Continente #190 - Música e Artes Visuais

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# 190

#190 ano XVI • out/16 • R$ 13,00

CONTINENTE

E MAIS: RADUAN NASSAR LANFRANCO JR. PEDRO WAGNER A TV NA INFÂNCIA

O ELO ENTRE MÚSICA E ARTES VISUAIS

OUT 16





OUTUBRO 2016

JONI MITCHELL/REPRODUÇÃO

aos leitores O que Joni Mitchell (cuja arte do álbum Wild things run fast, de 1982, ilustra este editorial), Bob Dylan, John Lennon, Paul McCartney, Ron Wood, David Bowie, Freddie Mercury, Janis Joplin e Patti Smith têm em comum, além do fato de serem ícones da música? Todos eles incursionaram pelas artes plásticas, tornando-se – ou não – reconhecidos também neste campo, a exemplo do guitarrista Neilton Carvalho, da banda pernambucana Devotos, que fez o seu autorretrato exclusivamente para a capa da Continente deste mês. Na matéria principal desta edição, abordamos a recorrente ligação entre a música e as artes visuais, seja pelo trabalho autoral dos músicos aqui citados, e de outros, seja pela presença marcante da arte em shows e nas capas de discos, tornando-as, além de invólucros de CDs e LPs, marcas registradas dessas obras. Investigamos, também, a incursão de artistas plásticos pelo terreno da música – como se deu com o suíço Paul Klee, autor da Teoria da Forma, que trouxe para as artes visuais as noções de modulação, ritmo e psicodinâmica das cores.

Publicamos neste mês, ainda, um especial sobre o conteúdo dos programas televisivos oferecidos às crianças e aos adolescentes pelas emissoras abertas e pagas, que vêm negligenciando um elemento crucial à formação de indivíduos: a diversidade. O tema se torna gritante quando levamos em consideração que, no Brasil, menores de idade passam mais horas em frente à TV do que na escola. Uma pesquisa do Ibope Media revelou que espectadores entre quatro e 17 anos, de todas as classes sociais, assistem, em média, 5h35 de programação por dia. Enquanto isso, um estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou que estudantes dessas idades ficam, em média, menos de quatro horas diárias em salas de aula. Duas questões são essenciais no uso da televisão por esse público: o conteúdo consumido e a solidão do momento de exposição à tela. Para a professora de Psicologia da PUC São Paulo, Ana Bock, é preciso trabalhar a TV como ferramenta cultural. “Da mesma forma que a gente lê um livro com a criança que não sabe ler, a televisão também tem que ser lida com a criança.”


sumário Portfólio

Paulo Nazareth

6 Colaboradores +

7 Cartas

8 Entrevista

Continente Online

64 Palco

Circuito Alternativo 1ª Mostra Outubro ou Nada leva o teatro para fora dos palcos tradicionais, buscando novos espaços para apresentações

+ expediente Lanfranco Marceletti Jr. Maestro pernambucano, radicado no México, fala sobre os desafios para a música erudita na América Latina

18 Balaio

Chuck Berry Músico chega aos 90 anos encarando os palcos e levando uma vida rock’n’roll

38 Conexão

Literatura Aplicativo propõe uma (re)descoberta do Recife em mapa que indica lugares históricos da cidade relacionados a citações literárias

50 Perfil

Pedro Wagner Ator pernambucano vive momento profícuo em sua carreira, com projetos na televisão e no cinema

Artista mineiro explora as fissuras entre o que é considerado canonicamente artístico e a trivialidade do cotidiano, propondo uma reflexão sobre o mercado da arte

12

68 Entremez

onaldo Correia de Brito R Vida, morte e celebração

78

Matéria corrida

José Cláudio Arnaldo, mestre e amigo

80 Claquete

Documentários Três diretoras filmam o processo de impeachment de Dilma

84 Sonoras

Voz Artistas têm explorado de diferentes formas o elemento vocal, que agora também se agrega às experimentações digitais

88 Criaturas Tom Zé Por Baptistão

54 Cardápio

Elementos A presença fundamental – e inefável – da terra, do fogo, da água e do ar no preparo dos alimentos

Viagem Mendoza

Província argentina situada aos pés da Cordilheira dos Andes, procurada pelo seu potencial turístico, guarda importantes vestígios do Império Inca

59 CAPA ILUSTRAÇÃO Neilton Carvalho

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Capa

Especial

Som e imagem entram em diálogo tanto em projetos gráficos de discos, espetáculos e videoclipes, quanto no trabalho de músicos que se aventuram em criações visuais

Maioria da produção voltada para o público infantil na TV aberta e na fechada no Brasil negligencia a diversidade, fundamental à formação de indivíduos críticos

Leitura

Visuais

Obra completa do escritor paulista de origem libanesa, incluindo textos inéditos no Brasil, é lançada no momento em que recebe prêmios internacionais e traduções

Em O instante certo, a jornalista Dorrit Hazarim reúnes textos com suas impressões sobre o trabalho de diversos fotogramas impregnados na memória mundial

Artes visuais e música

20

Raduan Nassar

70

Televisão

42

Fotografia

74

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Out’ 16


colaboradores

Bárbara Buril

Lia Beltrão

Maria Eduarda Andrade

Mariana Camaroti

Jornalista, mestranda em Filosofia na UFPE

Jornalista. Trabalha com edição de livros budistas

Jornalista e documentarista, realiza trabalhos audiovisuais com crianças

Jornalista, radicada em Buenos Aires

E MAIS Baptistão, ilustrador, caricaturista, atua no Estadão. Carlos Eduardo Amaral, jornalista, crítico de música erudita, pesquisador com mestrado em Comunicação pela UFPE. GGabriel Albuquerque, jornalista. Márcio Bastos, jornalista, atua como colunista e crítico teatral no Jornal do Commercio e no blog Terceiro Ato. Neilton Carvalho, músico, pintor e criador de instrumentos. Yellow, designer e músico.

MÚSICA E ARTES PLÁSTICAS

AUDIOVISUAL

”O enimático Pink Floyd levou a música a novas fronteiras de expressão artística”, inicia a narração de Pink Floyd: Behind the wall. O documentário, sobre o show/álbum/ filme que mesclou artes visuais, cinema e música, está disponível no nosso site e complementa a nossa matéria de capa deste mês, que aborda a relação entre artes visuais e música. Assista também ao registro da performance Antropometrias, de Yves Klein, e veja a galeria de imagens das obras realizadas por diversos cantores, como Bob Dylan, Patti Smith, Janis Joplin, David Bowie, John Lennon e Paul McCartney.

Confira a animação alemã The Little Boy and the Beast, a série Território do brincar e a produção Marina não vai à praia, do Canal Futura – todas voltadas para o público infantil.

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PALCO Assista ao teaser de Luzir é negro, solo autobiográfico do performer Marconi Bispo, que, está na programação da Mostra Outubro ou Nada, que acontece até o fim deste mês.


cartas

EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO DIVULGAÇÃO

GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara

MUSEUS CONTEMPORÂNEOS

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

Quero parabenizar a revista Continente pela excelente matéria intitulada Em acerto com o presente – Isto é um museu. O texto da jornalista Olívia Mindêlo é primoroso, com uma escrita clara e objetiva, como deve ser o bom jornalismo; e muito bem fundamentado, o que o torna instigante e reflexivo. O percurso feito no texto sobre o conceito de museu permite ao leitor compreender com mais facilidade os fatores que contribuíram para o surgimento de uma museologia engajada no social e comprometida com os princípios da museologia do afeto e do bem viver. Toda matéria demonstra o compromisso de ouvir os diversos atores envolvidos na discussão sobre uma museologia capaz de transformar as estruturas de um sistema que exalta as memórias dominantes e invisibiliza as memórias dominadas. Tenho muito orgulho de estar entre esses atores e agradeço a oportunidade de poder colaborar com essa discussão. Que a Continente dê continuidade a esse rico e importante debate. VANIA BRAYNER RECIFE – PE

ENTREMEZ Sou admirador das colunas de Ronaldo Correia de Brito publicadas na revista Continente. É a primeira seção que procuro quando compro meu exemplar. No texto que tive o prazer de ler na edição de agosto (Continente #188), me lembrei dos meus anos de estudante e das longas caminhadas pelas ruas do Recife, ainda não tão

Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe assustadoras para quem nelas se deslocava. Eu estudava na descida da Ponte Velha e, todo dia, tinha que andar até o Forte do Brum para voltar para casa. Como Ronaldo, também via pescadores pelo Cinema São Luiz. Que bom reencontrar o Recife da minha juventude nas páginas da revista! ROMUALDO VERAS RECIFE – PE

SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica)

DO FACEBOOK

Alef Pontes, Erika Muniz, Maria Luísa Falcão e Marina Moura (estagiários)

DOCES BÁRBAROS Estou tão apaixonada pela Revista Continente, que não sei como lidar. Estou lendo há várias horas já e comecei justamente pela matéria dos Doces Bárbaros. KEYTYANNE MEDEIROS BAURU – SP

MONTEZ MAGNO

CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE

Gostaria de registrar a excelente cobertura de Marina Moura da edição do livro Soma: Poesia, de Montez Magno. ITAMAR MORGADO

0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

RECIFE – PE

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se

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LANFRANCO MARCELETTI JR.

“Nossos problemas são latino-americanos” Maestro pernambucano que, neste mês, volta à sua terra natal, para apresentar-se com a Orquestra Sinfônica de Xalapa, fala sobre os desafios de sua profissão, seja no México ou no restante do continente TEXTO Carlos Eduardo Amaral

CON TI NEN TE

Entrevista

O maestro e ex-pianista recifense Lanfranco Marceletti Jr. mal é conhecido pelo público pernambucano – a única experiência contínua de Lanfranco à frente de uma orquestra local foi com a Orquestra Criança Cidadã, de 2011 a 2013 –, mas a oportunidade de revê-lo acontecerá este mês, na abertura da turnê da Orquestra Sinfônica de Xapala pelo Brasil, de 7 a 16 de outubro. O primeiro concerto da orquestra sinfônica mais antiga do México será no Teatro Guararapes, dia 7, às 21h. No mesmo dia, pela manhã, os músicos da OSX conhecerão a sede da Orquestra Criança Cidadã e alguns deles ministrarão oficinas para alunos do projeto – Lanfranco fez questão dessa contrapartida social, que também será oferecida ao Instituto Baccarelli, em São Paulo. Sediada na capital do estado de Veracruz, a OSX já organizou um festival internacional de violoncelos

em 1959, que contou com a presença de Pablo Casals e Heitor VillaLobos, e trouxe para a turnê, que segue por João Pessoa, Natal, Rio de Janeiro e São Paulo, um repertório com peças de Marlos Nobre (1939), Silvestre Revueltas (1899-1940), Claude Debussy (1862-1918), o icônico Prelúdio para a tarde de um fauno, e Richard Strauss (1864-1949), a suíte da ópera O cavaleiro da rosa. De Marlos Nobre, será tocada a Passacaglia, “peça que utiliza uma técnica de composição barroca, mas com usos de ritmos e melodias brasileiras”, segundo Lanfranco, que, em seu primeiro concerto como maestro titular em Xalapa (em tempo, leia-se “Ralapa”), abriu o programa com outra peça do conterrâneo: Convergências. “Era uma maneira de mostrar de onde vinha. E agora, na turnê, fazemos o mesmo. Queria que tanto mexicanos como brasileiros pudessem estar

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em contato com a música de tão grande compositor nosso”, afirma. De Revueltas, a escolha foi pela cativante suíte Redes, escrita para um filme homônimo de 1936 dirigido por Fred Zinnman e Emilio Gomez, uma das partituras preferidas do regente. “Estou aqui no México há quatro anos e meio e tenho tido a oportunidade de me acercar muito à música deste grande compositor. E cada vez que eu a rejo, mais fico impressionado com a qualidade da música de Revueltas. É fantástico. Quero que todos no Brasil vejam que grande compositor é esse”. No intervalo de uma viagem entre a Suíça – onde participava de um projeto com a Sinfônica de Berna – e o México, Lanfranco concedeu esta entrevista à Continente, em que comenta sobre as similaridades do repertório erudito brasileiro e mexicano, a convivência com os maestros Alerto Zedda e Anton Coppola e a antiga carreira de pianista.


DIVULGAÇÃO

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XIX, tiveram uma atenção especial e oportunidades únicas. Então eu diria que, para começar, no século XIX ambos os países começam um processo de absorção da música clássica europeia, com músicos muitas vezes educados no velho continente e, ao mesmo tempo, com uma procura, mesmo que rudimentar, de uma voz própria, que chegaria mais tarde em nosso continente através da música nacionalista. Por serem terras privilegiadas pelos colonizadores, recursos existiam

DIVULGAÇÃO

CONTINENTE A música sinfônica mexicana ainda tem maior espaço que a música sinfônica brasileira no repertório, e nas gravações, de orquestras norteamericanas e latino-americanas ou já há um equilíbrio maior nesse sentido? LANFRANCO MARCELETTI JR. Acredito que exista já um equilíbrio. O Brasil, com nomes como VillaLobos, Mozart Camargo Guarnieri e Marlos Nobre, e o México, com Carlos Chavez, Silvestre Revueltas e José Pablo Moncayo, têm um peso enorme nas Américas em relação à música

CON TI NEN TE

CONTINENTE Em Pernambuco, você chegou a reger a Orquestra Criança Cidadã por cerca de dois anos e foi cogitado por músicos da Sinfônica do Recife, há alguns anos, para ser diretor artístico dela. Hoje, qual a sua ligação profissional com sua cidade natal? LANFRANCO MARCELETTI JR. Infelizmente, pouca. Espero com o tempo criar mais vínculos. Amo minha cidade e tenho muita admiração e carinho pelos meus colegas músicos. Espero um dia poder contribuir com o conhecimento adquirido em todos esses anos para criar mais oportunidades e público para a música clássica.

Entrevista clássica e também nas gravações que são feitas. Acredito que os países latino-americanos estão ganhando cada vez mais seu merecido espaço no mundo discográfico por terem uma música contemporânea muito inovadora e, ao mesmo tempo, interessante ao público em geral. CONTINENTE Que paralelo você traça entre o repertório sinfônico mexicano standard e o brasileiro do século 20? LANFRANCO MARCELETTI JR. Bem, temos caminhos muito paralelos nesse sentido. Por terem sido dois países de importância vital para os colonizadores – Espanha e Portugal –, o México, como a Nova Espanha, e o Brasil, sede do Reino de Portugal no início século

CONTINENTE O que o levou a estabelecerse no México, um país onde talvez nenhum regente brasileiro tenha seguido trajetória? LANFRANCO MARCELETTI JR. Pelo menos por cinco anos (2006-2011) estive colaborando com a Orquestra Sinfônica de Xalapa como regente convidado e tivemos a oportunidade de nos conhecer bem. Também fui conhecendo Xalapa e o México nesses anos, fazendo amizades e criando vínculos. Quando me elegeram diretor artístico, não tive dúvida de que queria trabalhar com eles. É uma orquestra de primeira qualidade e com uma grande tradição no país. O resultado é que adoro o México e sou muito grato pelo carinho e atenção que me dá.

para esse tipo de investimento. No século XX, existe o encontro com a tradição folclórica nestes dois países. O Brasil e o México vão encontrando uma veia nacionalista forte que realça e reconhece as origens e realidades desses países-continentes. Em muitos sentidos foram pioneiros no continente latino-americano. O século XXI marca uma possibilidade de encontro com uma linguagem mais pessoal e, ao mesmo tempo, seguindo uma vertente global. Brasil e México têm uma incrível produção musical, com músicos contemporâneos jovens de grande talento e com uma visão que não deixa suas raízes, mas busca algo que nos una mais neste mundo cada vez “menor”.

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CONTINENTE Você também tem formação acadêmica como pianista, chegando a ser premiado no concurso Jovens Solistas de Roma, em 1988. Você ainda desenvolve a carreira de intérprete ou a deixou para dedicar-se inteiramente à regência? LANFRANCO MARCELETTI JR. Antes de começar a reger, deixei a carreira pianística. Foi um período em que desisti da música como profissão (aos 25, 26 anos) porque não acreditava que podia ir em frente com ela. E, nesse momento de distanciamento, conheci a regência por causa de um trabalho que fazia na TV Cultura de São Paulo. Realmente, aceitar-me como regente levou um pouco de tempo. É uma profissão de grande responsabilidade, difícil e com a necessidade de uma vida para se aprender. Nestes anos como regente,


me apresentei algumas vezes como pianista, em recitais com cantores, de música de câmera, inclusive, regendo e tocando. Mas preciso de muito tempo para preparar-me e ultimamente não tenho tido esse tempo. CONTINENTE E que outros trabalhos você vem coordenando ou executando, além do comando da Sinfônica de Xalapa? LANFRANCO MARCELETTI JR. À parte os concertos que tenho como maestro convidado, decidi me dedicar completamente à OSX (assim a chamamos no México). Gosto de estudar, e para isso preciso de tempo. E como sou também responsável pela parte administrativa da orquestra, achei que, para poder fazer algo de relevante por ela, precisava dedicarme. Porém, espero em breve começar alguns projetos paralelos, até porque em três anos termina meu contrato com a OSX. Pela regra interna atual, os diretores artísticos passam no máximo oito anos em frente à orquestra, o que acho muito saudável para ambos, regente e orquestra. Sou muito agradecido por ter sido primeiramente eleito e depois reeleito pela orquestra. É um grande motivo de orgulho. CONTINENTE Como é seu convívio com Alberto Zedda, grande especialista do repertório barroco e da ópera ligada à tradição do bel canto? O que você absorveu dele como pessoa e como músico? LANFRANCO MARCELETTI JR. Meu convívio com ele é um dos grandes presentes da vida. Conheço o maestro desde os anos 1980, quando dei aulas de teoria musical e solfejo à sua filha. Daí nasceu um carinho muito grande pela família. Mas nunca misturei minhas intenções profissionais com essa linda relação que tinha, e tenho, com eles. Quando comecei a reger, não quis dizer nada ao maestro, pois queria tempo para estar pronto para me apresentar como tal. Mas, em 2002, sua filha mostrou um vídeo meu regendo a Sétima de Bruckner com a Estadual de São Paulo e ele se interessou. Aí começa minha relação profissional com ele. Na verdade, estar com o maestro é como estar inspirado a tempo completo! Infelizmente, já não posso mais estar com ele como antes, quando passava pelos menos

seis semanas por ano ao seu lado. Mas, quando posso, vou ajudá-lo no que for preciso e volto sempre regenerado, e ainda mais amante da música que nunca. Além de seu incrível conhecimento em Rossini, o maestro pode falar de todos os gêneros da música clássica com grande intimidade e conhecimento. Agradeço muito à vida pelo tanto que aprendi com ele. Sua imaginação musical é tão assustadora, que tudo o que ele toca toma vida, mesmo que tenha um valor questionável. Grande artista e homem.

“Aceitar-me como regente levou um tempo. É uma profissão de grande responsabilidade, difícil e com a necessidade de uma vida para se aprender”

CONTINENTE E com Anton Coppola? LANFRANCO MARCELETTI JR. Pensava justamente que a única pessoa que vivi o mesmo que vivo com Zedda foi com o Maestro Coppola. Nossa, que inspiração esses homens! Fui assistente dele na première de sua ópera Sacco e Vanzetti em Tampa, Florida, e tanto ele como Zedda têm essa característica de serem geniais, mas, antes de tudo, generosos e humildes. Eles te ouvem e aceitam sugestões. E se o que dizemos não tem sentido, se tomam o tempo (tomam o próprio tempo) para explicar por que não. Levo esses dois maestros todos os dias no meu coração, quando trabalho. São exemplos de um compromisso

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férreo com a música e de uma ética exemplar de comportamento frente às responsabilidades que têm. CONTINENTE As orquestras sinfônicas mexicanas sofrem dos mesmos problemas que a maioria das orquestras brasileiras, como falta de patrocínio, de insuficiência de quadros e de subvalorização salarial? LANFRANCO MARCELETTI JR. Idênticos. Sempre digo aqui que nossos problemas não são “mexicanos” (ou “brasileiros”…), mas “latinoamericanos”. Infelizmente, ainda temos muito trabalho pela frente para mudar essa situação. Existem as exceções, mas não deixam de ser exceções… CONTINENTE E o que o público brasileiro encontraria ao assistir a um concerto no México com obras de compositores contemporâneos daquele país? Quais os nomes e as obras de referência no século XXI? LANFRANCO MARCELETTI JR. Acho que nosso público brasileiro encontraria uma música com uma linguagem que, como disse anteriormente, pode trazer algo de mexicano (ritmos, melodias), porém com uma proposta acessível a todos, pois busca chegar a uma linguagem universal. Nossa, existem tantas obras fantásticas de compositores mexicanos contemporâneos! Arturo Márquez, Ana Lara, Gabriela Ortiz, Antonio Juan-Marcos e Georgina Derbez são só alguns exemplos de compositores mexicanos do momento! CONTINENTE Você sonha em voltar para Pernambuco, para viver ou para trabalhar? LANFRANCO MARCELETTI JR. É uma pergunta difícil de responder, depois de tantos anos fora do Brasil, mas tenho, sim, muita vontade de criar algo para meu estado e minha cidade natal. Somos um povo muito musical e com grande capacidade de trabalho. Faltam os recursos e o reconhecimento da importância desta arte para nossa sociedade. Gostaria muito de ser parte de um projeto de grande escala nessa direção. Quanto a voltar a viver em Pernambuco, deixo à vida essa decisão. Mais que sonhar em voltar, Recife e Pernambuco seguem vivos no meu coração e na minha lembrança todos os momentos. No meu mundo, estão sempre presentes e de uma maneira ou outra, dando sentido à minha vida.


CORTESIA MENDES WOOD DM, SÃO PAULO

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CORTESIA MENDES WOOD DM, SÃO PAULO

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CON TI NEN TE

Portfólio

Paulo Nazareth

VOCÊ É PARTE DESTA ARTE TEXTO Marina Moura

O valor da etimologia pode ser facilmente verificável ao leitor que se permitir abrir o

dicionário e procurar, por exemplo, pelo verbete trabalhar. Para além das definições evidentes, que sabemos de modo empírico ao sermos, com frequência, lembrados de seu valor físico, psíquico e material, deparamo-nos com a raiz do termo, o qual remonta ao século XIII: do latim tripalium, seu significado remete a um instrumento de tortura. Ao longo de um mês, três pessoas – devidamente contratadas com salário-mínimo em carteira assinada – deveriam comparecer diariamente a uma galeria de arte e permanecerem deitadas em uma rede durante oito horas. Eis o breve resumo da instalação intitulada Trabalho, idealizada pelo artista mineiro Paulo Nazareth. O que interessava a Paulo era investigar as relações empregatícias a partir de outro ponto de vista, deslocando sentidos e ressignificando o conceito. O artista conta que a experiência chegou a ser maçante para os três voluntários, e houve, inclusive, uma desistência – o que denota que a “tortura” estava mais ligada à obrigação em si e menos ao tipo de atividade que se exerce. Nascido em 1975, em Governador Valadares, Nazareth é bacharel em Desenho e Gravura pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Estudou Linguística na mesma instituição e aprendeu as técnicas do entalhe em madeira com o artista popular baiano Mestre Orlando. São muitos os desdobramentos das atividades artísticas que desenvolve: desenho, performance, vídeo e instalação fazem parte do seu escopo criativo. Ainda que repletas de pluralidade entre si, as obras de Paulo Nazareth convergem ao que

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3 Páginas anteriores 1 SÉRIE

Foto de Objetos para tampar o Sol de seus olhos, de 2010, esteve em exposição coletiva, este ano, na Pinacoteca

Nesta páginas 2 NOTÍCIAS DE AMÉRICA

instalação foi A destaque da feira Art Basel Miami de 2012, e faz parte da residência em trânsito do artista, que foi até os Estados Unidos de carona e a pé

3-4 GEOPOLÍTICA Questões como a globalização e identidade são tratadas em trabalhos como Cadernos de África (acima) e Premium Bananas (ao lado)

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CORTESIA MENDES WOOD DM, SÃO PAULO

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Portfólio

poderíamos tomar emprestado da definição do filósofo e crítico francês Nicolas Bourriad, que, nos anos 1990, cunhou o termo “estética relacional”, para a qual “a obra de arte nega o artista como sua origem única, isto é, tratase de uma situação compartilhada, que implica o espectador”. É por meio de situações compartilhadas que muitas das obras de Nazareth se projetam. Um homem (ele mesmo) vai até uma cafeteria com um pedaço de carne crua no rosto, senta-se e faz tudo o que todos no local fazem, come e bebe enquanto equilibra o pedaço de carne. Em outro momento, o artista segue caminhando ou de carona, de Belo Horizonte até Brasília, depois até Nova York (este último percurso durou cerca de seis meses e deu origem à residência em trânsito Notícias da América), fotografando lugares, pessoas, intervindo no meio com cartazes ou imagens, juntando tampinhas de garrafa, raízes

5-7 PÃO E CIRCO Fotografias da performance de 2012 foram expostas na 8ª edição da SP-Arte

de plantas nativas, tudo isto descalço, “transportando a poeira”, em suas palavras – por cada lugar por onde passa, Paulo Nazareth toma um pouco para si e devolve em forma de arte (numa de suas placas, lê-se: “Esta é uma ação artística. Arte-vida. Eu sou um performer. Você é parte desta arte. Colabore!”). Em uma barraca no meio da feira de Palmital, Santa Luzia, na Região Metropolitana de Minas Gerais, em vez de frutas ou legumes, Paulo vende pequenos objetos artísticos, utilizando técnicas de arte postal ou panfletos, e é possível comprá-los por R$ 1. A ironia, outra marca de suas obras, é evidenciada no nome do “empreendimento”: Paulo Nazareth, Arte Contemporânea/LTDA. É numa espécie de corda bamba, entre o mercado da arte e sua negação, que se equilibra com argúcia Paulo Nazareth, explorando as fissuras do entrelugar, daquilo que é considerado canonicamente artístico e do cotidiano

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8-10 PERFOMANCES Paulo aposta na máxima arte-vida, já apregoada pelo grupo Fluxus no século 20, e confere funções poéticas ou deslocadas ao cotidiano

em toda sua trivialidade. Convidado para as bienais de Veneza e Lyon, Nazareth não só recusou comparecer ao continente europeu, como se colocou um desafio: pisar, antes, em todo o território africano, tal qual um andarilho, em busca de redescobrir conexões e raízes. Ele ainda criou uma bienal paralela, com uma galeriaresidência, noutra Veneza, situada na porção norte do município mineiro de Ribeirão das Neves, sua “Bienal imaginária”, fincada no chão de suas vivências e aberta aos moradores de lá – estes que, possivelmente, não pisariam em qualquer outra bienal. Para citar novamente Bourriaud, os trabalhos de Nazareth podem ser vistos como “obras que já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram construir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista”.


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FOTOS: REPRODUÇÃO

ROBÔ COMPOSITOR

Os 90 anos de Chuck No ano em que perdemos David Bowie, aos 69, e Prince, aos 57, não é incrível que três dos fundadores do rock’n’roll ainda estejam vivos? Fats Domino, 88, Little Richard, 83, e Chuck Berry, que, neste mês, alcança nove décadas – e, o mais surpreendente, ainda nos palcos. São muitos os formatadores do rock, mas Charles Edward Berry, nascido em 1926, em St. Louis, Missouri, é o nome mais influente deles, com diversos artistas e bandas que fizeram covers de seus sucessos: Jerry Lee Lewis, Roy Orbison, Elvis, Beatles, Rolling Stones, Animals, Kinks, Yardbirds, AC/DC, MC5… Para termos uma noção do alcance de sua obra, há décadas, ele sai em turnê apenas com sua Gibson, confiante que, em qualquer lugar onde vá, encontrará uma banda que saberá tocar suas composições. Com isso, vem sendo ladeado por músicos em início de carreira, como um então jovem chamado Bruce Springsteen. Outro ardoroso fã, Keith Richards, organizou, em 1986, um concerto em homenagem aos 60 anos do ídolo. Nos bastidores, o ingrato e irascível guitarrista, por nada, deu um murro no Stone, que, pacífico, não revidou. Chuck Berry é um dos poucos artistas de quem se pode realmente dizer: levou um estilo de vida rock’n’roll, chegando, inclusive, a ser preso três vezes. Como cantou em um dos seus clássicos, You never can’t tell: “C’est la vie”. DÉBORA NASCIMENTO

CON TI NEN TE

Um centro de pesquisa da gigante japonesa Sony acaba de anunciar uma nova empreitada: estão desenvolvendo uma inteligência artificial capaz de compor canções! Intitulado Flow Machines, o algorítimo conta com um banco de dados de vasto repertório de jazz, pop, musicais e MPB (!). O mecanismo é capaz de identificar os estilos e técnicas, além de compor as próprias músicas. Duas canções bem distintas foram anunciadas pelos pesquisadores: Daddy’s car, inspirada nos primeiros álbuns dos Beatles, e The ballad of Mr. Shadow, com base na obra de gênios como Irving Berlin, Duke Ellington e Cole Porter. Em 2017, deve ser lançado um álbum completo. Será que logo teremos um mercado da música dominado por robôs? (Alef Pontes)

Balaio RARIDADE RESGATADA

A FRASE

Acredita-se que, há 65 anos, o matemático britânico Alan Turing (foto) conseguiu gravar em laboratório a primeira música em um computador, em Manchester, na Inglaterra. No final do último mês, investigadores neozelandeses da Universidade de Canterbury anunciaram terem conseguido restaurar o registro histórico, realizado em 1951, por ele, que é considerado “o pai da computação”. A música, uma versão rudimentar de God save the king com balanços de In the mood, de Glenn Miller, foi encontrada junto a um manual de programação musical, dando a entender que o pesquisador já era ligadão numa música eletrônica. (AP)

“Museus de verdade são lugares onde o tempo é transformado em espaço” Orhan Pamuk, escritor

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ARQUIVO

ALUCINAÇÃO DE BELCHIOR No final de Fotografia 3x4, em que narra o início de sua trajetória de “jovem que desce do Norte pra cidade grande”, Belchior canta “Eu sou como você”. Mas é difícil encontrar, na música popular brasileira, uma história semelhante à do cantor cearense. Há 10 anos, fugiu de sua casa em São Paulo, abandonando esposa e filhos, para viver com a produtora cultural Edna de Araújo, deixando um rastro de dívidas pelo caminho e sem nunca mais fazer shows. Em 2009, o programa Fantástico o encontrou no Uruguai, onde também saiu de hotéis sem pagar, e ele negou estar sumido, embora não tenha aparecido nem para o enterro da mãe. Foi visto pela última vez em 2013, em Porto Alegre. Neste mês, faz 70 anos longe dos palcos e dos fãs, que continuam a lhe prestar tributos. Naquela mesma Fotografia 3x4, lançada há 40 anos no aclamado álbum Alucinação, já anunciava: “Esses casos de família e de dinheiro/ Eu nunca entendi bem”. Belchior não é mais “apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco”. É um foragido da justiça. (DN).

