texto, som, imagem e linguagem corporal. O elenco é irrepreensível; há o núcleo dos atores profissionais, todos à vontade em seus papéis, a exemplo dos pernambucanos Irandhir Santos, Zoraide Coleto e Paula de Renor; dos paraibanos Buda Lira e Fernando Teixeira; dos cariocas Carla Ribas e Humberto Carrão; da mineira Bárbara Colen; e do trio Maeve Jinkings, Daniel Porpino e Germano Melo, na pele dos filhos de Clara. E há, também, achados como Pedro Queiroz, que vive Tomás, o sobrinho da protagonista. “É tudo intuição e, claro, ter sorte na intuição e sensibilidade. Pedro, por
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Artigo
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ANGELA PRYSTHON CLARA E A RESISTÊNCIA
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exemplo, era estagiário do Cinema da Fundação. Perguntei se não queria fazer um teste e ele topou. Maeve era a escolha para fazer Clara jovem, mas na época estava fazendo uma novela com um aplique bizarro no cabelo. Descobrimos Barbara Colen em Minas e ela faz um trabalho maravilhoso. Paula de Renor é uma grande atriz, assim como Zoraide, que eu não conhecia. Houve um trabalho incrível de Marcelo Caetano na produção do elenco. Foi ele que me mostrou diversas fotos para o papel de Diego. Quando vi a de Humberto, eu disse ‘esse é Diego’”, rememora o cineasta. Em 2013, O som ao redor fez mais de 100 mil espectadores. Para Aquarius, uma coprodução francobrasileira – com Emilie Lesclaux, mulher e parceira de Kleber, pela CinemaScópio Produções, e a SBS, Videofilmes e Globo Filmes nos créditos e distribuição da Vitrine Filmes – o diretor pernambucano não faz planos, porém reconhece o alcance maior pós-Cannes: “O filme já foi vendido para mais de 40 países, o que é muito mais do que O som ao redor. Depois de Cannes, fomos para Sidney, Munique e Nantes. Já fiquei feliz com a repercussão em cada lugar por onde o filme passou. E, mesmo com a carga forte do protesto, também recebemos muito apoio”. Em 17 de maio deste ano, na sessão oficial de Cannes, ele e a equipe fizeram a caminhada do tapete vermelho portando cartazes bastante explícitos – “Um golpe aconteceu no
1 KLEBER MENDONÇA FILHO Cineasta comemora venda do filme para mais de 40 países - número bem superior ao de O som ao redor
Brasil”, “O mundo não pode aceitar esse governo ilegítimo” e “O Brasil está vivendo um golpe de estado”. À Continente, o realizador revela que muitos espectadores têm lhe procurado por considerar o longa-metragem premonitório em relação aos rumos políticos do Brasil. “As pessoas chegam para mim e perguntam se Clara foi inspirada em Dilma Rousseff. O personagem não tem absolutamente nada a ver com Dilma, o filme foi pensado e feito antes de tudo isso, mas eu acredito que filmes, assim como livros, músicas e obras de arte, captam as coisas no ar”, aponta Kleber Mendonça Filho. Assim, Aquarius traduz a ideia de zeitgeist enunciada pelo filósofo alemão Georg Hegel (1770-1831), o espírito do tempo que a arte apreende e, ao mesmo tempo, pressiona para ir além. Em outros versos de Hoje, Taiguara canta e Clara dubla: “Eu não queria a juventude assim perdida/ eu não queria andar morrendo pela vida”. Para ela, não andar morrendo pela vida é recordar e ter o direito de sorver suas lembranças – e relembrar é se contrapor ao capitalismo vigente. No Brasil de 2016, preservar a memória – de si mesma, da sua casa, da sua cidade – é um ato de valentia.
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Uma das recorrências mais marcantes do cinema de Kleber Mendonça Filho é a tentativa de ruptura com certo padrão de caracterização regional que tenderia ao folclórico e ao caricatural. Ainda que apareçam a “cor local”, o sotaque, a crônica urbana recifense, seus filmes evitam a celebração efusiva dos tipos regionais, o determinismo naturalista e a histeria folclórica que povoavam muitos dos filmes pernambucanos, sobretudo aqueles feitos pelos cineastas que começaram a aparecer na década de 1990. Dos curtas até O som ao redor (2012), Kleber optou por não recorrer às imagens usuais do Recife (planos aéreos de suas pontes, cenas nas ruas mais antigas, edifícios abandonados ou mercados animados e exóticos) para privilegiar os planos dos arranha-céus monótonos perto da praia de Boa Viagem e os interiores anódinos de classe média. A banalidade da crônica de rua e os personagens de vários segmentos sociais diferentes formam a base da sua visão crítica: a cidade, as paisagens de um emergente Nordeste brasileiro e do país como um todo, as ruínas de um passado não distante, como se esses elementos fossem os instrumentos diretos para a leitura do contexto mais amplo. Mas, evidentemente, suas preocupações não são apenas temáticas. Ele descarta o tratamento cinematográfico convencional em favor de um tempo específico, de um ritmo narrativo particular e de uma atmosfera mais própria ao cinema contemporâneo (que alguns diriam “de festival”), mas ao mesmo tempo mantendo muitos traços e alusões ao cinema de gênero e
INDICAÇÕES ao mainstream. Em Aquarius (2016), KMF mantém-se em grande parte fiel a essa estética e reafirma sua intenção em apresentar imagens mais inusitadas e inesperadas do Recife a partir dessa combinação do realismo contemporâneo, da revisão da história recente da cidade e do repertório variado de citações cinematográficas, musicais e culturais. Emergem, contudo, dois elementos até então quase ausentes no seu trabalho: o foco numa personagem central (a crítica de música Clara, interpretada por Sônia Braga) e uma dramaturgia mais delineada – derivada justamente desse foco. A primeira parte de Aquarius endereça o passado muito diretamente, primeiro nas fotografias de Alcir Lacerda dos créditos de abertura (como já em O som ao redor), seguidas pela boa reconstituição da Avenida Boa Viagem em 1980. Aquarius mantém um certo didatismo nos diálogos – sobretudo na primeira parte –, agravado talvez pela dramaturgia mais convencional e por uma maior abertura ao típico, às referências turísticas/ históricas tradicionais (a alusão à sorveteria FriSabor, as cenas no Clube das Pás e no restaurante Leite). As citações e os modos como a música aparece (tanto sonora, como visualmente) são fundamentais para a textura do filme. Se, em alguns momentos, eles perdem a sutileza, caindo na armadilha reiterativa desse roteiro mais novelesco, é preciso ressaltar que eles não são meros apetrechos nostálgicos, cartões-postais ou marcadores culturais, eles são, ao mesmo tempo,
símbolos e instrumentos da resistência de Clara e da cidade. Aquarius trata exatamente da ideia de resistência, da resiliência de uma mulher contra o apagamento. Apagamento de diversas sortes: dos modos de vida, da cidade, da sexualidade, de artefatos culturais, de memória. E o filme busca revidar, desafiar esse estado de coisas, através dos pequenos atos de rebeldia da protagonista, das suas mínimas insurgências. Mas também na sua própria materialidade, seja apagando as infames “torres gêmeas” do Cais de Santa Rita numa das cenas aéreas, seja povoando de fantasmas e rastros inesperados do passado que rasuram o presente, buscam vingança, por mais tímida que essa possa ser. Entretanto, o que realmente define Aquarius é Sônia Braga. É ela quem dá o tom do filme, quem imprime sua elegância. Não apenas por sua condição de estrela, ou por funcionar narrativamente como o centro da trama, ou por incorporar Clara numa atuação simultânea e paradoxalmente intensa, afetada e natural. Tudo isso incide sobre a força da sua presença, sem dúvida. Porém, parece que é a sua presença que ilumina e permeia o filme, contagiando os outros atores, estabelecendo uma certa unidade em torno de si e transformando com altivez os próprios espaços filmados.
