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# 189
#189 ano XVI • set/16 • R$ 13,00
CONTINENTE
NOVA DRAMATURGIA
Texto teatral se reinventa no Brasil em múltiplas formas de criação SET 16
CAMBOJA | MONTEZ MAGNO | DOCES BÁRBAROS | LIGAS CAMPONESAS
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SETEMBRO 2016
BERNARDO CABRAL/DIVULGAÇÃO
aos leitores Nosso colaborador Pedro Vilela, responsável pela matéria de capa sobre as novas dramaturgias em curso, diz que qualquer pessoa que chegasse ao Brasil hoje e visse o panorama do que está em cena pensaria que o teatro nacional nasceu neste exato momento. Isto porque, alega, estamos vivendo um dos momentos de grande influxo criativo. Estão em processo várias formas de criar – e essa diversidade é o que enriquece o cenário da dramaturgia atual. “Atualmente, seja pelos que possuem perfil de uma ‘dramaturgia de gabinete’ – nome comumente dado à produção de um autor que realiza sua escrita de modo solitário, apresentando-a apenas quando julga finalizada –, seja no ‘dramaturgo de sala de ensaio’, aberto a questionamentos durante seu processo, aponta-se nos dois casos uma característica em comum: a busca pelo aspecto experimental de escrita. O que se vê é o recorrente abandono das formas tradicionais. Cada vez mais, as obras que chegam aos nossos palcos possuem uma escrita marcada por fragmentações, abandonando noções como enredo, tempo, espaço, lugar, representação, navegando pelo que o pesquisador alemão Hans-Thies Lehmann define como pósdramático”, escreve Vilela. É no sentido de apresentar os mecanismos e alguns atores deste atual momento do teatro brasileiro que seguimos nesta matéria especial, na qual também perfilamos jovens dramaturgos, como o cearense Rafael Martins e a mineira Grace Passô, que ilustra esta página. Outro assunto sobre o qual gostaríamos de chamar a atenção neste editorial, que converge para a criação – desta vez no campo cinematográfico, são os núcleos criativos, abordados por Luciana Veras em Claquete. A partir deste fomento, lançado pela Agência Nacional do Cinema/Ancine em 2014, roteiristas, produtores e realizadores de todo o Brasil estão se reunindo para desenvolver projetos independentes de documentários, curtas, longas e séries ficcionais. Um trabalho que começará a mostrar seus resultados em 2017.
sumário Portfólio
Clara Ianni
6 Colaboradores +
7 Cartas
8 Entrevista
Continente Online
66 Claquete
Núcleos criativos Grupos criados pelo programa Brasil de Todas as Telas tem como principal objetivo desenvolver a escrita do roteiro
+ Expediente André Tavares Arquiteto português questiona os atuais processos de revitalização do patrimônio em seu país
20 Balaio
Freddie Mercury Mesmo depois de sua morte, apresentação “virtual” do vocalista provoca reverência da plateia
38 Conexão
APPS Novos aplicativos voltados para crianças unem entretenimento ao estímulo à criatividade
42 Viagem
Camboja Siem Riep reúne templos do Império Khmer, primeira civilização asiática de que se tem notícia
70
A obra da jovem artista paulista investiga e discute os elos entre arte, política, sociedade contemporânea e ideologia em vídeos, instalações, gravuras e fotografias
14
Matéria Corrida José Cláudio Paixão
72 Visuais
Calder Obras do artista norteamericano estão em exposição em São Paulo até final de outubro
76 Palco
Acordes e traçados Obra compila escritos sobre a dança no Recife, a partir de eixos temáticos
78 Entremez
onaldo Correia de Brito R O destino manifesto brasileiro
88 Criaturas
Luis Fernando Verissimo Por Sávio Araújo
Cardápio Levain
A fermentação natural de massas e pães, processo mais lento que o biológico, traz maior sabor ao produto final, que também torna-se leve e de fácil digestão
52 CAPA Peça Abnegação II, foto de Jennifer Glass
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Capa
História
A dramaturgia brasileira contemporânea, seja produzida de modo individual ou coletivo, vem se consolidando com uma clara aposta em aspectos experimentais
Zito da Galileia lança, este ano, pela Cepe Editora, livro que reúne suas memórias sobre a história das Ligas Camponesas em Pernambuco
Sonoras
Leitura
Há 40 anos Doces bárbaros e Falso brilhante ganhavam os palcos do país, marcando para sempre a história das performances musicais brasileiras
Parte da obra poética do crítico, artista plástico e poeta pernambucano chega ao público em Soma: poesia, iniciativa que reúne cinco livros do autor
Texto teatral
22
Espetáculos
58
Luta pela terra
46
Montez Magno
80
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Set’ 16
colaboradores
Eduardo Sena
Márcio Bastos
Pedro Vilela
Samarone Lima
Jornalista com ênfase em gastronomia e analista de comunicação empresarial
Jornalista, colunista e crítico teatral no Jornal do Commercio e no blog Terceiro Ato
Gestor, diretor artístico e idealizador da Trema! Plataforma de Teatro
Jornalista, poeta e escritor, autor de O aquário desenterrado e A invenção do deserto
E MAIS Beatriz Macruz, jornalista. Daniela Nader, fotógrafa. Guilerme Novelli, jornalista. Leonardo Vila Nova, jornalista e músico. Renato Contente, jornalista e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE. Sávio Araújo, caricaturista e artista plástico. Thiago Soares, jornalista, professor e pesquisador do curso de Comunicação da UFPE. Yellow, designer e músico.
DRAMATURGIA BRASILEIRA
HISTÓRIA
Complementando a matéria de capa, disponibilizaremos, em nosso site, alguns trechos de MARÉ / PROJETO bRASIL, publicação que reúne os textos de dois espetáculos do diretor e dramaturgo Marcio Abreu, lançada pela editora Cobogó este ano. Também será possível ler a entrevista na íntegra feita pelo repórter Márcio Bastos com o dramaturgo pernambucano radicado em São Paulo, Newton Moreno. Por fim, o internauta ainda poderá conferir a matéria de capa da edição de julho (#187) deste ano, que teve como temas o teatro e a globalização, assinada por Clarissa Macau.
Confira o material iconográfico que compõe o livro A história das Ligas Camponesas – Testemunho de quem a viveu, de Zito da Galileia, que será lançado pela Cepe Editora.
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SONORAS Assista a vídeos de Falso brilhante e Doces bárbaros, e leia a íntegra das entrevistas com Jom Tom Azulay e Fernando Marques sobre a relevância desses espetáculos.
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR
SHIKO
Paulo Henrique Saraiva Câmara
MOACIR SANTOS
SECRETÁRIO DA CASA CIVIL
Gostaria de informar que recebi o exemplar da revista Continente com a reportagem, escrita por Débora Nascimento, sobre o meu pai. Aprecio o excelente trabalho da jornalista, inclusive as fotos selecionadas. Muito obrigado.
Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo
MOACIR SANTOS JR
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO
PASADENA – CA
Bráulio Mendonça Meneses
DO FACEBOOK
MOACIR SANTOS Sou graduando no curso Licenciatura em Música pela Universidade Federal de Pernambuco, saxofonista e coordenador do grupo Outra Coisa, no qual buscamos desenvolver um trabalho através de uma releitura da obra do maestro Moacir Santos. Assim como tantos outros amantes da obra do maestro, é muito bom saber que cada vez mais ele vem conseguindo um grande reconhecimento aqui no seu país de origem. Parabéns, revista Continente! Fiquei muito feliz com a matéria publicada no dia 6 de agosto de 2016, data do aniversário de 10 anos da morte de Moacir Santos. DENNIS LUAN RECIFE – PE
PORTFÓLIO A Continente de agosto traz uma matéria sobre o meu trabalho! Estou muito feliz. Obrigada à revista e a Marina Moura. Que alegria imensa estampar nas páginas dessa revista de cultura que eu acompanho e que tanto admiro. No desenho que fiz para o Janela Internacional de
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação)
Cinema do Recife, o Edifício Caiçara aparece parcialmente demolido. Assim ele permaneceu por muito tempo até que o puseram totalmente ao chão. A imagem brutal do prédio pela metade simbolizava menos da nossa miséria como projeto de cidade, e mais da nossa guerreira esperança: esperávamos, com ardente coração que a metade demolida seria reconstruída. Imaginávamos, de fato; acreditamos nisso. Ter acreditado nisso é muito mais belo do que frustrante. E é isso que eles não entendem. CLARA MOREIRA
Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Alef Pontes, Erika Muniz, Maria Luísa Falcão e Marina Moura (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br
BELO HORIZONTE – MG
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se
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ANDRÉ TAVARES
“A preservação patrimonial é muito de imagem” Curador da Trienal de Arquitetura de Lisboa, que acontece entre outubro e dezembro, professor português esteve em seminário DOCOMOMO, no Recife, quando conversou com a Continente sobre práticas arquitetônicas no Brasil e em Portugal TEXTO Luciana Veras
CON TI NEN TE
Entrevista
André Tavares é um arquiteto inquieto. O semblante tranquilo, a voz calma e o forte sotaque luso podem até não deixar transparecer, porém suas credenciais evidenciam: aos 40 anos, ele é um dos curadores gerais da Trienal de Arquitectura de Lisboa, que transcorre entre outubro e dezembro na capital portuguesa; é professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, na qual se formou; e é autor de vários livros, entre eles Uma anatomia do livro de arquitectura, que em abril recebeu um prêmio na Bienal Ibero-Americana de Arquitectura e Urbanismo. Dias depois de tal premiação, Tavares esteve no Recife, como palestrante do 11º Seminário DOCOMOMO_Br, encontro bienal voltado para preservação do Movimento Moderno. A difusão do pensamento arquitetônico também é, pois, um dos seus campos de atuação. Foi ao fim de uma manhã ensolarada que ele conversou com a Continente sobre diversos aspectos da práxis arquitetônica e, sobretudo, sobre a relevância de pensar a arquitetura. Para ele, é crucial debater não somente o que se refere ao projeto urbano de uma
cidade, mas “no sentido de produção do espaço cultural em que nos sentamos para ser capazes de aprender uns com os outros”. “Arquitetura é o reflexo daquilo que as pessoas são, daquilo que fazem e de como elas trabalham. Ser arquiteto, hoje, é ter a capacidade de escutar os anseios da população e de quem habita a cidade e não apenas de quem a explora; e reconhecer o que é arquitetura enquanto disciplina e o papel que ela representou no Renascimento, na Revolução Industrial e para a cidade moderna”, ressalta. CONTINENTE Como sua mais recente publicação, Uma anatomia do livro de arquitectura, oferece outro olhar para a história da arquitetura? ANDRÉ TAVARES O livro que publiquei trabalha muito com a representação e com a perspectiva de como as ideias de arquitetura viajam não apenas nos edifícios, mas também no espaço do livro, e como essas viagens são fundamentais para a forma e para construção da arquitetura das nossas cidades e nossas sociedades. Isso casa bem com o trabalho que tinha
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feito sobre Joaquim Cardoso, Ricardo Silveira, Lúcio Costa, enfim, sobre o movimento moderno no Brasil. Novela bufa do ufanismo em concreto – Episódios avulsos das crises conjugais da arquitectura moderna no Brasil (1914–1943) saiu em 2009 e trazia uma visão sobre a modernidade na arquitetura brasileira e que era, no fundo, uma visão crítica a partir das representações da arquitetura fora da arquitetura. Por exemplo, como Monteiro Lobato interferiu na história da arquitetura moderna e como a presença de algumas vanguardas contribuíram para construir uma história alternativa ao, digamos, discurso oficial. Quando estive no Brasil, vim trazer uma visão de fora, de quem partilha algumas afinidades culturais, a começar pela língua, mas que vem de outro universo, contexto, cultural e social. CONTINENTE Portugal e Brasil possuem essa inegável relação de filiação, mas as grandes cidades brasileiras se desenvolveram de uma forma em que o patrimônio colonial, barroco ou moderno não foi preservado, ao contrário do que se vê em cidades como Lisboa e o Porto. Os brasileiros, ao viajar
VALTER VINAGRE/DIVULGAÇÃO
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para as metrópoles portuguesas, tecem loas para a sinergia entre passado e presente, mas a arquitetura contemporânea de uma cidade como o Recife é quase uma negação desses preceitos modernistas e o patrimônio modernista aqui é pouquíssimo preservado. ANDRÉ TAVARES Estava a olhar para uma fotografia do Recife e pensei: “olha uma fotografia de Milão agora”. Ah, não, era o Recife dos anos 1950. Não tenho dúvida, essencialmente, de que se trata de um problema de preservação e manutenção. Diria o mesmo para o Porto e para Lisboa. E acho que há um
CONTINENTE Configurações geopolíticas que impactaram no desenho social e urbano? ANDRÉ TAVARES Sim, com a União Europeia, a ênfase na economia de serviços, no digital, tirou as sedes das poucas empresas que existiam. Perdendo a atividade e perdendo população, a cidade ficou uma ruína, parecida, no
sensíveis. Diria que os pavimentos de madeira são a melhor característica para explicar isso de uma maneira compreensível. Mantém-se a fachada, renova-se tudo, mas aquilo que eram pavimentos – que, quando se andava em cima, gingava-se ligeiramente – são substituídos por lajes, que tem uma sonoridade, uma acústica e qualidade física diferente, mesmo que visualmente possam ser parecidos. E porque os padrões de conforto são diferentes, muitas coisas também o são. Imagina que o pé-direito, a altura
Entrevista
DIVULGAÇÃO
CON TI NEN TE
Mas o Porto perdeu muita população e atividades econômicas nos últimos 20 ou 30 anos, em consequência de mudanças estruturais importantes, nomeadamente o reforço de Lisboa como capital.
potencial imenso no Recife, muito mais do que em São Paulo até, eu diria, de uma certa cidade que ficou ao abandono. Ou seja, após passear no Recife, reconheci o postal, embora um pouco mais decadente, degradado. O que parece não haver é uma disponibilidade econômica de reconhecer esse passado, e, portanto, haver uma necessidade de o limpar. Vivi sempre no Porto. O que tenho assistido nos últimos anos é que o Porto passou por uma fase de abandono. É uma cidade pequena – os padrões europeus são menores que os brasileiros; uma cidade relevante no nível europeu, mas tem 260 mil habitantes. A região metropolitana tem 1,3 milhão e estavam a me dizer que João Pessoa, por exemplo, tem um milhão de habitantes.
limite, com o Recife – obviamente, não com as diferenças sociais brutais e difíceis que conhecemos do Brasil. E o turismo traz essa recuperação do patrimônio – é óbvio que reconhece esse patrimônio histórico e convencional, mas a cidade se transformou numa caricatura de si própria. É muito pra quem sempre viveu no Porto. Em Lisboa, passa-se um pouco mesmo. É constrangedor um discurso sobre reabilitação, quando verdadeiramente está a se destruir tudo, apesar de toda a gente reconhecer isso como reabilitação. CONTINENTE É um paradoxo. ANDRÉ TAVARES É um paradoxo estranho. A imagem da cidade parece, de fato, melhor. Há coisas
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do compartimento, que antes era de 3,5m, agora passou para 2,70m para caber mais um piso. Isso muda tudo: o que era uma escada que servia grandes apartamentos, agora serve cinco miniapartamentos. A cidade verdadeiramente é outra. A preservação patrimonial é muito de imagem. Não quer dizer que não haja exceções e que a cidade não esteja melhor. Mas, genericamente, é muito agreste. CONTINENTE Você circulou pela Europa para fazer a pesquisa que desembocou no seu último livro, passando por cidades como Roma, Paris e Londres. Reconhece esse padrão de reabilitação de fachada, por assim dizer, em outras metrópoles do continente?
ANDRÉ TAVARES Eu diria que Portugal tem uma grande diferença em relação ao resto da Europa e, inclusive, para a Espanha. É um país que passou do século XIX para o século XXI. O século XX existiu, claro, e foi importante em muitos aspectos. O correto é que a maioria dos grandes sistemas de produção que tínhamos nos anos 1970 e 1980 do século XX era um arremedo feito nos anos 1930 daquilo que já não estava a funcionar no final do século XIX. Mesmo que se diga que passou, nos anos 1940 e 1950, para a Europa. Tudo isso significa que a integração europeia foi rápida e abrupta, no sentido de desmantelar as estruturas produtivas, que estavam claramente desatualizadas e precisavam ser repensadas. Mas foram desmanteladas para Portugal passar a uma economia de serviços e circulação do capital europeu, essencialmente, e sem que tenha havido uma verdadeira construção de produção alternativa. O que aconteceu? Entre 1989 e 2010, a mancha de construção do país mudou absolutamente, como não mudou em nenhum lugar – talvez aquilo que se passou em São Paulo nos anos 1960/1970. CONTINENTE Uma verticalização excessiva? ANDRÉ TAVARES Não uma verticalização, mas uma horizontalização, com a cidade se espraiando. Havia uma falta de habitação tremenda, com muita gente sem casa. Hoje temos 4 milhões de casas a mais em um país de 10 milhões. O excesso de habitação é brutal, mas há gente sem casa. Se o imobiliário e a indústria da construção se expandiram muito de 1990 a 2008, em 2009 praticamente começaram a desaparecer e, em 2011, passaram a zero. Essa mudança foi rápida; uma transformação abrupta que não se passou nos países europeus, talvez no Leste. E o que se passou a partir da crise imobiliária de 2008 foi… turismo. Houve um corte radical na economia e, quando a circulação de dinheiro parou, uma grande percentagem da população ficou no desemprego. Chegou a atingir 18%, muito para o padrão europeu, sobretudo o desemprego jovem. Quando isso
aconteceu, a aposta foi turismo, turismo, turismo e turismo. Portanto, a reabilitação do Porto e Lisboa faz essa conta de transformar aquilo que eram antes comerciantes de intermediários na região metropolitana do Porto em serventes de hotel, donos de café ou de lojas de suvenir. Isso traz não só uma transformação física da cidade, para a qual tenho dúvidas, como também uma transformação social violenta. Não vejo isso acontecer no resto da Europa. Podemos dizer que existe forte em Florença, Roma, Paris, mas Roma
“Oscar Niemeyer é o melhor exemplo de como a arquitetura do autor a certa altura passou a ser destrutiva. Um arquiteto talentosíssimo, mas cujas últimas obras são duvidáveis”
é uma cidade turística desde o século XVI. O impressionante no Porto e em Lisboa é a velocidade claramente predatória com que isso acontece. Basta um vulcão entrar em erupção na Islândia e um terrorista explodir um café em outro lugar e a cidade colapsa no dia seguinte. Mas eu devo ser das pessoas mais pessimistas em relação ao turismo em Portugal. CONTINENTE E você se considera otimista ou pessimista em relação ao papel que a arquitetura deve ocupar nessas novas configurações urbanas do poder econômico? ANDRÉ TAVARES Tenho uma perspectiva mais do que otimista em relação à arquitetura e uma perspectiva pessimista em relação aos arquitetos.
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CONTINENTE Quem pratica não estaria à altura do propósito? ANDRÉ TAVARES Eu diria que o conhecimento arquitetônico é uma coisa extremamente valiosa e qualificada. A prática da arquitetura, e sua presença cultural na sociedade, está cada vez mais remetida à tecnocracia. E, portanto, o projeto não é avaliado pela sua competência arquitetônica, mas pela sua viabilidade econômica. Os arquitetos são condicionados, eu diria naturalmente e diria que não é responsabilidade direta deles, para uma posição extremamente difícil nessa coisa complexa que é a produção da arquitetura, a construção. Talvez o essencial agora é que muito mais importante do que o arquiteto é o cliente; muito mais importante do que o cliente é a construtora; muito mais importante do que a construtora é a autoridade municipal e estadual que permite que a construção se faça; muito mais importante do que todos os personagens é o banco que financia a operação. O arquiteto está apenas no meio disso tudo. CONTINENTE O arquiteto perdeu força como um agente capaz de contribuir? ANDRÉ TAVARES Perdeu força, mas sobretudo diria que a cultura perdeu força, o que é mais danoso. Se fosse só pela arquitetura, estávamos todos felizes… Não seria grande coisa (risos). Falando da perspectiva do Recife, uma cidade que tem enfrentado debates fortes, que chegam inclusive à Europa, percebe-se que a arquitetura pode ser catalisadora, enquanto forma de conhecimento, de uma forma de cultura. Mas o que prevalece não é ela. A sensação com que fico é de que a sua posição, dos círculos culturais, dos intelectuais enquanto pessoas que se fazem ouvir na sociedade, foi substituída na Europa pela tecnocracia e pela economia. CONTINENTE Pode-se dizer o mesmo do Brasil, que vive um momento sociopolítico conturbado em que o mercado mostra toda sua força e suas óbvias preferências. Em 2015, a Continente publicou uma reportagem sobre arquitetura contemporânea e muitos dos entrevistados constataram que o arquiteto havia perdido força e que a arquitetura caminhava, dentro do capitalismo, para
que coincide com a história da civilização, mais até do que a história econômica. Por outro, por ser um forma de conhecimento que ainda é reconhecida, como é reconhecido o arquiteto enquanto persona e pessoa que transporta o conhecimento. Este domínio existe sobretudo na nossa cabeça; o arquiteto consegue estar no limite de tornar público, através do seu trabalho, sua posição ética, moral, individual enquanto autor. Não quero com isso fazer uma apologia da arquitetura do
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uma sustentabilidade de butique. No Recife, cidade de muitos desafios, o capitalismo termina por criar uma arquitetura do medo, ao segregar os que moram em torres de luxo e os que habitam favelas ou mesmo as ruas. ANDRÉ TAVARES Percebo completamente e acho que o medo é um exercício poderoso nos dias que correm. Não só na arquitetura, mas em todos os aspectos da sociedade. Na Europa, tivemos isso de uma maneira como nunca tínhamos experimentado – e eu diria que o terrorismo não é novo. Mas isso se cultiva mesmo no
CON TI NEN TE
Entrevista discurso econômico: “Ah, se você não fizer isso, tudo vai desaparecer e falir, o mundo vai acabar amanhã”. Nada vai acabar, tudo vai continuar, melhor ou pior. A arquitetura é apenas um reflexo dessas circunstâncias culturais mais amplas. Por isso é que são tão importantes as ocasiões em que podemos debater, trocar ideias e construir uma distância aos discursos hegemônicos da sociedade, para perceber efetivamente como são os mecanismos que fazem as coisas funcionar e o que está em jogo em cada um desses momentos. A arquitetura é chave. Por um lado, por implicar uma forma, ter uma cultura visual extremamente forte e uma história poderosíssima,
autor, mas dizer que a dimensão da autoria, da responsabilidade corresponde também à dimensão do conhecimento que são as pessoas que o transportam. CONTINENTE Como na Europa os intelectuais perderam preponderância e estávamos falando sobre a arquitetura de autor, para você, quem são os arquitetos que conseguem resgatar esse pensamento arquitetônico e desenvolver suas obras como elementos de discussão sobre a cidade? ANDRÉ TAVARES Diria que esses arquitetos são os mais novos, os que agora tem 20 e poucos, 30 anos. Não é o Álvaro Siza, não é o Eduardo Souto de Moura, não é o Paulo Mendes da Rocha e definitivamente
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não é o Rem Koolhaas; esses já cumpriram o seu papel. Diria que esse culto do autor, construído nos anos 1990, particularmente nos anos 2000, e que teve sua utilidade, acabou por esvaziar um pouco a possibilidade de aparecerem novas vozes. Acho que o Oscar Niemeyer é o melhor exemplo de como a arquitetura do autor a certa altura passou a ser destrutiva. Um arquiteto talentosíssimo, excelente, mas cujas últimas obras são duvidáveis em muito níveis. Será que é correto e justo ignorar a
“O que tenho assistido nos últimos anos é que o Porto passou por uma fase de abandono. Perdendo a atividade e a população, a cidade ficou uma ruína, parecida, no limite, com o Recife”
contribuição que ele teve e que foi valiosíssima e incrível? Não, nunca, mas, a partir de determinada altura, se essa contribuição é para cilindrar a hipótese do novo, e de enfrentarmos os desafios que estão à nossa frente, muito obrigado, mas prefiro que não. Até porque é extremamente difícil para os arquitetos conseguirem construir hoje. É fundamental haver acesso à construção ou a possibilidade de construir e esse acesso é extremamente difícil, pelo menos na Europa. Ao fim de cinco ou 10 anos sem construir, chega-se a uma determinada idade sem ter obra para mostrar e depois já não dá, já são velhos, virão outros novos, com novas ideias. Souto de Moura, quando lhe
encomendaram o metrô do Porto, tinha 44 anos de idade. Em termos de arquitetura, era um bebê. Agora, compete aos jovens arquitetos não serem cilindrados. Nem eu estou à espera, nem Souto de Moura nem Mendes da Rocha, de que os projetos caiam do céu. Portanto, os novos arquitetos cheguem à frente, lutem pelos seus espaços. Encontrem as estratégias mais corretas e tragam à praça pública as respostas que precisamente encontraram. CONTINENTE Nessa linha, qual a importância de um evento como a Trienal de Lisboa? ANDRÉ TAVARES A Trienal é estranha. É um evento que funciona em várias frentes. A primeira, que é paga, é o turismo, a promoção de Lisboa enquanto cidade. Ou seja, aquilo que estava há pouco a criticar permite também que outras coisas aconteçam. A Trienal consegue concentrar em Lisboa um conjunto de debates e pessoas e criar um modelo singular, extremamente intenso, em que vem gente de toda a Europa para trocar ideias e contatos sobre coisas que, em princípio, não são conhecidas aqui ou ali. É uma oportunidade singular de trazer outro conhecimento para a cidade. É diferente das bienais e trienais de arte, em que claramente há uma valorização de mercado. O artista que vai a uma bienal no ano 1 tem, depois, os preços de suas obras multiplicados, pois tanto os bancos como as galerias estão a financiar esse esquema de multiplicação. No caso da arquitetura, não funciona assim, porque o que os arquitetos procuram são encomendas e, muitas vezes, eles próprios têm que buscar projetos que pagam pouco ou, às vezes, até menos do que as despesas que eles possuem. Mas é uma oportunidade de trazer a público ideias relevantes sobre o impacto que os trabalhos deles podem ter e isso é vantajoso para a sociedade, que pode assistir e descobrir as coisas novas que estão a acontecer. É tão fundamental discutir arquitetura quanto discutir cinema ou política e tomar consciência de que os atos que praticamos são essencialmente atos culturais e, como tal, formam o mundo em que vivemos.
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FOTOS: GALERIA VERMELHO/DIVULGAÇÃO
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Clara Ianni
ARTE, POLÍTICA, SOCIEDADE E IDEOLOGIA TEXTO Luciana Veras
Em outubro de 2015, a exposição do 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil ocupava o Sesc
Pompeia (SP), colosso arquitetônico projetado por Lina Bo Bardi (1914-1992). Embora monumental, a construção parecia abraçar as obras ali mostradas, emprestando o tom ocre de suas paredes a vídeos que descortinavam paisagens diversas – subjetivas, metafóricas e literais. Em uma das salas montadas para o festival, croquis da construção da capital do Brasil eram exibidos em duas telas lado a lado; além de ver os esboços do que seria Brasília, o visitante ouvia as vozes de duas figuras proeminentes na concepção da metrópole erigida no meio do nada – os arquitetos e urbanistas Oscar Niemeyer (1907-2012) e Lúcio Costa (1902-1998). Eles, contudo, não se referiam aos famosos traços e desenhos urbanos pelos quais também seriam celebrados, e, sim, a uma chacina ocorrida em fevereiro de 1959 em um dos canteiros de obras. Evitando responder aos questionamentos feitos pelo documentarista Vladimir de Carvalho, pareciam sacramentar a máxima de que a História é escrita, de fato, pelos vencedores. A fricção entre uma obra reconhecida mundialmente como um dos maiores feitos arquitetônicos do século XX, a fúria com que foram tratados dezenas dos homens que se devotavam a construí-la e o soterramento dessa memória é uma das chaves de Forma livre, videoinstalação de 2013 de Clara Ianni. Havia um outro trabalho dessa paulistana nascida em 1987 no ousado conjunto amealhado pelo 19º Videobrasil: Linha, também de 2013. Tratava-se de “uma série de gravuras de linhas que marcaram a invenção do território brasileiro, derivadas de tratados históricos ou conflitos; deixo só as linhas, o que elas têm de conteúdo político e como elas desenham e redesenham a sociabilidade e o afeto de humanos com humanos e sociedades com sociedades”, nas palavras da própria artista visual. Forma livre e Linha lhe
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3 Páginas anteriores 1 NATUREZA MORTA OU ESTUDO PARA PONTO DE FUGA
Obra foi mostrada na 12ª Bienal de Istambul, em 2010 Nestas páginas 2-3 TRATADO
Olhar incisivo sobre a posse do presidente interino Michel Temer 4-5 COTIDIANO
RESIGNIFICADO
Em Trabalho abstrato (2010) e Totem (2011), objetos são reposicionados para discutir lugar social da arte
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FOTOS: GALERIA VERMELHO/DIVULGAÇÃO
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renderam um dos prêmios de residência internacional do festival. Graduada em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Visual and Media Anthropology pela Freie Universität, de Berlim, Clara Ianni promove mergulhos investigativos em suas obras, com foco nos elos que se estabelecem entre arte, política, sociedade contemporânea e ideologia. Da 31ª Bienal de São Paulo, em 2014, por exemplo, participou com o vídeo Apelo, em que dividiu a autoria com Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio – criado por mulheres que perderam seus filhos assassinados pela Polícia Militar de São Paulo em maio de 2006, em resposta aos ataques criminosos perpetrados pelo Primeiro Comando da Capital/PCC. As sequências, filmadas no Cemitério de Perus, na zona norte da capital paulista, evidenciam a naturalização das mortes cometidas “em nome da lei”e, mais uma
6-8 CUBO Instalação incita a intervenção direta do visitante
vez, a repressão da memória – o local foi um dos pontos de desova para cadáveres de presos políticos durante a ditadura militar que vigorou até 1985 no Brasil. Em Natureza morta ou estudo para ponto de fuga (2011) e Cubo (2010) a violência surge com outras camadas de leitura. Neste último, parte da exposição coletiva Trash Metal/Quem tem medo?/Vão, na galeria paulistana Vermelho, com curadoria da artista Dora Longo Bahia, um objeto montado a partir de chapas de zinco era apresentado com um taco de beisebol ao lado, dando ao visitante a oportunidade de saciar suas pulsões de agressividade, destruindo-o. No primeiro, que integrou uma coleção chamada Untitled na 12ª Bienal de Istambul, nove chapas de alumínio se ladeiam, em perfeita simetria, com dezenas de perfurações de balas disparadas por armas de calibres distintos (38, 22 mm, 12, entre outros). Muitos furos se chocam com a rigidez da igualdade das chapas, idênticas
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9 LINHA Série de gravuras dá novo sentido aos contornos do território brasileiro
10-13 APELO Exibido na 31ª Bienal de SP, vídeo constrói elos entre memória e violência
e retangulares, como se os rastros violentos colidissem, ironicamente, com a monótona repetição do cotidiano. Em sua obra mais recente, a série de fotografias Tratado, a artista desconstrói uma imagem obtida no momento em que o presidente interino do Brasil, Michel Temer, é empossado. Qual o sentido daquela foto e dos detalhes das mãos – todas brancas, todas masculinas – que assinam documentos preparados para legitimar um governo nascido da refutação a uma eleição democrática? Porém, assim como nas esculturas Trabalho concreto (2010) e Totem (2011), não se deve esperar respostas imediatas de Clara Ianni. Uma janela para a reflexão é o convite que ela faz, provocando os espectadores, com pertinência e acuidade, a se relacionar com suas obras a partir de uma indagação premente: qual é o lugar da arte na contemporaneidade saturada de informações, excessos e significados?