A Mali de Malick “O tradutor visual mais vibrante do Mali”, foi assim que a curadoria da Fundação Hasselblad definiu o fotógrafo Malick Sidibé (1936-2016) e seus retratos, quase todos em preto e branco. Em 1962, após ter sido aprendiz do fotógrafo francês Gégé la Pellicule, inaugurou o Estúdio Malick, no bairro mais popular da capital Bamaco. Entre elementos gráficos e composições muito bem-calculadas, o que sobressai das fotos são os indivíduos e a afirmação de suas identidades. O alumbramento e otimismo que as imagens transmitem se inserem no contexto de uma sociedade em transição, recém-descolonizada da França, na qual, enfim, era permitido aos malinenses, por exemplo, sair para dançar e frequentar clubes noturnos. Por isso, Sidibé definiu seu estúdio como “um faz de conta que reprocessava os influxos ocidentais”. Sem jamais ter experimentado a fotografia digital, predileção por fotos monocromáticas tinha a ver com o fato de serem “mais concretas, mais verdadeiras que as coloridas”. Parte de seu arquivo de negativos continua inédito, e uma pequena parcela vem à tona agora na exposição La vie en rose, que faz parte da programação do festival internacional Encontros da Imagem, na cidade de Braga, Portugal. A mostra, com curadoria de Laura Serani e Laura Incardona, segue até 5 de novembro, no Museu da Imagem, e conta ainda com uma instalação que reproduz o Estúdio Malick. MARINA MOURA

CINZAS VALIOSAS Pouco mais de 40 mil dólares foi o valor pago em um leilão na Julien’s Auctions, em Los Angeles, em setembro, por uma caixa de madeira com as cinzas do escritor Truman Capote (ao lado), falecido em 1984. As cinzas estavam com sua amiga Joanne Carson, que faleceu em 2015. Ao anunciar o lote, o presidente da casa de leilões, Darren Julien, afirmou à revista Vanity Fair que para alguns isso poderia parecer desrespeitoso, mas que seria algo que, se pudesse, o próprio Capote teria feito. “Ele não queria terminar em uma estante”, disse. A oferta inicial de 2 mil dólares foi logo superada e a caixa arrematada por um anônimo, que, segundo o leiloeiro, prometeu seguir levando Capote a festas e eventos. (Mariana Oliveira)

TRÍADE CERTEIRA O cineasta Steve McQueen (12 anos de escravidão) escalou a atriz Viola Davis (acima), da série How do get away with murder, para protagonizar seu próximo longa Widows. Além da premiada dupla, o roteiro conta com Gillian Flynn – autora de Garota exemplar e responsável pela elogiada adaptação do livro para as telonas. Inspirada em uma série de TV inglesa homônima dos anos 1980, a película conta a história de quatro viúvas que se unem para concluir os últimos trabalhos de seus falecidos maridos. Viola Davis vem ganhando destaque, assim como McQueen, por seus trabalhos com temáticas relacionadas à luta pela igualdade racial. (Erika Muniz)

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REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

CAPA

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ENCONTRO Tons da imagem e do som

1 MONTEZ MAGNO Na série Notassons, artista interfere nas pautas musicais

Aproximação entre artes visuais e música se dá em projetos gráficos de discos, espetáculos, videoclipes e no trabalho de músicos que investem nas próprias criações visuais TEXTO Débora Nascimento

No mês passado, foi lançada

uma nova teoria sobre a verdadeira identidade do grafiteiro mais famoso do mundo. Ao analisar o perfil geográfico das intervenções urbanas de Banksy, o jornalista britânico Craig Williams percebeu que algumas delas surgiram em diferentes cidades, antes ou depois dos shows do Massive Attack. O repórter presumiu, então, que o autor poderia ser Robert Del Naja, o 3D, um dos integrantes do grupo de música eletrônica. Segundo Williams, o músico, também grafiteiro, seria o líder de um coletivo que assinaria sob o pseudônimo. Reforçou ainda o fato de 3D ter aparecido no documentário Exit through the gift shop, concorrente ao Oscar de 2010 que ajudou a aumentar a fama do artista de rua. No filme, o enigmático artista, com voz alterada por vocoder, revela que aprendeu a grafitar com o amigo do Massive Attack.

No dia 3 de setembro deste ano, durante um concerto em Bristol, cidade onde a banda surgiu, Del Naja, que já foi preso três vezes por causa de grafitagem, evocou uma célebre frase de Mark Twain ao falar à plateia: “Os rumores sobre minha identidade secreta são claramente exagerados”. Evidente que, manter esse segredo faz parte do fascínio em torno de Banksy e é também uma forma de evitar o incômodo de um possível processo judicial, que viria rápido, assim que o nome fosse revelado. Sendo ou não o incógnito, Robert Del Naja é um dos exemplos da recorrente ligação de músicos com as artes plásticas. A existência de uma relação entre as duas formas de arte era defendida, no início do século passado, por Paul Klee. Ele próprio desenhista, pintor, teórico, mestre da Bauhaus e representante dessa conexão: educado numa família de músicos, foi também violinista da Orquestra Municipal de Berna, na Suíça.

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“Cada vez mais estou convencido acerca dos paralelismos entre a música e a arte. (…) Sem dúvida, ambas são temporais, o que é fácil de demonstrar. Quando o ponto se torna movimento e linha, isso implica tempo.” Os estudos de Klee resultaram na Teoria da Forma, que trouxe para as artes visuais as noções de modulação, ritmo, psicodinâmica das cores, polifonia, compasso e harmonia. Essa ligação entre as duas artes costuma acontecer de diversas formas, seja nos projetos gráficos de discos, nos espetáculos musicais, nos videoclipes ou, de maneira mais aproximada, no interesse de muitos cantores, compositores e instrumentistas em investirem nos seus próprios trabalhos visuais, como é o caso de Joni Mitchell, responsável pela maior parte das ilustrações de sua discografia. “Eu sou uma pintora, em primeiro lugar, e uma musicista, em segundo. Sempre me vejo como uma pintora


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DYLAN PINTOR

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que descarrilhou pelas circunstâncias. Quando estou ficando frustrada com a escrita de um poema, posso pegar os pincéis e começar a pintar. Se a pintura parece não estar indo a lugar algum, pego o violão”, afirmou, em 2000, a violonista canadense, uma das duas mulheres presentes no ranking da Rolling Stone dos 100 maiores guitarristas de todos os tempos (ela em 75º, Bonnie Raitt, em 89º lugar). Naquele ano, Joni lançou Both sides now, aclamado álbum, cuja belíssima capa remeteu ao estilo realista de Edward Hopper. Se, na música, a compositora se situa entre o folk, o pop e o jazz, nas artes plásticas, também busca uma variedade de estilos. Em Turbulent Indigo (1994), por exemplo, emulou as fortes pinceladas de Van Gogh. A propósito, ela citou o gênio holandês, quando comparou os dois universos, o das artes plásticas e o da música – que recebe forte pressão de gravadoras, críticos e fãs. “Um pintor faz uma pintura. Ele tem a alegria de criá-la, põe sua arte em uma parede, e alguém vai comprá-la, e talvez outra, ou ninguém vai comprá-la. Ele senta-se em um loft em algum lugar até

Bob Dylan não é somente prolífico como compositor, mas também como artista plástico, embora não escape de críticas que morra. Mas ninguém nunca disse a Van Gogh, ‘Pinte Uma noite estrelada de novo, homem!’” Fora as capas dos discos, Joni também costuma pintar paisagens e retratos. Os mais famosos são os de Graham Nash (músico e ex-namorado) e Bob Dylan, feitos em 1969. Naquele ano, ela e Dylan participaram da estreia do programa de Johnny Cash e estreitaram a amizade, que teria suas oscilações. Vez ou outra, a cantora chamaria o colega de plagiador. Para ela, uma das provas é Blood on the tracks (1975), que seria uma imitação de seu clássico Blue (1971). Aliás, o mergulho do autor de Tangled up in blue nas artes plásticas teria a ver com alguma influência de Joni?

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Talvez ela não tenha gostado do fato de que, dos músicos que pintam, Bob Dylan, por ser Bob Dylan, seja o mais badalado deles. Suas exposições são concorridas, divulgadas, comentadas, e, sim, também julgadas. O que alguns críticos questionam é que, se essas telas – vendidas a preços que variam entre US$ 2,5 mil e US$ 400 mil – fossem pintadas por artistas que não tivessem o peso de seu nome, receberiam a mesma atenção, despertariam algum interesse. Duas mostras do artista – uma inspirada nas suas viagens ao Brasil, a outra à Ásia – causaram polêmica. Descritas como “diário de suas viagens”, “representações em primeira mão de pessoas, cenas de rua, arquitetura e paisagem”, foram pintadas a partir de fotografias tiradas por outras pessoas. O crítico Michael H. Miller, no artigo The Joker to the thief: Gagosian goes electric with a show of paintings by Bob Dylan, publicado no New York Observer, apontou que uma das telas da série da Ásia, Opium, em que aparece uma mulher deitada no piso de um quarto, baseou-se numa imagem de 1915 do fotógrafo francês Léon Busy. Para ele, essa pintura, sem essa informação crucial, leva a crer que foi o próprio Dylan quem pintou a moça em uma de “suas viagens”. “Perversidade e uma possível falta de autenticidade de lado, Opium não é uma pintura ruim, mas se quer saber quanto do seu interesse recai sobre a pessoa que faz isso e não na qualidade do próprio trabalho. Não é apenas uma representação de uma jovem mulher drogada, é uma representação de uma jovem mulher drogada feita pelo homem que escreveu Like a rolling stone”,


2 ROBERT DEL NAJA Especula-se que o músico do Massive Attack seria Banksy AUTORRETRATO 3 Cantora canadense Joni Mitchell pinta as capas de seus discos

4-5 BOB DYLAN O artista em seu ateliê e a polêmica tela Opium

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destaca Miller, em referência à canção de Dylan, cuja letra narra a derrocada de uma mulher que está largada à própria sorte. O crítico AD Coleman, em seu site, foi mais longe: “Conhecendo as fotografias que serviram de suas fontes (tanto na série sobre o Brasil, quanto sobre a Ásia), eu diria que não há nenhuma possibilidade de Dylan simplesmente ter olhado as fotos e, em seguida, esboçado à mão livre nas telas. A replicação dos padrões é muito exata para isso. Ou as fotos foram projetadas nas telas, e feitas dessa forma, ou as imagens foram digitalizadas, ampliadas, impressas em telas, e depois pintadas”. E compara essas telas com o traço tosco de Bob Dylan para a capa do disco da The Band, Music from the big pink, de 1968, e de seu álbum Self portrait, de 1970. É possível que ele tenha evoluído como pintor desde então? Coleman não considera as pinturas do artista “amadoras”, como vários outros críticos chegaram a apontar. “Dada a extraordinária variedade do que o mundo da arte hoje tolera e até aplaude em termos de habilidade e estilo de representação, o termo ‘amador’ tornou-se quase problemático. Dylan alcançou um nível profissional de competência a esse respeito. Ele certamente não pode competir com uma

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virtuosa como a pintora britânica Jenny Saville, com a impressionante Continuum, série de desenhos e pinturas exposta paralelamente na Gagosian (em 2011).” A mais recente investida de Bob Dylan no mundo das artes plásticas é uma enorme escultura chamada Portal. O arco de ferro estará em exibição no National Casino Porto da MGM, em Maryland, a partir do final deste ano. O cantor exibiu, pela primeira vez, esculturas de ferro na galeria Halcyon, em Londres, em 2013. Mas, de acordo com um

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comunicado à imprensa, esse “é o primeiro trabalho permanente da arte de Dylan para um espaço público”. Vários outros músicos, de diversos estilos musicais, também abraçaram o mundo das artes plásticas, Dee Dee Ramone, Josh Homme, Ron Wood, Patti Smith, Miles Davis, David Bowie, Paul McCartney e Kurt Cobain. Alguns deles conseguiram bom retorno financeiro, como Pete Doherty (Libertines) – cujo quadro mais famoso, Ladylike, traz, entre as tintas, o sangue de Amy Winehouse, e foi, em 2012, vendido


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por 35 mil euros – e Marilyn Manson, que começou a vender suas telas para traficantes e, a partir de 2002, passou a expor em galerias de arte na Alemanha, França e Áustria.

DESENHOS DE LENNON

John Lennon é um caso ímpar na relação entre música e artes plásticas, seu trabalho como artista visual ficou bem mais conhecido após sua morte em 1980. Ligado ao desenho desde a infância, chegando a estudar no Liverpool Art Institute entre 1957 e 1960, o beatle mergulhou nas artes plásticas nos últimos cinco anos de vida, período em que não lançou nenhum álbum. Depois de seu assassinato, o lançamento de produtos como o documentário Imagine, com o famoso autorretrato em rabiscos, a caixa John Lennon Anthology, repleta de desenhos lúdicos, e o livro Skywriting by word of mouth (1987), com ilustrações suas, ajudaram a projetar seu estilo como desenhista. Para comprovar a força de seu nome, seus trabalhos estão expostos em 44 galerias nos Estados Unidos. A Pacific Edge Gallery, responsável pela divulgação de sua obra, já produziu mais de 100 exposições suas nos EUA e Canadá – a primeira delas ocorreu em 1988. Litografias foram doadas à coleção permanente do Museum of Modern Art (MoMA) e a coleção gráfica já viajou pelos Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Itália, Japão, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Hong Kong e Filipinas. “Em sua vida, John Lennon, o artista, permaneceu um outsider no mundo das artes, em grande parte por sua fama como um beatle, e ele era visto pelo mundo como resultado disso. Pensando bem, isso foi uma sorte, no sentido de que permitiu aos seus trabalhos que mantivessem sua pureza, livres de comentários e ‘sugestões’ de críticos e marchands. Ele manteve seu estilo único, intocado por modismos. John fez seus desenhos com inspiração e rapidez, muito parecido com a forma que criava suas músicas. Era óbvio que havia uma forte, inata necessidade para que continuasse a criar esses trabalhos. Na maior parte do tempo, seus desenhos refletiam seu ânimo. Apesar de que,

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6 POR LENNON Intitulado Come together, trabalho data de 1974 BED-IN 7 Yoko e Lennon no protestoperformance contra a Guerra do Vietnã

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uma vez, quando John estava de mau humor, olhei sobre seu ombro e vi que estava desenhando algo muito engraçado. Outra vez, John estava alegre, fazendo um desenho sombrio. Apenas ele faria isso, pensei. Era como se estivesse usando o ato de desenhar para equilibrar e unir suas duas mentes – uma, sombria e pessimista, e a outra, alegre e otimista. Ao lado de seu violão, o papel e a caneta pareciam ter servido como ferramentas ideais para expressar as complexas emoções de John”, analisa sua viúva, a artista Yoko

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Ono, no site que mantém para divulgar a obra visual do marido e parceiro. “Agora, não existe dificuldade em encontrar galerias para exibir seu trabalho de arte. Alguns de seus trabalhos se tornaram até parte das coleções de grandes museus. Imagino o que John teria pensado de tudo isso. Provavelmente teria aceitado, com seu típico humor irônico.” Tão irônico quanto o leilão por U$ 1,3 milhão, em 2013, de um pedaço de um muro roubado. Apenas porque tinha um grafite de Banksy.


EMBALAGEM O desenho da capa

1 RADIOHEAD Capas feitas por Stanley Donwood, autor do projeto gráfico da banda

Longos cinco anos de espera para

Artistas visuais que ficaram conhecidos pelas ilustrações de álbuns e pelo desenvolvimento de projetos gráficos

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a chegada de um novo disco do Radiohead. A expectativa justifica-se por tratar-se daquela que é considerada, por críticos e público, a melhor banda da atualidade ou, no mínimo, uma das mais inquietas, autora de três obrasprimas do rock dos últimos 20 anos, Ok, computer (1997), Kid A (2000) e In rainbows (2007). O 9o álbum do quinteto, lançado em maio deste ano, chegou dividindo opiniões, assim como o anterior The king of limbs (2013). No entanto, algo se mantém no trabalho do quinteto inglês, além da vontade de se reinventar: o estilo da capa dos seus discos. A arte de A moon shaped pool foi assinada pelo pintor e escritor inglês Stanley Donwood (pseudônimo de Dan Rickwood). Além das capas, ele é responsável, ao lado do compositor e vocalista Thom Yorke, por todo o material de divulgação da banda, desde o site oficial até camisetas, e o conceito visual para o projeto paralelo do bandleader, Atoms for Peace, que, além de Nigel Godrich, Flea e Joe Waronker, conta com o percussionista brasileiro Mauro Refosco. Amigo de Yorke desde o começo dos anos 1990, o artista plástico foi convidado para fazer o primeiro single do álbum The Bends (1994), My iron lung. A partir de então, tornou-se o tradutor do som da banda em imagens. À medida que a sonoridade do Radiohead ficava menos pop, mais hermética e complexa, suas capas refletiam isso. Basta comparar a questionável arte de Pablo honey (“O rosto de um bebê com olhos arregalados – o que raios isso tem a ver com Radiohead?”, critica Doonwood) para The bends e a guinada que aconteceria em Ok, computer. É inegável que a colaboração com o Radiohead ajudou a projetar o nome de Donwood. Suas exposições se tornaram bastante concorridas devido à fama decorrente. O artista tem exposto em países como Itália, Japão e Austrália – em que contou com paisagem sonora criada por Thom Yorke. Em 2002, ele foi convidado para fazer a arte do Glastonbury e vem sendo, desde então, encarregado pelo projeto gráfico do festival. Outro relevante trabalho foram as 21 capas para os livros de J.G. Ballard. A importância que o Radiohead dá ao projeto gráfico de seus álbuns é tanta, que a banda não apresenta o resultado


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final do disco ao artista plástico para que conceba a arte, mas o convoca para que acompanhe as gravações. “Parece-me que estão tocando o mesmo trecho de música por vários dias, mas não estão, estão testando. Isso é muito bom, me faz encontrar a imagem da música”, disse Donwood ao Sydney Morning Herald, quando expôs na capital australiana em maio do ano passado. Em 2002, a colaboração entre Donwood e Yorke rendeu o Grammy de Melhor Embalagem para a edição especial de Amnesiac, sob a forma de um livro de capa dura ilustrado pelo artista e pelo vocalista (com o pseudônimo de Tchocky). A premiação já honrou o trabalho de Peter Blake (Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Beatles, 1968), Wilkes & Braun (Tommy, do Who, 1974), Peter Corriston (Tattoo You, dos Rolling Stones, 1982), Irving Penn (Tutu, de Miles Davis, 1986), Peter Buchanan-Smith e Dan Nadel (A ghost is born, do Wilco, 2005) e Michael Amzalag & Mathias Augustyniak (Biophilia, de Bjork, 2013).

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OUTROS COLABORADORES

Outros artistas também tiveram suas carreiras marcadas pela assinatura de capas de discos, como os norteamericanos Raymond Pettibon, autor de Goo (1990), do Sonic Youth, e Patrick Nagel (1945-1984), que criou a de Rio (1984), do Duran Duran. Mais recentemente, o terceiro álbum do Tame Impala, Currents (2015), projetou o jovem norte-americano Robert Beatty. Ele já havia realizado outras para artistas independentes, mas sem o mesmo impacto. A ligação de artistas plásticos com o projeto gráfico de discos vem de longe e tem seu exemplo clássico no début do Velvet Underground, o “disco da banana” (1967), apontado como uma das melhores capas da história. O ícone da pop art começou sua colaboração visual na música em 1949, aos 21 anos, para o álbum do maestro mexicano Carlos Chávez, A program of mexican music. As ilustrações bem-comportadas de então eram diferentes do estilo que o definiria duas décadas depois, com capas notáveis como a do Sticky fingers (1971) e Love you live (1977), dos Rollings Stones, e Liza Minnelli At Carnegie Hall (1981). Na capa de Piano Music of Mendelssohn and Liszt (1951), de Vladimir Horowitz,

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2 TAME IMPALA Novo disco da banda australiana divulga artista Robert Beatty

ANDY WARHOL 3 Nessa capa de 1953, artista já aponta para o estilo que o caracterizaria

Warhol esboçava a exploração das cores que aplicaria às incontáveis capas de jazz para o selo Prestige. E, dois anos depois, em William Tell Overture; Semiramide Overture (NBC Symphony Orchestra/Arturo Toscanini) (1953), de Gioachino Rossini, usou, pela primeira vez, uma fruta na capa de um disco, uma maçã. Outros artistas realizaram marcantes capas de discos, como H.R. Giger, para o primeiro álbum solo de Debbie Harry, Koo Koo (1981); Klaus Voormann, autor do desenho de Revolver (1966), dos Beatles; Jean-Paul Goude, nome por trás de Island life, de Grace Jones; Alexander McQueen, estilista que criou o vestido e a concepção da capa de Homogenic, de Björk (1994), a dupla Karl Klefisch e Günther Fröhling, que fez as do Man Machine (1978) e do Computer World (1981), do Kraftwerk. A primeira foi inspirada no designer, fotógrafo e arquiteto russo El Lissitzky (1890–1941), que influenciou a escola Bauhaus. A banda

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4 KRAFTWERK Arte de The Man-Machine foi inspirada em El Lissitzky

PINK FLOYD 5 Para Dark side of the moon, Storm Thorgerson cria capa icônica

Franz Ferdinand também homenageou Lissitzky nas imagens de seus discos. Mas raros profissionais fizeram tantas capas quanto Storm Thorgerson. Podemos dizer que o designer gráfico inglês não construiu o projeto visual de seus clientes, afinal o que eles realmente queriam era sua marca nos invólucros de seus álbuns e, quem sabe, que repetisse o feito das artes realizadas para o Pink Floyd, como o porco gigante sobrevoando a estação de energia em Animals, o executivo em chamas de Wish you were here, a vaca de Atom heart mother e sua obra mítica, Dark side of the moon. Quando Thorgerson faleceu em 2013, o guitarrista David Gilmour, demonstrando entender o real significado que um produto artístico como esse conquista no imaginário coletivo, fez um comunicado afirmando que as criações do seu amigo “eram parte inseparável do trabalho do grupo”. DÉBORA NASCIMENTO


ALCIONE FERREIRA

1 NEILTON CARVALHO Guitarrista da Devotos em seu ateliê, estúdio, laboratório e casa

HABILIDADES Pincéis e lápis à mão

A variedade de estilos dos músicos pernambucanos também se mostra nas artes visuais, com a exploração de pintura, desenho, HQ e design

A vizinhança não sabe muito bem o

que raios acontece na casa de Neilton Carvalho, na Bomba do Hemetério, bairro da zona norte do Recife. “Sou bastante reservado, passo mais tempo aqui, estudando e trabalhando, do que na rua conversando – aliás, na rua não converso nada. Às vezes, chega aqui um repórter, músicos… Aí, sai um

quadro, assim como chega matériaprima, lata de tinta, chapa de ferro. Aí se veem as luzes da máquina de solda, depois se ouve o barulho de um acorde de guitarra…” Na casa – uma mistura de laboratório, estúdio e ateliê –, o guitarrista grava os discos do grupo que integra, Devotos, faz os

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instrumentos da Altovolts e pinta telas, sendo a prova viva que a tão propagada diversidade musical do Recife também se mostra quando falamos dos músicos que investem seu tempo e talento nas artes plásticas. Autor das capas dos discos da Devotos e de todo o trabalho gráfico da banda, como pôsteres e camisetas, Neilton também é convidado para fazer capas de outros grupos, como o do Cordel do Fogo Encantado, Academia da Berlinda e The Baggios, sua encomenda mais recente. Todos eles são pintados em tela com tinta acrílica. Autodidata em todas as áreas profissionais que abraçou, ele conta que aprendeu a desenhar com uma famosa dupla, HannaBarbera. “Minha escola sempre foi a televisão, desenho animado, depois, quadrinhos. Nunca achava que isso fosse chegar a canto algum, sempre


CON CAPA TI NEN TE MARCELO LOUREIRO-PHOTONEWS/DIVULGAÇÃO

REPRODUÇÃO

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2 JORGE DU PEIXE Com o guitarrista Lúcio Maia, vocalista visita mostra do bloco Enquanto Isso na Sala de Justiça FOME DE TUDO 3 Disco da Nação Zumbi foi dos que tiveram arte assinada pela dupla Jorge Du Peixe e Valentina Trajano

4 CATARINA DEE JAH Artista plástica e cantora dá o mesmo peso às duas artes em sua vida

criando outra textura”, conta o pintor, que já fez duas exposições individuais. A primeira teve texto assinado por Gil Vicente, admirador do seu trabalho.