MINISSÉRIE
O CHAPLIN QUE NINGUÉM VIU
Dirigido por David Gill e Kevin Brownlow Obras-primas do Cinema.
DOCUMENTÁRIO
FOGO NO MAR
Dirigido por Gianfranco Rosi Imovision
Em três episódios, reunidos pela primeira vez em DVD, esta minissérie britânica de 1983 resgata trechos inéditos de clássicos dirigidos por Charles Chaplin (1889-1977). Um dos trunfos é evidenciar as soluções técnicas encontradas para longas como O garoto (1921), Em busca do ouro (1925) e Luzes da cidade (1931). Um outro atrativo é a descoberta, por exemplo, de tesouros que nunca foram mostrados, a exemplo de The professor, que Chaplin rodou em 1923 mas nunca se dispôs a lançar.
A pequena ilha de Lampedusa, na Sicília, tem 6 mil habitantes, porém milhares chegam por lá em embarcações precárias, fugindo de guerras ou intempéries na África e no Oriente Médio. Em Fogo no mar, o diretor Gianfranco Rosi radiografa o impacto da presença dos imigrantes em pessoas como o único médico da ilha ou crianças obrigadas a naturalizar a morte. Mostra, ainda, o horror que acompanha as travessias em barcos similares aos navios negreiros de séculos atrás. Vencedor do Urso de Ouro na Berlinale 2016, esse documentário é obrigatório.
DRAMA
COMÉDIA
Dirigido por Lionel Bauer Com Patrick Lapp, Carmem Maura Supo Mungam Films
Dirigido por Nicholas Hytner Com Maggie Smith, Alex Jennings Sony Pictures
LA VANITÉ
Nesta pequena joia, em cartaz no país, David (Patrick Lapp) é um arquiteto que recorre a uma empresa especializada em eutanásia e, no dia marcado e em um motel barato, encontra-se com a funcionária Esperanza (Carmen Maura, sempre estupenda). Ante a negativa do filho de David em servir de testemunha, os dois pedem ajuda a Tréplev (Ivan Georgiev), um michê russo em atividade no quarto ao lado. Ao longo de 75 minutos, em um único cenário, Lionel Bauer constrói uma narrativa de delicada carga dramática.
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A SENHORA DA VAN
Baseado na história verdadeira de Mary Shepherd, que viveu por 15 anos dentro de uma van estacionada na frente da casa do roteirista e dramaturgo Alex Bennet, o filme é tanto um tour de force para Maggie Smith, veterana atriz inglesa que encanta em Downton Abbey e nos filmes de Harry Potter, como também uma bem-humorada reflexão sobre como a velhice é encarada pela sociedade. De pano de fundo, o diretor Nicholas Hytner oferece, ainda, um olhar sobre a luta diária e constante do feminismo.
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
CRÔNICA DE UM RECIFE EXILADO Às duas da madrugada ninguém conseguia determinar a intensidade e a direção de um vetor de força, apagara da memória as equações lineares de movimento e sentia-se incapaz de dizer o valor do número PI. Estudávamos desde as vinte horas, no apartamento quente e sufocante de um colega de Teresina, na rua Barão de São Borja. Em torno, velhos casarões ainda se mantinham de pé, alguns com a azulejaria portuguesa exibindo sinais de vandalismo, saques para venda em antiquários inescrupulosos. Rua Velha, da Glória, do Progresso, das Ninfas, da Soledade, do Paissandu... A Boa Vista inteira ainda ocupada por moradores que não os de rua, no tempo exato de receber um projeto de reforma urbanística e de habitação, como o das cidades europeias, antes que viesse a sofrer a degradação de hoje. 1969, um ano depois do Ato Institucional Número 5. Ano em que assassinaram o padre Henrique e balearam o estudante de engenharia Cândido Pinto. Alheios a esses conflitos, os dois garotos cearenses e um piauiense, aspirantes ao
curso de medicina, saíam para o Recife adormecido, ansiosos pela brisa marinha, que soprava na rua da Aurora. Os perigos? Vivíamos obcecados pelo vestibular, a primeira lei de Newton nos garantia que todo corpo continuaria em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a menos que fosse obrigado a mudar aquele estado por forças aplicadas sobre ele. Os três rapazes provincianos se moviam no sentido único de alcançar uma vaga, de preferência na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Nada os tirava desse movimento uniforme, a não ser a cidade do Recife, deslumbrante aos olhos de quem nunca avistara pontes, rio, palacetes e igrejas com tamanha majestade e profusão. Descendo pela Conde da Boa Vista, orgulho largo da cidade de becos, caminhando e cantando sem qualquer lembrança de Geraldo Vandré, escutando as vozes e os passos ecoando entre os edifícios, chegávamos à esquina do Cinema São Luiz, onde pescadores arriscavam a
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sorte com anzóis e redes. Os hippies da contracultura mangue só dariam os ares de graça lá pelo final da tarde, ávidos de atenção e escândalo, mas provocando apenas a curiosidade, as pilherias e o riso dos transeuntes comuns. Conhecidos e emblemáticos, repetiam-se nas seções do cinema de arte Coliseu, no Alto da Sé, em Olinda, nos shows do Teatro do Parque, nos vernissages de artistas plásticos, muitos-muitos naqueles anos de repressão. A margem do Capibaribe no Cais da Aurora – a San Francisco pernambucana – nunca mais foi a mesma sem a fauna embalada pelo toque desafinado de violões e o cheiro transgressor da maconha. Recife romântico dos crepúsculos das pontes, dos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos holandeses, que assistem agora aos movimentos das ruas tumultuosas, que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas do Pacífico, Recife romântico dos crepúsculos das pontes e da beleza católica do rio. Eu diria beleza caótica, corrigindo os versos de Joaquim Cardozo.