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PAI DE SELFIE
A força de Farrokh Bulsara Zanzibar, uma pequena ilha de apenas 2,5 quilômetros quadrados, ligada à Tanzânia, no leste africano, foi, há 70 anos, berço daquele que é apontado em vários rankings como o maior vocalista do rock: Farrokh Bulsara. O nome do descendente de indianos está oculto sob a alcunha artística com a qual se tornou conhecido no mundo, Freddie Mercury, artista que reunia um bom punhado de predicados: multi-instrumentista, compositor, produtor e, principalmente, cantor versátil, barítono que podia alcançar os tons de tenor e até soprano. Vítima fatal da Aids, em 24 novembro de 1991, o astro continua a reverberar seu canto, seja em comerciais de TVs, filmes ou eventos. Um dos atributos de Freddie Mercury – a interação com a plateia, memorável em shows históricos do Queen, como no Rock in Rio, no festival Live Aid e no estádio de Wembley – o cantor alçou o posto de maior bandleader da história. Há quatro anos, tivemos mais uma prova disso. No encerramento das Olimpíadas de Londres, antes da apresentação dos remanescentes da banda, o guitarrista Brian May e o baterista Roger Taylor, que executaram a estrondosa We will rock you, telões exibiram a imagem de Freddie Mercury. Vinte anos após sua morte, demonstrou, em plena arena olímpica, sua força infinda. Numa sequência de “chamada” e “resposta” de solfejos, regeu uma plateia de 80 mil pessoas e, foi, diante de uma audiência de 4 bilhões de telespectadores, mais uma vez, aplaudido. DÉBORA NASCIMENTO
CON TI NEN TE
A FRASE
Um pai norte-americano encontrou uma saída para criticar algo que o incomodava: as fotos sensuais de sua filha no Instagram. A solução: passou a imitálas. A trollagem repercutiu na internet e ganhou o noticiário internacional. Segundo contou à CNN, Chris “Burr” Martin, o autointitulado selfie dad, fez isso porque muitos garotos estavam exagerando na seção de comentários. “Para acalmar os ânimos, publiquei uma fotografia de brincadeira e perguntei: ‘E o que acham de mim, rapazes?’”. No princípio, Cassie Martin, de 19 anos, não gostou da ideia: “Ela revirou os olhos, no início, mas quando viu que seus amigos acharam engraçado, encarou melhor”. Agora, Burr, que é comediante, está com 43 mil seguidores na rede social, quase o dobro dos que seguem a filha. Ela, por sua vez, passou a postar cliques ao lado do pai, diminuiu as selfies sensuais e vem apostando nas bem-humoradas. (DN)
Balaio O ADORÁVEL RANZINZA Tommy Lee Jones atuava em pequenas produções para a TV, até surgir em sua vida Samuel Gerard, de O fugitivo (1993). O sucesso como o detetive o levou a interpretar mais papéis de “durão”. Foi então que o diretor Barry Sonnenfeld percebeu que o tipo sisudão do texano, se bem-explorado, poderia se tornar cômico. Assim, presentou-o com o irritadiço Kay, de Homens de preto (1997), blockbuster que lhe daria respaldo, inclusive, para dirigir seus próprios filmes, como o faroeste Dívida de honra, concorrente à Palma de Ouro em 2014. Na ocasião, o jornalista Rodrigo Salem fez uma entrevista, publicada na nossa edição de julho de 2015, quando o título foi lançado no Brasil. Durante a conversa, o repórter conseguiu uma façanha: extraiu um sorriso de Tommy, o adorável ranzinza que, neste mês, completa 70 anos. (DN)
“Pássaros criados em gaiolas acreditam que voar é uma doença” Alejandro Jodorowsky, cineasta e poeta e mexicano
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ARQUIVO
A VOLTA DA ALQUIMIA A turnê dos Novos Baianos, este ano, reúne os músicos Moraes Moreira, Baby do Brasil, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão, e resgata o clássico de 1978 Acabou Chorare, para alegria de fãs de várias gerações que desejavam ver ou rever o grupo tocando ao vivo o emblemático disco da música brasileira. Os fãs de Jorge Ben Jor também anseiam um dia ver show do disco Tábua de esmeralda (1974) e criaram, há alguns anos, a campanha “Queremos a Tábua de esmeraldas ao vivo” nas redes sociais, com o propósito de ouvir canções como Os alquimistas estão chegando e Menina mulher da pele preta em seus arranjos originais de violão. Com o retorno do grupo baiano aos palcos, os fãs de Ben Jor reviveram a campanha nas redes sociais. O álbum foi o décimo primeiro da carreira do artista e trouxe para a música brasileira, na década de 1970, referências à alquimia e ao ocultismo. Vários artistas se juntaram aos fãs e fizeram vídeos pedindo o show, como Tulipa Ruiz, Emicida e Lucas Santtana . Os amantes do álbum “esperam cantando”. (Erika Muniz)
VARINHA DE 20 MIL LIBRAS Há quase duas décadas era lançada uma das sagas fantásticas de maior sucesso no mundo com o livro Harry Potter e a Pedra filosofal. Um erro, porém, acabou passando na revisão da Bloomsbury, responsável pelo lançamento, e a obra repetia o item “varinha mágica” na lista de materiais dos alunos de Hogwarts. O que era um embaraço, acabou se tornando uma relíquia editorial. Ao perceber o erro - corrigido em novas edições –, a editora conseguiu resgatar parte dos 500 livros iniciais. Mas 200 exemplares continuaram em circulação. Um deles vai a leilão em novembro, em Londres, e estima-se que seu valor possa chegar às 20 mil libras. Uma verdadeira obra de varinha mágica! (Alef Pontes)
O primeiro olhar de Diane “Uma fotografia é um segredo sobre um segredo; quanto mais lhe diz, menos você sabe.” Assim disse certa vez Diane Arbus (1923-1971), uma fotógrafa que buscava a pungência do encontro pessoal e direto com seus objetos de apreciação. Sua obra é marcada pelo contato que se estabelece, de imediato, entre o observador e o olhar daqueles indivíduos, quase sempre a encarar a lente. Em Diane Arbus: In the beginning, exposição em cartaz até novembro no Met Breuer (espaço voltado para arte moderna e contemporânea do Metropolitan Museum of Art, em Nova York), o público tem acesso a um conjunto de fotografias que permaneceu inédito desde que a artista tirou a sua própria vida há 45 anos. Os negativos - que, revelados, tecem uma crônica visual das cenas urbanas nova-iorquinas nos anos que precedem a fama de Arbus - estavam armazenados em caixas no apartamento em que ela morava, no Greenwich Village, em Manhattan. Em 2007, suas duas filhas doaram o acervo inteiro ao Met. Essa mostra é a primeira compilação dos early years de sua produção, de 1956 a 1962, quando Diane ainda era assistente de Allan Arbus, o marido que mantinha um estúdio de fotografia de moda. Mesmo nessas imagens a esboçar uma incipiente carreira autoral, já se percebe a capacidade da artista para escavar narrativas escondidas em lugares incomuns ou ainda para realçar a estranheza da normalidade. LUCIANA VERAS
BOLACHEIROS SOLITÁRIOS No Brasil, não existem indicadores que meçam a procura por vinis, nem seu impacto no mercado. Já em lugares como Estados Unidos e Reino Unido, a venda das bolachas tem crescido desde 2008. E o perfil dos consumidores dessa mídia parece estar em transformação. Se, em 2015, boa parte dos compradores britânicos era formada por jovens de 18 a 24 anos, uma pesquisa promovida pela YouGov concluiu que o público, agora, possui, em sua maioria, idade entre 45 e 54 anos. Dos entrevistados, 66% afirmaram não conseguir passar sequer um dia sem ouvir música e 68% assistem a shows de seus ídolos regularmente. Além disso, essas pessoas consideram-se introvertidas (56%) e apreciam ficar sozinhas (68%). (Marina Moura)
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MARCO NOVACK
CON TI NEN TE
CAPA
1 VIDA Espetรกculo da Cia Brasileira de Teatro (PR), dirigido por Marcio Abreu
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DRAMATURGIA A busca pelo aspecto experimental de escrita Tanto os autores que praticam a chamada “dramaturgia de gabinete” quanto os de “sala de ensaio” têm abandonado as formas tradicionais, realizando obras de caráter fragmentário, em que se abolem noções como enredo, tempo, espaço e representação TEXTO Pedro Vilela
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Se um estrangeiro chegasse à
cidade de São Paulo no ano de 2014, e examinasse o que estava em cartaz, teria a impressão de que o teatro brasileiro acabara de ser inventado. Essa afirmação encontra-se em matéria publicada no jornal Estado de S. Paulo, sob o título Teatro renega dramaturgia brasileira dos séculos 19 e 20, na qual a jornalista Maria Eugênia Bezerra aponta que, com exceção de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos, regularmente visitados, o que se via em determinado momento era uma profusão de novos autores em cena. Passados mais de dois anos, o panorama apontado pela jornalista para a capital paulistana não sofreu modificações, até mesmo em diferentes regiões do país. Digna de múltiplos olhares e vozes, a dramaturgia brasileira apresenta inúmeras possibilidades de temas e procedimentos em sua atualidade, marcada por um terreno extremamente fecundo a partir de uma excelente safra de autores. Se, hoje, fôssemos obrigados a condensar suas principais tendências em apenas uma palavra, esta seria diversidade. Ao olharmos um pouco para a história da dramaturgia mundial, percebemos claramente ciclos de criações, evidenciados pela forma e conteúdo com os quais foram conduzidos. Encontramos, por exemplo, o melodrama burguês no final do século XIX, que tinha por objetivo evidenciar temas do cotidiano social rompendo com o idealismo romântico, e o Realismo, que teve no russo Anton Tchekhov (1860–1904) seu grande representante, inovando no diálogo dramático e retratando o declínio da burguesia, em obras como A gaivota e O jardim das cerejeiras. Ainda que recorrêssemos à recente história da dramaturgia brasileira, esses ciclos não seriam encontrados facilmente em nosso país. ¨De todo modo, no campo de representação das relações interpessoais não são poucas as tentativas de encontrar sínteses para aquele imaginário diverso do país que comporta, a um só tempo, uma cultura urbana correlata à das grandes megalópoles mundiais, com as marcas de atomização e individuação radicais da vida; e as manifestações de um ambiente cultural antropologicamente
arcaico, com suas regras próprias de convivência, em que prevalecem os laços de uma sociabilidade comunitária. No intervalo entre esses extremos, há um sem-número de autores e experiências que tentam traduzir essa complexa interação entre valores, o que demanda soluções formais por vezes específicas¨, como bem define o crítico Kil Abreu, no artigo intitulado Dramaturgias contemporâneas no Brasil, publicado em francês no livro Théâtres brésiliens – Manifestes, mises en scène, dispositifs, pela Universidade de Provence. Atualmente, seja pelos que possuem perfil de uma ¨dramaturgia de gabinete¨ – nome comumente dado à produção de um autor que realiza sua escrita de modo solitário, apresentando-a apenas quando julga finalizada –, seja no ¨dramaturgo de sala de ensaio¨, aberto a questionamentos durante
Diversidade seria a palavra-síntese para a atual dramaturgia brasileira, terreno fértil em temas e procedimentos seu processo, aponta-se nos dois casos uma característica em comum: a busca pelo aspecto experimental de escrita. O que se vê é o recorrente abandono das formas tradicionais – marcadas pelo respeito ao gênero dramático que privilegiava os diálogos entre os personagens ou pelo gênero épico, no qual o caráter narrativo possuía seu foco. Cada vez mais, as obras que chegam aos nossos palcos possuem uma escrita marcada por fragmentações, abandonando noções como enredo, tempo, espaço, lugar, representação, navegando pelo que o pesquisador alemão Hans-Thies Lehmann define como pós-dramático. Tal experimentalismo encontra amparo principalmente na comunhão com as pesquisas desenvolvidas no cerne de diferentes grupos teatrais. Como bem completa Abreu, “é no teatro de grupo, quando colocado em perspectiva experimental, que as
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condições ideais para o surgimento de novas dramaturgias têm sido plantadas. É que o grupo tem a seu favor o fato de contar com um núcleo de trabalho que tende a se afinar cada vez mais com o tempo, em projetos artísticos mais ambiciosos e pensados para um tempo de resolução mais lato, em que os propósitos formais, políticos, de linguagem e de pensamento têm espaço maior para evoluir, e em sintonia comum”. Sem pretensões de definir esse modelo como o único exitoso, essa afirmação pode ser reiterada ao lançarmos um olhar sobre a recente produção teatral de destaque em nosso país, na qual claramente seus exponenciais comungaram de processos criativos em coletivos, como os casos de Gracê Passo junto aos mineiros do Grupo Espanca!, de Alexandre dal Farra com o Tablado de Arruar e de Jô Bilac e o seu Teatro
GRACE PASSÔ
Independente (leia os perfis destes criadores e de Leo Moreira e Rafael Martins ao longo desta matéria). Torna-se importante destacar que o grau de interseção entre esses dois polos apontados (autor x grupo) varia de acordo com cada procedimento de escrita. O mais recorrente é fruto dos chamados processos colaborativos, nos quais o espetáculo é construído a partir de improvisações na sala de ensaio, sem hierarquia no diálogo entre os participantes, mas com a clareza das responsabilidades individuais, cabendo então ao dramaturgo a “redação” de um texto final. Como define o ensaísta Joseph Danan, “experimentações cênicas, que o olho do dramaturgo (que difere, nessa atividade, do olho do encenador tão somente porque não dirige o trabalho e permanece, então, mais exterior que o ‘olhar exterior’ daquele) observa, analisa, seleciona,
POR ELISE 2 Obra criada de modo colaborativo por Grace Passô e o Grupo Espanca!, é composta de quatro peças
adota, recusa” e retribui em forma de palavras – faladas e escritas. São eles que se arriscam na penetração surda no reino das palavras, tal como Drummond preconizava no poema Procura da poesia.
CONCEITOS MOVEDIÇOS
A definição de Danan, que procura impor limites para as funções de dramaturgos e encenadores, é facilmente posta abaixo quando observamos práticas recentes em nosso país, com um constante número de encenadores acumulando o papel de dramaturgo em suas obras, reiterando a impossibilidade de distanciamento desses ofícios no teatro contemporâneo.
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Dona de um lirismo inconfundível, a voz feminina que mais se destaca na cena brasileira atual é Grace Passô. A mineira, atriz, diretora e dramaturga, surpreendeu o país em 2005 com o primeiro espetáculo do Grupo Espanca!, intitulado Por Elise. A partir da construção colaborativa com o grupo, o espetáculo circulou por mais de 50 cidades do país e venceu os prêmios APCA e Shell–SP de melhor dramaturgia. Sua obra dramatúrgica a partir do Grupo Espanca! foi editada e lançada pela editora Cobogó, com os títulos: Por Elise, Amores surdos, Marcha para Zenturo e Congresso Internacional do Medo. Segundo o crítico teatral Kil Abreu, “do ponto de vista da forma há, pelo menos, duas recorrências que mobilizam os temas apresentados nessas dramaturgias. A primeira é a clara influência brechtiana, não no aspecto de uma concepção política ou engajada, mas no gosto pelo jogo aberto da cena, pela explicitação dos mecanismos com que a linguagem se articula. A segunda, e talvez mais saliente, é o apelo à livre imaginação poética que, para o Espanca!, não é apenas uma maneira particular de expressão. É também uma estratégia possível para lançar perguntas ao mundo através de uma sempre deliberada transfiguração do real”. Com textos publicados em espanhol, francês e polonês, a dramaturga passou a compartilhar seus procedimentos com diferentes coletivos. Em abril deste ano, esteve no Recife com o solo intitulado Grão da imagem – Vaga carne, que, segundo ela, “trata da busca por pertencimento, reconhecimento da memória e desejo de abandono das próprias referências na construção de uma identidade”.
CON CAPA TI NEN TE CAROLINA CALCAVECCHIA/DIVULGAÇÃO
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Para além dos já citados, observase essa prática na Cia Brasileira de Teatro (PR), com seu diretor/ dramaturgo Marcio Abreu em espetáculos como Vida e Projeto Brasil, nos paraibanos do Teatro Alfenim, com Márcio Marciano em Quebraquilos e Deus da fortuna, e do carioca Diogo Liberano, com o seu Teatro Inominável, nas montagens de Vazio é o que não falta, Miranda e Sinfonia sonho. Esse último amplia ainda mais a relação entre as funções dos espetáculos, como no celebrado monólogo O narrador, protagonizado pelo artista. Liberano também é uma das referências de uma prática corriqueira na qual dramaturgos investem na adaptação e atualização de textos clássicos, como realizou em A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht, e Os sonhadores, baseada no romance The dreamers, do escocês Gilbert Adair, mundialmente conhecido pela adaptação cinematográfica dirigida por Bernardo Bertolucci. Outro autor que, além de trabalhar perante a escrita de textos inéditos, comunga desse mesmo procedimento
Dramaturgo e dramaturgista atuam de modos diversos. O primeiro é autor de dramas, o segundo, conselheiro teatral é o pernambucano Newton Moreno, como em dois sucessos de sua trajetória: a adaptação do livro Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre, e a releitura do texto Álbum de família, de Nelson Rodrigues, no espetáculo Memória da cana. Outra função que confunde a cabeça dos espectadores e merece ser mais bem-definida diz respeito ao que vem sendo denominado como dramaturgista. Em seu Dicionário do Teatro, o francês Patrice Pavis esclarece que o dramaturgo é o “autor de dramas”, profissional responsável por “escrever” o texto a ser encenado. O dramaturgista seria, portanto, uma espécie de “conselheiro literário e teatral agregado a uma companhia, a um encenador ou
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responsável pela preparação de um espetáculo”, ou seja, alguém capaz de, além de estruturar roteiros ou textos, amparar os estudos teóricos para a montagem, tendo um grau maior de envolvimento no processo de concepção da obra. Para além da investigação em torno de formas e procedimentos de criação, torna-se interessante refletir os aspectos individualizantes de cada autor, uma vez que, mesmo funcionando como condensador de desejos de um coletivo, como agentes individuais ou em franco diálogo com obras já escritas, individualizam-se justamente pela definição de uma poética própria. Demonstram, com clareza, o rigor com que se dedicam ao ofício, recorrendo às suas obsessões artísticas e tornando – através das palavras, das construções narrativas e de seus lirismos – a palavra viva em cena.
ANTECEDENTES HISTÓRICOS
O teatrólogo Sábato Magaldi, falecido em julho deste ano, evidencia em seus escritos que, ainda que a dramaturgia em nosso país por um
RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO
LEO MOREIRA
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longo tempo estivesse vinculada a modelos europeus, tivesse já nascido brasileira. Para ele, escritores como José de Anchieta, marcado pelo auto vicentino e pela tradição religiosa medieval e Gregório de Matos, com raízes no barroco espanhol e italiano, nunca foram capazes de se confundir com a produção europeia, por características de língua, personagens e cenários profundamente vinculados ao nosso solo. Entretanto, ao longo dos séculos XIX e XX, observou-se no país uma invasão estrangeira de outra ordem, fruto de um lucrativo comércio de traduções de textos provenientes da Europa e dos Estados Unidos. O autor nacional caiu em desuso, tendo as grandes companhias da época recorrido a escritores como Goldoni, Górki, Pirandello, Tenesse Williams, Arthur Miller, Eugenne O’Neill, entre outros. O abismo criado foi de tal tamanho, que, no início da década de 1950, com o propósito de colaborar para a afirmação do autor nacional, o Executivo sancionou a Lei n° 1.565, que estabeleceu a
3 TEATRO INOMINÁVEL Vazio é o que não falta tem dramaturgia de Diogo Liberano
4 FICÇÃO Leo Moreira parte do material biográfico dos atores em cena
obrigatoriedade de montagem, pelas companhias, de uma peça brasileira para duas estrangeiras, o que viria a ser conhecida como Lei de 2 x 1. Torna-se difícil analisar o impacto dessa lei no âmbito da produção cênica nacional, uma vez que ela foi promulgada no mesmo período de profundas modificações no modo de se conceber teatro em nosso país. Pesquisadores apontam que é com a encenação do texto Vestido de noiva, no ano de 1943, que nasce o teatro moderno brasileiro. Se, por um lado, encontramos a maestria de encenação do diretor polonês Zbigniew Ziembinski, que chega ao Brasil fugindo da II Guerra Mundial, por outro, o país se depara com o que viria a ser considerado o maior dramaturgo de nossa história: Nelson Rodrigues. Influenciado claramente por uma estética expressionista, em que o exagero, a deformação ou a obsessão
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O mineiro Leonardo Moreira talvez seja o brasileiro que mais rompeu as barreiras geográficas do país nos últimos tempos. Dramaturgo e diretor da Cia Hiato (SP), recebeu em sua trajetória dois prêmios Shell de autor, além da indicação de mais de 19 prêmios. Moreira ganhou projeção quando, em 2013, o Santiago a Mil, um dos principais festivais de teatro da América Latina, realizado na capital chilena, apresentou uma mostra especial com três espetáculos dele, jogando luz sobre sua escrita. Sua principal obra intitula-se O jardim, e com ela vem se apresentando em diferentes cidades do mundo, como Bucareste, Viena, Frankfurt, NovaYork, Atenas, Bruxelas, Bogotá e Berlim. Uma de suas características é ter como ponto de partida para a escrita o material biográfico de seus atores. Em Ficção, obra apresentada no Recife através do TREMA! Festival em 2013, temos um conjunto de seis solos a partir dos depoimentos pessoais dos integrantes, retrabalhados a partir uma ótica ficcional, desconstruindo, portanto, as noções de realidade e invenção na obra. Seu mais recente trabalho, Amadores, reúne profissionais e artistas amadores de diversas áreas, selecionados através de anúncios de jornal ou oficinas públicas, que tinham como objetivo inicial, a partir de uma entrevista, exibir suas especialidades e seus “objetos de arte”, que posteriormente viriam a ser colocados no palco como um compartilhamento de experiências pessoais. Segundo o crítico Nelson de Sá, “o espetáculo se equilibra sobre um fio, entre o que é comum, normal, ordinário, e o sublime e grotesco que todos vivemos algum dia”.
CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO
5-6 VESTIDO DE NOIVA Montagem de 1943, com direção de Ziembinski, do texto de Nelson Rodrigues (abaixo) DIAS GOMES 7 É com O pagador de promessas (1960) que o teledramaturgo é celebrado no teatro brasileiro
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dos personagens se fazem presentes, Vestido de noiva revoluciona também pela intersecção de três planos para o desenvolvimento de seu conteúdo: o plano da realidade, o plano da alucinação e o plano da memória. Autor de 17 obras para o teatro, que em sua maioria foram adaptadas para o cinema, Nelson permeia o imaginário do povo brasileiro, por vezes apontado como gênio, em outras, como “devasso moral”. Coube ao escritor Ruy Castro, autor de sua biografia, intitulá-lo da melhor forma: anjo pornográfico.
Outro nome de destaque em nossa recente história é Gianfrancesco Guarniere. Nascido em Milão, filho de músicos antifascistas que decidiram mudar-se para o Brasil em 1936, foi responsável por textos voltados à realidade nacional, discutindo com densidade dramática problemas sociopolíticos. Sua trajetória está diretamente ligada ao Teatro de Arena (SP), marco da resistência cultural e conscientização popular no período militar, em que estreou como dramaturgo em 1956 com Eles não usam
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black-tie. Em parceria com Augusto Boal, escreveu também os musicais Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, de grande impacto na época. De acordo com Décio de Almeida Prado, “Guarnieri escreveu com facilidade e fecundidade tanto na década de 1960 quanto na de 1970, antes e depois de 1964, porque tinha durante esse tempo todo um claro projeto político em vista. Sabia a favor do quê ou contra o quê manifestar-se. (…) Se, na qualidade de escritor engajado, Guarnieri nunca se recusou a tomar partido, na de poeta dramático, equilibrou sempre a sua obra entre dois polos: a sedutora simplicidade das grandes explicações históricas – no caso, o marxismo – e a extrema complexidade do mundo real e dos homens. Daí o paradoxo (comum a toda boa literatura) desse teatro: não é preciso partir de suas premissas ideológicas para admirá-lo enquanto lição humana e realização estética”. Conhecido na teledramaturgia brasileira por novelas como Ossos do Barão (1973) e Gaivotas (1975), é no teatro que Jorge Andrade se configura como um clássico da dramaturgia moderna brasileira. Para o crítico Anatol Rosenfeld, Andrade era capaz de “acrescentar à visão épica da saga nordestina a voz mais dramática
do mundo bandeirante”, como pode ser visto na compilação Marta, a árvore e o relógio, composta por 10 textos. Objeto de investigação de diferentes pesquisadores, é impossível não perceber a atualidade de suas obras, como a tragédia messiânica Vereda da salvação, transformada em filme por Anselmo Duarte em 1965, que retrata o fanatismo religioso no sertão nordestino. Tendo como característica o constante diálogo com outras linguagens, outro nome que obteve sucesso na teledramaturgia brasileira foi Dias Gomes. Através de obras como O bem-amado (1973), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985), tornouse conhecido do grande público, mas é com O pagador de promessas (1960) que Gomes entra no rol de maiores dramaturgos brasileiros. A peça, que conta a história de Zé do Burro, um dos mais puros heróis trágicos da dramaturgia brasileira, é uma das mais montadas ainda hoje e contou com adaptação dirigida para o cinema por Anselmo Duarte, ganhando a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962. Nomes como Quorpo Santo e João do Rio apenas nos dias atuais vêm recebendo olhar adequando para suas vastas produções. Os anos 1980 foram marcados pela baixa produção de textos originais, sendo destacada prioritariamente a figura do encenador. A crítica teatral Bárbara Heliodora, em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, em 2012, foi categórica
Dramaturgos como Quorpo Santo e João do Rio agora vêm recebendo olhar atencioso para suas vastas produções
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ao afirmar: “A ditadura parou a dramaturgia brasileira”. É, portanto, a partir da década de 1990, que vemos a reafirmação da dramaturgia brasileira, seja através de processos inseridos nos grupos teatrais, seja através de autores independentes, como Fernando Bonassi, Mario Bortolotto, Samir Yazbek, Bosco Brasil e Aimar Labaki. O que nos leva aos nomes que hoje compõem o panorama ativo de nossa escrita.
