Continente #191 - Refugiados

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# 191

REFUGIADOS PESSOAS COM VIDAS EM RISCO BUSCAM NO BRASIL UM NOVO LAR

#191 ano XVI • nov/16 • R$ 13,00

CONTINENTE NOV 16

ALBERTO MUSSA | PABLO LARRAÍN | CAIO FERNANDO ABREU | XAVIER DOLAN




Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

novembro e dezembro

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco

2016

Seguindo com a programação musical do Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco, os meses de novembro e dezembro trazem novos nomes da música brasileira nas mais diferentes tendências e estilos.

ROMERO FERRO 05/11 • SÁBADO• 17h

DJAMBÊ 12/11 • SÁBADO• 17h

BARBARA EUGÊNIA 26/11 • SÁBADO• 17h

ARRANHA CÉU QUARTETO 10/12 • SÁBADO• 17h

ROGERIO SAMICO 19/11 • SÁBADO• 17h

PATROCÍNIO

PRODUÇÃO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

APOIO

Ouvindo e Fazendo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sáb e dom 14h as 17h

REALIZAÇÃO

MINISTÉRIO DA CULTURA


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GILVAN BARRETO

aos leitores Nas recentes Olimpíadas, chamou atenção do público um pequeno grupo de 10 atletas que não empunhavam a bandeira de seus países, mas a do Comitê Olímpico Internacional. Isto porque, por guerras e violações políticas e humanitárias, eles tiveram que deixar seus lugares e se refugiarem em outros países. Havia entre eles sírios, congoleses, sul-sudaneses e um etíope. A situação de refúgio tem sido uma preocupação mundial, entre outros fatores, pela vulnerabilidade a que são expostos essas pessoas e pela pressão exercida sobre os países que as acolhe. Nada é fácil, neste caso. Qual a situação do refúgio no Brasil? De onde nos chegam mais pedidos de asilo? Por que nos escolhem para pedir acolhida? Essas foram algumas das perguntas para as quais buscamos respostas na reportagem especial deste mês, realizada num dos estados que mais concentra refugiados no país, o Rio de Janeiro, pela repórter Suzana Velasco e pelo fotógrafo Gilvan Barreto. Além de dados, buscávamos, sobretudo, histórias de vida, encontrar entre aqueles indivíduos os motivos que os trouxeram aqui e como eles têm se adaptado a uma cultura diversa.

O que primeiro impacta nesses encontros é a clareza da circunstância de vida ou morte em que todos se encontravam quando fugiram de suas casas, o perigo iminente de ataque e violação, que muitos de nós só experimentamos nos piores pesadelos. Diferentemente do migrante, o refugiado não tem muita opção, vai para onde é possível. Esse foi o caso da gambiense Mariama Bah, que tem parte de sua história contada nas páginas a seguir, que entrou num navio sem saber para onde iria, apenas com a vontade de viver. Quando as pessoas fogem de seus países, elas não apenas se despojam de casas, empregos, bens. Muito pior. Elas se privam das pessoas que amam e de si mesmas. Deixam para trás pais, maridos, esposas, filhos; abandonam lugares e profissões, passam de engenheiros, agrônomos, médicos ao que for possível. A partir desses e de outros relatos, percebemos que o fato de estar vivo e poder transformar tudo perdido em algo novo é o que sustenta essas pessoas. Então, por pouca que seja a aproximação com elas através de uma reportagem, ouvi-las e percebê-las nos traz o ânimo da vida e a necessidade do desapego. Para nós, isso já é um feito.


sumário Portfólio

Cerâmica do Cabo

6 Colaboradores

7 Cartas

8 Entrevista

+ Continente Online + Expediente

Alberto Mussa Escritor carioca comenta o trabalho de seleção e reescritura de seus contos para coletânea recém-lançada

18 Balaio

Bob Dylan Após duas semanas de polêmicas, músico, enfim, se pronuncia sobre Nobel de Literatura

34 Conexão

Lixo virtual Armazenamento de informações lançadas nas nuvens é hoje um dos maiores consumidores de energia do planeta

58 Cardápio

TV Canais abertos e fechados oferecem programas em que a culinária é protagonista

70 Entremez

Ronaldo Correia de Brito A vlogueira Kéfera Buchmann e a narradora Karen Blixen

72 Leitura

Grupo de artesãos do Cabo de Santo Agostinho trabalha em olaria, produzindo peças decorativas e utilitárias que aliam as formas da tradição às do design atual

12

Caio Fernando Abreu Encontro literário em São Paulo homenageia este mês o escritor gaúcho, que teve em sua narrativa confessional um trunfo

78

Matéria Corrida José Cláudio Letras e arte

80 Visuais

Arquitetura Projeto para escola no Coque, desenvolvido por arquitetos com a comunidade local, está na Bienal de Arquitetura de Veneza

84 Palco

Circo Em sua 12ª edição, festival circense adota formato de bolso e oferece espetáculos por vários locais do Recife

88 Criaturas

Marieta Severo Por Mario Alberto

Tradição Dominó

Camaradagem e descontração marcam as partidas e torneios desse jogo popular, clima vivido não apenas pelos jogadores, mas pelos que assistem às jogadas ao redor da mesa

44 CAPA FOTO Matheus José Maria

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Capa

Viagem

Contingente de asilados no Brasil é pequeno, se comparado a outras regiões, mas o drama vivido pelos que aqui pedem ajuda se assemelha ao de todo mundo

Cidade japonesa nos traz a vertiginosa sensação de descolamento do presente e transporte para um futuro distópico e superpopuloso, carregado de neon

Claquete

Sonoras

Diretor chileno, conhecido por obras de crítica à ditadura de Pinochet, lança agora duas cinebiografias, uma sobre Pablo Neruda, outra sobre Jacqueline Kennedy

Sem apresentações em Olinda em 2015, festival de música volta à cidade, com shows gratuitos de grupos multiétnicos e sofisticados musicalmente

Refugiados

20

Pablo Larraín

50

Tóquio

38

Mimo

64

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Nov’ 16


colaboradores

Gilvan Barreto

Mariane Morisawa

Suzana Velasco

Thiago Soares

Fotógrafo. Seu trabalho foca em questões políticas, sociais e na relação do homem com a natureza

Apaixonada por cinema . Vive a duas quadras do Chinese Theater em Hollywood e cobre festivais

Jornalista e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Autora de livro sobre a imigração na Europa

Jornalista, professor e pesquisador do curso de Comunicação da UFPE, com interesse pela cultura pop

E MAIS AD Luna, jornalista. Daniela Nader, fotógrafa. Helia Scheppa, fotógrafa. Márcio Bastos, jornalista, atua como colunista e crítico teatral do Jornal do Commercio e no blog Terceiro Ato. Mário Alberto, ilustrador e cartunista desde a década de 1990. Atua no portal GloboEsporte.com, em que mantém a sua produçãocalcada no humor gráfico. Matheus José Maria, jornalista, dedica-se ao fotojornalismo e à fotografia documental. Rodrigo Casarin, jornalista, mantém UOL o blog de literatura Página Cinco. Samarone Lima, jornalista, poeta e escritor, autor de O aquário desenterrado e A invenção do deserto. Yellow, designer e músico.

DESLOCAMENTOS

PORTFÓLIO

Aproveitando a temática da matéria de capa, trazemos no site algumas discussões em torno da imigração, tema correlato à questão dos refugiados. Oferecemos a introdução e o primeiro capítulo do livro Imigração na União Europeia: Uma leitura crítica a partir do nexo entre securitização, cidadania e identidade transnacional , da nossa colaboradora Suzana Velasco. Além disso, confira o minidocumentário Novos migrantes no Rio de Janeiro, realizado pelo canal Futura, e também o trailer de On the bride’s side, documentário feito pela Al Jazeera sobre a questão dos refugiados.

Conheça outras peças desenvolvidas pelos artesãos da Comunidade Produtora Cerâmica do Cabo, que mesclam a tradição dos antigos oleiros com o design contemporâneo.

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PALCO Leia as entrevistas com Eduardo Moreira, do Grupo Galpão, e com Sérgio de Carvalho, da Cia. do Latão, grupos que estarão no Festival Recife do Teatro Nacional, este mês.


cartas

EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO DIVULGAÇÃO

GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara

DO FACEBOOK

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

MÚSICA E ARTES VISUAIS

Antônio Carlos Figueira

Pessoal, estou muito feliz por mais uma vez estar saindo em uma matéria na Continente, revista à qual eu tenho muito respeito e admiração. Dessa vez, a alegria é tripla, pois fui convidado para uma entrevista, logo em seguida fui convidado para ilustrar a capa da revista e a capa é meu autorretrato!!!! Obrigado a Débora Nascimento e à revista #Continente pelo reconhecimento do meu trabalho!

COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

NEILTON CARVALHO RECIFE–PE

Não quero ser chato, mas toda essa galera dando parabéns a Neilton Carvalho por aparecer na capa de uma excelente revista de arte e cultura me deixa um pouco entediado. Não é de hoje que Neilton Carvalho é uma celebridade. O reconhecimento disso é dado pela própria revista, quando lista de início os exemplos de artistas do mundo da música que se destacaram também no mundo das artes plásticas. Ainda que os nomes possam superar o dele em fama e tempo de carreira, e mesmo em saldo de conta bancária, nenhum deles poderia superá-lo em talento, sobretudo considerando as diferenças sociais e econômicas. Neilton Carvalho é genial no sentido da palavra. Eu não vou parabenizar Neilton por isso, por mais que eu respeite a sua felicidade com a publicação da revista. Eu vou parabenizar a revista Continente por ter se dado conta da importância que o trabalho de Neilton Carvalho tem para a arte no Brasil e no mundo. Afinal, alguém vai

dar parabéns ao Bob Dylan porque ele saiu na capa da Rolling Stones? Ou ao Joe Satriani porque a Guitar Players fez uma matéria sobre ele? Então... com Neilton Carvalho acontece o mesmo. CLAUDIO PEDROSA RECIFE-PE

Astral maravilha total em participar de mais uma matéria de capa da revista Continente “O elo entre música e artes visuais”, dessa vez compartilhando um pouco das minhas grafias lombrísticas lo-fi no campo do desenho e da pintura. Na matéria tem muita gente boa que vem produzindo nessas duas áreas. A revista já está nas bancas com essa capa peso ululante de Neilton Carvalho. ZECA VIANA

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Erika Muniz, Maria Luísa Falcão e Marina Moura (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br

RECIFE–PE ATENDIMENTO AO ASSINANTE

Neilton nos engrandece com sua arte, com seu talento para além das guitarras e com seu feeling criador !!!!! KLEBER MAGRÃO RECIFE-PE

0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se

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ALBERTO MUSSA

“A literatura precisa se libertar da teoria” Escritor, que acaba de lançar uma coletânea de seus contos, fala sobre sua produção de textos curtos e dos seus romances, apontando mudanças na sua forma de narrar TEXTO Rodrigo Casarin

CON TI NEN TE

Entrevista

“Coleção de todas as minhas narrativas curtas que podem ser lidas de maneira autônoma, livres de qualquer contexto”, que contém contos e “histórias que estão inseridas ou que são desmembráveis de três dos meus romances”, sendo que “todos os textos sofreram revisões mais ou menos profundas; e alguns chegaram a ser completamente reescritos, mudando até de título”. É assim que Alberto Mussa define Os contos completos, seu livro mais recente, lançado pela Record – as palavras acima foram retiradas da própria apresentação da obra. Um dos autores mais originais do país, enaltecido por aliar ficção e historiografia de maneira primorosa, mostrando que uma mesma história pode ter uma infinidade de pontos de vista, sempre permeados pelas referências e influências culturais, não surpreende que a reunião de textos breves de Mussa seja mesmo diferente das coletâneas convencionais. Esse

novo trabalho, elaborado a partir de textos antigos, norteou a conversa do escritor com a Continente. CONTINENTE Você acaba de reescrever, reeditar ou ao menos reler as suas narrativas breves para publicar Os contos completos. Algumas perguntas parecem inevitáveis em qualquer entrevista com você, como as que tratam de mitologia ou história do Brasil, por exemplo – responder novamente a uma mesma pergunta é uma chance de reescrever as próprias opiniões, de modo semelhante ao que fez no novo livro? ALBERTO MUSSA Algumas perguntas são recorrentes. Nunca fiz essa pesquisa, talvez o que eu dizia em 2004 para algumas questões se mantenham, mas para outras sempre tento dar uma forma nova à resposta. Falando do livro, nem todos os contos sofreram um processo de reescrita, foram mais os que estavam no Elegbara, que saiu em 1997, tem quase 20 anos.

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CONTINENTE Por que mexer com mais afinco especificamente nos contos do Elegbara? ALBERTO MUSSA Eu ainda era inexperiente, então tinha uns finais muito abertos, algumas frases muito sofisticadas, quase incompreensíveis. Alguns contos eu achava muito herméticos, aí tentei criar uma versão que fosse mais fechada para o entendimento do leitor. Cada vez mais acho que a narrativa precisa contar uma história, ser compreendida. Talvez, em 1997, eu ainda tivesse resquícios da formação acadêmica em Letras. Hoje, percebo que quanto mais afastada das teorias literárias, mais sincera é a literatura. O escritor que estuda teoria literária para escrever acaba dependente do conhecimento dos teóricos. O público geral, por sua vez – o médico, o mecânico, o jornalista –, que frequenta a livraria, não é especializado. Todo mundo lia até os anos 1980 e um dos fatores para


TOMAS RANGEL/DIVULGAÇÃO

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a redução da leitura, creio, foi essa prevalência do pensamento acadêmico dentro do meio literário, que torna o texto muitas vezes incompreensível para boa parte das pessoas. A arte não tem nenhuma obrigação de refletir sobre ela, a arte é a arte, não precisa ser meta artística. Na academia, reflete-se sobre a arte. A literatura, hoje, para se recuperar, precisa se libertar da teoria. O trabalho do escritor precisa ser livre, espontâneo. Então, o Elegbara se ressentia um pouco dessa carga, agora tentei amenizar esse problema.

eram tratados quase como animais, os índios, não. Já no século XX, com o desenvolvimento da cidade, como o índio ficou afastado e chegou até a ser considerado um obstáculo para o desenvolvimento do Brasil durante a ditadura, um representante do atraso completo, aliás, ideia que domina até hoje, o negro passou a ganhar mais espaço e respeito, ainda que não esteja no patamar ideal. Então, as posições se inverteram. Atualmente, há um completo desinteresse com relação

Entrevista

JEAN BAPTISTE DEBRET/REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

questão árabe-judaica. Era um universo completamente diferente para mim, tive que estudar bastante, aprendi coisas novas e gostei do resultado. Mas tem uns de que não gosto mesmo. Um de que até gostava muito quando escrevi, mas passei a odiar é o A primeira comunhão de Afonso Ribeiro. Ele tem uma interpretação de textos de 1500 que, depois que estudei um pouco melhor as culturas tupis, passei a discordar, então, passei a discordar também do que escrevi, havia outra interpretação para a questão canibal que abordo ali.

CONTINENTE Mas, se teve essa mudança de visão com relação a esses textos, ao revisitar outros, com certeza você se deparou com algumas surpresas positivas, não? ALBERTO MUSSA Cada vez eu gosto mais dos meus romances do que dos meus contos, embora muita gente prefira o contrário. Gosto de alguns contos como Encruzilhada na Ladeira do Timbau, que é uma história que escrevo de um jeito um pouco diferente da maneira que geralmente faço. Ali tem uns ecos leves da linguagem de botequim, do morro… Isso surgiu espontaneamente, então nem quis mexer, não sei se conseguiria fazer outro parecido. Gosto também do De canibus questio, que é bem cerebral, escrevi para uma coletânea sobre a

CONTINENTE Em seus escritos, aliás, tanto em contos quanto em romances como A primeira história do mundo, você lida com questões relacionadas aos índios de uma forma bastante interessante e respeitando as peculiaridades de cada tribo, povo ou etnia. Acha que normalmente falta esse tratamento estético apurado, não infantil ou acadêmico, quando os indígenas são retratados em nossa arte? ALBERTO MUSSA Eu acho, sim. É muito interessante a evolução da literatura brasileira e a relação com as culturas indígenas e negras. No século XIX, o que estava na moda eram as culturas indígenas, que tinham uma aceitação melhor do que as culturas africanas; essas praticamente não existiam na literatura. Os negros

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ao índio. Uma vez, conversando com uma pessoa inteligentíssima, gente da elite cultural brasileira, que não revelarei o nome, estava comentando sobre essas questões e ele falou “qual o interesse que pode haver na cultura indígena?”. Isso mostra o desconhecimento completo, como se as histórias fossem banais, como se as culturas indígenas fossem todas iguais e uma noção de que eles não pertencem ao Brasil. Esse é um problema seríssimo de rejeição do índio na cultura brasileira. O escritor indígena, por exemplo, só tem aceitação se escrever para criança. E uma imagem que fez muito mal é a do Macunaíma, de Mário de Andrade. Acho um livro


bobo, infantil, uma reprodução de estereótipos que não prosperou literariamente. A imagem do índio ali é essa, um pastiche, uma grande caricatura. Em Macunaíma, em vez de se aprofundar na questão do caráter do brasileiro – o que poderia ter feito com propriedade, porque o trabalho de pesquisa foi respeitável, bebendo em fontes originais para colher os mitos –, Mário se limitou em fazer uma interpretação estereotipada. CONTINENTE Em Decompondo uma biblioteca, você fala que a descoberta da literatura africana foi uma das mais importantes da sua vida. Por quê? É uma literatura que ainda precisa ser descoberta de fato pelos brasileiros? ALBERTO MUSSA Ali, havia um universo inteiro para conhecer. Comecei a ler os africanos no final dos anos 1970, quando entrei na faculdade, e vi um universo espetacular. Uma linhagem da literatura africana é a das guerras de independência, da presença colonial, o romance social no sentido clássico, tendência forte nos países lusófonos, principalmente. Na África de língua inglesa, por outro lado, há uma literatura que aborda a África mais tradicional, com autores que nasceram em determinadas etnias, foram estudar, aprenderam a língua do colonizador e a utilizaram para escrever sobre o confronto dessas duas formas civilizatórias ou apresentar a mitologia do seu povo, registrar o tradicional, em um romance moderno. Nunca tinha pensado nisso antes, mas pode ser que ali tenha ficado latente a influência para o que eu vim fazer depois. Nessa época, eu nem pensava em ser escritor, estava estudando Matemática ainda. Deparar-se com um tipo de universo totalmente diferente do seu é algo que sempre busquei. Poder entrar em um mundo que fisicamente não se pode viver é uma experiência que só o romance pode dar. Coisas que podem soar naturais para algumas culturas, podem não ser para outras. Há culturas que aceitam a tortura e a pena de morte, mas não toleram a cadeia, o encarceramento, por exemplo, do mesmo jeito que

rejeitamos o canibalismo, mas outras aceitam ou aceitavam. CONTINENTE No mesmo texto, você define que contistas lidam com um gênero “mais intelectual” do que os romancistas. Por quê? A versão mais intelectual de você mesmo é o Mussa contista? ALBERTO MUSSA O Mussa contista é o Mussa anterior a essa fase. Duas professoras que conversaram comigo não aceitaram que eu divida minha própria obra em fases, mas eu o faço, não sei se corretamente, mas

“No século XIX, o que estava na moda eram as culturas indígenas, que tinham uma aceitação melhor do que as culturas africanas; essas praticamente não existiam na literatura. O negros eram tratados quase como animais, os índios, não”

de acordo com o que eu penso da escrita. O enigma de Qaf e O movimento pendular foram muito intelectuais, com estrutura toda matemática, pensada e dosada para cumprir finalidade preestabelecidas. São romances, mas compostos por contos, se você observar a estrutura interna deles. Ali está a ideia da matemática, da biblioteca do (Jorge Luis) Borges. Quando eu dei um intervalo entre os romances O movimento pendular (2006) e O senhor do lado esquerdo (2011), só fiquei fazendo alguns contos sob encomenda e trabalhei em O meu destino é ser onça. Então, quando fui escrever O senhor do lado esquerdo, tinha me afastado do formato de O movimento pendular. Aí voltei a uma forma que não deixa de ter um planejamento,

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mas consegui, principalmente nos meus dois últimos livros, ser mais espontâneo. Não precisava ter número certo de capítulos ou divisões com teoremas, esses esquemas que eram uma âncora para conseguir escrever. Como esses últimos livros são romances um pouco mais livres, e acho que menos intelectuais, também me senti mais livre O conto exige mesmo do autor. Do romance, pela própria extensão, é sempre mais fácil de se extrair algo. Um conto ruim, por sua vez, não existe, ele precisa ser bom, independentemente da fórmula. Mesmo que não tenha o impacto do (Guy de) Maupassant ou o nocaute do (Julio) Cortázar, ele precisa ser bom. No conto, toda frase e informação servem pra narrativa, já no romance pode ter coisas nem tão interessantes assim. Então, o conto é mais sofisticado. Agora, uma coisa impressionante é que acabei de lançar Os contos completos, mas os dois romances que tinha publicado antes continuam vendendo mais do que este. Perguntei para dois livreiros amigos as razões disso e eles disseram que as pessoas têm resistência a comprar livros de contos. É estranho, porque é um gênero que se adequa à realidade das pessoas de hoje, já que textos menores teoricamente podem ser lidos mais rapidamente. Além disso, talvez o conto seja o único gênero realmente universal, já que o romance é algo ocidental, europeu, mas os contos aparecem em tradições do mundo inteiro, inclusive na literatura oral. CONTINENTE Para encerrar, Mussa, uma curiosidade: com toda a sua relação com os livros, como lida com a leitura digital? ALBERTO MUSSA Não lido. Tenho uma resistência muito grande, porque eu ando com meus livros. Se fico na fila do banco, leio uma página. Vou tomar café da manhã, levo meu livro. E o digital não tem o conforto que a tecnologia do livro me oferece, de anotar, voltar numa marcação, interagir com o objeto. A vantagem do livro digital é o armazenamento, sem dúvida, mas o livro físico é muito interativo. O livro físico é muito moderno.


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CON TI NEN TE

Portfólio

Cerâmica do Cabo

TRADIÇÃO E TECNOLOGIA EM DIÁLOGO TEXTO Erika Muniz FOTOS Daniela Nader

A tradição secular das olarias no Cabo de Santo Agostinho se renova nas mãos de

14 artistas da região. A matéria-prima que outrora era convertida em telhas, tijolos e cumbucas para a demanda local, ganha no Centro de Artesanato Arquiteto Wilson Campos Júnior novas dimensões formais e estéticas e conquista, além de novos territórios, mercados fora do município. Na contramão da atual reprodutibilidade dos produtos de consumo, peças feitas à mão, em geral, despertam uma espécie de afetividade e zelo. É preciso tempo e dedicação para que cada uma seja feita. Nas obras de barro, o acabamento natural enaltece esse caráter único, seria como as “impressões digitais” da peça. O uso de cerâmica torna viáveis essas idiossincrasias e talvez a proximidade com o humano – no que pode ter de único e diferente – seja um dos motivos para esses objetos despertarem fascínio. No caso da Comunidade Produtora Cerâmica do Cabo, a matéria-prima de alta qualidade oriunda de Suape contribui para que as irregularidades sejam mínimas, e os artesãos usufruem disso. “De uma forma geral, as pessoas que trabalham com o barro pintam as peças da mesma cor, para esconder imperfeições”, afirma Tibério Tabosa, coordenador executivo do projeto. O formato das peças fica na interseção entre conhecimentos dos antigos oleiros com conceitos do design contemporâneo. Apesar das várias identidades artísticas no mesmo local, é perceptível um diálogo formal entre as obras.

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O diferencial dos produtos desenvolvidos pelo grupo garantiu o prêmio Sebrae Top 100 de Artesanato

Nestas páginas 2 MESTRE NENA

lém de ensinar A às novas gerações, ele experimenta novas técnicas

VASO CABEÇA 3 Peças de Geisson Martins são torneadas com acabamento natural


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CON TI NEN TE

Portfólio

Nos anos 1990, a crescente escassez de barro (por conta da urbanização de Suape) e a queda na demanda dos produtos – nessa época predominava a produção de filtros de água – fizeram com que os ceramistas procurassem o Sebrae e, posteriormente, em 2003, firmassem parceria com o laboratório O Imaginário, do departamento de Design da UFPE. Essa união fomentou uma revalorização das peças e a aquisição de um espaço físico, o Centro de Artesanato Arquiteto Wilson Campos Júnior, cedido pela Prefeitura do Cabo. O local foi planejado a partir das etapas do trabalho com o barro (da preparação da massa à sua queima) e possibilita a troca de conhecimento durante os processos de execução e experimentação. Ali, Mestre Nena, que aprendeu muito jovem com Seu Celé, no bairro cabense Mauriti, transmite o que aprendeu e experimenta novas técnicas, como o uso de esmaltes formulados no próprio centro.