DU PEIXE

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achei que não ter um curso, não ter dinheiro, acesso a acessórios, ferramentas, que todos os pintores e artistas tinham, não ter tido aula de História da Arte, me desqualificava como profissional da área.” Reconhecido como artista plástico, músico e construtor de instrumentos, Neilton, vez ou outra, é chamado de gênio. “Sou gênio nada, o que eu faço é simplesmente porque não tenho quem faça pra mim. Esse lance de construção da guitarra, dos amps, dos cases, tudo o que você está vendo aqui, sou eu que faço; esta prateleira, os chassis, esta casa, que ajudei na construção, a ideia era ter um laboratório, o piso fui eu que fiz, com retalhos de cerâmicas, que era mais barato. Não sou gênio, eu não tenho dinheiro. Possivelmente, se tivesse, compraria uma Gibson fodona, um amplificador Marshall top e seria mais um tocando guitarra por aí, que

minha intenção era tocar guitarra, ou pintando com tintas caríssimas, tentando estudar, fazendo faculdade ligada a isso. Não tinha dinheiro, fazia porque queria”, observa. A primeira aquarela veio aos 12 anos, em 1984. “Aí você fica com aquela noia, ‘tem que pintar igual a fulaninho’, ‘tem que estudar pra ser alguém’. Depois, comecei a contestar isso, quando comecei a me envolver mais com a cultura alternativa, será que pra, de fato, eu ser bom no que quero fazer de hoje em diante, preciso estudar as técnicas já desenvolvidas ou posso criar a minha?”, questiona-se Neilton, que só utiliza as cores básicas, amarelo, azul, vermelho, branco e preto. “O resto vai saindo, costumo dizer que sou uma impressora. Às vezes, preparo a mistura que quero para determinado tom; às vezes, já vou misturando direto na tela e já vai se

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Assim como Neilton, Jorge Du Peixe, compositor e vocalista da Nação Zumbi, também é músico ligado às artes visuais e costuma fazer capas de discos. A embalagem do primeiro da Nação Zumbi foi elaborada pela dupla Dolores & Morales. Mas a do segundo, Afrociberdelia (1996), teve assinatura dele e HD Mabuse. “Não participei da gravação de Maracatu atômico, que foi a última música gravada para o disco, porque estava no Recife fazendo a capa”, conta Du Peixe. Ao lado da designer Valentina Trajano, Du Peixe fez belíssimas capas para a Songo, Mundo Livre S/A, Mombojó, Siba e Nação Zumbi. “Desde pequeno, estava sempre com caneta na mão desenhando, fiz tatuagem por um tempo. Comecei a cursar desenho industrial, mas ainda não sabia o que queria, só sabia que as artes visuais me atraiam de várias maneiras. Quando entrei na banda, essa área foi uma preocupação nossa desde o início”, lembra Du Peixe, cujas influências são muitas, Dadaísmo, cartazes russos, xilogravura… “Acho que o meu estilo de desenho tem influência sobre a


RODRIGO VALENÇA/DIVULGAÇÃO

minha música. A literatura influencia o desenho, que influencia a música. É difícil apontar onde começa”, diz o músico, que, além de estar no começo da gravação do próximo disco da Nação Zumbi, vem investindo em pintura com tinha acrílica e colagens, e pensa em fazer a primeira exposição individual de seus trabalhos. A artista plástica e cantora Catarina Dee Jah, filha dos artistas com formação em Arquitetura, Humberto Magno e Iza do Amparo, diz que para ela é difícil diferenciar a importância da música e das artes plásticas em sua vida. “Uma permeia a outra. Creio que na música há uma entrega maior, pois interajo com muitas pessoas no processo criativo, me desafia mais. Mas são complementares, uma alimenta a outra. Quando existe sensibilidade artística, tudo pode virar expressão. Quando produzo minhas festas, gosto que as pessoas tenham uma experiência em todos os sentidos. Portanto, cuido da comida, da decoração e da música. Aprendi desde cedo a fazer o que puder com o que se tem.” Sobre se prefere ser mais reconhecida como artista visual ou cantora, Catarina é enfática: “Falar em reconhecimento é bem relativo. Mas é interessante indagar. Reconhecimento é sucesso? O que é sucesso? Ganhar dinheiro? Ter fama? Ganhar dinheiro depois de morta? Ser reconhecida depois de morta? Ter tenacidade para agradar uma massa e não precisar fazer concessões artísticas pra isso? Quero que as pessoas me ouçam ou vejam e saibam quem sou eu. Busco a autonomia e a originalidade”. Um dos músicos da nova geração, o jornalista, guitarrista e desenhista Fernando Athayde fez a capa de seu primeiro disco solo, Greatest hits. “O desenho me toca racionalmente, como um trabalho, a música é pura emoção, incontrolável e imprevisível. Cada intervalo harmônico que sustenta a melodia de uma canção minha opera na mesma frequência que a escolha de representar as feições estilizadas de um ou outro personagem que eu criei. Acredito que a arte não tem uma finalidade específica, mas se utiliza dos símbolos cristalizados na psiquê do artista para se manifestar”, analisa o desenhista, que fez capas para bandas em que tocou e hoje mostra seus desenhos no site neurose.me.

“Creio que na música há uma entrega maior, pois interajo com muitas pessoas no processo criativo” Catarina Dee Jah O compositor e guitarrista D Mingus, também da nova geração de músicos pernambucanos, começou a desenhar por causa dos livros ilustrados e gibis: “Desde muito cedo, não me contive em ser apenas leitor. Sempre senti necessidade de criar as minhas próprias histórias, mesmo sem ter qualquer conhecimento formal dos fundamentos básicos da narrativa visual. Minha relação com desenho é mais sazonal do que com música. Até aos 13 anos, tinha essa atividade como meta para minha vida, até que descobri o rock, que me desviou do caminho do bem”. “Na verdade, eu parei de desenhar, como muita gente faz, porque acabei achando que aquilo era mais uma questão de ‘ter um talento nato pra coisa’ do que de sentar o traseiro na cadeira, estudar e treinar… Então, comecei a me incomodar com a ‘tosquice’ de minhas criações, que não conseguiam mais acompanhar meus anseios internos,

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e inconscientemente travei o traço. Retomei o desenho de forma mais dedicada somente uns cinco anos atrás, quando assumi que desfazer alguns bloqueios relacionados a essa fase seria terapêutico”, diz o músico, que já publicou uma série de HQs curtas na internet, Vida lo-fi, e está com um projeto, em fase de roteirização, de integrar quadrinhos à música. Contemporâneo de Fernando Athayde e D Mingus, o músico Zeca Viana considera que as duas atividades se complementam. “Ultimamente, tenho desenhado bem mais do que feito música, comprei algumas tintas também e tenho praticado pintura. Entre 2013 e 2015, não toquei ao vivo, me dediquei apenas a gravar em casa o disco Estância. Com certeza, foi uma das épocas em que mais me dediquei ao desenho.” Seu próximo disco vai se basear em uma HQ, que está em processo de criação. Será um álbum quadrinhos. “Desde Estância, venho trabalhando em uma música mais imagética, conectada à ideia de paisagem sonora, camadas e texturas de ambiência. A música não deixa de ser uma forma de grafar sonoridades, de desenhar sons. O processo de produção, mixagem e masterização que venho fazendo em casa é bem isso, um modo de desenhar a música como eu a imagino.” (DN)


CON CAPA TI NEN TE

CONCERTOS Arte ao vivo

Manifestações das artes plásticas, como performances, happenings e instalações, transformam shows em uma experiência visual TEXTO Yellow

1 THE WALL Turnê de Roger Waters, em 2012, incrementa show de 1980 1

Após a frustração que levou os

Beatles a abdicarem de performances ao vivo por limitações técnicas, em 1966, tecnologia e criatividade passaram a alimentar a parceria entre espetáculo e música. Na Inglaterra, encontramos não apenas o surgimento dos amplificadores Marshall, mas também as raízes para a natureza multimídia dos shows dos dias de hoje. O produtor norte-americano Joe Boyd argumenta, na autobiografia White bicycles (2006), que as pirotecnias são uma herança inglesa. Ele, que atravessou o Atlântico na década de 1960, relata sua surpresa ao constatar uma predisposição natural dos músicos a trazerem ao palco gongos, coreografias e uniformes. O público não apenas aceitava, como esperava que, em determinado momento de um show, algo explodisse. Foi na Inglaterra que um jovem norte-americano chamado Jimi

Hendrix aprendeu a incorporar às suas performances truques, como tocar a guitarra com os dentes ou atrás da cabeça, e esses foram canais para seu reconhecimento. “(Pete) Townshend quebrando uma guitarra e Hendrix ateando fogo a outra no palco de Monterey os fez estrelas da noite para o dia, na América”, diz Boyd. “Ambos os gestos (…) faziam parte de uma tradição inglesa do artifício. Nova York jamais teria moldado o gênio de Hendrix em uma persona pop tão poderosa quanto Londres fez.” O mesmo Boyd foi um dos sócios do UFO (Underground Freak Out), um clube psicodélico que fez história na Swinging London. Localizado no porão de uma delegacia de polícia, o minúsculo clube abrigava apresentações de poesia, exibição de filmes e happenings, e nele tomou forma um dos conjuntos que viria a realizar alguns

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dos mais influentes espetáculos audiovisuais, o Pink Floyd. Em seu livro Inside out, o baterista Nick Mason lembra que os integrantes da banda, que se conheceram na escola de arquitetura, não tinham dificuldade em empregar seus conhecimentos técnicos na montagem de equipamento de iluminação. Em um espaço limitado, pequenas luzes e projetores eram capazes de criar um grande impacto visual. O baixista Roger Waters percebeu que o grupo poderia usar um retroprojetor e líquidos coloridos, e catapultar a audiência lisérgica do UFO à Alfa-Centauro. Nos anos seguintes, o espetáculo do Pink Floyd cresceria com o emprego de cada vez mais luzes, fogos de artifício, e, sim, um gongo. Logo seriam preparados filmes a serem projetados em um telão circular, marca registrada da banda, dirigidos por Storm Thorgerson, o designer das capas de seus discos. A


DIVULGAÇÃO

partir de Animals, nasceu uma parceria entre a banda e o cartunista Gerald Scarfe, que passou a criar animações para ela. O animador viria a definir grande parte da identidade visual do maior projeto do Pink Floyd, o disco/ espetáculo/filme The wall. Inovador quando criado, em 1980, o cenário do show, projetado pelo arquiteto inglês Mark Fisher, gradualmente dividia a banda da plateia através da construção de um gigantesco muro, simbolizando o distanciamento entre artistas e seu público. Foi o início de uma nova carreira para o profissional, que viria a projetar palcos para Rolling Stones, Madonna, U2 e a abertura da Olimpíada de Pequim, em 2008. Antes de sua morte, em 2013, Fisher reformulou The wall para uma turnê mundial de Roger Waters. Ao final dos anos 1960, uma cena musical se formava na Alemanha, o Krautrock. As bandas alemãs aplicavam

Em sua autobiografia, o produtor britânico Joe Boyd defende que as pirotecnias em shows são uma herança inglesa com rigidez conceitos que pretendiam explorar. A Can, por exemplo, dedicavase a improvisações, composições coletivas e instantâneas, que exploravam a ambiência de onde quer que estivessem tocando, transformando seus shows em happenings. Kraftwerk, a mais famosa e influente banda alemã, passou a usar, a partir de Autobahn, em 1974, apenas instrumentos eletrônicos. O conceito, no entanto, impunha um desafio aos shows. Sintetizadores, em sua maioria, são apenas teclados com botões.

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Diferentes de guitarras ou baterias, cuja execução já é uma performance, é entediante para a plateia assistir a quatro integrantes de uma banda catucarem pitocos em caixinhas. Os alemães, então, assumiram uma postura de palco fria ao cúmulo, escondendo as vozes humanas em modulações de vocoders, e chegando ao clímax em que eram substituídos, no palco, por robôs, criando shows memoráveis. Por sua vez, o francês JeanMichel Jarre recorreu a luzes e lasers para transformar em espetáculo sua música de sintetizadores. Ele criou instrumentos, como um teclado circular e luminescente, que parecia um disco voador, e uma “harpa laser”. Durante a década de 1980, seus espetáculos se tornaram intervenções em cidades inteiras. Em um dos seus concertos mais recentes, porém, ele utilizou um dos


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: REPRODUÇÃO

2 KRAFTWERK Performance com sintetizadores se tornou mais atrativa com uso de recursos visuais, como projeções JEAN-MICHEL JARRE 3 Compositor francês executa instrumentos não convencionais, como a “harpa laser”

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mais simples e arrebatadores recursos visuais de sua carreira – espelhos gigantes sobre o palco, que permitiam à plateia assistir à extenuante manipulação dos históricos instrumentos que foram usados na gravação de Oxigene, álbum de 1976.

MÚSICA ELETRÔNICA

Com a popularização de DJs e instrumentos virtuais, acionados em computadores, cada vez mais artistas de música eletrônica estão recorrendo a espetáculos audiovisuais. O gênero EDM (Electronic Dance Music) tornouse, na última década, extremamente popular, e em torno deste surgiram os maiores festivais de música do mundo. Parte da festa, no entanto, é o assalto

Empresas de design especializadas em espetáculos visuais são mais procuradas por artistas de música eletrônica sensorial causado por intervenções visuais criadas por empresas de design especializadas em espetáculos, como Strangeloop (que já trabalhou com Skrillex e Flying Lotus), United Visual Artists (Massive Attack) e Universal Everything (responsável pelos shows do Coldplay), que cercam os DJs de parafernália visual, para afastar a

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impressão de que os artistas estão apenas checando seus e-mails na frente de milhares de espectadores. Alguns músicos e bandas integram uma classe particular, em que a performance ao vivo e a composição das músicas quase não podem ser dissociadas. A banda norte-americana Talking Heads procurou explorar diferentes mídias, como o cinema e a televisão, durante sua prolífica carreira, apresentando sempre um discurso crítico à cultura de massa. O filme Stop making sense, de 1984, documenta a explosão de criatividade e funk que o grupo apresentava ao vivo, montando e transformando o cenário do palco durante o show. Há anos, Peter Gabriel já perturbava os companheiros da banda Genesis, ao usar vestimentas esdrúxulas no palco, antes de sair em carreira solo. O filme Secret world live, sobre a turnê do disco Us, de 1992, é a culminância de sua criatividade. Músicos, cabine telefônica, um pântano, uma árvore, brotam de dois palcos ligados por uma esteira rolante, em uma apresentação teatral, ao mesmo tempo empolgante e introspectiva. Comparada a Gabriel desde o início de sua carreira solo, em 1993, a islandesa Björk buscou criar shows, vídeos e arte arrebatadores para sua música. Interesses diversos, que vão da música experimental à moda, sempre estiveram presentes em seu trabalho, e suas parcerias trouxeram visibilidade a músicos, cineastas (Michel Gondry, Spike Jonze, John Kricfalusi, Lars Von Trier) e estilistas (Alexander McQueen, Iris van Herpen, Maiko Takeda). Seu projeto multidisciplinar Biophilia, uma apreciação musical da natureza, foi lançado, simultaneamente, como disco, show, exposição de museu e aplicativo para tablet. A cantora usou desde instrumentos artesanais, que exploram princípios físicos e matemáticos, a gaiolas eletrificadas, que geram notas através de raios.


REPRODUÇÃO

1 YVES KLEIN Performance de 1960 contou com música composta pelo artista apenas em ré maior

SONS E IMAGENS Experiências multissensoriais

De Yves Klein e Joseph Beuys a experimentos contemporâneos, as artes visuais unem visualidade e sonoridade TEXTO Bárbara Buril

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No dia 9 de março de 1960, o artista

francês Yves Klein realizou uma performance na Galeria Internacional de Arte Contemporânea de Paris, que, até hoje, é considerada um dos pontos altos da arte no século 20. Convidou três modelos de corpos esculturais, para que elas se pintassem de um azul profundo e, em seguida, exatamente como pincéis vivos, “carimbassem” uma folha enorme de papel branco com o próprio corpo. Tornaram-se célebres as pinturas de Klein que exibem as formas e os volumes do corpo feminino em uma superfície apenas bidimensional. Poucas pessoas sabem, no entanto, que essa performance contou com a execução de uma peça musical criada pelo próprio artista. A sinfonia Monotonia e silêncio, composta por Klein em 1947, ao contrário do que se poderia imaginar, não cumpre papel secundário na performance, mas se torna essencial na compreensão total da célebre


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: REPRODUÇÃO

2 ANTROPOMETRIAS Pinturas resultantes da performance de Yves Klein JOSEPH BEUYS 3 Performance sonora de 1969, na Alemanha

4 HÉLIO OITICICA Em carta à Biscoito Fino, artista diz que o que faz é música

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Antropometrias. Yves Klein, de modo iniciático, rompe o silêncio sagrado de um espaço expositivo. Até hoje, no entanto, a presença do som nos museus e galerias de arte, ainda considerados espaços em que se deveria “falar mais baixo”, inquieta. O que resultou da performance Antropometrias – as formas azuis das modelos “carimbadas” no papel e exibidas em inúmeras exposições de arte – é suficiente por si só. No entanto, é preciso ressaltar que existiu uma complexidade na performance de Klein que também dependeu da sinfonia Monotonia e silêncio. Durante 20 minutos, uma orquestra e um coro, compostos no total por 10 músicos, entoaram a nota ré maior (D) de modo intermitente, sem diminuir o som ou aumentá-lo, com a constância de uma sirene com um interruptor preso. Klein era o maestro. Enquanto isso, as modelos se pintavam e “carimbavam” as telas com o próprio corpo. Uma plateia, composta principalmente por homens, assistia embasbacada (como se vê no documentário Yves Klein, de François Lévy-Kuentz) à performance,

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As incursões de artistas visuais no terreno da música foram bastante intensas na década de 1960

numa espécie de antecipação à associação trazida pelo filme Azul é a cor mais quente, do diretor Abdellatif Kechiche, de que há uma espécie de saturação sensual por trás de uma cor esteticamente fria. Sem dúvida, o papel das mulheres na performance – meros objetos para executar o que o artista Klein, homem branco, havia concebido – seria extremamente questionado hoje. Entretanto, precisamos entender Antropometrias dentro dos limites de seu tempo. Depois dos 20 minutos de som, enfim, seguem-se 20 minutos de silêncio profundo. Os músicos, de modo performático, não reagem, não balbuciam e fitam para um único local, como se estivessem meditando.

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As mulheres, nesse momento, estão azuis, no canto. E tremem de frio. É interessante acrescentar que Klein concebeu a sinfonia nos mesmos anos em que John Cage criou 4’33’’, um trabalho marcante em que o pianista não executa nota alguma no seu instrumento, com a intenção de levar a plateia a perceber as complexidades do silêncio. Para Cage, é a partir dele que a música pode ser criada. Embora não existam provas de que Cage e Klein se influenciaram mutuamente, é possível perceber que há questionamentos próprios de um tempo que acabam permeando trabalhos contemporâneos entre si. Como intui o filósofo Arthur Danto, na obra O abuso da beleza, “talvez seja um sinal de um verdadeiro movimento do pensamento, quando indivíduos começam a fazer ou pensar o mesmo tipo de coisas, mesmo sem saber da existência uns dos outros”. Também na mesma época, mais precisamente em 1969, o artista alemão Joseph Beuys apresenta a performance Titus Andronicus/Iphigenie, num teatro de Frankfurt, na Alemanha. No palco, Beuys toca pratos continuamente em


em cheque dos problemas-chave da criação (o SAMBA em q me iniciei veio junto com essa descoberta do corpo no início dos anos 1960: PARANGOLÉ e DANÇA nasceram juntos e é impossível separar um do outro)”. E conclui o raciocínio de modo catatônico: “JIMI HENDRIX DYLAN e os STONES são mais importantes para a compreensão plástica da criação do q qualquer pintor depois de POLLOCK”. Sintomas de um verdadeiro movimento de pensamento em gestão naquela época. Por outro lado, na mesma década de 1960, a experiência visual já se inseria no mundo da música, em capas de discos de vinil que mais pareciam obras de arte – caso dos discos Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) e Abbey Road (1969), dos Beatles. Não se havia chegado às megaproduções visuais de shows como os das cantoras Beyoncé e Lady Gaga ou da banda francesa Stromae, como vemos hoje em dia, mas o universo da música já concedia espaço e valor às atratividades do apelo visual. Hoje, em uma espécie de comparação simplista, há muito lugar para os olhos nas apresentações musicais e pouco lugar para os ouvidos nas exposições de arte – talvez pelo impacto de uma cultura ocidental eminentemente visual nos diversos terrenos da experiência humana. A presença da música, nos espaços das galerias e dos museus, não é algo comum, não chega perto de uma regra e, muitas vezes, pode até chocar. 4

frente a um cavalo branco reluzente. Por vários motivos e símbolos, tratase de uma provocação às atrocidades empreendidas pelo regime nazista na Alemanha. É difícil julgar até que ponto, de fato, Beuys estava tocando uma música. É mais provável que ele, através de sons cortantes, racionais e objetivos, estivesse provocando um pensamento plástico. De todo modo, a presença dos sons nas artes visuais dos anos 1960 não foi um mero acaso. É importante ressaltar que os integrantes do Movimento Fluxus, que influenciaram toda uma geração de artistas conceituais, foram alunos do seminário de John Cage sobre composição experimental na universidade novaiorquina The New School. Como

escreve Danto, o empenho de Cage em superar a distinção entre música e barulho é semelhante ao programa do grupo Fluxus de “preencher a lacuna entre arte e vida”. O próprio Beuys, mais tardiamente, chegou a integrar o movimento. As incursões de artistas visuais pelo terreno da música também foram bastante intensas no Brasil, na década de 1960. Os próprios experimentos de Hélio Oiticica com o terreno da música o levaram a escrever, em carta para a gravadora Biscoito Fino: “descobri q o q faço é MÚSICA e q MÚSICA não é ‘uma das artes’ mas a síntese da consequência da descoberta do corpo, porisso o ROCK p. ex. se tornou o mais importante para a minha posta

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EXPERIMENTOS

Foi o caso da obra Autobang, do coletivo fluminense Chelpa Ferro, apresentada em 2002, na 27ª Bienal de São Paulo. Um carro de marca Maverick, objeto de consumo e fetiche, símbolo de poder e masculinidade, foi colocado em um dos salões do edifício para ser visto, ouvido e destruído por porretes cujas extremidades tinham o formato dos rostos de Beethoven, Mozart e Bach. O que aconteceu foi que, simplesmente, em plena Bienal de São Paulo, os visitantes poderiam pegar esses porretes, subir no carro e destruir cada parte dele em pedacinhos. O som que se ouvia no edifício escandalizava não só porque parecia quebrar a formalidade de uma bienal, mas também porque aquele som não era um mero batuque. Era um batuque em


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um Maverick! Como escreve o crítico de arte Luiz Camillo Osório, após a performance: “O que houve na bienal, com uma catarse coletiva detonando temerariamente o Maverick, ainda não foi assimilado por inteiro. Que explosão selvagem foi aquela?”. O escândalo, é claro, também veio da destruição deliberada de um objeto que materializava uma série de ideais. O centro nervoso do Chelpa Ferro, de todo modo, constitui-se nessa inquietação em repensar as relações ambíguas entre o que se vê e o que se escuta. Na obra Moby Dick (2003), por exemplo, a intenção não é mais dessacralizar um espaço de museu ou galeria, mas questionar como uma imagem é capaz de evocar sons, em um movimento inverso daquela atividade que a música pode exercer: evocar imagens. Em Moby Dick, uma bateria grande, majestosa, mas sem baquetas, fica no centro de uma sala. Nenhum som, nenhuma performance, apenas a bateria em um espaço de galeria. A única coisa que vem à mente é, então, o som dela, ausente. Como escreve o crítico de arte e curador

“A música visual é um campo da arte que tem conexão não hierárquica entre som e imagem” Jarbas Jácome Moacir dos Anjos, “é a imagem silenciosa e precisa de um objeto que aciona o sentido da audição. Tal alteração no processo perceptivo desfaz hierarquias comumente associadas a experiências sinestésicas, em que a um som corresponderia uma imagem definida, mas à visão concreta de algo não equivaleria um ruído certo”. São variadas e quase sempre imprevistas as articulações entre som e imagem nos trabalhos de Chelpa Ferro. Nas criações do artista norteamericano Steve Roden, as relações entre som e imagem também são exploradas extensivamente e de um modo bastante complexo. Após uma residência na Alemanha em 2011, Roden produziu uma série

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de obras que articulam, através de desenhos e sons, os vários significados encontrados nos célebres cadernos do filósofo alemão Walter Benjamin. Em uma das obras, por exemplo, intitulada symbol/cymbal (vinyl version), Roden punha em relação quatro desenhos de Benjamin e quatro vitrolas de vinil. De cada uma das vitrolas emanava o som de um prato de bateria, em ritmos diferentes, de acordo com uma partitura que o artista derivou dos desenhos encontrados nos cadernos de Benjamin. “Quando vi os cadernos, eles me lembraram bastante as partituras gráficas de Morton Feldman e Cornelius Cardew e Fluxus etc. Demorou um tempo para que eu descobrisse como usar os símbolos de Benjamin para os meus próprios meios, e é claro, não achei tradução, então eu olhava cada símbolo e via como aquele símbolo poderia sugerir um som”, detalha Roden. Os desenhos de Benjamin, então, foram reinterpretados sonoramente pelo artista norteamericano. “Eu os ‘traduzi’ de diferentes maneiras, utilizando-os para


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5 CHELPA FERRO Instalação do coletivo esteve na Bienal de 2002 6 MONTEZ MAGNO Série explora aspecto visual das partituras STEVEN RODEN 7 Pintura traduz relação entre som e imagem 6

fazer gestos relacionados com sons – de um círculo, eu fazia um som leve e contínuo; de um quadrado, fiz quatro gestos sonoros de uma mesma duração, e assim vai”, explica o artista. São trabalhos sobre os quais é difícil não questionar se neles há hierarquia entre som e imagem. Em alguns, parece que a imagem tem protagonismo; em outros, o som parece se destacar. De todo modo, a experiência geral é simultaneamente sonora e visual. O artista paraibano Jarbas Jácome, por exemplo, tem refletido justamente sobre a relação complexa entre o que se vê e o que se escuta na arte. “A música visual trata-se de um campo da arte que se preocupa com uma conexão direta e não hierárquica entre som e imagem. Nessas criações, o compositor se preocupa com o som e a imagem simultaneamente, como acontece com criações que envolvem pelo menos duas linguagens. Mas há artistas que pensam primeiro em uma, depois em outra”, explica ele. Na performance Flor de Ilha Formosa, por exemplo, apresentada por ele no ano passado, no 9º Simpósio de

Arte Contemporânea da Universidade Federal de Santa Maria, e no Festival Eletronika de Belo Horizonte, o artista apresentou uma instalação interativa com um microfone e uma projeção gráfica de uma flor na parede da galeria. A imagem da flor mudava de acordo com o som capturado pelo microfone: quanto mais agudo o som, mais pétalas. Para criar essa projeção, Jácome transformou o gráfico tradicional do som, cujo eixo horizontal representa a passagem do tempo e o eixo vertical a amplitude do som, em uma imagem cujos eixos horizontais e verticais se transformam em “pétalas”. “O clássico gráfico ondulado do som é uma ‘ficção científica’, pois é ‘apenas’ uma ideia matemática. Nesse trabalho, proponho um desvio semântico desse objeto visual que já é um clássico da sociedade tecnocrata para um outro objeto estranho, um simpático e nervoso monstro visual que reage imitando uma flor”, detalha o artista. A performance de Jácome parece articular, de modo não hierárquico, as potencialidades do som e da imagem.

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Por outro lado, o potencial visual dos elementos figurativos da música, como claves, notas e partituras, está presente no “álbum” Notassons (1993), de Montez Magno, que consistiu em uma série de desenhos sobre partituras, cujos títulos se referem a peças musicais como Sonata para olho e ouvido, Sonata silente ou Concerto aparentado. Apesar de, no trabalho, existirem alusões ao que poderia ser um “álbum”, não há a presença de sons na criação de Montez, mas apenas alusões a eles através de imagens, figuras e jogos de palavras com as letras S, O, N e S – o que não é pouco, diante do potencial imagético de evocar sonoridades. Ainda que alguns trabalhos possam evocar uma maior visualidade e, outros, um potencial mais sonoro, é inegável que os artistas aqui mencionados – Roden, Chelpa Ferro, Jácome, Klein e Beuys – dedicaram-se a explorar as possibilidades semânticas da imagem e do som em seus trabalhos. Mais precisamente, dedicaramse a explorar o que há de sonoro em determinada visualidade e o que há de visual em determinadas sonoridades. Fácil pensar, nesse caso, que a busca dos artistas em propor experiências multissensoriais pode ser, no final das contas, uma vontade mais inconsciente de experimentar uma sinestesia que não nos é, por limitação física e por outros limites insondáveis, oferecida.


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Conexão 1

APLICATIVO Para andar com a literatura pelo Recife

Aplicativo “percorre” ruas da cidade utilizando citações de escritores desde o século XIX aos dias de hoje, relacionando texto e lugar TEXTO Erika Muniz

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Uma aproximação entre a cidade e

seus habitantes pode se estabelecer de diversas maneiras: pela identificação com a arquitetura local, pela paisagem natural, pelas relações estabelecidas, pela memória construída a partir de vivências e pela arte. Essas e outras vias possibilitam o afeto. Na história da literatura, foram vários os escritores que fortaleceram os vínculos entre o Recife e a sua poesia. Seja pelas paisagens ou pelos costumes do recifense, essa cidade “metade roubada ao mar, / metade à imaginação” inclina-se a servir de estímulo poético para gente de diferentes gerações. Nessa atmosfera, o aplicativo Ruas Literárias do Recife (Android e iOS), projeto idealizado pelo cineasta Eric Laurence (Uma passagem para Mário), propõe aproximar as pessoas da cultura local. Através do mapeamento de várias ruas, o usuário pode (re) descobri-las a partir de um olhar


1 CONTEÚDO No aplicativo, além de trechos de poesia e prosa, há letras de músicas

resistência urbana Ocupe Estelita. “As manifestações acabaram gerando várias discussões e reflexões sobre o espaço urbano”, afirmou o criador. Em conversas que mantinha com a escritora Luzilá Gonçalves, era comum perceberem os lugares a partir de referências literárias: “Eu vi a poesia do Carlos Pena Filho sobre a Av. Guararapes e falei com Luzilá a esse respeito, e ela dizia que vários escritores fizeram isso, foi aí que veio a ideia do aplicativo”. A equipe do projeto contou, além da escritora garanhunense na pesquisa e produção dos textos, com colaboração da poeta Cecília Villanova, que trouxe mais referências da literatura contemporânea. A jornalista Olívia Mindêlo ficou com a edição geral dos textos. O banco de dados do Ruas Literárias traz 82 autores de

O banco de dados do Ruas Literárias do Recife traz, hoje, obras de 82 autores, relacionadas a 150 pontos da cidade subjetivo, sendo orientado a cada passo por referências e citações literárias. “Uma das riquezas do aplicativo é possibilitar olhares diferentes sobre a cidade, difundir outras perspectivas sobre o espaço urbano. Na sua pesquisa, há poetas e escritores de diferentes épocas e estilos, desde o século XIX até o contemporâneo. Uns tem uma visão moralista, outros, crítica ou ácida. Esses perfis permitem que cada usuário construa a própria relação com o espaço”, disse o realizador à Continente. É antiga a paixão de Laurence pela literatura. Quando decidiu trabalhar com arte, foi estudar dramaturgia voltada para textos literários. Dos estudos dramatúrgicos, conheceu a linguagem cinematográfica e fez dela seu ofício. No primeiro semestre de 2014, surgiu-lhe a ideia do aplicativo de ruas literárias que, no mesmo ano, foi aprovada no edital do Funcultura. Era a época do movimento de

diferentes épocas, distribuídos por 150 pontos na cidade. Dos escritores citados no app estão: Ericksson Luna, Miró da Muribeca, Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito, Joaquim Cardozo, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Audálio Alves, Manuel Bandeira, Carlos Pena Filho, Micheliny Verunschy, Carneiro Vilela, Rubem Rocha Filho, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, entre outros. A maioria é pernambucana, mas há também de outros estados.