CONTAR UMA HISTÓRIA
Um dos panoramas que ao longo do tempo não vem crescendo em nosso país diz respeito à formação específica para a área, tornando o caminho para os interessados em se tornar dramaturgo ainda mais difícil. Diferentemente de diversos países europeus, o Brasil ainda não conta com uma graduação específica em torno da dramaturgia. Na maioria dos casos, os interessados recorrem aos cursos de licenciatura e bacharelado em teatro ou de áreas afins, como Letras, Comunicação e Jornalismo. O dramaturgo paulista Alexandre dal
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RAFAEL MARTINS É impossível olhar para os últimos anos do teatro nordestino e não se deparar com a figura de Rafael Martins, que tem sua história como autor entrecruzada com a própria trajetória do coletivo que fundou: o Grupo Bagaceira (CE). Com mais de 15 anos de atuação, tornou-se um referencial no modelo de criação compartilhada de dramaturgias e uma referência do teatro nordestino, tendo visitado a capital pernambucana com quase todo o seu repertório. Sobre sua relação de criação junto ao coletivo, Martins define: “somos viciados em novidade e risco. É comum, na história do Grupo Bagaceira, que peças subsequentes tenham dramaturgias radicalmente distintas. Como exemplo: Lesados (2004) e O realejo (2005), claramente distantes em estrutura e essência poética. Em vez de investir em um estilo de características bem-delimitadas, criando o que chamaríamos de ‘assinatura’ do autor, tento ampliar meu arsenal, construindo uma dramaturgia que se redefine a cada obra, provocando deslocamentos na atuação, direção e demais elementos da cena”. Esse caminhar por distintos estilos atualmente é objeto de estudo no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.
CON CAPA TI NEN TE ANNELIZE TOZETTO/DIVULGAÇÃO
Farra, por exemplo, é um dos que, após obter formação em Música e em Filosofia, abandonou, há cerca de 10 anos, o trabalho de diretor musical para se dedicar à escrita. No campo dos cursos de curta duração, uma das alternativas mais concorridas é o Núcleo de Dramaturgia SESI–British Council, que iniciou suas atividades na cidade de São Paulo em outubro de 2007. Sob coordenação da jornalista e dramaturga Marici Salomão, o curso hoje chega à sua oitava turma, com os jovens autores sendo submetidos a um programa de formação (aulas, oficinas e workshops) e de intercâmbio com profissionais convidados – referências do grande painel da produção dramatúrgica contemporânea no Brasil e Reino Unido. A última experiência formativa de longa duração em Pernambuco foi protagonizada pelo projeto Tela Teatro, desenvolvido pelo dramaturgo Luiz Felipe Botelho, que contou com a realização de uma oficina de três meses, na qual os participantes possuíam foco prioritário na criação. Posteriormente, o curso deu vida ao GED – Grupo de Estudos em Dramaturgia, com encontros semanais na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Devido à necessidade de abertura de um novo ciclo de participantes conjuntamente com o processo de reforma a que o prédio da instituição foi submetido, o núcleo chegou ao fim em 2012, após quatro anos de atividades. Botelho lamenta o atual panorama: “Nunca precisamos tanto de processos formativos adequados, não só pelo drama, mas pela quantidade de mídias das mais diferentes, precisando de pessoas que saibam contar uma boa história”. As dificuldades não se resumem à carência formativa. Se as décadas anteriores foram marcadas por um reduzido número de editoras que se interessavam em publicar textos dramáticos – como, por exemplo, a Hadam, em torno de autores como Bosco Brasil, Juca de Oliveira e Pedro Brício, e a Perspectiva, que reunia diferentes obras em um único volume, como o importante registro em torno de Consuelo de Castro e Jorge de Andrade –, o que vemos hoje é um pequeno crescimento do mercado editorial para a área.
Com tiragens médias que variam entre 1.500 e 2.000 exemplares, novas editoras vêm se arriscando no mercado. São os casos da Giostri, fundada em 2005 e que possui em seu catálogo cerca de 30% dos títulos voltados para o teatro, e a Cobogó, com cerca de 18 títulos, envolvendo a publicação de nomes como Grace Passô, Márcio Abreu, Felipe Rocha e Daniela Pereira de Carvalho. Se percebemos a séria crise de público brasileiro para a leitura, não seria diferente a situação no âmbito da dramaturgia. O desafio apontado por diferentes editores é a quebra da barreira do leitor especializado, o que possibilitaria o aumento de nomes publicados e das tiragens de exemplares, tal como acontece no Canadá, onde textos teatrais são utilizados em sala de aula como textos didáticos.
MIRADA
Diferentemente da década de 1950, quando a dramaturgia estrangeira configurava-se como uma espécie de obstáculo para o desenvolvimento
As carências formativas em cênicas não se resumem à formação, mas também à escassez de edições de textos teatrais nacional, atualmente vemos uma profunda retroalimentação de nossos autores com os de outras localidades. Muito se deve ao constante intercâmbio protagonizado pelos diferentes eventos que ocorrem no país, como é o caso da quarta edição do MIRADA} Festival IberoAmericano de Artes Cênicas de Santos, que ocorre de 8 a 16 de setembro na cidade que o nomeia e em mais quatro cidades do litoral paulista. O festival é composto por 43 espetáculos originários de 10 países da América Latina, Portugal e Espanha, sendo este último o homenageado desta edição, com oito montagens na grade de programação. De acordo com a curadoria do evento, o que se ambiciona é realizar “um panorama
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que potencializa a capacidade de o teatro e a dança reagirem diante das singularidades histórica, social, política e econômica, evidenciando a força da arte politicamente engajada sem perder de vista a ambição poética e a pluralidade estética”. Os dois destaques da mostra são os criadores espanhóis Angélica Lindell e Rodrigo Garcia. A primeira mostrará ao público brasileiro ¿Que haré yo com esta espada?, trabalho estreado em julho deste ano no Festival d´Avignon (França), e o segundo com o espetáculo 4, obra crítica sobre o triunfo do consumismo. Angélica Lindell é uma renomada escritora, encenadora e atriz espanhola, ganhadora do Leão de Prata da Bienal de Teatro de Veneza em 2013. Seus textos
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ALEXANDRE DAL FARRA
são comumente escritos em primeira pessoa, sob sua própria atuação. Recorrendo comumente a mitos antigos e modernos, construiu sua temática sob os aspectos obscuros da realidade, como o sexo e a morte, a violência e o poder, a loucura. O escritor Javier Vallejo declarou que “Angélica Liddel se autorretrata sem pudor, como Frida Kahlo (…) especialmente defendendo ferozmente seus textos no palco: sua palavra é uma baioneta. Frágil, pequena, mas em cena parece São Jorge e o dragão escondidos em um só corpo”. O texto que apresentará no Brasil parte de dois crimes transcorridos em Paris, em diferentes épocas: o canibalismo do universitário japonês Issei Sagawa, que esquartejou a
7 ABNEGAÇÃO Trilogia foi escrita e dirigida por Alexandre dal Farra, através do grupo paulista Tablado de Arruar
namorada e declarou tê-lo feito por amor, em 1981, e o terrorismo dos ataques em série que deixaram 130 mortos na noite de 15 de novembro de 2015. No programa do espetáculo, cita Nietzsche: “Como transformar a violência real em poética para nos colocar em contato com a verdadeira natureza, mediante atos contra a natureza?”. Rodrigo García nasceu na Argentina, e radicou-se em Madri, onde fundou o grupo La Carnicería Teatro (1986). Seus atores são
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Alexandre Dal Farra tem sua obra marcada por elementos da realidade política e social acompanhados de uma visão psicológica. Com tratamento quase brutal, o autor é reconhecido pela crueza de sua escrita. Como descreve a crítica Soraya Beluse, seus personagens guardam uma espécie de patologia, de ferocidade, de pulsão violenta (a obsessão do pastor em Mateus 10, a raiva do narrador em Manual de destruição, os gestos selvagens e furiosos, o descontrole em Abnegação) que chegam a ser agressivos ao leitor/espectador. Vencedor do Prêmio Shell de autor em 2012, por Mateus 10, atualmente encerra a trilogia Abnegação, escrita e dirigida por ele através do grupo Tablado de Arruar (SP). Nela, o autor reflete sobre as contradições e dificuldades da esquerda, quando alcança o poder, a partir de aspectos ligados à trajetória do PT. Como bem define, “o tema é essa questão de maneira bem ampla, não é uma história do partido exatamente”. Outra característica do autor é o compartilhamento de pesquisa com outros coletivos, como é o caso das parcerias com o Teatro da Vertigem (SP), no espetáculo O filho, criado a partir da obra de Franz Kafka, e de sua parceria com o Grupo XIX, em Nada Aconteceu… e Teorema, a partir da obra do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Em outubro, uma obra sua sobre as igrejas neopentecostais brasileiras será encenada por um diretor recifense. É também o autor do aclamado livro Manual da destruição, lançado no início de 2013.
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apelidados de les enfant terribles, algo como “as crianças travessas”, pela predisposição de experimentação com temas e formas controversas para os parâmetros do teatro tradicional. Seus textos buscam reconstruir imagens associadas aos signos do consumo (Mcdonalds, Ikea) e da tecnologia, aos quais são acrescentados elementos da escatologia. Seu último trabalho apresentado no Brasil, Golgota picnic, dispôs 25 mil pães da hambúrgueres no palco, pisados pelos atores, ao se deslocarem. Com características plurais em suas narrativas, García aponta que nunca desenvolve apenas um assunto em seus trabalhos, não possuindo a capacidade e nem tampouco o interesse em contar apenas uma história. Na obra intitulada 4, a ser apresentada no festival, o artifício das artes cênicas é munição poética para o manifesto contra a fabricação da imagem, as ditaduras publicitárias e industriais de beleza. A violência sobre a mulher, o homem, o velho e, como mais perversão, o adolescente e a criança.
JANELA DE DRAMATURGIA
Se os festivais carregam em si a possibilidade de intercâmbio dos brasileiros com a produção internacional, cabe aos próprios artistas a construção de vias de compartilhamento no âmbito nacional. Realizado na cidade de Belo Horizonte, o projeto Janela de Dramaturgia celebrou sua quinta edição no mês passado, tornando-se um dos mais emblemáticos casos de fomento à dramaturgia nacional e servindo como mola propulsora para o reconhecimento de novos autores espalhados pelo país. Idealizado em 2012, pelos dramaturgos Sara Pinheiro e Vinícius Souza, o projeto possui como dinâmica a leitura mensal de textos inéditos, oficinas de dramaturgia, bate-papo com os autores e mesasredondas. Para este ano, o Janela recebeu quase 700 textos vindos de 24 estados do Brasil, tendo a diversidade geográfica, estética e temática pautado a escolha dos textos e autores. O público mineiro pôde conhecer as escritas inéditas
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dos autores Guilherme Dearo (de São Paulo), Isac Tufi (de Salvador), Fabiano Barros (Porto Velho), Francisco Mallmann (Curitiba) e Fernando Carvalho (Brasília), que dividiram espaço com os mineiros Anderson Feliciano, Luciana Romagnolli, Luciano Luppi, Ivana Andrés, Rita Clemente. Ainda nesta edição, o projeto realizou o lançamento da coleção Janela de dramaturgia – publicação em três volumes que contém 28 textos de autores mineiros apresentados nas três primeiras edições do evento, projeto este contemplado pelo Programa Rumos Itaú Cultural e lançado pela Editora Perspectiva, sob organização de Vinícius Souza, que, além do Janela, coordena os Ateliês de Dramaturgia de Belo Horizonte e o Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia do Galpão Cine Horto. Outros dois importantes projetos de perfis distintos são desenvolvidos pelo Departamento Nacional do Sesc. O P.E.R.i.F.É.R.i.C.o, parte do mapeamento de textos latinoamericanos, conjuntamente com
JÔ BILAC 10
uma residência artística entre grupos e um ciclo de leituras dos textos publicados, proporcionando, assim, o encontro de artistas do Brasil e da América Latina. O segundo e mais potente intitula-se Concursos Jovens Dramaturgos, que objetiva descobrir jovens que cursam o Ensino Médio e se interessam pela arte da escrita, proporcionando aos escolhidos a participação em oficinas e o diálogo com autores experientes, o que permite o aprimoramento dos seus trabalhos. O projeto chegou à sua quinta edição em 2015 e realizou a publicação de 25 textos com autores de diferentes estados do Brasil. Para Sidnei Cruz, um dos responsáveis pela idealização do projeto, a ideia surge da constatação de que “no Ensino Médio, o jovem é solicitado a escrever redações, dissertar sobre temas atuais, porém, aplicando a lógica racional e nada de imaginação. Acreditamos que a dramaturgia possibilita o desenvolvimento do imaginário sobre o real e o irreal. Imaginar mundos sob novas dimensões. A dramaturgia
9 LA CARNICERÍA Atores do grupo espanhol dirigido por Rodrigo García são conhecidos pela disposição à experimentação
10 QUE HARÉ YO...? Espetáculo dirigido por Angélica Lindell será apresentado no Brasil este mês, em São Paulo, na mostra MIRADA
pode ser uma poderosa ferramenta nas mãos do adolescente. Com o incentivo, o jovem dramaturgo poderá continuar e contribuir para novos horizontes teatrais”. O dramaturgo mineiro Vinicius Souza define bem o momento atual da dramaturgia brasileira. “Filosoficamente, gosto de pensar que o nosso tempo é a-histórico, podemos conviver com (o grego) Ésquilo (25 a.C.– 456 a.C.) e o francês Michel Vinaver (88 anos), e os dois, tão distintos, terão suas importâncias, singularidades e urgências; que dramaturgia é, na verdade, só um conceito que pode ser reinventado a cada momento, tal qual as ideias e experiências criativas que vivem seus autores” e emenda também com o velho conterrâneo Drummond: “O mundo é grande”.
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Se olharmos a programação dos teatros espalhados pelo país, ao menos encontraremos duas peças de Jô Bilac em cartaz. O carioca, que celebra 10 anos de carreira em 2016, é marcado pela vasta produção nesse curto intervalo de tempo, tendo mais de 20 textos encenados por diferentes coletivos e atores renomados. Reconhecido pela sofisticação de suas tramas, foi com Cachorro! e, posteriormente, com Rebu, através de sua companhia, o Teatro Independente (RJ), que Bilac saltou aos olhos dos espectadores brasileiros. Ainda com sua companhia ganhou o Prêmio Shell pelo espetáculo Savana glacial. Tamanha atenção em torno de seu nome levou os cariocas da Cia Omondé a montar duas obras suas, Os mamutes e Infância, tiros e plumas; a celebrada Cia dos Atores encenou o seu texto Conselho de classe, e o ator Marco Nanini protagonizou a obra Beije minha lápide. Hoje, Bilac possui textos montados nos EUA, na Itália, Suécia, Alemanha, Inglaterra e Colômbia, tendo os brasileiros a oportunidade de acompanhar esta última montagem, Beije minha lápide, na programação do MIRADA} Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, que acontece neste mês de setembro, sob iniciativa do coletivo Teatro del Embuste.
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PERNAMBUCO Pesquisas contemporâneas
Assim como ocorre no contexto nacional, no Estado, a dramaturgia tende aos processos de criação coletivizados e à expressão de subjetividades compartilhadas TEXTO Márcio Bastos
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01-1 COLETIVO ANGU
Grupo encena Ópera,
de Newton Moreno
é marcado por falta de apoio do poder público e um mercado que incentive e promova esses artistas. Terra do já citado Nelson, de Osman Lins, Hermilo Borba Filho, Joaquim Cardozo e Ariano Suassuna, que, apesar de paraibano, fez de Pernambuco casa de sua produção, o estado teve, com esses criadores, um período fértil no campo da escrita para o teatro, principalmente entre os anos 1960 e 1970. Constantemente revisitados nas décadas seguintes, até hoje são deglutidos, devorados, homenageados e ressignificados pelas novas gerações. Em meados dos anos 1990 e com mais força a partir dos 2000, novos talentos começaram a despontar e oxigenaram a cena, ao apresentarem uma produção continuada e autoral, que indicava uma pesquisa aprofundada de linguagem. São trabalhos que partem da ânsia de criadores solo e grupos de traduzir em palavras anseios e pesquisas estéticas com DNA próprio. “Os textos sempre partem de demandas autorais, um ponto de vista do mundo, necessidade de dividir nossa subjetividade.
“Nosso processo de criação passa primeiro por uma pesquisa intensa, de referências mil” Giordano Castro Berço de grandes dramaturgos nacionais, entre eles o seminal e inescapável Nelson Rodrigues, Pernambuco é uma terra prolífica no campo da criação de histórias pensadas para os palcos. Assim como ocorre no resto do país, há, no estado, uma pujança da dramaturgia autoral, resultado do desejo dos autores – e dos grupos – de explorarem textos que refletem tanto a realidade que os cerca quanto temas de contornos mais abstratos e universais. Essa nova leva de criadores busca em seus processos, também, expandir as possibilidades da cena com métodos contemporâneos e que dialoguem com outras linguagens. Esse cenário, no entanto, ainda
Penso que os textos são respostas, o que devolvemos do que nos afeta no mundo que nos cerca”, afirma Newton Moreno, um dos principais expoentes dessa nova leva. Radicado em São Paulo, Newton imprime em sua escrita ecos das suas origens e tradições. Com o grupo Os Fofos Encenam, produziu obras impactantes, como Memórias da cana, Assombrações do Recife Velho e Agreste. O seu Ópera foi montado pelo Coletivo Angu, grupo cujo trabalho busca textos não necessariamente dramáticos para encenar, como contos e romances. Para Samuel Santos, d’O Poste Soluções Luminosas, autor de peças como A receita e O açougueiro, calcadas na pesquisa do Teatro Antropológico,
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a produção pernambucana, em consonância com a do Nordeste, tem desconstruído paradigmas, expandido suas possibilidades temáticas, ao mesmo tempo em que permeia suas obras de elementos do imaginário coletivo da região. “O Nordeste é uma região mítica, um campo fértil para a criação dramatúrgica e a literatura em geral. Hoje, há essa tradição rural/ sertaneja que se entrecruza com um violento processo de urbanização. Há um diálogo, ao mesmo tempo consciente e inconsciente, na dramaturgia feita em Pernambuco e no Nordeste em geral”, pontua.
PLURALIDADE
Seja na criação individual ou no processo coletivo, de grupo, os artistas pernambucanos têm levado aos palcos espetáculos que dialogam com angústias e pesquisas particulares da contemporaneidade. Um dos grupos de maior destaque no cenário local e nacional é o Magiluth, com dramaturgia e encenação de certa forma iconoclastas, sem preocupação com noções de tempo e espaço, investimento no jogo aberto e em um ritmo quase vertiginoso, permeado por referências pop e filosóficas, como fica explícito em obras como O ano em que sonhamos perigosamente e Aquilo que meu olhar guardou para você. “Nosso processo de criação passa primeiro por uma pesquisa intensa, de referências mil. Lemos e ouvimos muita coisa, assistimos a outras tantas e, nos momentos finais, tudo isso é colocado na roda. Depois, passamos para jogos e workshops que vão estruturando essas propostas e me dando material para escrita. Perto do fim, recorremos aos ensaios abertos, nos quais vamos tendo um feedback de nossas propostas”, explica Giordano Castro, em geral, junto a Pedro Wagner, responsável por estruturar em dramaturgia as dinâmicas do coletivo. Esse processo de criação conjunta tem sido cada vez mais difundido, mesmo quando se tem a figura de um dramaturgo para esquematizar as ideias. “Em teatro, nada nunca é totalmente individual, nem totalmente em grupo. O bom, o rico,
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02-3 AUTORES
Newton Moreno e Cleyton Cabral integram elenco da nova dramaturgia pernambucana
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MAGILUTH
Aquilo que meu olhar guardou para você é um dos espetáculos criados de forma colaborativa pelo grupo
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o desafiador, é o trânsito entre o indivíduo e o coletivo, as negociações implicadas nesse processo, isso é o melhor do teatro”, aponta o pesquisador Luís Reis, autor de peças como A filha do teatro e Puro lixo – O espetáculo mais vibrante da cidade. Para Alexsandro Souto Maior, do Grupo Engenho de Teatro, atualmente, é a pluralidade que dá a tônica das produções do estado. “Há o dramaturgo na sua torre de marfim, que também não abre mão de sê-lo, há a dramaturgia coletiva, colaborativa, do ator; há o dramaturgo que se torna o dramaturgista e se responsabiliza muitas vezes por sugestões de cena e de costurar a palavra que vai ao palco. Essa pluralidade não tem assassinado o dramaturgo, mas dado a ele outras incumbências que dialoguem com as necessidades do nosso fazer teatral contemporâneo. O dramaturgo nunca esteve tão vivo e plural”, reforça. A multiplicidade de possibilidades teatrais também tem feito com que a dramaturgia se expanda. Textos não dramáticos, como romances e contos de Marcelino Freire, a exemplo de
Rasif – Mar que arrebenta e Ossos, foram levados aos palcos pelo Coletivo Angu, por exemplo. Além disso, espetáculos que flertam com formas alternativas de fazer teatro, como os espetáculos domiciliares, costumam alicerçar suas dramaturgias em contos, colagens e formas narrativas menos convencionais, mais abertas ao contato com o público e a cena, como no trabalho dos autores Cleyton Cabral, Rodrigo Dourado e Junior Aguiar. Outra vertente que tem revelado uma dramaturgia vigorosa é a voltada para o público infantil. Sem recorrer a estereótipos e lançando mão de recursos criativos na escrita, dramaturgos têm dado novo fôlego ao gênero em Pernambuco, a exemplo de Carla Denise, autora de Algodão doce (também lançado em livro) e Babau, e Luciano Pontes, da Cia Meias Palavras. “Às vezes é difícil escrever para o nosso tempo, e a poética de cada dramaturgo reflete isso. Ainda vejo a presença de uma infância de outrora, estigmatizada de uma ingenuidade. A criança é um ser social, perversa,
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sensível e poética. E ela acaba não se identificando muito no que é dito e no que é mostrado em cena. Isso representa um grande hiato de comunicação e na visão de infância”, reflete Luciano.
LONGE DO CENTRO
Para além da efervescência da Região Metropolitana do Recife, grupos do interior têm investido em uma escrita que traduza sua realidade e linguagem. É o caso da Cia. Biruta, de Petrolina. Antônio Veronaldo, responsável pela dramaturgia do grupo, explica que, se na capital há dificuldades de formação de escritores, no interior, ela se intensifica. “Como no Sertão e, mais precisamente, no Sertão do São Francisco, o dramaturgo é um ser quase não existente, restou se criar a nossa própria dramaturgia. Não ter espaços específicos para formar dramaturgos e mesmo oficinas constantes dificulta o surgimento de novos criadores e até o processo autodidata, pois os espaços para diálogos e conversa sobre o ofício são raros. Falta o investimento a longo prazo para o desenvolvimento de novos autores”, ressalta. Bianca Lira, da Cia. Experimental de Teatro, de Vitória de Santo Antão, aponta que, apesar da qualidade artística e técnica dos grupos do interior, esses ainda sofrem para ter acesso aos cursos de formação e divulgar suas obras.“É um trabalho árduo. Tem que amar o que se faz. São
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anos de segregações, preconceitos, falta de investimento, julgamentos acadêmicos sobre nossa literatura. Isso ainda se reflete hoje. Não na mesma proporção, mas de modo ainda presente. Precisamos de mais espaço, de mais reconhecimento e de mais investimentos”, pontua.
CARA E CORAGEM
Apesar de ser um local em que despontam talentos, é recorrente na fala dos artistas o problema da falta de incentivos em Pernambuco para o desenvolvimento e profissionalização desses autores, que, em sua maioria, contam com a curiosidade e o esforço em um processo quase autodidata. O esforço de artistas como Luiz Felipe Botelho, referência quando o assunto são cursos e ações para discutir o setor, é, em geral, minado pela falta de continuidade das políticas públicas. “Sinto falta de cursos para dramaturgia em Pernambuco; São Paulo se arma lentamente para preencher essa lacuna. Sonho com uma Grande Escola Nacional de Produção de Textos, administrada pelo Ministério da Cultura
“Infelizmente, quase não se leem peças de teatro nas escolas, não se formam leitores para esse campo” Luís Reis e com sede em todas as regiões do país. Poderia ser um grande programa descentralizado para formação de escritores”, afirma Newton Moreno. Com um mercado editorial ainda resistente à publicação de obras teatrais – o que, consequentemente, não contribui na formação de um público leitor –, uma das alternativas encontradas é a busca por editais, que ainda são escassos. “Pouco se publica de literatura dramática. Há projetos pontuais, alguns mais bem-sucedidos; mas, comparativamente em relação a outros gêneros literários, a publicação de peças teatrais ainda é bem restrita, dentro e fora de Pernambuco. Infelizmente, quase não se leem peças de teatro nas escolas, não se formam leitores para
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esse extraordinário campo da expressão humana”, lamenta Luís Reis. Lançado em 2015, o Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia, da Fundarpe, tem sido apontado como um ganho para o fomento para o setor, já que premia textos de dramaturgos locais. “Criar políticas culturais com um olhar para quem escreve para teatro também é um caminho que pode germinar bons frutos. E que o estado revele mais e mais dramaturgos. Tem gente pra escrever. Tem gente pra apreciar”, endossa Cleyton Cabral, vencedor da premiação na categoria teatro adulto com o texto Talvez sim, talvez não. Para Carla Denise, é preciso ainda que essas ações se concretizem em um mercado consolidado, resistente. “O que vejo é o poder criativo, não vejo mercado. Mercado pressupõe compra e venda, circulação, geração de direitos autorais, em que o valor da obra também é monetizável. Há poucas oportunidades em que os dramaturgos são remunerados decentemente pra fazer o que sabem. Quantos aqui sobrevivem de suas peças?”, indaga.
JANIO SANTOS
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APPS A vez das crianças
Aplicativos apresentam potencial para estimular a criatividade da meninada, e não apenas ser um veículo de entretenimento no estilo “babá eletrônica” TEXTO Yellow
Em restaurantes, salas de espera,
e em todos os lugares onde haja pais e filhos, é comum encontrar crianças em silêncio, atraídas por celulares, hipnotizadas pela resposta imediata das telas sensíveis ao toque. O fenômeno é parecido com o que aconteceu outrora com as chupetas, que traziam a paz aos mais irascíveis e famintos
bebês. Os adultos, aliviados, apreciam durante algum tempo os poderes que os aparelhos exercem sobre os pequenos, a capacidade de entretê-los em situações tediosas da vida em sociedade. Torna-se regra social, então, que mães e pais mantenham permanentemente instalados em seus smartphones ou tablets alguns aplicativos
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para uso das crianças, que possam discipliná-los temporariamente em salas de espera, longas viagens de avião ou até em encontros culturais incapazes de manter a atenção dos seus filhos. Se o abuso de chupetas já foi acusado de causar problemas respiratórios e desvios na arcada dentária, pediatras, pedagogos e psicólogos têm observado que a introdução precoce de jogos digitais, ou sua utilização desregrada em qualquer idade, também pode causar dificuldades à formação da linguagem das crianças, problemas de atenção, irritabilidade e distúrbios no sono. “Vejam como o meu filho é inteligente!”, costumam pensar e afirmar os pais quando veem crianças navegando nessas interfaces. No YouTube, abundam vídeos de crianças com menos de dois anos de idade que já são capazes de escolher seus apps favoritos e desvendarem as regras de jogos. Na verdade, não existe nada de
A popularização dos computadores pessoais só veio a acontecer durante as décadas de 1980 e 90, graças à criação de interfaces gráficas fáceis de usar. O desafio dos fabricantes era criar um produto cada vez mais intuitivo, que permitisse às pessoas comprarem um computador como se fosse mais um eletrodoméstico: comprar, levar pra casa, ligar na tomada e usar. A influência de criadores como Steve Jobs levou ao desenvolvimento de interfaces cada vez mais belas e simples, chegando ao cúmulo do iPhone e do iPad, que, com suas telas sensíveis ao toque, podem ser usados por um primata em poucos minutos. Sim, já existem vários vídeos de macacos e chimpanzés aprendendo a usar tablets e jogando Angry Birds. O problema da simplicidade e facilidade de uso dessas interfaces é que limitam nossa comunicação a gestos muito simples. O de apontar, por
Criação de desenhos, quadrinhos, animação e música são algumas das possibilidades dos programas para criança inteligente nas interfaces tangíveis. A razão da popularidade dos dispositivos móveis entre os menores se deve, em grande parte, à sua facilidade de uso. Douglas Engelbart, criador do mouse e da interface gráfica, acreditava que o potencial dos computadores seria melhor explorado aproximando a comunicação homem-máquina da linguagem da máquina. O NLS, computador que desenvolveu para a ARPA e exibiu em 1968, já possuía interface gráfica, trabalho colaborativo em rede e muitas inovações que só seriam introduzidas nos computadores comerciais décadas depois. No entanto, para ser capaz de usar o NLS, o operador (um soldado, já que se tratava de um projeto militar) precisava passar por um treinamento de três meses, desenvolvendo a proficiência em uma nova linguagem. O mercado abordou de maneira diferente os computadores e suas interfaces.
exemplo, é um dos primeiros recursos linguísticos que aprendemos, ainda bebês. Quando limitamos a interação de homens e máquinas a dedos em riste, comunicando “quero isto”, ou pinçamentos indicando “menor” e “maior”, é como se estivéssemos regredindo nossa linguagem a grunhidos. E é difícil enunciar filosofia ou poesia apontando e grunhindo. Por isso, o uso de aplicativos muito simples por crianças corre o risco de as limitar a entender os computadores como veículos para o consumo de mídia, ou para jogos e brincadeiras de interações muito simples. Os aplicativos mais populares entre as crianças podem, em alguns casos, estimular seu raciocínio lógico ou seus reflexos, mas, em sua maioria, são inúteis brinquedos interativos, como o infame gato de olhos esbugalhados que só tem uma piada: repete o que diz o usuário, com voz de gato.