Pelos produtos diferenciados que desenvolve, o grupo de artesãos tem conquistado reconhecimento e prêmios (como o Sebrae Top 100 de Artesanato, 2016). Mestre Nena integrou pela primeira vez, este ano, a Alameda dos Mestres, na 17ª Fenearte. Suas peças despertam curiosidade pelo arrojo dos formatos incomuns e linhas pontiagudas. Sentado em seu torno, ele molda peças com base menor que a parte de cima, como as luminárias e os vasos funil. “Eu gosto de fazer peças complicadas, porque quando você faz assim as pessoas pensam duas vezes em fazer igual, e quando você produz em pouca quantidade, e a peça é mais demorada, ela é valorizada”, afirmou, em entrevista à Continente. As inspirações lhe vêm da observação da natureza: “Na praia, vi o ouriço e tentei trazer pro barro, acabou que fiz uma luminária diferente”. Dona Sônia, outra remanescente da tradição de oleiros do Mauriti, chegou há três anos ao Centro, a convite de Mestre Nena. Suas peças apresentam características figurativas

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(animais, bonecas e anjos) que são moldadas sem o torno. Devido à sua deficiência visual, ela afirma preferir executá-los sem rosto. A arte de Gueu, por sua vez, evidencia-se pela delicadeza dos traços, as linhas são menos pontudas e mais curvilíneas, remetendo a corpos femininos. Ele e Nena compartilham a aptidão para o método torneado, que, com o uso de um torno em movimento circular, permite ao artesão erguer as peças, como o jarro com babados. Outro recurso material usado pelos artesãos da Cerâmica do Cabo é a barbotina, tipo de barro mais líquido e com tom esbranquiçado, que permite ao ceramista atingir paredes bem finas. Uma alternativa sustentável, já que, nessa variedade, os resíduos de cerâmica das fábricas são reaproveitados como matériaprima para pequenos utilitários – copos, pratos e pires – e objetos decorativos, como o anguloso vaso Bolas e as flores feitos pelas artesãs Cida, Joselma e Cristina. Neste ateliê, vale a máxima da transformação, na qual nada se perde.


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4 ACABAMENTO Algumas obras utilizam a esmaltação, como os anjos de Dona Sônia Mota LUMINÁRIA OURIÇO 5 Mestre Nena buscou na natureza inspiração para a peça MÉTODO 6

TORNEADO

uso do torno em O movimento circular permite erguer peças como o jarro com babados HOMENAGEM 7 A Petisqueira Celé reverencia o criador Mestre Celé, referência para os artesãos do grupo

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

OS TEMPOS ESTÃO “A-MUDAR”

Batendo à porta de Dylan Desde que Bob Dylan, aos 22 anos, cantou “Quantas estradas precisará um homem percorrer para poder ser chamado de homem?” (Blowin’in the wind, 1963), vem sendo chamado de poeta. Trinta e três discos e algumas compilações de escritos depois, o compositor acordou no dia 13 de outubro, aos 75 anos, com a notícia de que ganhou o Nobel de Literatura. O mundo literário e musical, por sua vez, despertou com muito fôlego para uma polêmica que se arrastou ao longo dos dias. Os descontentes citaram autores como Philip Roth e Haruki Murakami, que mereceriam receber a honraria até pela projeção que ela dá aos agraciados. Nome vivo mais importante da música norte-americana, Bob Dylan volta a ser protagonista de uma discussão cultural. Para completar, os membros da academia sueca, responsável pela premiação equivalente a R$ 2,9 milhões, não obtiveram sucesso ao tentar contactar o músico. Seu silêncio virou notícia. E começaram a pairar dúvidas sobre sua presença, no dia 10 de dezembro, e sua contrapartida ao prêmio, uma palestra - a academia sinalizou que, no seu caso, pode ser feito um show. Ele terá até seis meses para cumprir a condição. Do contrário, não receberá o dinheiro. No dia 28, duas semanas após o anúncio, Dylan finalmente se pronunciou. Enviou um comunicado aos suecos, no qual informou: “Vou comparecer à cerimônia do Prêmio Nobel...Se eu puder”. E justificou a demora em manifestar-se: “Estava sem palavras”. DÉBORA NASCIMENTO

CON TI NEN TE

A FRASE

“Se eu soubesse como fazer uma boa fotografia, eu não fotografaria toda hora.” Robert Doisneau, fotógrafo

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A notícia do Nobel de Literatura para Bob Dylan correu o mundo atrelada a uma “barriga” (no jargão jornalístico, informação errônea), a de que foi o primeiro músico a ganhar a distinção. Deu até no New York Times. No entanto, há mais de 100 anos, em 1913, o indiano Rabindranath Tagore levou o prêmio e foi, também, o primeiro não europeu condecorado. Assim como Dylan, Tagore era poeta, pintor e músico autodidata, sendo, inclusive, autor dos hinos da Índia e de Bangladesh. Se Dylan esteve ao lado de operários e negros no início dos anos 1960, nos Estados Unidos, Tagore participou do movimento nacionalista indiano, encabeçado por seu amigo Mahatma Gandhi. No site do Nobel, o poeta indiano aparece em primeiro lugar na lista dos autores premiados mais populares, seguido pelo americano John Steinbeck e o colombiano Gabriel García Márquez. Com a chegada de Dylan, talvez o ranking esteja “a-mudar”. (DN)

Balaio 28 ERROS EM NARCOS

Já se foi o tempo em que Narcos era criticada apenas pelo portunhol de Wagner Moura (foto). A segunda temporada da série sobre o tráfico de drogas na Colômbia, disponível no Netflix, conquistou um crítico feroz: Sebastían Marroquín. O filho de Pablo Escobar publicou em seu perfil no Facebook um textão apontando nada menos que 28 erros no roteiro. Sebastían, autor do livro Pablo Escobar – Mi padre, seria um dos consultores da série, porém, os ex-agentes Steve Murphy e Javier Peña, principais colaboradores, foram contra e ameaçaram abandonar a produção, caso ele fosse contratado. Sem levar em consideração o aviso da própria série de que é “uma obra de ficção baseada em fatos”, Sebastían apontou exageros, como a fuga do pai da Catedral (a inacreditável “prisão” que o criminoso construiu para si), e manipulações, como atribuir mortes, ameaças e atentados a Escobar. Verdade ou mentira, o fato é que, devido à série Narcos, o traficante voltou com força ao noticiário, como na época em que tocava o terror. (DN)


ARQUIVO

ARTE E REFUGIADOS A matéria de capa desta edição da Continente traz histórias de refugiados que chegaram ao Brasil, fugindo de perseguições políticas, guerras e até mesmo da crise financeira em seus países. A intensificação desses trânsitos tem colocado a temática no centro das discussões. No campo da arte, não é diferente. Em outubro, o MoMA inaugurou a mostra Insecurities: Tracing displacement and shelter, que segue até janeiro do próximo ano. Ela reúne trabalhos de arquitetos, designers e artistas em suportes e escalas diferentes que refletem sobre esses processos de deslocamento e sobre o ideal de abrigo. Em vez de temporários, os campos de refugiados têm se tornado o lar dessas pessoas por períodos longos, o que levanta questões relacionadas aos diretos humanos e ao urbanismo. Seriam esses abrigos uma fonte de segurança para essas populações? (Mariana Oliveira)

Licença para o morto voltar A cada ano, com as imagens que chegam do México, ficamos maravilhados – divertidos e assombrados, também – com as comemorações ao Día de los Muertos. Isso porque esse Patrimônio Imaterial da Humanidade (declarado em 2003, pela Unesco) nos chega como uma festividade vibrante, alegre e profusa, que toma conta de casas, ruas e monumentos de todo o país, nos dias 1º e 2 de novembro. É, certamente, uma disposição de alma (com o perdão do trocadilho) diferente da experimentada no Brasil, em que a data – o 2 de novembro, Dia dos Mortos – é vivida com o pesar da perda, um feriado um tanto tristinho. Talvez, a nossa influência católica tenha sido mais severa e não admitamos o que na celebração mexicana é uma práxis: a crença de que, nestes dias, os “nossos” mortos têm licença para voltar à Terra. Aqueles altares fartamente decorados e nutridos de oferendas anunciam exatamente essa disposição de receber as “visitas”. Nele não podem faltar um belo portal de flores – por onde os mortos entrarão –, retratos dos falecidos, objetos que lhes pertenceram, imagens de santos e um cardápio de quitutes que eram de preferência dos amados que se foram. Esse caráter indubitavelmente pagão da data está relacionado à sua matriz précristã, afinal, os povos mexicanos “comiam e bebiam” seus mortos antes dos colonizadores espanhóis colocarem seus pés católicos por lá. ADRIANA DÓRIA MATOS

BIENAL PELOS OUVIDOS

IMAGENS DO PASSADO

A 32ª Bienal de São Paulo, que segue até o dia 11 de dezembro, no Pavilhão do Ibirapuera, criou um acervo online para quem quiser ouvir áudios que vão pelas vias subterrâneas da exposição. Músicas, poemas, leituras e conversas nas vozes de artistas e grupos desta edição ajudam a mergulhar mais profundamente na mostra e nos processos artísticos, a partir do projeto Campo Sonoro, disponível no endereço http:// www.32bienal.org.br/pt/soundfield/l/. São 64 faixas, entre elas canções indígenas, falas sobre artistas, além de sons naturais e experimentais, como de Canção junto, composta pelo grupo GuGuOo para ativar as pinturas e bordados da turca Güneş Terkol, presentes na exposição. (Olívia Mindêlo)

O sentimento de inapreensão do vivido, expresso no apego a objetos do passado e na onda vintage, pegou em cheio o fotógrafo e colecionador David Ellwand. O inglês acaba de lançar Retro photo: An obsession, no qual reúne fotografias feitas com 100 câmeras antigas de sua coleção, datadas em diferentes períodos, como uma Hasselblad feita à mão, nos anos 1930. Neste livro, tão peculiar quanto o gosto de Ellwand, estão dispostas lado a lado nas páginas a imagem da câmera e a fotografia com ela realizada. O resultado, segundo declarou o autor ao site Hyperallergic, são “imagens suaves com um viés onírico”. Bem apropriado para definir o culto amoroso ao passado. (ADM)

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CAPA

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IADOS Em busca da Terra Prometida O acirramento dos fluxos migratórios em todo mundo, nos últimos anos, aumenta os pedidos de refúgio no Brasil, que ainda é idealizado por muitos estrangeiros como um Eldorado TEXTO Suzana Velasco FOTOS Gilvan Barreto

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A despensa de um navio foi o abrigo de Mariama Bah em sua travessia pelo Oceano Atlântico. Escondida na cozinha, ela deixou Gâmbia, país de 1,9 milhão de habitantes na África Ocidental, sem saber aonde nem quando chegaria. Depois de duas, talvez três semanas, descobriu que viajara para o Rio de Janeiro. Mariama veio apenas com seus desejos e o inglês para se comunicar. Seus documentos e roupas ficaram para trás, junto com um casamento forçado e a filha, Maimuna. Quando criança, Mariama vivia com os avós em Brufut. Em uma de suas férias escolares, visitou a mãe e o padrasto na vila onde viviam e não retornou mais. A criança de 9 anos estava prometida para um primo de sua mãe no Senegal, país vizinho, e por isso não voltaria às aulas. Casou-se aos 13, teve uma filha aos 14. Aos 27 anos, ela sabe que em seu país, onde cerca de 60% da população é de analfabetos,

“Sou da etnia fula, em que a educação não é muito valorizada. Eu era boa aluna, queria ser doutora” Mariama Bah muitos pais já determinam o marido da filha quando ela é bebê. Mas nada lhe foi dito ou justificado a esse respeito quando era criança. “Eu era a melhor aluna, queria ser doutora. Era extrovertida, participava de todas as atividades na escola. Não entendia por que não podia mais estudar”, conta, em português fluente. “Sou da etnia fula, em que a educação não é muito valorizada. As oportunidades existem para os homens, eles decidem na nossa cultura. Se uma mulher não é casada, não tem valor.

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Eu não sabia nada quando me casei. Achava que, se parasse de ter relações, a gravidez sumiria.” Mariama precisou travar uma “luta corporal” com o marido para fugir de casa. Deixou a filha de um ano com a tia e, de volta a Gâmbia, foi acolhida por um tio. Voltou à escola, mas ela e sua família passaram a ser estigmatizadas. “Eu era vista como uma pessoa ruim, má influência. Passei muitas humilhações”, diz Mariama, cuja mãe só se casou de novo porque o pai foi assassinado quanto ela tinha 2 anos. “Em Gâmbia, se a mulher tem filho, a vida dela acaba. Tinha o sonho de sair, porque a vida que eu desejava não bate com nossos costumes. Quero ter minha própria história.” Um pescador em Brufut e um estranho no Rio de Janeiro a ajudaram a começar a traçar sua história. O primeiro a levou até o navio de rumo desconhecido. O segundo lhe deu o


1 MARIAMA BAH A gambiense fugiu da violência doméstica; veio escondida em navio

2 AUDREY MANDALA Por protestar contra o governo do Congo, ele foi perseguido

endereço da Cáritas Arquidiocesana, no Maracanã, zona norte do Rio, onde recebeu assistência jurídica para provar o contexto de um país onde a violência contra a mulher é estrutural – e assim conseguir o status de refugiada. Criado em 1976 para ajudar latino-americanos que fugiam de perseguição política – e passavam por aqui em busca de um terceiro país de acolhida, já que o Brasil também estava sob ditadura –, o serviço vinculado à Igreja Católica é um dos pilares do sistema de refúgio no Brasil.

CRESCIMENTO

Mariama é hoje um dos 8.863 refugiados e refugiadas reconhecidos no país, segundo os últimos dados oficiais do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), de abril de 2016. É menos de 0,005% da população brasileira – ou 0,013% do total de refugiados no mundo, que somava 65,3 milhões ao fim de 2015 –, mas representa um aumento de 127% em relação a 2010, quando havia 3.904 reconhecidos. A tendência é que esse número tenha uma taxa de crescimento ainda maior nos próximos anos, já que o número de solicitações de refúgio aumentou 2.868% no Brasil entre 2010 e 2015, passando de 966 para 28.670. Além da assistência jurídica, na Cáritas, Mariama teve aulas de português, dadas por voluntários duas vezes por semana. Nesses dias, os refugiados e solicitantes de refúgio ganham R$ 12 para o deslocamento, já que costumam morar longe, com transporte precário. Ela recebeu R$ 300 para os primeiros dias no Rio, mais nada. Dormiu na rua por uma semana e morou três meses de favor em Copacabana até conseguir dividir com outros três refugiados o aluguel de R$ 350 num apartamento em Nova Iguaçu, na Região Metropolitana do Rio. Há dois meses, o espaço tem uma nova moradora: Maimuna, de 13 anos. Depois de 10 anos sem se ver, mãe e filha reencontraram-se no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Para que Maimuna se sentisse mais acolhida, Mariama esperou-a com véu islâmico, que aos poucos deixou de usar no Rio de

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Janeiro. “Com o tempo a gente aprende a separar religião de costumes. Na minha cultura, há mulheres que passam por circuncisão. As que não fazem são menos religiosas? – questiona.” O que fui ensinada pelo Corão é ter muito amor. Mas somos muçulmanas, eu usava o véu, e minha filha usa. Quis que ela ficasse confortável.” Com a passagem aérea doada por uma professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Maimuna saiu de Gâmbia para que pudesse, como a mãe, continuar a estudar. “Não

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queria que acontecesse com a minha filha o que aconteceu comigo”. Hoje, as duas têm aulas numa escola pública de Nova Iguaçu. A filha quer ser médica, e pergunta se é difícil fazer universidade nos Estados Unidos. A mãe pensa em trocar o sonho da Medicina por Relações Internacionais, para trabalhar em organizações de direitos das mulheres, quem sabe em Gâmbia. Mariama trabalhou num salão de beleza por um ano, mas o espaço fechou. Continuou fazendo tranças africanas por conta própria, participou de um


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grupo de teatro e até atuou num curtametragem, Siyanda, que ganhou prêmio no festival de cinema 72Horas Rio. “Eu me senti incluída, minha autoestima subiu. Sempre lutei sozinha, e aqui recebi muita solidariedade. Voltei a sonhar. Hoje, eu digo ‘quando alguém achar que sua luta acabou, lute’.” Desde agosto, ela percorre 44 quilômetros até Botafogo, na Zona Sul carioca, para dar aulas de inglês – língua oficial de Gâmbia, ex-colônia britânica. Ela é professora do Abraço Cultural, que forma refugiados para ensinar árabe,

francês, espanhol e inglês. Criado em 2015, em São Paulo, e no Rio desde 2016, o projeto nasceu da plataforma Atados, que liga organizações e voluntários, e ganhou vida própria. Hoje tem 13 professores em São Paulo e nove no Rio, e todo mês organiza aulas culturais, em que alunos e professores de todas as turmas se encontram. “A ideia é não ser só um curso de idiomas ou uma causa pontual. A língua é algo que eles já trazem consigo e um meio de transmitir cultura”, diz Tatiana Rodrigues, que coordena o Abraço no Rio.

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Além de Mariama, o projeto tem, no Rio, professores sírios, venezuelanos e congoleses, como Audrey Mandala, que ensina francês. Em janeiro de 2015, ele ficou preso 10 dias em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, porque protestava contra o governo de Joseph Kabila, no poder desde 2001. Com medo, fez um passaporte falso, pegou um avião e foi recebido pelo irmão, que vive no Rio há 24 anos. Audrey estudava ciência da computação no Congo, mas, depois de começar a dar aulas, quer ser professor e escritor,


3 ENCONTROS Na Cáritas Diocesana, na zona norte do Rio, os refugiados recebem assistência jurídica e formam comunidades afetivas

Brás de Pina, na zona norte, tem a principal concentração de congoleses na cidade, reunindo desde os primeiros que deixaram o Congo fugindo da guerra civil, até os mais novos, que saem sobretudo por perseguição política e violação de direitos humanos. Na varanda da Cáritas, sempre repleta de congoleses, homens costumam relatar casos políticos, e as mulheres, de ameaças ou violência sexual, num país onde o estupro é arma de guerra. Elas muitas vezes decidem sair do país depois que os maridos somem ou morrem. “Kabila só tinha direito a dois mandatos, mas continuou no poder e quis alterar a Constituição. Fizemos uma organização pacífica no dia 19 de janeiro de 2015, mas o governo reagiu

No Rio de Janeiro, onde esta reportagem foi realizada, a República do Congo é a principal fonte de solicitantes de refúgio

e conseguiu uma bolsa de formação pedagógica no Consulado da França.

ORIGENS

No Estado do Rio de Janeiro, a República Democrática do Congo é hoje a principal origem dos solicitantes de refúgio – em 2015, vieram de lá quase 40% dos novos pedidos, e em 2016 o percentual cresceu para 54%, com 199 novas entradas até 21 de setembro. A comunidade congolesa no Rio, no entanto, começou a se formar já na década de 1990, quando o país ainda se chamava Zaire.

de forma violenta. Mais de 200 pessoas morreram”, conta Audrey, 28 anos, que, apesar de ter sido preso político, estranhou a violência no Rio de Janeiro. “O país continua em guerra no Leste, mas, na capital, um tiro paralisa tudo, as escolas e lojas fecham. Violência só existe quando há problemas políticos.” Audrey vê uma proximidade entre as duas culturas, mas tem episódios de racismo para contar – pessoas que mudam de lugar no ônibus, que apertam o passo e a bolsa ao passarem na rua. “O carioca é um povo acolhedor. Mas também há muito preconceito aqui porque sou africano. Sinto que sou diferente. Não vejo tanto preconceito com os sírios e venezuelanos. O africano é um povo que apanha.” No entanto, ele também teve que lidar com seus próprios preconceitos para viver no Rio. “O Brasil é um país muito mais liberal do que o meu. Lá não há liberdade para homossexuais, por

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exemplo. Aqui, eu consegui entender que eles existem, porque no Congo eu só tinha visto um homossexual em documentário. Eu não aceitava, foi um choque muito forte. Eu não odeio como antes. Acho que é pecado, mas guardo minha opinião para mim. A minha forma de tratar mudou. Hoje continuo sendo contra, mas também sou contra a homofobia.” Audrey se casou no Rio com uma congolesa, com quem já se avistara em sua faculdade no Congo, e se tornou um dos pastores da “igreja africana” de Brás de Pina. Na missa de domingo, sou a única branca no local. Negros e negras de ternos ajustados e vestidos com tecidos africanos se levantam das cadeiras de plástico e cantam e dançam canções em lingala, idioma falado em grande parte do país. Há música ao vivo no culto da Assembleia de Deus Betesda Internacional, a igreja dos congoleses de Brás de Pina. A maior parte da missa é em francês, a língua oficial da República Democrática do Congo, e traduzida com fluência para o português por Julia Salu, de 29 anos, há dois no Rio. Ela deixou o país depois que sua casa em Beni, uma das regiões mais afetadas pela guerra civil, no Leste, foi invadida e rebeldes levaram seus bens e seu marido. Durante a invasão, sua irmã conseguiu fugir com uma de suas filhas. Julia foi para a Uganda, com medo de ser morta ou violentada. Deixou casa própria, carro e o emprego de secretária. Num campo de refugiados, falaram-lhe sobre os benefícios de viver na Europa e sobre os perigos da “grande água” que teria que atravessar. Também foi em Uganda onde ela ouviu falar da Cáritas pela primeira vez. Com outros três filhos e grávida, decidiu-se pelo Rio.

REDE DE APOIO

Julia ficou duas semanas hospedada por congoleses em Cinco Bocas, favela em Brás de Pina, apesar de não conhecê-los. Essa é a principal forma de acolhimento dos recém-chegados na cidade. “Mais do que a rede pública, é com a rede de apoio criada pelos imigrantes que trabalhamos. Ela evita situações de extrema vulnerabilidade. Um congolês nunca fica na rua, porque alguém o acolhe”, afirma Aline Thuller, coordenadora


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do Programa de Atendimento aos Refugiados da Cáritas. “Cheguei a Cinco Bocas e via homens armados como no Congo. Fiquei com medo e me mudei”, conta ela, que hoje trabalha numa pizzaria. Julia alugou uma casa em Jardim Gramacho – a mais recente concentração de congoleses no Estado do Rio, a 35km da capital – com R$ 400 dos R$ 660 mensais que recebeu da Cáritas durante um ano. A entidade segue critérios do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), dando prioridade na ajuda financeira a mulheres sozinhas e com filhos e idosos. Com a escassez de recursos e o aumento da demanda, agora é raro que esse apoio se estenda por mais de três meses. Os abrigos municipais são utilizados apenas em último caso, já que não existe preparo para esse tipo de atendimento. Há ainda famílias que recebem os refugiados de graça, e a Cáritas

“Cheguei a Cinco Bocas e via homens armados como no Congo. Fiquei com medo e me mudei” Julia Salu eventualmente paga até três diárias num hostel. Desde o ano passado, porém, é a Igreja Matriz de São João Batista, em Botafogo, Zona Sul, o principal alojamento dos solicitantes de refúgio recém-chegados e sem contatos no Rio, com 40 vagas em quartos coletivos. Grande parte deles é de sírios, como Ahmad Asaad, 37 anos. Ahmad partiu de Idlib, no Noroeste da Síria, há quatro anos, quando a região já era tomada por ataques aéreos e não tinha eletricidade ou água. Passou pela Turquia e vivia no Cairo com os

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pais, duas irmãs e um irmão, deixando outras quatro irmãs na Síria, com suas famílias. Ahmad descobriu na internet que as Olimpíadas do Rio precisavam de voluntários, inscreveu-se, foi aceito e comprou a passagem com o dinheiro que guardava para sair da capital do Egito, onde trabalhou num shopping. “Ligava todo dia para o Acnur, mas não tive ajuda. Tentei revalidar o diploma, fiz o exame, mas recusaram. Ninguém nos ajudou no Cairo.” Vestido com o uniforme oficial das Olimpíadas, ele tira da mochila um crachá dos Jogos, que leva como uma espécie de identidade de honra: Ahmad Asaad, médico voluntário para atletas. Após o fim das Paraolimpíadas, não tinha mais hospedagem e se mudou para a paróquia em Botafogo. Além de ir às aulas de português na Cáritas, Ahmad estuda pela internet à noite, enquanto os outros solicitantes de refúgio dormem,


4 AHMAD ASAAD Médico deixou a Síria há quatro anos, passou pela Turquia e pelo Cairo

JULIA SALU 5 Ela deixou o Beni depois que sua casa foi invadida por rebeldes

porque tem pressa em aprender. “Minha mãe e irmãs conseguiram ir para o Canadá e me enviaram US$ 200. Preciso de trabalho, mas revalidar o diploma de médico é difícil, ainda não sei a língua. Eu preciso conseguir mandar dinheiro para a minha família, não ela para mim”, diz Ahmad, em inglês, nas mãos um folheto do Sistema Único de Saúde, em que procura onde tratar os dentes. “Tenho muitas saudades, mas não quero voltar, porque nada será como antes na Síria. É como um sonho estar vivo.” Ahmad deseja exercer a medicina novamente, mas, mesmo que consiga reconhecer o diploma no Brasil, sabe que o processo será longo. Em 2015, o Conare iniciou conversas com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) para facilitar o processo de revalidação de diplomas. Na mesma época, o governo federal fez um convênio com o Sebrae, oferecendo 250 vagas em curso de empreendedorismo em São Paulo, e criou o Pronatec português, com 400 vagas em curso de língua em Rio e São Paulo e 330 vagas em curso da prefeitura da capital paulista. As primeiras turmas se encerraram e não há previsão que sejam continuadas no governo Michel Temer. O presidente do Conare, Gustavo Marrone, afirmou, por e-mail, que “projetos que já estavam previamente acordados e já estavam acontecendo foram normalmente finalizados” e que haverá novos encontros com universidades, “assim que for possível ajustar as agendas para ter momentos para discussão com as principais lideranças nesse tema”.