MARIA LUÍSA FALCÃO
O primeiro elétrico para Casa Amarela, somente às cinco da manhã, com a cidade despertando. Depois de conversar besteiras com os pescadores e de recusar a cachaça bebida em latas, seguíamos para a Av. Guararapes, outro orgulho da metrópole, onde deitávamos em bancos de cimento ou nas muretas que ladeavam o rio, esperando o sol e o elétrico. O dia se gastava em noites de estudo puxado, felizmente bem poucas, porque nunca fui madrugador nem via futuro nos excessos. Preferia a rotina de acordar às cinco, estudar até o café da manhã, retomar os estudos até o almoço e, no começo da tarde, seguir caminhando para o cursinho na rua Fernandes Vieira. À noite, novo serão que não ultrapassava as dez horas, porque ninguém é de ferro. Morava num edifício com lojas comerciais no térreo, e apartamentos minúsculos em dois andares acima. O prédio resiste de pé e sem benfeitorias, no cruzamento da avenida Norte com a João de Barros, sufocado pelos mesmos ruídos que nos abalavam os nervos. O som de carros, buzinas, vozes, e de
Hostil e acolhedor, o Recife recebia levas de migrantes a cada estiagem prolongada. Gente do Nordeste pobre. uma serraria com máquinas ligadas bem cedo, afugentavam sono e sonhos. A cidade onde as marchas de bloco cantam a poesia das ruas primava pela estridência. E ainda prima, insistindo em manter sua marca registrada. Os sete rapazes comprimidos na estreiteza de dois quartinhos, uma sala, cozinha, banheiro e área de serviço, num traçado semelhante ao de Lars von Trier para o filme Dogville, se esbarravam nos curtos percursos. Gente do Ceará migrando de territórios amplos, à procura de um destino novo, desde que o campo se esgotara de suas motivações e sobrevivência econômica. Por sorte, no lado de fora da Encruzilhada, nas ruas e nos ônibus para Água Fria, Beberibe, Campo
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Grande, Bomba do Hemetério, Córrego do Euclides, Águas Compridas e Cajueiro, o Recife se espraiava grande, popular, dançante, ao toque das religiões africanas desprezadas pelo catolicismo conservador. Hostil e acolhedor, o Recife recebia levas de migrantes a cada estiagem prolongada. Gente do Nordeste pobre. Sempre havia o consolo das águas poluídas do Capibaribe, uma palafita sobre a lama dos manguezais e caranguejos para chupar as patas. Na secura sertaneja, em tempos passados, coisa nenhuma. Por aqui ficávamos, uns procurando estudo, outros desejando emprego ou biscate, na convivência da cidade masculina, paterna, dura e reta, apesar das curvas sinuosas do rio e do traçado das pontes. Exilando-se de bairros tradicionais como Santo Antonio, São José, Boa Vista e Ilha do Leite para os aglomerados urbanos das praias, o Recife sofreu migrações internas que o tornaram pobre e decadente. Seus novos poetas, cineastas e músicos buscam o lirismo no caos. E ainda encontram onde sugar poesia.
GILVAN LEMOS Uma voz que merece ser ouvida
Noturno sem música escapa de um sentido restrito do regionalismo, em busca de um equilíbrio entre a crônica social e a reflexão existencial do protagonista TEXTO Cristhiano Aguiar
Leitura Noturno sem música, primeiro
romance do escritor pernambucano Gilvan Lemos, que a Cepe Editora está relançando, narra a formação e as angústias de um jovem provinciano, Jonas. Criado em um sítio, desprezado pelo pai e órfão, muito cedo, da sua mãe louca, que morre colocando fogo no próprio corpo, Jonas é, por fim, adotado pelo irmão da sua mãe, o boêmio Leocádio, e levado até uma pequena cidade próxima de onde nasceu. Ao longo do romance, acompanhamos a sua vida de criança e adolescente tímido, metido em leituras e sonhando com uma vida melhor, embora sem saber ao certo que vida melhor seria essa. Como não poderia deixar de ser, Jonas aspira a uma carreira intelectual. Deseja se tornar um escritor e estudar no Recife, porém as suas precárias posses o impedem de seguir adiante. A ele só
resta um emprego, como auxiliar de contabilidade, na fábrica do homem mais rico da região, Raimundo. O novo trabalho, contudo, só lhe traz mais tormentos. Jonas não só odeia o que faz, como também se apaixona, sem ser correspondido, por Marta, a jovem e bela esposa do seu patrão. Em pouco tempo, Jonas passa a criar ódio à vida em geral. Escrito em 1951 por um jovem Gilvan Lemos de 23 anos, o contexto de publicação do romance segue as dificuldades típicas que boa parte dos escritores brasileiros em início de carreira ainda hoje enfrentam. Segundo o depoimento do próprio Gilvan Lemos, o romance foi escrito em “um mês e onze dias”, usando uma máquina de escrever HermesBaby, cujo valor equivalia a todo o seu ordenado mensal. Em 1952, o livro dividiu o segundo lugar com O visitante, de Osman Lins, em um
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concurso promovido pelo governo do Estado de Pernambuco. A publicação, no entanto, aconteceria apenas quatro anos depois e às custas de um empréstimo feito pelo próprio autor à Caixa Econômica Federal. Publicado, o livro ganhou o prêmio Vânia Souto Carvalho, mas passou em branco pela crítica local e nacional. 1956, aliás, é um ano importante para nossa literatura. Neste ano foram publicadas as primeiras edições de Grande Sertão: veredas e Corpo de baile, de João Guimarães Rosa; Canções, de Cecília Meireles, Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto (poema compilado na edição Duas águas); é de 1956 também a primeira montagem, no teatro Santa Isabel, da peça Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. A estreia de Gilvan Lemos, portanto, acontece em um momento no qual se firmavam as principais conquistas dos diferentes grupos estéticos que,
RAFAEL GOMES/DIVULGAÇÃO
desde meados da década de 1920, buscaram renovar a nossa literatura. Não apenas os principais modernistas tinham se consolidado e escrito, a esta altura, boa parte das suas mais importantes obras. Autores como Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Mário Faustino, Lúcio Cardoso e Lygia Fagundes Telles, entre outros, começavam também a despontar. É importante pontuar o quanto o romance de molde regionalista vai perdendo a sua força e se torna cada vez mais epigonal. Abordagens introspectivas e/ou experimentais no campo do romance se fortalecem, por exemplo. Ocorre, além disso, um contínuo distanciamento da representação do mundo rural em prol de uma atenção maior para o mundo urbano, em nossa ficção. Neste sentido, Noturno sem música pode interessar a quem pesquisa a história da literatura brasileira, por
Noturno sem música (1951), seu primeiro romance, foi escrito pelo autor estreante de 23 anos em “um mês e onze dias” ser justamente uma obra na qual podemos perceber um amálgama entre tendências psicológicas, intimistas, e a nossa melhor tradição romanesca costumbrista, social e regional. Há de fato duas linhas de força básicas aqui: um mergulho, por um lado, na mente conturbada do seu protagonista Jonas, e um relato, quase jornalístico, por outro, da vida de uma típica cidade do interior pernambucano. É a segunda vertente que melhor funciona no livro, no qual vemos uma série de
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cenas que compõem muito bem um quadro de costumes e de denúncias das condições de vida do interior pernambucano na primeira metade do século XX. Quando estamos, no entanto, em demasia na companhia de Jonas e das suas obsessões, Noturno sem música acaba se tornando menos interessante, porque aí se exige uma maturidade de romancista que Gilvan Lemos ainda não possuía em 1951.
REGIONALISTA?