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Devemos lembrar que os smartphones e tablets não são apenas versões portáteis de aparelhos de tevê com telas sensíveis ao toque. São computadores potentes, com capacidades integradas de captura de fotografia, vídeo e áudio, sensores de movimento e GPS. Esses pequenos aparelhos possuem capacidade de processamento de causar inveja a qualquer computador de mesa de 10 anos atrás, e com eles somos capazes de criar música, filmes, animação, editar fotos, publicar blogs e podcasts. Alguns deles são alternativas “para crianças”, que não subestimam sua inteligência e criatividade, que podem descortinar os processos de produção midiática, para que elas cresçam com um olhar mais crítico sobre a cultura que consomem. Esses apps ensinam que computadores não são apenas objetos, são ferramentas. Eis alguns deles:
DESENHO E PINTURA
Sketchbook é um dos mais completos apps de desenho disponíveis. Possui pincéis diferentes, e apresenta conceitos de imagem digital, como camadas e canal alpha (transparência). A Autodesk, que o desenvolve, é uma das mais importantes empresas de software de imagem, como o AutoCad e 3dStudio. Além de iOS e Android, o programa também tem versões para Mac e Windows; então, desenhos iniciados em um aparelho podem ser facilmente abertos e editados em outro.
QUADRINHOS
Dentre vários apps de criação de quadrinhos para iPad que funcionam mais ou menos da mesma maneira (escolha um leiaute de página, insira fotos de sua biblioteca nos quadrinhos e acrescente balões de diálogo), destaca-se o Comic Life, da Plaq. Enquanto outros aplicativos tentam vender pacotes de gráficos, ele já vem completo, o que compensa o preço maior (U$ 4,99). Ele permite aplicar filtros de cores às fotos, o que abre possibilidades para resultados interessantes e engraçados. Um recurso exclusivo e muito útil é a aba de roteiro, com a qual podemos escrever todo o texto da HQ para apenas posicionar nas páginas depois. Possui versões para Mac e Windows.
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som e controle de velocidade, para criar as mais espetaculares animações de Legos, que podem ser publicados no YouTube diretamente do aplicativo. Animation Creator HD, da miSoft; é a escolha mais completa para quem quer fazer animação 2D tradicional no iPad (U$ 3,99), antes de usar as ferramentas profissionais disponíveis apenas para Mac e Windows, como os programas Flash e ToonBoom. Proporciona fazer quase tudo o que animadores de papel e lápis fazem. Trata-se de outro app de interface feia, porém mais poderosa que concorrentes como Animation Desk, da Kdan (U$ 4,99).
MÚSICA
Conexão 1
FOTOGRAFIA
iMotion, da FingerLab, é um aplicativo de iOS especializado em time-lapses. O usuário escolhe um intervalo de tempo, e deixa o dispositivo parado em um lugar, e o app tira uma sequência de fotos neste intervalo de tempo, criando um vídeo que pode ser salvo na pasta de fotos. Ótimo para usar em longas viagens de carro ou avião, e capturar o movimento da paisagem e das nuvens, em restaurantes, para fazer a comida desaparecer do prato, ou em grandes eventos, nos quais pode ser registrada a chegada do público.
ANIMAÇÃO
Um dos apps mais espetaculares desta lista é o Toontastic. Com ele, crianças podem criar animações como se os personagens fossem brinquedos. Escolha uma cena, alguns personagens e comece a gravar! O iPad ou iPhone registra os movimentos dos personagens enquanto a criança os movimenta em tempo real e grava sua voz, inventando diálogos. O sistema sugere a criação de histórias em um formato narrativo padrão
1 TOONTASTIC Com esse aplicativo, a meninada pode criar animações como se os personagens fossem brinquedos
(com cenas de apresentação, conflito, desafio, clímax e desfecho), e permite ao autor escolher trilhas sonoras para cada cena. Depois, a animação pode ser publicada em um site do fabricante, cujo link é público, para ser divulgado entre amigos e família. Embora o aplicativo ofereça pacotes de personagens e cenários, o mais legal é que ele permite gratuitamente a criação de personagens e cenários. Sua fabricante, a californiana Launchpad, foi adquirida em 2015 pela Google, e especula-se que o aplicativo venha a ser incorporado a uma nova versão do YouTube, exclusiva para crianças. Stop Motion Studio, da Cateater, é um app gratuito para Mac, Windows, iOS e Windows Phone, e permite criar animações a partir de sequências de fotos de objetos. Sua interface simples e sem graça esconde um programa completo, com todos os recursos, como onion skin, edição de frames, adição de
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Com seus microfones e alto-falantes integrados, dispositivos móveis são candidatos óbvios para plataformas de criação de música. Aplicativos simples, como Spire, da iZotope, permitem gravar até quatro faixas no iPhone, com o auxílio de metrônomo, e mixá-las antes de compartilhar com amigos ou banda. Porém nenhum app de produção de música é tão completo e divertido quanto o GarageBand, da Apple. Um software de gravação de áudio destinado a músicos iniciantes, quando nasceu para os computadores Mac. Cresceu muito quando migrou para o iOS, graças à virtualização de instrumentos, como piano, sintetizadores, samples, baixo, guitarras e baterias, que podem ser tocados na tela sensível ao contato. Um investimento irrisório (U$ 4,99) para quem tem filhos com habilidade musical. A compra de acessórios como o iRig permite ainda a ligação de instrumentos de verdade ao iPad, transformando o GarageBand em um concorrente direto de programas profissionais, como Logic, Pro Tools e Ableton Live. Para aprender música, existe uma infinidade de aplicativos, em todas as plataformas. O melhor deles, no entanto, é o Yousician, disponível para iOS e Android. Com uma interface divertida e gameficação do processo de aprendizado, ele ensina piano, violão, baixo ou ukulele. Dentro do aplicativo, é possível comprar lições mais avançadas, tornando seu uso interessante não apenas para principiantes, como também para músicos experientes.
ANDANÇAS VIRTUAIS
PESQUISA Projeto transformado em site traz história e projeções para quatro bandas populares de Pernambuco, de lugares como Goiana, Paulista e Arcoverde orquestrasdepernambuco.com
No município de Goiana, é centenária a rivalidade entre Curica e Saboeira. Já a Banda Firmino da Veiga, de Paulista, tomou para si um projeto
socioeducacional que transforma jovens carentes em músicos profissionais. Considerada patrimônio musical da capital pernambucana, a Banda
da Cidade do Recife, com seus 84 integrantes, transita entre estilos populares e eruditos. Surgida em 1958, em Arcoverde, a Super Oara já fez turnê internacional por locais como Tóquio, Atenas e Paris –eis alguns dados resgatados pelo projeto Orquestras de Pernambuco – Quatro olhares sobre bandas históricas, idealizado pela produtora cultural Pérola Braz. A falta de acervo, pesquisas e visibilidade na imprensa foram alguns dos fatores que motivaram o projeto, cujo conteúdo está disponível online. Pérola convidou jornalistas (Aline Feitosa, Amanda Nascimento, Kalor Pacheco, Renato L e Rodrigo Édipo) e fotógrafos (Beto Figueiroa e Helder Tavares) para fazer um mapeamento documental, histórico e afetivo dessas bandas populares, investigando e discutindo “a importância social, cultural e artística” de cada uma delas. O site traz valiosa contribuição ao revelar histórias que quase sempre estiveram circunscritas à memória oral. MARINA MOURA
STREAMING
MÚSICA
ILUSTRAÇÃO
FEMINISMO
Reunião de produções audiovisuais sobre cultura e sociedade negra
Site permite ouvir canções que bombavam nos cinco continentes em cada década
Projeto de arte digital mostra o Recife de forma divertida
Jornalista documenta produção musical feminina em São Paulo
afroflix.com.br
radiooooo.com
filhasdofogo.tumblr.com
Com o sucesso da Netflix, diversos serviços segmentados de vídeo sob demanda começaram a surgir na rede. A novidade é o Afrolix, uma plataforma colaborativa que disponibiliza conteúdos audiovisuais gratuitamente, com uma condição: tratar sobre o universo ou ter atuação técnica/ artística negra. São filmes, séries e clipes produzidos, escritos, dirigidos ou protagonizados por pessoas negras. Para entrar no catálogo, as obras passam por uma curadoria composta por cineastas, jornalistas e produtores especializados.
Já teve vontade de descobrir o que agitava as festas peruanas em 1962 ou o que os amantes da música na Turquia ouviam nos anos 1980? Não é preciso viajar no tempo nem sair à procura de uma megaloja de discos. O site Radiooooo mapeia isso para você. Agregando músicas do mundo por localidade e época, dos anos 1900 até os dias atuais, a plataforma cria estações de rádio colaborativas e leva os ouvintes a um passeio musical. Ainda é possível selecionar a partir do seu humor: lento, rápido ou, simplesmente, estranho. O site ainda está em fase beta e cada usuário pode colaborar listando músicas, que são avaliadas por uma curadoria especializada.
www.behance.net/gallery/41451259/ GuiaIlustradodoRecife
A ilustradora Lívia Maranhão sentia falta de mostrar os pontos turísticos do Recife de maneira lúdica, quando idealizou o Guia ilustrado do Recife. Através de ilustrações digitais, é possível (re)conhecer lugares que compõem a identidade local da cidade. O itinerário é representado a partir do universo das pontes e dos rios. No cenário, o dia ou a noite indica o melhor turno a ser visitado, e ícones de transportes orientarem quais cruzam os locais referidos. A paleta de cores usada ressalta os detalhes de cada local. Textos curtos com informações sobre a história dos monumentos e curiosidades acompanham cada desenho.
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Desde julho, o Filhas do fogo está no ar para divulgar – e documentar – conteúdo sobre a produção musical feminina em São Paulo. O nome escolhido faz referência ao novo disco da banda de rock paulistana Rafka composta por 3 mulheres. Realizada pela jornalista Amanda Cavalcanti, a página traz textos, fotos e informações sobre coletivos, projetos, música experimental e selos feitos exclusivamente por mulheres na capital paulista atualmente. Em constante pesquisa, além de suas experiências com eventos de música experimental, ela busca se manter informada sobre o universo da música realizada por mulheres em São Paulo.
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Viagem
CAMBOJA Sobre a importância da ruína 1
Complexo de Angkor, em Siem Reap, é um convite à reflexão em torno da história e da memória das civilizações orientais TEXTO E FOTOS Thiago Soares
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1 PRASAT TA PROHM
Templo foi construído no meio de densa floresta e é “engolido” pela vegetação
pelo cinza quase ocre de um lugar aparentemente vazio. Este homem é observado por um monge, ao longe, trajando laranja. Não ouvimos o que o personagem diz à ruína. Ou se diz algo. Mas essa cena final de Amor à flor da pele parece ser uma espécie de tributo à memória, carícia no passado, desejo de manter acesa alguma pista de que algo existiu. Uma situação, um encontro, uma possibilidade de amor. *** Chegamos a Siem Reap perto do meio-dia, faz calor, 38 graus, aquela umidade dos trópicos. Estamos numa viagem pelo Sudeste Asiático, que tem como destinos Bangcoc (capital da Tailândia) e Phi Phi (uma das mais famosas ilhas do Oceano Índico, notabilizada mundo afora por causa do filme A praia, com Leonardo di Caprio). Aparentemente, visitar o Camboja tem, como princípio, conhecer o complexo de templos Angkor, observar plantações de arroz e o andar de elefantes. O Camboja é um reino (o país se chama Kingdom of Cambodia), é preciso visto para entrar (que se tira na
Siem Reap é o destino mais turístico do Camboja, atraindo pessoas em busca de vestígios do Império Khmer Na sequência final do filme Amor à flor da pele (In the mood for love), do diretor Wong Kar-wai, o personagem de Tony Leung, um jornalista que nutre um silencioso afeto por uma mulher casada, parece fazer uma ação inusitada. Vai a uma imensa ruína e, em vez de apenas contemplar aquele bloco de concreto e passado, dirige seu dedo a uma das “crateras” desta ruína. Toca nas paredes desgastadas pelo tempo. Parece acariciar a saudade. Ouvimos uma melodia, conjunto de violinos. O personagem, então, aproxima-se da pedra e, mãos dispostas junto à boca, cochicha algo. Mais melodia ao fundo. A câmera do diretor de fotografia Christopher Doyle passeia por paredes desgastadas pelo tempo,
chegada no aeroporto mesmo, numa caótica fila com agentes de segurança franzindo testas e nos encaminhando para procedimentos inexplicáveis) e, numa certa medida, entramos num daqueles clichês sobre destinos exóticos da Ásia. Suor, ventiladores de teto, panos esvoaçantes, bicicletas, tuk-tuks (biclicletas motorizadas que funcionam como táxis). Siem Reap é o destino mais turístico do Camboja (embora não seja a capital, que é Phnon Penh). A pequena cidade de 139 mil habitantes, formada por apenas cinco bairros, recebe 1,5 milhão de turistas por ano, 70% deles da própria Ásia, que vão em busca dos vestígios do Império Khmer, a primeira civilização asiática de que se tem notícia. “Os
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templos do Camboja aqui em Siem Reap estão para o Oriente assim como Roma está para o Ocidente. É o berço da civilização, a primeira ideia que tivemos de cidade, de organização social e de devoção à religião”, diz Meg Koung, gerente do Borei Angkor Hotel & Resort, em que nos hospedamos – um hotel luxuoso cinco estrelas, cuja diária em apartamento duplo saiu pelo equivalente a R$ 200. O Camboja é também um dos mais baratos destinos da região, que integra a antiga Indochina, colônia francesa que reunia parte de territórios de Laos e Vietnã. O país, um dos mais pobres do mundo, ficou famoso, recentemente, porque foi onde a atriz Angelina Jolie, depois das filmagens de Tomb Rider, que ocorreram no Angkor Thom, decidiu adotar uma criança cambojana. Parte da pobreza do Camboja e do enorme número de crianças nas ruas, sobretudo nos locais turísticos, deve-se a um episódio histórico: o sangrento – e corrupto – governo chamado Khmer Vermelho, que, entre 1975 e 1979, através de um suposto governo comunista, teria dizimado cerca de 2 milhões de pessoas. Por isso, hoje, através do turismo e de seu legado histórico no Complexo Angkor, o Camboja recupera sua frágil economia e incentiva a natalidade – não à toa, vemos muitas crianças em todos os lugares. *** Há quem diga que a beleza das ruínas está em mantê-las intactas, decrépitas. A ruína é uma política do presente, a reivindicação de uma história. “Neste mundo da velocidade, não há envelhecimento, apenas superação”, diz-nos Nelson Brissac-Peixoto, em seu provocador livro Cenário em ruínas. Para ele, tudo está permanentemente sendo demolido. “As criações fantasiosas preparam a si mesmas para se tornarem meros cenários ao serem construídas como fachadas decoradas ou mesmo para se tornarem meros cenários ou painéis publicitários”, relata. Por isso, chegar ao Complexo Angkor, em Siem Reap, é tão singular. Ali, as ruínas estão intactas. E orgânicas. O mais belo é ver as raízes de árvores seculares se amalgamando com as pedras, as paredes, os restos de janelas.
2-3 ANGKOR WAT
Principal templo local, foi construído no século XVII, com o objetivo de proteger o lugar e a religiosidade. Por ele circulam devotos de várias matrizes espirituais
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Viagem 2
Um dos mais importantes patrimônios da humanidade, segundo a Unesco, o Complexo de Angkor é uma herança dos séculos IX ao XV, tempos do Império Khmer (não o Khmer Vermelho, que “usou” o passado para construir uma ditadura sanguinária), o primeiro momento civilizatório na Ásia. Como tudo é muito barato no Camboja, fechamos com um taxista, pelo equivalente a US$ 20, que nos pegasse no hotel, num veículo com arcondicionado e nos esperasse em cada um dos templos. Sim, ar-condicionado não é luxo nesta cidade de 38 graus e sol a pino. Sem falar que o Complexo de Angkor tem cerca de 400 quilômetros quadrados e, entre um templo e outro, as distâncias podem variar de 100 metros a dois quilômetros. O principal templo é Angkor Wat, tão importante, que está estampado em cédulas monetárias e na própria bandeira do país. Construído no século XVII, teve por objetivo a proteção do lugar e a religiosidade. É erguido sob as premissas do hinduísmo, por isso que vemos tantos indianos circulando no templo. Diante de um espelho
de água e projetado para servir de contraluz no nascer do sol, há um fetiche turístico em acordar às cinco da manhã e ir ver o sol nascer no templo. O contorno das edificações pontiagudas no contraluz amarelado é, de fato, de tirar o fôlego. No entanto, nesta época de zika vírus, nós, brasileiros, ficamos paranoicos com o número exorbitante de mosquitos – portanto, repelente é atenuante e fundamental. Caminhar pelo Angkor Wat é um exercício de beleza e sacrifício. A arquitetura de pedras parece absorver o calor, embora estar naquele espaço, com toda a história que aquilo comporta, é uma experiência que nos afeta. Está no Angkor Wat o que primeiro se chamou de “casa” no Oriente. Também as primeiras ideias de “templo”. Os caminhos são de pedra. Os degraus, íngremes. Parecemos estar numa fortaleza. E talvez até seja. No centro, uma espécie de pátio que hoje tem uma grama verde e convidativa. É ali que muitos visitantes sentam, meditam, parecem ouvir o calor. Converso com uma turista inglesa que tentou fazer o trajeto ao Angkor Wat de bicicleta.
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Desistiu. Suada, ofegante, ela toma uma água de coco enquanto exalta: “Aqui tudo é lindo e místico”. No caminho entre um templo e outro, somos abordados por elefantes que outrora serviam de transporte de carga e para a agricultura e hoje fazem a festa dos selfies dos turistas. Mesmo pequena, Siem Reap, às vezes, tem trânsito de cidade grande, que mistura carros, tuk-tuks, motos, bicicletas e elefantes. A paisagem aparentemente caótica parece não combinar com a tranquilidade que é o Angkor Wat. E não combina. Porém, o motorista que nos conduz durante o passeio, explica: “O maior legado dos budistas é conseguir meditar em meio à loucura das grandes cidades, esta é a verdadeira virtude da meditação”. Enquanto o motorista fala, avistamos o Bayon, conjunto de pedras que traz rostos de chefes e divindades esculpidos – lembro-me da Ilha de Páscoa, daqueles rostos estáticos e gigantes. Como conseguiram fazer aquilo? O humano e suas dúvidas. Outro impressionante templo do Complexo de Angkor chama-se Prasat Ta Prohm: construído em meio a uma
densa floresta tropical, árvores retorcidas cresceram sobre e entre ruínas, criando uma atmosfera intrigante e macabra. O lugar serviu de cenário para o filme Tomb Rider e também para a relação contraditória da atriz Angelina Jolie com o Camboja. Contraditória porque, ao midiatizar a adoção de uma criança cambojana, a atriz chamou a atenção para um problema: o tráfico de seres humanos, neste caso, de crianças asiáticas, para ricas nações europeias e americanas. Parece estranho (e de fato é) que, depois da “adoção pop” de Jolie, aumentou em 20% o número de adoção de crianças para pais estrangeiros no país – segundo dados da organização Parenting Maternal and Child. O dado seria para se comemorar, não fosse uma questão: famílias pobres cambojanas estavam tendo crianças especialmente para adoção. A reação a Angelina Jolie no país fez com que a atriz tentasse contribuir para pautar outras questões do Camboja na cultura midiática – e não apenas como “maternidade de adoção”. Em março deste ano, a atriz terminou as filmagens do documentário First they killed my father:
O Complexo de Angkor compreende 400 km de monumentos, acervo da primeira civilização asiática
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A daughter of Cambodia remembers, baseado no livro de memórias da ativista Loung Ung, que narra os horrores que sofreu durante o Khmer Vermelho. Trata-se de uma espécie de biografia que conta em detalhes afetivos sobre as famílias cambojanas desfeitas em função do genocídio de cerca de 2 milhões de pessoas mortas em quatro anos durante o regime ditatorial cambojano. Como lidar com a efemeridade do mundo? Na falta de referência com um objeto primeiro, na ausência do contato físico com os objetos e outros elementos presentes nesta temporalidade, perdemos o referencial. Passamos a ver o mundo como uma falsificação, um simulacro, uma aparência. “O indivíduo contemporâneo está à
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procura de uma identidade e de um lugar. No entanto, a mudança constante das imagens urbanas torna-o perdido em seu próprio tempo. Lugares perdem as suas referências”, reflete Nelson Brissac-Peixoto. Ao estar presente no Angkor Wat, estamos, talvez, diante do nosso próprio passado. A ideia da personagem de Sônia Braga no filme Aquarius, que luta contra uma grande empreiteira para manter seu apartamento (sua memorabilia, sua história), parece ser metáfora do apagamento que algumas ideias de modernidade trazem. Por isso, é tão sui generis cruzar o mundo, passar mais de 20 horas dentro de aviões, entre conexões e aeroportos para, finalmente, estar dentro de uma ruína. A enorme ruína de Angkor Wat. “O que seria a necessidade de retornar ao passado para buscar os referenciais que faltam ao homem no presente?”, questiona Nelson BrissacPeixoto. “Casas que vão ser demolidas, lugares aos quais não podemos mais voltar. Por que manter a ruína?”. Ruínas seriam idealizações para um futuro nos lembrando do nosso passado. Na sua efêmera permanência no presente, a ruína nos leva em direção a uma ideia de memória comum e coletiva. “O perfil arquitetônico das cidades tornou-se fugidio; os edifícios agora não passam de estruturas frontais provisórias, de rápida obsolência, obedecendo a ciclos estilísticos cada vez mais curtos”, diz Brissac-Peixoto. *** Quando já estou deixando o Complexo de Angkor, lembro a cena final de Amor à flor da pele, um dos meus filmes favoritos. Templos, câmeras lentas, o personagem contando um segredo para a ruína. Vou ao Google e, sim, a sua sequência final foi gravada ali mesmo, no Complexo de Angkor, em Siem Reap, no Camboja. Duas observações: a visita àquele lugar nos transporta para a história da civilização oriental (como me contam inúmeros guias turísticos no local) e também para a história de algum sujeito que ali viveu, que construiu tudo aquilo para alguém, por algum motivo. Numa certa medida, a História e a Arte parecem se completar, enquanto as ruínas do Angkor Wat vão ficando para trás.
IZA VAREJÃO/DIVULGAÇÃO
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História
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TRABALHO Um olhar sobre a luta pela terra Livro de Zito da Galileia (foto ao lado), a ser lançado em dezembro pela Cepe Editora, trará relato de quem viveu a história das Ligas Camponesas em Pernambuco TEXTO Samarone Lima
“Fiquei mastigando essa
história. Nunca dava certo, mas eu sempre escrevendo. Já estava sem esperança de publicar.” A frase é de José Joaquim da Silva, de 69 anos, o Zito da Galileia, que lança, em dezembro, pela Cepe Editora, o livro de memórias A história das Ligas Camponesas – Testemunho de quem a viveu, projeto que o autor vem acalentando desde a década de 1990, quando morava em São Paulo. O testemunho de Zito vem acompanhado de um anexo, com vários textos coletados (e redigidos) pelo escritor e jornalista Marcelo Mario de Melo, que o ajudou a transformar o calhamaço de originais em livro. Nele, o leitor terá uma visão mais ampla do que foi a luta pela reforma agrária no Brasil, nas décadas de 1950 e 1960, liderada pelas Ligas Camponesas. Autores como Paulo Cavalcanti, Francisco Julião, Josué de Castro (Programa de 10 pontos para vencer a fome, elaborado nos anos 1950), trechos do famoso discurso do presidente João Goulart em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, pouco antes do golpe que estava sendo urdido, no qual defendia a reforma agrária, e um poema de Vinicius de Morais, intitulado Oshomens da terra, publicado
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em 1962 estão na publicação. Além disso, um ensaio fotográfico de Iza Varejão retoma as imagens de um lugar cheio de significados – o Engenho Galileia. Sim, mas quem foi Zito da Galileia? – perguntarão muitos leitores. Zito era menino de oito anos, em 1955, quando foi criada, no Engenho Galileia, próximo a Vitória de Santo Antão, a 60 quilômetros do Recife, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco – SAAP. Hoje é difícil lembrar essa sigla, mas ela conseguiu algo improvável em dezembro de 1959. Enfrentou o poder dos latifundiários, donos de engenho, políticos poderosos, e conseguiu desapropriar o Engenho Galileia. A posse da terra foi em fevereiro de 1960. O detalhe é que Zito era neto de José Francisco de Souza, o Zezé da Galileia, que foi presidente da Sociedade, que se tornou o embrião para o nascimento de um dos maiores movimentos libertários dos trabalhadores rurais do Nordeste – as Ligas Camponesas. “Este livro foi escrito por uma questão de paixão pela história da Liga Camponesa da Galileia, que nasceu na residência do meu avô, o velho Zezé da Galileia”, lembra Zito na introdução à publicação. Ele
FOTOS: ACERVO DE ZITO DA GALILEIA/REPRODUÇÃO
CON TI NEN TE
História
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1-3 PROTAGONISTAS Zezé da Galileia e o militante Francisco Julião (acima), a professora Maria Celeste Vidal e o agricultor Luis Serafim são personagens desta narrativa 4 MARCHAS Trabalhadores rurais reunidos nas Ligas Camponesas em caminhada de protesto
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acompanhou tudo, em diferentes fases de sua vida. Quando era menino, viu os camponeses tirarem as enxadas do chão (ou do lombo) e as erguerem, em passeatas, reclamando por direitos básicos mínimos – como o de não serem tratados como escravos. As rodas de conversa, na casa do avô, eram aulas de História, Sociologia, política: eram frequentadores Francisco Julião, Gregório Bezerra, Davi Capistrano e todas as lideranças do movimento. Tinha oito anos quando participou do primeiro evento, no Recife, o Congresso Camponês de Pernambuco, que reuniu mais de três mil pessoas. Estava com 13 anos, quando o churrasco para duas mil pessoas celebrou a posse da terra, em Galileia. Tinha 16 anos e estava defronte ao Palácio do Campo das Princesas, junto a centenas de trabalhadores rurais, para celebrar a posse do recém-eleito governador
Miguel Arraes. E, aos 17, viu o golpe militar e a fúria repressiva destruírem tudo o que se referisse às Ligas – pessoas, especialmente. Numa narrativa simples, que segue o fluxo de suas memórias, entremeada por pesquisas (especialmente do período em que morou em São Paulo), relatos e fatos que presenciou, Zito traz para a bibliografia do período a contribuição rara do “eu”. A narrativa é marcada por uma espécie de contenção reguladora, de quem esteve próximo demais e não pretende ir além limite de suas memórias.
O AVÔ ZEZÉ
Os militares começaram a tomar o poder na noite do dia 31 de março de 1964 e concluíram tudo no dia 1º de abril. Mas as prisões, torturas, assassinatos, fechamento dos sindicatos rurais, já faziam parte do cotidiano dos que ousaram “tomar
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posse” de algum pedaço de terra – mesmo com a sanção do governador, como foi o caso de Galileia. Era dia 26 de abril, e seu avô Zezé ainda não tinha sido preso. Às 10h, chegou à casa dele o “tenente Saraiva”, acompanhado de quatro soldados. Disse à dona Marieta, sua esposa, que o chamasse onde ele estava escondido, porque não seria preso, por ser idoso. Iria só “dar um depoimento na delegacia de Vitória” e seria trazido de volta. “Dona Marieta acreditou. Foi chamar seu esposo que, ao chegar em casa, foi abraçado pelo tenente e não recebeu voz de prisão. Mas, em vez de irem para Vitória, seguiram para a Secretaria de Segurança no Recife. Zezé ficou alguns dias incomunicável, a família correndo presídios, delegacias, quartéis, sem encontrálo. Até que se soube que ele estava no quartel do 7º R.O., em Olinda.” No breve relato de uma cilada, uma prisão, a incerteza sobre o paradeiro de um parente, o desespero pela falta de notícias, Zito mostra também os primeiros dias da ditadura que durou 21 anos. Em nenhum momento ele se refere a Zezé como “vovô”. Sequer o “ele”. Parece querer apenas mostrar ao leitor o que aconteceu. Não é um texto marcado pela indignação. Zito conta, e deixa ao leitor o entendimento. Ou, neste caso, o sentimento. E a memória parece renascer. “Aí foi colocado em um cubículo de dois metros quadrados, comendo pão sem receber água, que retirava de um esgoto quebrado no meio da cela. Ficou seis meses incomunicável. Dentro do cárcere, teve um AVC. Então os militares resolveram libertálo. Voltou para Galileia barbudo, doente, desnutrido e fragilizado. Faleceu no dia 30 de agosto de 1969, no Hospital João Murilo de Oliveira, em Vitória de Santo Antão, deixando esposa, filhos, filhas e netos.” O tom do livro é atravessado pela necessidade de contar, mas o fato de ter “mastigado” tantos anos o que pretendia dizer, parece ter produzido em Zito os efeitos do próprio tempo. Não há um “acerto de contas”, por assim dizer. Ele quer apenas que outros saibam o que foi vivido e o que foi silenciado.