TRABALHO LEGAL

Enquanto o diploma não é reconhecido, Ahmad está disposto a trabalhar em qualquer área, e foi encaminhado pela Cáritas para o Centro Público de Emprego, Trabalho e Renda mais próximo, que este ano se tornou um local de referência para atender refugiados. Todo solicitante de refúgio recebe um protocolo de identificação da Polícia Federal e tem direito a tirar

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uma carteira de trabalho provisória, até que saia a decisão sobre seu pedido. Ainda é difícil, porém, que solicitantes de refúgio consigam um emprego formal. “Para que serve um protocolo que precisa ser renovado a cada seis meses? Nenhuma empresa vai querer contratar”, questiona o técnico agropecuário colombiano Jairo Alfonso Diaz Laverde, 34 anos. Em cinco anos no Brasil, Jairo teve um único emprego com carteira assinada, por quatro meses. Mesmo depois de conseguir o reconhecimento

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do refúgio, diz ter sido rejeitado em empregos ao mostrar a identificação. “Os patrões olhavam o nome ‘refugiado’ e me recusavam. Aqui, acham que sou mafioso, guerrilheiro ou paramilitar.” Por pressão dos próprios refugiados, a classificação foi retirada das carteiras de trabalho. Jairo e um amigo cruzaram a fronteira entre Letícia, no Sul da Colômbia, e Tabatinga, no Amazonas, em 2011. Conseguiram um visto de três meses e navegaram três dias e meio pelo Rio Solimões, até Manaus.


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A ideia era conseguir trabalho e ficar. “Tinha R$ 40 e só falava ‘obrigado’ e ‘Coca-Cola’. Meu amigo disse que não tínhamos dinheiro a um homem que conhecemos no barco, e ele nos deixou US$ 100. Fomos para um buraco de R$ 30. No dia seguinte, batemos nas casas e nos oferecemos para cortar a grama. Muitos recusaram, mas uma senhora aceitou. Foi nosso primeiro trampo”, diz Jairo, com a fala já repleta de gírias. De trampo em trampo, Jairo fez jardinagem, pintou santos em igrejas, foi garçom e reformou quiosques perto do Teatro Amazonas. Uma mulher para quem pintou casas pediu informações na Polícia Federal, e lá ele soube que sua história cabia numa solicitação de refúgio. A família de Jairo é do norte

Os colombianos são o grupo com maior taxa acumulada de recusa de pedidos de refúgio no Brasil, ao lado de Romênia e Angola do Valle del Calca, área rural onde um cartel de narcotráfico atuou no fim da década de 1990 e nos anos 2000, junto com paramilitares. O pai e o padastro de Jairo foram assassinados. “Os paramilitares ainda são ativos na região, saem para recrutar jovens nas portas dos colégios. Fazia faculdade de Marketing em Bogotá, mas a Colômbia

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é pequena, não me sentia seguro.” Jairo saiu da capital com um filho e a mulher grávida para viver em Cali e, quando a filha mais nova completou dois anos, decidiu emigrar, com a esperança de levar a família depois. “O Brasil era então o país com a melhor perspectiva econômica da região.” Depois de um ano e nove meses em Manaus, ele ainda esperava pela entrevista do Conare, agora junto com um dos irmãos, que chegara um ano antes. “A Polícia Federal disse que havia vários processos vinculados a meu sobrenome, por isso a demora para investigar a minha família.” Aconselhados a se mudarem para o Rio de Janeiro, os dois viajaram e, dois meses depois, já tinham o Registro


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6 EMILTIANO DA SILVA

le chegou ao E Brasil em 1998, deixando a esposa em Luanda MANUEL MARIA 7 Morador da Favela da Maré, o angolano casou quatro vezes no Brasil e teve cinco filhos

Nacional de Estrangeiro. Trabalharam sem salário num mercado de verduras, em troca de comida e um galpão para dormir. “Aqui é muito comum passarem a perna em estrangeiros”, diz ele, que vê os estereótipos contra colombianos se repetirem. “A mãe de uma brasileira foi contra nosso namoro, outra namorada achava que eu era fugitivo. O primeiro contato com um brasileiro costuma ser uma piada sobre Pablo Escobar. Mas o Brasil foi bom comigo.” Jairo e a mulher se separaram e ele, sem poder voltar à Colômbia, devido ao status de refugiado, nunca mais viu os filhos – além dos dois menores, sua filha mais velha, de 16 anos, mora com a avó. Seu irmão mais

novo chegou em setembro, também para pedir refúgio. Os três irmãos e a mulher de um deles dividem uma quitinete, pela qual pagam R$ 100 por semana. Juntos, vendem salada de frutas nas ruas do Centro. “Quando cheguei, o Brasil estava bem, agora é mais difícil conseguir trabalho, e o Rio de Janeiro é caro. Precisamos de dinheiro para comprar um freezer e investir em comida natural”, diz, sem lamento. “Você gosta de rap? Tem uma música do Escuadrón Patriota que diz ‘hoje, que pensas que é o pior dia da tua vida, é o melhor para mudar as coisas’. Se a gente está vivo, tem a oportunidade de fazer tudo de novo.” Os colombianos são hoje a nacionalidade com o terceiro maior número de refugiados no Brasil, com 1.100 reconhecidos, depois de sírios (2.298) e angolanos (1.420), e seguidos pelos congoleses (968). No entanto, eles são também o grupo com a maior taxa acumulada de recusa de seus pedidos de refúgio, ao lado de nacionais de Romênia e Angola. Até abril de 2016, o país acumulava 6.817 indeferimentos de pedidos de refúgio. “Mesmo em países como o Congo, há dificuldade se ele não provar que veio de uma região de grave situação de guerra, como o Beni, ou se o colombiano não provar que está numa

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área das FARC”, afirma a coordenadora do Programa de Assistência aos Refugiados da Cáritas.

ANGOLANOS

No caso dos angolanos, uma orientação do Acnur definiu, em 2012, que não havia mais razões para o refúgio, devido ao fim da guerra civil, por isso, muitos dos novos pedidos têm sido recusados. Após essa decisão, grande parte dos angolanos que já estava no Brasil recebeu o visto de permanência – daí a discrepância entre os dados do Conare e da Cáritas, que só no Estado do Rio registra 2.311 angolanos como refugiados, 56,2% do total de reconhecidos na região. Na favela da Maré, que abriga a maior comunidade de angolanos no Rio, um relato se repete. Eles viam o Brasil nas novelas e aqui conheceram outro país. “Meu irmão já morava na Maré, mas não me contou nada, só falou ‘pode vir’. Cheguei à noite. No dia seguinte, saí às 5h para trabalhar com ele numa obra e vi a primeira morte, num tiroteio. Ele me falou que era assim mesmo. Fui me acostumando, e gostei. Daqui, só saio para o caixão”, diz Manuel Maria da Costa Neto, 39 anos, que se casou quatro vezes no Brasil e tem cinco filhos. Ele deixou o país em 1996 porque não queria servir na guerra, ficou sem


CON CAPA TI NEN TE 8-9 MANUELA DOMINGOS No seu salão, montado em 2011, a angolana faz penteados no estilo africano

documentos no Brasil e se beneficiou da anistia dada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso a todos os imigrantes que estavam em situação irregular no país até a sanção da Lei do Refúgio, em 1998. A medida beneficiou, sobretudo, angolanos que chegavam desde o início dos anos 1990, com o acirramento da guerra civil em Angola. Grande parte dos primeiros refugiados angolanos sobreviveu enviando produtos para o mercado Roque Santeiro, batizado em homenagem à novela brasileira em Luanda, capital de Angola. Emiltiano da Silva, 42 anos, chegou em 1998 para pedir refúgio, e mandava até 10 malas por meio de uma transportadora. Sua mulher ficara em Luanda e vendia roupas, colchas, sapatos e sandálias Havaianas, populares entre os angolanos. Quando a guerra acabou, em 2002, o lucro caiu com a entrada de produtos chineses e tailandeses e com a alta do dólar. “Comprava na Rua da Alfândega e ganhava o dobro. Hoje, para tirar 20% é difícil”, diz. Entre 1992 e 1997, Emiltiano foi agente de ordem pública na tropa especial da polícia, segundo ele uma espécie de Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) de Angola. “Vi colegas mortos, mutilados. O Brasil tinha a facilidade da língua em comum, e um cunhado e concunhado meus já residiam aqui. Primeiro viveram em Copacabana e no Flamengo, mas não puderam mais pagar e foram para a Maré. Quando vim de Angola, eles já estavam na favela. Vim com visto de turista e pedi refúgio. Depois de cinco anos, tinha a permanência.” Casado, com três filhos, Emiltiano queria ficar perto da família e ter estabilidade, mas o comércio em Roque Santeiro era sua única fonte de renda, por isso a mulher ficou em Luanda e só veio para o Rio há seis anos, quando os negócios pioraram, e trabalha em casa como cabeleireira. Emiltiano teve apenas um emprego com carteira assinada, por seis meses, em 18 anos no Brasil, como ajudante de obra. Começou a fazer uma previdência privada, mas precisou usar o dinheiro. “Eu não contava que

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ia sair de Angola para ficar onde estou. Só pensava que era o mar de rosas que passa na novela. Houve um retrocesso nos meus projetos, por isso comecei a investir no comércio em Angola, queria voltar para lá.” Emiltiano fez serviços administrativos, foi pedreiro, manobrista e motorista e hoje faz trabalhos para uma empresa de transporte. Há um ano, ele criou a Associação de Angolanos no Estado do Rio de Janeiro, para unir a comunidade e lutar por melhorias. Ela ainda está em processo para ser reconhecida oficialmente como associação, mas, na Maré, Emiltiano já é uma espécie de representante comunitário. Ele conhece todos que se reúnem no

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cruzamento da favela reconhecido como Adega dos Angolanos. No bar ML, os angolanos Macanda e Lica servem comidas típicas de Angola, como mufete, com feijão e banana da terra, e moamba de ginguba, um prato com frango e amendoim. Nos fins de semana, a novela na televisão dá lugar ao som da kizomba. Nas paredes estão pintadas a bandeira angolana e uma palanca negra, animal importante na mitologia africana. O balcão ostenta um troféu do campeonato de futebol dos imigrantes de 2008, realizado no Aterro do Flamengo, e recebido por Domingos Martins Neto, o Macanda, 39 anos. Domingos saiu de Luanda em 2000, quando os guerrilheiros se aproximavam da capital, e ficou hospedado na casa


de amigos da Maré, antes de conseguir um emprego numa rede de fast food. “Em Luanda, não via pessoas andando na rua com arma de fogo como aqui. Aos poucos nos habituamos”, conta ele, que teve duas filhas com uma brasileira antes de conhecer Lica, e diz nunca ter sentido racismo no país. “O Brasil é maravilhoso. Só tenho a agradecer.” Ao lado do bar, Manuela Domingos da Conceição, 42, faz penteados de estilo africano no salão de beleza Família Unida, que abriu em 2011. Ela veio para o Brasil em 1999, depois que o marido, irregular no Rio, foi anistiado em 1998. Os quatro filhos ficaram em Luanda até a mãe se adaptar. “Nunca tinha ouvido falar em favela, não sabia que o Rio tinha morros nem troca de

“Não sabia que havia tanto negro, achava que aqui era a terra de branco que vemos nas novelas ” Manuela da Conceição tiros. Também não sabia que havia tanto negro, achava que aqui era a terra de branco que vemos nas novelas. A gente cresceu aprendendo que país racista era Portugal. Mas o Brasil também é. Em lojas já me seguiram ou pediram para eu abrir a bolsa”, conta ela, que já trabalhou como empregada em outros salões e como faxineira de hospital.

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Mesmo com todas as surpresas e dificuldades, os angolanos na Maré ainda acham que têm melhores oportunidades no Brasil. Não precisam pagar para conseguir vaga na escola pública – “não queria contar isso, mas em Luanda tínhamos que dar propina”, diz Emiltiano. Também podem fazer cursos técnicos a preços mais baratos. Sentem saudades dos parentes que deixaram, mas trouxeram ou formaram famílias, adaptaramse a uma nova rotina, criaram suas comunidades, fincaram suas raízes no Rio de Janeiro, na favela da Maré, na Adega dos Angolanos. Quem sabe um dia seus filhos brasileiros entrem em outros navios desconhecidos, e cruzem novamente o Oceano Atlântico.


CON CAPA TI NEN TE

LEIS Os trâmites legais para ficar no Brasil

O refúgio no Brasil é regido pela Lei 9.474/97, que regulou a implementação no Brasil da Convenção da ONU de 1951, e classifica o refugiado como aquele que sofre “perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”. A lei brasileira incorporou ainda a definição ampliada da Declaração de Cartagena de 1984, incluindo “grave e generalizada violação de direitos humanos” entre as causas de refúgio. A Lei do Refúgio criou o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão interministerial presidido pelo Secretário Nacional de Justiça, Gustavo Marrone – indicado em junho pelo Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, na época interino. O órgão é integrado ainda pela Polícia Federal, pela ONG Instituto Migrações e Direitos Humanos e pelas Cáritas Arquidiocesanas do Rio de Janeiro e de São Paulo – estas duas últimas coordenam a assistência social aos refugiados em todo o país. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados participa, mas sem direito a voto, na definição da concessão ou não do refúgio, que é feita a partir de uma análise do pedido e de uma entrevista do Conare.

Em seu doutorado, o pesquisador Bruno Magalhães, do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro acompanhou casos de solicitação de refúgio de 2010 a 2014, e questiona haver um padrão claro nas decisões. “Imaginamos que há um momento central, em que se avalia racionalmente e decide, mas micropráticas fazem a diferença. Não só fatores esperados, como preconceito, mas também elementos como a ordem das entrevistas ou o fato de o scanner de impressão digital da Polícia Federal estar quebrado, quando se fez a solicitação. O processo ainda varia muito de acordo com o examinador e a unidade federativa.” Os casos também dependem da nacionalidade. Enquanto os sírios têm o refúgio praticamente garantido, as solicitações de venezuelanos, por exemplo, têm sido adiadas pelo Conare. “O país tem registrado um aumento de pedidos de venezuelanos e o governo ainda não sabe como lidar com isso”, diz Aline Thuller, coordenadora do Programa de Atendimento aos Refugiados da Cáritas no Rio de Janeiro. Em 2016, em dados até 21 de setembro, chegaram mais venezuelanos do que sírios pedindo refúgio no estado do Rio – 29 contra 15.

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1 CÁRITAS Tanto no Rio quanto em São Paulo, a instituição de matriz cristã presta assistência aos refugiados

Apesar de votar na reunião mensal do Comitê, em Brasília, a Cáritas hoje só dá assistência jurídica a solicitações ambíguas, em que a entidade sente a necessidade de provar as razões do pedido – como foi o caso de Mariama Bah, de Gâmbia. “Hoje, o discurso é de profissionalização da decisão, de centralizar no governo. É uma perda, porque a sociedade civil passa a ter gradativamente menos relevância para a discussão política sobre os critérios de concessão de refúgio”, afirma Magalhães.

CUSTOS

A Cáritas funciona com repasses do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) e do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). O Acnur não divulga o montante. Já o Conare destinou R$ 300 mil para a Cáritas-RJ e R$ 400 mil para a Cáritas-SP, em 2014, e respectivamente R$ 560 mil e R$ 700 mil, em 2015. No ano passado, o governo federal ainda liberou um crédito suplementar de R$ 15 milhões para programas de assistência a refugiados e imigrantes. Em 2016, no entanto, não houve nenhum repasse à Cáritas. O presidente do Conare não especifica planos do governo Michel Temer na área. “A mudança


GILVAN BARRETO

de governo não afetará as políticas para refugiados. O procedimento que determina a condição de refugiado está disciplinado pela Lei 9.474/97 e continuará a ser seguido sem qualquer alteração.” Segundo Marrone, o programa de reassentamento brasileiro continuará, com a recepção, até o fim de 2016, de 30 refugiados colombianos que se encontram em outros países. Ele nega, porém, que haja qualquer registro de negociações do governo anterior para reassentar até 100 mil sírios em cinco anos, divulgadas no início de 2016 pelo Ministro da Justiça de Dilma Rousseff, Eugênio Aragão. O porta-voz do Alto Comissariado da ONU para refugiados, Luiz Fernando Godinho, recusou-se a comentar sobre a existência ou não de acordo. Diretora da ONG Human Rights Watch no Brasil, a advogada Maria Laura Canineu defende o

De acordo com o Conare, não há previsão de mudança jurídica para refúgio no Brasil, mas, sim, para a imigração reassentamento de sírios que estão em países como Turquia, Jordânia e Líbano, com mais de quatro milhões de refugiados da Síria. “O reassentamento envolve custos para o país, que está em crise econômica, mas há programas internacionais para ajudar financeiramente. Uma política nacional foi desenvolvida, mas não é suficiente para o lugar que o Brasil quer ocupar no mundo.” Não há previsão de mudança jurídica para o refúgio, mas, sim, para a imigração no Brasil. O projeto de

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lei 2516/2015, que institui a Lei de Migração, já passou pelo Senado e precisa ser aprovado na Câmara dos Deputados. Ele substitui o Estatuto do Estrangeiro (1980), de um Brasil ainda sob a ditadura e com forte preocupação sobre segurança. O novo projeto, porém, ainda se concentra em grande parte nas formas de expulsão dos imigrantes irregulares. Não há dados sobre os irregulares no país, mas a maioria dos que tiveram seu pedido de refúgio recusado fica no Brasil, já que as expulsões são raras. O irregular, no entanto, não tem proteção legal. “A nova Lei de Migração tem avanços democráticos importantes, mas, ao não legislar sobre a condição do imigrante irregular, quase cria uma lacuna legal para a exploração desse trabalhador. As questões de refúgio e imigração não podem ser separadas”, sustenta Magalhães. SUZANA VELASCO


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Conexão

NUVEM A sujeira da informação

Costumamos culpar os automóveis

Estudo destaca as consequências ambientais e ecológicas do crescimento exponencial do acúmulo de dados e do acesso à internet TEXTO Yellow

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pela emissão de CO2, efeito estufa e aquecimento global. Cidadãos conscientes dirigem Teslas e Priuses, e navegam em seus smartphones durante engarrafamentos. No entanto, a internet também aquece a Terra, e grande parte do impacto ecológico que a humanidade desfere no planeta, hoje em dia, tem origem na informação que transmitimos e armazenamos na internet. Durante milhares de anos, a palavra informação, derivada do verbo em latim informare, significava “dar forma ao pensamento”, “ensinar” ou “treinar”. Esperava-se que a informação contivesse significado. Essa forma de entender e usar o termo mudou, durante o século XX. Em 1948, os laboratórios da companhia telefônica americana Bell anunciaram a invenção do transistor, um dispositivo simples que substituiria em todos os aspectos


por uma comissão, e, sim, pelo autor, um homem de 32 anos chamado Claude Shannon. O bit então se juntou à polegada, à libra, ao quarto de galão e ao minuto e passou a ser visto como uma quantidade determinada — uma unidade fundamental de medida. Mas para medir o quê? “Uma unidade de medida da informação”, escreveu Shannon, como se algo como a informação fosse mensurável e quantificável. Buscando apenas maneiras de tornar mais eficaz a transmissão de ligações telefônicas, e inspirado pelo telégrafo e o Código Morse, o jovem e recluso pesquisador sugeriu a codificação de todo tipo de informação (texto, áudio, imagens, vídeos) em código binário. A menor unidade da informação, a distinção entre 0 e 1, seria o bit. E assim a informação passou a ser entendida como algo que, se existe, precisa necessariamente ocupar espaço no mundo, é física.

Os servidores que armazenam os arquivos da nuvem também são computadores, só que nunca desligados as grandes válvulas que eram usadas em computadores até então. O transistor possibilitou uma revolução eletrônica, iniciando os processos de miniaturização e onipresença que continuam até hoje. Porém, como descreve James Gleick, em A informação – Uma história, uma teoria, uma enxurrada (Companhia das Letras, 2013), “Uma invenção ainda mais profunda e fundamental surgiu numa monografia publicada em 79 páginas da Revista Técnica dos Sistemas Bell nas edições de julho e outubro. Ninguém se preocupou em fazer um comunicado à imprensa. Ela trazia um título ao mesmo tempo simples e grandioso – Uma teoria matemática da comunicação –, e a mensagem era difícil de ser resumida. Mas ela se tornou o fulcro em torno do qual o mundo passou a girar. Como o transistor, esse avanço também envolveu um neologismo: a palavra bit, escolhida nesse caso não

Os antigos egípcios registravam seus hieróglifos em pedra. Posteriormente, criaram o papiro, e o papel, como o conhecemos hoje, veio da China. A informação guardada em suporte digital ocupa menos espaço, não sofre erosão ou degradação e pode ser transmitida e copiada sem perdas. Um mundo sem papel, portanto, deveria diminuir o impacto ecológico da humanidade. Porém, cada bit precisa de energia elétrica para existir, e a partir da popularização dos computadores pessoais, durante as duas ou três últimas décadas, passamos a vivenciar um crescimento exponencial na quantidade de informação criada pela humanidade. E o crescimento exponencial é traiçoeiro, algo com o qual as mentes humanas não evoluíram para entender naturalmente. Costumamos imaginar e representar a internet como uma teia de conexões, um rizoma. Vale lembrar que cada

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conexão, cada vértice de sua complexa arquitetura representa um servidor que guarda nossas informações. E, com o passar do tempo, não apenas o número de pessoas com acesso à internet aumentou, como também multiplicaram-se os tipos de informação que são coletadas e armazenadas acerca de cada usuário. Em 1994, quando o acesso à internet passou a ser aberto para provedores privados, o primeiro da RMR, a empresa Elógica, costumava disponibilizar para seus clientes um pacote de 30 reais mensais, que garantia 30 minutos de acesso à internet, via modem, uma conta de e-mail no formato <cliente>@elogica.com.br, que tinha tamanho limitado e era feito para que os e-mails ficassem armazenados no computador do cliente, e um espaço em seus servidores, no qual o contratante poderia hospedar sua página pessoal. Para ter presença na internet, em seus primórdios, a pessoa era obrigada a conhecer sua linguagem de formatação (o HTML) e seu protocolo de transferência de arquivos (o FTP). Hoje em dia, é muito mais fácil para um usuário da internet publicar na rede seu conteúdo. Serviços como Twitter, Facebook e Wordpress permitem a todos fazerem declarações online sem a necessidade de sequer entender como a internet funciona. Foram criados também outros serviços, como Gmail e Google Docs, que armazenam em seus servidores os arquivos que usuários costumavam manter em seus discos rígidos, como e-mails, arquivos de texto, apresentações e tabelas. A facilidade de armazenar nossos arquivos na nuvem é tão grande, que cada vez mais pessoas optam por guardar fotos e vídeos em serviços como Google Photos ou Dropbox. No entanto, esses servidores que armazenam os arquivos da nuvem são computadores também, assim como os que possuímos em casa. No entanto, gigantescos, e não desligam nunca. Quando acessamos uma foto que foi postada no Instagram, por exemplo, ou ouvimos uma música através do Spotify, isso significa que estamos recuperando um arquivo armazenado em um disco rígido localizado em alguma parte do mundo. Um usuário qualquer da Google faz a empresa


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Conexão

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consumir, por mês, o equivalente a três horas de uma lâmpada de 60 watts. Imagine computadores com discos rígidos capazes de conter todas as fotos do Flickr, ou todos os vídeos do YouTube. Ou todos os tweets. Só que a quantidade de informações com que cada usuário da internet contribui diariamente está muito além de suas fotos e vídeos. Quando utilizamos qualquer tipo de serviço na internet, através de computadores, smartphones, consoles de video game ou tevês, todos os dados de nossa navegação estão sendo coletados por empresas de cartões de crédito, de telefonia celular, bancos, drogarias, supermercados, e são agregados por firmas de pesquisa de big data, como Acxiom, Claritas e Datalogix. Por dia, cada usuário do Facebook ou do Waze gera milhares de “pontos de dados”, informação que precisa ser armazenada em discos rígidos, e replicada em vários outros, para que não corra o risco de desaparecer. Os data centers de hoje são medidos em hectares. Cidades de armazéns repletos de computadores, cada um deles coordenando centenas de discos rígidos, ligados eternamente dentro de ambientes refrigerados artificialmente. Eles se localizam, sempre que possível, em áreas de baixa especulação imobiliária, embora existam também

1 FACEBOOK A empresa investiu numa arquitetura própria e mais eficiente energeticamente para abrigar seus data centers

data centers em áreas urbanas, como os dos supercomputadores que manipulam as ações das bolsas de valores. O resultado disso é que a internet é, hoje, um dos maiores consumidores de energia elétrica do mundo. Em um estudo divulgado em maio de 2015, a organização Greenpeace estima que, se fosse um país, a internet seria o sexto maior consumidor de eletricidade. No Brasil, a instalação de data centers é bem menor do que em outros lugares, devido à burocracia e aos altos impostos. Uma matéria do site TechinBrazil, de setembro de 2015, aponta que a soma das áreas construídas de todos os data centers brasileiros era menor do que toda a estrutura encontrada na cidade de Miami. Os maiores data centers brasileiros de que se tem notícia pertencem a bancos, provedores e companhias telefônicas. O Itaú instalou o seu em Mogi Mirim, SP (que consome 90 Mega Watts), e o Santander está em Campinas, SP (consumindo 50 MW). O grande problema de um consumo de energia tão grande é que grande parte da eletricidade produzida no mundo não vem de fontes renováveis, como as

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hidrelétricas. Países desenvolvidos ainda queimam combustíveis fósseis para produzir eletricidade, como os Estados Unidos, cuja matriz energética possui 66% de queima de carvão, gás e petróleo. No supracitado estudo, a Greenpeace aponta uma vontade genuína das empresas de tecnologia em mudar suas fontes de eletricidade para meios de produção de energia limpa, como a hidrelétrica, eólica e solar, porém ainda encontram barreiras nos monopólios que fornecem eletricidade. As empresas mais verdes são Apple, Facebook e Google. O Facebook chegou a criar uma arquitetura própria e mais energeticamente eficiente para o hardware de seus data centers, dispensando fornecedores como Dell e HP. A Greenpeace aponta, ainda, a Amazon e as empresas de streaming de vídeo como as maiores vilãs digitais do planeta. A primeira está rapidamente se tornando a maior rede de varejo do mundo, prestes a desbancar gigantes como Walmart. Em sua competitividade agressiva, é a maior provedora de serviços de computação em nuvem, com sua afiliada Amazon Web Services. Embora tenha prometido instalar campos de energia eólica de 100 MW para abastecer seus data centers, no ano passado, expandiu seu consumo para mais que o dobro disso, usando todo tipo de energia que estiver disponível. Nós nos acostumamos a assistir a vídeos de alta resolução de gatinhos em caixas, no YouTube, e séries exclusivas no Netflix, praticamente sem tempo de espera no carregamento. Esse superpoder é proveniente de um grande investimento dessas empresas em infraestrutura de bancos de dados. A Netflix é tão suja, que foi necessária uma investigação, de cientistas da Mary Queen University of London, para localizar seus 4.669 servidores secretos. O Brasil é o único país da América do Sul que possui (cerca de 50) servidores. Existe algo que o consumidor consciente possa fazer? Pode cobrar de companhias quais serviços ela usa para que utilizem eletricidade mais verde. Pode ainda se informar sobre o que consome e escolher empresas mais limpas. Ou continuar a assistir House of Cards enquanto sua casa submerge na maré elevada pelo derretimento das calotas polares.