USABILIDADE

Ao abrir o aplicativo, entre os ícones disponíveis na tela inicial está a opção principal Navegar, que mostra o mapa da cidade. Com o mecanismo de geolocalização (via GPS do usuário), o aplicativo identifica a rua mais próxima e, através do clique no pin indicado, apresenta os pontos e os textos correspondentes a eles, além de um pouco das histórias locais. São desde

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trechos de músicas, romances, contos ou poemas. Há também uma ferramenta de busca e um quiz, caso o usuário se interesse em saber mais sobre aquele escritor ou testar seus conhecimentos. Quanto mais se avança no mundo globalizado, mais as ações do cotidiano – trabalhar, dirigir, conversar – são mediadas pelas novas mídias. Se, antes, era preciso sentar na frente do computador para navegar na internet, os dispositivos móveis permitiram que a conexão aconteça em qualquer lugar. Direcionar o uso dos equipamentos para que gerem benefícios, facilita a vida na urbe. Ajudar as pessoas a escolherem o caminho mais curto ou avisar qual itinerário está menos engarrafado são algumas das vantagens que a tecnologia pode trazer. O que dizer de uma ferramenta que traz um pouco de beleza para o dia a dia na cidade através de poesia? Como em outros gêneros artísticos, a literatura permite compartilhar impressões a partir de referentes – no caso do aplicativo, as ruas e os elementos que a compõem. Essa partilha não termina na relação autor-leitor/ usuário, estende-se para todos os leitores que o texto já teve. Se, quando abrir o aplicativo, o usuário estiver presente no local referido pelo texto, talvez a experiência seja mais intensa: “O aplicativo faz você contemplar uma vista, uma escultura, um local e perceber que alguém pode já ter se inspirado por aquela beleza, alguém pode já ter escrito algo, uma música, um conto, uma poesia sobre aquele local”, atenta a linguista e professora da UFPB Ana Vogeley. Com um projeto gráfico simples, o aplicativo vem conquistando adeptos pela facilidade de uso e, principalmente, pelo conceito: ler poesia sobre determinada rua e refletir sobre a memória daquele lugar.“Para quem estiver circulando pela cidade, é ótimo conhecer referências literárias em cada espaço, rua e canto do Recife. Quem é da cidade já deve conhecer algumas histórias e ligações entre ruas, poetas e escritores, mas pode estender o conhecimento”, afirma Ricardo Postal, professor do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPE. Para quem está só passagem, a experiência também é enriquecedora, por “ir conhecendo


TIAGO LUBAMBO/ARQUIVO REVISTA CONTINENTE

2-3 CASA FORTE Na praça, o aplicativo oferece um poema do artista plástico Montez Magno

Conexão

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a literatura feita a partir das impressões que o Recife provocou”. Entre os habitantes que caminham pela cidade observando detalhes que poderiam passar despercebidos, está o arquiteto, urbanista e pesquisador do INCITI, André Moraes. Ele ressalta a contribuição de aplicativos como o Ruas Literárias para a criação de uma

Durante a pesquisa, o realizador Eric Laurence encontrou textos antigos já discutindo a urbanização da cidade cidade menos hostil e com laços mais fortes com quem transita por ela: “Na carência de um espaço urbano mais poético e mais afetivo, que é uma coisa na qual venho trabalhando bastante, o aplicativo consegue levar um pouco de poesia e afeto para a cidade”, disse à Continente. Apesar de reconhecer os benefícios simbólicos e materiais desse tipo de tecnologia, ele atenta para a importância de tornar constante a renovação de conteúdos no aplicativo. Na versão atual, o banco de dados do app se encontra fechado, não permitindo aos usuários acrescentar novidades. Como solução, André sugere que, futuramente, os navegantes possam contribuir, já que “o grande segredo do fluxo nas redes sociais atualmente é envolver o usuário na construção de conhecimento”. Um aplicativo como o Ruas Literárias, por fortalecer e divulgar os vínculos entre os habitantes e a urbe, pode

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colaborar para a preservação das memórias materiais da cidade. “Se abrir para que os usuários alimentem com conteúdo, em algum momento, uma rua como a Velha, na Boa Vista, vai aparecer no aplicativo cheia de pins e conteúdos, assim, os outros usuários irão perceber a importância que os casarios, as igrejas e os elementos dessa rua têm para a cidade”, argumenta o arquiteto. Durante a pesquisa para o aplicativo, Eric Laurence afirma ter constatado que a urbanização na cidade não é uma temática apenas contemporânea, pois já foi, há tempos, questionada na poesia de artistas pernambucanos como Joaquim Cardozo e Manuel Bandeira. Sobre o futuro com relação à plataforma, ele afirma pretender reeditá-lo daqui a um tempo: “Colocar novos pontos, outros escritores, já que o mais complexo, que é a estrutura de navegação, já foi feito”. Divulgar o projeto em escolas como ferramenta de difusão da literatura é outra vontade. “A educação precisa se reinventar e incorporar a tecnologia aos seus métodos de aprendizagem”, e iniciativas como o apps do Ruas Literárias do Recife podem colaborar para que isso aconteça.


ANDANÇAS VIRTUAIS

JOGOS DIGITAIS Web games são ferramentas utilizadas em projeto para aproximar juventude de narrativas de matrizes afro-brasileiras contosdeifa.com

“Como podemos conectar os

jovens para tratar de assuntos como o extermínio da juventude negra e questões de ancestralidade?”, foi essa

uma das questões que motivaram a criação de Contos de Ifá, iniciativa do Centro Cultural Coco de Umbigada, de Olinda, em parceria com a 3Ecologias,

agência de tecnologias para educação, cultura e meio ambiente, em que são feitos laboratórios de inovação para o desenvolvimento de jogos digitais roteirizados, a partir de narrativas da mitologia afro-brasileira. Cada encontro acontece por meio de incentivos e financiamentos, como foram os laboratórios anteriores por meio do Funcultura, da Secult baiana, do Fundo Brasil de Direitos Humanos e da premiação, em 2015, na categoria Tecnologia Social do Banco do Brasil. Atualmente, a página conta com uma narrativa e um jogo para cada um dos sete orixás já introduzidos – Exu, Ogun, Odé, Obaluaiê, Ossain, Ibeji e Oxumaré –, entretanto, a ideia é completar o xirê, ou seja, os 16 orixás, e abarcar toda a matriz iorubana. “Os participantes aprenderam desde o início a como montar desde a estrutura física dos espaços às apropriações da tecnologia e têm know how para reproduzir esses laboratórios”, afirma Ricardo Brazileiro, coordenador de tecnologia do projeto. ERIKA MUNIZ

CINEMA

MÚSICA

DADOS

REVISTA

Plataforma promove a distribuição de conteúdo audiovisual alternativo

App ajuda colecionadores de discos a colocar seu acervo em ordem e adquirir obras

Compilação para checar disparidade de gênero em diferentes contextos

Publicação vinculada à Universidade de Lisboa reúne artigos, entrevistas e ficção

canalocubo.com

discogs.com/app

generonumero.media

formadevida.org

Produziu, filmou, finalizou, mas… e agora? Após a conclusão de um filme, o maior desafio dos realizadores independentes é tirar a sua obra da obscuridade e fazê-la chegar no público. E é justamente para tornar realidade a distribuição livre da produção audiovisual independente brasileira, através da web, que se propõe a plataforma O Cubo. A ferramenta se baseia na democratização do acesso à cultura e divulgação gratuita das produções. Para ser selecionada, a obra precisa ser licenciada via Creative Commons.

Referência para os colecionadores de discos ao redor do mundo, o site Discogs oferece listas completas sobre as discografias de bandas e artistas, e facilita a divulgação e comercialização de discos. Agora, buscando facilitar ainda mais a vida dos adoradores das “bolachas”, a empresa lançou um aplicativo para iOS e Android recheado de recursos para você colocar sua coletânea em ordem. No app, é possível pesquisar e catalogar obras através do código de barras, registrar fotos das capas, buscar e comprar álbuns por nome do artista, título do disco e gravadora.

O portal Gênero e Número – Narrativas pela equidade propõe um jornalismo independente de dados para discutir, de modo detalhado, a presença de mulheres e transexuais nos diversos campos dos espaços sociais. Recursos de checagem como números, gráficos, mapas e estatísticas permeiam boa parte dos textos, que opinam sobre o ponto de vista de gênero. A equipe do site também investe em reportagens, vídeo e visualização interativa de dados. A presença feminina no Congresso Nacional, nos Jogos Olímpicos e nas Eleições 2016 já foi tema de levantamentos realizados pelo portal.

A publicação gratuita e online Forma de vida é um projeto dos integrantes do Programa de Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa. Criada em 2013, a revista está em sua sétima edição e recebe artigos de colaboradores, publica traduções, entrevistas e inéditos ficcionais – sem a necessidade de tratar exclusivamente de temáticas literárias. Há ainda uma seção dedicada a podcasts, chamada de Conversas interessantíssimas, que já contou com participantes como a editora da Tinta-daChina, Bárbara Bulhosa, e a psicanalista Carmo Sousa Lima.

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HALLINA BELTRÃO

TV e u q o d n u Om a t n e s e r p a a tela

issoras m e s a l e ianças p r c s portante à m o i d e i t c n e r e i ingred údo ofe e t m n u o a c r l o a f de Atu idade a s x r i e e v d i d s a a pag críticos: s o u abertas e d í v i de ind o ã ç a m r o àf drade arda An aria Edu M O T X TE

CON TI NEN TE

ESPECIAL

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Uma escola em Boa Viagem, zona

sul do Recife, comemora a semana do índio com atividades que falam sobre “os primeiros habitantes do Brasil”. Valentina, aos cinco anos de idade, chega em casa com uma pergunta que pega sua mãe de surpresa. A menina quer saber: índio existe de verdade? Valentina achava que índios eram como dragões ou unicórnios, seres que habitam a imaginação, e não o mundo real. A sua mãe, a jornalista e professora Catarina Andrade, ficou surpresa. “Como assim, Valentina não sabe que índio existe?” Além de programar uma ida com a família ao município de Pesqueira, no agreste de Pernambuco, onde vivem comunidades indígenas, decidiu fazer, na escola da filha, uma apresentação para mostrar às crianças um pouco de como vivem os índios no Brasil. Na ocasião, exibiu trechos do filme Das crianças Ikpeng para o mundo, uma produção documental protagonizada por meninas e meninos do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. No filme, feito por crianças e jovens, os pequenos cineastas apresentam sua rotina na aldeia, passeiam entre ocas, sobem em árvores, caçam no rio. Apresentam o cacique da tribo e sua família. Mostram como usam o banheiro de latrina da aldeia, brincam umas com as outras. Um menino provoca o amigo, dizendo que ele está namorando uma colega. Ao mostrar cenas triviais do seu cotidiano, eles oferecem uma valiosa amostra das experiências de ser criança indígena, que certamente a maioria da população infantil brasileira desconhece. Vários motivos poderiam ser citados como razão para tanto desconhecimento. Um deles, sem dúvidas, é a pouca variedade do conteúdo televisivo oferecido ao público infantil e infantojuvenil. Assistir à TV é um hábito arraigado da cultura nacional, o veículo está presente em praticamente todos os lares do país, mas, infelizmente, a televisão brasileira disponibiliza programas que não correspondem à diversidade do seu povo, reduzindo-o a uma representatividade superficial. É importante ressaltar que, no Brasil, algumas crianças passam mais horas em frente à televisão do que na escola. Pesquisa do Painel Nacional de Televisão, do Ibope

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1 BETH CARMONA

Diretora de programação da TV Cultura nos anos 1990, quando a emissora investiu em programas para o público infantil

2 CASTELO RÁ-TIM-BUM

Elenco da série, que foi sucesso de audiência entre 1994 e 1997, e rendeu desdobramentos como o Teatro Rá-Tim-Bum

Media, responsável por registrar a evolução do tempo dedicado à TV nos canais abertos e fechados, mostra que crianças e adolescentes entre quatro e 17 anos, de todas as classes sociais, assistem, em média, 5h35 de programação por dia. A medição, de 2015, aponta um aumento de quase uma hora de consumo diário de TV entre 2004 e 2014 para o público da mesma faixa etária. Enquanto isso, um estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou, em 2009, que estudantes dessas idades

passam, em média, menos de quatro horas diárias em salas de aula. Para Ana Bock, professora de Psicologia da PUC São Paulo, duas questões são cruciais no uso da televisão por esse público: o conteúdo consumido e a solidão no momento de exposição à tela. “A criança fica muito solitária ao assistir televisão. Muitas vezes, os adultos se ocupam de outras coisas e a criança fica sozinha. Falta trabalhar a televisão como ferramenta cultural. Da mesma forma que a gente lê um livro com a criança que não sabe ler, a televisão também tem que ser lida com a criança. Elas não nascem sabendo cortar com tesoura, comer de garfo e faca, amarrar o sapato. A gente, pacientemente, as ensina. A televisão é uma ferramenta igual à tesoura. A gente precisa ensinar a usar”, disse a especialista, em entrevista à TV Brasil. No mesmo debate, a advogada Isabella Henriques, diretora do Instituto

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Alana, que atua pelos direitos da criança, acrescentou o seguinte: “Em 10 anos, tivemos o aumento de quase uma hora no consumo de televisão. E a gente precisa lembrar que isso é uma média. Há crianças que assistem 10 horas de televisão por dia e crianças que não assistem nada, ou pouco mais de uma hora por dia. A criança está sendo exposta, nos canais abertos, a uma programação que não é adequada, que não é feita nem pensada para o público infantil. A televisão, sem dúvida nenhuma, pode ser uma importante ferramenta para as crianças, mas desde que ela seja pensada para esse público”. É o que vem defendendo, ao longo de toda uma carreira dedicada à concepção e realização de programas televisivos voltados à infância e juventude no Brasil, Beth Carmona, que fez história na TV Cultura, nos anos 1990, como diretora de programação e produção. “Para a criança, a questão da representatividade é fundamental: ela precisa e gosta de se ver na tela. É muito importante ver pessoas com realidades de vida distintas. Isso estimula o convívio com o diferente, com o outro, incita a curiosidade de descobrir outros lugares. Ter conteúdo nacional diverso na televisão é possibilitar o conhecimento das várias infâncias que existem no Brasil”, diz ela. “Além das diferenças culturais e de sotaque, falamos das diferentes experiências de infância presentes na atualidade: crianças que vivem em situações menos favorecidas, crianças de regiões que aparecem menos na tela, como é o caso do Norte e Nordeste, crianças negras, indígenas, crianças migrantes que chegam ao Brasil em número cada vez maior. Todos esses retratos precisam estar presentes nas programações de televisão, com seus sotaques distintos e suas marcas. Precisamos de variedade”, afirma.

MUDANÇAS SOCIAIS

Do ponto de vista das transformações sociais, o comportamento da criança mudou muito nas últimas décadas. O estabelecimento de vínculos com os meios de comunicação é diário. Adultos plugados em smartphones, tablets, computadores e televisão são parte da paisagem cultural infantil, mesmo antes dos dois anos de idade.


É comum ouvir a afirmação de que “as crianças de hoje não são como as de antigamente”. De maneira geral, não temos mais aquele ser em formação relegado a fazer tudo o que uma autoridade máxima determina, sem questionamentos. Hoje em dia, explica-se e negocia-se cada vez mais com as crianças. Essas mudanças de comportamento são reflexo de uma série de transformações culturais de caráter político, econômico e social. As instituições tradicionais de socialização infantil – família, escola e igreja – passam por crises e redefinições. Como esperar que esse cenário não tenha impacto direto na infância e juventude? “Escola, família e igreja deixaram de ser as únicas e principais referências de socialização, além de dividirem e disputarem um lugar central na construção das identidades infantis com outras dimensões culturais, como o mercado, os meios de comunicação e as novas tecnologias. A mudança de paradigmas culturais e filosóficos produz um apelo presente imediato

Da mesma forma que o adulto lê um livro com a criança que não sabe ler, a televisão também tem que ser “lida” com a criança e puro, com alcance de satisfações instantâneas e efêmeras. O mercado impõe seu modelo de sociedade, baseado no consumo, e, no campo específico da cultura, fundamentado nas indústrias do entretenimento”, afirmam as pesquisadoras Valeria Dotro e Cielo Salviolo. As especialistas em comunicação e infância discutiram esses aspectos culturais durante uma atividade de formação, para realizadores, sobre a produção audiovisual infantil. “As crianças contemporâneas não estão acostumadas a pensar e atuar segundo a permissão do adulto. Isso está vinculado ao acesso prematuro e cotidiano à informação, aos saberes e ao consumo”, analisam.

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AVANÇOS

De acordo com Beth Carmona, o cenário hoje, no Brasil, é muito melhor do que há 10 anos. “Não se pode negar o avanço trazido pela Ancine (Agência Nacional de Cinema), com a abertura de uma série de novos editais e a Lei da TV Paga, que criou a obrigatoriedade das emissoras fechadas exibirem uma cota mínima de conteúdo brasileiro. Mas, ainda assim, a produção infantojuvenil não tem quase nada de apoio específico. Temos pouca diversidade e variedade de conteúdo nacional”, analisa Beth. Em sua gestão na TV Cultura, ela foi responsável pelo lançamento de programas que viraram referência de qualidade em produção infantil no país, exibindo exemplos que marcaram uma geração, como Castelo Rá-Tim-Bum, Mundo da lua e Cocoricó. Hoje, Beth Carmona dirige a ComKids, uma plataforma digital que promove cursos, encontros, seminários e serve como fórum de discussão sobre produção de conteúdos para crianças e adolescentes. O espaço é importante para o intercâmbio de experiências na América Latina. O ComKids realiza, em São Paulo, o Prix Jeunesse Ibero-


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Americano, a versão latino-americana do festival internacional que acontece há mais de 50 anos, em Munique, na Alemanha. Realizada por quem pesquisa a infância, a adolescência e a mídia, a iniciativa reúne, a cada dois anos, produtores e realizadores de conteúdo infantil do mundo todo. De acordo com Beth Carmona, a produção nacional ainda precisa de bastante incentivo, desenvolvimento e formação, porque “o mercado é muito voraz”. “Do ponto de vista da diversidade, falta muito, mesmo, no produto nacional. O mercado infantil é faminto. Ele trabalha com padronizações, licenciamento, moda. Tudo isso acaba promovendo uma mesmice: produtores copiam qualquer iniciativa que tenha tido sucesso, então você tem a repetição de fórmulas. É um mercado que trabalha com modismos”, analisa. “São mais de 12 canais de televisão por assinatura que oferecem 24 horas de programação para criança. São somente três canais nacionais. O restante é de estrangeiros, que praticam as cotas, mas, ainda assim, o volume de conteúdo disponível nas plataformas é imenso. A produção brasileira precisa fazer frente a grupos fortes, que estão cercados de propaganda e marketing pesado.” Quando fala em avanços, Beth Carmona menciona o aumento inegável da variedade na programação de hoje, “então, a qualidade acaba aumentando”. Além disso, diz que o conteúdo sob demanda cresceu nos últimos anos e a televisão termina perdendo um pouco de espaço. “Ela ainda reina, mas não reina sozinha, o que é maravilhoso. As crianças têm mais possibilidades. A quantidade de conteúdo oferecido em plataformas como YouTube e aplicativos para tablets e smartphones é fantástica.” Segundo a produtora, o mais importante é haver uma curadoria para criança, independente da plataforma: “Pais e professores precisam saber escolher aquilo que é importante para provocar a conversa e ajudar na formação dessas crianças e jovens. O diálogo desenvolve o raciocínio, o gosto, a estética; dá elementos de linguagem que ajudam a criança a perceber as coisas”.

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EDUCAÇÃO O impacto no futuro

Pedagogos, produtores e realizadores de vários países, sobretudo os nórdicos, argumentam a favor de uma produção televisiva que priorize as necessidades da infância

A educadora australiana Susan Perrow acredita com fervor no benefício de contar histórias para crianças. Com mais de 30 anos de experiência em treinamento de professores e pais, escreveu bastante sobre o assunto e viaja o mundo dando oficinas. No livro Therapeutic storytelling: 101 healing stories for children (em tradução livre, Narrativas terapêuticas: 101 histórias de cura para crianças), cita um antigo índio nativo contador dos Estados Unidos, que sintetizou seu pensamento em relação ao tema da seguinte forma: “Algumas pessoas acreditam que o mundo é feito de átomos. Eu acredito que ele é feito de histórias”. Num mundo cada vez mais midiático como o nosso, com crianças que nascem dentro de um contexto digital, a linguagem audiovisual pode ser uma excelente ferramenta para a educação sentimental de crianças e jovens. Para o produtor holandês Jan-Willem Bult, o protagonismo infantil é o melhor elo com o público. Segundo ele, observar e ouvir as crianças é fundamental para melhor compreendê-las, etapa essencial para qualquer produção. “Em casos de divórcio, o juiz ainda não escuta o que as crianças pensam e querem. A nossa história é assim, nos esquecemos da posição delas”, afirmou, em entrevista ao portal comKids. Jan-Willem é diretor da Free Press Unlimited, uma organização nãogovernamental que produz conteúdo audiovisual para crianças em mais de 16 países. O produtor vem estreitando 1

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laços com a América Latina e Brasil. Em 2015, em parceria com a TV Cultura, lançou o Repórter Rá Teen Bum, primeiro programa de notícias brasileiro feito especialmente para crianças, que integra a rede internacional WADADA – News for Kids Network, que fomenta a programação factual para crianças em países como Serra Leoa, Gana e Suriname. Os programas são exibidos na televisão e internet, numa plataforma colaborativa entre os países. “Você tem uma boa mídia para criança quando as coloca na tela para inspirar as que as assistem em casa. A qualidade dessa mídia reflete a qualidade de uma nação. Podemos ver nos Estados Unidos, por exemplo, em que há uma ênfase capitalista, de mercado. Já no meu país, há um interesse maior em cultura e menos em marketing. Privilegiamos temas que são importantes para as crianças”, diz Jan-Willem. A Holanda, que disponibiliza recursos governamentais para produção infantil na televisão, é referência internacional em qualidade. Um excelente exemplo é o documentário How Ky turned into Niels (em tradução livre, Como Ky se transformou em Niels), da diretora Els van Driel. O filme convida a audiência a acompanhar o desenrolar da história de uma criança nascida menina que se sentia infeliz com seu corpo. Ela finalmente consegue dizer à mãe, por meio de uma carta, que gostaria de ser chamada pelo nome de menino Niels. O documentário, feito em colaboração com o protagonista, acompanha as


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ontadora de histórias prepara C projeto audiovisual no Recife

Nestas páginas 2 TV CULTURA

missora oferece programas como o E premiado Que monstro te mordeu?

NA HOLANDA 3 Documentário How Ky turned into Niels discute identidade de gênero

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interações sociais da criança em família e na escola, mostrando suas brincadeiras preferidas. Em nenhum momento vemos os aspectos médicos dessa transformação. O foco do filme é o interesse primordial da audiência infantil: a transformação emocional do menino e a necessidade universal de ser aceito e enxergado pelo que se é. Numa cena antológica, Niels e sua amiga Sterre, que, assim como ele, passa por tratamento hormonal, brincam num lago, remando no mesmo barco. Os dois são crianças transgêneras e o recado da cena é claro: elas não estão sozinhas. O filme recebeu o prestigioso prêmio de melhor documentário na categoria de 11 a 15 anos no Prix Jeunesse deste ano. A Noruega também é referência em abordar questões centrais para crianças. A série Puberty (Puberdade), produzida pela emissora pública NRK, aborda diferentes aspectos desse período que pode ser tão conturbado e intenso. O episódio que fala de vagina e menstruação mostra corpos de meninas e jovens – com as identidades preservadas – para ilustrar as explicações. A apresentadora, que tem formação médica, aborda o conteúdo

de um jeito simples, direto e divertido. A câmera mostra, em plano fechado, os lábios de uma vagina de criança sem pelos e outra de adolescente com pelos. A apresentadora desenha com canetas coloridas os ovários e trompas na barriga de uma menina. A série aponta dados científicos sobre a puberdade com leveza, desmistificando aspectos da menstruação. Os episódios estão inteiramente disponíveis no YouTube, com legendas em inglês.

MEMÓRIA DA INFÂNCIA

A pedagoga e pesquisadora Maya Goetz é especialista na relação entre infância e mídia. Com doutorado dedicado ao estudo de gênero nas produções infantis, dirige o Prix Jeunesse Internacional. Numa sessão do festival sobre formação de identidade na infância, Maya fala para uma plateia de realizadores de mais de 30 países. Ao seu lado, o psicanalista infantil Arthur Ballin aponta para uma corda, esticada em toda a extensão do palco, que simula a linha de tempo da vida de uma pessoa. Ele diz o que muita gente já ouviu antes: as experiências emocionais e afetivas dos primeiros

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anos de vida são decisivas na formação da personalidade do futuro adulto. A imagem da corda é forte: o pedaço da infância é bem curto, se comparado com o tanto de vida que pode restar a uma pessoa. Mas o especialista lembra: apesar de curtos, os primeiros anos reverberam, em cada um, até o fim da vida. A afirmação dialoga bem com o que diz o personagem José, do livro homônimo e autobiográfico do escritor carioca Rubem Fonseca. José fala da dimensão do espaço que a infância ocupa na vida adulta. “As memórias preservadas desde a infância e que carregamos durante nossa vida são talvez a nossa melhor educação, diz Alyosha Karamázov. E se apenas uma dessas memórias permanece em nosso coração, ela talvez venha a ser, um dia, o instrumento da nossa salvação.” Voltemos à Alemanha. O que reúne todas as pessoas naquele auditório é o desejo de produzir conteúdo audiovisual de relevância e qualidade para crianças e jovens, em países tão distantes quanto Japão, Bangladesh e Cuba. É o desejo de produzir obras que dialoguem com o público-alvo e que fomentem uma visão mais empática do mundo. A programação do festival traz aspectos culturais e regionais dos diferentes países de produção, mas os filmes exibidos ali, em geral, dialogam com temas universais a todas as crianças: o desejo de ser amado, aceito e enxergado. Ao falar da importância do trabalho feito por quem está na plateia, o psicanalista alemão, que trata crianças com trauma em seu consultório, se emociona. “Eu queria dizer que o que está acontecendo aqui é das coisas mais importantes que acontecem no mundo. Eu amo vocês por fazerem o que fazem”, disse Arthur Ballin. Maya é enfática: “Quando as emissoras em que vocês trabalham quiserem investir todo dinheiro de produção em telejornal e programas de esportes, mostrem pra eles a importância de


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investir em televisão de qualidade para as crianças. Isso tem um enorme impacto no futuro do mundo”.

MUDANÇA NA GRADE

A oferta de programação infantil na televisão comercial aberta vem caindo abruptamente nos últimos anos. O exemplo mais emblemático é o da Rede Globo, que, na década de 1980, exibia horas de programação infantil nas manhãs e, hoje, praticamente extinguiu o conteúdo de sua grade. O SBT é o canal que continua apresentando conteúdo para os pequenos dentro da grade comercial. Na rede pública, a TV Cultura segue sendo uma referência nacional de qualidade e respeito ao público infantil, com diversos programas oferecidos não somente pela manhã. É o caso do premiado Que Monstro te Mordeu dirigido por Cao Hamburguer. O complexo é que, pelo precário sistema de distribuição da TV pública no país, os programas não chegam a todos os lares brasileiros. Muitas vezes, o conteúdo não é exibido para dar espaço à programação de emissoras locais da rede, que nem sempre produzem para crianças.

PRODUÇÃO REGIONAL

Editais específicos para a produção de conteúdo audiovisual independente tornam-se iniciativas fundamentais para diversificar a programação nacional. Por meio do Fundo Setorial do Audiovisual, mecanismo de financiamento regulamentado no final de 2007, a Ancine vem fomentando a produção de conteúdo regional para a audiência infantojuvenil, com o objetivo específico de distribuir programas na rede pública. A pernambucana Bárbara Cunha teve o projeto Borboletas e Sereias aprovado na última convocação pública do Prodav 09, voltado a fomentar a produção regional do Norte e Nordeste. O projeto é uma série documental com 13 episódios, pensada para crianças entre 8 e 11 anos de idade, que, segundo a realizadora, dará espaço a crianças que fogem da regra heteronormativa, ampliando a importante discussão de gênero. “É um privilégio enorme. Fico emocionada em poder abordar este assunto num momento político tão retrógrado como o que vivemos hoje. São pequenas transformações”, diz a diretora.