Na primeira lembrança, ele estava com oito anos. Aos 18, tirou os documentos para procurar emprego. Passou por várias fábricas, oficinas, enchimento de bebidas, tecelagens, fábricas de papel. Bastava alguém citar a palavra Galileia, que Zito era chamado de “comunista”. Em outro emprego, descobriram que ele era “camponês”. Eram palavras que podiam custar caro, em plena perseguição. Mudou-se para o Recife. Ficou morando em um pequeno barraco, escondido, ainda preocupado com as notícias que lia nos jornais. Prisões, mortes, torturas, corpos de camponeses encontrados nos canaviais. “Os militares ainda não tinham esquecido Galileia”, diz. Em 1969, começara o mais brutal período do regime – o governo Médici. Zito conseguira uma vaga como cobrador de ônibus. Ficou trabalhando, mas sempre nervoso com a agitação da cidade. Voltou para Galileia, ficou alguns meses com o pai. Mesmo com pouca educação formal, mandou-se para São Paulo. Era o dia 29 de junho de 1971.
CELESTE E SERAFIM
Um dos capítulos mais contundentes do livro é o sobre o golpe militar, e a quixotesca tentativa de resistência de gente comum, como a professora Maria Celeste Vidal Barros e o militante Joaquim Serafim dos Santos. No dia 31 de março de 1964, quando as rádios anunciavam o cerco ao Palácio do Campo das Princesas, eles estavam na sede das Ligas, em Vitória. Pegaram os microfones da Radio Jurema, e convocaram os camponeses para a resistência. “Com dois mil camponeses, invadiram as delegacias de Vitória e Pombos, renderam 30 policiais efetivos, tomaram as armas, distribuíram-nas com os camponeses e passaram a telefonar para o Recife solicitando armas para a resistência. Ligaram para o Palácio do Campo das Princesas, o quartel do Derby, a Escola de Aprendizes Marinheiros, mas nada conseguiram, pois os oficiais não estavam dispostos a arriscar a pele. E como resistir era impossível, no dia 2, às 17 horas, Luiz Serafim e Maria Alceste resolveram se esconder.”
O relato de Zito é seco, duro, retrato contundente do que aconteceu com centenas de camponeses das Ligas Zito segue os caminhos desses resistentes. No dia 3 de abril, à noite, eles estavam reunidos na sede da Liga de Bento Velho, escutando as notícias pelo rádio. Não tinha mais jeito, o golpe militar estava consolidado. Pegam um jipe e fogem para Glória do Goitá. Minutos depois, chegaram dois jipões lotados de soldados do Exército, que invadiram a Liga e destruíram o que era possível, além de rasgar o livro de atas e roubar o dinheiro das mensalidades dos associados. Celeste pede que a deixem em casa, pois os filhos tinham ficado sozinhos. Temendo ser localizada por causa do jipe, ela resolve ir a pé e depois pegar um táxi. Ao se aproximar de casa, vê que estava cercada pelos militares. Entra na residência de uma amiga e se esconde. “Enquanto isso, os militares estavam na sua casa vasculhando tudo, jogando livros pelo chão,
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derrubando móveis e objetos. Passaram a pressionar as crianças, perguntando se Celeste tinha amigos naquele bairro. As crianças inocentemente começaram a falar em nomes de amigas de Celeste. E, na terceira casa invadida, encontraram Celeste escondida debaixo de um tanque de lavar roupa, e deram-lhe voz de prisão.” O relato de Zito é seco, duro, um retrato contundente do que aconteceu com centenas de camponeses que fizeram parte das Ligas, naqueles anos de luta pela posse da terra.“Transportada até o Recife na carroceria de um caminhão, foi estuprada seis vezes pelos militares durante o trajeto. Ao chegar à Secretaria de Segurança, continuaram as torturas: o telefone, o choque elétrico, a queimadura nos mamilos com pontas de cigarros, para revelar onde estavam escondidos os outros companheiros.” Em raros momentos do seu testemunho, Zito usa o “meu” ou o “minha”, como se pudesse, finalmente, revelar alguma posse. “Em 1974, visitei em Galileia o meu velho pai, já um tanto cansado, e minha mãe doente. Só alguns filhos estavam ali.” Os pais, como metáfora de uma terra que se possui, e que jamais poderá ser arrancada.
ARTE SOBRE REPRODUÇÕES
ESCRITA Febre de contar
Somente ao voltar ao Recife, aposentado, Zito da Galileia organizou as centenas de páginas do seu testemunho histórico
CON TI NEN TE
História
Zito começou a escrever seu
testemunho à mão. “Escrevia, escrevia, escrevia”, diz, como quem tem uma febre de contar. Depois, comprou uma máquina de datilografia e foi organizando o material. Quando voltou de vez para Galileia, em 1999, com centenas de páginas, decidiu passar tudo para o computador. Ele conta que a maior parte do que escreveu é de coisas que lembra, mas aproveitou o período em São Paulo para se aventurar como pesquisador. Nos dias de folga, costumava ir à Biblioteca Mário de Andrade ou à Biblioteca Vergueiro, em busca de livros sobre as lutas camponesas no Brasil. Numa delas, encontrou uma raridade: Os industriais da seca e os galileus de Pernambuco, do jornalista Antonio Callado. Foi na Vergueiro que encontrou uma foto microfilmada de João Pedro Teixeira, militante das Ligas, assassinado. Ao contrário do Recife, onde poderia ser perseguido se fosse reconhecido como “um dos galileus”, o fato de ser “descoberto” despertava
o interesse. As Ligas tinham sido aniquiladas, mas a memória sobrevivia. “Depois de pesquisar fui até a máquina de revelação e falei com o cidadão responsável, que pegou a foto e começou a olhar. ‘Que foto é esta?’, perguntou ele. Eu respondi: ‘De João Pedro Teixeira, um camponês que foi assassinado por latifundiários da Paraíba’. Ele disse: ‘E o senhor o conheceu?’. ‘Sim’, respondi. Ele disse: ‘Não venha me dizer que você foi das Ligas Camponesas!’. ‘Fui, sim senhor’, respondi. Ele me abraçou, levou-me a uma sala e me entrevistou por mais de uma hora.” Mas só quando retornou ao Recife, já aposentado, foi que viveu o impasse. Como transformar todo aquele material em um livro? Como deixar as ideias mais organizadas? Em meio a tantas coisas que viveu, escutou e leu, como contar também a própria vida? Foi quando resolveu buscar o jornalista e escritor Marcelo Mário de Melo, militante político, preso pela
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ditadura e que sempre mantém acesa a chama da memória, em livros, artigos, debates. E Marcelo tinha uma vantagem, para um livro que tratava da memória das Ligas Camponesas – a admiração pelos que lutam e uma vasta pesquisa que vem fazendo sobre as disputas pela terra no Brasil, desde as Capitanias Hereditárias. Desde muito jovem, Marcelo acompanhava as Ligas, e admirava a capacidade oratória do deputado Francisco Julião, defensor ardoroso dos grupos. No livro, há um texto dele intitulado O tribuno Francisco Julião. Ao receber os originais, ele não teve dúvida em ajudar. Fez um cuidadoso trabalho de edição, deu sugestões e fez uma pesquisa complementar. “É um depoimento substancial, importante. Ele estava lá dentro e viveu o crescimento das Ligas, o apogeu e a repressão. Depois foi para São Paulo e voltou, para organizar a memória”, observa. “Ele era uma criança quando tudo começou. É também o olhar de um menino.”
Ele destaca o conteúdo do livro que mostra como as instituições, no Brasil, são marcadas pela escravidão. “Só agora estamos fechando a questão das empregadas domésticas. Os excluídos de hoje são escravos reciclados”, avalia. Lembra também que a repressão aos camponeses, antes e depois do golpe, teve um aspecto “paranoico”.“O simples fato de o governo Arraes aplicar a legislação trabalhista no campo, em plena década de 1960, foi um escândalo. Mas era uma legislação que já existia desde a década de 1940. A reação foi terrível”, lembra.
SILENCIADOS
Logo que voltou para morar na Galileia, terra que foi cenário de tantas lutas, Zito descobriu algo perturbador – a história daquele lugar estava silenciada. “Ninguém sabia de nada. Zero. Os moradores pouco ou nada sabiam sobre o que essa terra representa”, diz. Enquanto escrevia seu livro, Zito foi à luta. Resolveu que era preciso ter uma biblioteca no local, com o
Zito lembra que, quando voltou a morar na Galileia, descobriu que ninguém sabia de nada das histórias de luta daquele lugar nome de José Ayres dos Prazeres, um dos personagens fundamentais para o nascimento da Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco. Comprou uma pequena filmadora e iniciou a produção de um documentário, contando a história das Ligas Camponesas. O material, depois de editado, ganhou o título de A Liga que ligou o Nordeste. Ele fez várias cópias e começou a vender por R$ 10,00 cada. “Juntei dinheiro, comprei tijolos e comecei a construção da biblioteca”, conta Zito. Depois vieram apoios de profissionais de diversas áreas, como professores, comerciantes, cineastas, até que o espaço ficou
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pronto.“A partir daí, não faltaram mais visitantes à Galileia. Os professores começaram a trazer seus alunos de colégios e faculdades em comitivas. Já vieram estudiosos de diversos países.” Em um cordel de sua autoria, intitulado Sonhando acordado, Zito fala sobre sua trajetória: Galileia sinônimo de vitória Foi ali minha leiga faculdade Muitos anos nesta universidade Formei-me na pressão da palmatória No roçado da vida fiz história Na enxada prestei vestibular A peneira meu livro de estudar Soletrando as palavras aprendi a ler Meu anel de doutor ninguém vai ver Tenho orgulho de ter nascido lá. Zito contabiliza 5.500 livros nas estantes da biblioteca. Com a chegada do seu livro-testemunho, a Galileia vai ter uma versão de quem ali nasceu, viveu, ali viu amigos e parentes lutarem e morrerem, mas voltou para contar e lembrar. SAMARONE LIMA
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1 GALO PADEIRO Oferece uma grande variedade de pães feitos com fermentação natural
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LEVAIN Prestígio do pão de fermentação natural
Entre os movimentos de “contracultura” culinária está o fabrico do alimento a partir de técnica tradicional, que eleva seu sabor, sua riqueza nutricional e seu tempo de preparo TEXTO Eduardo Sena FOTOS Daniela Nader
Categoria cultural que é, a
gastronomia, leia-se o mercado que a representa, também não se furta em emplacar os seus mainstreams. De tempos em tempos, e com espaços cada vez mais curtos, uma corrente hegemônica é ventilada, rapidamente absorvida pelos foodies, instalando uma nova configuração de marketing comestível. Após a celebrização do brigadeiro, da tapioca, das cervejas artesanais e, mais recentemente, do café, agora é o pão o alvo do curioso processo que transforma o alimento em objeto de consumo e não mais de subsistência. Esse frisson se deve ao processo fermentativo ao qual ele vem sendo submetido, a fermentação natural, também conhecida como levain, em francês. E, aí, vale uma digressão para a trajetória do pão. A história não indica quando ele surgiu, mas é consenso que só depois de algumas conquistas humanas: o domínio do fogo, o início da agricultura (o primeiro grão semeado foi o sorgo, e, em seguida, a cevada, a aveia, o trigo e o centeio) e o desenvolvimento da cerâmica. “Em princípio, não eram fermentados.
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O que só veio a acontecer no Egito, entre 2000 e 1600 a.C.”, aponta a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti. À época, o método aplicado a essas panificações era o natural, justamente o mesmo que vem sendo festejado atualmente, resultado da ação biológica de micro-organismos formados majoritariamente por fungos e bactérias. “Eles se alimentam da mistura de farinha e água, consumindo os açúcares contidos no trigo e, em troca, produzem gás carbônico, álcool e ácidos”, resume o jornalista gastronômico Luiz Américo Camargo, entusiasta do método e autor de Pão nosso – Receitas caseiras com fermento natural. Até o século XIX, o pão era fermentado assim. Uma nova realidade só surgiu em 1857, a partir das pesquisas de Louis Pasteur, cientista francês que identificou uma das variadas leveduras, a Sccharomices cerevisiae, como uma solução que poderia agir de forma mais rápida que qualquer outro tipo. Esse fungo compõe o conhecido fermento biológico, que, devido ao aumento
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2-6 PROCESSO A técnica natural é lenta. Nela acontecem três fermentações simultâneas
7 MÁRCIO DE SENA Padeiro artesanal diz que o método garante muito mais sabor ao produto final
da demanda comercial, foi popularizado, reduzindo a adesão das padarias ao método tradicional. “A fermentação natural, que é lenta e caprichosa, em um certo momento, tornou-se inconveniente para os horários apertados do cotidiano moderno. Até que o método antigo virou mais exceção do que regra”, explica Luiz Américo. Segundo Maria Lecticia, o Brasil só conheceu o pão depois da chegada da família real, em 1808, ainda assim, com bastante dificuldade. O alimento era restrito à corte, já que poucos tinham acesso ao trigo, que era vindo de Portugal. “É natural que um país com pouco mais de 200 anos de panificação, e onde 99% dos pães produzidos são feitos com fermento biológico, se entusiasme com essa possibilidade. É, sem dúvidas, um grande enriquecimento para a população. Mas é preciso ter cuidado para que o caminho tomado não seja o da vaidade, o do adjetivo,
deixando a qualidade em segundo plano”, salienta o padeiro artesanal Márcio de Sena, especialista no métier. Há sete anos se dedicando ao processo, o padeiro não só acredita que há uma exaltação demasiada ao método e pouco conhecimento efetivo, como desaprova o valor subjetivo que o alimento vem tomando. “Pão é o alimento básico do dia a dia. Todo dia faço pães à base de levain para vender. É um preparo que faz parte do cotidiano das pessoas. Além do quê, não estamos falando de algo inovador, mas milenar.” Por outro lado, a valorização dada à técnica parece compor algo muito maior, como o próprio zeitgeist gastronômico, hoje ancorado na valorização dos produtos artesanais e de cultura orgânica. Mas, à parte desse momento de libertação da indústria e fetiche comestível, o que torna o pão de fermentação natural tão especial?
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Receita
FAÇA O SEU PÃO
O primeiro passo para um pão ou qualquer outra massa de fermentação natural é a confecção do levain. Porém, lidar com ele é estar o tempo todo em diálogo com a podridão: se você não alimentar a sua colônia de microorganismos, ela se consome e morre. O padeiro artesanal Márcio de Sena ensina que o processo é dividido em três partes: criar a cultura, estabilizar o fermento e preparar para uso na receita. Abaixo, o passo a passo.
PASSO 1
GANHO NO SABOR
Se formos fazer uma analogia da massa fermentada com a música, a produzida com fermento biológico seria como o som de apenas um instrumento, a confeccionada com levain, uma orquestra. “Como o fermento biológico é composto por apenas uma levedura específica, ela fornecerá apenas uma característica. A que permite a produção de gás carbônico, que faz o pão crescer. Logo, ele apenas infla, mas não produz sabor”, explica Márcio de Sena. Já a versão com fermentação natural, composta por dezenas dessas bactérias agindo em conjunto (que digerem preguiçosamente o amido do trigo), geram não apenas os gases necessários para o crescimento, mas também ácido acético e lático, elementos que contribuem para o desenvolvimento de seu sabor. O industrial, em resumo (e sem demérito, pois as propostas são diferentes), infla a massa, mas contribui menos para o aporte de sabor, embora seja muito útil em diversas receitas. Já o fermento natural atua sobre o trigo sem pressa. “Como característica visual, o pão ganha filões com crostas crocantes e espessas. A textura do miolo é densa, embora leve. Na
“A fermentação natural é mais complexa, porque o padeiro atua como um regente”
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Márcio de Sena boca, despontam sabores especiais, nos quais se revelam notas de mel, nozes e outros elementos que parecem ter se fixado ali por magia”, detalha Luiz Américo Camargo. “A fermentação natural é mais complexa, porque o padeiro atua como um regente, um maestro de todos esses sons”, compara Márcio de Sena. Segundo ele, durante o preparo, acontecem três fermentações simultâneas no pão: a alcoólica, a mais desejada pelo panificador, que é a que libera CO² e faz o pão crescer, a acética e a láctea. “Entretanto, cada uma acontece em tempos distintos, sendo o grande desafio do padeiro buscar uniformizá-las de forma que cheguem ao estágio final do processo quase ao mesmo tempo”, explica o padeiro. Tempo, a propósito, é um outro componente importante. É que existem dois métodos na produção
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1. Pese 50 g de farinha integral de centeio e 60 g de água (natural, e filtrada) 2. Misture e coloque numa tigela de vidro transparente 3. Cubra a tigela. Pode usar uma touca plástica de cabelo (sem porosidade) ou um plástico filme (nesse caso, faça furos ao cobrir) 4. Deixe descansar em lugar reservado fresco, longe do sol, por 36 a 48 horas até a formação das primeiras bolhas. Não precisa ser dentro de um armário, pode ser na bancada da cozinha 5. Após esse período, descarte a metade da mistura e adicione 50 g de água e mais 50 g de farinha integral de centeio 6. Cubra novamente e deixe descansar por 36 horas 7. Repetir o processo a partir do item 5, sempre observando o comportamento do fermento (formação de bolhas, aroma, crescimento…) por aproximadamente 10 dias
PASSO 2
1. Descarte a metade da mistura e coloque 50 g de água e, agora, 50 g de farinha de trigo comum, misture e reserve 2. Cubra e deixe descansar na tigela coberta. 3. Repetir o processo, agora num ciclo de 12 em 12 horas durante 7 dias
PASSO 3
Preparar para fazer o pão: o processo do refresco (nome dado para os ciclos das misturas) agora será de 6 em 6 horas; observe a quantidade desejada do fermento natural para ser usada na receita e proceda o refresco em três partes iguais de farinha de trigo, água e do fermento existente; deixe descansar numa tigela coberta por 6 horas; reserve uma pequena parte e adicione a quantidade do fermento natural exigida pela receita.
Cardápio
BAGUETE TRADICIONAL* INGREDIENTES
1.720g de farinha de trigo 1.240g de água gelada 35g de sal 520g de fermento natural
PREPARO
1. Em uma tigela ou numa batedeira em velocidade baixa, misture a farinha e toda a água. Cubra com um plástico e deixe descansar por uma hora. Reserve. Após o descanso, adicione os outros ingredientes, deixando o sal por último. 2. Misture por 15 minutos em velocidade média. Observar o ponto de véu da massa (consiste em identificar o quanto um pedaço da massa pode ser aberto sem rasgar) e, caso esteja no ponto, encaminhar para próxima etapa: a 1ª fermentação. 3. Cubra com um plástico e deixe descansar na tigela por duas horas e meia a três horas, coberta com plástico. 4. Retire cuidadosamente da tigela e coloque sobre uma bancada enfarinhada. Divida em 10 porções de 350 g cada. 5. A partir das porções já divididas, enrole de forma leve (tipo um cilindro) e deixe descansar por 25 minutos. Cubra com o plástico. 6. Alongue os pequenos cilindros fermentados em formato de baguetes e coloque em assadeiras adequadas. 7. Cubra as baguetes com o plástico e deixe-as descansar nas assadeiras por uma hora. 8. Preaqueça o forno em 230º C, faça cortes paralelos em todo o comprimento do topo das baguetes e ponha no forno. Asse por 26 minutos aproximadamente. * Por Márcio de Sena Rendimento: 10 baguetes de 350 g cada.
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8 FORNERIA 1121 Pizzaria, no bairro dos Aflitos, zona norte do Recife, é pioneira no estado na fabricação de pizzas com levain
dessas massas, o direto e o indireto. No primeiro, com fermento biológico, todos os ingredientes são misturados em uma máquina e, em média de cinco horas, o pão estará pronto. No segundo, também conhecido como longo, residem duas subcategorias, a com fermento biológico e a com levain. Enquanto, em uma, é produzida uma mistura de água, farinha e fermento, que serve como base de acordo com o pão que se quer fazer, no outro, é adicionado o fermento natural, feito a partir de farinha e água (para produzilo, levam-se 15 dias; veja receita no box), no qual o pão leva de 24 a 48 horas para ficar pronto. O tempo recompensa. Além do sabor, entre as vantagens da fermentação longa está o auxílio no processo digestório. “Basta lembrar que durante todo esse tempo as bactérias se alimentam do amido do trigo, um dos vilões do grão. Logo, elas vão adiantar essa função digestiva para o organismo humano. E mais: ainda liberam enzimas como a fitase, contida na farinha, que facilita ainda mais na digestão”, garante a nutricionista esportiva Tamyris Farias.
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MASSA E LEVAIN
Com tantos benefícios, o método levain não se restringiu à panificação. Em qualquer outra massa que necessite de fermentação, ele pode ser aplicado. “O que não é uma garantia de qualidade, vale frisar. Para se obter êxito na massa, é preciso cumprir 12 etapas. O levain é apenas uma delas”, esclarece Márcio de Sena. O padeiro artesanal está à frente das massas da Forneria 1121, pizzaria mais ou menos recente, nos Aflitos, que detém o pioneirismo no estado na produção de pizzas com fermentação natural. “Quando foi feito o convite para a consultoria, foi solicitada uma massa de pizza de que eu gostava. Elegi a de Denominação de Origem Controlada Napolitana, que, entre as normatizações, requer fermentação longa, mas não necessariamente natural. Ou seja, requer a aplicação do método indireto. O resultado é uma pizza que o comensal consegue devorar alguns pares de fatias sem aquela sensação de empachamento gerada pelo amido do trigo. A subsistência é a cobertura das redondas. Um dos segredos é a utilização de farinhas italianas na receita. Como são mais ricas em amido, a bactéria tem do que se
Matthias Steinbach
alimentar durante as 20 horas de fermentação”, atesta Márcio. Na região central do Recife, em Santo Amaro, a padaria Galo Padeiro também aplica o método para além dos pães. Pioneira no formato na cidade, no endereço, em tudo o que requer fermentação, os atalhos são dispensados, e o levain entra em cena. Mas o procedimento não foi deliberado. Quando as sócias Manuela Agrelli e Luciana Lima decidiram abrir um estabelecimento de panificação na região, o motivo passava pela possibilidade de êxito enquanto negócio. “Nossos únicos pilares eram que a padaria fosse em Santo Amaro, por ter uma demanda não atendida desse serviço, e que fosse um pão bom”, lembra Luciana. Foi quando chegaram ao nome do chef boulanger Javier Vara que, à época, daria um curso de pães no Recife. Já na oitava geração de padeiros da família, o espanhol foi contratado para prestar consultoria gastronômica na casa e instituiu a fermentação natural como diretriz. “O que era para ser bom, se tornou excelente”, brinca. Mas entre as muitas particularidades que essa guinada promove, o fato de não poder programar a hora da fornada – uma vez que cada massa tem o seu tempo. Do croissant ao pão, nada leva adição de aceleradores ou correção, respeitando os princípios químicos naturais. Nas prateleiras, podem ser encontrados diariamente pelo menos 10 tipos de pães, entre os quais ciabatta, camponês e o brasileirinho, a versão da casa para o cotidiano “francês”. O trigo italiano e francês também é base para o repertório de doces e salgados, como o famoso croissant (responsável por levar 50% da clientela), brioches, massas folhadas, torta de maça e pão de chocolate. “Essa escolha, talvez por um caminho mais difícil, deve soar como um manifesto em defesa ao pão de verdade. Acreditamos que existe um grande mercado para a panificação artesanal a ser explorado. O foco não é o modismo, é a qualidade do produto”, finaliza Luciana.
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DE 27/08 A 11/09
O evento Conexões MSF traz para o Recife o trabalho realizado por Médicos Sem Fronteiras em cerca de 70 países. Exposições, filmes, oficinas, conversas e intervenções artísticas estarão distribuídos pela cidade até o dia 11 de setembro, oferecendo a você diversas oportunidades para se conectar a esse universo que envolve a ajuda humanitária. Programe-se e participe!
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ACESSE C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0MSF.ORG.BR/CONEXOES 16 | 57
E SAIBA MAIS
REPRODUÇÃO
Sonoras
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ESPETÁCULOS Um arsenal de utopias em tempos sombrios
1 DOCES BÁRBAROS Desapego, liberdade e festa são elementos presentes na performance do quarteto baiano
Há 40 anos, Doces bárbaros e Falso brilhante injetavam teatralidade e espírito libertário em suas estéticas, tornando-se marcos na história das performances musicais no país TEXTO Renato Contente
Os quatro subiam ao palco vestindo
as cores de seus orixás, com trajes ciganos, letras amoladas e uma soma de energias de nível nuclear; ela, protagonista solitária, encarnava uma série de personagens que expunham não apenas o falso mito em torno do ofício de cantora, mas as entranhas de um país em estado de sítio. Há 40 anos, enquanto Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia rodavam o país com a turnê Doces bárbaros, Elis Regina se desafiava na capital paulista com uma prolongada temporada de Falso brilhante (14 meses, 257 apresentações). Entre a sutileza para driblar a censura e a urgência de se relatar um momento político sufocante, ambos os espetáculos comunicavam às plateias brasileiras as violências cotidianas de se viver sob um governo contrário às liberdades individuais e aos direitos humanos. Em termos artísticos, as duas obras, adaptadas para disco em 1976, deram novos contornos à relação entre música e teatro nos palcos brasileiros. Ambos os projetos alavancaram, especialmente no caso de Falso brilhante, o nível de
produção dos espetáculos nacionais e a própria profissionalização da área no país. Não que os Doces Bárbaros e Elis fossem propriamente iniciantes nessa estrutura híbrida de apresentação. Afinal, Bethânia já havia estourado no Opinião (1965), sob direção de Augusto Boal, e atuado ao lado dos três colegas em espetáculos como Nós, por exemplo (1964), ainda na Bahia. Elis, por sua vez, havia atinado para a potência de injetar elementos cênicos em suas performances a partir dos palpites preciosos de Lennie Dale, coreógrafo e ator do grupo teatral Dzi Croquettes. Autor do livro Com os séculos nos olhos – Teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970, o pesquisador Fernando Marques aponta que o espetáculo cantado ganhou força no Brasil entre 1964 e 1979, a partir do afrontamento ao regime autoritário através da música, formato de maior aderência entre a população. “Para mim, é possível afirmar que esses shows constituíram uma tendência nos anos 1970, ligando-se a outros, como Brasileiro, profissão esperança (1970), com Maria Bethânia e Italo Rossi, na
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primeira versão, dirigidos por Bibi Ferreira”, apontou Fernando, também professor da Universidade de Brasília (UnB), em entrevista à Continente.
ALTAS TRANSAS
Gal, Bethânia, Caetano e Gil subiam ao palco louvando em seus corpos Iansã, Oxalá, Ibualama e Xangô, respectivamente, em vermelho, branco, azul e uma combinação de vermelho e branco. Estavam ali como mensageiros de um futuro com mais festa e menos dor. Diziam ter planos muito bons, sintonizavam uma energia esperançosa num momento sombrio e arriscavam profecias, como a de um índio que, vindo de uma estrela, pousaria numa América Latina aterrorizada por ditaduras. A ideia de reunir os quatro sobre o palco novamente partiu de Bethânia, que tentava resgatar as faíscas coletivas do início da carreira. O título do grupo fictício tem duas versões: uma delas dá conta de uma elucubração de Jorge Mautner, para quem Jesus seria o autêntico doce bárbaro, por difundir o amor e o perdão nas bases do cristianismo. A outra versão, de Caetano,
FOTOS: REPRODUÇÃO
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Sonoras é mais bélica: faz referência à “invasão” dos baianos em lugares privilegiados da música brasileira, nos anos 1960. Caetano assinou a direção do espetáculo, Gil, a supervisão musical. Criaram músicas especialmente para aquele momento: falavam de liberdade afetivo-sexual em O seu amor; desapego emocional, em Esotérico; e instituíam a festa como grande ato político em São João Xangô Menino (a estreia foi no dia de São João). O cenário do artista Flávio Império situava o quarteto em um grande circo místico de bandeirinhas juninas, estrelas e luas. Dividido em dois atos, o espetáculo foi lançado em um álbum duplo ao vivo, por insistência de Gal e Bethânia, que buscavam um registro mais espontâneo. Foi durante os ensaios que, atendendo a um convite feito às pressas, o cineasta Jom Tob Azulay começou a filmar a movimentação em torno do espetáculo em uma bitola 16 mm. Dois anos depois, o registro daria origem ao documentário Os Doces Bárbaros. Para Jom, naquele momento, o grupo era uma depuração de todas propostas do Tropicalismo. “Nada foi muito planejado ou mesmo pensado, fazíamos e depois avaliávamos o que tínhamos em mãos. Cinema é uma arte que depende da tecnologia
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As duas obras, adaptadas para discos em 1976, trazem novas relações entre música e teatro para o palco brasileiro para ser feita. Não fosse a tecnologia do chamado cinema direto, da qual foi pioneiro no Brasil, e a finalização em laboratórios especializados nos Estados Unidos, o filme não existiria”, recordou o documentarista, em entrevista à Continente. Entre os episódios registrados no longa, está a prisão de Gil em Florianópolis, após os quartos dos músicos terem sido invadidos por policiais, que encontraram cigarros de maconha nos pertences do compositor. A ocorrência causou a internação de Gil em uma clínica psiquiátrica, e atrasou a agenda do grupo em três meses. Prevista para julho, a apresentação do quarteto no Recife só ocorreu no dia 2 de outubro de 1976, no Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães, o Geraldão, na Imbiribeira. No Jornal do Commercio daquele dia, o crítico Celso Marconi recordou que o Recife já tinha recebido shows de alto nível em 1976, entre The Platters e Stan Getz, mas que nenhum era tão importante para a música brasileira
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como o dos baianos. “O que o público verá será um show de um grupo musical e não a presença de quatro estrelas. Esperemos que o público do Geraldão saiba entender que se trata de um espetáculo de alto nível artístico; e não vá perturbar, com piadinhas, como já aconteceu num show que Caetano fez lá”, escreveu Celso. Apesar de ter deixado como legado canções que sobreviveram com facilidade ao tempo, o espetáculo não agradou à boa parte dos críticos do Sudeste, que percebiam com estranheza o clima de espontaneidade em cena. Gil contra-argumentou em uma revista da época: “É uma integração natural, sendo que cada um como cada um é. Queriam uma unidade industrial, elaborada, programada, superBroadway, superdetalhada. E mais uma vez a gente tá vendo que o frescor, a unidade e a leveza incomodam mais do que a coisa de aço, pesada”.