ANDANÇAS VIRTUAIS

ARTE Revista faz mapeamento de produções artísticas em diversos estados https://issuu.com/revistaacrobata

Em atividade desde 2013, a Acrobata

transita entre o formato revista e o de um livro. Com diversidade de linguagens artísticas e autores, é editada pelos pesquisadores Aristides Oliveira,

Demetrios Galvão e pelo poeta Thiago E, em Teresina, Piauí. São oferecidos poemas, ensaios, traduções, entrevistas e ilustrações. Já foram lançadas seis edições. A cada uma, a revista faz

o mapeamento das produções e dos debates atuais que envolvem a literatura, o audiovisual e outras linguagens. Uma média de 20 autores colaboram por edição, além de um artista convidado para ilustrar toda a revista. Entre os nomes que já participaram estão os de Micheliny Verunschk, Augusto de Campos, José Juva, Marcelino Freire, Fabiano Calixto, Salgado Maranhão, Floriano Martins, Samarone Lima, Sidney Rocha, Helena Ignez, José Adalto Cardoso, Charles Bicalho, Claudio Willer, Nydia Bonetti, Nina Rizzi, Eduardo Lacerda, a editora independente Livrinho de Papel Finíssimo, do Recife, entre outros. Além da versão online, disponibilizada através da plataforma ISSUU, “a Acrobata mantém uma luta pra seguir existindo também na versão impressa”, como afirma um dos editores, Demetrios Galvão, ponderando em seguida: “mas sabemos da importância desse diálogo entre o impresso e o eletrônico, inclusive para o acesso e a democratização da arte”. ERIKA MUNIZ

CINEFILIA

IMAGEM

INFANTIL

PESQUISA

CinemaEscrito ganha versão atualizada, com novas seções, e variedade de gêneros

História e curiosidades sobre a Polaroid, a diva da fotografia instantânea

Aplicativo transforma poemas de Manoel de Barros em sons, imagens e ilustrações

Projeto da Escola de Letras da UniRio investiga as relações entre palavra e imagem

cinemaescrito.com/

popuppolaroid.com/filmoverfilters

palavraeimagem.com/

Iniciado em 2007 pelo jornalista pernambucano e crítico de cinema Luiz Joaquim, como forma de armazenar sua produção, o site CinemaEscrito.com abriga quase 3 mil publicações sobre cinema, em geral. Em 2016, a página ganhou nova versão, agregando mais dinamismo, melhor navegabilidade e seções específicas. Além de críticas, reportagens e artigos, há textos sobre séries televisivas, links, distribuidoras de filmes, vídeos e podcasts. A agenda com os últimos eventos e notícias semanais é dividida por datas. Atualmente, o site conta com recursos para visualização em desktops, tablets e celulares (iOS e Android).

“Uma olhadinha no passado, presente e futuro da fotografia instantânea”, é o convite do Pop up Polaroid/filmoverfilter para os interessados em Polaroid. O site – em inglês – conta curiosidades e peculiaridades sobre a câmera fotográfica ao longo da história, desde seu surgimento, a ideia de criação pelo físico americano Edwin H. Land, na década de 1940, aos usos mais recentes. Os amantes da fotografia encontram informações sobre alguns dos artistas que fizeram (ou fazem) uso desse tipo de equipamento para fins estéticos, quais as novidades de equipamento para Polaroid e links indicando ferramentas complementares.

crianceiras.com.br/manoel-debarros/

O mato-grossense Manoel de Barros (1916-2014) sempre teve forte relação com o lúdico em seu fazer poético. “O que eu queria era fazer brinquedo com as palavras”, escreveu. O compositor Márcio de Camillo resolveu aplicar a lógica do poeta a seu projeto Crianceiras, de 2012, com poemas musicados para um espetáculo infantil e DVD. O desdobramento digital da ação chega agora em forma de aplicativo com o mesmo nome, disponível para Android e iOS. O app contém 10 clipes de poesias, como Sombra boa e Bernardo. Além disso, há ilustrações animadas de Martha Barros, filha do autor.

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O site Palavra e Imagem é vinculado ao projeto “Palavra e imagem na arte contemporânea: o vídeo, a grande parataxe e o arquivo sem fundo”, coordenado pela professora Carla Migueloto, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa se estrutura a partir de classificações fluidas acerca desses elementos nas manifestações artísticas que se utilizam de plataformas de instalação e vídeo. Foram catalogadas as tipologias imagens fotográficas e videográficas de letras e palavras; inspirações literárias; usos do objeto livro; apropriações; escritas diante da câmera; e listas de palavras.


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CON TI NEN TE#44

Viagem

1 NEON

s letreiros O luminosos são cartões-postais da cidade

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JAPÃO Não se vive em Tóquio, espreme-se Cidade com índice de densidade populacional de 14 mil pessoas por quilômetro quadrado, ela provoca a sensação de estarmos num eterno (e comprimido) presente-futuro TEXTO Thiago Soares

Há quem diga que, ao viajar para o Japão, você toma um voo para um lugar que parece estar em alguma temporalidade do futuro. Para o bem ou para o mal. Os letreiros luminosos que aparecem na ambientação de uma metrópole futurista (sim, o filme Blade Runner – Caçador de andróides, de Ridley Scott, foi filmado aqui) convivem com uma legião de japoneses que dormem nos metrôs depois de exaustivas jornadas de trabalho – ao ponto de a Prefeitura de Tóquio ter feito uma campanha chamada Ceda seu ombro para um estranho, para que passageiros dos transportes ferroviários deixem que desconhecidos durmam no seu ombro durante a volta para casa. O C O N T I N E N T E N OV E M B R O 2 0 1 6 | 3 9

presente-futuro de Tóquio é o convívio de neon e templos antigos, karaokês e gueixas, Pokémons e cultura de mangás. O ultraobsceno das sex shops que vendem hentais (os mangás pornográficos, ou histórias em quadrinhos que trazem incesto, sadomasoquismo, entre outras práticas sexuais mais radicais) estão ao lado de lojas vendendo bichinhos com mascotes fofos e de pelúcia felpuda. A experiência de estar em Tóquio é como a de entrar num game – repleto de personagens estranhamente fascinantes e “acessórios” visuais inimagináveis. É um dos lugares em que mais se demora para processar o tanto de informação – e diferença


REPRODUÇÃO

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Viagem 2

cultural. Sobretudo em função do fuso horário. São 12 horas a mais em relação ao Brasil, acrescidas das heroicas horas de voos. Com sorte, você chega à capital japonesa em 30 horas de voo – provavelmente, fazendo conexão em algum lugar no Oriente Médio ou na África – partindo de São Paulo. Desembarca-se em Tóquio com os olhos marejados de tanto avião, pernas inchadas, dor de cabeça. Tontura de sono. A experiência com a cidade é também aquela de lidar com as pessoas que nela circulam. E, diante de tamanho desdém e cansaço com que cheguei, resolvi, como a personagem de Blanche Dubois, em Um bonde chamado desejo, “depender da bondade de estranhos”. Peguei o metrô no aeroporto de Narita em direção à estação Asakusabashi, próximo ao “coração financeiro” de Tóquio. O trajeto é longo, dura quase duas horas, e, naturalmente, perdi-me. Já tinha lido relatos de viajantes no Japão que comentavam uma certa dificuldade em lidar com o gigantismo do metrô de Tóquio. Muitas linhas, muitas estações, vários trens passando por uma mesma estação.

Conhecer Tóquio é como entrar num game – repleto de personagens fascinantes e “acessórios” visuais Resultado: parei numa estação meio obscura em que não havia (ou eu não vi, meio zonzo da jet lag) o nome do destino no nosso alfabeto – apenas com as “letrinhas” japonesas. Sem me dar conta da gravidade da situação, tonto e cambaleante de sono, apenas estendi o papel impresso com o voucher do hotel em que eu iria me hospedar para o primeiro sujeito na estação de metrô – era perto das 22h. Parece que turistas perdidos no metrô de Tóquio são uma prática ligeiramente comum, porque o cidadão balbuciou umas palavras em japonês, como se estivesse me explicando como chegar, e eu apenas disse: “I don’t speak japanese, sorry!” – e devo ter feito uma expressão misto de cansaço e pânico que convenceu o

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interlocutor a desviar-se da sua rota e me acompanhar até o meu destino final. Silencioso, sério e olhando para baixo e para o seu celular – buscando informação no Google Maps, esse homem de quem não sei o nome, conduziu-me até a estação próxima ao meu hotel, ajudou-me com a mala e fez aquele ritual performático, inclinando o corpo para frente e juntando as mãos como que agradecendo. Fiquei constrangido com tamanha gentileza, acho que só disse “arigatô”, quando viu que eu estava seguro; sem cerimônias, se foi. Nem sequer olhou para trás. Vi no Facebook, quando cheguei, enfim, ao hotel, que, veja só, era Dia do Amigo. O Nihonbashi Hotel, em que me hospedei, é um desses ambientes mistos: hospedagem econômica, estilo Ibis, e também “hotel cápsula”. Tóquio é uma das capitais mais caras do mundo (para morar e se hospedar), por isso, espaço é um bem precioso. Acrescente aí sua densidade populacional extremamente alta – de 14 mil pessoas por quilômetro quadrado – maior que Nova York e o dobro da densidade populacional de São Paulo. Ou seja, não se vive em Tóquio,


FOTOS: THIAGO SOARES

espreme-se. Para economizar e viver uma experiência de interculturalidade ainda mais intensa, resolvi me hospedar numa cama cápsula. É estranho e sui generis, curioso e ligeiramente bizarro. As cápsulas são como “valas” na parede, bem no estilo de um cemitério (perdão a metáfora macabra, mas é a que me veio na hora), não tão estreitas (dá para se virar tranquilamente e até se sentar nela). As dimensões variam, mas essa em que eu fiquei tinha 2m30cm de profundidade por 1m50cm de altura. Achei que fosse menor e mais claustrofóbica. Porém não sou parâmetro para nada: durmo em qualquer lugar, sem luxo. Hotéis cápsulas são uma verdadeira instituição de Tóquio. Há vários, sempre perto de grandes estações de metrô, em geral, usados pelos próprios japoneses para pernoitar – quando estendem no happy hour, na balada ou no trabalho, o metrô já fechou e o preço para ir para casa de táxi é muito alto. Adendo: o metrô de Tóquio fecha cedo, ônibus não são uma opção viável (trânsito intenso, ruas estreitas) e táxi pode custar algo em torno de 5.000 yens para um subúrbio (algo em torno de R$ 250). Logo, por pouco mais de 2.000 yens (o equivalente a R$ 70), você dorme numa cápsula, com direito a sauna, ofurô e sala de banhos para relaxar. Há uma tradição no Japão dos onsen, que são os banhos com águas termais comuns no interior, em meio a jardins e imagens tranquilizadoras para a prática da meditação. Naturalmente, numa cidade grande como Tóquio, esses onsen viram ambientes repletos de piscinas de águas mornas, saunas e imagens do Monte Fuji nas paredes, evocando uma ideia de paz e tranquilidade. Confesso que, depois de passar o dia batendo perna por Tóquio, não tem nada mais convidativo que um banho num onsen urbano – que quase sempre está localizado dentro de um hotel cápsula.

CULTURA OTAKU

Parte do fascínio de Tóquio e do seu poder de atrair turistas passa pelo que se convencionou chamar de “cultura otaku”, ou seja, o conjunto de práticas e afetos envolvendo fãs de anime (animação japonesa), mangá (história em quadrinhos), posokon (computadores e acessórios digitais), gemu (games e jogos digitais),

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HOTEL CÁPSULA

Esse tipo de hospedagem econômica é bastante comum em Tóquio

3-4 CULTURA OKATU

O s fãs de animes, mangás, games e tecnologia em geral se espalham pelo Bairro de Akihabara

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tetsudo (miniaturas e brinquedos), gunji (armas e artefatos militares) e jidosha otaku (carros), entre outros. O epicentro dessa subcultura está no Bairro de Akihabara, vizinhança repleta de lojas de eletrônicos, sex shops e livrarias. Entre a estação de metrô Akihabara e Ueno, formase uma espécie de “corredor” por onde circulam japoneses e turistas, em meio a letreiros luminosos de neon e ruas estreitas apinhadas de gente, dando a sensação de que você está dentro de um cenário de algum mangá. Não hesite em fazer turismo em lojas de tecnologia. Em Tóquio, elas são verdadeiros templos para fãs de artefatos tecnológicos, gadgets e afins.

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Uma das maiores lojas é a Yodobashi-Akiba, que conta com 10 andares em que é possível comprar baterias e computadores até roupas e capacetes simuladores de realidade virtual. Relógios conectados a celulares e os óculos que “registram” o real por uma “lente” ligada a centros de localização também fazem parte do cardápio. A região de Akihabara é conhecida pela infinidade de coisas úteis e inúteis em termos de tecnologias. Também é um ponto de referência para comprar suvenires e mangás. “É uma região que recebeu incentivo para instalação do comércio popular e ficou mais pop no ano de 1997, quando o anime Neon Genesis Evangelion foi exibido nos cinemas e disseminou


FOTOS: THIAGO SOARES

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Viagem

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Akihabara como uma área cool”, afima o pesquisador Morikawa Kaichiro, da Meiji University, que investiga as cenas urbanas de Tóquio ligadas à cultura otaku. O curioso em Akihabara, para além do mercado formal, é um certo “mercado negro”, onde são comercializados robôs e partes deles – alguns para fins, acredite, sexuais. Diante de toda febre em torno do jogo Pokémon Go, naturalmente, há áreas em Tóquio inteiramente dedicadas a eles. Os Pokémon Centers são lojas especializadas para os poke fãs, localizadas em grandes centros de compras ou em estações de metrô e trem. Essas lojas têm tudo o que possa existir na face da terra em relação a Pokémon: games, brinquedos, pelúcias e bonecos do Pikachu (e dos outros Pokémons também); figurinhas, acessórios personalizados (mouse, canetas, bijuterias, pijamas, pantufas), chocolates e cookies e, finalmente, as Pokebolas. Além da infinidade de opções de compras, também ficam espalhados pela loja joguinhos sobre Pokémons, para se criar uma experiência imersiva na sua cultura.

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Caminhando pelas ruas de Akihabara e vizinhanças, deparase, inevitavelmente, com grandes centros de jogos, estilo Game Station, muitos deles abertos 24 horas, com jovens varando a madrugada jogando, bebendo e fumando – em alguns locais de Tóquio é possível fumar em ambiente fechado. Procure pelo Tokyo Joypolis, um gigantesco parque de diversões coberto que tem até montanha-russa; mas o que surpreende mesmo é a variedade e modernidade dos simuladores, games e cinemas 3D. Por falar em cinema, a experiência de ver animes (filmes de animação) em Tóquio é singular. Muitos deles são exibidos em salas com legendas em inglês, coreano ou

mandarim (em função do intenso número de turistas). Foi no Toho Cinemas, a maior cadeia de exibição do Japão, que assisti a One Piece of Gold com legendas em inglês, numa sessão às 2h40 da madrugada. Detalhe: alguns cinemas seguem programação por toda madrugada e manhã, e não somente à tarde e à noite como no Brasil. Parte da cultura otaku também está ligada aos cosplays, jovens que se vestem de forma extravagante, com perucas azuis, rosa, em geral, reencenando, no cotidiano, os personagens presentes nos mangás e animes. Para vê-los, dirija-se para a região chamada Harajuku e circule pela Takeshita Dori, uma rua repleta de lojas e camelôs, algodão-doce roxo e pipocas verdelimão, coma crepe com a carinha da Hello Kitty desenhada e picolés com frutas “cravadas” no próprio gelo. É em Harajuku que a Prefeitura de Tóquio fez divisórias de ruas, para indicar trechos em obras, com a Hello Kitty estampada. Por se tratarem de jovens, em sua maioria estudantes, deixe para circular por Harajuku e redondezas aos sábados e domingos – quando eles

A região de Akihabara recebeu incentivo para instalação do comércio popular e ficou mais pop a partir de 1997

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5-7 HARAJUKU

A região, muito frequentada por jovens, é repleta de lojas de bujingangas e elementos da cultura pop

8 MELANCOLIA

Os elementos coloridos da cultura pop são confrontados com habitantes introspectivos e sérios

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não estão estudando e se dedicam a “dar close” nas ruas. Perto da Takeshita Dori, está o Yoyogi Park, um parque público em que a juventude japonesa que almeja o estrelato em alguma banda de J-pop (a música pop do Japão) ensaia cantando e dançando, a céu aberto, sempre aos domingos. Na grama, nas calçadas e nos bancos do Yoyogi ouvem-se cantos em corais, gritos que simulam divas pop e jovens dançando como se estivessem em programas de reality show musicais.

OLIMPÍADAS

Embora eu tenha me perdido ao chegar em Tóquio, é preciso destacar o esforço das autoridades nipônicas em “traduzir” toda a linguagem do japonês para o alfabeto ocidental, sobretudo em função das Olimpíadas 2020. Circulando pelos principais bairros da capital, já é possível ver outdoors e convocações para os Jogos Olímpicos. Junto à Tokyo Tower, por exemplo, a “Torre Eiffel” japonesa, estão sendo vendidos até suvenires olímpicos. É próximo a essa região que estão também os bairros de Shinjuku e Shibuia – o primeiro, famoso pelos

letreiros luminosos que inspiraram Ridley Scott a criar sua metrópole futurista em Blade Runner; o segundo ambientou parte das cenas do filme Encontros e desencontros, de Sofia Coppola. Circulando por essas redondezas, você vai passar pelo Cruzamento Shibuia, emblemático, que frequentemente aparece em propagandas e filmes, com milhares de executivos e “business japoneses” atravessando pra lá e pra cá. É perto dali, também, que está o Park Hyatt Tokyo Hotel, cenário em que Scarlett Johansson e Bill Murray estão hospedados na trama de Encontros e desencontros. Também nessas redondezas você pode entrar em algum karaokê bar, famoso no mesmo filme de Sofia Coppola, cujo costume, como atesta o pesquisador Morikawa Kaichiro, remete às competições entre cantores amadores no canal de TV NHK, na década de 1940, no icônico programa Nodo Jiman. Caminhar por essas regiões de Tóquio também evoca uma certa dose de melancolia e solidão. A maneira com que circulam, olhando para o celular, a lógica

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monocromática, roupas pretas, brancas e cinzas, a cidade que parece devorar os habitantes. A solidão presente até nos restaurantes, muitos deles com assentos individuais, com pessoas sozinhas comendo nos balcões, conversando, provavelmente via whatsapp, diante de um bowl de lamen ou um udon (as massas que são comidas em meio a um caldo, como uma sopa), o paradoxo do excesso de cores das mascotes, dos animes e dos mangás e as cores sóbrias das pessoas que se vestem de forma excessivamente padronizada. Tóquio parece ser o futuro mesmo, utópico e distópico, que quem visita tenta se apegar ao presente. Há uma inevitabilidade em querer reter, entender a subjetividade japonesa e uma certa impossibilidade cultural de compreendê-la de fato. Enquanto isso, o monstro Godzilla está agarrado num prédio para divulgar o novo filme, um jovem maneja o celular em busca de mais um Pokémon e rostos solitários se misturam a uma multidão colorida, porém cinza. Esse não parece ser o resumo do que se chamamos descuidadamente de emoções humanas?


DOMINÓ Números entrelaçados Tradicional jogo formado por 28 pedras, numeradas de um a seis, cria um ambiente descontraído e informal, caracterizado pela camaradagem e pelas jogadas rápidas e pândegas entre os participantes TEXTO Samarone Lima FOTOS Helia Scheppa

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Tradição

RECIFE, 28 DE AGOSTO DE 2016: O TORNEIO

São 11 horas de um domingo de sol na famosa venda de Seu Vital, cravada defronte à Igreja de Nossa Senhora da Saúde, no Poço da Panela. A movimentação é grande, por conta do I Campeonato da Liga de Dominó de Seu Vital. Oito duplas inscritas. Cada uma pagou a taxa de R$ 20,00, com direito à galinha à cabidela, guisada e sarapatel, feitos por Dona Severina, esposa do proprietário do lugar, especialmente para o evento. Além disso, troféu para campeão e vice, feito pelo artista plástico Gugu Ferrer. Como estava no meio das Olimpíadas, foi confeccionada uma “medalha”, obra em cerâmica do artista Iramaraí Vilela. Carlos Vinícius Guedes Costa, o Seu Mini, de 51 anos (36 deles dedicados às pedras com números), está inquieto. Confere nomes dos inscritos, faz os sorteios, prepara o “chaveamento”, enquanto seus companheiros

aguardam, batendo as primeiras carroças, quinas, ternos, duques. Vital José de Barrros, ou Seu Vital, dono do estabelecimento, está preocupado. O genro Luciano ainda não chegou. Fato raro, pega um celular fora de moda e liga. “Te avisaram, não? Pois vem logo, que vai começar daqui a pouco. O quê? Tirasse Iramaraí.” Silêncio. Todos os jogadores dão risadas ou soltam gracinhas. Luciano, ao que parece, pegou um jogador conhecido por ser “pedra doida”. Joga sem lógica, não conta as pedras, atrapalhando a matemática que norteia cada partida. Alguém pergunta se o esquema do Torneio vai ser open bar, mas a resposta é imediata – vai ser open geladeira mesmo. Cada cliente vai pegando suas cervas e contando em voz alta: – “Seu Vital, essa é a quinta, visse?”. O pequeno salão da venda está cheio. Depois de muitas idas e vindas, com o inseparável copo americano ao

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lado e cigarros ocasionais, Seu Mini fala em voz alta o regulamento: – “Pessoal, está definido. É todo mundo contra todo mundo. A dupla vencedora é a que tiver mais vitórias”. As primeiras críticas surgem. Que o torneio está desorganizado. Que era para ter feito o chaveamento das duplas antes. Do lado de fora, desolado, o empresário Rafael Donato foi “convocado”, pela esposa, para um almoço dominical em família. Ele disse que ela fosse sem ele, mas não teve jeito. – “Estou me sentindo péssimo”, diz, vendo a algazarra toda, os troféus, a expectativa. Seu Vital avisa que é meio-dia, o torneio vai começar. Seu Mini, apesar das críticas iniciais, está animado. No sorteio, ficou com o professor universitário Paulo Donizete, que é considerado um estrategista, mas, segundo o organizador do torneio, “é o jogador mais ranzinza da América do Sul”. O genro de Vital chega em cima da hora, vai fazer dupla com Silvinha,


que já disse, pelo celular, o famoso “tô chegando”. A outra mulher inscrita é Vovó Irene, mas foi barrada, por causa de uma inesperada conjuntivite. “Silvinha é a grande jogadora de Seu Vital. Joga mais que todos aqui. Minha dupla é uma das cotadas para ser a campeã”, avalia Luciano, que trabalha numa oficina mecânica. Ivan Maciel caiu no sorteio com Marco Careca, que trabalha na portaria de um condomínio, a 200 metros do bar. Avalia que tem chance. “Meu parceiro é conhecido como ‘acochador’. Eu, como ‘sistema diferente’. Antes, eu era pedra-beba mesmo, mas fui melhorando. Hoje, sou do baixo clero. Não sou o melhor nem o pior”, comenta. – “Meio-dia, vamos começar!”, avisa Vital, que vai jogar ao lado de Adirson contra a dupla Paulo e Seu Mini. “Seu Vital só ganha se botar o chapéu e botar o banco.” Nesse momento, o dono da venda já está retirando

O jogador “pedra doida” é aquele que joga sem lógica, não conta as pedras, atrapalhando a lógica da partida a cadeira de plástico e botando um banco verde. Em seguida, vai dentro de casa e volta com um chapéu azul. “Não disse? Vai ganhar.” O chapéu parece ter dado sorte. A dupla de Vital ganha pelo placar de 7 x 3. Seu Mini sai e escuta as reclamações. Que ele não fez o chaveamento. Que o torneio está desorganizado. “O torneio é simples. O povo é que é complicado”, responde, puxando o caderno para improvisar um chaveamento. Uma regra, no entanto, deixa alguns jogadores preocupados: a

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repescagem. Mesmo com derrotas, as duplas teriam ainda novas chances. O torneio começou a ficar longo demais, com partidas sucessivas, sem chegar às quartas de final, semifinal e final, como nos principais torneios. Seu Vital serviu os tira-gostos prometidos. As reclamações por jogadas erradas se sucediam. Mas, às 16h30, Seu Vital decretou que fecharia a venda, e que o torneio teria que reiniciar no domingo seguinte. Ele já estava cansado, e, pelo andar da tabela, o campeão só sairia na boca da noite.