Neste ponto da discussão, é possível levantar a pergunta: seria Noturno sem música um romance regionalista? A resposta dependerá de qual conceito de “regionalismo” cada leitor adota em sua própria reflexão, mas Noturno sem música me parece escapar de um regionalismo no sentido restrito do termo. Embora as marcas do sotaque nordestino sejam fortes em sua linguagem,
IMAGENS: DIVULGAÇÃO
1-2 RELANÇAMENTOS Com os dois primeiros romances de Gilvan Lemos, a Cepe Editora deu início ao projeto de republicar todas as obras do autor
Leitura 1
embora as cenas da vida no agreste pernambucano tenham destaque, a intencionalidade do romance reside em uma busca de equilíbrio entre a crônica social e a reflexão existencial do seu protagonista. Como quase toda a literatura brasileira daquele momento, a questão do nacional deixa suas marcas também em Gilvan Lemos, sem dúvidas. Mas ela não é um ponto de chegada. Do mesmo modo, as marcas da cor local não são tratadas com o exotismo dos regionalismos menores, nem há uma obsessão em vincular a essência de uma cultura nacional à região nordestina. Além do mais, Noturno sem música se interessa pela vida urbana, embora não seja a urbanidade do Recife, mas sim a de uma cidade que seria equivalente à São Bento do Una do próprio Gilvan. Os painéis sociais construídos pelo romance são breves e eficientes. E, não obstante os coadjuvantes pecarem pela unidimensionalidade, cumprem bem o papel de ajudar a compor estes quadros sociais. É o caso dos funcionários da fábrica, por
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A linguagem de estreia do escritor já tem fluidez. As expressões regionais fazem sentido na boca das suas personagens exemplo, e em especial da tocante cena que envolve o filho de um deles, cujo apelido é Pelado. Quando Jonas, em um dos raros momentos nos quais consegue sair do seu próprio narcisismo, se comove com a pobreza da criança e lhe dá um queijo de presente, se surpreende com a atitude dela. Pelado, após segurar o alimento “como quem segura uma imagem de santo”, esconde o queijo e se recusa a comê-lo. Após muito insistir, a criança lhe revela o porquê, dizendo: “Vou levar pra mãe”. Quanto mais simples a escrita de Gilvan se torna, mais as suas imagens brilham: “À tardinha o movimento da feira esmorecia. Matutos que se retiravam, estalando o relho
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no animal carregado; cachaceiros cantando pelas bodegas; raparigas nas esquinas, pintadas, fumando, na tentativa de suas últimas conquistas amorosas; cachorros a farejar montes de basculhos; adeuses, despedidas, lembranças às comadres”. Sua linguagem de estreia já tem a fluidez do melhor José Lins do Rego; as palavras e expressões regionais fazem sentido na boca das suas personagens, sem soarem como adornos desnecessários. Uma das melhores, se não a melhor cena de Noturno sem música, descreve a primeira vez na qual Jonas vê um avião voando: “O ronco enchia a cidade. Corria gente de toda parte, meninos gritavam exaltados: Tou vendo, tou vendo! Consegui avistá-lo, pontinho perdido no azul imenso”. Como se fosse um pequeno conto do realismo mágico contrabandeado para o interior do romance, a passagem do avião mobiliza toda a cidade. As ruas se enchem de gente a fim de observar o prodígio; as crianças gritam; teorias são criadas para explicar sua passagem pela
INDICAÇÕES região: “É capaz de estar perdido [...] Acontece. Às vezes perdem a rota”. É uma cena-chave para entendermos Noturno sem música. Este não é apenas um romance de um período de mudanças no desenvolvimento do romance brasileiro; a própria obra tematiza transições. A chegada da vida moderna ao interior, exemplificada na cena acima, é só um destes momentos. Há outros: os limites fronteiriços entre o amor e o ódio; a ambiguidade, vivida por Jonas, entre o delírio e uma vida cotidiana sem graça; a exuberância do sexo versus a certeza de que cabe à carne a putrefação; o entrelaçamento da vida com a morte, por fim. Logo, o principal conflito do romance não é o fato de Jonas nutrir um amor não correspondido por uma mulher mais velha. Nem é, tão somente, a sua orfandade, ou a falta de perspectiva de ascensão social. Jonas afunda porque não consegue negociar com o mundo à sua volta. Além disso, ele não sabe lidar com os próprios sentimentos. Jonas se recusa a amadurecer. Não há atenuantes em sua visão de mundo; não há a compreensão da existência de ciclos que se alternam em movimentos contraditórios, porém necessários. Falta-lhe paciência, justamente porque lhe sobra tempo. Assim, Gilvan Lemos criou uma personagem cuja explosiva mistura de frustrações e radicalismo nos diz respeito hoje, em pleno 2016. Jonas é um pequeno “homem do subsolo” do Agreste
pernambucano, um homem para quem a vontade de destruição é a única forma de escape. Infelizmente, quando tenta alçar voos existenciais mais amplos, Noturno sem música se perde em especial nos seus principais personagens. Falta a Jonas, por exemplo, uma ironia, ou uma gravidade metafísica, que encontramos nos homens atormentados do Dostoiévski de Memórias do subsolo ou de Crime e castigo. Devido a esta ausência, a convivência prolongada com nosso principal protagonista se torna cansativa. Os demais personagens que orbitam ao seu redor, embora interessantes como tipos sociais, não recebem maior aprofundamento. Às mulheres, em especial, cabe um papel bastante secundário. Elas são pouco mais do que mecanismos que geram conflitos no romance – me refiro a Marta e a Inês, mãe de Jonas –, ou que servem como gatilhos de comoção sexual. Apesar destas ressalvas, a republicação de Noturno sem música, ao mesmo tempo em que se republica o seu segundo romance, Jutaí-Menino, também pela Cepe Editora – que vai reeditar toda a obra do autor, é uma iniciativa muito bem-vinda. Não apenas para que possamos entender os primeiros passos de um bom escritor, cuja obra merece novas leituras e releituras, mas sim porque há na vida errática de Jonas e da sua cidade uma força bruta atestando que, mesmo em suas páginas de juventude, Gilvan Lemos é uma voz que merece ser ouvida.
EMPREENDEDORISMO
LEONARDO SALAZAR Música Ltda. Sebrae
A música sob a ótica socioeconômica. Este é o objeto de estudo deste livro, que vasculha os elementos que enredam essa cadeia artística, desde o músico e sua criação até o consumidor, passando por atores envolvidos no negócio, o perfil empreendedor, fluxograma de atividades, finanças, financiamentos, direitos autorais, gravação, distribuição e comunicação.
FOTOGRAFIA
FRANCISCO CUNHA O Recife tomado à luz Edição do Autor
A sensibilidade de olhar a cidade natal, enamorar-se dela, existe desde tempos atrás. Contudo, hoje, a expressão desse bem-querer se expande na possibilidade de registrar imagens com telefones celulares e as expor nas redes sociais. Foi o que fez o consultor Francisco Cunha, ao publicar o registro afetivo de suas andanças pelo Recife. Agora, ele oferece esse material em livro.
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ENSAIO
CARLOS MENDONZAÁLVAREZ ET AL (ORG.) Mímesis e invisibilização social É Realizações
Filosofia, Antropologia e Artes. Nesta publicação, esses são alguns dos campos referenciais para discutir a mímeses e a invisibilidade social. Os ensaios trabalham o conceito de interdividualidade do francês René Girard e propõem reflexão sobre a violência social crescente, lançando perspectivas sobre as redes sociais.
PESQUISA
ROBERTO ACÍZELO DE SOUZA Um pouco de método É Realizações
Pesquisadores das humanidades ganham um manual focado nos procedimentos próprios aos processos investigativos e de editoração da área. O foco do livro é a metodologia nos estudos literários e inclui, por exemplo, os sistemas de referências de materiais obtidos eletronicamente, que estão ao alcance do grande público.