VIDA DE BAILARINA
Dos 30 anos que Elis Regina tinha vivido até o final de 1975, mais da metade deles tinham sido dedicados à rodaviva do ofício de cantar. O caminho que a tinha conduzido ao palco do Teatro Bandeirantes, em São Paulo – no qual apresentou Falso brilhante, de dezembro de 1975 a fevereiro de 1977, de quarta a domingo, tendo sido visto por 280 mil pessoas –, foi trilhado a duras penas
desde a primeira aparição no programa de auditório da Rádio Farroupilha, Clube do Guri, aos 11 anos. Em cada trabalho, Elis era movida por desejos bem definidos. Se conseguira recuperar o prestígio da crítica com Elis & Tom (1974), seus esforços agora estavam concentrados em resgatar o posto de cantora popular, diluído por discos mais rebuscados, como os Elis de 1973 e 1974. Falso brilhante, seu projeto mais politizado até então, também seria um instrumento de reconstrução de sua própria imagem. Tendo sido convocada para cantar o Hino Nacional nas Olimpíadas do Exército, em 1972, ela o fez por temer represálias contra sua família, e por anos se atormentou com as críticas ao seu ato. Sobre isso, sempre foi clara, mesmo enquanto esteve em cartaz com o engajado Transversal do tempo (1978): “Faço todos os espetáculos me borrando de medo todos os dias. Faço, mas com medo. E, se mandar parar, eu paro, porque medo eu tenho”. A ambição artística e política de Falso brilhante era proporcional ao empenho de sua intérprete para estar sempre à frente das propostas artísticas de seu tempo. Elis queria golpear os mitos em torno do ofício de artista, e se apropriou de elementos autobiográficos para criar uma fábula na qual narrava, etapa por etapa, a carreira de uma cantora: a descoberta do dom, a ida à cidade grande, as noites como crooner, o sucesso e as desilusões trazidas pela exploração do intérprete dentro da lógica do mercado. Enfim, o falso brilhante da profissão. Após sete meses de ensaios intensos, estreou– com direção de Myrian Muniz e cenário do artista Naum Alves de Souza – um grande circo impregnado de detalhes primorosos. O espetáculo aglutinava 46 canções, distribuídas em dois atos: o primeiro, mais cômico e teatral, vai dos tempos do Clube do Guri ao esmagamento pela máquina do sucesso. Elis renasce, de branco, para um ato mais raivoso e extremamente político, com as então novíssimas Como nossos pais, Velha roupa colorida – ambas lançando Belchior –, Um por todos e Quero. Essas, junto a Gracias a la vida e Los hermanos, que tocavam na ferida do país e do continente infestado de ditaduras, constituiriam o ácido recorte do álbum de estúdio. Lançado em 1976, o disco foi gravado numa segunda-feira de folga da puxada turnê,
2-3 LEGENDÁRIOS Capas dos discos que trazem a versão gravada dos shows emblemáticos 4 ELIS REGINA Intérprete apresentou Falso brilhante durante dois anos ininterruptos, de 1975 a 1977
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em apenas cinco horas de sessão, com tomadas únicas (só Velha roupa colorida teve dois takes). Elis, que se provou profeta de um país em chagas, só reencontraria o palco do Teatro Bandeirantes dali a seis anos, sem vida, em seu próprio velório: no que foi o seu gesto político final – vestia a camisa censurada do show Saudade do Brasil, em cuja bandeira nacional, em vez de “Ordem e progresso”, lia-se Elis Regina. Se no disco Elis, de 1977, a gaúcha assumiria a alcunha de Dama do Apocalipse – pela atmosfera premonitória da série de shows e discos iniciada com Falso brilhante –, os Doces Bárbaros já se configuravam como os quatro cavaleiros do após-calipso, anunciando que
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as transformações sobre as quais cantavam não viriam sem quantidades generosas de dança e celebração. As narrativas inauguradas por esses espetáculos não se encerraram ao fim de suas turnês, tampouco com a derrocada da ditadura militar, quase uma década adiante. Como nossas próprias feridas, enquanto nação e indivíduos, essas narrativas permanecem em aberto. Sua vivacidade permanente não se justifica apenas por terem sido testemunhos de sua época, mas por continuarem a constituir um arsenal de utopias em tempos sombrios. Nos dias de hoje, elas insistem em nos apontar para o brilho cego da faca amolada que, com alguma sorte, será capaz de arrebentar a corrente que envolve o amanhã.
MARCELO BARRETO/DIVULGAÇÃO
TURNÊS Pernambuco (ainda) falando para o mundo?
Artistas e produtores apontam que as investidas no circuito internacional de música, frequentes a partir dos anos 1990, estão mais raras após a crise econômica mundial TEXTO Leonardo Vila Nova
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Agosto de 1995. Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) davam início à From Mud to Chaos World Tour, primeira turnê da banda fora do país. Quarenta e três dias depois – com shows na Suíça, Holanda, Alemanha, Bélgica e mais 11 cidades nos EUA –, o grupo voltava cheio de histórias para contar. Era o impulso para uma nova relação da música pernambucana com o Brasil e o mundo. A turnê carimbava o passaporte de Pernambuco no circuito internacional. “Todo mundo estava se lixando para Da lama ao caos, o mercado brasileiro era muito difícil pra quem não tocava na rádio”, conta o produtor Paulo André, empresário de CSNZ à época, sobre o primeiro álbum da banda, que não havia correspondido às expectativas de vendas da Sony e tinha dificuldade de tocar nas rádios, pelo som tão diferente do que se ouvia até então. A aposta no circuito estrangeiro de festivais, quando até mesmo a gravadora duvidava desse potencial, foi certeira. Logo depois, Mestre Ambrósio, Mundo Livre S/A e Cascabulho também aprontaram as malas. Uma série de convites se sucedeu e as
turnês estrangeiras passaram a ser mais frequentes. No início dos 2000, Pernambuco chega ao seu momento mais forte nesse mercado. Uma nova leva de artistas – DJ Dolores & Orchestra Santa Massa, Silvério Pessoa, Siba e Fuloresta, Coco Raízes de Arcoverde, Nação Zumbi – já havia pisado no palco de festivais renomados, como Roskilde (Dinamarca), Sfinks (Bélgica), Heimatklange (Alemanha), Womad (Espanha), Montreaux (Suíça). Dali por diante, Pernambuco começava a falar para o mundo… e a ser ouvido. “Foram os tempos áureos”, conta a produtora Melina Hickson, sócia e parceira de Paulo André em parte dessa trajetória. “Os festivais estavam com interesse, dinheiro para investir nos cachês, o momento artístico era ótimo e havia empresários interessados”, resume. “O que mais chamou a atenção do público foi exatamente essa ruptura com uma visão estereotipada do que era a música brasileira, não só samba e bossa nova, nem só Rio e São Paulo. O que começou a chegar lá era algo diferente, que apresentava estética híbrida, dialógica, combinativa”, diz
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Silvério Pessoa, que, ao longo de 12 anos, excursionou pelo continente. Com a novidade, uma cadeia de atores se desenhou para conectar essa música aos diversos circuitos. Numa ponta, estavam as bandas e seus produtores. Na outra, festivais de música, clubes e casas de show. No meio de campo, selos, distribuidoras e managers (agenciadores) estrangeiros. “Pernambuco é um foco de música independente bem importante e diferente, mas se as coisas acontecem é porque alguém investiu tempo, dinheiro e conhecimento naquilo”, afirma a britânica Jody Gillet, uma das responsáveis, nos anos 2000, pelo gerenciamento e lançamento de discos do catálogo da gravadora Trama na Europa. Entre eles, estavam os da Nação Zumbi e Otto. “Visão estratégica é importante para levar sua música ao exterior. Associar o lançamento do disco, assessoria de imprensa, TV, rádio. Todos os meios de comunicação têm que fazer parte do desenvolvimento do artista”, endossa o francês Frédéric Gluzman, da VO Music, um dos responsáveis, nos anos 2000,
1 SPOKFREVO ORQUESTRA Atualmente, o grupo tem consolidado apresentações nos EUA
por fomentar esse circuito. “Meu nome foi construído pela combinação de uma obra original somada ao empenho dos selos e agentes”, afirma DJ Dolores, que há mais de 15 anos viaja pela Europa e América do Norte. Selos musicais lançaram alguns desses discos, fazendo com que chegassem ao público estrangeiro. Um deles, o L’autre Distribution, do francês Marc Regnier, tem no seu catálogo 10 álbuns pernambucanos, de artistas como Siba e a Fuloresta, Eddie, Seu Luiz Paixão. Além do selo, Marc foi o criador da agência Outro Brasil, que viabiliza shows no mercado europeu. “Uma série de pessoas estava empenhada em difundir essa música, que ganhava pela sua riqueza, diversidade”, afirma. A produção do estado também escoou em coletâneas produzidas aqui, com a Music from Pernambuco (com quatro volumes, lançados a partir de 2003), idealizada por Paulo André, e fora, a exemplo da What’s happening in Pernambuco? (2008), produzida pelo selo Luaka Bop, de David Byrne. São 21 anos de 1995 pra cá. Na atual conjuntura mundial, o cenário
O movimento de levar músicos pernambucanos para turnês internacionais teve impulso com o Manguebeat continua favorável para a exportação da música do estado? Nos relatos de quem tem sido parte dessa engrenagem, a realidade atual é outra. Nos últimos anos, vários fatores levaram à diminuição da frequência de turnês e viagens internacionais. Praticamente tudo converge para o mesmo ponto: a crise econômica mundial, que desencadeou a reconfiguração de mercados, inclusive o musical.
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“Já não é mais fácil excursionar fora do país como era há 10 anos. Os custos são altos”, diz Paulo André. A reorientação das escolhas do lineup dos festivais também foi sentida. “Com a diminuição do orçamento,
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eles passaram a priorizar as bandas principais. Grupos estrangeiros, desconhecidos, acabaram ficando com menos espaço”, diz Melina Hickson. Marc Regnier lembra não só a queda de investimentos dos eventos, mas a extinção de muitos deles. “Nos últimos cinco anos, o número de festivais tem diminuído cerca de 30% anualmente”. Além disso, ele aponta a diminuição específica do mercado da chamada world music. “Era uma enxurrada de propostas das mais diversas. Num festival, você ouvia polifonias árabes, forró de rabeca, percussões africanas, grupos japoneses. Era muito bom, mas desproporcional.” O percussionista Jam da Silva, que faz parte da Orchestra Santa Massa, comenta: “Nos 1990, tudo era novidade, era o impacto do diferente. Hoje, talvez, tenha mudado um pouco a forma de observar, olhar e o querer da nossa música, talvez queiram algo mais tradicional… Exótico”. O desmantelo do mercado fonográfico também foi decisivo. “Não se compram mais tantos discos porque a música está disponível digitalmente, sem precisar pagar por ela”, afirma Jody Gillet. “Hoje, nada está sendo tão eficaz como o streaming. Isso não deixa de ser desafiador para o mercado europeu”, complementa Silvério Pessoa. Torna-se assim mais árduo ao artista independente viabilizar empreitadas lá fora. “É difícil encontrar uma agência ou selo que queira apostar em alguém novo no mercado europeu, pois há necessidade de se investir até estabelecer o nome, com incerteza no resultado. Raro o empreendedor com esse perfil. Prefere-se relançar nomes já consagrados”, conta Marc Regnier, que decidiu por não mais continuar com o L’aurtre distribution e o Outro Brasil. A excessiva quantidade de pernambucanos que desembarcaram na Europa, num curto período de tempo, em 2005, no Ano do Brasil na França, também influenciou, acredita Melina. “Pernambuco foi o estado brasileiro que mais levou bandas para se apresentar na Europa. E isso rendia também shows em outros países. Foi uma overdose de música pernambucana”, pontua.
DEWIS CALDAS/DIVULGAÇÃO
2 QUARTETO OLINDA Grupo de forró com rabeca circula sobretudo na Alemanha
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O espaço na mídia especializada se encontra reduzido. “Hoje, há poucas revistas, cada uma com tiragem de 25 mil exemplares, alguns jornais que uma vez na semana têm espaço para resenhar um disco”, diz Jody Gillet. O radialista belga Zjakki Willems acompanha a “nova música pernambucana” desde a explosão do Movimento Mangue e observa: “Cada vez mais as rádios públicas se comportam como comerciais: menos cultura, menos diversidade, explora-se menos a música desconhecida. No início dos anos 2000, o público teve a oportunidade de ouvir a música de Pernambuco e gostou disso. Agora, há menos chance de ouvi-la e, consequentemente, o número de pessoas que gostam dela é menor”. Apesar do cenário desanimador, ainda é possível empreender, acreditam os entrevistados. Feiras e convenções de música, como o Porto Musical, dirigido por Melina, em Pernambuco, são vitrine importante. A cada edição, circulam produtores estrangeiros, donos de selos, agências e demais atores da cadeia de negócios da música. E os showcases têm tido um resultado positivo para despertar o interesse dessas pessoas. Coco Bongar e Orquestra Contemporânea, por exemplo, alçaram voos mais altos depois de se apresentarem no Porto Musical. A dupla Radiola Serra Alta, de Triunfo,
Embora excursione bem pelos EUA e Europa, Pernambuco ainda precisa intercâmbiar pela América Latina também. Esteve, recentemente, no Festival Glastonbury, na Inglaterra. Saiu pela primeira vez do Brasil. Este ano, artistas se apresentaram e ainda se apresentarão no Exterior: Saracotia, DJ Dolores, Quarteto Olinda, Renata Rosa, entre outros. Silvério Pessoa está negociando shows futuros. E a Nação Zumbi, aquela que, junto a Chico Science, não tinha menor ideia do passo que dava há 21 anos, está na programação do Festival de Montreaux 2016, na Suíça.
AMÉRICAS
Apesar da proximidade geográfica, o circuito musical nos EUA e países da América Latina ainda é pouco explorado pelos artistas pernambucanos. É notório que as turnês empreendidas têm a Europa como destino preferencial. E a questão não é, necessariamente, espaço (há de se lembrar, por exemplo, que
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Chico Science & Nação Zumbi fizeram um show histórico no Central Park Summer Stage, em 1995). Dois nomes tiveram grande repercussão na mídia ao pisar em solo estadunidense: Orquestra Contemporânea de Olinda (OCO) e SpokFrevo Orquestra. E com uma semelhança: ambos viraram notícia da imprensa internacional (demarcando espaço no New York Times) ao se apresentarem no Lincoln Center, um dos templos da música mundial. Spok e sua orquestra têm um nome consolidado nos EUA. Boa parte disso se deve à conjunção de dois fatores: o frevo com características jazzísticas feito pelo grupo e a aposta do produtor francês Frédéric Gluzman no potencial dessa música. O impacto que o frevo exerce nos primeiros segundos de apresentação é descrito por Spok: “Assim que a gente chega ao palco, as pessoas olham e pensam que é mais uma big band. Mas basta nosso baterista começa a fazer aquela levada, que a gente nota um certo susto na plateia, em quem nunca tinha ouvido aquilo antes”. Frédéric é o responsável pela empreitada norte-americana da SpokFrevo. “Como a música deles têm uma proximidade com o jazz, foi mais fácil entrar no mercado, mas também tinha uma coisa diferente no som. Entrei nessa junto com eles, propondo essa novidade”, conta. No entanto, Frédéric faz ressalvas ao mercado musical americano. “É muito bom para o perfil de um artista como Spok, mas, ao mesmo tempo, é complicado. Os cachês são baixos. Algumas vezes, eles não pagam transporte e alojamento”, relata. Segundo Juliano Holanda, guitarrista da OCO, questões culturais também são determinantes para essa falta de assertividade dos pernambucanos no mercado americano. “Diferentemente dos países da Europa, os EUA são uma nação mais fechada, mais ensimesmada, centrada nos seus próprios interesses, geopoliticamente e culturalmente também. É menos receptiva”, diz. No caso da América Latina, alguns nomes pernambucanos já pisaram em seus palcos, como Nação Zumbi,
INDICAÇÕES Jam da Silva, Siba, Naná Vasconcelos, Saracotia – mas, numa escala pequena, se comparada com a Europa. Segundo Gutie, produtor do RecBeat (que nos últimos anos vem inserindo a cena musical latino-americana no seu line-up), “o Brasil sempre foi meio dissociado dos países vizinhos, pelo fato de ser o único deles que fala a língua portuguesa; pela dimensão territorial; por estar mais voltado para a música anglo-saxônica. Há um distanciamento histórico e uma relação truncada”, conta, lembrando, porém, que existem festivais a se explorar lá. “Tem o Circulart, na Colômbia; AM-PM, em Cuba; Amplifica, no Chile.” E reforça que, em tempos de crise econômica, quando ir à Europa está mais caro, o bom é investir nos territórios mais próximos, que têm demanda. “Há um interesse desse mercado de festivais pela nossa música e existe a possibilidade de a banda mapear esses encontros e fazer contato, apresentar seu material. Hoje em dia, não tem a gravadora pra fazer isso. Então, tem que correr atrás”, assevera.
PARA TODOS
Se vem do termo forrobodó (que significa festança, farra, no linguajar nordestino) ou da corruptela de for all (do inglês “para todos”), pouco importa. O que se observa é que, nos últimos anos, o forró vem conquistando territórios no Velho Mundo. No esteio da dança, a música começou a ter mais representatividade na Europa. Uma rede articulada de produtores (em geral, professores
de dança), brasileiros ou estrangeiros, faz essa ponte entre o ritmo nordestino e o público estrangeiro. O primeiro festival europeu dedicado ao forró aconteceu em 2006, em Stuttgart (Alemanha). De lá para cá, a presença dos forrozeiros aumentou, intensificando-se nos últimos três anos. “Hoje, somos mais de 15 professores de forró espalhados pela Europa, de Portugal até a Rússia”, conta Rudolfo Batista, olindense que mora há 16 anos em Colônia (Alemanha) e é um dos responsáveis por articular esse movimento exitoso. São casas de show, bares, pubs e escolas de dança dedicadas ao forró. A Alemanha, segundo ele, é o país onde o forró é mais forte na Europa. “Temos oito grandes cidades e inúmeras menores onde o forró acontece. E os três maiores festivais, o Forro de Domingo, No rela bucho e o Forro Aachen”. O Quarteto Olinda é um dos grupos que vêm participando desses eventos. Em sua quarta ida ao continente, eles passaram 20 dias se apresentando em cidades como Bruxelas, Genebra, Barcelona. Além dos shows, um workshop de forró, em Bordeaux. “Eu sinto que lá há uma carência do tipo de som que a gente faz. Não que não tenham qualidade, mas esse balanço, essa pegada, o sotaque, só a gente tem. E quando eles veem, ficam loucos. Parece que é aquele imaginário que se materializa diante deles, aquele som do Nordeste de que ouvem tanto falar. Quando eles veem ao vivo, o olhinho chega brilha”, conta Cláudio Rabeca, frontman do Quarteto.
R&B
DIVERSOS
AARON NEVILLE Apache
BARRO Miocárdio
Neste ano, completa meio século um clássico do R&B Tell it like it is, que marcou a estreia de Aaron Neville. Sob o selo próprio, Tell it, que faz referência ao seu primeiro sucesso, o veterano cantor de 75 anos solta seu 13º disco de estúdio, Apache, desde já um dos melhores lançamentos do ano. Através de 11 músicas, que passeiam pela soul music, Neville explora seu lado compositor, ao mesmo tempo em que esbanja vitalidade vocal, desde a faixa de abertura, Be your man, no estilo blaxploitation.
Ligado a grupos como Bande Dessinée, Barro (Filipe Barros) lança agora seu primeiro disco solo. Para isso, o guitarrista, compositor e produtor pernambucano arregimentou diversos músicos (Jam da Silva, Gilú, Maurício Fleury e Dengue), cantoras (Juçara Marçal, Lisa Moore, Serena Altavilla, Catalina García) e coprodutores (William Paiva, Rogério Samico, Ricardo Fraga, Guilherme Assis e Gui Amabis, responsável por cinco das 13 faixas, Volver, Poliamor, Ficamos assim, Nouvelles vagues e Miocardio). Estreia ambiciosa e sofisticada.
INDIE ROCK
SAMBA/ JAZZ
Tell It
DINOSAUR JR Give a glimpse of what yer not Jagjaguwar
Depois de ter lançado, há dois anos, Tied to a star (Sub Pop), um inspirado disco, repleto de belas melodias com dedilhados de violão, J Macis volta a atacar no peso de sua guitarra em seu principal grupo, o Dinosaur Jr. O trio lançou no mês passado o seu 11º álbum de estúdio, explorando o diálogo entre guitarras e o talento de Mascis como instrumentista e autor, assinando 10 das 11 faixas. O baixista Lou Barlow ficou apenas com uma e ainda saiu prejudicado na mixagem. Como produtor do álbum, Mascis pôs seu instrumento no talo.
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Independente
ANTONIO ADOLFO Tropical infinito AAM Music
O último disco em que Antonio Adolfo explorou a amplitude sonora dos metais foi Viralata, de 1979. Quase 40 anos depois, o pianista volta a investir na seção em seu 28o álbum, Tropical infinito, no qual revisita alguns standards de Benny Golson (Whisper not), Oliver Nelson (Stolen moments), Jerome Kern (All the things you are) e Horace Silver (Song for my father) e apresenta inéditas, Yolanda, Yolanda e Luar da Bahia. O arranjador comemora 50 anos de carreira em grande estilo.
MARIA LUÍSA FALCÃO
Claquete
NÚCLEOS CRIATIVOS Um impulso à profissionalização
Com o apoio do Brasil de Todas as Telas, diretores, produtores e roteiristas lapidam suas ideias ou já iniciam filmagens de seus primeiros projetos TEXTO Luciana Veras
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Corria o mês de julho de 2014, quando a Agência Nacional do Cinema/Ancine lançou o programa Brasil de Todas as Telas, uma parceria com o Ministério da Cultura para utilizar recursos do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA com o intuito de promover “expansão do mercado e da universalização do acesso às obras audiovisuais brasileiras”. Dois anos depois, os índices obtidos são, de fato, expressivos: 437 longas-metragens e 396 séries ou filmes para televisão foram apoiados. Porém, uma das ações mais relevantes da iniciativa permanece longe dos holofotes midiáticos. São os 69 núcleos criativos em atividade em todas as regiões do país, gestando cerca de 400 novos projetos audiovisuais, entre ficções, documentários e séries
núcleos criativos, além desse objetivo de desenvolver a escrita do roteiro, atua para consolidar as empresas audiovisuais e para aprofundar o trabalho colaborativo da criação”, explica à Continente o diretorpresidente da Ancine, Manoel Rangel. Até agora, houve três chamadas públicas para selecionar “propostas de incubação de núcleos criativos em empresas produtoras ou desenvolvedoras de projetos, voltadas ao desenvolvimento de carteira de propostas de obras seriadas e não seriadas e de formatos de obra audiovisual, brasileiros de produção independente”, com investimento de cerca de R$ 67,8 milhões do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Indústria Audiovisual – Prodav. O alento é constatar que o Brasil de Todas as Telas segue impávido, a despeito das mudanças transcorridas no governo do país nos últimos meses. Cada núcleo recebe entre R$ 900 mil e R$ 1 milhão e se alicerça a partir de uma produtora como viga-mestra e de um realizador como líder criativo. Um prazo de 18 meses se estabelece para que
Além de desenvolver a escrita dos roteiros, os núcleos estimulam o trabalho colaborativo de criação televisivas, fortalecendo um aspecto até então minoritário nas linhas de fomento – a produção de roteiros. “Ao desenharmos o Brasil de Todas as Telas tínhamos como objetivo alterar o cenário do audiovisual com o investimento mais robusto já realizado no desenvolvimento do setor – cerca de 1,2 bilhão. Focamos em quatro eixos: distribuição e produção, desenvolvimento de roteiros e formatos, formação e exibição imediata. O eixo do desenvolvimento de roteiro é crucial porque é na base da indústria. Trata-se de ampliar a capacidade de construir histórias e roteiros e assim desenhar formatos de novas obras, para que os projetos entrem mais maduros na etapa de produção. A linha dos
surjam os primeiros resultados e, a partir daí, os núcleos podem ser renovados. Do Pará ao Rio Grande do Sul, dezenas de diretores, produtores e roteiristas estão participando de reuniões mensais para lapidar suas ideias originais ou até mesmo já filmando seus primeiros episódios. É o caso, por exemplo, da cineasta paraense Jorane Castro, líder do primeiro núcleo da Região Norte, instalado a partir de outubro de 2014. Sob sua tutela estão em produção três longas ficcionais, duas séries documentais e uma de ficção. Ela, que não dirigirá projeto algum, ressalta a importância para a formação: “O núcleo tem 20 pessoas, entre pesquisadores, produtores, roteiristas e consultores. Todos já tinham experiência, mas essa
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confrontação com um projeto financiado criou uma consciência profissional. Isso é o mais importante: a profissionalização das pessoas envolvidas”. Jorane Castro conta que todos os projetos do núcleo lançam um olhar “para a própria região”. “Optamos por desenvolver projetos que nunca foram feitos na Amazônia. Abordamos, entre outros temas, o tráfico de drogas na fronteira Brasil/Bolívia, uma história interessante e contemporânea; a guerrilha do Araguaia na perspectiva do imaginário amazônico; e, na série documental, cujo piloto já filmamos, falamos sobre a cultura, um encontro inspirado no diálogo entre as sonoridades paraenses e as artes visuais”, contextualiza. Sua opinião sobre a chance de “amadurecer as ideias” é partilhada pelo cineasta pernambucano Marcelo Gomes, líder do núcleo ancorado na REC Produtores. “É um aprendizado imenso. Uma oportunidade valiosíssima de colocar nossas certezas em xeque e de nos influenciar por olhares de profissionais de diversas gerações que admiramos. Eles trazem outras visões do mundo para nossas histórias. Sinto que os roteiros saem cada vez mais enriquecidos a cada sessão do núcleo”, acredita. Sócio da REC, o produtor João Vieira Jr. antecipa que na produtora são seis longas ficcionais em evolução – entre eles, Discontinued, com Marcelo e Cao Guimarães na escrita, que pretende “explorar a sexualidade de pessoas com mais de 70 anos”; Ne me quitte pas, de Armando Praça; e Depois daquela noite, de Sérgio Machado. Para ele, a experiência coletiva propiciada pelo núcleo criativo é “um luxo e uma necessidade”. “Nem sempre luxo e necessidade são incongruentes juntos ou antagônicos. É um luxo no sentido de possibilitar ao produtor abreviar o tempo de maturação de um roteiro: em vez de um roteirista escrever sozinho ou com um(a) colaborador(a), é como se você pudesse reunir uma equipe de consultores, especialistas, em torno do desenvolvimento de cada projeto. Para isso, é importante que o produtor selecione adequadamente esses projetos e que propicie um ambiente favorável à colaboração. Cabe a ele antever quais as necessidades específicas de cada projeto e facilitar o acesso a elas. Um projeto
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Claquete 1
precisa de muita pesquisa, outro, de um consultor histórico e um terceiro, de um criador de diálogos”, pontua. Os cineastas e roteiristas Hilton Lacerda e Karim Aïnouz aparecem entre os criadores do núcleo da REC Produtores e também em outros aglomerados criativos. Lacerda está no núcleo da Polo de Cinema, produtora estabelecida em São Paulo, e celebra o fato de poder trabalhar no aprimoramento de sete projetos para televisão. “É um núcleo todo feito de séries de ficção, desenvolvidas ao mesmo tempo, numa discussão permanente para nacionalizar a linguagem das séries brasileiras. De uma certa forma, esse núcleo também furou uma barreira; mais da metade dos projetos são relacionados a experiências baseadas em Pernambuco”, afirma. Ele cita Lama dos dias, uma série ambientada entre 1990 e 1994, com direção dele e de Helder Aragão (DJ Dolores), sobre a ebulição cultural que desembocaria na eclosão do Manguebeat, e Chão de estrelas, um “desmembramento de Tatuagem,
Nos editais, o critério de regionalização é algo fundamental, abrindo espaço para propostas do Norte e Nordeste ambientado dentro de um núcleo de teatro em uma ocupação de prédio no centro do Recife”, com participação do grupo Magiluth. As duas séries já estão com contrato assinado para exibição no Canal Brasil e devem ser filmadas no primeiro semestre de 2017. A linguagem das séries também é objeto do processo de imersão artística liderado pelo cearense Karim Aïnouz desde maio deste ano. São duas e cinco longas de ficção em andamento. “Vejo a experiência dos núcleos criativos como um espaço para trocas e reflexão que não conheço em nenhum outro lugar no mundo. A troca é essencial e tem que ser feita na hora certa. Esta é a hora, não na sala da montagem, por exemplo”, comenta Karim.