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Quando se fala em conteúdo audiovisual infantil de qualidade produzido em Pernambuco, o trabalho da contadora de histórias Carol Levy e do produtor musical Carlinhos Borges é referência. “Eu não pensava em trabalhar com televisão. Amo estar no palco, essa é minha verdadeira alegria. A gente criou o canal do YouTube porque precisava ter um link para mostrar o trabalho a possíveis patrocinadores. Mas a coisa foi crescendo naturalmente e percebemos que o audiovisual seria uma ferramenta eficaz pra levar meu trabalho a um público maior. A produção não é nada fácil, mas amo ver o resultado na tela”, conta Carol Levy, que está em fase de finalização do projeto Cata Conto, uma série infantil produzida com recursos do Funcultura que terá sua primeira exibição na TV Pernambuco. No programa, o saco mágico que a apresentadora costuma carregar fura, e as histórias de dentro dele se perdem pelo Recife. “A série tem 22 episódios. Eu saio catando os contos pela cidade. Em cada episódio, a história vai parar num ponto histórico diferente. A gente aproveita para apresentar um pouco mais do Recife para que as crianças sintam vontade de sair de casa e aproveitar a cidade. Estou feliz com o resultado do trabalho, mas esse foi, de longe, o projeto mais desafiador que fiz até agora. As condições de produção foram muito difíceis para a ambição do projeto”, pontua Levy. Desde 1º de outubro, a segunda temporada da série de contação de histórias Contarolando, com Carol Levy vai ao ar na Rede Globo em Pernambuco, aos sábados de manhã. O programa é uma joia rara numa grade de programação comercial voltada para adultos. Produzida com recursos da Ancine e com o trabalho de uma equipe de mais de 30 profissionais, a série – que une contação de história à música e dança – oferece ao público um trabalho primoroso. Além da excelência técnica, o programa incentiva a imaginação dos pequenos e oferece versões de histórias da tradição oral. Carol passa horas em sebos e livrarias à procura do que contar para as crianças, já que é ela quem faz suas próprias versões. “Tem muita história maravilhosa adormecida por aí. Meu trabalho é encontrar esses tesouros”, diz. MARIA EDUARDA ANDRADE


THIAGO LIBERDADE/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Perfil

PEDRO WAGNER Quando atuar é a única opção possível

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Ator pernambucano, natural de Garanhuns, ganha espaço na cena nacional, enveredando também pelo campo do audiovisual no cinema e na televisão TEXTO Márcio Bastos

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1 EM 2012

Na montagem de Aquilo que meu olhar guardou para você, do grupo Magiluth


permitir experienciar o mundo sem preconceitos é um ato de coragem. Um dos atores mais vigorosos de sua geração, o pernambucano, natural de Garanhuns, encontra-se em momento emblemático da sua carreira. Em agosto, foi eleito um dos 10 principais nomes do Festival Mirada, em Santos. Em setembro, esteve no ar em Justiça, série da TV Globo. Prestes a estrear em dois filmes, entra no radar dos espectadores de forma mais massiva. O que os desdobramentos dessa superexposição vão gerar, no entanto, não preocupa o intérprete. Não que ele veja o sucesso como um problema, mas, seguindo o ritmo que foi construindo ao longo da vida, Pedro prefere lidar com as consequências à medida que elas vão se desenrolando. “Minha relação com a arte é muito empírica, foi mais de ação do que de planejamento. O teatro, por exemplo, entrou na minha vida quase que por acaso. Comecei a fazer aulas por curiosidade, porque meus pais não me levavam para ver espetáculos. Então, foi um processo de

Oriundo do Magiluth, Pedro Wagner está no elenco de dois filmes nacionais e na série Justiça, exibida em setembro O Grupo Magiluth, expoente

do teatro contemporâneo de Pernambuco, tem entre suas principais características a iconoclastia, o deboche das convenções e a desconstrução do que é ser e estar no mundo. Seus integrantes põem à prova o fazer artístico, coletiva e individualmente, sem, necessariamente, querer chegar a um resultado absoluto. Mais do que a linha de chegada, interessa-lhes o percurso e suas irregularidades. Parte do coletivo, Pedro Wagner reflete particularmente essa linha estética e política. Inquieto e questionador, ele se posiciona como quem sabe que a vida não tem replay e que estar presente e se

me descobrir enquanto eu já estava lá dentro, sem racionalizar muito, mas me entregando”, relembra o ator.

PALCO COMO DESTINO

Após um período morando no Recife, na adolescência, Wagner voltou a Garanhuns, mais por falta de opção do que por escolha. Na cidade, ingressa no Grupo Diocesano de Artes, sediado na escola em que estudava, e passa a participar de oficinas e workshops diariamente. Apesar das limitações do cenário artístico do Agreste, teve contato com companhias, como a do Latão (SP), e, nos meses de julho, época do Festival de Inverno de Garanhuns, acordava cedo para garantir ingressos para todos os espetáculos da mostra

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de artes cênicas. Consumia cultura de todas as formas que podia. Leitor voraz, achava que cursaria Letras, mas, com a aproximação do vestibular e o envolvimento cada vez maior com o teatro, percebeu que seu chamado era mesmo para os palcos. De volta ao Recife, prestou vestibular para Artes Cênicas, na Universidade Federal de Pernambuco, e ingressou no curso. A academia, no entanto, ofereceu mais amarras do que libertação para o rapaz, que queria devorar o mundo. Cursou todas as disciplinas de teatro, mas nenhuma de educação. Em vez de ir às aulas, preferia passar o tempo na biblioteca, pesquisando sobre dramaturgia. Ao passo que se afastava da academia, se aproximava cada vez mais dos tablados. Foi quando conheceu os integrantes do Grupo Magiluth, à época com formação totalmente distinta da atual, e, após período substituindo um dos intérpretes em algumas apresentações, foi ficando, trocando experiências ao ponto que, quando viu, já não era necessário convite: ele já era parte do bando. Sua estreia como membro do coletivo aconteceu em O canto de Gregório (2011), espetáculo que já apresentava algumas inquietações do Magiluth, como a ideia do jogo aberto, além de dramaturgia e encenação que abraçam o estranhamento, como evidenciam os instigantes Aquilo que meu olhar guardou para você, Viúva, porém honesta (ambos de 2012) e O ano em que sonhamos perigosamente (2015). Com o tempo, o ator passou a influenciar com mais ênfase a pesquisa de linguagem do coletivo, que hoje é composto por, além dele, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sérgio Cabral (seu irmão) e Bruno Parmera. “Pedro tem uma visão muito peculiar sobre o mundo, consegue identificar brechas nos raciocínios e as apresenta a fim de detonar as suas escolhas, certezas, mas não para prejudicar e, sim, para mostrar que há outras possibilidades de criação”, pontua Erivaldo Oliveira. “Ele tem papel fundamental no processo criativo do grupo, de como fazemos teatro; desperta a gente, tira da zona de conforto”.


RENATA PIRES/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Perfil

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Com proposta que mistura cultura pop e filosofia, refletindo muito o ethos da contemporaneidade, o Magiluth se tornou um fenômeno em Pernambuco, formando uma plateia (essencialmente jovem) antes distante do teatro. Sempre instigado por dialogar e expandir fronteiras geográficas e imaginárias, o grupo investiu também em circulação, causando burburinho nacional, ação que, como ressalta Pedro, proporcionou que hoje os artistas vivam exclusivamente do teatro. Foi nessas andanças pelo país que o garanhuense chamou a atenção de profissionais como os preparadores de elenco Francisco Accioly e Anna Luiza. Foi a dupla que o apresentou ao badalado diretor Felipe Hirsch. Do encontro, surgiu o convite para participar da montagem A tragédia da América Latina, obra com elenco formado por atores de várias regiões do Brasil, além de intérpretes da Argentina e do Chile. O espetáculo, que cumpriu temporada em São Paulo, colocou Wagner em contato com outras formas de estar em cena,

longe da dinâmica do Magiluth. Para o ator, a experiência possivelmente reverberará no trabalho do grupo, que é aberto a digerir e ressignificar as vivências coletivas. “Felipe dá liberdade de criação ao ator e foi muito potente, porque éramos artistas vindos de todos os cantos do Brasil, de outros países. Foi um processo intenso de descobrir também outras formas de estar em cena, de trocar, de ter um ritmo diferente. Foi uma experiência arrebatadora”, afirma o ator. Colega de cena de Pedro em A tragédia…, Julia Lemmertz já tinha ouvido a respeito do trabalho do coletivo e se surpreendeu com a qualidade da encenação e da personalidade do pernambucano. “Ele me encantou logo de cara com sua energia, a voz, o jeito direto e certeiro de falar. É um estar em cena fisicamente incrível, um bailarino, todo preparado para o que vier. Sou fã dele, do seu potencial criativo, da sua visão do mundo e da arte, do jeito reservado dele, mas ligado em tudo, generoso, divertido, um

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baita companheiro de trabalho. Ele é um dínamo, cheio de energia boa e conexões diversas”, elogia.

O QUE A CÂMERA VÊ

Passional e comunicativo, o ator teve a chance de mostrar sua versatilidade na série Justiça, dirigida por José Luiz Villamarim. Na obra, ambientada no Recife, ele deu vida a Osvaldo, indivíduo com tendências psicopatas, que violenta sexualmente suas vítimas. O papel é suscetível a debates devido à exposição recente de casos de abusos que revelam a perpetuação do estupro e pela abordagem crua das ações e do psicológico do personagem. “É uma figura grotesca, silenciosa, com requintes de crueldade. Tive que mergulhar num universo obscuro. É o tipo de trabalho que você nunca sabe como vai ser recebido, mas que é um presente para o ator”, conta. A série, da qual participaram ainda nomes como Cauã Reymond, Adriana Esteves, Vladmir Britcha e Júlio Andrade no elenco, foi uma espécie de teste


DIVULGAÇÃO

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Ator em cena da peça O ano em que sonhamos perigosamente

para Pedro, no sentido de descobrir as dinâmicas do audiovisual. “Essa relação com as câmeras é nova para mim. Estou curtindo poder explorar mais nuances, trabalhar outras formas de dizer com o olhar, com gestos mais delicados. Tem sido uma delícia”, afirma. A experiência com essa linguagem, ao que tudo indica, deve se estreitar, possibilitando ao pernambucano continuar explorando também uma de suas grandes paixões, o cinema. O roubo da taça, dirigido por Caito Ortiz, conta a história do furto da Jules Rimet, em 1989, e traz Pedro Wagner na pele de Geraldinho, um bicheiro meio torto e um tanto violento. O longa, premiado pelo júri popular como melhor filme no festival South by SouthWest (EUA), é uma espécie de cruzamento entre uma obra de Guy Ritchie e uma chanchada da Atlântida. “No primeiro dia de ensaio, fizemos uma cena difícil, na qual deu pra ver a força do menino. Ele perguntava se o personagem do Paulo Tiefenthaler estava desconfiando

Para o diretor Caito Ortiz, Pedro tem inclinação natural para o cinema, ao interpretar as entrelinhas do roteiro dele.” “Tu tá desconfiando de mim?”, perguntou. Mudamos o texto por causa da intensidade da pergunta dele e resolvemos ficar com ela sendo repetida três vezes. Ali, eu sabia que o cabra era bom. É sempre uma alegria para o diretor estar em paz com suas escolhas de elenco”, lembra Caito Ortiz. Para o diretor, o pernambucano tem natural inclinação para o cinema, graças à sua capacidade de olhar para além do óbvio e trabalhar as entrelinhas do texto. “Foi muito prazeroso investigar as cenas junto com ele, procurando pequenas nuances nesse personagem que poderia ser só um homem mau. Ele é um ator sutil e o cinema vive de sutilezas”, enfatiza.

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3 JUSTIÇA

edro Wagner (E) P faz sua estreia na TV, ao atuar na série gravada no Recife

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Além de O Roubo…, o pernambucano está no elenco de outro filme, dessa vez uma comédia mais mainstream ao lado de Tatá Werneck. Em TOC, com estreia prevista para novembro, ele atua como um escritor fantasma que, depois de morto, volta nos sonhos da personagem da protagonista.“Em termos de cinema, ainda quero explorar outras coisas. Encontrar lugares da interpretação. Adoraria trabalhar com os diretores locais, principalmente Kleber Mendonça Filho e Gabriel Mascaro. São profissionais que me instigam como ator e espectador”, reforça. Neste momento de tantas transições e aberturas de caminhos, Pedro continua a não traçar muitos planos, vivendo e criando à medida que as coisas acontecem. “Essa estrada que me levou até o teatro tem sido uma experiência empírica, não pensada. Atuar é a única coisa que sei fazer até hoje. Se um dia eu deixasse de ser ator, teria muita dificuldade de fazer outra coisa. Atuar é a única opção possível para mim”, conclui.


Cardรกpio

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ELEMENTOS A pedra filosofal da nossa cozinha

Terra, água, fogo, ar e espaço estão na base da alquimia que se dá entre o cozinheiro, as panelas e o apetite, no preparo do alimento TEXTO E FOTOS Lia Beltrão

Tudo é manifestação dos elementos. Inclusive a cozinha. Imagine uma grande e sólida panela de barro – de terra. Agora, debaixo dela, uma chama frágil e discreta dá origem a outra maior que mantém a lenha em fogo. A panela aquece em um ritmo só dela, não há quem ou o que a apresse. É ela – e apenas ela – que diz a hora de acolher o que vem de fora. Terra há e fogo também. Vem então a água. Nessa nossa panela, o que se derrama é a água nobre das oliveiras, o azeite, que penetra os poros abertos do barro, rejuvenescendo suas paredes secas. E a panela, em sua generosidade própria de elemento terra, agradece: recebe a cebola com a alegria de um chiado. O mesmo ar que alimenta as chamas se perfuma com a dança toda, sobe em direção ao céu, penetrando, no caminho, as nossas narinas. Quase sempre, do espaço aberto da nossa mente surge algo como: “Que bom!”. Terra, água, fogo, ar e espaço são os cinco elementos a partir dos quais diversas sociedades asiáticas explicam a realidade – desde a formação das galáxias até a propensão de alguém para ter raiva ou um problema no fígado; das estações do ano ao preparo de um prato. Os gregos antigos, com um elemento a menos, levantaram teorias semelhantes às dos orientais CONTINENTE OUTUBRO 2016 | 55

para explicar a origem do universo e o seu funcionamento, e assim influenciaram todo o pensamento ocidental. Para medicinas como a aiurvédica, a chinesa e a tibetana, a cura significa o equilíbrio desses cinco elementos. O conceito de cura de xamãs americanos é exatamente o mesmo. Quando a realidade passou a ser explicada não mais pelos sábios e filósofos, mas pela ciência, nomes como átomos, moléculas e reações fisioquímicas passaram a explicar (recontar?) a história do universo e do homem, e os elementos foram restringidos a um conhecimento antigo e ultrapassado, pertencente a exóticas culturas orientais ou associadas ao xamanismo de povos indígenas. Em ambos os casos, portanto, essa sabedoria nada teria a ver conosco. Os cinco elementos viraram algo arcaico, new age ou mesmo brega. Mas, ainda assim, se há um lugar em nossa sociedade em que os cinco elementos – não apenas em sua forma sutil, mas em sua manifestação primária – permanecem visceral e ancestralmente presentes, este lugar é a cozinha. Sim, o microondas, a gastronomia molecular, o macarrão instantâneo, e todo


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Cardápio

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um pensamento de que cozinhar é “perder tempo”, devidamente popularizado pela indústria alimentícia, desmagnetizaram, por assim dizer, o potencial de transformação – individual e coletivo – que a cozinha doméstica tem. Contudo, ela permanece como o lugar-matriz da alquimia, como o solo no qual a natureza é transmutada em cultura, na famosa metáfora de LéviStrauss. Em uma cozinha, os cinco elementos estão sempre presentes, silenciosamente esperando ação, desejando que, do espaço da nossa mente e do nosso apetite, eles sejam postos em movimento, em direção ao fim: alimento, medicina ou arte. Ou os três em um prato só.

SEGREDOS DE EQUILÍBRIO

Na culinária tradicional chinesa, cada ingrediente e até mesmo cada movimento que um cozinheiro faz (acender o fogo, pegar a panela, jogar nela azeite…) pode ser classificado a partir dos cinco elementos (neste sistema, nomeados de terra, madeira, água, metal, fogo). O resultado, a refeição final, surge como um conjunto contendo doses específicas de cada elemento, manifestados como texturas, cores e sabores diferentes. Doce, ácido, salgado, picante e amargo, por exemplo, vão ter uma função terapêutica, ou não, dependendo da necessidade de quem o come. A grosso modo, alguém diagnosticado segundo a medicina chinesa com “excesso de

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elemento fogo”, precisa de alimentos que o diminuam – provavelmente consumindo alimentos com mais água, como missô e algas marinhas. Se, ao contrário, existe “carência de fogo”, alimentos madeira, como azeite e limão, podem reestabelecer o equilíbrio. Não é à toa que, para os chineses, a cozinha é a primeira farmácia. “O conhecimento dos cinco sabores e a disposição de relacionar cores, texturas, formas e peculiaridades energéticas dão um novo sentido aos atos de cozinhar e comer.” A fala é da jornalista Sônia Hirsch, autora de mais de 20 livros sobre alimentação e do primeiro livro no Brasil sobre a cozinha e os cinco elementos. O manual do herói vai do macro ao micro, de uma completa introdução à medicina chinesa a instruções sobre o que comer e como cozinhar a partir da compreensão de como os elementos funcionam, e do quanto nós e os alimentos temos de cada um deles. No entanto, em meio ao cansaço diante de tantas fórmulas de novas dietas com promessas de uma vida longa e equilibrada, uma pergunta ecoa: não seria possível entrar na cozinha e nos relacionarmos com os cinco elementos baseados não em um conhecimento distante e exótico, como a medicina chinesa, mas em nossa própria sabedoria ancestral – seja indígena, ameríndia, brasileira, ou simplesmente em uma sabedoria individual? A resposta de Sônia para essa pergunta é a seguinte: “Sempre acho que a comida tradicional, feita de forma tradicional, deve ter algum tipo de equilíbrio. Às vezes, é só uma questão de tempo e conseguir se aproximar direito para ver”. Christiane Seifert, autora do livro A cozinha dos cinco elementos, também vai nessa direção. Para ela, a alimentação baseada nos cinco elementos não pertence a nenhuma cozinha em particular. “Se estudarmos atentamente a base da cozinha chinesa, por exemplo, entendemos que os cinco elementos fazem parte de todas as culturas gastronômicas de longa tradição”, explica. O livro de Christiane Seifert é uma joia rara: receitas italianas tradicionais são classificadas segundo a dietética chinesa. Isso significa praticamente um raio-X energético nas receitas mais


1-3 TRANSFORMAÇÃO Os cinco elementos estão presentes no preparo da refeição

cobiçadas do mundo, com ingredientes e modos de preparo classificados segundo os elementos. No final de cada receita, ela sugere sua função terapêutica (muitas das quais certamente já foram desvendadas pelas nonas). Uma pasta de rúcula com tomate, por exemplo, é apontada como um prato ideal para “comer no jantar, depois de um dia estressante, porque acalma os nervos, refresca, agrada ao nosso centro e nos ajuda assim a ‘puxar o plugue’ e relaxar. Não se sabe o que nos faz salivar mais, a receita ou sua função terapêutica.

DOS ANCESTRAIS

Foi também o rastro das receitas tradicionais e dos elementos que seguiu o jornalista Michael Pollan, para escrever um livro que o tornou uma celebridade e um militante pró-cozinha doméstica, por assim dizer. Em uma jornada fascinante como cozinheiro aprendiz – narrada no livro Cozinhar: Uma história natural da transformação, e que dá o tom também da série documental Cooked, à disposição no Netflix –, Pollan mostra-nos como o ato de cozinhar nos possibilita (se estamos abertos para isso) uma compreensão mais profunda do mundo natural e de nós mesmos. Para Pollan, a cozinha explica quem somos, e retornar a ela é urgente para redescobrimos nossa autonomia e

A “militância” culinária, hoje, como encampa Michael Pollan, se dá em torno da cozinha doméstica, praticada com vagar passarmos de consumidores passivos da indústria alimentícia a produtores criativos de nossa própria subsistência. Cozinhar aqui é um ato político cuja prática significa experimentar, fazer alguma coisa do zero, expor-se ao poder dos elementos, que é exatamente o que Pollan faz. Esse jornalista da Universidade de Berkeley aprende com os mestres e resolve fazer, em casa, experimentos gastronômicos do universo do fogo, quando descobre o que é um verdadeiro churrasco; da água, aprendendo tudo que pode ser cozinhado em líquidos, dentro de panelas (as chamadas “comidas de panela”); do ar, em que ele persegue obcecadamente o pão tartine, feito a partir de fermentação natural; e da terra, onde moram os micróbios que vão dar vida a fermentados como chucrute, queijo e cerveja. A primeira tradição culinária que ele se propôs a aprender do zero segue a

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fórmula que dá início ao próprio advento da culinária: animal + lenha + tempo. Pollan entrevista mestres churrasqueiros e aprende a cozinhar um animal inteiro com brasas, controle e paciência, e paralelamente nos apresenta ao incontestável impacto do elemento fogo na nossa transformação enquanto espécie. A chamada “hipótese do cozimento”, apresentada por ele, afirma que “o domínio do fogo e a consequente invenção da culinária podem ser apontados como um pré-requisito evolutivo e um fundamento biológico na história do homem”. Isso porque cozinhar proporciona um aumento de energia nos alimentos e se torna mais fácil digeri-los. Trocando alimentos crus por cozidos, nossos ancestrais homo erectus provavelmente sofreram uma diminuição no tamanho do intestino e um aumento no tamanho do cérebro. Intestino menor, cérebro maior: nascemos como o que somos, homo sapiens. Também menos tempo passou a ter que ser gasto em atividades como caçar e coletar alimentos. “Ao nos livrarmos da necessidade de alimentação constante, o ato de cozinhar nos tornou mais nobres e nos colocou no rumo da filosofia e da música”, conclui Pollan. A “hipótese do cozimento” ainda não pode ser comprovada por falta de evidências científicas. Seus defensores


4 AR O vapor nos lembra a existência do elemento invisível

Cardápio

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alegam o fato de que resquícios arqueológicos desses primeiros banquetes ancestrais seriam difíceis de encontrar, já que espetos de madeira e fogueiras não deixam outros rastros senão cinzas. Mesmo assim, simplesmente considerar que o impacto dos elementos na cozinha e o impacto da cozinha no homem podem ir tão longe quanto à nossa própria origem como espécie é capaz de mudar a forma como olhamos para o nosso fogão e tudo que vem dele. Mesmo considerando os elementos em seu aspecto grosseiro, externo, distante da sutileza e complexidade da medicina chinesa, Pollan faz um apelo e um convite que não está muito distante da comida como forma de cura proposta pelos orientais. Uma cura que é também um protesto. Para ele, é preciso “recuperar a realidade da comida, fazendo com que ela volte a ocupar o devido lugar em nossa vida”.

Na verdade, a bandeira de que nós podemos promover uma verdadeira cura individual e social a partir de uma reconexão, por assim dizer, com a cozinha, está sendo levantada por inúmeros cozinheiros, chefs, especialistas, jornalistas e ambientalistas no mundo inteiro. E essa cura não tem a ver simplesmente com nutrição, com dieta, nem mesmo com equilibrar individualmente os elementos. Tem a ver com autonomia, com nos erguermos e entrarmos em contato com nossa capacidade de transformação. E, para essa transformação, os elementos – seja em sua forma externa, seja nos sabores dos ingredientes ou nos movimentos do cozinheiro – estão no centro da roda.

A DANÇA

De dentro dos nossos apartamentos, uma fogueira, uma nascente de água, uma terra cheia de minhocas, um vento que vem sem barreiras ou um céu

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estrelado parecem mais propaganda de um passeio ecológico do que a promessa de um contato direto com as forças que nos fizeram ser quem somos. No entanto, se abdicarmos de ter tudo pronto ou semipronto ao nosso redor, e nos expormos à aventura de transformar a natureza – mesmo que essa transformação seja tão ambiciosa quanto fazer um pão de fermentação natural, um queijo ou uma cerveja em casa –, vamos descobrir as qualidades de terra, água, fogo, ar e espaço. Se nos demorarmos um pouco, como sugere Sônia Hirsch, vamos descobrir as qualidades dos elementos no cotidiano da cozinha: na rigidez do feijão que vai amolecendo com tempo e água; na massa de pão que apenas cresce se protegida do vento; na batata-doce que se nega a ficar crocante se não for exposta ao forno mais quente possível; no espaço vazio e potente ao nosso redor quando estamos sós; nós e a cozinha. Cozinhar é – e isso não é poesia – lidar com os elementos. Não é dominálos. É entender quanto cada ingrediente pede de terra, água, fogo, ar e espaço, e o quanto eles conseguem oferecer. É aprender com eles, não apenas porque desse aprendizado depende nossa subsistência (ou nossa arte, ou nosso protesto), mas o contato com eles nos coloca diante de nós mesmos. A cozinha sempre nos faz desconfiar de que algo que está oculto pode se manifestar. Quando alguém se propõe a cozinhar, a mágica sempre parece estar prestes a acontecer. Quando se acredita nisso, controlar os elementos já não faz mais sentido. Talvez copos medidores, balanças e termômetros deixem de ter uso. Mãos podem parecer ter vida própria. Deixa-se de pensar tanto e dedicase a ouvir chiados, sentir os cheiros mais sutis, identificar mudanças de cores quase imperceptíveis, deixar a língua decidir sozinha se basta de sal ou não. Cozinhar passa a ser uma dança cujo resultado é arte, manifesto, medicina. Ou uma dança que pode ser, em toda sua beleza e brutalidade, simplesmente, subsistência.


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MENDOZA A ocupação de um campo inóspito

Localizada aos pés da Cordilheira dos Andes, região desértica, antigo domínio do Império Inca, foi passagem de missões libertadoras e hoje abriga turismo de aventura TEXTO E FOTOS Mariana Camaroti, de Buenos Aires

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Conhecido destino turístico na

Argentina pela neve, esportes de aventura e seu delicioso vinho Malbec, a província de Mendoza vai além disso: sua importância histórica, a beleza das suas paisagens e sua icônica geografia convidam a visitá-la com outras intenções. Essa desértica região, localizada aos pés da Cordilheira dos Andes, que alberga o pico mais alto das Américas – o Aconcágua –, guarda em seu passado parte do Império Inca e um dos mais espetaculares capítulos da narrativa latino-americana. Após gestar a libertação da Argentina do domínio espanhol, o general San Martín cruzou os Andes para a mesma empreitada no Chile e no Peru e para se encontrar com Simón Bolívar, que vinha do norte da América do Sul libertando a Colômbia e a Bolívia. Missão homérica – devido à altitude da travessia e às baixas temperaturas – que, no ano que vem,


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Cordilheira dos A Andes se estende do Caribe à Península Antártica

Nestas páginas 2 POTRERILLOS

Parada recorrente, o dique permite que o visitante aprecie os contrastes da paisagem

3 PONTE DO INCA

Desativada, era o caminho dos incas para atravessar a cordilheira

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completará 200 anos e que definiu o futuro do continente. Mendoza sempre desafiou civilizações por sua localização e sua difícil geografia. Ao longo do seu período pré-colombiano, de colônia espanhola e atual, foi continuamente um importante lugar de passagem; quem quisesse explorá-la tinha que se reinventar. Por ela cruzava o Caminho do Inca, uma extensão de 23 mil quilômetros que passa pela Argentina e outros cinco países, usado pelo Império Inca para o comércio, tombado há dois anos pela Unesco como patrimônio mundial da humanidade. “A história de Mendoza, ou seja, dos que a ocuparam no passado e dos que vivem lá hoje, sempre foi a de brigar contra o deserto, com seu terreno pedregoso, plano e de cordilheira, com vegetação espinhosa típica de territórios áridos”, contextualiza o historiador e professor mendocino Rodrigo Antonio Alvarez. Ocupar essa área inóspita, que em alguns períodos do ano recebe o sufocante vento zonda que desce das montanhas, só foi possível graças à sábia técnica dos indígenas, habitantes da região na época pré-colombiana. Os huarpes – povo sedentário, pacífico, que fazia uso da agricultura – desenvolveram um inteligente e sustentável sistema

Para ocupar a região de clima seco, indígenas desenvolveram sistemas de canaletas usados até hoje de canais cordilheira abaixo, usando o derretimento do gelo dos Andes para distribuir água e irrigar plantações. Esse povo entregava tributos aos incas e por isso compunha o organizado império que ocupou parte do continente antes da chegada dos europeus. Em troca, recebiam proteção na luta contra os indígenas puelches (que habitavam o leste da Cordilheira dos Andes e Chile) e os mapuches (que até hoje vivem na Patagônia argentina e chilena). Essa secular técnica das canaletas foi ensinada aos espanhóis pelo cacique Guaymallén e é utilizada até hoje em toda a província, chegando até a capital, também chamada Mendoza. As calhas ocupam parte das calçadas, irrigando árvores e abastecendo as casas. Quem passeia por lá chega a se surpreender quando as comportas se abrem e a água começa a correr. O escorrimento direcionado também ladeia as estradas que percorrem a cordilheira.