4 DE SETEMBRO DE 2016: INDEFINIÇÕES

Além do organizador do torneio, outros atletas também faltaram, por motivo de viagem. A Liga de Dominó seguiu normalmente, com os comentários sobre o domingo anterior, os problemas na organização, a expectativa para a grande final.


1 SEU VITAL Além de comandar a venda que leva seu nome, ele participa das partidas de dominó

Tradição

CON TI NEN TE

TRADIÇÃO 2 Luciano Mota, genro de seu Vital, e o artista plástico Iramaraí Vilela fazem parte da Liga de Dominó PRÊMIOS 3 Os troféus para as duplas campeã e vice foram feitos pelo artista plástico Gugu Ferrer

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11 DE SETEMBRO DE 2016: EXPLICAÇÕES E EXPECTATIVAS

No final da manhã, liguei para Ivan Maciel, para saber se finalmente teria a grande finalíssima. Ele estava a caminho de Seu Vital e me antecipou o problema. “O motivo do cancelamento da decisão foi porque Seu Mini e o professor Paulo fizeram o torneio com chaves e repescagem. Eu mesmo ganhei duas partidas, perdi duas e ainda podia ter direito a mais uma chance. O torneio ia demorar horas para terminar. Seu Vital se arretou e cancelou.” Cheguei à venda e perguntei a Seu Vital o que tinha ocorrido. Com as poucas palavras de sempre, ele foi ao ponto: – “Vai ter outro torneio.” – “Quando?” Ele me olhou com aquela cara de invocado e respondeu: – “Eu não quero dizer agora, não”. A venda estava lotada. As duplas que jogaram no primeiro domingo, as que vieram no outro e a junção dos curiosos, também chamados

“É uma forma de me comunicar. Uma coisa que une as pessoas. Nunca joguei por dinheiro” Seu Mini de “perus”, que ficam olhando e comentando o jogo do lado de fora. Seu Mini usou o direito de defesa: – “Disseram que houve falcatrua, que o regulamento foi mexido no meio, para ajudar a dupla Paulo/ Seu Mini. Mas não foi isso”. Ele foi à geladeira, pegou sua cerveja, tomou um gole e prosseguiu: “A questão é que o torneio tinha oito duplas. Cada dupla jogou quatro partidas ou mais. Isso gerou entre 32 e 35 partidas. Eu mesmo perdi três e ganhei duas. Como ficaria muito longo, o Torneio foi cancelado. Vai ter outro campeonato. Eu vou deixar que os ‘inteligentes’ façam as regras. Essa conversa de desorganização é intriga da oposição.

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Dizer que foi mal-organizado é um atentado à inteligência”. Ele explicou a ausência no domingo anterior: – “Quando eu soube que não tinha torneio, fui para Tamandaré com a família”. Mas ele fez a ressalva técnica: – “Só me ausentei em função do cancelamento”. Seu Mini joga desde os 15. São 36 anos batendo pedras, ganhando e perdendo, jamais empatando, porque no dominó não há possibilidade de um jogo terminar empatado. Joga em Seu Vital às quartas à noite e domingos, a partir das 11h15. Pegou o caderno das “buchudas” (quando uma dupla vence a outra por 6 x 0), e mostrou, com orgulho, seu levantamento. Este ano, já deu 19 buchudas e levou nove. “Sou o primeiro colocado no quesito ‘partidas Average’, que é o índice da diferença entre vitórias e derrotas”. O burburinho estava imenso. Seu Vital esperou a poeira baixar e depois explicou quase como uma nota oficial: “O torneio foi cancelado. E eu não sou o culpado. Vai ter outro, quando


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encontrarem um técnico que saiba administrar.” Depois de uma pausa, a cutucada na organização: – “Nunca vi uma dupla que perde três vezes e ainda tem chance”.

DOMINÓ E VIDA

Se o I Torneio foi “desunânime”, entre os jogadores da venda de Vital, há algo comum – o dominó faz parte da vida. “É uma forma de me comunicar. Uma coisa que une as pessoas. Nunca joguei por dinheiro”, diz Seu Mini. Ele começou em 1980, quando entrou no curso de Engenharia de Pesca, da UFRPE. “Paguei Dominó I, II, III e IV.” Como todo jogador, tem suas manias. Vai a Vital às sextas (noite) e domingo, no final da manhã. Toda quarta-

feira pode ser encontrado no Mercado Público de São Vicente Férrer. Eduardo Navarro, mais conhecido como Duda a Milhão, diz que joga há 15 anos. Aprendeu no Poço, já que nasceu e cresceu em Boa Viagem, e só praticava frescobol. – “Só hoje, dei duas buchudas”, diz, soltando uma gargalhada. Ele não estava preocupado com o cancelamento. “O mais importante é isso: vai ter outro torneio.” Para ele, o dominó é uma mistura. “São números que se entrelaçam com a profundidade de uma cruzada (jogada que equivale a quatro pontos no placar).” Enquanto a conversa seguia animada, Seu Mini perdeu a 10ª Buchuda do ano, caindo uma posição no ranking, sendo ultrapassado por Luciano Mota.

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JANIO SANTOS

Vocabulário

Tradição

CON TI NEN TE

PARA VOCÊ NÃO “PASSAR BATIDO” NUMA RODA DE DOMINÓ Todo jogo tem suas regras. No dominó, não é diferente. Mas, ao contrário da mesa de xadrez, marcada pela concentração e uma infinidade de estratégias, as partidas de dominó criam um ambiente descontraído e informal, caracterizado pela camaradagem e pelas jogadas rápidas e pândegas. Abaixo, algumas das regras do jogo e, sobretudo, seu vocabulário peculiar, que diz muito do seu estilo de lazer.

PERU

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4 TORNEIO Turma que frequenta a venda de Seu Vital em uma das etapas da disputa

– “Só não leva buchuda quem não joga”, diz, levantando da mesa. O artista plástico Iramaraí Vilela diz que não lembra há quanto tempo joga. Admite que não sabia jogar – e que continua não sabendo. “Mas eu evolui. Tenho um deficit de atenção muito grande, sou muito disperso. O dominó me fez prestar mais atenção.” Ele olha para o dono da venda e pergunta: – “Seu Vital, o senhor joga a próxima comigo?” – “Jogo. Pedra em você.” – “Estou jogando direito, Seu Vital.” – “É tão bonzinho…” No meio da balbúrdia, Seu Mini retorna e diz o que mais gosta no dominó – a interação social. “Numa mesa, pode estar o reitor de uma Universidade com um gari, um empresário com um mestre de obras. E não adianta. Se o reitor fizer uma besteira, qualquer um na mesa pode dizer na hora – que jogada merda!”

Durante as partidas, existem os curiosos, chamados de “perus”, que ficam olhando e comentando o jogo do lado de fora Seu Mini e Paulo Donizete já escreveram até um projeto de programa, a ser exibido na internet. Vai se chamar A hora da buchuda. A ideia é, a cada fim de semana, a produção ir a uma comunidade, fazer uma transmissão. Ver o que tem de culinária, a cultura do lugar, fazer entrevistas etc. – “Falta só a verba”, diz Seu Mini. No centro da venda, expectativa geral. A dupla Seu Vital/Iramaraí estava perdendo de 4 x 0. O risco de levar uma sonora buchuda era imenso. – “Confie em mim uma vez na vida, Seu Vital”, diz Iramaraí. A dupla vai se recuperando, empata, faz 5 x 4 e depois ganha de 6 x 4. A venda faz uma festa. Iramaraí comemora com Seu Vital. Foi como um título.

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É o sujeito que fica do lado de fora do jogo, geralmente em pé, olhando as pedras alheias e fazendo comentários, muitas vezes inoportunos. Há vários tipos: o Peru Fiscal, o Peru Juiz, o Peru Chato. Raramente aparece um Peru Calado.

PEDRAS

São 28 pedras, numeradas de um a seis. Mas jogador de dominó é cheio de manias. Não falam um, dois, três. A lógica é outra: 1 = Pio 2 = Duque 3 = Terno 4 = Quadra 5 = Quina 6 = Sena Em Pernambuco e na Bahia, cada jogador puxa seis pedras para jogar (e quatro ficam de fora, num canto da mesa). No restante do país, cada jogador puxa sete pedras.

DUPLAS

São quatro jogadores, que fazem duplas. O objetivo de quem joga é tentar fazer o jogador do lado direito “tocar”, para ajudar seu parceiro.

TOCAR

Quando o jogador não tem a pedra para seguir o jogo. Ele “toca”. Pode dizer “toquei” ou dar uma batidinha na mesa, que todos sabem.

VENCEDOR

A dupla que fizer seis pontos ganha e a perdedora se retira.


BUCHUDA

Quando uma dupla aplica um 6 x 0 nos oponentes. É motivo de muita gozação. Em muitas rodas de dominó, a buchuda é registrada até em caderno.

BATIDA NORMAL Vale um ponto.

CARROÇADA

Quando alguém bate com uma “carroça” (pedra com a mesma quantidade de números dos dois lados). Vale dois pontos.

LÁ E LÔ

Quando alguém pode bater em qualquer lado do jogo. Vale três pontos.

CRUZADA

É quando ao mesmo tempo se bate de carroça e Lá e Lô. Vale quatro pontos e é motivo de muita comemoração.

ORDEM DE CHEGADA

As duplas vão sendo montadas por ordem de chegada, para evitar que haja escolha dos parceiros.

NAS MELHORES LIVRARIAS

SECÃO

É o jogador que mal perde uma partida e já está na fila de novo, para jogar. Segundo os especialistas, é preciso esperar no mínimo duas partidas para conseguir voltar.

RANCHO

Quando o jogador dá a sorte de pegar várias pedras do mesmo naipe.

CHICOTE

Quando o jogador está com a última pedra do naipe. Se ele não prestar atenção e não a colocar, “levou chicote”. O parceiro fica irritadíssimo e os perus fazem a festa, nos comentários.

PEDRA-BÊBA

Apelido dado ao jogador que não conta as pedras durante a partida, e bota qualquer uma que der na telha. Tira a lógica do jogo e irrita muito o parceiro. Mas tem muito “Pedra-Bêba” que conta com a sorte, e escapa de levar buchudas.

SE DER EMPATE?

Vence quem tiver as pedras com os menores números. Se mesmo assim der empate, o jogo recomeça e a partida seguinte vale o dobro dos pontos.

“FECHAR O JOGO”

“Joca Souza Leão, sem favor, faz parte de um time que elevou a crônica à altura da melhor literatura. Publicitário bem-sucedido, amarrou as chuteiras no auge da profissão e dedicou-se com afinco ao ofício de ‘pensar em voz alta’, como tão bem o definiu o cronista-mor, o velho Braga.” Homero Fonseca, jornalista e escritor

O livro reúne 60 crônicas, escritas entre 2014/2016, e 50 histórias miúdas.

Artifício utilizado quando o jogo está ruim e a pessoa tem pedras que somam poucos pontos. Quando o jogo “fecha”, ganha quem tem menos pontos. www.cepe.com.br

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DIVULGAÇÃO

Claquete

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GÊNERO Pablo Larraín e suas antibiografias

O cineasta de No e O clube enfoca o poeta Pablo Neruda e a primeira-dama Jacqueline Kennedy em dois novos filmes TEXTO Mariane Morisawa, de Cannes

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Pablo Larraín ficou conhecido por sua trilogia sobre os anos terríveis da ditadura militar em seu país, o Chile, entre 1973 e 1990. Tony Manero (2008) mostrava um homem sem escrúpulos que sonhava ganhar um concurso de Os embalos de sábado à noite e revelava como a violência utilizada pelo regime espalhava-se pela sociedade. Post mortem (2010) fazia a autópsia do presidente democraticamente eleito Salvador Allende, morto no golpe militar liderado por Augusto Pinochet em 1973, sob a perspectiva de um funcionário menor do Instituto Médico Legal, repentinamente investido de seu pequeno poder. E No (2012) trazia a campanha vitoriosa do “Não” no plebiscito que depôs Pinochet. Depois disso, jurou que não voltaria


biografias, sua autobiografia, toda sua obra. Fiz o filme. E vou dizer: não acho que sei quem era. É um cara difícil de apreender. É como tentar segurar água com as mãos. Uma vez que você compreende isso, trabalha com muita liberdade.” Como exemplo, cita o discurso de agradecimento ao Prêmio Nobel de Literatura em 1971, quando Neruda relembrou sua jornada de fuga de seu país, onde era perseguido politicamente. “Num momento do discurso, ele diz que não sabe mais o que viveu, sonhou ou escreveu. Ou seja, não importa. Era isso com o que estávamos lidando.” Seu próprio nome era inventado: nasceu Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto e adotou o nome do poeta tcheco Jan Neruda. Mas, e Jacqueline Kennedy? O cineasta admite: “Não gosto de cinebiografias. São chatas. Acho que o que acontece com a maioria das cinebiografias é que fazem tanto esforço para o ator se parecer com a pessoa biografada, se comportar como ela, se for um cantor, cantar como ela e, aí, quando você assiste ao filme, ok, está parecido, pinta

Larraín diz que acha as cinebiografias chatas, pelo esforço da maioria delas em fazer do ator um clone do biografado a falar do período. “Posso fazer outro filme político, mas a questão da ditadura está encerrada para mim. Não coloco mais Pinochet na tela”, disse no Festival de Cannes em 2012. Então, agora, ele passou para as biografias – sempre com um pé na política, claro. Lançou Neruda, sobre o poeta chileno Pablo Neruda, no Festival de Cannes, em maio, e Jackie, sobre a primeira-dama dos Estados Unidos Jacqueline Kennedy, seu primeiro filme em inglês, em Veneza, e depois Toronto, em agosto e setembro, respectivamente. Claro que, em se tratando do cineasta chileno, não são biografias convencionais. “É uma antibiografia. Não dá para colocar Neruda num escaninho”, disse Larraín à Continente, no Festival de Cannes deste ano. “Li várias

bem, dança bem. E daí? Onde está o filme? Eu não queria isso”. Por essa razão, o diretor evitou identificar quem era quem e em que mês estavam. Neruda, que é o précandidato do Chile ao Oscar de filme em língua estrangeira, cobre apenas dois anos da vida do poeta, interpretado por Luis Gnecco. Começa em 1948, quando Neruda, senador do Partido Comunista, passa a ser perseguido pelo policial Óscar Peluchonneau (Gael García Bernal), a mando do governo de seu antigo aliado, o presidente Gabriel González Videla (Alfredo Castro, o ator-fetiche de Larraín, presente em todos os seus longas). Em 1949, depois de ser um fugitivo em seu próprio país, ao lado de sua mulher Delia del Carril

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1 NERUDA Longa traz um recorte de dois anos na vida do poeta chileno

(interpretada por Mercedes Morán), escapou pelos Andes para a Argentina e, dali, para a França. O cineasta mostra o lado hedonista de Neruda, famoso por ser um amante incrível, grande cozinheiro, colecionador de objetos do mundo todo, leitor voraz de todos os tipos de literatura. “Ele absorvia a vida com toda força”, disse Larraín. “Mas também era um homem que deu suas palavras para sua sociedade. Todos os seus sonhos estão lá. E eles se tornaram realidade. Porque ele iria ser o candidato à presidência. E seria eleito facilmente. Mas foi generoso, retirou-se da disputa e deixou Salvador Allende ser o aspirante. E eles ganharam.” Em 1970, indicado para apresidência do Chile, renunciou em favor de Allende, que venceu a eleição e foi derrubado em 1973 por um violento golpe militar orquestrado por Augusto Pinochet e apoiado pelos Estados Unidos. Mas isso foi bem depois dos acontecimentos mostrados no filme – porque, afinal, Larraín está dando um tempo em Pinochet. Mesmo focando em apenas dois anos da vida de Neruda, o longa ainda poderia ser uma cinebiografia tradicional. Não é por outros motivos. O principal: Peluchonneau não é um personagem real. Quer dizer, ele existiu, mas quem García Bernal interpreta é uma invenção. “Eu não acho que é um filme sobre dois personagens, mas sobre um único personagem. É um filme sobre um único personagem dividido em duas pessoas. É assim que vejo”, explicou Larraín. Neruda é mais um filme no espírito de Neruda do que sobre ele. Filho de um senador de direita, apoiador de Pinochet, Larraín acha que o Chile não lidou bem com as sombras de seu passado. Ainda assim, o país parece estar à frente do Brasil num quesito: em outubro, a Câmara dos Deputados aprovou um acordo qualificando Pinochet como “ditador, artífice de um aparato terrorista de Estado e autor intelectual do assassinato premeditado e traiçoeiro de Orlando Letelier”. Pouco antes, documentos liberados pelos Estados Unidos comprovaram que


FOTOS: DIVULGAÇÃO

Entrevista

PABLO LARRAÍN “MESMO UM FILME QUE NÃO FALE DIRETAMENTE DE POLÍTICA, É POLÍTICO”

Claquete

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a ordem de matar o ex-ministro de Salvador Allende em Washington, em 1976, partiu diretamente de Pinochet. Mas Larraín garante que nunca planejou mergulhar na história de seu país. “Neruda é uma ideia do meu irmão (o produtor Juan de Dios Larraín), ele queria fazer esse filme. Começamos a trabalhar antes de No. Aí fizemos No, porque Neruda era uma produção maior, com muitos atores, pelo país inteiro, em Buenos Aires, Paris. Levou tempo. Quando estava quase tudo pronto, o filme foi adiado por cinco meses. Entrei em pânico. Fizemos O clube enquanto esperávamos. Aí agora faço Jackie, com uma história de 1963!”, disse o diretor, rindo. “Meu agente me mandou um roteiro de ficção científica. Perguntei se ele não tinha nada que se passasse nos dias de hoje.”

JACKIE

No caso de Jackie, o corte é ainda mais radical: o filme se concentra em apenas alguns dias na vida de Jacqueline Kennedy, cerca de uma semana após o assassinato do presidente John F. Kennedy, em 1963. Ela recebe o jornalista Theodore H. White, da revista Life, disposta a definir sua própria história – e a de seu marido, e a de Camelot, como ficou conhecido o “reino” dos Kennedy.

2 JACKIE Natalie Portman interpreta a primeiradama norte-americana

Mas o filme, com roteiro de Noah Oppenheim, alterna a entrevista com o assassinato em si, a organização do funeral, o cortejo, até momentos anteriores à tragédia, como a reprodução do famoso programa em que ela mostrou a sua Casa Branca. “Não nasci nos Estados Unidos, então também tive de entender, de sentir, ou não conseguiria fazer”, disse, em sessão de perguntas e respostas durante o Festival de Toronto. “Claro que é um filme político, mas quis fazer de maneira mais oblíqua, para estabelecer a conexão por meio de uma mulher que moldou como o país a vê.” O longa dá oportunidade para Natalie Portman construir uma personagem contraditória, por vezes frágil, por vezes forte, que entende a importância de ter domínio sobre sua própria narrativa. Para a atriz, “existe uma responsabilidade por ser uma pessoa que existiu, mas, como o próprio filme diz, a verdade é uma versão e nem sempre os fatos são fatos”. Ela frisou que Jackie é uma ficção e não substitui um livro de história. “É a imaginação de uma pessoa que respeitamos como um ser humano complexo.”

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Aos 40 anos de idade, Pablo Larraín está numa posição privilegiada – afinal, que diretor pode se gabar de lançar dois filmes de boa repercussão no mesmo ano? Talvez isso se deva ao seu bom humor. Foram-se os tempos em que ficava incomodado com as perguntas sobre seus pais, o senador Hernán Larraín e a empresária Magdalena Matte. Na conversa com a Continente, no último Festival de Cannes, em maio, o cineasta fez graça com suas desavenças políticas com os dois – seu pai é do partido direitista Unión Demócrata Independiente e sua mãe é ex-ministra do governo Sebastián Piñeira, e vem da família de dois presidentes da República conservadores, um deles derrotado nas eleições de 1970 por Salvador Allende. Ficou para trás a época em que era conhecido como “filho de…”. Agora ele é Pablo Larraín, cineasta famoso no mundo todo, participante dos festivais de Cannes e Veneza e possivelmente indicado ao Oscar. CONTINENTE É um pouco triste pensar que nada mudou desde Neruda. Os pobres continuam pobres, os ricos continuam ricos. Há ditaduras em muitos países. O que pensa da situação política em nossos países da América Latina? PABLO LARRAÍN Acredito que estamos em uma grande crise em todos os lugares. Veja o que está acontecendo no Brasil. Mas prefiro ser um pouco otimista. A palavra “crise” vem do grego e significa crescer. Espero que sim. Não sei, acho que o mundo está organizado de uma forma que é muito difícil de mudar. Porque se trata de dinheiro. Outro dia, houve uma


reunião em meu país das empresas familiares. E o Chile é propriedade de cinco famílias, algo assim. Eles detêm cerca de 90% da riqueza. E os filhos estão assumindo, esse poder vai ficar aí. CONTINENTE Gael García Bernal acha que toda arte é política. Acredita nisso? PABLO LARRAÍN Claro. Mesmo um filme que não fale diretamente de política é político. Toda vez que você retrata quaisquer circunstâncias humanas é uma perspectiva política da vida. E, se você não reconhece isso como cineasta, está cometendo um erro. Outra coisa é fazer filmes diretamente políticos, e Gael e eu estamos muito interessados nisso. Gael é muito educado, estudou ciência política. CONTINENTE E você vem de uma família de políticos. PABLO LARRAÍN Claro. Eu tenho muito interesse em política. Não posso acreditar no que está acontecendo no Brasil. Na Argentina. Na Venezuela. Vejo Obama sentado ao lado de Raul Castro e dá vontade de pular na água! (risos) O que está acontecendo? Não sei, é muito confuso. CONTINENTE O que seus pais disseram quando você contou que estava fazendo um filme sobre Neruda? PABLO LARRAÍN Eles já estão… Acho que gostaram. Você deveria perguntar a eles! CONTINENTE Mas eles estão aposentados, imagino? PABLO LARRAÍN Não, meu pai é senador. De direita (sorri e esconde o rosto). CONTINENTE Que efeito isso teve em você? PABLO LARRAÍN No começo, muita gente me chateou. Agora, ninguém se importa. Eu não me importo. Tenho minha própria identidade. É ok. Não me sinto afetado por isso. No início da minha carreira, a imprensa colocava: “O filho de…”. Agora não tem mais isso. Colocam meu nome. Tenho minha própria identidade. Trabalho quase sempre com os mesmos atores. Na minha companhia, com minha família, meu irmão. CONTINENTE Consegue separar o político do pai?

“O mundo está se organizando de uma forma que é muito difícil de mudar. Porque se trata de dinheiro” PABLO LARRAÍN Claro. Senão… (risos) Seria terrível. Nós discutimos muito. E eu faço gozação com ele, é fantástico. CONTINENTE Mas eles devem ter dado alguma liberdade para você, porque pensa completamente diferente. PABLO LARRAÍN Sim. E eu respeito muito isso. Porque, se meu filho ou minha filha vier me dizer um dia que quer apoiar um candidato de direita… Eu vou querer ter uma conversa séria. Eu respeito meus pais porque é difícil educar alguém com tanta liberdade.

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CONTINENTE E no seu país deve ser difícil ser cineasta sem ter dinheiro da família. PABLO LARRAÍN Não é verdade. Nunca ganhei um único centavo da minha família. Comecei fazendo filmes de baixíssimo orçamento. Aí, deu certo, no próximo tinha um pouquinho mais de dinheiro. Foi assim. Saí de casa quando tinha 21 anos. Parte da liberdade vem disso. Não dá para ser livre, se não for assim. E há uma confusão que foi espalhada pelo jornal The New York Times porque o sobrenome da minha mãe é o mesmo de uma dessas grandes famílias que controlam o Chile. E muita gente acha que é minha família. Quem me dera, querida! (risos) Queria ter esses milhões de dólares. Minha mãe trabalha. Tem sua própria empresa, vai bem, tem dinheiro, mas não é bilionária. Eu ia abandonar o cinema, se tivesse tanto dinheiro. Com certeza, não ficaria num apartamento fora de Cannes porque é mais barato!