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O cineasta cearense, embora radicado em Berlim, dá aulas regularmente no Instituto Dragão do Mar, em Fortaleza, e quis cooptar “uma geração nova de roteiristas”. “Sou um líder que é muito mais um produtor, nesse sentido. Tentei juntar essa turma com dois objetivos: pensar uma estratégia de produção a longo prazo dentro do contexto cearense, no sentido concreto e de conteúdo, levando em conta a cidade e o estado; e trabalhar o audiovisual a partir dos gêneros. Vive-se hoje em dia uma crise gigantesca de público no cinema brasileiro. Quero que esses projetos se aproximem do público de maneira digna, apropriando-se de códigos com os quais ele está acostumado, mas numa perspectiva autoral. Serão filmes com personalidade. Cada autor tem sua caligrafia e a ideia é tentar exercitá-la a partir de alguns códigos”, exemplifica o diretor. Serão cinco anos de trabalho, ele vislumbra. O primeiro ciclo voltado para o suspense, a partir de histórias de crimes. Um segundo momento, com o que ele chama de “núcleo das lágrimas”, para investigar o melodrama;
INDICAÇÕES 1 EM AÇÃO NO PARÁ Piloto de série documental do primeiro núcleo da Região Norte já foi filmado
e o terceiro, um olhar para o “bangue-bangue erótico e a pornochanchada”. A confluência de gêneros marca também o trabalho no núcleo estabelecido pela Cinemascópio Produções e liderado pelo realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho. São duas séries documentais – Os filmes já começam na calçada, com direção do próprio Kleber, e Histórias de fantasmas verdadeiros para crianças, de Mariana Lacerda – e três longas de ficção: CPI, de Leonardo Sette, Hospital privado, de Juliano Dornelles, e Agente secreto, também de Kleber. As reuniões vêm ocorrendo de maneira sistemática desde março deste ano. São encontros nos quais cineastas e roteiristas cambiam suas impressões com as produtoras que se dedicarão a concretizá-los. “É uma atmosfera privilegiada em vários sentidos. Os projetos vão ganhando força por receberem esse outro olhar e vão crescendo também a partir desse intercâmbio, das sugestões, do afeto”, analisa a jornalista e cineasta pernambucana Mariana Lacerda. “Antes, você tinha uma ideia para o roteiro, escrevia em casa, ficava meses, anos até, trabalhando sozinho. Agora, pode trazer para discussão com pessoas que estão interessadas no seu projeto tanto quanto você”, complementa Juliano Dornelles. As duas séries – Histórias de fantasmas… e Os filmes começam… – foram aprovadas no edital mais recente do Funcultura/PE. “Trabalhamos com a perspectiva de filmar Histórias de fantasmas primeiro,
mas não temos data ainda. É provável que seja no início de 2017. Seria o primeiro fruto do núcleo, o que é bastante emblemático nos tempos de hoje, quando pessoas ainda pedem a volta da ditadura militar no Brasil”, avalia a produtora Carol Ferreira, referindo-se ao enfoque da série, voltada a explicar a ditadura militar às crianças. Além da expansão dos horizontes da criação audiovisual no Brasil (o critério de regionalização é elemento-chave nos editais, abrindo espaço, obrigatoriamente, para propostas da Região Norte, Nordeste e Centro-Oeste), o legado dos núcleos criativos é, para todos os profissionais ouvidos pela Continente, o reconhecimento do protagonismo do roteirista – “até porque regionalizar não é chegar com uma produtora em algum lugar fora do eixo, e, sim, expandir o processo de criação e amadurecimento dramatúrgico desses lugares”, observa Hilton Lacerda. A cineasta Renata Pinheiro, que aprovou o núcleo Corpo Estranho no edital mais recente, com cinco longas e duas séries de TV, valoriza a missão de “instigar os criadores” – entre eles, Sérgio Oliveira, Bárbara Wagner e Cecília da Fonte. “Durante muito tempo se criticou o roteiro brasileiro. Uma iniciativa como essa surge para que a escritura venha com pesquisa de linguagem, para que os roteiristas tenham as possibilidades de dedicação exclusiva com todas as condições necessárias. Tenho certeza de que a produção brasileira vai mudar bastante e que os filmes e as séries terão uma maturidade maior, e serão um reflexo mais preciso do Brasil, depois desses núcleos”, arremata.
AÇÃO
PUSHER
Dirigido por Nicolas Winding Refn Com Mads Mikkelsen, Kim Bodnia Lume Filmes
O dinamarquês Nicolas Winding Refn tinha apenas 24 anos quando escreveu, produziu e dirigiu esse míssil sobre o submundo do crime em Copenhague. Em 1996, muito antes, portanto, do glamour de Drive (2011), que lhe daria o prêmio de melhor direção em Cannes, Refn já mostrava seu estilo agressivo e metódico. Em Pusher, ele centra foco em um pequeno traficante que tenta driblar o assédio dos grandes criminosos. O diretor teve a sorte de contar com Mads Mikkelsen, que está irrepreensível como Tonny.
COMÉDIA
ASSUMINDO A DIREÇÃO
Dirigido por Isabel Coixet Com Patricia Clarkson, Ben Kingsley Universal Pictures
O tema da integração – racial, social, cultural – não é novidade, porém segue atual. Na abordagem leve da cineasta espanhola Isabel Coixet, é a similitude que aproxima Wendy (Patricia Clarkson), uma crítica literária que não sabe dirigir, e Darwan (Ben Kingsley), o motorista de táxi sikh que se destina a ensiná-la. Os dois estão em uma encruzilhada – ela foi deixada pelo marido, ele vive um casamento já esmaecido. E é em Manhattan que seus caminhos se cruzam.
DRAMA
POLICIAL
Dirigido por Natalie Portman Com Makram Khoury, Shira Haas Fênix Filmes
Dirigido por Michael Mann Com James Caan, Tuesday Weld Obras-primas do Cinema
DE AMOR E TREVAS
Em 2004, o escritor isralense Amos Oz publicou De amor e trevas, uma mescla de autobiografia e ficção que narra, além de sua infância, a gênese do Estado de Israel. Nascida em Jerusalém, a atriz Natalie Portman escolheu a dedo a matriz para seu primeiro longa-metragem como diretora. Em cena, ela interpreta Fania, a mãe do autor, personagem crucial para que o pequeno Amos se inicie no universo da fabulação, enquanto irrompem tormentas na vida real. Vale destacar que Portman apresenta segurança e delicadeza.
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PROFISSÃO: LADRÃO
Em seu primeiro longa-metragem para o cinema, Michael Mann já demonstrava domínio das ferramentas que o consagrariam mais tarde em filmes como Fogo contra fogo (1995) e Colateral (2004). James Caan interpreta um ás no arrombamento de cofres que, ao sair da prisão, sonha com uma vida normal. Acontece que há um mafioso e um serviço promissor no seu caminho. À tortura psicológica que protagonista se impõe é acrescido um tenso ritmo na narrativa, marca registrada do diretor.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
PAIXÃO
Não me sinto à altura. Não estou preparado. Se eu fosse o leitor, pararia aqui. Se não está preparado, se não se sente à altura seja lá para o que, por que então prossegue? Vos direi no entanto que quem recebe um benefício tem obrigação de dizer: “Muito obrigado”. Sintome pois na obrigação de exarar este termo de agradecimento pelo Fernando Pessoa/uma quase autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho, livro muitos furos acima da minha capacidade de avaliação. Só tinha lido uma vez a biografia de um poeta, há milhões de anos, ainda menino, na Ipojuca do ancestral Engenho Penderama de José Paulo. Tanto azucrinei os ouvidos de meu pai que ele me permitiu a compra da biografia de Olavo Bilac. Quando o livro chegou, achei uma espécie de milagre, um livro ter vindo pela minha ordem do longínquo Rio de Janeiro, quase uma ficção, existente apenas nos livros de geografia. Acho que só mandei buscar o livro para ver se esse milagre acontecia. Como se tivesse vindo direto do céu. Era
um livro grosso, na minha ideia de menino, provavelmente ginasiano, interno no Colégio Marista, de férias em Ipojuca. Tinha na capa marrom o perfil do poeta de pincenê, bigodes de pontas levantadas, e de todo o livro me ficaram duas informações: primeiro, que tinha um dos lados do rosto deformado e por isso só tirava retrato de perfil, para esconder o outro lado; segundo, seu nome completo formava um verso alexandrino, “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”, como no seu poema O Caçador de Esmeraldas: “Fernão Dias Paes Leme agoniza. Um lamento/Chora longo, a rolar na longa voz do vento” (na página 228 do livro de José Paulo tem “Monteiro” em vez de Martins, quebrando a musicalidade do verso, logo notei, e “de” em vez de dos, mas o nome aparece certo em nota mais para o fim do volume). O livro nos seduz e induz à mesma paixão pelo poeta, doença contagiosa que levou José Paulo a essa pesquisa infinita que não mede esforços, sempre alerta ao mais insignificante acaso que o próprio Pessoa teria deixado de lado, chegando a
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intimidades que a minha mãe diria, como disse certa vez a respeito de um livrinho meu quando exigi que ela lesse, Bem dentro, pensar que coisa assim só existia em livro de medicina. O livro de Zé Paulinho chega a esse ponto, como saber do tamanho do pênis do poeta e da impossibilidade de completar o ato, o que, da minha parte, diga-se de passagem, considero da maior importância e responde pelo rumo da sua poesia, não somente tendo enorme repercussão em toda a obra mas sendo mesmo uma espécie de geratriz, fonte perene, dínamo que converte todos os acontecimentos, até os mais aparentemente banais para outros, em poesia quando passados por essa máquina espantosa que é o gênio. Buffon disse: “O estilo é o homem”. É comovente acompanhar o namoro do poeta com sua Ophelia, que até começa a preparar o enxoval, e mesmo sem concretizar o casamento nunca desistiu de amar esse noivo indeciso. E assim outros romances involuntariamente platônicos que José Paulo segue qual detetive particular ansioso por dar o flagra.
REPRODUÇÃO
Outra dificuldade enfrentada pelo meu despreparo é a vastidão e o alto nível da obra de Fernando Pessoa ao lado do horror de dados deste inventário sem fim feito por José Paulo. O próprio José Paulo destaca dos principais heterônimos uma obra mas se você continuar a ler, na mesma página e nas outras depois de encerrados os poemas, no caso da Obra Poética da Aguilar, por exemplo, verá que constituiria tudo um poema inteiriço, a emoção, a capacidade verbal não se esgotam, como se uma Ode Marítima, O Guardador de Rebanhos, Tabacaria, fossem outras tantas odes ou a mesma e não terminassem ali, se multiplicassem, não arrefecessem. E de fato não se pode parar nunca, a não ser por nossa própria exaustão. A veia do poeta, esta não se exaure. “Tudo vale a pena”. Até um bilhete, e é por isso que José Paulo vai atrás, invade prédio, se dependura numa janela para ver se avista dali uma
O livro nos seduz e induz à mesma paixão pelo poeta, doença contagiosa que levou José Paulo a essa pesquisa infinita
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casa, um bar que Pessoa frequentava, como se com isso trouxesse sua própria presença material, viver, durante nem que fosse por uma fração de segundo, o poeta reencarnado, sentindo-o na pele, ou sentindose na pele dele: “Transforma-se o amador na cousa amada,/Por virtude do muito imaginar”, como disse Camões. Ou quem sabe como aparecia o poeta a seu heterônimo Ricardo Reis no livro O ano da morte de Ricardo Reis de Saramago. Aliás foi somente depois de ler o romance
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1 EM FLAGRANTE ernando Pessoa F
bebendo vinho na firma Pereira da Fonseca à frente de um barril de clarete
de Saramago que tive impulso de entrar para valer no Fernando Pessoa/ uma quase autobiografia como o intitulou com muita propriedade o autor. Ele mesmo cita Saramago, dizendo não ser necessário nada disso, que a obra do poeta já é o suficiente para o conhecermos. Mas o apaixonado não se conforma, sempre quer mais e mais, a ponto de adquirir os óculos e outros objetos que pertenceram ao poeta, se fosse possível seus cabelos e outras relíquias, creio eu, além de suas publicações desde o primeiro folheto em inglês, indo até à exumação do seu corpo no depoimento do presidente Mário Soares. Também pesam outras condições, desde as intelectuais às materiais, o bom conhecimento da língua inglesa, segunda língua de Pessoa, e outros conhecimentos que transparecem a cada linha, a cada notinha de pé de página, a cada citação latina, a boa assessoria, a possibilidade de ir aos locais, de passar temporadas em Portugal, tendo-se transformado até em produtor de vinho, batizado este de Lecticia, nome de sua mulher.
CALDER FOUNDATION, NEW YORK-AUTVIS, BRASIL, 2016/DIVULGAÇÃO
Visuais
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ALEXANDER CALDER O corpo, a geometria e o vento
1 MÓBILE Peça de 1939, sem título, faz parte da exposição
Exposição que fica aberta até 23 de outubro no Itaú Cultural, em São Paulo, aproxima obras brasileiras da arte flutuante do artista norte-americano TEXTO Beatriz Macruz, de São Paulo
Sobre Alexander Calder (18981976), o filósofo e escritor francês JeanPaul Sartre escreveu: “Se é verdade que a escultura deve gravar o movimento no imóvel, seria um erro aparentar a arte de Alexander Calder à do escultor, ele não sugere o movimento, ele o capta”. É assim que o filósofo caracteriza os “estranhos arranjos de hastes e palmas, discos, plumas” que resultam nos hipnóticos móbiles e stabiles do artista norte-americano. Esses e outros objetos “falsamente adormecidos” criados por Calder inundam os três andares do espaço expositivo do Itaú Cultural, em São Paulo, desde 31 de agosto. Com curadoria de Luiz Camillo Osorio, e em parceria com Expomus e a Fundação Calder, sediada em Nova York, a mostra Calder e a arte brasileira permanece aberta ao público de 1º de setembro a 23 de outubro, com aproximadamente 60 peças. Ela apresenta móbiles e stabiles do artista norte-americano– além de alguns de seus guaches, maquetes, desenhos e óleos sobre tela – em diálogo com trabalhos de artistas brasileiros que, a partir dos anos
1940 e 50, foram influenciados direta ou indiretamente por ele. Com isso, além de mostrar trabalhos cruciais de sua trajetória, a exposição busca evidenciar sua disseminação no imaginário artístico brasileiro, com o qual ele manteve conexão estreita durante quase toda a sua vida. O curador Luis Camillo Osorio – crítico de arte e professor da PUC-RJ – ressalta a importância da relação de Calder com os artistas e intelectuais brasileiros. Não à toa, existem diversos artigos e publicações nacionais acerca de sua obra, assinados por figuras como Sérgio Milliet, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar – não por acaso Gullar é também autor do Manifesto Neoconcreto, que reverbera muitas ideias presentes nos trabalhos de Calder. O arquiteto Henrique Mindlin também é personagem fundamental da história de Alexander Calder com o Brasil. Impressionado com a maneira com que seus objetos artísticos se integravam à arquitetura modernista, Mindlin passou a divulgar a obra de Calder no país logo após se
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conhecerem em Nova York, em 1944. O arquiteto também ciceroneou sua primeira viagem para cá, em 1948; apresentou-lhe diversos amigos artistas e arquitetos, com quem Calder viria a se corresponder e a trabalhar. Luis Camillo Osorio explica que, junto com o crítico de arte Mário Pedrosa, Mindlin foi um dos grandes divulgadores da obra de Calder no Brasil. Para ele, os artigos sobre Calder escritos por Mário Pedrosa nesse período abriram caminho para se pensar a relação da arte concreta no Brasil dos anos 1950, e do movimento neoconcreto na virada dos anos 1960, com a obra do norteamericano, “no que diz respeito à sua dimensão expressiva e lúdica, de como as formas se integram ao espaço, e de como demandam um outro tipo de relação, mais ativa, com o público”, pontua. “Foi a partir desses ensaios que comecei a tentar entender e apostar nesta influência”. A seleção dos artistas e obras para compor a mostra, portanto, passa pelo aprofundamento da reflexão sobre essa influência, e – conforme o
JOÃO L. MUSA-ITAÚ CULTURAL/DIVULGAÇÃO
Visuais curador ressalta – pela parceria com a Fundação Calder e com Roberta Saraiva, diretora da Expomus, que alguns anos atrás organizou uma mostra sobre as incursões de Calder no Brasil, na Pinacoteca de São Paulo. Ele conta que, pensando principalmente “em como a forma se solta no espaço e na arquitetura”, dispôs a conversa das obras brasileiras com as de Calder em três camadas, “uma da geometria; outra do corpo; e outra do vento, ou do ar”. “Na discussão sobre geometria, está a maior parte do diálogo entre Calder e a geração dos concretistas e neoconcretistas”, esclarece o curador, “e é também onde a pintura de Calder está mais proeminente”. Ele também destaca que essa primeira camada culmina em um dos encontros mais importantes da exposição: entre o Balé neoconcreto de Lygia Pape, e o móbile/ cenário que o artista concebeu para a apresentação de Sócrates, do pianista Erik Satie. Segundo Osorio, a enorme estrutura também configura um balé, “de um móbile que se move pelo espaço coreográfico”. Na segunda camada, o corpo como mote, dialogam com Calder obras de Helio Oiticica, Lygia Clark, Ernesto Neto, Carlos Bevilacqua, entre outros. Já na terceira, sobre o ar e o vento, estão a maioria dos móbiles de Calder, acompanhados de obras e intervenções de Waltercio Caldas, Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander.
Calder e a arte brasileira
ITAÚ CULTURAL – SP
www.itaucultural. org.br 1º/9 a 23/10
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SÉRGIO GUERINI-ITAÚ CULTURAL/DIVULGAÇÃO
2 WALTÉRCIO CALDAS
Escultura do artista, sem título, é de 2002
ABRAHAM 3 PALATNIK
ioneiro na arte P cinética, artista criou este Objeto cinético entre 1990-99
REFERÊNCIAS
O curador considera que essa “constelação poética” que orbita em torno do artista norte-americano na mostra Calder e a arte brasileira só é possível por conta de sua trajetória singular. Nascido no final do século XIX nos EUA, Alexander Calder era filho de escultores, fascinado pelo circo e o humor. Formou-se em Engenharia e foi viver em Paris, onde foi primeiro reconhecido pelo seu minucioso e divertido circo em miniatura. Em um de seus ensaios sobre o artista, o crítico Mário Pedrosa aponta que sua formação como
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engenheiro, com seu olhar apurado para a mecânica dos objetos e do mundo, bem como seu talento para o humor, afastaram-no da postura distante e intelectualizada dos artistas da época. Mas, como bem pontua Luis Camillo Osorio, ainda jovem, Calder testemunhou as vanguardas artísticas do início do século passado, das quais não saiu incólume. Osorio e Pedrosa descrevem o encontro do artista com Piet Mondrian (1872-1944) em seu ateliê, em 1930, como o grande divisor de águas em sua trajetória artística.
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“A ideia lhe veio de projetar no espaço, de fazer girar aqueles painéis imaculados e estáticos, mas fortemente coloridos do ateliê de Mondrian”, descreve Pedrosa, no ensaio Alexander Calder: o escultor de cata-ventos, de 1944. Depois desse encontro, Calder abandona de vez as questões caras à escultura figurativa, como a busca da tridimensionalidade, para assumir sua estética abstrata, de linhas flutuantes e cores primárias e vibrantes, mas sobretudo, de movimento. Se, como Pedrosa
DIVULGAÇÃO
observa com perspicácia, apesar de trabalhar com esculturas, Calder nunca deixou de pensar como pintor; a partir de então, ele decide, nas palavras de Camillo Osorio, “soltar Mondrian pelo espaço”. Foi quando nasceram seus móbiles.
CONVITE AO TOQUE
O movimento e a descontração já eram presentes em suas obras anteriores, mas, de 1930 em diante, Pedrosa descreve que, “diferente de outros objetos artísticos, os de Calder não sofrem desse não-metoque que caracteriza aqueles. Na sua exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa), em 1943, a gente se espantava em ver a falta de respeito, a falta de tabu que ali reinava, pois qualquer um podia chegar e tocá-los, mexer, bulir, e até empurrá-los com o pé”. Menos de 20 anos depois, artistas como Helio Oiticica e Lygia Clark radicalizam essa quebra de cerimônia diante da obra, descrita por Pedrosa. Segundo Camillo Osorio, a dimensão lúdica presente na obra de Calder – essa possibilidade de tocar, de chutar – “traz o corpo para uma relação muito mais ativa com a arte e assume, no caso dos parangolés de Oiticica, por exemplo, uma energia popular e emancipatória, ao trazer determinadas partes então marginalizadas da cultura brasileira, como o samba e o carnaval, para uma fronteira entre a arte e a resistência política”. Camillo Osorio também reconhece esta dimensão política na obra de Calder, ainda que muito mais lírica e sutil. Ao chegar ao final de seu ensaio Alexander Calder: o escultor de cata-ventos, Mário Pedrosa parece confirmar: “Esta é uma arte, pois, que não se separa da vida e, se isso acontece, não se recusa a servir a outra, tende a impregnar com sua sedução o ambiente da vida moderna. (…) Se há um artista que está próximo da arte do futuro, dessa sociedade ideal em que a arte seria confundida com as atividades da rotina diária, e a prática cotidiana de viver – esse artista é Alexander Calder”.
Entrevista
ALEXANDER ROWER “O TEMPO QUE MEU AVÔ PASSOU NO BRASIL IMPACTOU EMOCIONAL E INTELECTUALMENTE SUA VIDA” Além do trabalho do curador
Luiz Camillo Osorio, a mostra Calder e a arte brasileira é resultado da parceria com Expomus e com a Fundação Calder, conduzida pelo neto do artista em Nova York, Alexander S. C. Rower. Abaixo, Rower, que é presidente da fundação responsável pela preservação e divulgação da obra do avô, comenta a concepção e a realização da mostra. CONTINENTE Qual a importância de uma mostra deste porte, cuja proposta aproxima o trabalho de Calder ao de artistas brasileiros de períodos diversos? ALEXANDER ROWER A última grande exposição sobre Calder no Brasil foi exatamente há 10 anos, cujo título era, justamente, Calder no Brasil. A mostra permitiu ao público de São Paulo e do Rio de Janeiro conhecer a trajetória de Calder no país, além de um bom panorama de sua obra. Agora, estou muito entusiasmado com o trabalho de curadoria da mostra Calder e a arte brasileira no Itaú Cultural, que explora as reverberações dessa trajetória e do trabalho do meu avô entre várias gerações – inclusive as mais jovens – de artistas brasileiros.
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CONTINENTE Como se deu o contato e a parceria da Fundação Calder junto ao curador Luis Camillo Osorio e ao Itaú Cultural? ALEXANDER ROWER Conheci o Camillo em um painel de discussões na Escola de Artes Visuais do Parque Lage há três anos, quando participamos de um debate sobre a obra de Calder. Fiquei muito impressionado com a aproximação que ele propunha entre Calder e o movimento neoconcretista. A partir dali, nós mantivemos diálogo sobre o tema, e sobre a possibilidade de organizar uma mostra com essa temática – e agora ela finalmente encontrou espaço para tomar forma, no Itaú Cultural. CONTINENTE Pessoalmente, como você vê a aproximação e o diálogo entre tantos artistas diferentes com Calder? Como você percebe a relação de Calder com o Brasil? ALEXANDER ROWER O tempo que meu avô passou no Brasil impactou emocional e intelectualmente sua vida. Por outro lado, essa relação continua ressoando nas obras e na intelligentsia dos artistas brasileiros, e pode também ser facilmente percebida em seu trabalho. Por isso, esta mostra nos apresenta um diálogo mais do que apropriado, que revela a profunda afinidade de meu avô com o espírito de um país.
REPRODUÇÃO
Palco
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MEMÓRIA Para manter vivo o passo As pesquisadoras e coreógrafas Valéria Vicente e Roberta Ramos reúnem em coletânea a história da dança no Recife através de artigos científicos TEXTO Alef Pontes
Apesar de comumente ser relegada aos pequenos espaços, passando, quase sempre, ao largo dos holofotes midiáticos, a dança tem uma pulsante e rica produção no Brasil. Produção, porém, que se perde sem registros ao longo dos anos, após o apagar das luzes em cena. Visando evitar um desbotamento em sua história, já tão
carente de atenção, as pesquisadoras e coreógrafas Valéria Vicente e Roberta Ramos remontaram a trajetória recente da dança em Pernambuco na coletânea de artigos Acordes e traçados historiográficos: A dança no Recife. Documentar a produção cultural no Brasil não é tarefa fácil. Tampouco é grande o número de pessoas dedicadas
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a essa missão. Segundo a jornalista, pesquisadora e professora do curso de Comunicação e Artes do Corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Christine Greiner, a prática de historiografar a dança ainda é muito recente e pouco trabalhada no meio acadêmico. “Há um crescimento de pesquisas a este respeito, mas as teses nem sempre chegam a ser publicadas e, quando o são, as redes precárias de distribuição não costumam facilitar o acesso”, pontua a pesquisadora, no prefácio de Acordes e traçados. Essa afirmação de Greiner é determinante para se compreender a importância de um estudo como o realizado por Valéria e Roberta em Acordes e traçados: um reforço à ideia de que nós temos uma ampla e rica produção no campo da dança, mas, salvo exceções, não registramos e cuidamos de nossa memória. “Eu acredito que essa carência tem a ver com o pouco tempo em que a dança adentrou no meio acadêmico. Produziam-se muitos relatos pelo ponto de vista do coreógrafo, mas, no Brasil, não temos essa cultura do registro
FOTOS : DIVULGAÇÃO
entre os artistas da dança”, comenta a coordenadora do projeto Valéria Vicente, lembrando que o primeiro curso superior na área data de 1954, na Universidade Federal da Bahia, que, por muitos anos, foi o único do país. O livro é um desdobramento do projeto RecorDança, da Associação Reviva (associacaoreviva.org. br/siterecordanca), fundado por Valéria, que desde 2003 realiza uma ação continuada de pesquisa e documentação da história da dança. No site, estão catalogadas e disponíveis para o público mais de 1.400 publicações sobre o tema, entre ensaios, recortes de jornais, entrevistas, documentários, perfis de profissionais e reprodução de cartazes e imagens de divulgação de obras e espetáculos.
PLURIVOCALIDADES
A partir do trabalho de 12 pesquisadores que integram o RecorDança, o Acervo Mariposa e o projeto Temas de dança, além de pesquisas desenvolvidas em trabalhos de conclusão do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, o livro traça um registro da memória recente da modalidade cênica no Recife. Para conseguir expressar a complexidade das consonâncias e dissonâncias de cada historiador em suas afinidades, referências e interesses, as autoras “emprestaram” a metáfora do acorde, do historiador José de Assunção Barros: assim como na música, as muitas vozes que, juntas, convergem e se harmonizam. Além de artigos das coordenadoras do projeto, integram a obra textos de Tainá Veríssimo, Liana Gesteira, Djalma Rabêlo, Alice Moreira, Flávia Meireles, Jefferson Figueiredo, Daniela Santos, Nirvana Marinho, Elis Costa e um artigo-exposição da fotógrafa Ju Brainer. “A gente pensou em dar visibilidade às diferenças reflexivas e de interesses entre os autores. Um de nossos principais cuidados era não trazer uma visão única e oficial, mas propor diferentes enfoques sobre o tema. Essas formas acabam trazendo diferentes nuances e uma maior complexidade na pesquisa”, comenta a pesquisadora. Acordes e traçados articula relações entre a escrita e a história, através da leitura da memória, abordando a criação, a
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construção dramatúrgica de vídeodanças e dos processos de transformações dos grupos e coletivos, além de seus papéis pedagógicos de formação e ensino. Em seu artigo, por exemplo, Valéria realiza um experimento de autoentrevista, partindo da experiência de pesquisa iniciada no projeto RecorDança em 2003. Questionamentos sobre como se deu o processo de profissionalização e a luta para conseguir manter a expressão como meio de sobrevivência ajudam a traçar um histórico recente sobre os momentos de efervescência cultural na cidade, resgata os nomes de pessoas, grupos e obras que participaram da promoção e criação em dança a partir dos anos 2000. Outros trabalhos abordam a contribuição das mulheres na Dança Afro do Recife (Daniela Santos), o olhar pedagógico sobre o frevo (Jefferson Figueiredo) e uma reflexão sobre a vivência artística da dança na cidade, através da observação e análise de seus figurinos (Djalma Rabêlo). Isso só para pincelar um pouco a obra, que vai além nas temáticas e reflexões.