PURO LIXO Contestação e muita pinta
Espetáculo escrito por Luís Reis e dirigido por Antonio Cadengue encerra a trilogia Transgressão em três atos com homenagem ao grupo Vivencial TEXTO Márcio Bastos
Palco
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Um grupo de artistas, bichas loucas,
libertárias, libertas, antiestablishment, não normativas, à (e da) margem, se tornou uma espécie de símbolo da potência do teatro e das vivências que não pedem desculpas para ser e existir. O Vivencial, que entre a década de 1970 e início dos anos 1980 surgiu como um vendaval na cultura pernambucana, é hoje parte indelével do espírito cênico do estado, reverberando seu atrevimento em jovens que nunca tiveram a oportunidade de experienciar a mixtura do Vivencial Diversiones, espaço de espetáculos seminal para os artistas que não se encaixavam na cultura oficial. É esse ethos das vivecas (artistas que integravam o grupo) que a peça Puro lixo – O espetáculo mais vibrante da
cidade, dirigida por Antonio Cadengue e que estreia este mês, no Teatro Hermilo Borba Filho, busca homenagear. Gestado em 1974, o Vivencial se constituiu, desde o início, uma experiência radicalmente à margem. Formado por indivíduos que viam suas experiências negadas pela sociedade, o grupo assumiu, até sua dissolução, em 1983, como parte de sua identidade, o que poderia ser estigma. Fez, do lixo, cenário e figurino; da “bichisse”, um modo de viver e representar. A sede do grupo, o Vivencial Diversiones, no Complexo de Salgadinho, em Olinda, à época uma das áreas mais perigosas do Recife, era reflexo dessa vivência na cara, coragem e purpurina. A infraestrutura refletia o pouco dinheiro
e a vontade de fazer, mas logo se tornou point, como uma espécie de café-concerto, com apresentações musicais, teatrais, happenings e dublagens. Capitaneado por Guilherme Coelho, era um espaço para os excluídos e também um ponto de encontro inusitado em que a família tradicional recifense, heterossexual, tinha contato com aquelas “loucuras” de existências que, fora dali, eram por ela execradas. Ao vestir sua marginalidade como uma insígnia de orgulho, ao amplificar o arco-íris e se assumir cada vez mais queer, o Vivencial se transformou em algo maior do que o próprio grupo: virou um estilo de vida e de fazer teatro. Ainda que não seja de forma uníssona, sua influência, seus ecos, estão
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encravados no teatro pernambucano, principalmente nos setores que se propõem a caminhar mais à esquerda em relação ao mainstream.
DOR, MAS COM FESTA
Última parte da trilogia Transgressão em três atos – projeto capitaneado por Stella Maris Saldanha, Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra desde 2008, com foco, além das “vivecas”, no legado do Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e do Teatro Popular do Nordeste (TPN) –, Puro Lixo… foge da tentativa de reviver a experiência do Vivencial. O autor do texto, Luís Augusto Reis, sabe que isso seria impossível, pois o grupo inseriu-se num momento específico da história do país, sob a repressão da ditadura militar e de
Palco outras experiências e costumes. Busca, antes de tudo, celebrar a experiência radicalmente transformadora e marginal que o grupo trouxe e representou. “O projeto surgiu como um presente para mim. Cadengue me convidou para escrever a dramaturgia e me deu como referência alguns contos de João Silvério Trevisan, primeiro intelectual do Sudeste a notar a importância do Vivencial e entender que ali estava brotando uma experiência transformadora”, conta Luís. Os textos, porém, eram sombrios, permeados pela dor. Luís então propôs ao diretor outra visão mais próxima do espírito do grupo. “O Vivencial era pathos, tinha sofrimento, mas era principalmente festa, alegria. E é isso que buscamos resgatar”, explica. “Estar à margem pode ser uma vantagem: dá mais liberdade. E o Vivencial soube aproveitar isso”, completa. Apesar da mudança de tom, foi em Trevisan que Luís buscou a espinha
Assim como no Vivencial, em Puro Lixo, os atores interagem com o público, quebrando a passividade da plateia dorsal do texto. A partir da reportagem Vivencial Diversiones apresenta: Frangos falando para o mundo, escrita pelo paulista em 1979, para o jornal de guerrilha gay Lampião da Esquina, Reis procurou revisitar alguns procedimentos cênicos do coletivo, como a colagem de textos e referências à paródia, à antropofagia e à Tropicália (ou Pernambucália, como definiu Jomard Muniz de Britto). O resultado é um texto que capta a atmosfera libertária do grupo, em uma sincera homenagem carregada de (ir)reverência.
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A dramaturgia intercala trechos das observações de Trevisan, que relata uma noite no Diversiones, evidenciando o caráter humano dos personagens, assim como a importância do que era levado para a cena, que começava já nos bastidores. Isso porque o teatro do Vivencial era um teatro da verdade, ou melhor, das verdades de cada um que o compunha. Na escrita de Luís Reis, e sob a direção de Antonio Cadengue, esse é um aspecto que ganha relevância. Os atores dão nome aos personagens que interpretam, além de interagir com o público, um modus operandi comum ao icônico grupo, quebrando a passividade da plateia, provocando-a, fazendo-a ser parte da experiência cênica. Cadengue, especialmente, tem propriedade para falar do assunto. Além de ter dirigido dois espetáculos do grupo – Viúva, porém honesta (1977)
e All star tapuias (1980) – dividiu a vida com uma figura seminal para o Vivencial, o cenógrafo Beto Diniz. É, portanto, um trabalho marcado pela memória afetiva. “É um projeto que tem mexido muito comigo. Tem sido um processo gostoso porque é, assim como no Vivencial, uma construção coletiva, de esforços mútuos, e essencialmente aberta à transformação. Queremos dar um olhar de dentro para fora, mais voltado para nossa interpretação do que foi aquela experiência do que sentenciar ‘é isso’”, aponta o diretor. De fato, partes do texto foram reimaginadas ao longo do processo de ensaios. Questões relativas à sexualidade, gênero, política, ao racismo e às vivências dos não normativos foram discutidas pelos intérpretes e criadores, que utilizam o escracho, antes de tudo, como forma de fazer sentir e pensar. Nada ali
No espetáculo, o riso, o escárnio e a purpurina funcionam como ferramentas de protesto e contestação está deslocado. O riso, o escárnio, a purpurina são ferramentas de protesto e contestação. A pinta é um manifesto político. Em tempos nos quais parece que é exigida uma opinião formada sobre tudo, de textões no Facebook, Cadengue, Reis e os atores parecem mais interessados em provocar, em instigar a desconstrução em busca de respostas que fujam do bom gosto, do bom senso e dos bons modos. Em cena, Stella Maris Saldanha, que participou também das duas outras montagens de Transgressão em
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três atos – Os fuzis da senhora Carrar (2010) e Auto do salão do automóvel (2012); Gil Paz, Eduardo Filho, Marinho Falcão, Samuel Lira e Paulo Castelo Branco se entregam àquela atmosfera, incorporam a ideia transformadora alicerçada pelo grupo libertário. Atuam sem impostação, com desenvoltura e gingado, com uma alegria quase anárquica. Com elementos cênicos mínimos, o cenário remonta ao clima de cabaré do Diversiones. Puro lixo – O espetáculo mais vibrante da cidade é um teatro que ressalta a joie de vivre, que é um hino à vida, ao amor e à capacidade de sobreviver, de ser um corpo presente, ainda que indesejado pelo sistema patriarcal, homofóbico, misógino e racista. É um lembrete de que o Vivencial será sempre necessário diante da opressão e de qualquer tentativa de minar os indivíduos de serem quem quiserem ser.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