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Claquete

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XAVIER DOLAN Enfant terrible lança o sexto longa-metragem

É apenas o fim do mundo, filme mais recente do jovem diretor canadense, estreia no Brasil depois de uma passagem conturbada pelo Festival de Cannes

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Pode-se acusar Xavier Dolan de muita coisa, menos de falta de energia. O menino-prodígio do cinema de autor, o enfant terrible que aos 27 anos já lançou seis longas-metragens, todos apresentados no Festival de Cannes, além, lógico, do muito comentado videoclipe de Hello, de Adele, faz um cinema vibrante, apaixonado, ou, para alguns, histérico. Sua estreia, Eu matei minha mãe (2009), era uma história semiautobiográfica com roteiro seu sobre a relação conturbada entre um jovem adolescente (interpretado pelo próprio Dolan) e sua mãe (Anne Dorval). Amores imaginários (2010), sobre um triângulo amoroso, também


1 É APENAS O FIM DO MUNDO Adaptação de uma peça de Jean-Luc Lagarce, filme estreia agora no Brasil

foi escrito, dirigido e protagonizado pelo franco-canadense. Laurence Anyways (2012) tinha Melvil Poupaud no papel de um homem que fazia a transição de gênero e mostrava como isso afetava seu relacionamento com sua mãe (Nathalie Baye) e sua namorada (Suzanne Clément). Tom na fazenda (2013) é a primeira adaptação feita pelo cineasta, de uma peça de Michel Marc Bouchard. Dolan é um rapaz da cidade que passa um tempo com a família do namorado, que acabou de morrer. Mommy (2014) era novamente a história da relação conturbada entre uma mãe (Anne Dorval) e seu filho, o problemático adolescente Steve (Antoine-Olivier Pilon).

É apenas o fim do mundo, que estreia agora no Brasil, é uma nova adaptação teatral, desta vez de uma peça de Jean-Luc Lagarce, sobre um escritor famoso (Gaspard Ulliel) que, no estágio terminal de uma doença, retorna à casa de sua família depois de 12 anos. O que precisa ser dito não é, e o que não precisa é gritado – diálogos acalorados não são incomuns em sua obra, mas aqui é praticamente o tempo todo. Também não se pode dizer que seus filmes não correspondem à sua personalidade. Uma entrevista com o diretor é, no mínimo, divertida. Ele não tem medo de falar o que pensa – nem de reclamar quando acha que seu filme merecia um prêmio melhor, algo que é um tabu e, claro, resulta em narizes torcidos. Não tenta posar de intelectual e admite que nunca foi cinéfilo, mesmo sendo descrito como um (leia na entrevista). É exagerado e gosta de frases de efeito. Frequentemente, encena aquilo que quer expressar, puxando o jornalista para perto, fingindo contar um segredo. No set, não é muito diferente. “Ele tem uma maneira de se relacionar única. Fala durante as tomadas, às vezes toca música durante a cena”, disse Gaspard Ulliel, durante entrevista no último Festival de Cannes. “Há um aspecto físico na maneira como ele dirige. Ele pode segurar o operador de steadycam e movê-lo pelo set. E ele nunca corta. A gente continua até terminar o rolo de filme. É um processo totalmente novo para mim. E é estimulante, no fim das contas. Você perde o equilíbrio, às vezes. Perde seu rumo. E é isso que permite a Xavier tentar capturar alguma coisa nos atores que está fora de seu controle, de suas consciências.” Nathalie Baye, que trabalhou com François Truffaut e Jean-Luc Godard e faz seu segundo filme com Dolan, elogia o jovem cineasta. “Você pode perguntar qualquer coisa. Se ele não tem a resposta, não vai mentir. Vai dizer: ‘Não sei, vamos descobrir’. E

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fala de maneira simples. Não é um intelectual. Nem tenta psicologizar demais. Sua intuição é muito forte.”

CRÍTICA

É apenas o fim do mundo é a maior produção do cineasta canadense, reunindo um elenco dos sonhos da França. Gaspard Ulliel é Louis, que saiu da pequena cidade onde morava para ser reconhecido como escritor. Depois de 12 anos, volta para ver sua família – a mãe (Nathalie Baye), o irmão mais velho Antoine (Vincent Cassel), sua mulher, a submissa Catherine (Marion Cotillard), e a irmã mais nova, Suzanne (Léa Seydoux). Louis tem algo para contar, mas ninguém o deixa falar. “Foi desafiador ficar tão quieto. Mas, no fim, também dá para considerá-lo o personagem mais interessante”, disse Ulliel. “Me lembro de receber o roteiro com um pequeno bilhete em que Xavier tentava me convencer a aceitar o papel. Deu para sentir que ele tinha medo de eu ficar desapontado com o papel, porque eram poucos diálogos. Então, ele insistia no peso dos silêncios.” Os outros falam muito, à exceção de Catherine, que estabelece com Louis um entendimento sem palavras. Mas também não conseguem dizer o que é importante. “Nos silêncios você vê que há muitas coisas não ditas: Por que foi embora? Por que não ajuda seu irmão? Por que voltou? Há inveja misturada com admiração”, afirmou Baye. “Você pode falar mais facilmente com seus amigos do que com sua família, porque a memória de sua família tem lembranças maravilhosas e terríveis. É tudo muito à flor da pele.” O jeito passional de lidar com as coisas transfere-se também na relação de Dolan com as críticas. Apesar de dizer que lida bem com elas, a não ser quando o crítico comete erros, a verdade é que Dolan não esconde a mágoa quando é criticado – o que aconteceu muito no Festival de Cannes deste ano com É apenas o fim do mundo, que ele declarou considerar seu melhor filme. No fim, apesar de todas as críticas negativas, o longa levou o Grande Prêmio do Júri, uma espécie de segundo lugar. “Sei que Xavier se


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Entrevista

XAVIER DOLAN “NÃO TIVE TEMPO DE SER CINÉFILO”

Claquete

CONTINENTE Você reage bem a críticas? XAVIER DOLAN Não gosto quando cometem erros. Dizer que Tom na fazenda é uma comédia não é crítica, é um erro. Magnólia não é uma comédia, mas tem muita coisa engraçada. Mas, sim, eu reajo bem às críticas. E já faz anos que pessoas entram na sala de edição para me dizer que tal coisa é ruim, que é melhor eu desistir daquilo.

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sentiu pessoalmente ofendido”, disse Ulliel, dois dias após a exibição para a imprensa em Cannes. “Ele também é atacado pessoalmente. Tomara que ele aprenda a se distanciar, porque, no fim, não é o mais importante.” De fato, às vezes as críticas extrapolam o julgamento do valor cinematográfico das obras para comentar sobre a personalidade do diretor, que, com seu jeito transparente e sincerão, não agrada a todos. Dolan teria ficado tão chateado com a recepção a seu último filme, que declarou que nem vai inscrever seu próximo em Cannes. The death and life of John F. Donovan, sua primeira

XAVIER DOLAN 2 Além de dirigir, ele também atua nos seus filmes

produção em inglês, tem elenco igualmente estrelado: Kit Harington (o Jon Snow de Game of Thrones), Jessica Chastain, Natalie Portman, Susan Sarandon. Agora é ver se ele vai resistir ao chamado de Thierry Frémaux, diretor do Festival de Cannes, e à possibilidade de ter seu sétimo filme no evento – ele ganhou a Caméra d’Or com Eu matei minha Mãe e o Prêmio do Júri (empatado com ninguém menos que Jean-Luc Godard) por Mommy, além do Grande Prêmio este ano. MARIANE MORISAWA, DE CANNES

CONTINENTE E você segue os conselhos? XAVIER DOLAN Sim. Ouço uns 85% do que as pessoas têm a dizer. Eles são meus amigos, são pessoas com boas intenções, estão pensando no filme e em mim, estão cuidando de mim. Essa é a crítica antes do lançamento. Agora, quanto à crítica depois do lançamento, não reajo bem a ataques pessoais. Acho que essa é uma praga do jornalismo e da crítica cinematográfica. Não existe lugar para isso na arte da crítica – que eu admiro, tenho toneladas de livros em casa sobre essa arte. Adoro ler críticas. Leio todas referentes aos meus filmes. Algumas são bem-escritas, outras não gostam do filme, mas fazem boas análises. Teve um crítico que não gostou de Laurence Anyways, mas escreveu um grande ensaio sobre questões

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transgêneros, dizendo como o filme retratava bem o tema, mas não era tão bom. Alguém que levou tempo, pesquisou, pensou. Você lê, e seu QI explode! É diferente ler uma crítica que só quer magoar, não criticar seu filme. Essa é uma crítica irrelevante. Não é interessante, nem ético. Não dou a mínima. CONTINENTE Você é descrito como cinéfilo. Quais cineastas e filmes foram inspiradores para você? XAVIER DOLAN Sou considerado cinéfilo, mas nunca ninguém me perguntou se eu era mesmo. Eu não tive tempo de ser cinéfilo. Comecei a assistir a filmes sérios quando tinha 16 anos. Ainda estava na escola. Quando tinha 17 anos, entrei na Faculdade de Artes, Letras e Cinema. Desisti depois de um mês. Aí comecei a alugar vários filmes – e a pagar muitas multas por não devolvê-los no prazo. Porque, sim, na época, tínhamos locadoras de vídeo. Não existia a Apple TV. Isso não é muito tempo, porque comecei a dirigir filmes quando tinha 18. Entre 16 e 18, não dá para ver tantos filmes. Por exemplo, nunca tinha visto um filme de Hitchcock antes de dirigir Tom na fazenda. Eu montei o filme e disse para minha amiga que precisava assistir. Porque as pessoas vinham me dizer que o filme era muito hitchcockiano, e eu: “Ã-hã”. Então assisti a 25 filmes de Hitchcock durante o Natal. A lista do que não vi é longa e vergonhosa. CONTINENTE Gosta de Bergman? Sente-se influenciado? XAVIER DOLAN Vi alguns. Minha lista de cineastas que me influenciaram é estranha. São filmes que me marcaram quando eu era criança, basicamente produções para a família dos anos 1990, como


INDICAÇÕES Batman: O retorno. Há uma cena em que Michelle Pfeiffer se transforma na Mulher-Gato. A maneira como ela atua passa a ideia de que tudo é possível, tudo é permitido, ela pode fazer o que quiser. Ela grita, é exagerado, mas também nos mostra que é possível ser assim de verdade. Me inspira esse tipo de performance, de momento, de liberdade. Adoro quando ela fala: “Não sei quanto a você, Miss Kitty, mas eu estou me sentindo bem mais apetitosa!”. E você pensa: Espera, o que ela disse? Isso é cinema. Para mim, a influência não tem a ver com copiar. Um bom cineasta vai automaticamente inspirar. É impossível não acontecer com Paris, Texas. Não é que vou copiar Wim Wenders, nossos estilos são diferentes. Mas me inspira. Quando falo dos filmes da minha infância, são os que me fizeram pensar cinematograficamente. James Cameron, com Titanic. Você jamais poderia identificar num dos meus filmes, que são vistos como “de arte”, mas, para mim, há 17 planos de reação da Kate Winslet que eu peguei e ninguém vai jamais perceber. É assim que a inspiração funciona para mim. CONTINENTE Procura ter um estilo próprio? XAVIER DOLAN Quero estar aberto ao que o roteiro necessita, não ao de que eu necessito. Não gosto de diretores que fazem filmes para ficar bem na fita. Quero fazer projetos, não filmografia. Não quero que assistam a um filme e digam: Ah, este é um filme do Xavier Dolan. Esse não é meu sonho na vida. Minha ambição é fazer filmes que façam sentido individualmente, especificamente. Não é questão de mudar de estilo,

mas de mudar de roteiro. Vou dar o estilo que o filme necessitar. CONTINENTE Você saiu da faculdade depois de um mês. Sente falta do conhecimento mais técnico quando está no set? XAVIER DOLAN Não. Você não aprende essas coisas na escola. Você aprende fazendo. Coloca suas duas mãos na câmera, sente e então compreende. Não mata ter educação, claro. O que falta para mim é cultura geral. E tenho vergonha de admitir. Me falta cultura geral em política, economia, muitas coisas. Tinha um amigo estudando na McGill, que é uma universidade Ivy League nos Estados Unidos. Você pode nunca ter ouvido falar, mas juro que é importante, e o campus é lindo… E meu produtor-executivo estudou na McGill, o que é muito impressionante para mim. E intimidante. Tenho uma coisa por estudantes. Primeiro: eles são sexy. Eu queria voltar para a escola, mas não para aprender como fazer meu trabalho. Não acho que dá para aprender a fazer esse trabalho. Você aprende observando outras pessoas, ou experimentando. Sempre me pergunto: Será que fiz errado? Será que não sou cineasta? Sou capaz de fazer? Talvez não seja um diretor de verdade. Talvez seja um diretor de mentira. Talvez tenha um filme de mentira. Me pergunto essas coisas constantemente. Mas não acho que ir para a faculdade me ajudaria a responder essas questões. Você não precisa do diploma para entrar no set.

COMÉDIA

IRMÃ

Dirigido por Zach Clark Com Addison Timlin, Ally Sheedy Supo Mungam Films

AÇÃO

JASON BOURNE

Dirigido por Paul Greengrass Com Matt Damon, Tommy Lee Jones Universal

Colleen é uma jovem freira que evita, a todo custo, manter contato com a família. A notícia de que seu único irmão sofreu um grave acidente no Iraque, no entanto, faz com que ela retorne à pequena cidade natal e à casa onde sua mãe (Ally Sheedy, de O clube dos cinco) preserva seu quarto – com seus cartazes de filmes góticos – intacto. O diretor Zach Clark sabe misturar leveza e acidez nessa comédia que conquistou o Sundance.

A série de filmes ancorados no personagem Jason Bourne chega ao quinto longa-metragem com um incomparável ímpeto narrativo. Matt Damon reprisa o papel que o catapultou ao estrelato, mas o que segura mesmo é a maestria do diretor Paul Greengrass em dosar sequências explosivas (sem esquecer as clássicas perseguições ofegantes por ruas estreitas) com o drama do homem que é uma máquina de matar. Tommy Lee Jones, Julia Stiles e Alicia Vikander também estão no elenco.

DRAMA

CLÁSSICO

Dirigido por Kleber Mendonça Filho Com Sonia Braga, Humberto Carrão Imovision

Dirigido por Otto Preminger Com Jean Seberg, Debora Kerr New Line Home Video

AQUARIUS

Clara (Sonia Braga) é uma jornalista aposentada que mora há décadas num edifício na orla de Boa Viagem, zona sul do Recife. Diego (Humberto Carrão) é o executivo de uma construtora que adquiriu todos os apartamentos do prédio, menos o dela, e que planeja construir um arranha-céu naquele lugar. O embate entre eles é o esteio do segundo longa ficcional do realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho. Trata-se de uma bela ode à necessidade de preservar a memória e ao dever de resistir.

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BOM DIA, TRISTEZA

Cecile (Jean Seberg) e Raymond (David Niven) estão de férias numa luxuosa mansão na Riviera Francesa. Porém, não são um casal, e, sim, uma filha mimada e seu pai fútil e leviano. Quando Anne (Deborah Kerr, uma diva) entra em cena, jogando charme para o rico protagonista, o equilíbrio hedonista que marca a relação familiar fica ameaçado. Sentindo-se excluída, Cecile se rebela. Em 1958, Otto Preminger já mostrava porque seria considerado, para todo sempre, um dos melhores cineastas da história.


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Cardápio 1

TV O banquete dos programas de culinária

Televisivos de gastronomia são um dos maiores filões dos canais abertos e fechados, oferecendo ao público mais do que “apenas” receitas TEXTO Débora Nascimento

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Um homem de meia idade, com

careca avançada, barba por fazer, bigode, bermuda surrada, sandália havaiana velha e camisa florida aberta até a barriga chega em frente à câmera da TV e, com pesadíssimo sotaque carioca, anuncia: “Hoje, vamos fazer uma moqueca de ovo!”. Tem início mais um episódio do Larica Total, programa de “culinária de guerrilha”, realizado pelo Canal Brasil entre 2009 e 2012, com reprise até 2014. Atualmente, seus 75 episódios podem ser revistos na seção Now da Net, no site do canal ou no YouTube – neste, estão disponíveis alguns poucos trechos dessa divertida epopeia gastronômica. O sucesso do televisivo pode ser medido pela quantidade de internautas que pedem, em comentários nas redes sociais, a sua volta: ele não foi cancelado por falta de público, apoio ou verba, mas porque o apresentador


1 LARICA TOTAL Em 2009, programa ganhou APCA de Melhor Humorístico

Paulo Tiefenthaler cansou de viver o personagem do solteirão convicto que prepara gororobas com “o que tem pra hoje” em seu apartamento em Santa Teresa. A realização do Larica Total, eleito Melhor Programa Humorístico de 2009 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), é uma prova inconteste do quão longe foi o interesse do espectador e dos canais de TV pelos programas de culinária. O menu na televisão (e nos serviços de streaming) é variadíssimo: tem programa de chef ensinando a cozinhar, de celebridade mostrando como cozinha, de gente competindo para ver quem cozinha mais rápido e melhor, de chef viajando para degustar “comeu-morreu” em lugares exóticos. Segundo o Ibope, no Brasil, são exibidos 67 televisivos desse tipo em 70 canais, entre TV aberta e fechada, como GNT, TLC, Fox Life,

Segundo o Ibope, no Brasil, são exibidos 67 programas de culinária em 70 canais, entre TV fechada e aberta Sony, Discovery e Food Network (que tem canal ao vivo na web). Ao que parece, apostar nesse filão se tornou ingrediente crucial na receita para conquistar audiência. O paradoxo desse fascínio pelos programas de gastronomia é que hoje as pessoas têm menos tempo para cozinhar do que em 1958, quando Ofélia Ramos Anunciato repassou suas primeiras receitas em um quadro no Revista feminina, da TV Tupi. O sucesso foi tanto, que, após uma década, a cozinheira foi contratada pela TV

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Bandeirantes, na qual comandou por 30 anos o Cozinha Maravilhosa da Ofélia. Paralelamente, nos Estados Unidos, construía sua carreira Julia Child, carismática apresentadora de TV que trouxe para o seu país o conhecimento que obteve com a cozinha francesa, após viagem a Paris. Ambas, Julia e Ofélia, tornaram-se, durante muito tempo, referências em seus países para a criação de programas de culinária. Hoje, no entanto, são poucos os canais que investem no perfil de senhoras que cozinham sobre um balcão e tratam o público como se fosse formado apenas por “donas de casa”. No Brasil, esse estilo mantémse com Palmirinha (Fox Life) e Ana Maria Braga (TV Globo). O restante dos canais aposta em apresentadores com perfis diversificados. No entanto, uma característica se sobressai: geralmente, esses profissionais são mais jovens. Esse aspecto ganhou maior dimensão com o cute chef inglês Jamie Oliver, que se tornou um fenômeno quando surgiu na TV inglesa em 1996, aos 21 anos, com The Naked Chef – o título deu origem ao primeiro de seus 10 livros de receitas e depois a outros programas. Com a popularidade em alta, Oliver aproveitou para começar uma campanha em prol da alimentação saudável, sendo um dos maiores incentivadores do consumo de alimentos orgânicos e de uma reforma no sistema de merenda nas escolas britânicas – antes baseado em produtos industrializados e fast-food, algo que se vê nas escolas públicas e particulares do Brasil. A formidável repercussão do chef abriu espaço para apresentadores como Bela Gil. Ao contrário de Julia Child, que dizia “Com bastante manteiga, tudo é bom”, a filha de Gilberto Gil, formada em Nutrição na Hunter College (EUA), dedica-se com tanto empenho a pratos saudáveis em seu Bela Cozinha (GNT), no ar desde o início de 2014, que acabou virando alvo de piadas nas redes sociais.


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Algumas de suas receitas, inclusive, tornaram-se memes clássicos, como a melancia grelhada com azeite e pimenta. “Acredito que um dos maiores inimigos da alimentação saudável é o marketing e estou constantemente remando contra essa maré de propagandas, tentando mostrar e glorificar o que realmente é bom para o nosso corpo e para o planeta”, defendeu, em entrevista ao site da Continente, em agosto do ano passado.

Cardápio

POLÊMICA NO AR

De prato em prato, ampliou-se tanto o cardápio da gastronomia na TV, que abriu espaço até para o modelo e ator Rodrigo Hilbert, do Tempero de Família, também exibido pelo GNT. O hostess foi alvo de uma baita polêmica ao exibir, em março deste ano, a captura de um filhote de ovelha de seis meses e a sangria do animal pendurado de cabeça para baixo. “É assim que geralmente se mata um carneiro que vai para o supermercado, né? Não adianta a gente achar que a carne chega à nossa mesa sem ter que fazer isso. O animal tem que ser abatido”, disse no programa. Após críticas na imprensa e nas redes sociais, foi retirado do programa o trecho da morte do bicho. Embora Rodrigo Hilbert tenha dado ao espectador a impressão de que o homem criou os programas de culinária imediatamente após ter descoberto o fogo, essa exibição de um ato rude proporcionou ao público a oportunidade de entender que o processo para a carne chegar até ao prato não começa no freezer do supermercado. De certa forma, a controvérsia foi oportuna para o discurso dos ativistas do vegetarianismo e veganismo. Essa saraivada de programas gastronômicos não proporciona apenas a ocorrência de gestos maldigeridos pelo espectador e gafes, como Bela Gil oferecer um alimento que seu convidado detesta, mas, sobretudo, incentiva a valorização do ato de cozinhar. “Essa profusão significa que essa atividade humana foi reposicionada na escala de valores do grande público. Toda escala é uma hierarquia, e certamente tomou lugar de outro tipo de preferências. Sinaliza uma disputa acirrada por um

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2 ÓFELIA Pioneira na TV brasileira, passou quatro décadas no ar JULIA CHILD 3 Apresentadora tornou-se ícone na TV norteamericana

4 RODRIGO HILBERT Ator e modelo apresenta o programa Tempero de Família, no GNT MASTERCHEF 5 Exibido pela Band desde 2014, é o reality show de culinária de maior sucesso no Brasil

mesmo público, e interessa à indústria alimentar em geral”, afirma o sociólogo Carlos Alberto Dória, autor do livro Formação da culinária brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira (2014). Assim como Dória, a jornalista e escritora especializada em gastronomia Luciana Mastrorosa é uma das pessoas aficionadas por alimentação a considerar que esses programas contribuem para o enaltecimento da cultura culinária. “Algumas décadas atrás, trabalhar na cozinha era considerado, erroneamente, um emprego menor. À medida que os chefs se transformaram em celebridades – primeiro no mundo, depois no Brasil –, houve uma valorização natural na carreira de cozinheiro, inclusive com a criação de cursos, especializações e todo um novo arsenal voltado para a formação desse profissional”, avalia, e pondera: “Esse glamour construído em torno da profissão de cozinheiro leva a muitas ilusões”.

MASTERCHEF

Talvez seja a busca por esse glamour que leve muitos candidatos a participarem do programa de maior audiência na área, no Brasil, o MasterChef. Transmitido pela Band desde 2014, levou a emissora, em 2015, à surpreendente liderança, com

Ampliou-se tanto o espaço para a gastronomia na TV, que profissionais de outras áreas dividem espaço com chefs 10 pontos no Ibope, ultrapassando, inclusive, a Globo, que, por sua vez, assim como a Record e o SBT, também exibe competições gastronômicas. A TV de Sílvio Santos, por exemplo, apresentou, em setembro, a quarta temporada da versão nacional do programa que popularizou o neurastênico chef londrino Gordon Ramsay, Hell’s Kitchen: Cozinha Sob Pressão. A estreia conseguiu 8.4 pontos de audiência. Criado em 1990, no Reino Unido, o MasterChef virou, a partir de 2005, uma franquia e passou a ser exibido em mais de 40 países e em diferentes versões, como o MasterChef Junior, com crianças competindo, e o Celebrity MasterChef, com famosos. Influenciado pelo sucesso do reality show, foi criado, em 2012, o Top Chef (exibido pela Sony), em que a disputa é entre profissionais e não amadores. O televisivo já foi produzido em nove países e ganhou

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adaptações, como Top chef: Masters, com chefs premiados, e Top Chef Justdesserts, com confeiteiros. Ao contrário desses reality shows e dos programas de balcão, de caráter efêmero, iniciativas televisivas como Chef’s Table, sofisticada série de documentários da Netflix sobre renomados chefs internacionais, têm mais perenidade. Na primeira temporada, o destaque ficou com o cozinheiro Massimo Bottura, que comanda a Osteria Francescana, em Modena, Itália (em primeiro lugar na lista The World’s 50 Best Restaurants). A segunda, que estreou em maio deste ano, conta com o brasileiro Alex Atala. As duas próximas temporadas já estão confirmadas. Outros programas que resistem mais ao tempo são os apresentados pelo chef nova-iorquino Anthony Bourdain. Realizados a partir de viagens, abordam a cultura de diversas cidades a partir do olhar perspicaz do cozinheiro, roteirista e autor de diversos livros sobre o tema. Em Ao ponto (2010), ele escreve sobre a experiência de se transformar em um apresentador de TV: “Fui sugado – não pela fama ou dinheiro (do qual havia bem pouco). Faz tempo que eu já havia consumido toda a cocaína que jamais quisera. Nenhum carro esportivo curaria minhas dores. Fui seduzido


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Cardápio

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6 ANTHONY BOURDAIN Nova-iorquinio viaja o mundo para conhecer sabores exóticos

pelo mundo – e pela liberdade que a televisão me deu de viajar o quanto quisesse. Também fui entorpecido por um novo e excitante poder de manipular imagens e sons com o intuito de contar histórias, de fazer a audiência sentir o que eu queria que ela sentisse sobre os lugares em que estive. Estava cada vez mais orgulhoso de alguns dos episódios que eu e meus parceiros fizemos – e de como os estávamos fazendo. Comecei a apreciar o que editores de vídeo, técnicos de som e de pós-produção eram capazes. Fazer TV estava se tornando… divertido, e, em mais do que apenas alguns casos, realmente, criativamente satisfatório”. Esse banquete de programas culinários, em que o espectador, se não aprende a cozinhar, habitua-se a comer com os olhos, certamente aponta um benéfico interesse maior da sociedade contemporânea pela alimentação. Para o sociólogo Carlos Alberto Dória, “A receita é como um mito em torno de um prato. Para fruir essa dimensão, não é obrigatório cozinhar. A diversão está em ver alguém fazer, ver o mito em ação”. Nem que seja o icônico “frango total flex” do Larica Total.