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Esse conhecimento permitiu não apenas que esses indígenas povoassem e cultivassem o árido norte da província, como também, a partir do período colonial, cultivassem vinhedos e produzissem vinhos. Até hoje, são poucas as vinícolas que usam irrigação por gotejamento. A maioria da indústria vitivinícola, bem como a população, se serve desse sistema de comportas.

CAPÍTULO DA HISTÓRIA

Antes de fazer a travessia dos Andes com seus homens, o general San Martín, que havia servido à Espanha na luta contra o avanço de Napoleão Bonaparte, governou por três anos a região de Cuyo, composta por Mendoza, San Luis e San Juan. Administrava de maneira equitativa e liberal o território, fomentando a educação popular, fundando bibliotecas e escolas; incentivando a agricultura e a produção de vinho; e fortalecendo a metalurgia, para a produção de canhões e fuzis. Ao mesmo tempo, mobilizava a população e formava o exército com os habitantes locais, recebendo financiamento dos próprios cuyanos, já que o governo de Buenos Aires não enviava recursos. A administração central não estava totalmente convencida em defender a fronteira do norte argentino e em expulsar


Caminho do Inca

PATRIMÔNIO DA AMÉRICA PRÉCOLOMBIANA A região de Mendoza abriga trecho de grande obra do período pré-colombiano: o Caminho do Inca, uma estrada de 40 mil quilômetros de extensão, que percorre seis países e aponta a soberba do Império Incaico. Chamada de Qhapaq Ñan, no idioma original, essa rota, que resistiu ao tempo e hoje é parte do Patrimônio da Humanidade, une as cúpulas dos Andes da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. O percurso é ideal para os que já praticam atividades esportivas na natureza, como mountain bike e trekking. “No Caminho, podem ser realizadas atividades esportivas, enquanto se aprecia a história do Caminho do Inca e as tradições do povo huarpe”, sugere o responsável pelo setor de Turismo da Casa de Mendoza, Adrián Zorrero. “Também é possível chegar ao Morro Tunduqueral, onde se encontram pinturas rupestres”, acrescenta. No trajeto, em Ranchillos, é possível conhecer ruínas incas que datam de 1551. São paredes de pedra com compartimentos interiores e que pertenciam a uma cidade incaica. São consideradas as mais relevantes do local. 3

definitivamente os ibéricos pela conveniência da relação com a coroa para a elite do país. “O empenho do povo cuyano foi fundamental para essa empreitada, tanto como integrante do exército como doando recursos. Os abastados doavam parte da sua fortuna e os pobres entregavam o pouco que tinham”, conta Rodrigo Antonio Alvarez. “A campanha de San Martín é o melhor capítulo da história de Mendoza”, ressalta o historiador. A combinação de liderança e estratégia do grande herói argentino permitiu que seu exército, dividido em cinco colunas, lutasse sobre mulas e em condições inferiores e adversas. A maior parte dos 5,2 mil homens cruzou pelo caminho mais difícil e mais alto, já que era baixa a probabilidade de encontrar os espanhóis à sua espera. Essa passagem, conhecida como do Cristo Redentor, é hoje uma das duas

habilitadas para chegar ao Chile e costuma ser fechada pelas nevadas. “É terno e comovente chegar a Mendoza e pensar que aqueles homens malvestidos, mal-alimentados, mas que possuíam tudo mais que era necessário (determinação, liderança e estratégia), puderam realizar tal façanha. Eles tinham um líder que não dormia, pensando em como complicar a vida do inimigo”, comenta o historiador e escritor Felipe Pigna. Com a emblemática frase “Sejamos livres. O resto não importa nada”, San Martín deu o triunfante impulso final para que sua tropa cruzasse o caminho que até hoje parece impossível.

IMPONÊNCIA ANDINA

Mendoza é majestosa pela imensidão e suntuosidade da Cordilheira dos Andes, pelas geleiras, os picos nevados o ano todo e o contraste da paisagem desértica e rochosa com o verde dos vinhedos e

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olivares irrigados, protegidos do vento pelos álamos trazidos a essa região. Viajar de carro de Buenos Aires até lá (pouco mais de mil quilômetros) é um show à parte e muito recomendado. Algo que parecem ser nuvens carregadas se vislumbram ao longe no horizonte, enquanto se avança pela estrada. À medida que se aproxima, essa visão vai se modificando e o que parecia algo flutuando no céu se mostra erguido sobre a terra: um paredão ora marrom, ora verde, ora branco, que finalmente se define como essa extraordinária coluna vertebral que corta a América do Caribe até a Tierra del Fuego, na Argentina, e a Península Antártica. De acordo com o Guia YPF de turismo e estradas, a Cordilheira dos Andes é a parte visível de um dos fenômenos geológicos mais colossais do nosso planeta, comparável apenas ao Himalaia, e resultado do movimento tectônico de placas da crosta terrestre.


FOTOS: DIVULGAÇÃO

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O erguimento dos Andes provocou o surgimento de vários vulcões – alguns em extinção e outros em atividade – e uma mudança climática brutal, que extinguiu vastos bosques de Araucárias que cobriam a Patagônia. Os Andes somam vários recordes: um dos vulcões mais altos do planeta (Serra Nevada de Santa Maria, na Colômbia), a maior geleira do mundo fora da Antártida e a montanha mais alta dos hemisférios sul e ocidental: Aconcágua. A imensidão dos vales, os vulcões que povoam a paisagem, diques com águas de vivas cores e o espetáculo oferecido por diferentes cores degradês das paredes de algumas montanhas fazem desse território argentino uma beleza ímpar para o viajante que desfruta da natureza.

ALTA MONTANHA

Percorrer o circuito de Alta Montanha, da cidade de Mendoza até a fronteira com o Chile (passagem do Cristo Redentor) pela Rodovia Nacional 7 é um dos mais recomendáveis passeios, que leva um dia completo. Ao passo que o viajante vai subindo a cordilheira

em um caminho sinuoso, picos com neve vão aparecendo na paisagem. Se a estação é de inverno, a neve vai cobrindo as encostas das montanhas e aparecendo ao lado do trajeto na medida em que o viajante ganha altitude. Uma parada recomendada é o dique Potrerillos, com 1,3 mil hectares de superfície e uma água impressionantemente azul, ressaltada pelo contraste com o marrom das montanhas e os bosques de pinheiro ao redor. A 20 quilômetros dali, está a estação de esportes Vallecitos, na qual se pode aprender a esquiar no inverno e fazer caminhadas no verão. Se o que se busca são esportes, pelo leito do Rio Mendoza que passa por perto, pode-se descer em botes (mais emocionante no verão por ter maior vazão) ou praticar raffiting. Entre muitas curvas e alguns túneis, a paisagem vai se modificando até Uspallata, uma localidade encravada entre a chamada précordilheira (formação mais antiga e já desgastada pelo tempo) e os Andes (parte mais elevada), que convida a uma parada para algumas compras

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de artesanato e a se deliciar com chocolate quente, churros e brioches. Seguindo rumo à fronteira, chega-se ao Aconcágua, pico de 6.962 metros, dentro do parque de mesmo nome. Além das atividades de trekking para aventureiros – no período mais quente, e as escaladas quando as temperaturas são baixas –, quando há neve, um dos programas é fazer divertidos bonecos e deslizar em plataformas plásticas, praticando uma espécie de esqui sentado, indicado para iniciantes e crianças. As roupas e acessórios adequados devem ser alugados em lojas especializadas na capital. A próxima parada é a Puente del Inca, uma passagem curiosamente natural sobre o rio Las Cuevas, formada pelos sedimentos das águas termais e utilizada pela civilização précolombiana para seguir seu caminho milenar. Essa passagem, a 2,7 mil quilômetros de altura, mereceu a visita do naturalista Charles Darwin, que a descreveu em 1836. Segundo arqueólogos, a Puente del Inca e a passagem ao Chile foram utilizadas pelo menos a partir de 4 mil anos a.C.


004-5 VARIAÇÕES CLIMÁTICAS

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Vale a pena continuar avançando na estrada sinuosa em direção à fronteira com o Chile. Esse caminho é ladeado pelas ruínas de uma antiga linha ferroviária que parece desafiar o equilíbrio e a gravidade. Chegando à localidade de Las Cuevas, há uma pequena vila, um encrave como que perdido no tempo, que abriga restaurantes em que os visitantes encerram o passeio e se preparam para o caminho de volta.

TURISMO

A província de Mendoza oferece diferentes atrativos turísticos por estação e por região. Entre os lugares mais procurados, está a cidade de San Rafael, que possui um oásis formado por uma confluência dos rios Diamante e Atuel. Nos seus arredores, estão o dique Valle Grande e o Canion del Atuel, formação única na América do Sul. O fluxo de turistas em Mendoza – quarta província mais populosa da Argentina, com 1,8 milhão de habitantes, e sétima em extensão – é composto em sua maioria por

O fluxo de turistas em Mendoza é composto por uma maioria argentina (86%), seguida de brasileiros e chilenos argentinos (86%), os demais são quase na totalidade brasileiros e chilenos. A última temporada de inverno, com grande quantidade de gelo, teve 80% da rede hoteleira ocupada. Só em julho deste ano, recebeu 320 mil turistas. “Foi uma das nossas melhores temporadas”, comenta o responsável pelo setor de Turismo da Casa de Mendoza, Adrián Zorrero. As estações de esqui Penitentes, a 120 quilômetros da capital Mendoza, e Las Leñas, a 450 quilômetros, são os dois mais procurados centros de esportes de inverno da província, contando com hospedagem, restaurantes, aluguel de roupas, equipamentos e toda a estrutura para quem deseja se aventurar.

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erão árido e inverno V nevado são trunfos de Mendoza, que atraem turistas e esportistas

Emoldurada pela Cordilheira, a cidade de Mendoza foi criada por imigrantes espanhóis e italianos, no final do século XIX. Da cidade colonial, restaram apenas ruínas, já que o terremoto de 1861, que arrasou o local, obrigou a população a reconstruir a capital, prevenindo-se de novos episódios de tremor. Com um traçado cartesiano de quadras, ruas e avenidas, Mendoza possui cinco praças construídas em lugares estratégicos para servirem de refúgio, em caso de novo terremoto. A cidade dispõe de passeio gratuito de bonde, ideal para fazer um tour sem pressa, descendo em praças e cafés. Uma de suas peculiaridades é a siesta, período da tarde em que a cidade dá uma pausa, com o fechamento de estabelecimentos, que voltam a funcionar por volta das 17h. Na “terra do sol e do bom vinho”, como é conhecida a província, a parada para o descanso é bem-vinda, principalmente nos meses de intenso calor. Além do aspecto natural, dos parques e das praças, a cidade também conta com instituições culturais que valem a visita, como o Museu de Ciências Naturais e o Museo del Pasado Cuyano, que, montado num casarão de finais do século XIX e com quatro pátios internos, oferece uma volta no tempo por meio de sua biblioteca e salas dedicadas à história local e às batalhas pela independência. Recomendado também é o Museo del Area Fundacional, que oferece um panorama da história local desde a época dos aborígenes, com achados arqueológicos que percorrem a cultura daqueles povos. Em seu acervo, há a múmia inca de uma criança sacrificada e encontrada congelada nos Andes, algo comum durante o Império Inca. O Aquário Municipal, o Serpentário Anaconda, a Igreja do Sagrado Coração de Jesus – conhecida como igreja jesuíta – e a Basílica de São Francisco completam as principais atrações da cidade.


FOTOS: RICARDO MACIEL/DIVULGAÇÃO

Palco 1

ARTICULAÇÃO Outubro ou Nada é grito de liberdade

Fomentando um novo circuito alternativo, esta primeira edição da mostra busca consolidar o fazer teatral para além dos palcos tradicionais TEXTO Alef Pontes

Em tempos de cortes agressivos nos

investimentos públicos e privados na área cultural, e de espaços públicos do teatro relegados ao sucateamento, faz-se mais importante para a produção independente a máxima “juntos somos mais”. Com esse mote, artistas, produtores, dramaturgos, grupos e coletivos do teatro pernambucano

buscam, no colaborativismo e na ocupação de novos espaços, fomentar um circuito alternativo através da Mostra Outubro ou Nada. De 3 a 29 de outubro, o teatro pernambucano se articula para divulgar a produção independente e questionar o modelo de ocupação e manutenção dos espaços tradicionais do teatro. Segundo

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o coordenador da mostra, Rodrigo Dourado, uma das motivações para a consolidação da Outubro ou Nada foi o surgimento, em 2014, de um movimento de teatro residencial. “E surge também como uma resposta ao sucateamento dos teatros públicos. Mais do que isso, já existia um circuito alternativo de teatro na cidade, com produções de diversos grupos e coletivos – como O Poste Soluções Cênicas, Experimental e Fiandeiros – criados especificamente para outras possibilidades de espaço, como o interior de residências e galpões”, argumenta. Outro fator impulsionador da proposta, conta, é fugir de uma dependência dos editais à qual o teatro pernambucano teria se aprisionado na última década, fomentando o modelo de autogestão nos grupos e espaços. “A gente está vivendo uma retomada da produção alternativa, ou uma saída dessa dependência”, afirma Rodrigo, que também assina a direção de um dos espetáculos da mostra. Um levantamento do dramaturgo estima que 90% das obras que integram a programação dessa mostra foram


1 (IN)CÔMODOS O espetáculo tem texto do dramaturgo Cícero Belmar LUZIR É NEGRO 2 No solo, Marconi Bispo trabalha memórias pessoais e familiares, e investiga o racismo e suas manifestações

produzidas de forma independente. Na concepção do evento, cada grupo é responsável pela produção de seu espetáculo, em parceria com o espaço, e, em contrapartida, tem a bilheteria direcionada para a manutenção dos dois – grupo e espaço. “A centralidade acontece no sentido de que os grupos, elencos, diretores e produtores se apoiam e consolidam outubro como o mês da mostra de teatro, ocupando os espaços da cidade durante praticamente todo o período”, explica Dourado. O dramaturgo e escritor Cícero Belmar, que assina o texto do espetáculo (In)Cômodos, acredita que esta é uma forma de resistência, mas é também uma maneira de o teatro se presentificar na realidade. “Quando os grupos partem para fazer esse tipo de teatro, apresentando as peças em espaços não tradicionais, saíram da mera crítica à gestão pública para uma ação concreta. É como se estivessem dizendo: ‘Não será por falta de investimentos ou por falta de espaços que deixaremos de viver nossa arte, nossa criatividade’”.

Segundo Rodrigo Dourado, 90% das obras que integram a programação são produções independentes Ao mesmo tempo, para Belmar, essa articulação é a própria construção da história do nosso tempo: “Eu acho que será impossível, para os historiadores do teatro pernambucano, não recontarem esse momento como um dos mais significativos da arte cênica”. Ao todo, são 13 os espaços ocupados na cidade, durante os 27 dias de festival: O Poste Soluções Cênicas, Cia. Fiandeiros, Espaço Experimental, Cia. Cênicas de Repertório, Edf. Texas, Bar Teatro de Mamulengo, Escola Pernambucana de Circo, Espaço Vila, Casa do Acre, Teatro Joaquim Cardozo, Casarão da Várzea, Coletivo Lugar Comum e Mau Mau. Na programação, que conta com 35 espetáculos, além de ações formativas,

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há peças de destaque da dramaturgia contemporânea como Na beira, Histórias bordadas em mim, A receita e Salmo 91. Essas dividem a grade com quatro estreias: O santo Genê e as flores da Argélia (de Bruno Fittipaldi), Baba Yaga (da Cia. Cênicas de Repertório), Luzir é negro (de Rodrigo Dourado) e Viva la vida (de Fred Nascimento), que havia percorrido o circuito estudantil e agora faz sua entrée profissional. Ainda, a Cia. Maravilhas apresenta a pré-estreia do infantil Ahhhhhhhh! Histórias de arrepiar, com direção de Márcia Cruz. A grade completa da mostra pode ser conferida na Continente Online.

BIODRAMA

Um dos destaques da programação, Luzir é negro é solo autobiográfico do performer Marconi Bispo, que, a partir de memórias pessoais e familiares, investiga o racismo e suas manifestações na vida de um homem negro, gay, candomblecista e periférico. Em busca de entender como o racismo afeta as relações íntimas, desde os primeiros elos dentro da família até as escolhas e não escolhas


Palco que determinam os relacionamentos na fase adulta, o ator Marconi Bispo procurou o diretor do Teatro de Fronteira para darem segmento à pesquisa a partir do biodrama e do teatro documental. “Para mim, era importante saber se o fato de ser candomblecista, por exemplo, e externar isso das mais variadas formas – deixar minhas guias de orixás aparentes, assumir nas redes sociais etc. – estava determinando o fato de estar sem ‘namorar’ há mais de 10 anos”, conta Marconi Bispo. Em um vídeo-teaser divulgado na página do Teatro de Fronteira, Bispo dá uma mostra do que o público pode esperar do espetáculo. “Entendi que eu era negro quando uma chefe minha me chamou à sala dela e disse que eu não podia mais usar camisas que deixassem as minhas guias de orixás aparentes. Eu lembro que, do lado de cá da mesa dela, entendi que eu era negro”, compartilha, em trecho do vídeo. E aprofunda o debate, ao falar sobre as relações de discriminação sobre o homem negro e gay: “Entendi, também, que eu era negro quando ia à boate Metrópole e não era paquerado por gays brancos, principalmente. Mas, entendi também que era negro quando, às 4h da manhã, já em desespero, querendo pegar alguém, eu tirava a camisa. Aí chegava alguém, mas antes de perguntar meu nome e me pedir um beijo, me perguntavam se, como todo negro, eu era bem-dotado. Mas o que acho engraçado é que o volume da minha autoestima nunca foi igual ao volume que se supunha ter embaixo da minha calça. Entendi que ser negro poderia ser, simplesmente, uma questão de volume”. Na narrativa, as memórias de Marconi são cruzadas com fatos recentes do país, observando como o negro aparece em diversas dramaturgias – a exemplo de Os negros, de Jean Genet; Arena conta Zumbi, de Guarnieri e Boal; e Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes – e em outras matrizes documentais, como as redes sociais, matérias e artigos de jornal e documentos históricos.

RESGATE Memória do teatro para o início da vida

Em Teatro para crianças no Recife – 60 anos de história no século XX, Leidson Ferraz reúne a historiografia do teatro infantojuvenil

Apesar de uma intensa produção

no campo do teatro, a cultura brasileira – e a pernambucana, em especial – ainda não preserva com rigor a sua historiografia, perdendo importantes capítulos de sua memória em páginas empoeiradas de arquivos esquecidos. Com poucos registros de sua trajetória, o teatro se torna uma arte efêmera, que acontece e morre pouco tempo depois do apagar das luzes no palco. Em alguns setores, seja por falta de interesse dos realizadores, produtores e mesmo da imprensa, essa situação se agrava. Foi com essa realidade em mente que o jornalista, pesquisador e ator Leidson Ferraz imergiu no universo do teatro infantojuvenil para trazer à tona sua história e legado no livro-pesquisa que lança agora: Teatro para crianças no Recife – 60 anos de história no século XX. Divulgada inicialmente em formato multimídia – em DVD –, no ano de 2013, a obra ganha as prateleiras em forma de livro, lançando luz sobre a história recente da dramaturgia voltada para as crianças e adolescentes, na qual, aliás, Leidson fez sua estreia nos palcos.

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Em seu argumento de pesquisa, um dos fatores agravantes para o embotamento da historiografia do teatro do gênero é que, devido ao grande número de montagens de baixa qualidade, produzidas a cada ano – muitas realizadas em série, reproduzindo elementos e personagens da televisão com o único objetivo de atrair a atenção dos pequenos e de seus pais, e, claro, fazer dinheiro –, o teatro para a infância se tornou alvo de preconceito por partes dos artistas e da imprensa. Em Teatro para crianças no Recife, Leidson vai contra essa corrente e coloca como objetivo salvaguardar – através de raros registros fotográficos, programas de espetáculos, anúncios publicitários e recortes de críticas de jornais da época –, além de relatos e histórias de personalidades importantes, a memória do teatro feito por e para crianças. Nesse primeiro volume, o pesquisador traz um recorte da produção teatral entre os anos 1939 e 1970, período em que começaram a surgir montagens específicas para


ROBERTO MOREIRA DIAS/DIVULGAÇÃO

1 LEIDSON FERRAZ O jornalista, ator e pesquisador é autor de outras obras que focam a memória do teatro pernambucano

esse público. Antes disso, entretanto, volta ainda um pouco no tempo para falar sobre o surgimento do teatro no Brasil, no período colonial, através da catequização dos padres jesuítas, que já utilizavam elementos lúdicos para atrair a atenção dos pequenos nativos. Desde sua chegada às terras brasileiras, trazido pelos portugueses, o teatro não fazia distinções entre as plateias adultas ou infantis, a começar pelas apresentações de caráter missionário realizadas pelo teatro jesuítico no século XVI. Foi apenas em 1939, segundo o pesquisador, que surgiram as matinais dominicais com dramaturgia específica para as crianças, e elenco de meninos e meninas como intérpretes, e não mais atores adultos. A mudança no cenário do teatro pernambucano veio pelas mãos do médico, jornalista, músico e teatrólogo Valdemar de Oliveira, ao assumir a direção do Teatro de Santa Isabel, substituindo o também teatrólogo Samuel Campelo. A ideia de promover o teatro com dramaturgia específica para a “petizada”, como se falava na época,

Esse volume inicial traz um recorte das primeiras produções voltadas para crianças, realizadas entre 1939 e 1970 surgiu para Valdemar ao ver os dois filhos, Reinaldo e Fernando de Oliveira, brincando de “interpretar”, após uma sessão de cinema. Em coluna assinada no Jornal do Commercio, Valdemar de Oliveira reclamava, desde 1934, que o teatro para crianças deveria existir no país com um grupo dedicado a esse gênero, seguindo o exemplo de países como Rússia, França e Argentina, referências da época. Exatamente um dia após assumir a função administrativa no Teatro de Santa Isabel, Valdemar de Oliveira deu início ao seu projeto que abriu espaço para a diversão da criançada: a 1ª Grande Matinal Infantil do Grupo Gente Nossa, com a peça Branca de Neve e os 7 anões, na manhã do domingo 5 de março de 1939.

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A partir daí, Leidson resgata, em detalhes, a história do teatro, registrando nomes, datas, créditos e demais minúcias, que, juntos, buscam referenciar a história com fidelidade. Foram mais de dois anos dedicados ao projeto, tendo como principais fontes de dados os acervos do Arquivo Público do Estado e da Fundação Joaquim Nabuco. No segundo volume da obra, a ser publicado, o jornalista dará continuidade ao percurso cronológico e historiográfico nas décadas de 1980 e 1990, quando acontece o boom do teatro pernambucano, com uma produção muito mais intensa na área. Da mesma forma que em suas obras anteriores, o livro Teatro para crianças no Recife – 60 anos de história no século XX (vol. 1) está sendo distribuído nacionalmente e pode ser consultado gratuitamente no Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude, nas bibliotecas do Sesc, no Centro de Memória da Funarte, arquivos públicos e bibliotecas das universidades que contam com cursos de teatro pelo país. ALEF PONTES


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

VIDA, MORTE E CELEBRAÇÃO Minha primeira lembrança do teatro

é a de uma calçada alta e cortinas improvisadas com lençóis. A encenação aconteceu no sertão dos Inhamuns, no Ceará, à luz de candeeiros, numa noite misteriosa. Representava-se um drama, como popularmente se chamavam pequenos esquetes, cançonetas e farsas, romances e entremezes anacrônicos, guardados de memória e transmitidos de geração em geração. Ao meu pai coube a façanha de escolher entre os moradores da fazenda os que conseguiam decorar os textos e dizê-los com a cabeça erguida. Eu tinha quatro anos e desde então me pergunto de onde vinha o desejo de representar. Aprendi que o teatro sempre esteve ligado aos ciclos da vida do homem. No Egito antigo, os sacerdotes sacrificavam o rei e a rainha no ato da cópula, espalhavam o sangue pelas margens do rio Nilo, acreditando que dessa maneira propiciavam as cheias e a fertilidade. Tempos depois, essas mortes foram simbolizadas numa representação teatral. No distante sertão dos Inhamuns, repetíamos um ritual semelhante, porém atenuado. Após longos períodos de estiagem,

banhávamos os túmulos dos mortos, cantando e chorando, pedindo que chovesse, trazendo vida à terra seca. Estão aí os temas fundadores do teatro: vida, morte, celebração. Quando fui morar no Crato, com cinco anos, iniciei-me nos rituais da igreja católica. Nossa vida regulava-se pelo calendário das festas e pelo sino da catedral. Almoçávamos quando batiam os onze repiques, jantávamos às cinco horas, dormíamos às oito. Nas missas, as representações solenes, os cenários magníficos, o júbilo diante do sagrado e o sentimento coletivo de celebração me impressionaram. Foi o meu segundo encontro com o teatro. Via as liturgias, a pompa, a música e o canto como representações. Entrava na igreja com a emoção de um espectador, a mesma de quem vai ao cinema ou a uma casa de espetáculos. Em maio, celebrava-se Maria, como os gregos Ártemis e os romanos Diana. De manhã cedo, um andor levava Nossa Senhora da igreja para a casa de algum fiel, onde ela passava o dia. De noite, enfileirados numa procissão de velas acesas, trazíamos a santa de volta para sua morada. Durante um

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mês repetíamos esse ofício, ao som de vivas, cantos e fogos. Na última noite, armava-se um altar monumental, no extremo da praça da matriz, coberto por dezenas de anjos, arcanjos, querubins e serafins. Começava a solenidade de coroação, a praça cercada por uma bateria de fogos, a igreja revestida de girândolas, o vigário a postos e milhares de fiéis com os corações palpitando. Cantavam os anjos, tocava a banda, a imagem de Maria Santíssima exultava aos nossos olhos crédulos. Depois de uma interminável expectativa, o anjo mais graduado, a postos na altura infinita do altar, pousava sobre a cabeça da Virgem uma pequena coroa de rosas. Era o sinal para as portas do céu se abrirem aos mortais. O vigário gritava: viva Nossa Senhora! Nós respondíamos: viva! A banda executava o Glória majestoso, um fogaréu iluminava a fachada da igreja, bombas explodiam, formando uma cerca de fumaça. Os demais anjos sopravam trombetas, tudo resplandecia, emocionava, e as pessoas acreditavam que o céu poderia ser bom como naquele instante. Contrapondo-se ao júbilo mariano, a sombria teatralidade da Semana


THAÍS PINHEIRO

Santa nos precipitava num mundo de medos e culpas. Cobriam-se os santos de pano roxo, rezavamse as vias sacras, obedecia-se um rigoroso jejum. Ao invés dos benditos contentes, o lamuriento cantochão. As matracas no lugar dos sinos. O Senhor Morto corria a cidade dentro de um esquife macabro e arrancava lágrimas no seu encontro com a Mãe Dolorosa. Não tomávamos banho na quarta-feira, não assobiávamos na sexta. No sábado, felizmente, uma réstia de alegria. À meia noite, acordados à custa de café e curiosidade, assistíamos a missa de aleluia, o mais exuberante teatro religioso. No instante da ressurreição, apagavam-se as luzes da igreja, tocavam os sinos, os fiéis baixavam a cabeça. De esguelha, arriscando ser excomungado e ir para o inferno, via a imensa cortina negra, que ocultava o Cristo Crucificado, despencar das roldanas que a sustinham, revelando um novo Cristo, vivo e refeito, a não ser pelas chagas causadas pelos homens. Sentia-me cúmplice daquela revelação, talvez seu único espectador, e era possuído por um

Entrava na igreja com a emoção de um espectador, a mesma de quem vai ao cinema ou a uma casa de espetáculos sentimento de infinita bondade. O domingo seguinte, eu o vivia em perfeita paz, absoluta plenitude. Tanta bondade, no entanto, não durava mais que algumas horas. As diabruras de menino retornavam no dia seguinte. O quintal da nossa casa no Crato dava para um terreno grande, onde morava um mestre de reisado. Nesse teatro ao ar livre, sob cajueiros e mangueiras, eu acompanhei várias representações do auto popular. Os brincantes, vestidos de cetim azul e encarnado, dançavam em duas fileiras, representando cristãos e mouros nas suas brigas. Jaraguá aterrorizava os meninos, em compensação, as espadas tinindo nos combates despertavam nosso gosto pela aventura, o desejo de também correr o mundo como Roldão e Oliveiros.