PINTURA E REALIDADE
Antecipação maravilhosa do descompromisso da pintura com a realidade é a de “Orbaneja, um pintor que estava em Ubeda, que, quando lhe perguntavam o que pintava, respondia: ‘O que sair’; e, se porventura pintava um galo, escrevia por baixo: Isto é um galo para não pensarem que era uma raposa”. Dom Quixote, cap. 71. Quem me falou do episódio foi o pintor Francisco Brennand. Aliás Dom Quichote, com ch em vez de x nesta edição que estou lendo da biblioteca da Faculdade de Direito do Recife (Lello & Irmão, Ltda., Porto, 1929), o que deve ter servido a Bastos Tigre para adotar o pseudônimo de Dom Chicote. O mais radical de todos foi Maurice Denis (1870-1943), que Lula Cardoso Ayres conheceu em 1925. Aos vinte anos de idade saiuse com essa: “Lembre-se que uma pintura, antes de ser um cavalo, um nu, ou qualquer espécie de anedota, é essencialmente uma superfície plana, coberta por cores dispostas em uma certa ordem” (Clarival do Prado Valladares, Lula Cardoso Ayres/
Revisão Crítica e Atualidade, 1978, Construtora Norberto Odebrecht S.A.). Engraçado, o português Fernando Pessoa disse a mesma coisa em relação ao texto impresso: “Livros são papéis pintados com tinta”, citado por José Paulo Cavalcanti Filho, Fernando Pessoa/uma quase autobiografia (Editora Record, 2011). Há inúmeras alusões a esse descompromisso, ou visão além da realidade, o que sempre acontece, pois a pintura é sempre uma escolha, uma ótica pessoal, e nisso vai toda a diferença, de acordo com os sentimentos, a afetividade, a emoção do momento, o convívio do pintor com essa mesma realidade que para uns significa muito e para outros nada, é sempre uma construção “a partir de” e não a coisa em si. A própria realidade assim chamada tem sofrido contestações. Leonardo da Vinci já dizia: “O ar está cheio de um número infinito de linhas radiantes, retas, que se cruzam e se tecem juntas sem jamais coincidirem completamente; são elas que representam a verdadeira forma da
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razão de ser de cada objeto” (Alfred Barr, citado por Michel Seuphor, Dictionnaire de la peinture abstraite, Fernand Hazan 1957, Paris). Contudo, um fantasma ronda a arte da pintura desde milênios. Na Grécia Antiga um pintor visitando outro se deparou com um quadro com uvas tão bem pintadas que até enganavam os passarinhos, que vinham bicá-las, pensando serem verdadeiras. Algum tempo depois o pintor do quadro das uvas é convidado para ver um quadro no atelier do rival. Chegando lá, vê um quadro coberto com um pano e pergunta se pode levantar o pano para ver o quadro. Só então, ao tentar levantar o pano, percebe que o pano é pintado, gabando-se então o pintor deste segundo quadro: “Tu enganaste um passarinho. Eu enganei um pintor!” Noutra versão, o pintor pintou, em cima da pintura, uma mosca tão bem pintada que o espectador procurava tangê-la e somente aí descobria que era pintada. Era certamente a esse tipo de perfeição a que se referia Cézanne ao dizer: “Sei que devo trabalhar e
REPRODUÇÃO
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1 BARRAVENTO Óleo sobre tela
da exposição de Sílvia Pantano
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fatigar-me mas não por esse ‘acabado’ que os imbecis admiram”. Mas nunca deixou de existir essa outra corrente ilusionista, que quer dar ao espectador a ilusão da realidade, ou de um tipo mais vulgar de realidade, não por ignorância ou imaturidade, lembrando-me do movimento hiperrealista ou fotorrealista, quando o elogio “parece uma fotografia” deve valer como elogio, creio eu. Essas ideias começaram a rondar minha cabeça ultimamente por motivo das exposições, cronologicamente, na ordem em que as visitei, Barravento, pinturas de Sílvia Pantano, e Natureza, encantos e cores, de Pollyanna Ferreira. A de Sílvia Pantano na Moma/ Galeria de Arte, Av. Rosa e Silva, 670, sobreloja 107, de 29/04 a 10/06. Dela diz Maria de Lourdes Hortas: “O artista tem sempre um novo olhar – encantamento, surpresa, espanto – para os cenários do cotidiano, selecionados pela ótica do seu sentimento. Da sua varanda, voltada para a imensidão azul do mar de Candeias, Sílvia Pantano, num
A pintura é sempre uma escolha, uma ótica pessoal, e nisso vai toda a diferença, de acordo com os sentimentos, a afetividade dia qualquer, deu-se conta de que os barcos, dia e noite indo e vindo sobre aquelas águas de marés cheias ou vazantes, navegações que sua alma contemplava, por madrugadas e crepúsculos, rústicas embarcações, da colônia de pescadores instalada nos arredores, com formas e cores simples e rudes, ora mansamente repousados sobre a areia, ora regressando da peregrinação diária, num tempo não muito longínquo, iriam desaparecer, tragadas pela cega inclemência da modernidade: onde e quando, dentro de alguns anos, alguém mais poderia ver as cenas que dilatavam o seu coração?” A exposição de Pollyanna Ferreira foi no Instituto Ricardo Brennand.
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2-3 TROMPE L’OEIL D os quadros Pitangas e Mangas-espada de Pollyanna Ferreira
Nela, na pintora, há um maior empenho ilusionista, carregando no trompe l’oeil; aliás, num dos quadros, um trompe l’oeil às avessas, num quadro representando umas mangasespada, quando rasga a lona da tela e simula a casca da manga rasgada e levantada, a “realidade” imitando a pintura, no caso. Também, noutro quadro, tampa com madeira uma janela real e pinta no lugar um quadro simulando a mesma janela, através da qual se tem uma vista da paisagem, pintada esta, em lugar da real. Também num quadro de pitangas substitui o talo da fruta por um de verdade. Diz a pintora: “Sou filha da terra, nasci em Recife no ano de 1977. (...) Gosto de expressar o que vejo de forma natural e simples. Acredito serem elementos que não podem faltar em meu trabalho. Adoro brincar com as possibilidades do efeito tridimensional. Fazer experiências me motiva. A cada obra sinto que preciso me superar. Essa busca incessante é como renascer, não faço pinturas tentando impressionar, sim desafiarme, para me sentir mais viva”..
DIVULGAÇÃO
Sonoras 1
ORQUESTRA Uma década da Criança Cidadã
Projeto que surgiu dentro de uma comunidade de baixa renda do Recife é hoje modelo de formação em música erudita e cidadania TEXTO Flora Norberto FOTOS Maria Chaves
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Um dia, Roma e o Recife foram unidos pelo amor à música e ao seu poder de transformação. A Orquestra Criança Cidadã Meninos do Coque conseguiu chegar ao Vaticano em 2014 para se apresentar ao Papa Francisco. Naquele momento, contou com a participação da experiente violonista japonesa Yoko Kubo. O encontro foi tão significativo que a orquestra retornou a Roma em 2015 para gravar o CD e o DVD Concertos de Bach para violino e orquestra, tendo Kubo como solista, com regência do maestro Nilson Galvão Jr. O cenário para o concerto foi a Basílica de São Martinho nas Montanhas, localizada no Bairro de Monti. No próximo dia 2 de setembro, às 19h30, a orquestra e Yoko se encontrarão novamente, desta
1 EM ROMA
iolinista japonesa Yoko Kubo foi solista V de apresentação com músicos da OCC sob regência de Nilson Galvão Jr.