Entrevista

LUCIANA MASTROROSA “NUNCA FALAMOS TANTO DE COMIDA E COZINHAMOS TÃO POUCO” A jornalista e escritora especializada em gastronomia Luciana Mastrorosa, formada pela tradicional escola Le Cordon Bleu Paris, com diploma no curso de Hautes Études du Goût (Estudos Avançados do Gosto), em parceria com a Université de Reims Champagne-Ardenne, mantém, há 10 anos, o blog Guloseima, em que escreve sobre receitas, vinhos, viagens e notícias da área. Diretora da agência Guloseima Comunicação, especializada em gastronomia, é também autora do livro Pingado e pão na chapa – Histórias e receitas de café da manhã (Memória Visual) e do e-book Natal feliz – 30 receitas incríveis para a sua ceia (2015). Atualmente, estudante de Nutrição na Universidade de São Paulo, ela conversa com a Continente sobre um produto televisivo que acompanha: os programas de culinária. CONTINENTE O que toda essa profusão de programas de culinária significa? Estamos perdendo espaço para outras expressões culturais? LUCIANA MASTROROSA Vejo com bons olhos essa profusão de programas de culinária. Não pela competição, mas pelo fato de atraírem a atenção para o tema da comida. Acredito que a gente vive em uma época paradoxal: nunca falamos tanto de comida e cozinhamos tão pouco. Por falta de tempo, de saber ou de interesse, estamos cada vez mais distantes da cozinha, e isso, sim, eu considero um problema. Não acho que a profusão de programas de culinária resulte em uma perda de espaço para outras expressões

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culturais. Acredito que cada uma tem seu espaço garantido e, em certos momentos, uma assume mais os holofotes, outras menos. CONTINENTE Essa grande quantidade de programas sinalizaria uma falta de criatividade dos canais? A quem interessa investir nesse filão? LUCIANA MASTROROSA Não penso que seja uma falta de criatividade, mas, sim, o reflexo de um aumento de interesse por parte do público sobre esse assunto. Masterchef, por exemplo, é um fenômeno, o Brasil inteiro fala disso. E tem seu mérito: aproxima o grande público de um fazer culinário mais elaborado e ajuda a desmistificar um pouco a profissão de cozinheiro. CONTINENTE O que leva o espectador a assisti-los? Qual seria o perfil desse público? LUCIANA MASTROROSA Acredito que o público se interesse por esses programas culinários basicamente por dois motivos: aprendizado e inspiração. Aprender novas receitas, entender novas técnicas, inspirar-se a conhecer novos sabores, ingredientes locais, explorar mais o lugar onde se vive. Os que têm formato de reality, como o Masterchef, têm ainda um terceiro fator, que é o elemento do sonho, da superação. Creio que o perfil do público pode mudar conforme o programa – e tem para todos os gostos, dos que privilegiam uma cozinha mais natural aos que exploram o mundo dos fast foods. CONTINENTE Você acha que aconteceu uma valorização ou elitização da cozinha? LUCIANA MASTROROSA Acho que houve uma valorização. Até algumas décadas atrás, trabalhar na cozinha era considerado, erroneamente, um emprego menor. À medida que os chefs foram se transformando em celebridades (primeiro no mundo, depois no Brasil), houve uma valorização natural na carreira de cozinheiro, inclusive com a criação de cursos, especializações e todo um novo arsenal voltado para a formação desse profissional. Antigamente, quem queria estudar técnica culinária tinha poucos cursos à disposição. Quem possuía recursos, ia estudar hotelaria no exterior. Quem não


pode fazer o que ela quiser – em resposta a um comentário do colega e chef Erick Jacquin (que disse a uma candidata que ela já “podia casar” após ter feito um prato bom). A batalha existe, é real, e que bom que podemos enxergar isso e tentar mudar essa realidade para que homens e mulheres possam ser igualmente respeitados.

possuía recursos, começava do zero, trabalhando arduamente na cozinha pela experiência. Hoje em dia, os dois caminhos coexistem, mas há mais opções de cursos de excelente qualidade no Brasil. Do ponto de vista do acesso a cursos universitários, pode-se dizer que, sim, que há uma elitização, pois nem todos podem pagar as mensalidades desses cursos. Por outro lado, é errôneo acreditar que o estudante já sai pronto para chefiar uma cozinha. É preciso muita experiência profissional para receber o título de chef. Esse glamour construído em torno da profissão de cozinheiro leva a muitas ilusões. CONTINENTE A impressão que a TV passa é de que as mulheres ainda são apenas cozinheiras e os homens, chefs. Como você percebe essa questão de gênero nesses programas? LUCIANA MASTROROSA Acho esse momento que vivemos muito rico para esse debate, que tem de ser levado em consideração, sim. Por muito tempo, o espaço da cozinha para a mulher foi o lar. O espaço da cozinha para o homem era a cozinha profissional.

“À medida que os chefs foram se transformando em celebridades, houve uma valorização natural na carreira” Até hoje, muita gente, infelizmente, continua a pensar assim. Certos prêmios gastronômicos internacionais ainda fazem uma distinção do tipo “fulana é a melhor chef mulher de 2016”. Mas o prêmio principal só vai para homens… Não faz sentido, certo? Prêmios não deveriam ter gênero, na minha opinião. Sabe-se que a cozinha profissional ainda pode ser bem machista e isso é algo que deve ser combatido diariamente. De fato, talvez a TV reforce um pouco esse estereótipo, mas não creio que seja em todos os programas. No caso do MasterChef, por exemplo, a chef Paola Carosella sempre me pareceu bastante combativa na questão de gênero, defendendo, inclusive, no programa, que a mulher

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CONTINENTE Como são muitos e num meio dispersivo, esses programas vão contra o objetivo dos livros de receitas, que é exatamente registrar e perpetuar a feitura dos pratos? LUCIANA MASTROROSA Penso que a gente está atravessando um momento muito interessante de mudança de paradigmas. Eu aprendi nos livros, no máximo, na TV. Mas as gerações mais jovens já têm à disposição mil e uma maneiras de se informar: pelos livros, pela internet, pelo celular, pela televisão… Por isso, não creio que esses programas vão contra o objetivo dos livros, pelo contrário! Muitos desses programas acabam se transformando também em livros de receitas, convivendo com eles, fazendo um crossmedia muito interessante e bem-vindo. CONTINENTE Você tem programas de culinária prediletos? Quais? E por quê? LUCIANA MASTROROSA Tenho lembranças muito queridas de quando comecei a verdadeiramente trabalhar com escrita gastronômica. Além de buscar avidamente livros sobre o assunto, eu adorava acordar cedo no fim de semana e assistir aos programas do Jamie Oliver e da Nigella, que na época passavam no canal GNT. Aquilo me inspirava muito, a maneira como eles tratavam os ingredientes, as cozinhas equipadas, a horta… Isso, de certa forma, moldou meu desejo de me tornar quem sou. Hoje em dia, acompanho alguns programas, mas não todos. Gosto muito do MasterChef, embora ache que os jurados pegam pesado demais nas críticas, às vezes, e o lance da competição a todo custo me incomoda. Mas gosto de ver a evolução dos cozinheiros, de como se esforçam para ser melhores. E aprecio o trabalho da Bela Gil, que tem se dedicado a uma seara pouco explorada anteriormente, que é uma alimentação mais natural, de uma maneira singela e leve.


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1 PAT THOMAS É um dos representantes do highlife, gênero que antecede o afrobeat

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MIMO De volta à Cidade Alta

Sem apresentações em Olinda em 2015, este ano o festival retorna ao seu local de origem com shows que afirmam seu perfil multiétnico e sofisticado musicalmente TEXTO AD Luna

Pesquisa apresentada em julho deste

ano pela universidade australiana Victoria’s Deakin revelou algo que muita gente já sabia por experiência própria. Frequentar festivais de música proporciona altos níveis de satisfação e alegria. O prazer torna-se maior quando o ato de assistir a shows é partilhado com pessoas próximas. Quando as atrações incluem artistas internacionais de variadas nacionalidades, alguns passos são dados em direção ao entendimento humano mais global. Enfim, além dos tão comentados e mensuráveis efeitos econômicos (incremento do turismo, mais clientes em restaurantes, lojas), quem investe na realização de determinados festivais também está contribuindo para o bem-estar geral da população. Criado em 2004, o Mimo vinha cumprindo bem esse papel até que sua realização em Olinda, cidade matriz do projeto, foi interrompida por falta de verbas no ano passado. Este ano, entre os dias 18 e 20 de novembro, ruas e igrejas da cidade voltam a sintonizar-se com as boas vibrações sonoras do festival. Já foram confirmadas as presenças do grupo britânico Sons of Kemet; da dupla portuguesa de pianistas Mário Laginha e Pedro Burmester; Bixiga 70, banda de São Paulo; Totó La Momposina, destaque da música tradicional colombiana; e Pat Thomas & Kwashiru Area Band, de Gana. Contando com as edições que ocorreram e vão ocorrer nas cidades de Tiradentes, Ouro Preto, Paraty, Olinda e Rio de Janeiro, entre o mês passado e

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este, somam-se cerca de 50 concertos, exibição de 27 filmes inéditos, além da realização de oficinas, palestras e recitais de poesias. “É a melhor sensação do mundo!”, vibra Lu Araújo, idealizadora, diretora-geral e artística, ao expressar o sentimento de trazer o evento de volta para onde ele nasceu. “Durante os últimos meses, inúmeras lembranças do Mimo em Olinda me vêm à memória inesperadamente. Afinal, são muitos anos de convivência e de um relacionamento afetivo com a cidade, seus moradores, personagens e a beleza do lugar, que eu já frequentava há tempo.” De acordo com ela, 2015 marcou o pior momento do Mimo, em razão das dificuldades econômicas vividas pelo Brasil. Dois anos antes, o festival havia crescido, o que acarretou mais custos. Mas as verbas não vieram. “Fizemos de tudo para viabilizá-lo no mesmo padrão de excelência com que sempre trabalhamos. Infelizmente, não deu. Desde então, redobramos os esforços para conseguir investimentos que nos garantissem a realização de uma nova edição”, conta Araújo. Durante os dias 21, 22 e 23 julho, o Mimo chegou à cidade de Amarante, em Portugal. Nessa primeira incursão por terra estrangeira, o Mimo fez com que cerca de 25 mil pessoas, provenientes de diversos lugares do país e da Europa, apreciassem as apresentações do duo pernambucano Walter Areia & Rafael Marques, Pat Metheny & Ron Carter, Tom Zé, Hamilton de


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Holanda e o Baile do Almeidinha, Egberto Gismonti, entre outros. “O Mimo Amarante superou as nossas melhores expectativas. Foi muito gratificante apresentar uma seleção de artistas brasileiros de primeira linha ao lado de feras do jazz mundial. Acho que, em pouco tempo, o Mimo será reconhecido como um ponto de encontro da boa música brasileira na Europa”, vislumbra Lu Araújo. Para ela, a combinação do patrimônio histórico com as várias manifestações artísticas apresentadas é a fórmula que encanta tanto os frequentadores quanto os próprios artistas. “Em Portugal, confirmei que o Mimo é atraente para um público moderno, antenado, sedento por novidades e feliz. A plateia de Amarante me lembrou demais a de Olinda e isso me deixou emocionada. Me senti em casa.”

ATRAÇÕES 2016

Em anos anteriores, o público que foi a Olinda se deleitou com performances inspiradas e inspiradoras de gente como o pianista cubano Chucho Valdés, a fusão de jazz e sonoridades orientais

do percussionista indiano Trilok Gurtu, a lenda Chick Corea, a dupla Philip Glass & Tim Fain, o tango pop do Gotan Project. Sem falar nas vibrantes e ricas passagens dos brasileiros Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos, Bongar, Azymuth, Eumir Deodato, Siba, Nelson Freire, Carlos Malta, Jards Macalé, entre outros. Indagada sobre quais diretrizes nortearam a escolha das atrações deste ano, Lu Araújo responde: “A qualidade em primeiro lugar. Além disso, o empenho em trazer ao Brasil atrações que estão sendo apresentadas nos grandes festivais do mundo, muitas delas completamente desconhecidas por aqui. Me dá uma sensação de desbravamento e quero compartilhar isso com o público”. Considerada uma das guardiãs da música tradicional colombiana, a cantora e dançarina Totó La Momposina foi um dos primeiros nomes confirmados para o Mimo Olinda 2016. Filha de mãe com as mesmas habilidades artísticas e de pai baterista, Totó iniciou a carreira nos anos 1950. Mas foi no início da década de 1990 que seu nome ganhou projeção internacional, por conta de uma turnê

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que passou por três continentes, organizada pelo Womad – festival e organização cultural, criados pelo cantor Peter Gabriel, cuja maior missão é celebrar manifestações culturais além do universo anglo-saxônico. Em 1982, ela acompanhou Gabriel García Marquez na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura ao escritor. Nos discos e shows, Momposina passeia por ritmos e sons originados a partir do contato entre povos indígenas, africanos e espanhóis. A apresentação do Sons of Kemet deve causar grande impacto no Mimo, por conta da veia “original Olinda style” dos ingleses. Quem já frequentou as ladeiras de Olinda durante o Carnaval provavelmente vai sentir uma estranha conexão com a “irreverência” do trabalho da banda. O som reúne elementos de jazz, rock, música caribenha e africana. Os ouvidos e corpos mais atentos notarão semelhanças com o frevo e até com o baião, caso da música Play mass, presente no Lest we forget what we came here to do, segundo álbum deles, lançado em 2015. No YouTube, há um vídeo bem irreverente da música em questão. O quarteto é novo, surgiu em 2011, e é formado por Shabaka Hutchings (sax e clarinete), Theon Cross (tuba) e por dois bateristas: Tom Skinner e Seb Rochford, os quais costumam executar levadas diferentes, mas que se entrelaçam muito bem. Curioso observar que, até na relação cor da pele dos músicos com os instrumentos que tocam, o Sons of Kemet foge do que se observa normalmente. A ala percussiva fica nas mãos dos brancos Skinner e Rochford, enquanto a parte melódica e harmônica é comandada pelos negros Cross e Hutchings. O grupo possui a notável habilidade de conseguir agradar tanto a plateias sentadas em teatros quanto pessoas que vão aos seus shows em casas noturnas e festivais. O nome do quarteto se refere ao modo como o Egito era chamado na antiguidade. A big band Bixiga 70 já é conhecida por boa parte do público pernambucano interessado em fusões dançantes entre música brasileira, latina e jazz. O grupo foi formado há seis anos, no bairro paulistano que lhe dá nome, famoso por abrigar uma grande comunidade de italianos e suas sensacionais cantinas


2 TOTÓ LA MOMPOSINA Uma das guardiãs da música tradicional colombiana, ganhou visibilidade na década de 1990 3 SONS OF KEMET Grupo agrada tanto plateias em teatros quanto em casas noturnas e festivais

e pizzarias. Eles sempre empolgam quando por aqui se apresentam – como ficou comprovado por passagens pelo Coquetel Molotov, Rec-Beat, Porto Musical e Festival de Inverno de Garanhuns. Também já tocaram e causaram ótima impressão nos Estados Unidos e países da Europa. No início da carreira, a banda mantinha forte ligação com o afrobeat. Mas em pouco tempo foram ampliando a sua teia sonora. O trabalho mais recente é o álbum The Copan connection: Bixiga 70 meets Vitor Rice. A obra é uma remixagem do disco anterior, III, baseada no dub jamaicano. Especialidade do baixista e produtor norte-americano Vitor Rice, radicado em São Paulo desde 2002. Mário Laginha e Pedro Burmester fizeram parte da programação do Mimo Amarante. Agora, os portugueses apresentam o que o próprio Laginha define como “viagem musical”. Os dois possuem formação erudita, mas nesse projeto incluem interpretações de obras de artistas do seu país de origem, a exemplo de João Paulo Esteves, do brasileiro Pixinguinha, e do norte-americano Aaron Copland. O repertório percorre muitos estilos e

O foco da curadoria foi trazer nomes que estão participando de festivais mundo afora, mas que são pouco conhecidos no Brasil épocas, o que pode significar incursões pelo barroco, indo a seguir direto para o século XX. Para Laginha, a escolha das músicas que compõem os concertos pode parecer pouco convencional, mas elas se conectam harmonicamente quando executadas nos palcos.

PAT THOMAS

Nascido em Gana, em 1951, Pat Thomas passou vários anos de sua vida no Canadá, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. Ainda assim, essas experiências não afrouxaram os fortes laços que ele continua a manter com os sons do seu país e continente de origem. “Minha música é o highlife, música africana. Minhas raízes ficaram em Gana”, assevera. O estilo

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pelo qual demonstra grande apreço e identificação é irmão do nigeriano afrobeat e reúne ritmos africanos, arranjos poderosos de metais, linhas de guitarra ora melódicas ora rítmicas, vocalizações conectadas a cânticos ancestrais. Tudo isso aliado a letras que celebram o lado bom do espírito humano – essa junção de elementos se traduz em música festiva e alegre Thomas se mostra bastante empolgado com sua primeira incursão por terras brasileiras. “Vocês vão mexer seus pés e esqueletos. Esperem só pra ver”, brinca. Além de Olinda, ele se apresenta no Mimo Rio de Janeiro. O repertório dos shows deve focar no álbum Pat Thomas & Kwashibu Area Band, lançado em 2015. A banda tem a presença do multi-instrumentista Kwame Yeboah, que já tocou com Cat Stevens, e com o saxofonista Ben Abarbanel-Wolff. O disco conta com a participação mais do que especial do baterista nigeriano Tony Allen, o qual tocou no grupo do lendário Fela Kuti e se mantém bastante ativo, com sua carreira solo e colaborando em outros projetos. “Sou um baterista de afrobeat. Mas Pat


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Thomas é o próprio highlife. Isso ele sabe fazer muito bem”, exaltou Allen, quando a obra foi lançada. Também devem entrar composições da coletânea Original Ghanaian highlife and afrobeat classics 1967– 1981, que chegou ao mercado este ano. Diferentemente de Fela Kuti, Pat Thomas não compõe letras políticas ou de protesto. “Canto sobre o amor e a paz, o que pode parecer estar relacionado à política, mas não é a mesma coisa. Minha música surgiu com o propósito de fazer com que as pessoas tenham paz”, explica. De acordo com Thomas, o estilo que consagrou Kuti pode ter surgido em razão da “tentativa” dele em tocar o outro ritmo. “Não soube na época, mas Fela morou em Gana, chegando a tocar highlife com um grupo. Mas o highlife era de Gana, e ele era nigeriano, então decidiu fazer tudo do jeito dele mesmo, pois a Nigéria tinha que ter algo também. E o afrobeat acabou surgindo e veio para ficar”, explica. Devido à sua militância política, Kuti sofreu perseguição do governo e chegou a ser espancado. A mãe dele morreu ao ser arremessada da janela do prédio onde morava. Fela tinha várias esposas e morreu aos 58 anos, vítima de aids. No disco Pat Thomas & Kwashibu Area Band, há alguns afrobeats, caso de Amaehu e Odoo be ba, que ganham personalidade na voz de Thomas. E qual

4 BIXIGA 70

Conhecida pelo público pernambucano, faz fusões entre a música brasileira, latina e o jazz

a situação do highlife, hoje, em Gana? Segundo ele, o estilo continua sendo o mais popular no país. “Atualmente, nossos jovens escutam diferentes fusões de highlife, além de hip-hop e música eletrônica dançante”. Quando o país a ser visitado volta à tona, Pat diz que enxerga conexões entre Gana e Brasil. “Vocês têm o samba, que mostra essa relação. Durante o tempo que estiver aí, espero poder colaborar com músicos brasileiros. Quero muito fazer isso e acho que será ótimo, justamente por causa dessa questão da relação entre os ritmos. Estou muito ansioso para ver a reação do público brasileiro nos concertos do Mimo”, adianta. Ele também se diz um grande fã de futebol e, por isso, sempre relaciona o esporte à nação. A mãe de Pat Thomas cantava em igreja e seu pai dava aulas de música. A arte musical sempre esteve presente na vida dele. Apesar disso, o artista diz acreditar que razões internas foram mais fortes do que uma possível influência dos genitores. “Não posso dizer que foi por causa dos meus

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pais que de fato quis ser músico.” Ele afirma isso baseado em memórias e desejos que surgiram ainda antes de perceber que seus pais possuíam uma carreira. “Talvez minha mãe tenha me influenciado mais, pois meu pai não era muito presente. Quando eu tinha 10 anos, ele foi para Londres. Ela gostava de cantar o tempo todo. Mas, ainda assim, creio ter sido algo que veio de dentro mesmo, tinha que sair de mim”, reforça. King Onyina, um dos tios de Thomas, foi um guitarrista reconhecido em Gana. Tanto pelos seus trabalhos quanto por ter trabalhado com o cantor negro norte-americano Nat King Cole. Foi com ele que Pat aprendeu a ler música. Também desenvolveu habilidades na bateria e se tornou um respeitado compositor e cantor ainda na adolescência. O primeiro contato com o highlife foi em 1971, quando ele foi morar na cidade ganense de Accra e juntou-se ao grupo Blue Monks, liderado pelo guitarrista, compositor e arranjador Ebo Taylor – um dos maiores e mais respeitados artistas de Gana. Os dois chegaram a tocar juntos em dois outros importantes grupos da época: Broadway Dance Band e Stargazers. “Conheci Ebo no início dos anos 1960. Cantei várias de suas canções, e ele fez arranjos para muitas das minhas músicas. Sempre tivemos um relacionamento muito produtivo. Mas ele não vai ao Brasil conosco.” Durante toda a década de 1990, Pat Thomas morou no Canadá, onde deu aulas de música em uma universidade local. Aliás, o país vizinho aos Estados Unidos é um dos que melhor recebem músicos africanos. Assim como o ganense, outros muitos artistas da África costumam expor seus conhecimentos e tocar com instrumentistas e cantores canadenses. A agenda de shows de Pat Thomas, porém, não era muito intensa. Além de só ter lançado um disco na época, Nkae on Sikafutro Productions, de 1996. Em 2000, ele voltou para Gana e só em 2015 apresentou nova gravação, o supracitado Pat Thomas & Kwashibu Area Band. “É meu primeiro álbum com eles. Passei um tempo sem lançar discos inteiros. Acho que o mercado não favorecia”, aponta.


INDICAÇÕES MPB

JULIANA PERDIGÃO E OS KURVA Ó Natura Musical

Com formação em música erudita, a cantora e clarinetista paulista Juliana Perdigão lança seu segundo disco, Ó, dando continuidade ao trabalho de pesquisa e experimentação da canção brasileira. A mineira interpreta músicas de Kiko Dinucci, Kristoff Silva, Makely Ka, Ava Rocha, Guilherme Held, Negro Leo, Luiz Gabriel Lopes, Clima, Nuno Ramos e Ná Ozzetti, que faz participação especial. Além de intérprete, Juliana tem investido na composição, em parcerias com Gustavo Ruiz, Maurício Tagliari e Romulo Fróes.

ROCK

ROCK

Deck

Anti

BRUNO SOUTO Forte Vocalista e compositor da Volver, uma das bandas mais queridas do Recife, o guitarrista Bruno Souto também tem seu projeto solo. De São Paulo, onde mora há oito anos, lança o segundo disco, Forte, mostrando, mais uma vez, seu talento como compositor, o que levou seu trabalho de estreia, Estado de nuvem (2013), a constar em listas de melhores lançamentos daquele ano. Produzido por Bruno e João Vasconcelos, Forte reúne 11 canções de pegada pop com letras que abordam seu tema principal, o amor.

MPB

WILCO Schmilco

SERENA ASSUMPÇÃO Ascensão

Comentado nas redes sociais por sua divertida capa, ilustrada pelo cartunista espanhol Joan Cornellà, Schmilco, o 12º álbum de estúdio do Wilco, é uma compilação das sobras de gravação do anterior, Star Wars, lançado em julho do ano passado. No entanto, contrariando a expectativa de que poderia apresentar um material fraco, reúne dentre suas 12 faixas, todas compostas por Jeff Tweedy, boas canções, como If I ever was a child, Cry all day, Normal american kids – embora os arranjos sejam os menos burilados desde o début, AM (1995).