ACERVO
Segundo Valéria Vicente, o processo de construção do acervo que deu origem à pesquisa do livro se dá em dois lugares: um mais duro e técnico, que é o de recolher materiais, classificar e catalogar; e o lugar da reflexão sobre esse conteúdo: “Desde que a gente fundou o RecorDança, percebemos a necessidade de que as
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1 RECORTE Um dos artigos trata do frevo pelo viés pedagógico 2-3 PESQUISADORAS Roberta Ramos e Valéria Vicente também escreveram para Acordes e traçados
pesquisas tivessem outros formatos de publicação, trazendo também uma reflexão sobre essas informações”. A coordenadora do projeto ainda revela que, quando o acervo surgiu, a pesquisa se deu de uma forma muito física. Literalmente abrindo armários e gavetas, à procura de recortes que pudessem contar um pouco dessa trajetória cênica. “Na época, a internet ainda era novidade, digitalizar os documentos era uma ideia superinovadora e era muito caro fazer as cópias dos vídeos”, explica. Hoje, com as facilitações da internet, fica mais fácil pensar o passado recente, mas, conta, tem-se muito pouco acesso sobre a história antiga da dança no Brasil. “E o nosso trabalho, enquanto acervo, é muito duro. Não podemos disponibilizar esses conteúdos sem verificar essas informações presentes”, garante.
Valéria Vicente e Roberta Marques (org.) ACORDES E TRAÇADOS Editora UFPE Reunião de 12 artigos sobre dança em PE.
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
O DESTINO MANIFESTO BRASILEIRO Fiquei acordado até depois de meia noite para assistir a abertura dos jogos olímpicos, a Rio 2016. Mesmo exausto por ter dirigido cerca de 400 quilômetros em estradas perigosas, ao sol de um verão precoce, mantive os olhos bem abertos. Emocionei-me com Paulinho da Viola e o conjunto de cordas interpretando o hino nacional. Lamentei o pouquíssimo tempo concedido a Elza Soares, majestosa na cadeira trono, em companhia de três backing vocal, soltando as vozes no Canto de Ossanha, de Baden Powell e Vinicius de Moraes. E o sambista mirim, os bailarinos e os ritmistas das escolas de samba? Foi demais. Temi apenas pela fragilidade de Gilberto Gil, estampando a doença no rosto. O espetáculo primou ao homenagear a criatividade brasileira em música, poesia, arquitetura, artes plásticas, dança, cinema e etc., etc., etc... Deslizes como o de estilizar manifestações populares, o maracatu irreconhecível até pelos pernambucanos, se diluíram nos acertos, na clara feição de Rio de Janeiro e Brasil.
O dramático em Copa do Mundo e Jogos Olímpicos é que os países se candidatam a sediá-los com oito anos de antecedência. As economias e regimes estáveis não correm grandes riscos na aposta. A menos que estoure uma guerra. Mas, para o nosso país, que desde 1899 vive uma alternância de repúblicas e ditaduras, é temeridade comprar algodão na folha, apostar num futuro de oito anos. Isto aqui ô ô / É um pouquinho de Brasil, Iaiá / Deste Brasil que canta e é feliz / mas onde, de verdade, ninguém garante o dia de amanhã. Ary Barroso não escreveu o último verso do samba. Na euforia da Sexta República, a Nova República, ninguém imaginou o que nos esperava pela frente. E veio igual a um tsunami. Sem consideração pelas lágrimas do ex-presidente Lula, abraçado à bandeira verde e amarela, comemorando a conquista de trazer os Jogos Olímpicos para o Rio de Janeiro, pela primeira vez na América do Sul. Muitas águas rolaram desde a aposta no escuro. Na Copa de 2014, aconteceu um vexame esportivo e político, se expôs
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para o mundo a corrupção como caráter nacional e a decadência do nosso futebol. Estádios superfaturados, alguns construídos sem perspectiva de uso depois dos jogos, se tornando inúteis como a Ferrovia MadeiraMamoré, a Ferrovia do Diabo, que matou 6.000 trabalhadores, um por cada dormente plantado no chão. A Madeira-Mamoré pelo menos serviu à ocupação e integração do território amazônico, se justificava como meio de escoamento da produção de borracha. Vivíamos um novo ciclo de euforia econômica, condenado ao mesmo destino de outros ciclos semelhantes: apogeu e decadência. Mas, e as arenas de Manaus e Cuiabá? E o Itaquerão do Corinthians? Este deu certo, apesar dos trabalhadores sacrificados na construção que durou três anos, do acréscimo de quase meio bilhão sobre o valor calculado da obra, dos gastos com os 19.800 assentos temporários exigidos pela FIFA, para a cerimônia de abertura. O estádio foi cenário do massacre da presidente Dilma Rousseff, achincalhada por horas seguidas. Não se
THAÍS PINHEIRO
tratava das vaias do Maracanã, referidas por Nelson Rodrigues em suas crônicas bem humoradas, mas de palavrões gritados pela classe privilegiada, a dos que podem comprar ingressos caros. Vexame. Vergonha. Amarga tristeza. Por esses dias até deixei de ler o meu poeta preferido. Dentro de mim longitudes se alargam, latitudes se estendem. Ásia, África, Europa, são do leste; coube ao oeste a América. Porque sei que essa América a que Whitman se refere é a dele, a do Norte, com a ideologia expansionista do Destino Manifesto: os Estados Unidos e sua democracia estão destinados, pela divina Providência, a se espalharem por outras partes da América e do mundo. (...) Enfim aqui não só uma nação, mas uma nação proliferante de nações. Nesses anos preparativos de Copa e Jogos Olímpicos, com ingerências da FIFA e do COI na vida brasileira já suficientemente estressada, me perguntei acerca das perdas e ganhos
Prevaleceu o que nos torna únicos e imbatíveis: a arte e a criatividade. Uma força sem medida em ouro, prata e bronze nos dois eventos. Os representantes das instituições não me convencem com o discurso sobre o valor do esporte no fortalecimento da paz entre os povos, nem com o aparente altruísmo dos seus empreendimentos. Percebo interesses pouco louváveis no subtexto do que falam. Promover a paz também não é a liturgia de algumas nações poderosas ganhadoras de medalhas. Elas praticam a filosofia de Waldo Emerson, o expansionismo e o direito de intervir sobre as nações mais frágeis, amparadas em ideologias de segurança e pacificação. Houve ingerência em nossa política interna e na maneira de sermos, da parte do Sr. Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional,
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quando declarou entre muitas outras coisas que o Brasil atravessa a pior crise da história: econômica, política e de saúde mental. O estandarte do sanatório geral de Chico Buarque vai passar: Dormia a nossa pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações. Mesmo sendo verdadeiro o diagnóstico psiquiátrico, nos ofende e humilha. Não acredito que o Sr. Bach e os membros do COI sejam sensíveis ao nosso futuro. Enxergo como única preocupação o acerto de contas com o Brasil, forçar para que os jogos aconteçam da melhor maneira possível, revertendo em lucro para a empresa, garantindo a continuidade do empreendimento no futuro. Igualmente vergonhoso foi contemplar o presidente temporário do Brasil, o Sr. Michel Temer, espremido como um pronome oblíquo átono numa mesóclise, nulo e acossado pelo receio de vaias. Felizmente, prevaleceu o que nos torna únicos e imbatíveis: a arte e a criatividade. Uma força incomensurável, sem medida em ouro, prata ou bronze.
BRENO LAPROVITERA
Leitura
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MONTEZ MAGNO Cinco vezes, o poeta
Soma: poesia reúne cinco livros do artista plástico, poeta e crítico pernambucano que estavam fora de circulação, oferecendo um panorama vasto de seu legado textual TEXTO Marina Moura
Antes de ser um objeto cheio
de utilidade intelectual, o livro é, primordialmente, um objeto de memória. Por meio dele, podemos nos “projetar no futuro ou no passado”, para citar Montez Magno em seu ensaio A inutilidade da arte. No prefácio de Não contem com o fim do livro, o jornalista francês Jean-Philippe de Tonnac observa que as bibliotecas, os livros, revelam de modo muito preciso o que resta quando tudo foi esquecido. O que representa um livro? É uma obra que o tempo não fez ou não pôde fazer desaparecer, é um objeto de resistência, a resistência contra a morte e o esquecimento. Ao longo dos seus de 60 anos de carreira, o poeta, artista plástico, crítico e tradutor Montez Magno escreveu mais de 10 livros de poesia. O alcance desta parte de sua obra, porém, sempre foi um tanto limitado, já que todas as edições foram concebidas artesanalmente e com reduzidas tiragens. Além do mais, nos dizem os versos de Montez, “bons poetas/ sofrem de amnésia”. É, portanto, de muita relevância que agora tenhamos acesso à memória poética de parte de sua obra graças a Soma: poesia, iniciativa do pesquisador Itamar Morgado com apoio do Funcultura, que reúne cinco livros do autor – Estações visionárias, Dentro da caixa, cinza, Narkosis, Câmara escura e Enquanto respiro.
Estações visionárias, Dentro da caixa, cinza, Narkosis, Câmara escura e Enquanto respiro são os títulos compilados Em Estações visionárias, com poemas escritos entre 1961 e 1989, temos um poeta em trânsito: Madri, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Olinda são os painéis geográficos que compõem e marcam seu discurso poético. No início na década de 1960, Montez recebe uma bolsa de estudos do Instituto de Cultura Hispânica de Madri e, lá na Espanha, realiza três exposições individuais. O fato marca a temática de sua obra literária de então e aflora a faceta de viajante do autor. Percorrendo e criando territórios físicos e sentimentais, a produção deste período já contém em si o caráter existencial cuja tônica perpassa a melancolia presente na maior parte de seus versos. Aqui, o poeta questiona-se acerca dos movimentos de partida e chegada inerentes a todos os indivíduos, afinal, “quem já não foi marinheiro um dia?”. Ele está às voltas, deste modo, com “círculos, etapas, órbitas, cansaços,/metas, pontos,
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bússolas e mapas”, pois, afirma o eu lírico, “a inexatidão da vida faz-me percorrer/ demandados caminhos tão frequentes”. São percursos que parecem servir a uma resolução que em nada pretende esclarecer ou apaziguar sentimentos conflitantes de permanecer ou partir: “Viajantes que somos precisamos de ausências:/ por conseguinte não viajemos”. É a partir de Dentro da caixa, cinza que temas caros ao autor — como o ceticismo, pessimismo e a reflexão acerca da finitude da vida — vão sendo mais precisamente delineados. “Este não é um tempo de coisas bonitas, por isso a/ impossibilidade/ de se empregar o azul”. A que tempo refere-se Montez? O poeta nos dá algumas pistas em seu discurso de descontentamento, “porque não vejo nada que me baste,/ tudo cheira a cansaço e violência”. E, embora haja o som, o silêncio e a palavra para tentarmos apreender o real e dotá-lo de sentido, “ninguém haverá de suprimir o antigo medo/ e a solidão biológica do homem no infinito/ espaço”. É o mal-estar, “este inferno constante e movediço”, que talvez flutue em sua produção, por vezes com forte carga dramática. Porém, existe uma preocupação de Montez em manter-se sóbrio na escrita e não fazer dos versos um trampolim para
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1-5 CONJUNTO Seleção de livros foi feita pelo pesquisador Itamar Morgado 6 SOMA: POESIA Livro foi editado com apoio do Funcultura
POETA-PINTOR
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possíveis lamúrias que soem pessoais – para ele, o poema “tampouco é o depósito de lixo da alma atormentada/ onde o poeta deva jogar seus sentimentos/ travestidos de trapos”. A temática da morte é trabalhada sob dois pontos de vista, um mais adepto à filosofia oriental, isto é, “com total desprendimento”; e outro que inscreve a tristeza a partir da inevitabilidade do fim, uma vez que “não poderias jamais recuperar/ o tempo que passou e é perdido,/ os jovens momentos da vida dissipados”. Os poemas mais recentes de Montez, reunidos em Enquanto respiro, tratam sobretudo da consciência da velhice e dos seus desdobramentos,
ou, mais precisamente, escreve ele, da “corrupção do corpo”. Já não é exatamente a morte o assunto central dos versos produzidos ao longo da década de 2000, mas a trajetória degradante do corpo até o momento derradeiro, a incômoda “fronteira entre a dor e o fim”. A sensação de descontentamento com o processo de ver-se falecendo é bastante evidente no seguinte trecho do poema Miniode funerária: “O que incomoda/ não é tanto o cimento/ à volta do corpo/ nem o caixão de pinho/ que os cupins roerão em cinco meses/ e sim a corrupção da carne/ o seu apodrecimento/ paulatino, lento”.
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7 VISUAL Nesta Última partida (1973), Montez “joga” xadrez com Duchamp, grande referência na sua obra
No prefácio a Soma, Anco Márcio Tenório Vieira, crítico e professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), aponta que o Montez artista plástico – com suas pinturas, desenhos, colagens, monotipias, esculturas e objetos – “mantém um diálogo com as vanguardas do século 20, a exemplo do neoplasticismo mondriano, do expressionismo abstrato, dos ready-mades de Marcel Duchamp, da arte conceitual e de determinadas manifestações pictóricas da cultura popular do Nordeste”. Já o seu conjunto de poesias, prossegue Anco, “é quase predominantemente discursivo”. O crítico observa que a obra literária de Montez possui “forte sentido filosófico e existencial, em que a condição trágica do homem, a sua consciência da morte, a necessidade de redimensionar a vida por meio da arte (pois ‘a vida sabe que ela só não basta’) revelam-se mais importantes para o poeta do que as experimentações verbo-voco-visuais da linguagem”. Há, contudo, do ponto de vista conteudístico, alguns poemas da reedição que indicam o repertório
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visual de parte de sua produção poética, especialmente no que diz respeito à intimidade de Montez com aspectos cromáticos. “Eu não vivo dos sons,/ vivo das cores”, declara em poema de 1961. A relação dele com elementos próprios da pintura, ressignificando as escalas de cor, ajuda a construir o desencantamento de versos como “a minha solidão tem matizes diferentes/ em dias nos quais as cores são presentes:/ rosa, quando o sonho afaga; verde é a solidão que me esmaga”. Ademais, presta tributo a uma de suas referências das artes visuais, o pintor abstracionista Jackson Pollock (1912-1956). O intitulado Poema para Jackson Pollock, de 1963, dá ao leitor uma bela imagem mental da técnica desenvolvida pelo norte-americano, a chamada action paiting (pintura em ação), na qual subverte a tradicional prática no cavalete e arremessa as tintas diretamente na tela: “Ou dos gestos acrobáticos dos pés/ nasçam novos sinais coreográficos/ imantados no tempo e nos painéis”. Escreve ainda Montez no mesmo poema: “Deixemos nossos olhos desiguais/ navegar pelos traços setembrinos/ de redondas filigranas pranteadas/ por escuros abissais”, aludindo à experiência de contemplar os grandes quadros de Pollock.
O próprio Montez, inclusive, chegou a traçar paralelos entre as duas modalidades artísticas em texto crítico de 1990, A poesia muda e a pintura que fala. Nele, o autor apresenta um apanhado histórico de personalidades que exerceram tais ofícios simultaneamente, como Leonardo da Vinci (1452-1519), o qual, em seu Tratado de pintura, afirmou que “a pintura é poesia muda, e a poesia é pintura cega”. Montez concorda com o italiano e relembra a etimologia do termo poesia, que vem do grego poeisis e significa “passagem do ser para o não ser”. Ele entende que a definição é “aplicável a todas as artes”, demonstrando, mais uma vez, sua verve de poeta-pintor ou pintor-poeta, sem se preocupar em deixar sobressalente qualquer uma de suas atividades, uma vez que, para ele, o que conta é a validade dos processos criativos e a sua capacidade de mostrar-se incansável enquanto artista multifacetado. Soma representa, deste modo, um monumento à grandeza do poeta Montez Magno. Ao ler seus poemas, somos convidados a “entrar no interior das coisas (…) no interior do ser, no seu altar sagrado,/ está um motor que é a máquina do mundo,/ que sabe sem saber e mesmo sem ciência/ percebe que é luz, que é fogo intenso”.
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TUDO O QUE SE VÊ É TUDO E NÃO É NADA a Myrian Há um movimento interno que não vemos alheio e superior a tudo que sabemos existir ao nosso redor, que nos espanta: não sei bem o que ele é mas desconfio de que no interior do ser, no seu altar sagrado, está um motor que é a máquina do mundo, que sabe sem saber e mesmo sem ciência percebe que é luz, que é fogo intenso sem o qual o conhecimento da existência e das coisas simples que a vida forja são disfarces sutis e enganadores como as malhas de vidro cobrindo o rarefeito ar da metrópole cheia de pirâmides. Tudo está no olhar sereno de quem vê mas se o olho não tem dentro da retina um facho de luz que o incendeie nada será visto senão formas corriqueiras, objetos que se movem ou não à nossa volta, uma série de evidências costumeiras. Mas quem quiser entrar no interior das coisas perceberá que os átomos estão sempre se abrindo, que a alma de tudo também é matéria viva, que o espírito sem forma é força disfarçada, tudo o que se vê é tudo e não é nada. (Enquanto respiro, Recife, 2002)
THAÍS PINHEIRO
Leitura SLAM Poesia incorporada
Cresce no Brasil movimento que introduz deficientes auditivos à poesia, através de declamação pública e carregada de afeto TEXTO Guilherme Novelli
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“Boa noite, povo, que eu cheguei. Vim direto de onde nem mais sei. Sei que vim correndo, cheio de desejo suado, os meus dois pés firmes neste palco, olho no olho de cada um de vocês e, já sem fôlego, dizer de uma vez… Cheguei!!!”. Este, o início do slam de Amanda Lioli e Leonardo Castilho, ela, em português, ele, em libras. “E a minha história eu vou contar. Nasci ser humano há séculos sem conta, já tropicando em tudo o que é ponta, agulhadas da sociedade. Fui sujeito e sujeitado, tudo o que é desgosto eu sei o gosto.” Slam do Corpo é um encontro pensado para surdos e ouvintes, existente desde 2014, em São Paulo. Uma iniciativa pioneira do grupo Corposinalizante, criado em 2008 pelas arte-educadoras Cibele Lucena e Joana Zatz, como continuidade de uma oficina de iniciação artística para deficientes auditivos promovida
pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM–SP). “Alguns jovens surdos pediram para nós abrirmos um espaço de trabalho para além desse curso de formação, um espaço para pesquisar arte. Assim criamos esse grupo, que se encontra uma vez por semana desde então para trabalhar questões dos próprios integrantes”, conta Cibele Lucena. Atualmente, os encontros do Slam do Corpo acontecem ao longo do ano no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, região central da capital paulista. Durante algum tempo, trabalharam questões específicas do cotidiano de um jovem surdo, como não haver legenda nos filmes nacionais. Da problemática dos surdos, propuseram ações, intervenções na cidade de São Paulo através de performances, atraindo, inclusive, artistas não surdos, interessados na Língua Brasileira de Sinais (libras). “O grupo
Um dos grupos criados em oficina de poesia reúne-se semanalmente para trabalhar questões dos integrantes foi crescendo e, nesse processo longo, chegamos à poesia, pois percebemos que a língua de sinais tinha uma potência e uma relação muito forte com a linguagem poética, por conta da sua própria corporeidade”, explica. Passaram para a narração de histórias, mas se depararam com a dificuldade de representar as metáforas da poesia em libras, além de não haver estudos sobre isso. Aprofundaram a pesquisa e começaram a inventar novos sinais para representar as figuras de
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linguagem. “Esse conceito de metáfora não acontecia completamente na língua de sinais. Eu me aproximei do Corposinalizante por uma curiosidade sobre língua de sinais. Também comecei a descobrir essas coisas, que a metáfora em libras não funciona do mesmo jeito que a metáfora em português, já que nem toda palavra tem um sinal que a represente perfeitamente”, explica Cauê Gouveia, ator e produtor do Slam do Corpo. Surgiu, então, a ideia de produzir poemas em libras, entrando em contato com o movimento de slam que existe em São Paulo, em vários saraus e slams como o Zap!. (Antes de seguirmos, vale a explicação: o termo slam vem do inglês e significa – numa nova acepção para o verbo geralmente utilizado para dizer “bater com força” – a “poesia falada nos ritmos das palavras e da cidade”.) Nos saraus, o primeiro objetivo foi
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1-3 PARCEIROS Nos recitais, há a declamação simultânea em libras e português
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o de botar os poemas em libras na roda, colocar os surdos para circular e entender esse encontro entre a poesia e a língua de sinais, compreender o encontro dessas duas línguas. “Quando começamos a frequentar o Zap!, curtimos a brincadeira do jogo, da batalha e essa possibilidade de participar com uma coisa inédita no mundo do slam: formarmos duplas em que um poeta recita em libras e o outro, em português, simultaneamente. Denominamos esta modalidade de poesia mestiça ou poesia híbrida”, conta Cibele. “Um encontro cultural bastante experimental, apesar da estrutura do slam, das regras preestabelecidas, que se inventa e reinventa, porque traz
uma questão específica e diferente, essa mistura de realidades e de existências de línguas, acabando por criar um local não direcionado para incluir o surdo, mas onde todo mundo precisa estar disponível para acessar”, continua. Um ponto de encontro que traz essa noção de inclusão, em que todo mundo percebe que é diferente e que, para estar com o outro, é preciso abertura e disposição para aprender. “Não dá para conviver sem se mover um milímetro. Com esse evento, abre-se a chance de uma reeducação para a convivência com a diversidade. É igual a ceder espaço para o deficiente ou o idoso se sentar. Você não vai perder o lugar e, sim, ter a chance de conviver”,
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defende Roberta Estrela D’Alva, slammer e atriz do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, de São Paulo. “Percebemos como usar nosso corpo, a ter ideias e sentimentos novos. Vimos como nossa sensibilidade estava ruim e pensamos como fazer para melhorá-la através da poesia. Mais sensibilidade, mais significado”, explica o deficiente auditivo e poeta Leonardo Castilho. É um lugar de debate e das pessoas se descobrindo a partir deste compartilhamento. Um espaço complexo, com múltiplas facetas, de contaminação com realidades alheias às nossas. “Os poemas em dupla representam uma nova era. Quando inscrevemos o poema Boa-Noite! numa competição, não houve resistência por parte dos slammers convencionais. Apesar de sermos uma dupla, representamos apenas um ‘eu’ poético. Todo o público diz que não viu duas pessoas, mas apenas uma”, acrescenta Castilho, referindo-se ao poema transcrito no início deste texto. Então, do encontro entre o português e a libras, poderão surgir possibilidades inimagináveis. “Vários teóricos e poetas, como Benjamin e Mayakovsky, afirmaram que não existe revolução quando a forma não é revolucionária. O que está mais instigante para todo mundo é que a gente não sabe aonde isso vai dar,
INDICAÇÕES estamos em processo de invenção, literalmente. A gente se joga e é um abismo, frustrante, às vezes, mas tem muito a ensinar sobre a convivência real com a diversidade”, continua Roberta Estrela D’Alva.
POSTURA
Poemas de autoria própria, três minutos, um microfone. Sem figurino, nem adereços, nem acompanhamento musical. O que vale é modular a voz e o corpo, um trabalho artesanal de tornar a palavra “visível”, numa arena cujo objetivo maior é o de emocionar a plateia, tirar o público da passividade, seja pelo humor, horror, caos, doçura e outras tantas sensações. O slam é uma competição em que cinco jurados escolhidos entre o público pelos mestres de cerimônia, sem parentesco ou vínculo direto com os poetas participantes, atribuem notas de zero a 10, conforme cada desempenho. O melhor poeta nem sempre vence, pois os jurados, longe de serem especialistas no assunto, tendem a preferir poemas cuja empatia é imediata e cujo traquejo do performer com a plateia e com o microfone impressione mais. “Uma vez com o público na sua mão, começa o jogo. É um esporte da poesia falada, de performance, e performance não é apenas o texto, é forma e conteúdo, o que você vai dizer e como vai dizer”, descreve Roberta. Mas o intuito desse encontro extrapola a competição, remontando um pouco à ágora grega ou ao significado original de família. “Essa competição ganha o sentido de um debate político. Pessoas comuns se reúnem para escutar o outro
falar, como numa velha tribo, em que os membros se reuniam em volta do fogo para contar as histórias de seus guerreiros; o fogo, hoje em dia, é o microfone”, continua a atriz. A primeira “batalha”, como é chamada pelos slammers, foi realizada em 1986 no Green Mill Jazz Club, Chicago, num bairro da classe trabalhadora norte-americana. O Uptwon Poetry Slam foi fruto de uma parceria do operário da construção civil e poeta Mark Kelly Smith com o grupo Uptown Poetry Ensemble, já com as características de um acontecimento poético, social, cultural e artístico. A grande inspiração desse evento, até os dias de hoje, são as batalhas de MC’s do rap – rhythm and poetry ou ritmo e poesia, em português –, desafios verbais que um rapper propõe ao outro. “Até hoje, como os rappers estão acostumados a dar ritmo à poesia, eles têm mais facilidade no slam. Já vêm com letras na cabeça, decoradas, somadas ao apelo, à reivindicação, ao testemunho, ao depoimento. O público se identifica e se emociona. Existe uma cadência, uma velocidade que ganha slams mais facilmente, você bate o olho e fala: ‘Isso é slam’”. No Brasil, registra-se que o primeiro slam foi realizado em 2008. O Zap! – Zona Autônoma da Palavra é realizado até hoje, em São Paulo, pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, reunindo poetas de várias partes do Brasil. Os maiores centros de slam estão localizados na Região Sudeste: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
CONTOS
ROMANCE
Tinta-da-China
Biblioteca azul
HERBERTO HELDER Os passos em volta
ELENA FERRANTE Dias do abandono
Herberto Helder (1930-2015) é considerado o maior poeta português do século 20. O espantoso é que permaneça quase anônimo no Brasil. Agora, a editora Tinta-da-China publica parte da sua obra por aqui. Os passos em volta é o seu primeiro livro (1963), e o único de prosa de uma vasta produção poética. A obra é composta por 23 pequenos contos.
A legião de fãs do pseudônimo Elena Ferrante pode ser explicada por suas narrativas novelescas e sofisticadas. O enredo de Dias de abandono é aparentemente comum: aos 38 anos, Olga é surpreendida com o repentino fim de seu casamento. Esta é a trajetória de uma personagem que apresenta todas as nuances do luto, do amor e da redescoberta de si.
TEATRO
POESIA
José Olympio
Confraria do Vento
ANTONIO CALLADO A revolta da cachaça Dentro da obra dramatúrgica de Callado encontram-se quatro peças que compõem o seu Teatro Negro. A primeira delas é Pedro Mico (1957), a segunda, esta A revolta da cachaça (1958). O texto foi dedicado ao ator Grande Otelo e alude à Revolta da Cachaça, acontecida no Rio de Janeiro, em 1660. Nele, Callado recorre à releitura do passado para fazer exame crítico do presente.
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SAMARONE LIMA A invenção do deserto Nesta incursão poética, Samarone Lima mastiga temas e estruturas narrativas que se anunciam desde A praça azul. Uma versificação livre, uma prosa poética, em que (re)surgem situações reflexivas, memórias familiares, personagens que nos marcam profundamente. Em A invenção do deserto, exemplos disso são os Poemas dedicados e os Poemas acontecidos.
CON TI NEN TE
Criaturas
Luis Fernando Verissimo por Sávio Araújo
Luis Fernando Verissimo bem que podia ser comparado a Leonardo da Vinci, não é? Tudo bem, estamos exagerando um pouco... Afinal, da Vinci pintou o retrato mais icônico da história da arte e a Velhinha de Taubaté não lhe faz frente, certamente. Essa comparação elogiosa, na verdade, tem a ver com as mil e uma habilidades do gaúcho, que agora completa 80 anos com um legado queridíssimo de crônicas, cartuns e personagens de sabor ímpar. Viva, Verissimo!
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O D TU
QUE
A S L U P , E T S E R O D N o d O a r e v no
S I A M e BAt . i u q E a T FOR des . w ww
/descubrapernambuco
uco.com.br b m a n r ape cubr
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#189 ano XVI • set/16 • R$ 13,00
CONTINENTE
NOVA DRAMATURGIA
Texto teatral se reinventa no Brasil em múltiplas formas de criação SET 16
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