distribuição de 200 ingressos, e o CD/ DVD está à venda por R$ 35,00. “O dia 31 de outubro de 2014, quando ocorreu a apresentação para o Papa Francisco, foi o momento mais alto da Orquestra Criança Cidadã nesses 10 anos. A violonista Yoko Kubo, de 73 anos, é católica, por isso ela foi convidada pela Bunkyo Gakky, a maior fábrica de instrumentos de corda do Japão, para o concerto. Depois desse encontro, a OCC e Yoko voltaram a Roma para gravar a obra de Bach para violino e orquestra”, fala, com empolgação, João Targino, idealizador e vice-presidente da Associação Beneficente Criança Cidadã (ABCC), entidade gestora da orquestra. O maestro Nilson Galvão Jr. conta que, no dia do concerto, estava programado um ensaio para gravação do DVD, que não ocorreu devido ao atraso na chegada dos instrumentos alugados para a ocasião. “Mesmo sem ensaio, fomos bem-sucedidos, porque a
Primeira apresentação deste concerto com solista japonesa aconteceu em Roma, com a presença do Papa vez no Recife, no palco do Teatro Luiz Mendonça (Parque Dona Lindu, Boa Viagem), para a realização de um concerto que irá comemorar os 10 anos da orquestra nascida de um projeto social e que contará com o lançamento do CD e DVD Concertos de Bach para violino. O álbum traz as três peças do alemão Johan Sebastian Bach (1685–1750) para violino e orquestra: os concertos em Lá menor (BWV 1041) e Mi maior (BWV 1042) e o Concerto para dois violinos em ré menor (BWV 1043). Antes das peças alemãs, o DVD abre com clássicos nacionais, como Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Zé Dantas. O concerto no Teatro Luiz Mendonça, com execução de obras de Dvorák e Paganini, será gratuito, com
preparação que tivemos antes de ir para Roma foi de muita cobrança.” A violinista Júlia Paulino, 15 anos, apesar de ainda não integrar a orquestra jovem, foi convidada pelo maestro para a gravação do CD/DVD. Júlia é a spalla (primeira violinista) da orquestra infantojuvenil do projeto social. Ingressou na escola de música da OCC em 2012 e, por se destacar, tornou-se spalla. A ida à Itália foi sua primeira viagem internacional, uma experiência preparatória para a transição ao grupo principal. Com a orquestra, Júlia esteve em apresentações em Tiradentes, Belo Horizonte e Natal, e em cursos em São Paulo e Brasília. “Quando teve vaga, minha mãe viu e me inscreveu na seleção. Me deram
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o violino e eu encarei. Foram vendo meu desempenho e fui crescendo aos pouquinhos. Às vezes, a gente nem espera que vai crescer tanto. Hoje em dia, minha mãe tem muito orgulho de mim e me incentiva para que eu cresça na orquestra”, diz a violinista. Diferentemente de Júlia, o violista Gabriel Francisco Silva, 18 anos, tinha feito viagens para concertos antes da gravação em Roma. Conheceu a Alemanha e Portugal. A música também o levou a São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e cidades do interior de Pernambuco. “Na orquestra, a gente fica mais próximo da nossa cultura, conhece lugares diferentes no Brasil e no mundo. Quero tentar fazer mestrado na Alemanha; me apaixonei pelo país. Tenho amigos lá”, diz Gabriel, que se comunica pela internet com jovens alemães que têm a música como hobby. Gabriel busca a profissionalização, por isso se prepara para ingressar no Bacharelado em Música da Universidade Federal de Pernambuco. Seu plano de mestrado na Alemanha não é gratuito: ele viu outros colegas fazerem o caminho de estudar fora do país, já que a Orquestra enviou alunos para estudar na Polônia, Áustria, República Tcheca, Alemanha e México. Ao entrar no projeto, em 2011, havia estudado violino por oito meses no Movimento Pró-Criança, mas o maestro lhe pediu que assumisse a viola, instrumento que estuda até hoje. A OCC estimula e prepara os meninos e meninas a entrar na universidade, não necessariamente no curso de Música. Mais de 20 dos seus integrantes foram aprovados para cursos na UFPE, incluindo Direito e Psicologia, por exemplo. Antonino Dias, Fagner Zumba Monteiro, Herlane Franciele, João Carlos Oliveira e Rebeka Muniz são estudantes do Bacharelado em Música da UFPE, iniciaram o curso entre 2012 e 2013. Rebeka passa o seu aprendizado musical para os que estão chegando e ensina iniciação musical. “O projeto se preocupa primeiramente com a cidadania, e a música é a ferramenta para isso. Mesmo que não haja a abordagem para que eles se tornem músicos profissionais, a cobrança é a mesma. A gente acredita que a disciplina
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2 DIEGO DIAS
Violoncelista entrou no projeto aos 11 anos e hoje estuda Música na UFPE
3 GABRIEL SILVA
Estuda para o bacharelado em Música e pretende o mestrado na Alemanha
4 JAMESON BATISTA
Sonoras
Garoto de 13 anos, se dedica ao fagote há três anos
5 JÚLIA PAULINO
Ela é spalla da seção infantojuvenil da OCC
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necessária para que eles estudem três ou quatro horas o instrumento é a mesma para se ele ingressar em uma faculdade de Direito, por exemplo”, explica o maestro Nilson Galvão Jr, que é diretor artístico e musical da orquestra desde janeiro de 2014.
SELEÇÃO DISPUTADA
O trabalho de iniciação musical com crianças de baixa renda da Associação Beneficente Criança Cidadã (ABCC) é feito em grupos divididos por faixa etária e instrumentos. Aqueles que passam a integrar a orquestra tornam-se bolsistas, os mais destacados podem monitorar as turmas, ajudando no aprendizado dos colegas e recebendo bolsa adicional. Além das orquestras, são formados duetos, trios, quartetos e quintetos de cordas; grupos de percussão, flautas doces e núcleo de música popular. Hoje, o projeto atende 230 crianças, adolescentes e jovens do
Coque, com idade entre sete e 21 anos. Os estudantes têm aulas de instrumentos de corda (viola, violino, violoncelo, contrabaixo), percussão, teoria musical, flauta doce, canto coral e instrumentos de sopro (flauta transversa, oboé, clarinete, trompa e fagote). As atividades são de segunda a sexta. Os alunos permanecem na OCC durante cinco horas, no contraturno escolar. No sábado, há os ensaios. O projeto inclui apoio pedagógico e reforço escolar; atendimento psicológico, médico e odontológico; e aulas de informática. Para participar, é preciso ser morador do Coque e estudar em escola pública. Quando há novas vagas, é feita uma seleção com provas de português, matemática e percepção musical. Há crianças e adolescentes que se interessam em ingressar depois de verem o desenvolvimento de irmãos e primos que já integram o projeto. Às vezes, a seleção não é fácil e traz
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exemplos de persistência. Este é o caso de Jameson Batista, de 13 anos, que estuda fagote há três anos e faz parte da banda de sopro. Jameson tem um primo que estuda percussão na OCC, por isso teve interesse pelo projeto. “Eu tentei seis vezes entrar, na sétima, eu passei. Se você quer um bom futuro, tem que ficar tentando o melhor. Mês passado, eu solei com a orquestra infantojuvenil na apresentação na Igreja Madre de Deus, foi uma oportunidade de mostrar o meu trabalho”, fala, com uma maturidade que impressiona. Na apresentação na igreja, foi apresentada uma obra de Vivaldi. Jameson conta que gosta da música barroca e sonha em se profissionalizar como músico e regente. Para isso, estuda diariamente o instrumento, durante uma hora e meia. No período da manhã, frequenta a escola regular e à tarde está na OCC. “Eu gosto da rotina cheia. Além da música, aqui aprendi a me disciplinar e a respeitar os outros, o que eles fazem”, diz. “O projeto dá oportunidade, não esmola; oportunidade e esmola são palavras que estão em pontos díspares. Às vezes, os dramas familiares dos alunos são grandes. Por isso que, desde o início, o maestro Cussy de Almeida dizia que tínhamos que ter apoio psicológico”, comenta João Targino.