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Esse universo pertencia a uma classe social definida, a dos pobres. Ricos não brincavam reisado, só assistiam. Não era como agora, em que todos sobem nos carros alegóricos das escolas de samba. Nenhuma lei escrita impedia que um menino de classe média fosse figural de reisado. Mas, existia uma barreira social: reisado era brinquedo do povo. As lapinhas possuíam uma interdição ainda mais severa para mim: somente meninas dançavam nesses pastoris. Ciganas, estrela, sol, lua, borboleta, pastorinhas e beija-flor cantavam e dançavam. Frustrava-se o meu sonho de atuar. Consoleime com umas asas de borboleta e de anjo, que pedi à dona de uma lapinha, empregada da nossa casa. Pendurei-as no telhado do quarto de despejo, longe dos olhos de meu pai. Como no filme de Bergman, Fanny e Alexander, em que a alma do artista é simbolizada por Ismael, o proscrito, preso num subterrâneo, eu tentei aprisionar a minha paixão pelo teatro. Não consegui. A alma pressente o que busca e segue as pegadas do seu obscuro desejo, afirma Platão.


DIVULGAÇÃO

Leitura CONTINENTE OUTUBRO 2016 | 70


OBRA COMPLETA Toda a potência de Raduan Nassar

Este mês, em volume de 465 páginas, saem os dois romances do escritor de origem libanesa, a coletânea Menina a caminho, mais dois contos e ensaio inéditos TEXTO Luciana Veras

“Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo…” As primeiras palavras de Lavoura arcaica são impactantes, como de resto é todo o livro, publicado em 1976 pela editora José Olympio. Elas permitem entrever a narrativa caudalosa urdida por Raduan Nassar, então um filho de imigrantes libaneses que, tendo cursado Direito e Filosofia em São Paulo, decidirase por escrever um romance. Quem já folheou suas páginas, assevera: trata-se de um exercício que transcende a leitura, uma epifania para muitos, um acontecimento incontornável para outros tantos. Neste outubro, a Companhia das Letras lança, em um volume de 465 páginas, a reedição da obra completa de Raduan Nassar – incluindo a novela Um copo de cólera (1978), os contos de Menina a caminho (1997) e três textos inéditos no Brasil: um conto publicado nos anos 1990 na antologia francesa Des nouvelles du Brésil, chamado O velho (escrito antes mesmo dos romances, em 1960), um outro conto, Monsenhores, e o ensaio A corrente do esforço humano, disponibilizado apenas na Alemanha, em 1987. Segundo a editora, a tiragem

O diretor Luiz Fernando Carvalho conta que Lavoura arcaica foi o livro que mudou sua maneira de ver o mundo será de 6 mil livros, ao preço de R$ 74,90 e e-book por R$ 44,90. É impossível prever, por hora, se essa tiragem inicial se esgotará rapidamente. O que se sabe é que, ante a notícia do agrupamento de todos os escritos de Raduan Nassar em um único tomo, rejubilaram-se os seus leitores e fãs. Um deles é o diretor Luiz Fernando Carvalho, responsável pela adaptação cinematográfica de Lavoura arcaica, lançada em 2001. “O encontro com um livro pode se tornar um acontecimento sagrado. Pode mudar sua vida e sua maneira de ver o mundo. Na história da humanidade, certamente, muitos livros marcaram milhares de pessoas. No meu caso, o livro foi Lavoura arcaica. Não haverá outro. O tempo passará, mas ele permanecerá dentro de mim, calando cada vez mais fundo a cada leitura”, revela à Continente. Lavoura arcaica, o filme, trazia Selton Mello na pele de André, o jovem atormentado – “eu estava escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus sentimentos” – que recebe a visita do irmão Pedro (Leonardo

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Medeiros) na pensão barata em que mora, após fugir da fazenda da família governada com austeridade pelo pai (Raul Cortez). Instado pelo primogênito, ele retorna à casa sobre a qual repousa o manto da obediência total à figura paterna: “que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto com os sinos graves marcando as horas”. Acontece que lá está Ana (Simone Spoladore, no filme), a irmã mais nova, causa da partida e da “fome” que o protagonista descreve: “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos”, confessa André. “Poderia apontar os inúmeros motivos estéticos e de linguagem”, diz o cineasta, aludindo à indubitável potência dos arranjos linguísticos de Nassar – arranjos esses que ele respeitou ao escrever o roteiro, reunindo o elenco para ensaiar durante quatro meses a partir de leituras recorrentes do romance. “Mas, pensando bem, prefiro agradecer à misteriosa força de vida que ele evoca em redemoinho. Foi para onde Raduan me arrastou, para o núcleo deste redemoinho de mim mesmo, da própria vida que se desdobra em mais vida”, resume Luiz Fernando Carvalho.


FOTOS: DIVULGAÇÃO

1 LAVOURA ARCAICA A adaptação para o cinema do romance será exibida no Festival do Rio, como homenagem aos seus 15 anos

primeira vez que alguém falaria na morte. Enquanto pensava na história lembrava da importância da palavra”, prossegue Brayner. Ele chama a atenção para “a dança de Ana no final de Lavoura arcaica” e lembra que “Ana, em árabe, quer dizer ‘eu’”. “Desde a primeira vez que li Raduan Nassar, não sou mais o mesmo. Li toda a obra em uma sentada há quase 20 anos e, com o passar do tempo, ela vai ganhando novas camadas: ‘Não tem quem não se toque, não tem quem não blasfeme contra a família, não tem quem não chore de nostalgia’”, cita o escritor.

UM COPO DE CÓLERA

Leitura 1

O Festival do Rio prestará, este mês, uma homenagem à versão fílmica de Lavoura arcaica, exibindo-o em comemoração aos 15 anos de lançamento do longa. Para os admiradores da linguagem torrencial e catártica de Nassar, o filme serviu, e ainda serve, de condutor/indutor de novas leituras. “Lavoura arcaica é um livro para ser apreciado em imagens. Quando penso nele, sempre me lembro do quanto assistir ao filme enriqueceu ainda mais o conteúdo das palavras. Em regra, acontece o oposto: um livro muito bom sempre chega faltando ao cinema. Mas esse não foi o caso. Até hoje uso o trecho do livro em que o coroinha chega ao portal da igreja e no filme a imagem é dos pés em voo até que chegam à igreja… Ele me remete a momentos de ‘escapismo’ para realização vital. Toda sua obra é, para mim, uma experiência de assistir, com detalhes, através da escrita”, pontua a juíza pernambucana Renata Nóbrega, que decidiu reler Lavoura após ver o filme. “Precisei. Tornou-se melhor.” A palavra “experiência” é utilizada com frequência para definir a relação que se estabelece com a obra de Raduan

Nassar. É comum alguém perguntar “Já leu Lavoura arcaica?” com o mesmo assombro com que se pergunta “Já leu Grande sertão: veredas?”, ou, ainda, “Já leu A paixão segundo G.H.?”. E é provável ser tomado pelo mesmo sentimento quando se mergulha nessas três obras. Cotejá-lo ao mineiro Guimarães Rosa (1908-1967) e à ucraniana naturalizada brasileira Clarice Lispector (19101977) não é exagero. Raduan Nassar é artífice das palavras; sua habilidade em articulá-las provoca estupor tanto quanto os neologismos de Guimarães ou o adensamento existencial de Clarice. “Poucas vezes li um autor com essa capacidade de conhecer a força das palavras e usá-las de uma forma tão livre, tão original, tão explosiva”, observa o escritor recifense Bernardo Brayner, que mantém o site livrosquevoceprecisaler.wordpress.com. “Uma vez, escrevi uma história sobre um homem e uma mulher que criam um idioma completamente novo para se comunicar. Quando dissessem ‘eu te amo’, seria a primeira vez que alguém diria ‘eu te amo’ naquela língua. Quando falassem na morte seria a

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Em Um copo de cólera, menos louvado do que Lavoura arcaica, porém capaz de gerar igual comoção, descortinam-se as entranhas de um relacionamento entre um homem e uma mulher – sem pudor algum, como se a linguagem fosse livre, aguda e fértil: “…e repassei na cabeça esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprimindolhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si sós uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pelos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração”. Irma Chaves é psicanalista e professora potiguar há muito radicada em Pernambuco, onde lecionou durante décadas no curso de Letras da UFPE. Já havia estudado Teoria da Literatura em Madri e Lisboa e dissecado a obra do poeta pernambucano Carlos Pena Filho (1929-1960), no mestrado na


INDICAÇÕES PUC/RJ, quando se deparou com Um copo de cólera. “A primeira vez que li, no final da década de 1970, foi a partir de um comentário em um jornal no Rio de Janeiro. Foi um impacto. Fiquei meio perdida, pois era uma coisa inteiramente nova. Na ocasião, era uma forma diferente de narrativa, que perdia às vezes quanto aos protagonistas, que por sua vez não tinham perfil definido. Essa linguagem nova me atraiu de imediato. Continuo gostando muito”, comenta à Continente. Anos depois, já tendo lido Lavoura arcaica, ela se confrontou com críticas que reclamavam da falta de estruturação dos personagens na obra do escritor. “Mas é do estilo dele buscar um outro tipo de aproximação com os personagens a partir da linguagem. É a palavra, a linguagem e a força da literatura que nos possibilitam, nesses livros, escutar e ler coisas diferentes, que de uma certa forma nos desafiam”, pondera Irma. Em fevereiro deste ano, A cup of rage, primeira tradução inglesa para Um copo de cólera, foi publicada na Inglaterra e nos Estados Unidos (em janeiro de 2017, chegará às livrarias Ancient tillage, versão de Lavoura arcaica que a tradutora Karen Sherwood Sotelino esperou anos para ver nas prateleiras). Em maio, Raduan Nassar foi anunciado como vencedor do Prêmio Camões, que desde 1989 reconhece

a literatura em língua portuguesa. Talvez essa láurea tenha impulsionado a Companhia das Letras a promover a reedição, pois o júri da premiação, concedida em conjunto pelos governos do Brasil e de Portugal, ressaltou a “a extraordinária qualidade da sua linguagem e da força poética da sua prosa”. Aos 81 anos, recluso e avesso a quaisquer rituais de fama, o escritor teria exclamado, ao saber do Camões e dos 100 mil euros acoplados ao prêmio: “Mas minha obra é um livro e meio!”. Lavoura arcaica (decerto o livro desse “livro e meio”) é uma ode ao tempo: “o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história”. É, também, uma reflexão profunda sobre a mítica impossibilidade de se contestá-lo. Nas últimas quatro décadas, nem o próprio Raduan conseguiu conter o fluxo expansivo e a contínua celebração da sua obra literária, que segue fecunda e gigante. Em 2016, não cabe, como ele mesmo fraseou, “menos ainda a cada um correr contra a corrente, ai daquele, dizia o pai, que tenta deter com as mãos seu movimento”.

Obra completa RADUAN NASSAR Companhia das Letras Publicação, com 465 páginas, reúne dois romances (Lavoura arcaica e Um copo de cólera), o livro de contos Menina a caminho e três textos inéditos do autor paulista de origem libanesa.

CRÍTICA

LEYLA PERRONEMOISÉS Mutações da literatura no século XXI

ROMANCE

BERNARDO CARVALHO Simpatia pelo demônio Companhia das Letras

Neste novo estudo, a professora apresenta ao leitor esta arte que passa por mutações que lhe atribuem características as quais, em síntese, exacerbam as rupturas empreendidas pela literatura das vanguardas do século XX. O livro trata muito bem de textos de autores que estão produzindo agora.

Bernardo Carvalho vem, desde sua estreia com Aberração (1993), se destacando como um dos principais ficcionistas brasileiros contemporâneos. Em Simpatia pelo demônio, ele demonstra mais uma vez domínio na construção narrativa. O personagem principal, Rato, é um brasileiro que trabalha em uma agência humanitária norteamericana.

COLETÂNEA

POESIA

Companhia das Letras

JOHN FREEMAN (ORG.) Histórias de duas cidades Bertrand Brasil

Há cidades globais, Nova York é uma delas. Nesta coletânea, os autores narram situações que expõem a desigualdade entre os que usufruem o luxo exacerbado e outros, que vivem a invisibilidade. São 27 autores que apresentam textos em vários gêneros (conto, relato, reportagem, crônica), selecionados pelo crítico literário John Freeman. Aqui, o texto quer-se uma arma de crítica social.

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DÉBORA GIL PANTALEÃO Se eu tivesse alma Editora Benfazeja

Considerada uma das novas apostas da poesia da Paraíba, Débora Gil Pantaleão (1989) lança seu primeiro livro Se eu tivesse alma na versão impressa pela editora Benfazeja (em 2015, ele saiu em e-book). São 40 poemas que trazem temáticas de morte, solidão, literatura, além de apresentar personagens como Pedro, Tereza, Avó, Pai e Cúmplice.


ROBERT C. WILES/ REPRODUÇÃO

Visuais

1 ROBERT C. WILES Flagrante de tragédia se transformou na foto O mais belo suicídio (1947)

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C O N T I N E N T E O U T U B R O 2 0 1 6 | 74


DORRIT HARAZIM Heroísmo da visão

No livro O instante certo, a jornalista e documentarista compila textos em que revisita a história de imagens e fotógrafos TEXTO Marina Moura

No livro intitulado Sobre a fotografia (1983), a escritora, crítica e filósofa estadunidense Susan Sontag afirma: “Existe um heroísmo peculiar difundido pelo mundo afora desde a invenção das câ meras: o heroísmo da visão. A fotografia inaugurou um novo modelo de atividade autônoma – ao permitir que cada pessoa manifeste determinada sensibilidade singular e ávida”. Ao longo de 39 textos – publicados entre 1995 e 2016 em revistas como Piauí e Zum – que compõem o primeiro livro da jornalista e documentarista Dorrit Harazim, O instante certo (Companhia das Letras), estamos diante desse “heroísmo da visão” a que se refere Sontag, observado pelo olhar sensível e arguto de Harazim, que se expressa por textos entre o ensaio e o relato histórico. Os escritos reunidos no volume, observa a autora, “têm como traço comum minha curiosidade pelo lado avesso do que está nas fotos – o que houve antes ou depois do clique, o porquê de a foto existir”. A trajetória profissional de Dorrit passa por coberturas das guerras do Vietnã e Camboja, das primeiras disputas por petróleo nos Emirados

Ensaios e relatos, os escritos de Dorrit, publicados entre 1995 e 2016, abordam diversos nomes da fotografia mundial Árabes, nos anos 1970, e do golpe militar chileno na mesma década, além do atentado terrorista às Torres Gêmeas, em 2001, quatro eleições presidenciais norte-americanas e todos os Jogos Olímpicos desde 1980. O fato de ter estado quase sempre ligada direta ou indiretamente aos meios de comunicação possivelmente explica a predileção da autora por analisar, em seu livro, imagens oriundas do fotojornalismo. O convívio direto com esses que ela chama de “narradores da história visual”, ver de perto o caráter, a coragem, o afeto, mas também a “cobiça pelo furo jornalístico”, a ferocidade da guerra, a morte de tantos companheiros – tudo isso explica a curiosidade dela

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enquanto escritora, uma curiosidade “que mescla interesse profissional com admiração pessoal”. “A obrigação de captar o instante certo, de manter os sentidos em foco, a impossibilidade de fotografar a posteriori a cena perdida – ao contrário de nós, escribas, que podemos correr atrás e aprofundar algo que nos escapuliu –, tornam a profissão de repórter fotográfico tão atordoante para mim”, escreve a autora. Como identificar o instante certo, aquele evocado por Dorrit no título de seu livro? É o que investiga e sugere, ao revisitar a história de fotógrafos ou das imagens capturadas. Em A foto imortal, a autora se debruça sobre o único clique de que se tem notícia dado pelo então estudante de fotografia Robert C. Wiles, em 1947. A imagem célebre, O mais belo suicídio, flagra a cena do corpo inerte da jovem Evelyn McHale sobre o metal retorcido de uma limousine. Minutos antes, ela decidira dar fim à própria vida e pular do 86º andar do Empire State Building, em Nova York. Wiles, do outro lado da rua, ouviu o estrondo da queda e fez uma das fotos mais emblemáticas do século XX. “Esse estranho entrelaçamento de vidas parece longe de esgotado”, avalia Dorrit, tecendo, pela palavra, um caminho que prima pela visão intensiva das imagens, resgatando fotógrafos como o brasileiro Assis Horta, a norteamericana Vivian Maier, o sul-africano Kevin Cartner, o francês Ambroise Tézenas e o chinês Li Zhensheng.

ARQUEOLOGIA IMAGÉTICA

No texto O catador de imagens, a autora nos revela parte da comovente obra do fotógrafo polonês Jerzy Lewczyński (1924-2014), a quem interessavam principalmente as ruínas da história, fosse por correntes documentais, conceituais ou experimentais. Sua série Toca do lobo foi idealizada a partir de fotografias do complexo de bunkers de mesmo nome (alcunha dada pelo próprio Hitler, na Prússia Oriental, em 1940), mas, 15 anos após sua destruição. Lewczyński foi até o local, em 1960, que a essa altura já havia sido há muito abandonado e destruído por toneladas de explosivos, e registrou em fotogramas aquilo que estava à margem das narrativas oficiais envolvendo a Segunda Guerra Mundial.


RUTH ORKIN/REPRODUÇÃO

Visuais

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Dessa necessidade de desenvolver uma linguagem proporcionada pelo “distanciamento do tempo” o polonês criaria o caro conceito de arqueologia da fotografia, descrito por ele como “o ato de devolver significado a coisas que foram rejeitadas, desconsideradas, condenadas ao esquecimento ou deixadas à mercê do acaso”. Dorrit Harazim conta que Lewczyński desenvolveu o costume de jamais se desfazer das coisas, e vivia “entre milhões de álbuns velhos, negativos soltos, diários, textos (…) que colhia ou lhe eram enviadas por desconhecidos que sabiam do seu trabalho”. Sua vida e seu ofício, inevitavelmente imbricados, formavam uma espécie de materialização de muitas memórias preservadas. É possível relacionar essa mesma arqueologia ao projeto empreendido pelo fotógrafo norte-americano Jon Crispin e relatado por Dorrit em Viagens sem volta. Ao longo de acontecimentos promovidos pelo acaso e pelos interesses pessoais de Crispin, foram descobertas, após 20 anos esquecidas na poeira do sótão, 429 malas de pacientes do já desativado asilo para doentes mentais em Nova

A “arqueologia da fotografia” pretende devolver significado a coisas que foram condenadas ao esquecimento York, o Willard Lunatic Asylum, “que abrigou mais de 5.400 pacientes ao longo de 130 anos de atividades”. Malas, valises e baús de internos que ali viveram entre 1910 e 1960 passaram quase despercebidos antes de o casarão ser demolido por desuso. Na década de 1980, coube a Jon Crispin desnudar e mapear fotograficamente o conteúdo dos volumes, reunidos na série Willard Suitcases. O instigante conjunto de imagens, acertadamente associado pela jornalista a uma “arqueologia do inesperado”, consegue “revelar os donos dos pertences para além da classificação dos seres humanos mentalmente doentes”. Por seus objetos pessoais, conhecemos um pouco da história

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de anônimos como Freda B., Dmytre Z., Phoebe U., Anna G. e Thelma R., independentemente da desordem que possuíssem. Além disso, afirma Crispin, “era uma época em que o diagnóstico da doença mental podia ser aplicado a alguém que apenas expressasse emoções, ou frustrações, ou fosse gay, tivesse sofrido algum trauma”. No fim das contas, o empreendimento do fotógrafo, ao nos revelar o que fora ignorado, e revelar o que permanecia sob o anonimato, “resulta numa experiência emocional”. “O que assombra, no caso das malas, é a facilidade com que podemos nos identificar com seus donos”, declara Jon Crispin. Embora O instante certo se sustente pela destreza narrativa de Dorrit Harazim e cada um dos escritos venha, no início, acompanhado de uma ou duas fotografias, a quantidade e qualidade das imagens mostra-se insuficiente ou aquém dos textos da autora. No caso de O catador de imagens e Viagens sem volta, por exemplo, ambos publicados e disponíveis no endereço eletrônico da revista Zum, as imagens


LI ZHENSHENG/REPRODUÇÃO

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JON CRISPIN/REPRODUÇÃO

2 RUTH ORKIN Fotógrafa registrou a destemida jovem Ninalee Allen em Florença, em 1951 LI ZHENSHENG 3 Dorrit relata a trajetória do fotógrafo oficial de Mao Tsé-Tung

4 JON CRISPIN Autora resgata trabalho do fotógrafo que descobriu malas em asilo desativado 4

mencionadas pela autora ao longo do texto podem ser vistas no site e só dão força à palavra escrita.

FOTO É CONTEXTO

No supracitado Sobre a fotografia, Susan Sontag toca no caráter invariavelmente contextual das imagens: “Como cada foto é apenas um fragmento, seu peso moral e emocional depende do lugar em que se insere”, por isso, continua, “uma das principais características da fotografia é o processo pelo qual os usos originais são modificados e, por fim,

suplantados por usos subsequentes”. É o caso da fotografia American girl em Italy, de 1951, abordada por Dorrit em Ruth Orkin fez primeiro e fez melhor. Na época do pós-Segunda Guerra, a fotógrafa norteamericana resolveu fazer um ensaio a respeito de mulheres que viajavam sozinhas. Orkin acabou conhecendo a destemida jovem de 23 anos Ninalee Allen, personagem da referida foto. A jovem caminha por uma rua de Florença enquanto é admirada por homens que transitam pelo espaço. A imagem “se transformaria em um emblema

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da feminilidade de uma época; e, à luz de hoje, em retrato de assédio sexual”, comenta Harazim, acerca dos inevitáveis deslocamentos interpretativos que recebem as fotos. Se, por um lado, o tempo parece operar como um poderoso fator de modificação do que uma imagem tem a nos dizer, é por ele mesmo que determinadas fotografias passam a ter voz, a testemunhar sobre certos contextos que ficaram no passado e, por algum motivo – geralmente a censura –, não puderam ser amplamente explorados. Dorrit Harazim conta a trajetória do chinês Li Zhenshen, em O guardião da história. Fotógrafo oficial da imprensa do governo de Mao Tsétung, ele resolveu abrir uma fenda no assoalho de seu apartamento e esconder negativos do “registro proibido” que fazia da Revolução Cultural. O material, mais de 5 mil negativos, foi sendo dado a conhecer a partir do fim dos anos 1980, e, em 2003, finalmente editado no livro Soldado vermelho da imprensa – que, aliás, ainda não possui versão em chinês. Ao participar de uma mostra coletiva em 1998, cujo pertinente nome era Deixe a história narrar o futuro (com fotografias do período da revolução), Li ouviu de um de seus colegas: “Você registrou a história por inteiro, nós apenas registramos a metade”. A coletânea das mais diferentes histórias, ou “um conjunto de textos sem fio condutor aparente”, escreve Dorrit Harazim, fazem de O instante certo um lugar de encontro com o olhar fotográfico. Não se trata de palavras que estejam a serviço da imagem, embora esta relação seja historicamente ambígua. A crítica e filósofa francesa Marie-Jose Mondzain entende que, “entre a saturação das imagens e a centralização dos discursos, é preciso lutar contra a redução das imagens falantes à linguagem, abrindoas à palavra e – dubiamente – fazendo-as resistir à palavra”. É nessa operação de desvios e entrelaçamentos entre palavras e imagens que está o trunfo do livro de Dorrit, pois consegue negociar dois aparentemente contraditórios universos: o visível e o enunciável, sem diminuílos. Entre esses polos, a jornalista nos conta e nos mostra fotografias nas quais, para Mondzain,“o olhar deve encontrar hospitalidade para o pensamento, e não repouso para o olhar”.


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

ARNALDO, MESTRE E AMIGO

Sempre tive vontade de ler as cartas

de Madame de Sévigné e outros célebres missivistas. Sempre gostei de cartas. No meu tempo, no tempo que tinha tempo, a gente se escrevia. No meu só, não. Desde Sêneca, desde sempre. Taí uma coisa com que não contava: o sucateamento da carta. O celular resolve tudo na hora, para qualquer parte do mundo, sem precisar correio. Será que não temos mais o que dizer aos amigos? Quando não conseguir mais levantar o braço para pintar, como aconteceu com Miró, vou ler e reler as cartas dos amigos. Agora me lembrei daquela música cantada por Carlos Galhardo: “Revendo papéis antigos/Velhas cartas dos amigos/O teu retrato encontrei”. Tenho uma caixona de papelão cheia (preciso até renovar a pimenta do reino, para não dar bicho). A carta a que me refiro agora pode ser lida no site www. arnaldopedrosodhorta.com.

br, onde encontrarão outras cartas e outros dados. “Paris, 22, setembro, 1962”. Eu tinha casado em janeiro de 1960 e a vida era difícil, embora eu nunca tivesse me lamentado. Mas amigo adivinha. “Zé:/ Vai junto um traveller-check de cinquenta dólares que você me fará o obséquio de aceitar como um gesto de amizade, que não cria dívida nem obrigação./Para recebê-lo, você deverá endossá-lo, assinando atrás. Não o endosse, porém, sinão na presença de quem o desconte, transformando-o em cruzeiros. Ao câmbio atual, si v. for ao City Bank ou a outro banco de Recife, deve dar uns vinte e poucos contos. Mas numa casa de câmbio ou com um corretor de câmbio você poderá vendê-lo ao preço do câmbio paralelo, apurando entre trinta e trinta e cinco contos. Consulte algum seu amigo que entenda do assunto, para não perder no negócio. Mas não o assine antes de acertar a venda, e só na presença do comprador – isso é essencial nessa espécie de cheque.” Não tenho ideia de quanto valeria hoje

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esses vinte e poucos ou entre trinta e trinta e cinco contos, talvez o amigo Clóvis Vasconcelos (obrigadíssimo pelos oiticorós!) pudesse informar. “A hepatite é uma doença que judia muito das pessoas, mas ela tem, hoje em dia, tratamento seguro. Espero que sua mulher sáia-se dessa logo. Eu próprio tive um comêço dessa doença, mas no meu caso a culpa não era de virus nenhum, e sim de outros remédios que estava tomando para atender a outra moléstia; e o remédio é que pôs á prova o fígado.” Leonice, minha mulher, não estava com nenhuma hepatite ou outra qualquer doença. Tratava-se da “síndrome de Gilbert”, que na prova de função hepática acusava “portador de hepatite”. Ficou dois meses de licença do trabalho, bibliotecária da Faculdade de Direito do Recife. Repouso absoluto. Aconselhada por Dna. Eunice Robalinho, chefe da referida biblioteca, a ouvir outra opinião médica, já que os exames não indicavam melhora, a


REPRODUÇÃO

própria Dna. Eunice sugeriu consultar Dr. Ciro de Andrade Lima, especialista em doença do fígado. Ele dava aula aos estudantes de medicina no Hospital Dom Pedro II. Parece que estava havendo um congresso de médicos da especialidade e ele expôs o caso de Leonice. Dr. Ciro realizou muitos exames e descobriu que era uma formação genética, a tal síndrome de Gilbert, e que não requeria remédio nem tratamento nenhum. Isso depois de muito aperreio, remédios desnecessários e até mudança de clima: dois meses em Fazenda Nova. Arnaldo escrevia cartas generosas, na letrinha miúda de sua máquina portátil. “A idéia, entretanto, de que um ditador poderia acelerar a evolução social, é uma idéia de um primarismo absoluto, é uma reação de puro desespêro, que nada tem a ver com a inteligência política. Qual foi o ditador moderno que acelerou a evolução social? Hitler? Mussolini? Salazar? Batista?

Quando não conseguir mais levantar o braço para pintar, como aconteceu com Miró, vou ler e reler as cartas dos amigos Nenhum deles o fez – e nem Fidel Castro o fará. As ditaduras levam á guerra ou levam á opressão absoluta do povo; elas têm servido a interesses de classe, do velho estilo capitalista, ou de casta, do novo estilo comunista. Num caso como no outro, o povo é igualmente desprezado, espoliado, judiado.” “Você não se lembra disso, mas no período que intermediou entre as duas grandes guerras, e que foi o período de implantação das bases de industrialização na Alemanha, na França, no Japão, na Itália, isso se conseguiu, em cada lugar dêsses, mediante a destruição das pequenas indústrias pelas

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1 INTELECTUAIS direita, Arnaldo À

Pedroso d’Horta (São Paulo, SP, 1914-1973) e Sérgio Milliet (São Paulo, SP, 1898-1966)

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grandes, com a consequênte formação de grandes exércitos de desempregados, que foram um flagêlo durante todo aquele período. Parece que isso é uma coisa inevitável (quando o rítmo é artificialmente exagerado), até que a indústria pesada permita a criação da indústria de consumo, pois esta última tem como pressuposto a extensão do mercado consumidor e, em consequência, a elevação do nível de vida geral.”/“É muito difícil discutir esses problemas numa carta, que acaba ficando pernóstica, pretenciosa e cheia de bobagens./ No fundo, o Brasil continua ainda hoje a pagar a despeza da ditadura de Getúlio: esta interrompeu o processo de educação democrática, afastou toda uma geração de qualquer experiência política e introduziu os metodos de corrupção pessoal como arma corrente.”/“Cícero [Dias] me disse que, si estivesse aí votaria, como você, em Julião, embora Julião tenha ficado aborrecido com êle porque se recusou a ilustrar um livro de poesias dele, muito ruins.”


MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Claquete

DOCUMENTÁRIO Um outro olhar sobre o impeachment

Cineastas brasileiras acompanham o processo de deposição de Dilma Rousseff e produzem obras para refletir sobre o atual cenário político do país TEXTO Luciana Veras

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Na manhã da segunda-feira, 29 de agosto de 2016, enquanto a então primeira mulher eleita para a presidência do Brasil apresentava sua defesa ante a denúncia de que havia cometido o crime das pedaladas fiscais em 2015, havia dezenas, centenas até, de câmeras no plenário do Senado, em Brasília. A maioria delas apontava para uma senhora de 68 anos, eleita em 2010 e reeleita quatro anos depois com mais de 54 milhões de votos; eram cinegrafistas de emissoras de televisão, ávidos para registrar os cerca de 45 minutos do seu discurso. Havia, contudo, outras lentes que miravam a plateia, composta na sua maioria pelos homens engravatados que, assim como Dilma, haviam sido eleitos pelo voto direto em 2014. Por


antecederam a cassação incomodou tanto os parlamentares, que Petra Costa e Maria Augusta Ramos chegaram a divulgar uma nota conjunta em que chancelavam o caráter independente de suas realizações: “Nossas produções não estão a serviço de partido algum”. Impeachment, o documentário de Petra, foi o único projeto não europeu selecionado para o Venice Production Bridge, o programa de fomento do Festival de Veneza. Da Europa, contatada pela Continente, a cineasta prefere silenciar sobre o documentário: “Nesse momento, estou elaborando a experiência. Acabei dando algumas entrevistas contra a minha vontade, por conta da pressão que tivemos no meio do Congresso, mas agora prefiro realmente mergulhar no filme antes de me pronunciar sobre ele”. Anna Muylaert também opta por não comentar, por hora. Sabe-se que ela acompanhou a rotina de Dilma no Palácio da Alvorada a convite da cineasta Lô Politi, da Maria Bonita Filmes; Lô dirige, Anna produz. “O filme não é sobre a situação política; é um filme humano, dentro do palácio sobre esses 180 dias de suspensão”, comentou Anna,

“Nossas produções não estão a serviço de partido algum”, divulgaram Petra Costa e Maria Augusta Ramos trás das câmeras, mulheres cineastas e o intuito de documentar o controverso rito de impeachment de Dilma Rousseff. Dois dias depois, quando 61 senadores votaram pela destituição da presidenta, chegava ao fim a trajetória dela como sucessora de Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Assumia o vice-presidente Michel Temer, desde maio governando na interinidade, e o Brasil entrava em uma nova fase de um conturbado processo sociopolítico. As diretoras Anna Muylaert (Que horas ela volta?), Petra Costa (Elena, O olmo e a gaivota) e Maria Augusta Ramos (Justiça, Seca) também retrataram a sessão que determinou a perda do mandato de Dilma. A presença delas nas semanas que

em entrevistas feitas para o lançamento do seu longa Mãe só há uma, em julho. Já Maria Augusta Ramos tomou a decisão movida por “uma angústia pessoal e pelo desejo de retratar um momento traumático”; começou a filmar 10 dias após a sessão da Câmara dos Deputados, quando a maior parte dos deputados evocou família, religião e diversos motivos estapafúrdios para justificar seu “sim” ou “não”. “Senti a necessidade de retratar e refletir sobre esse processo histórico. Como documentarista, quero desconstruir as narrativas que, para mim, não conseguem dar conta de toda a complexidade do momento”, afirma a cineasta, nascida em Brasília, formada na Holanda e radicada no Rio.

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Em Justiça, de 2004, ela começou a radiografar os meandros do poder judiciário no Brasil. De uma certa forma, seus filmes subsequentes, Juízo (2007) e Morros dos Prazeres (2013), também observam experiências kafkanianas vividas nesse âmbito. Em Futuro junho, cuja narrativa passeia das “jornadas de junho” de 2013 aos jogos da Copa do Mundo de 2014, Maria Augusta buscou apreender a miríade de tensões desse biênio crucial. Um analista financeiro, um metalúrgico, um motoboy e um metroviário paulistanos seguem suas rotinas distintas enquanto o país se dirige a uma convulsão política. Seria Futuro junho uma espécie de prenúncio da crise institucional que culminou no polêmico impeachment? “Penso que essa percepção está correta. Tudo que aconteceu em 2016 é consequência daquelas tensões de 2013 e 2014“, responde à Continente. Maria Augusta Ramos está em fase de decantação do seu projeto, cujo título ainda não se descortinou. Ela tem centenas de horas gravadas (“dos meus sete longas, foi de longe o que mais filmei”), entre sessões no Congresso Nacional, atos de Dilma ainda como presidenta nos palácios do Planalto e do Alvorada e mobilizações pró e contra o impeachment ocorridas na capital federal, para onde se mudou para a casa dos pais por alguns meses. “O foco do meu documentário é o processo jurídico-midiático do impeachment. Não é um filme sobre a presidenta e não é partidário, pois não foi feito em função de partido algum. Faço questão de ressaltar isso. Quem conhece meu trabalho sabe como construo meus documentários. Vai ser, portanto, um filme de 1h30 ou 2h com a minha visão de documentarista sobre esse processo complexo”, situa a diretora. Indagada sobre eventuais comparações com Entreatos, o documentário de João Moreira Salles que registrou Lula entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2002, ela remete à sua filmografia: “Meus filmes têm um interesse no social e em como o funcionamento das instituições afeta o cidadão. Entreatos é um ótimo filme, mas vejo nos meus próprios trabalhos uma chave para esse documentário que estou fazendo. Assim, será uma contranarrativa, pois nunca seria um ‘discurso oficial’”.


LEO LARA/UNIVERSO PRODUÇÃO/ DIVULGAÇÃO

TRAGO BOA NOTÍCIA/ DIVULGAÇÃO

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Claquete ATELLIERS VARAN/DIVULGAÇÃO

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CONTRANARRATIVAS

É nessa chave de “produção de contranarrativas” para combater a “tendência ao apagamento da memória” que operam as realizadoras Adriana Komives e Mariana Otero – a primeira é uma montadora brasileira radicada na França, a segunda é uma documentarista parisiense. Ambas são instrutoras dos Ateliers Varan, oficinas que, desde 1981, já percorreram mais de 30 países com o intuito de democratizar a produção audiovisual. Criado a partir de uma experiência que o documentarista francês Jean Rouch (1917-2004) teve em Moçambique, o Varan incute no aluno não apenas a importância do “aprender fazendo”, mas sobretudo a compreensão de que a produção de imagens é

Produzir imagens é um ato político; no Brasil, o cinema é essencial para preservar memória, dizem as diretoras um ato político. Por coincidência, a temporada brasileira de 2016 transcorreu em concomitância ao processo de impeachment, dando às professoras a chance de acompanhá-lo. Não foi a primeira vez que a presença dos Ateliers Varan coincidiu com marcos de transformações políticas. Guerra no Afeganistão, censura na produção

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imagética no Vietnã, o apartheid na África do Sul, mobilização social na Bolívia e na Colômbia, reconstrução da identidade nacional na Sérvia – todos esses processos foram acompanhados pela instituição e, de várias maneiras, transbordaram nos filmes produzidos a partir das sete semanas de oficinas. “O cinema é essencial para a preservação da memória de um país. O Brasil tem uma tendência a apagar sua história. Se essa mesma história não for registrada, como analisá-la depois? As imagens são essenciais. Dizer não ao golpe é poder se manifestar contra ele a partir, também, de produção de imagens e significados”, pontua Adriana Komives. Entre abril e junho deste ano, Mariana Otero registrou as manifestações populares na Place de la Republique, em Paris, contra a Lei El-Khomry. Sancionada pelo presidente François Hollande, a legislação prevê alterações nas configurações trabalhistas, o que gerou diversos protestos (em um contexto parecido com o que se passou no Brasil, após o presidente Michel Temer anunciar mudanças similares). “Em várias cidades francesas, os cidadãos começaram a se reunir e passar a madrugada inteira na praça discutindo caminhos para construir uma alternativa a essa lei. Eles buscavam, também, uma nova forma de se fazer política. Não é


INDICAÇÕES 1-3 OLHAR FEMININO Para Maria Augusta Ramos, Mariana Otero e Déa Ferraz, documentário é ferramenta de reflexão

uma democracia, se você não se sente representado, não é? O que vi no Brasil é extremamente parecido com o que tem acontecido na França: tudo que se conta na televisão é falso, narrado para levar as pessoas a acreditar na versão do governo. É preciso estar nas ruas para produzir essas contranarrativas, que serão essenciais para podermos ter um olhar mais crítico e honesto para toda essa ebulição do presente”, ratifica a cineasta. Para a diretora pernambucana Déa Ferraz, a possibilidade de existirem três filmes sobre o impeachment de Dilma Rousseff, e todos com direção de cineastas mulheres, é um alento no que descreve como “tempos sombrios”. “Os aspectos machistas e misóginos do golpe foram escancarados. Historicamente, o lugar que a presidenta ocupava não era o das mulheres – um espaço de poder e progresso pertence sempre aos homens. Para aqueles homens brancos e engravatados, como os

senadores, era difícil ver uma mulher em posição de poder. O cinema é necessário para criar uma gaveta de histórias sobre a contemporaneidade e assim buscar entender o que estamos vivendo”, pondera a cineasta. Em setembro, ela exibiu Câmara de espelhos no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – em que diversas equipes subiram ao palco envergando camisas com os dizeres de “Cinema contra o golpe” e “Viver sem temer”. Sua obra é um documentário sobre a representação feminina em um mundo no qual o machismo é naturalizado. Déa Ferraz enxerga paralelos entre os comentários dos seus personagens sobre as mulheres e “tudo que saiu sobre Dilma”: “A cultura patriarcal está arraigada. Não tem como o cinema se descolar disso. Acho maravilhoso que essas cineastas tenham filmado o impeachment porque vejo aí a chance de complexificar questões como a misoginia na política brasileira”. Não há previsão de lançamento para os projetos de Petra Costa e Anna Muylaert; Maria Augusta Ramos, por sua vez, não quer correr com a montagem. “Estou tomando uma distância do material e imagino que ficarei seis meses em edição. Não é um filme que pode ser feito às pressas; vou rever e repensar tudo que filmei com o maior cuidado possível”, garante. Se o estado de ruptura permitir as eleições presidenciais programadas para 2018, seu documentário tende a ser um ótimo instrumento de discussão.

MELODRAMA

BELAS FAMÍLIAS

Dirigido por Jean-Paul Rappeneau Com Mathieu Amalric, Karin Viard Pandora Filmes

O ator francês Mathieu Amalric é craque na interpretação de homens atormentados por relações familiares – vide os filmes de Arnaud Desplechin, como Três lembranças da minha juventude. Em Belas famílias, o diretor Jean-Paul Rappeneau usa essa maestria para criar um protagonista que, ao regressar à cidade de sua infância, descobre que a casa da família está à venda e decide brigar com o irmão. O filme tem ótimas atuações (como Marina Vacth), mas é Amalric quem garante os melhores momentos.

ROMANCE

LEMBRANÇAS DE UM AMOR ETERNO Dirigido por Giuseppe Tornatore Com Jeremy Irons, Olga Kurylenko PlayArte

Não há dúvidas de que o italiano Giuseppe Tornatore é expert em embutir genuínas emoções de suas narrativas, a exemplo de Cinema Paradiso (1988). Aqui, ele cria uma história de amor não convencional entre um astrônomo (Jeremy Irons) e sua namorada (Olga Kurylenko), que passam anos separados pela distância, mas em contato através das palavras. Vale notar que título original – La corrispondenza – faz mais jus ao enredo do que a equivocada versão brasileira.

ROAD MOVIE

COMÉDIA

Dirigido por Paolo Virzi Com Valeria Bruni Tedeschi, Micaela Ramazzotti Imovision

Dirigido por Bruno Podalydés Com Sandrine Kimberlain, Agnès Jaoui Mares Filmes

LOUCAS DE ALEGRIA

Uma comparação entre Loucas de alegria e Thelma & Louise, o antológico road movie de 1991, não é de todo exagerada. Porque há, nesse filme do italiano Paolo Virzi, um sentimento de conexão entre duas mulheres que resolvem confrontar as convenções, com alegria e valentia. No caso, são duas internas de uma clínica psiquiátrica (vividas com intensidade por Valeria Bruni Tedeschi e Micaela Ramazzotti), que fogem para uma jornada de autodescoberta.

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UM DOCE REFÚGIO

Michel é um designer gráfico que sempre sonhou em pilotar aviões, porém decide mudar a vida ao comprar um caiaque e com ele viajar pela França. Nasce aí a trama de Um doce refúgio, que se desenvolve com a leveza das melhores comédias francesas e uma doce naturalidade dos diálogos, cortesia do diretor/ roteirista/ator Bruno Podalydés. O elenco feminino merece destaque, em especial Sandrine Kimberlain, no papel da mulher e principal incentivadora de Michel, e a sempre impagável Agnès Jaoui.


FOTOS: REPRODUÇÃO

VOZ A protagonista da música em mutação

Com ou sem o apoio de recursos tecnológicos, artistas transformam seus cantos, modificando o papel do vocal na canção contemporânea TEXTO GGabriel Albuquerque

Sonoras

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Em Uma história da música popular brasileira: Das origens à modernidade, o historiador Jairo Severiano aponta que a canção brasileira teve origem ainda no período colonial e foi se desenvolvendo gradualmente até que, no fim do século XVIII, concretizou-se sob a forma de modinha. Após a chegada da música gravada e a propagação dos meios de comunicação em massa, a canção, em seus diferentes formatos, foi tomando um espaço hegemônico da música popular. E a voz exerce um papel fundamental nessa hegemonia. “A produção passa a privilegiar a canção, gênero em que se pode criar uma identificação narrativa entre produtor e ouvinte, em que, como no romance, cada canção pode ser sobre você mesmo. Se a música instrumental é um tema em aberto para qualquer vida, a canção é um mundo de que nos apropriamos como se fosse nosso”, escreve Fred Coelho, no artigo A voz na canção popular – Apontamentos e hipóteses. Dois fatos históricos dão a dimensão da centralidade da voz na música popular. Em 1927, já eram contados mais discos gravados com canções do que instrumentais. Em 1950, a Rádio Nacional tinha como contratados fixos 160 instrumentistas, 90 cantores e 15 maestros – conforme registrado por Ruy Castro em Chega de saudade. Impulsionada pela Era de Ouro do rádio (quando, devido ao sistema de captação de áudio em dois canais, o cantor destacava-se pela sua potência vocal, o famoso “dó de peito”), a voz foi alçada a um patamar icônico, demarcando espaços culturais, estéticos, políticos. Pensemos na imponência de nomes como Carmen Miranda, Dalva de Oliveira, Elizeth Cardozo, Ângela Maria e, posteriormente, Elis Regina, Maria Bethânia. Ou, em seus contrapontos: o grão da voz na fragilidade de Nara Leão, no sussurro intimista de João Gilberto. As suas posturas desdobradas em um campo imagético de capas de discos, fotografias, cenários, figurinos a construir um imaginário coletivo que, por sua vez, sublinha normas, práticas e ideologias – o que é uma cantora, o que é uma boa voz, um bom canto, entrelaçado, sempre, por disputas políticas de gênero. Em um depoimento sobre o compositor piauiense Torquato Neto (gravado por Caetano Veloso,


VOZ-RUÍDO

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1 ROY HART Ator sul-africano utilizava técnicas vocais expandidas JUÇARA MARÇAL 2 Em seus álbuns, cantora faz experimentações com pedais ISABEL NOGUEIRA 3 Musicóloga transforma a voz a partir de várias técnicas, como colagens e loops

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Gilberto Gil, Maria Bethânia, Jards Macalé, entre outros), Tom Zé propõe: “Não cantar apagava a visibilidade de Torquato, na fase em que se instaurava com mais força o cantor-imagem”. Ao mesmo tempo em que esse modelo do cantor-imagem e da voz-imagem predominam (do rock ao pop, do sertanejo à ópera), a música contemporânea engendra linhas de fugas. Em 1935, o alemão Alfred Wolfsohn já desenvolvia, em seu centro de pesquisas, técnicas vocais expandidas, posteriormente incorporadas a peças de performance, música, dança e teatro de vanguarda – caso do ator sul-africano Roy Hart, na ópera Oito canções para um Rei Louco, e do diretor polonês Jerzy Grotowski,

em Akropolis. Com a emergência de dispositivos eletrônicos, artistas enxergam novas possibilidades na manipulação da voz, explorando uma escuta nômade, desterritorializada. O compositor francês Christian Cloizier, cofundador do Grupo de Pesquisas Musicais de Bourges, em 1970, indicava: “A voz não é mais palavra ou canto; é tudo que sai da boca, tudo que é fraco demais para sair e que se pode tomar por microfones de contato, é a voz natural no espaço acústico, a voz sonorizada, a voz registrada, manipulada. Essas vozes, essas cores constituem nosso meio ambiente sonoro permanente, tomam corpo com a nossa cultura. Não existe mais uma voz, mas vozes”.

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O Brasil passa por um momento singular nesse contexto, com uma série de trabalhos recentes expandindo a concepção e a utilização da voz, deslocando-a de seu posto figurativo do canto. A musicóloga, performer e compositora gaúcha Isabel Nogueira lançou dois trabalhos este ano: Voicing, solo, e Lusque fusque, com o coletivo Medula. As obras propõem a imersão em uma “voz-som, vozsentido, voz-ruído”, uma confluência de vozes que se transformam em meio a bits e ondas eletromagnéticas em um espaço-tempo estendido. “Através de colagens, prolongamentos, sobreposições, uso de loops, uso de recursos nos quais a semanticidade da palavra deixa de ser seu sentido primordial, pretendese criar camadas de sentido em que deixa de ser perceptível uma unicidade da voz e suas associações com gêneros ou contextos sociais”, aponta Isabel. Integrante do Medula e colaborador em diferentes trabalhos de Isabel Nogueira, Luciano Zanatta explica que Lusque fusque trabalha com e no limiar da canção para, no fim, reinventála. “O disco parte de ter a voz, de ter alguma linha estrutural, mas que dialoga com ruído e com quebra de arranjo. É pegar vários paradigmas da canção – seja predominância da voz, inteligibilidade do texto, organicidade do arranjo, padrão de afinação, padrão de harmonia – e inserir um contexto musical que mostre, por exemplo, que aquela ideia de afinação, os 12 tons, a escala temperada etc. – não é tão rígida. A gente usa outro modelo. A gente foi pensando em pegar os limites dos conceitos e fazer com que a matéria musical fizesse o limite se contradizer. Tiramos tudo aquilo que parecia caracterizar uma canção, mas aquilo segue sendo uma canção”, afirma Zanatta. Os últimos trabalhos de Lilian Campesato também trazem uma exploração importante da voz. Em O estranho – apresentada ano passado, no Festival Internacional de Música Experimental (FIME) em duo com Fernando Iazzetta tocando eletrônicos –, a voz do dramaturgo e diretor teatral Antonin Artaud é que deflagra o espaço


FOTOS:REPRODUÇÃO

Sonoras 4

GRAVAÇÕES

VOZES PIXELADAS Desde os trabalhos do Kraftwerk, nos anos 1970, e as produções de Giorgio Moroder, na era da disco music, nos anos 1980, a música pop também tem assimilado explorações diversas da voz. Nos anos 2000, a cantora islandesa Björk criou um mundo de sons novos até mesmo para ela. Concebido durante um ano e meio com o engenheiro de som Valgeir Sigurdsson, Medúlla (2004) utiliza a voz como única fonte sonora – exceto por um gongo, piano e efeitos eletrônicos pontuais. Grunhidos, respirações e acrobacias vocais surgem em diversas faixas, como em Ancestors, na qual ela utiliza a técnica dos esquimós inuítes de canto polifônico com a garganta (throat singing). Na atualidade, Kanye West vem sendo uma peça-chave na concepção da voz como um instrumento por si só, para além do canto. Ele mostrava ideias ousadas já em seu primeiro disco, Colleage Dropout (2005). Jesus Walks, o single principal do álbum, era sustentado por um sample da música Walk with me, do The ARC Choir, com os vocais criando a melodia, o ritmo e a linha de baixo. Em 808’s & Heartbrakes, Kanye, pouco notável pela sua habilidade de cantar, na verdade canta em todas as faixas do disco. Ele o faz com o uso do auto-tune, um software de áudio que utiliza uma matriz sonora para corrigir os tons. Porém, em vez de usá-lo como um “corretivo”, Kanye faz dele um recurso expressivo, assim como um pedal de distorção serve para

uma guitarra. Em faixas como Say you will e Heartless, a voz dele fica entre o orgânico e o robótico. Em Runaway, do seu aclamado My beautiful twisted dark fantasy, ele usa um vocoder de modo a fazer com que sua voz soe como uma guitarra distorcida – mas ainda assim reconhecível. O californiano Frank Ocean levou as experimentações de Kanye a um novo patamar em Blond, seu aguardado segundo álbum, lançado no fim de agosto. Em parceria com um vasto time de produtores (incluindo o venezuelano Arca e o inglês James Blake), Ocean processa sua voz com auto-tune e alterações de pitch, assim como o rapper. Mas os arranjos atmosféricos e texturais, repletos de espaços vazios e reverberações fornecem um ambiente de dubiedade à voz, que soa fluida e deslizante – como no single Nikes e Futura free, que encerra o disco de forma dramática. Trata-se não mais do “grão da voz”, como dizia Roland Barthes, indicando o “corpo na voz, o toque”. A digitalização do processo de produção nos leva a pensar naquilo que o pesquisador pernambucano Thiago Soares chama de “pixel da voz”, que rompe com as premissas de que existiria uma voz “natural” e outra “processada”, uma vez que a constituição de uma voz “natural” é possível de ser criada também nos softwares. A voz passa a ser a metamorfose do corpo que canta. GGABRIEL ALBUQUERQUE

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contraditório entre o significado das palavras e a forma como são ditas na tentativa de produzir “o espaço do outro, do louco”. Mais impactante ainda é o solo vocal Fedra – apresentado no Encontro Nacional dos Compositores Universitários, em novembro de 2014, e no ano seguinte no FIME. O mote é a agonia suicida da figura de mesmo nome da mitologia grega. A peça “recria por meio de sons fisiológicos, sons da respiração, sons guturais, um espaço íntimo que é compartilhado com os ouvintes como algo familiar. Nesse caso, o ruído não reside apenas nas qualidades acústicas da voz, mas naquilo a que ela remete”, descreve Lilian. Seguindo o próprio conceito de ruído (além de performer, ela é pesquisadora na área de música experimental e arte sonora), persiste ao lidar com os extremos da dor, do corpo, dos equipamentos, da própria noção de arte. “Era simplesmente tentar buscar esses sons internos, minha história, no meu corpo. Quase uma psicanálise reversa. O que está por trás desses sons todos, dessas angústias? É um pouco o que eu vou tentar fazer com Fedra”, conta Lilian. “Tem uma coisa na história de Fedra que me interessa muito, que está presente na ambiguidade presente na produção desses sons. Por exemplo, tem um sexismo que a história de Fedra traz, que eu como mulher coloquei a minha emissão vocal ali, pensando nesses lugares da voz feminina. Muito a ver com momento de tensão, de medo. Tem momentos que é um gozo, tem momentos que é afirmação de mim mesma, tem momentos que é uma angústia muito grande de um lugar que é presente no universo feminino, momentos em que a minha voz está nesse lugar da angústia por uma inferioridade que depois passa para a extroversão absoluta da voz.” A paulista Juçara Marçal é outra criadora fundamental neste cenário, certamente o nome mais popular. Passando pelo grupo vocal Vésper, a banda semiacústica A Barca e os experimentos na forma-canção afro-brasileira no Metá Metá, Juçara mergulhou radicalmente em experimentações com pedais e


INDICAÇÕES METAL

WILL2KILL Will2Kill Independente

Veteranos da “música pesada”, os pernambucanos Wilfred Gadêlha (vocal), Hugo Medeiros (guitarra), Eddie Cheever (baixo) e Daniel Araújo Melo (bateria) unem técnica e agressividade sonora no EP homônimo Will2Kill. Apesar de ser uma estreia do projeto, o álbum traz a história do metal em sua essência, no estado, com as participações de membros e ex-integrantes de bandas como Desalma, Sanctifier, Cangaço e Rabujos. O grupo também é um dos incentivadores do gênero, divulgando bandas, promovendo encontros e debatendo temas afins.

JAZZ

LETIERES LEITE E ORKESTRA RUMPILEZZ A saga da travessia Selo Sesc

Há 10 anos como expoente no cenário da música instrumental, a Orkestra criada por Letieres Leite condensa as raízes rítmicas afro-baianas com a modernidade do jazz, utilizando instrumentos de percussão e sopro em seu mais recente trabalho: A saga da travessia. Em oito faixas, a big band composta por 15 músicos de sopro e quatro percussionistas evoca trajetórias e tragédias dos povos africanos. Letieres reforça aqui as suas referências histórico-musicais.

5

4 BJÖRK Em Medúlla, artista utiliza voz como principal instrumento de seu álbum de 2004 MEDULA 5 Coletivo de Porto Alegre quebra vários paradigmas relacionados à canção

improvisação a partir da voz – particularmente notáveis nos álbuns Abismu (com Kiko Dinucci na guitarra e Thomas Harres na bateria) e Anganga (com o produtor noise carioca Cadu Tenório). Ela intensificou essas ideias com o projeto Nós da Voz, no qual se apresentou semanalmente em sessões de improvisação com um grupo de artistas diversos – incluindo a cantora Ava Rocha, o rabequeiro e saxofonista Thomas Rohrer, o baterista Sergio Machado, além dos já citados Kiko Dinucci e Cadu Tenório, entre outros. “Esse processo de tornar-se envolto na sonoridade do barulho

vem com o Metá Metá”, conta Juçara. “Você descobre outras maneiras de usar a voz, ou mesmo o berro. Acho que é até um caminho natural usar o grito a partir dessa ideia de tela vazia para criar sons com sua voz, e não apenas interpretar uma canção.” Sem ignorar suas devidas particularidades, pensar esses trabalhos como um diálogo dentro de uma perspectiva histórica é uma preocupação constante. Outros regimes de significação, outras experiências estéticas, as possibilidades sensíveis nas narrativas vertiginosas e não lineares. É ainda, como reforça Isabel Nogueira, “uma atitude política. Questionar os papéis e modificar a música, um lugar, as pessoas, de forma que esse questionamento possa ir para outras coisas”. Tratase, enfim, de alteridade. Além do canto, produzir e escutar não a voz, mas as muitas vozes.

MANGUEBEAT

FUNK

Independente

Independente

PÁCUA E VIA SAT Ramalhete Após seis anos sem lançamento de inéditas, a banda Via Sat – integrante do movimento Manguebeat, que virou a música pernambucana de cabeça para baixo nos anos 1990 – quebra o jejum com Ramalhete. São 15 canções para falar de amor, misturando ritmos como funk, soul, rap, coco, maracatu e punk. O álbum conta com participações especiais de Toca Oga, Gilmar Bola Oito, Marcos Axé, Willy Boy e Valdi Afonjah, nomes importantes da música produzida em Peixinhos (Olinda).

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MADIMBOO Candeia A música Candeias, composta por Edu Lobo, concebida há 50 anos durante um verão que ele passou em Pernambuco, está presente no primeiro álbum de Caetano Veloso. Meio século depois, a Madimboo grava seu primeiro EP num verão na praia de Candeias, litoral sul de Pernambuco: o Candeia. Artur Dantas (vocal e programações), Felipe Rodrigues (guitarra) e Thiago Duarte (bateria), ambos da banda de Johnny Hooker, compuseram o disco durante a turnê de Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito, do pernambucano.


CON TI NEN TE

Criaturas Tom Zé

por Baptistão

No dia 21 de abril de 2002, após realizar um acachapante show no Abril Pro Rock, Tom Zé sofreu um enfarte, de tanta felicidade. Naquela noite, recebia do público - de pura empatia - mais uma amostra do reconhecimento de seu talento. Felizmente se recuperou e, neste mês, chega aos 80 anos, lançando seu 28º disco, Canções eróticas de ninar, e cantando joias, como as do Estudando o samba (1976), e ensinando a música.

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# 190

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E MAIS: RADUAN NASSAR LANFRANCO JR. PEDRO WAGNER A TV NA INFÂNCIA

O ELO ENTRE MÚSICA E ARTES VISUAIS

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