ESCOLHA ESTRATÉGICA
João Targino, Cussy de Almeida e Nido Nery dos Santos são o trio responsável por essa história que relaciona música erudita e crianças de baixa renda.
INDICAÇÕES FORRÓ
ELECTROPOP
Independente
Because Music
FIM DE FEIRA Bomba cordão
METRONOMY Summer 08
O primeiro DVD ao vivo da banda pernambucana sintetiza, com perfeição, suas principais características: a força das letras, na maioria escritas pelo vocalista Bruno Lins, o zelo nos arranjos e a preocupação em não se prender a rótulos reducionistas. Bomba cordão traz um forró que não se furta a reconhecer o legado dos ícones – e não apenas do gênero, como mostra a canção Aos mestres – e que também aponta caminhos para uma renovação necessária, mas nunca esquecendo de acender a faísca para todo mundo dançar.
Dois anos após Love letters, a britânica Metronomy retorna com um disco repleto de possíveis hits, a começar por Love’s not an obstacle – séria candidata a ser a Everything goes my way deste quarto registro fonográfico de Joe Mount e cia. O título faz alusão ao verão de 2008, quando saiu a estreia Nights out e o mundo passou a prestar atenção na mescla de timbres e no som vintage que vinha das experimentações eletrônicas. Hang me out to dry, com a cantora sueca Robyn, e Old skool reforçam o aspecto retrô que a própria capa, aliás, explicita.
MPB
CHORO
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Quando eles criaram a Associação Beneficente Criança Cidadã (ABCC), em 2000, e a Orquestra Criança Cidadã Meninos do Coque, em 2006, havia o desejo de fazer-se presente numa área estigmatizada do Recife. De acordo com Targino, a escolha do Coque para a criação da orquestra foi estratégica: era a comunidade com o pior Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH–M) do Recife, com IDH–M de 0,632 para área formada pela Ilha Joana Bezerra, São José e Coque (Censo de 2000 do IBGE), resultado semelhante ao do Gabão, na África, que, no mesmo período, registrava IDH de 0,637. O violoncelista Diego Dias, 19 anos, reconhece a música como uma oportunidade diante da realidade da comunidade em que vive. Ele é um dos 44 músicos que foram a Roma para apresentação ao Papa e gravação do álbum. Diego, que entrou para o projeto social aos 11 anos e atualmente é estudante do Bacharelado em Música da UFPE, integra a Orquestra Cidadã Meninos do Coque como instrumentista, e desde
2014 atua também como monitor. Apesar de valorizar todas as oportunidades que tem tido dentro do projeto, ele faz questão de desmistificar a relação do bairro com a violência. “Aqui na orquestra, a gente consegue se desligar da violência e seguir um caminho diferente. Mas é preciso dizer também que hoje o nosso bairro é mais seguro que vários bairros nobres do Recife.” Além de integrar a OCC, Diego faz parte da Orquestra de Câmara do Conservatório Pernambucano de Música e da Orquestra Jovem de Pernambuco. Recentemente, foi a São Paulo para fazer um curso de Filosofia Suzuki, método utilizado na escola da Orquestra Cidadã. “Quero ser músico e também professor. Gosto do instrumento erudito na música popular brasileira, gosto especialmente de forró”, diz. Diego e seus colegas têm uma nova viagem internacional marcada para o final deste ano. O destino é Nova York, onde tocarão no Plenário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em comemoração ao aniversário da Unicef.
SIMONE MAZZER Férias em videotape Dubas Music
Quando Simone Mazzer venceu a categoria revelação do 27º Prêmio da Música Brasileira, em junho, a repercussão da conquista lançou um novo olhar a Férias em videotape, disco de 2015 – e o troféu, aliás, coroou uma intensa temporada criativa, que incluiu a atuação na cinebiografia de Nise da Silveira. O repertório é corajoso – tem Itamar Assumpção (Parece que bebe), Björk (Hyperballad) e Amy Winehouse (Back to black) – e as participações especiais encantam, com Elza Soares, Jam da Silva e Rovilson Pascoal entre os convidados.
C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 6 | 8 7
MÁRCIO HULK ALMEIDA Maxixe carioca Independente
Uma seleção se ouve nesse álbum: no cavaquinho, a maestria de Márcio Hulk Almeida e Abel Luiz; o ritmo de Rafael Mallmith no violão de 7 cordas; e o compasso de Guilherme Dizzy fechando o quarteto no pandeiro. Maxixe carioca é a primeira incursão autoral de Almeida, instrumentista de alto quilate que já emprestou seu talento a inúmeras formações. As onze composições atestam sua competência no papel de arranjador. Na faixa-título, por um exemplo, há uma inspirada combinação de cavaquinhos.
CON TI NEN TE
Criaturas Fidel Castro por Mello
Famoso por seus longos pronunciamentos, incluindo a sua defesa intitulada A História me absolverá, Fidel Castro veio a público, em abril, para um breve discurso. Nele, o líder cubano, que comandou o país de 1959 a 2006, quando passou o poder ao seu irmão Raúl Castro, sentindo o peso dos 90 anos completados este mês, disse: “Logo serei como todos os outros. Essa hora chegará para todos nós. Ficarão as ideias dos comunistas cubanos como prova de que neste planeta, se se trabalha com fervor e dignidade, se consegue produzir os bens materiais e culturais que os seres humanos precisam”.
C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 6 | 8 8
Esses alunos têm muito em comum: estudam na maior rede de ensino público do Brasil,
com 328 escolas em tempo integral. Desde 2015, quase 5 mil jovens como eles já embarcaram
para fazer intercâmbio no exterior. Isso graças ao Programa Ganhe o Mundo, uma das
iniciativas que elevam a qualidade da educação, promovendo o interesse e o aprendizado dos
alunos. Como resultado, Pernambuco tem a menor taxa de abandono escolar e 6 das 10
melhores escolas públicas de Ensino Médio do país, segundo o Enem. Na Região
Metropolitana do Recife, mais de 260 mil estudantes usam Passe Livre para ir e voltar das
aulas sem pagar ônibus. Desde 2015, 19 novas escolas foram entregues, em média, mais de
uma por mês. Educação é prioridade no estado todo. O futuro dos nossos jovens também.
Novas conquistas da educação a caminho Mais de 90 obras de infraestrutura escolar em execução.
Programa de Educação Integrada, em fase de implantação: incentivo do estado para a criação de escolas municipais em tempo integral.
Concurso público realizado em maio para a contratação de 3 mil professores.
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A NOVA CARA DOS MUSEUS PELO MUNDO E MAIS: GILVAN LEMOS | GARCÍA LORCA | AQUARIUS | WORLD CINEMA