Ascensão é um disco que reúne canções destinadas a cada um dos orixás, entoadas nos terreiros de candomblé. O projeto, nutrido desde 2009, acabou se tornando um álbum póstumo, pois saiu depois da morte da artista, em março, aos 39 anos. Produzido por Rodolfo Dias Paes, o trabalho traz esses cantos envoltos em belos arranjos e diversas participações especiais, como Kiko Dinucci, Thiago França e Juçara Marçal, do trio Metá Metá, Karina Buhr, Luê, Zé Celso Martinez, Anelis Assumpção, Moreno Veloso, Mãeana, Tetê Espíndola e Curumin.

Independente

Quarteto

MAMELUNGOS EXPLORA GAMA DE ESTILOS EM 2º DISCO Formada em 2009, a Mamelungos (uma mescla das palavras “mamulengo”, “mameluco” e “malungo”) conseguiu uma façanha, já na sua estreia em disco: o álbum homônimo da banda pernambucana foi indicado ao Prêmio da Música Brasileira, em 2012. Integrada pelos músicos Luccas Maia (baixo acústico, piano, xilofone), Weré Lima (zabumba, conga, bongô, pandeirola), Thiago Hoover (guitarra, violão, dobro) e Peu Lima (bateria, ukulele), tem uma peculiaridade: não há um vocalista único, cada um canta em uma faixa, imprimindo seu timbre e forma de interpretar. Após seis anos da estreia, o quarteto lança agora seu segundo álbum, Esse é o nosso mundo, em que apresenta 11 músicas autorais inéditas, nas quais ressoa o aprendizado desse período e explora diversos estilos, dentre eles, reggae (Tudo o que eu fiz), ska (Coisa melhor) e rock (Deixe de gostar).

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Produzido por China, o trabalho traz mixagem de Buguinha Dub e Yury Callil, masterização de Felipe Tichauer, ilustrações de Dani Acioli, direção de arte de Luccas Maia e produçãoexecutiva de Vanessa Oliveira. Esse é o nosso mundo conta ainda com várias participações especiais, principalmente de cantores, como Marcelo Jeneci, presente na faixa de abertura, a adorável La lune, Vanessa Oliveira (Apneia), Flaira Ferro (em diversas faixas como vocal e backing vocal), Sofia Freire (Solitude) e Lula Queiroga (Varanda), que assinou o texto de apresentação do disco, no qual destaca uma característica do quarteto: “Estão fazendo uma música aberta, global. Contendo um ingrediente indispensável e tão pouco usual na música que se faz atualmente: desenho melódico. E é muito bom quando esse desenho é criativo, cheio de diversidade e caminhos.” DÉBORA NASCIMENTO


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

A VLOGUEIRA KÉFERA BUCHMANN E A NARRADORA KAREN BLIXEN Meu avô paterno José Leandro percorria a cavalo as dez léguas que separavam sua fazenda Rosário, em Várzea Alegre, das terras do mano João Leandro, no Crato. Eu poderia ter registrado sessenta quilômetros, mas não me agrada essa medida carente de poesia. Luiz Gonzaga gravou “Oh, que estrada mais comprida / Oh, que légua tão tirana” e “Eu já andei sem parar dezessete légua e meia”. Não teria a mesma beleza se cantasse quilômetro no lugar de légua. José Leandro certamente não se ocupava com essas questões, enquanto esporeava o cavalo. Costumava visitar o único irmão homem, trocava experiências e conselhos com ele. De noite cedo, depois da janta, os dois armavam as redes na sala de visitas, escanchavamse nelas como se fossem montarias e conversavam. Eram homens mansos, trabalhadores, começaram bem pobres e tornaram-se donos de terras, engenho de cachaça e rapadura, criatório de gado. Podiam se dizer ricos, num tempo em que a riqueza não implicava em luxo, ostentação e

consumo. O mundo sertanejo primava pelo desconforto, linhas retas, amplidões e vazios. Naquele encontro, talvez se perguntassem se havia futuro em plantar algodão. José Leandro, com a família grande de nove filhos, se mostrava temeroso. Habituara-se ao cultivo de arroz, milho, feijão, fava, cereais que garantiam o sustento da casa desde o casamento. Num ano bom de inverno, colhia oitocentos sacos de sessenta quilos de arroz, o que representava muito, considerando as dificuldades em escoar a produção agrícola. Quase tudo que se plantava era consumido. Quando o meu avô decidiu comprar uma máquina de costura para as filhas, precisou vender dez bois e boa parte da safra de arroz. Numa das raras fotos de José Leandro, com a esposa, os nove filhos, um genro e o neto, ele se revela pequeno, os cabelos finos e poucos, os olhos quase fechados sugerindo a miopia, os lábios retraídos para o lado direito do rosto, em suma, um homem sem atrativos físicos. Morreu cedo, aos 54 anos, de febre

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tifoide. Dizem que nunca alterava a voz e o único impropério que saía de sua garganta era o nome “corno”. À primeira vista se reconhece no retrato um português do norte, chegado ao Recife pelo século XVII, migrado para o sertão dos Inhamuns e depois para o cariri, de genética bem preservada em casamentos consanguíneos, com alguma mistura indígena, pois os homens se uniam às índias por conselho da Coroa e da própria Igreja. Também se tem notícia e provas de cristãos novos batizados em pé, baldeando essa genética dos primeiros colonizadores cearenses. João Leandro fazia o percurso contrário, do Crato a Várzea Alegre, com o mesmo pretexto de visitar o irmão e permanecer um tempo de homem atarefado, suficiente para uma conversa noite adentro, em fala baixa, que mal se escutava a um metro de distância. A reserva dos homens enchia minha avó ciumenta de curiosidade. Naquele mundo longe, ainda sobrava tempo e assunto para as conversas. Histórias da família se armazenavam na memória como os legumes nos


JANIO SANTOS

paióis, recontadas muitas vezes, sem acréscimos. Os homens se promoviam a guardiões das lembranças. Nosso tio Raimundo era preciso, seco e cortante como a prosa de Juan Rulfo. Seus relatos nunca se modificavam, nem mesmo nas pausas. Sabia modular a voz em tragédias e comédias, com sutilezas de um homem sábio. As frases curtas e a máscara facial correta provocavam suspense na plateia. A mais perfeita literatura oral. O meu pai, João Leandro como muitos na família, era proustiano. Suas histórias primavam na reprodução de cenários, descritos antes dele introduzir os personagens no enredo. Possuía requintes de Sherazade, enfiava narrativas dentro de narrativas, edificando espirais de contos que se fechavam de maneira surpreendente. Quando narrava acontecimentos familiares para os irmãos, ninguém acreditava que ele tivesse guardado detalhes esquecidos por todos os demais, e fosse capaz de reconstituí-los com tamanha precisão. Perdemos o hábito das conversas, a paciência de ouvir e narrar. Até

Perdemos o hábito das conversas, a paciência de ouvir e narrar. Até nos celulares as pessoas preferem as mensagens ligeiras nos celulares as pessoas preferem as mensagens ligeiras, escritas no whatsapp, ou as falas curtas das gravações. As imagens se tornaram mais reais e eloquentes do que a presença física de corpo, voz, suor, odor e saliva. Nos bares, nas praças, nas festas, nos restaurantes, sons estridentes tramam contra nossa voz. Já não se pode dizer que vivemos para narrar, pelo menos da maneira como se narrava antigamente. O escritor paulista Ferréz, numa conversa de aeroporto, me garantiu que no Capão Redondo, em São Paulo, onde acontecem as histórias dos seus romances, contos e poemas, a oralidade continua viva, apenas assumiu formatos novos.

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Tento compreender o fenômeno Kéfera Buchmann, a vlogueira de 23 anos, que atrai milhões de pessoas, sobretudo adolescentes, com filmes de cinco minutos, no YouTube, onde assume o lugar de narrador provocativo, falando as coisas mais insólitas. E que vende, vende muito, como deseja o mercado e, talvez, ela própria. Kéfera foi eleita pela revista Forbes uma das jovens mais promissoras do Brasil. De atriz a youtuber com mais de 9,4 milhões de inscritos, transformou-se em escritora e foi promovida ao ofício de narrar. Mas eu me refiro nessa crônica a outros tipos de narradores, àqueles que transportam seus espíritos para longe, construindo linguagem e poesia, metafísica e pensamento, como se propunha a dinamarquesa Karen Blixen. Na solitária fazenda africana, no Quênia, onde viveu cerca de vinte anos, durante os anos de estiagem ela escrevia para matar o tempo, enquanto esperava as chuvas. Inventava histórias que narrava a um único ouvinte, o seu amante inglês.


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Leitura

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MEMÓRIA Onde andará Caio Fernando Abreu?

Homenageada este mês na Balada Literária, obra do escritor gaúcho convive simultanemanete com reticência da crítica acadêmica e admiração incondicional de fãs TEXTO Erika Muniz

“O que eles deixaram foram estes três postulados: importante é a luz, mesmo quando consome; a cinza é mais digna que a matéria intacta e a salvação pertence apenas àqueles que aceitaram a loucura escorrendo em suas veias.” Esse é o trecho inicial do conto Eles, do livro Ovo apunhalado, escrito por Caio Fernando Abreu, morto há 20 anos. Este ano, escritores das gerações 1970/1980 estão sendo homenageados em eventos literários, como o foi o caso de Ana Cristina César, da geração mimeógrafo, na Flip Paraty, realizada entre junho e julho. Neste novembro, é a vez da obra de Caio Fernando Abreu ser revisitada na Balada Literária, evento anualmente organizado por Marcelino Freire, em São Paulo. Durante conversas com Ignácio de Loyola Brandão em sua última viagem literária à Alemanha, Caio afirmou: “Vamos todos morrer, mas quem assegura que você não vai morrer antes? É tudo questão de tempo. Estou vivo e essa paisagem que olho tem uma intensidade que você nunca conhecerá. O que vejo não é o mesmo que você vê”. Sua compreensão da vida está peculiarmente destrinchada em textos ficcionais e intensificada quando ele se descobre portador de HIV. Por telefone, chegou a dizer para a amiga Lya Luft, quando a doença estava e estágio avançado: “Eu que sempre fui um suicida, agora que vou morrer, como eu amo a vida”. Um olhar para a vida é o que Caio Fernando Abreu oferece ao leitor. Gay, resistiu às repressões C O N T I N E N T E N OV E M B R O 2 0 1 6 | 7 3

dos Anos de Chumbo. Não aprovava rótulos, nem o de literatura homossexual para o que ele produzia, e escreveu: “Homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade”. Compreender os diálogos com outros artistas e as relações de amizade de Caio F. permite mergulhos mais profundos em seus escritos. Cartas pessoais enviadas a amigos em diversos períodos de sua vida – ao diretor de teatro Luciano Alabarse, às atrizes Regina Duarte e Bruna Lombardi, aos escritores Mário Prata, Hilda Hilst e João Silvério Trevisan, entre outros – revelam muito do estilo narrativo do “escritor que diz o que tinha que dizer de uma forma definitiva”, como afirma João Gilberto Noll, no documentário Para sempre teu, Caio F. (2015), de Candé Salles, baseado no livro homônimo de Paula Dip. No seu legado, vida e obra literária se entrecruzam. Com essas fronteiras quase inexistentes (mas só quase), escreveu “sobre o amor e a falta dele”. No entanto, seus contos, romances, crônicas e peças de teatro “não eram autobiografias, porque não narravam a vida inteira do autor, mas apenas alguns momentos desta”, tomando emprestada a diferenciação entre “autobiografia” e “autoficcção” feita por Leyla Perrone-Moisés em seu recente Mutações da literatura do século XXI (Companhia das Letras).

REAL E FICCIONAL

Não vem ao caso identificar ou evidenciar o que de condizente com o real ou o ficcional há em livros como


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Leitura 1

Dragões não conhecem o paraíso (1988), Triângulo das águas (1983) ou Pedras de Calcutá (1977), por exemplo, já que se pode desvirtuar o que é relevante, principalmente quando se trata dos textos de Caio F. – experiência estética, reflexões sobre existência no contexto histórico-político anterior (sem ser panfletário, vale ressaltar) e paralelos possíveis de sua obra com a hodiernidade, por exemplo.“Toda e qualquer narrativa, mesmo as que se pretendem mais coladas ao real, têm algo de ficcional” por serem constituídas de matéria (de ficção), superam a “realidade” e estabelecem diálogos com outros tempos, não necessariamente de forma cronológica. Alguns dos amigos – e ao mesmo tempo ídolos – aqui citados com os quais se correspondia conviveram com ele, como foi o caso de Hilda Hilst. Perseguido pelo DOPS – Departamento de Ordem Política e Social da Ditadura, no fim dos anos 1960, Caio se refugiou na Casa do Sol, de Hilda, em Campinas (SP). Em seguida, autoexilou-se na Europa, passando por várias cidades. Os versos da poeta são constantemente

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Durante a ditadura militar, o escritor refugiou-se na casa de Hilda Hilst para, depois, autoexilar-se na Europa encontrados em seus livros, seja em epígrafes – como em Pequenas epifanias (1996), que traz os versos “Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas…/ Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade./A esperança” – ou em dedicatórias. No entanto, apesar da grande admiração, não havia aproximação do ponto de vista ficcional, talvez pela disparidade de gêneros, por Hilda escrever poemas e ele, prosa. Ao menos não como a proximidade com a obra de Clarice Lispector. “Ser influenciado por Clarice Lispector e por Guimarães Rosa pode ser cometer suicídio, o Caio é um dos raros claricianos que sobreviveram”, afirmou o escritor alagoano Dau Bastos, em entrevista ao programa Ciências

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e Letras, do Canal Saúde e da Editora Fiocruz. Com relação à escritora, ele era consciente da sua influência e do impacto que isso causava à sua escrita. Virgínia Woolf também era leitura e encantamento constante, inclusive, apelidava sua máquina de escrever, uma Olivetti Lettera 22, com o nome da inglesa. Junto à Lispector, ele é atualmente um dos autores mais citados nas redes sociais. Mesmo que seja em trechos descontextualizados, com tom de autoajuda, ou por frases erroneamente atribuídas a ele. Apesar de uma vida breve – ele morreu aos 47 anos, em fevereiro de 1994, em decorrência de complicações da aids –, produziu bastante. “Ele consagra o conto no Brasil e consagra também uma geração de novos escritores que não tinham compromisso com o regionalismo. É uma literatura muito jovem, muito de questões existenciais. Ele liberta o Brasil de uma certa tradição de pensar o Brasil regionalista”, afirma Thiago Soares, professor de Comunicação da UFPE, jornalista e pesquisador em entrevista à Continente. Seus livros, entretanto, nem sempre foram aceitos


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pela crítica ao serem lançados. Foi o caso das experimentações no romance Onde andará Dulce Veiga? (1990). Quanto a isso, sua reação “premonitória” foi certeira: “eu adoro quando batem em mim, porque daqui a pouco vão falar bem e isso me tonifica”, disse ao escritor Dau Bastos.

ALTA E BAIXA CULTURA

Nas produções de Caio F. Abreu, há referências diretas – e muita intertextualidade – transitando entre elementos da sociedade de consumo (cinema, revistas femininas, música pop), a arte tradicional e textos canonizados que demonstram sinergia entre as mudanças do mundo global e o que ele escrevia. “Eu sou de uma geração muito colonizada por filmes americanos, eu sempre acredito no happy end, num beijo da Doris Day e o Rock Hudson no fim, isso é esperança, achar que tudo vai dar certo. Eu acho que o Brasil vai dar certo, sempre achei”, afirmou o autor em entrevista ao Globo Repórter. Nos anos 1960, a pop art de Andy Wahol foi pioneira ao incorporar às artes plásticas objetos anteriormente

vinculados apenas às indústrias. Posteriormente, esses objetos foram sendo introduzidos à literatura, que também teve influência do cinema. No Brasil, a partir da segunda metade da década de 1960, período das primeiras publicações de Caio, seus escritos já demonstram interação com as mudanças tecnológicas e culturais de um mundo “pré-impulso de globalização após o fim da Guerra Fria”. Alusões à cultura pop são comuns em seus textos, sem receios de intolerâncias por parte de algumas linhas da crítica literária ou de leitores mais tradicionalistas da época. Reações inflexíveis do tipo encontram adeptos ainda hoje, basta observar as redes sociais. Baseadas, muitas vezes, em resistências às rupturas das fronteiras entre as diversas linguagens artísticas, opiniões contrárias ao perfil heteróclito da literatura contemporânea surgem, como ocorreu há pouco com relação à premiação do Nobel de Literatura 2016 para Bob Dylan. A propósito, a música é inerente às narrativas de Caio. Numa tentativa de criar uma “coreografia verbal”,

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1-3 AUTORAS Woolf, Hilst e Lispector são nomeadamente musas do “panteão” de Caio Fernando Abreu

o autor buscava incorporar, a partir de um fundo musical escolhido, o ritmo da música e realizava, assim, uma estrutura textual que pretende inserir o leitor na atmosfera de um videoclipe, no qual música e narrativa se fundem. No conto Os sobreviventes, de Morangos mofados (1982), por exemplo, o autor dá o tom ao leitor com o indicativo entre parênteses “Para ler ao som de Ângela Ro-Ro”. O peculiar modo de criação do escritor gaúcho era anotar os esboços, ou como ele chamava, “frases-imãs”, passíveis de agregar outras imagens e que continham informações para serem ampliadas posteriormente. Constante na sua produção também era a retomada e reelaboração dos textos, até mesmo os já publicados. “Nunca pertenci àquele tipo histórico de escritor que rasga e joga fora. Ao contrário, guardo sempre as várias versões de um texto, da frase em


Leitura guardanapo de bar à impressão no computador”, chegou a escrever. Esse aperfeiçoamento laborioso e minucioso é bem característico de um virginiano, para ressaltar o fascínio do escritor gaúcho por astrologia. Luciano Alabarse, diretor de teatro que conviveu e trabalhou com Caio, afirmou, sobre a importância da escrita para ele: “Eu acho que ele nunca escreveu para impressionar literariamente o leitor, ele queria o coração, o fígado, a assombração do leitor, essas coisas não perdem o carimbo de validade”. Caio fez parte da geração de artistas que, além de sobreviver intensa e ativamente ao obscuro cenário da ditadura militar brasileira, viveu e delineou – através de seus textos – os sentimentos e as questões existenciais de uma juventude confusa diante da inexatidão dos anos 1980 e início dos 1990 pós-ditadura, “numa busca de identidade que se mostra vã e entretanto não cessa”. Mesmo que implicitamente, há nos seus textos denúncias do sistema repressor, responsável por interrupções de sonhos, ideais e esperança; além de retratarem as dúvidas e a imprecisão das informações científicas naquele período com o aparecimento da aids. Discurso crítico e transgressor percorrem toda sua obra e servem de paralelos para se pensar o Brasil atual. “Caio era um intelectual claramente de esquerda, ligado às bandeiras da contracultura. Hoje, certamente, ele não apoiaria o golpe, seria contra a Rede Globo, embora admirasse uma novela. É muito atual a discussão da sua obra, sobretudo em função dessas relações sui generis a uma direita muito forte que tem se colocado e uma resistência da esquerda. Tem muito a ver com esse contexto político que estamos vivendo”, opina Thiago Soares. Ou, como escreve Perrone-Moisés: “Nossa época é o momento de pensar sobre o passado recente e de criticar os caminhos do presente”. E a obra de Caio é oportuno suporte para isso.

Comentários

QUATRO OBRAS ESCOLHIDAS Convidamos quatro escritores contemporâneos, de gerações, linguagens e lugares diferentes a escolherem uma das obras de Caio F. e comentarem pontos importantes delas quanto à estética e suas ressonâncias no contexto atual – literário, comportamental e político. Cada um teve contato com a literatura de Caio à sua maneira. O poeta Magno Almeida, nascido em Maceió e autor de Pelos poros & pequenos apelos (2015) e Composições para além vértebras (2016), conheceu o autor gaúcho pesquisando sobre sua escritora preferida, Clarice Lispector. “Teoricamente, na literatura, Caio e Clarice possuem afinidades. Cheguei a ele através dela. Foi amor à primeira vista.” afirma Almeida. Cintia Moscovich é gaúcha e contemporânea do autor. É Autora de O reino das cebolas (1996), Anotações durante o incêndio (1998), Essa coisa brilhante que é a chuva? (2012), entre outros. Pernambucano, Fabiano Calixto é poeta e publicou os livros Música possível (2006), Sanguínea (2007), A canção do vendedor de pipocas (2013), Equatorial (2014) e Nominata morfina (2014). Conheceu a obra de Caio F. Abreu por acaso, há aproximadamente 20 anos. Autora de Caio Fernando Abreu – Inventário de um escritor irremediável (2008), sobre a vida do autor gaúcho, a jornalista mineira Jeanne Callegari é autora do livro de poemas Miolos frescos (2015). Os dragões não conhecem o paraíso (1988) Fabiano Calixto, poeta e tradutor de Garanhuns (PE) Os dragões não conhecem o paraíso (1988) abre com um conto comovente e duro. Muito duro. É, para mim, um dos melhores momentos de Caio Fernando Abreu, esse ‘biógrafo das emoções contemporâneas.’ Linda, uma história horrível se tornou um clássico da literatura recente, um conto que nocauteia o leitor e o traz para dentro da trama, para os espaços de imensos zooms afetivos. Parece-me um conto que, como todo o núcleo forte da obra de Abreu, nos coloca no centro de suas preocupações como escritor, do nosso desamparo, nossa solidão, como recesso de uma vida que podia ter sido. Bem, nessa coletânea de contos sobre amor, sexo e morte, o autor figura a devastação que Eliot percebeu na desertificação da paisagem civilizatória e como os tempos mostram como a desertificação se espalhou por toda parte, chegando a nós, à nossa carne, ao deserto dentro da gente. A meu ver, a força dessa prosa, cuja ventilação nos agrada e os sótãos narrativos nos desesperam, está nesse olhar agudo sobre a imensa sombra da solidão e desamparo que vai cobrindo todos, opacizando a vida.” Morangos mofados (1982) Cintia Moscovich, escritora de Porto Alegre (RS) “Morangos mofados pode ser considerado, entre tantas outras coisas, um dos clássicos da crítica à contracultura. Depois dos ripongas, das viagens lisérgicas e do país sob o tacão da ditadura, o livro veio como um alento libertário e cheio de viço. Ainda de ressaca dos Anos de Chumbo, o livro enterra no conto Os sobreviventes, por exemplo, toda e qualquer utopia que pudesse ter restado dos anos 1960 e 70. Espécie de dedo na ferida, cumprindo um papel de denúncia, o conto Terça-feira gorda se debruça

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INDICAÇÕES sobre a discriminação contra homossexuais, justamente na época do ano em que a liberdade se faz mais presente. Em Sargento Garcia, novamente o homossexualismo entra em cena, dessa vez como o relato de um jogo de poder entre um soldado jovem e um oficial mais taludo – e o tom, melancólico, não deixa de apontar a hipocrisia. Com uma linguagem muito apurada, embora cedendo ao apelo da coloquialidade, Morangos explora os monólogos interiores e a interioridade dos personagens, sempre jogando luz sobre as partes de sombra da existência. Em narrativas fragmentadas, a leitura vai oferecendo a oportunidade de várias composições e de várias histórias e enredos não revelados, o que a torna especialmente atraente. Fundando uma nova etapa na produção literária nacional, a partir dessa obra, aprende-se que se pode escrever sobre sexo e sobre homossexualismo sem cair na armadilha da vulgaridade. Caio Fernando Abreu explora com cuidado e respeito as relações humanas, delatando o sofrimento e a angústia inerentes.” Ovelhas negras (1996) Magno Almeida, escritor de Maceió (AL) “Caio Fernando Abreu é um tiro certeiro pela sua urgência do sentir. Assim, Ovelhas negras (1974) é onda carregada de paixões, querências e outras drogas gritadas nos olhos e poros dos corpos-personagens, que ora suplicam abraços e euforias, ora permanência no peito-outro. O Autor-Pastor, graças a sua obsessão de guardar o que escrevia (dos guardanapos de bar à impressão no computador), deu vida a estes textos: suas ovelhas desgarradas, que se fizeram por si durante 33 anos, da fronteira com a Argentina à Europa. É leitura que se faz necessária, merecendo destaque, porque podemos explorar um dos primeiros escritos de Caio F., aos 14 anos, A maldição dos SaintMarie, em 1962, perpassando seus experimentos e maturidade literárias, até 1995. Essa obra de Caio Fernando Abreu é reunião

e vastidão de sentimentos que nos acometem hoje em que tudo se faz moderno: ciclos e ciclones de permanências e de vazios. Por se despir, por se gritar, do mesmo modo que Carlos Drummond de Andrade ressoa no poema Mundo grande, Ovelhas negras também precisa de todos.” Triângulo das águas (1983) Jeanne Callegari, escritora de Uberaba (MG) Uma alegria, em arte, é quando forma e conteúdo são indissociáveis, quando o que se quer dizer está de tal forma entrelaçado na maneira de dizer, que a distinção se torna apenas didática. Assim é Triângulo das águas de Caio, merecidamente premiado com o Jabuti. Uma obra construída a partir da água, com cada uma de suas três novelas dedicadas a um dos signos desse elemento. O texto de Caio, sempre excelente, está aqui ainda em melhor forma, saindo da pegada pop, realista e certeira de Morangos mofados para um mergulho mais profundo, com mais vagar, nos afetos e emoções dos personagens. A água está por toda parte, na simbologia dos textos, no marinheiro que vem trazer uma boa-nova, nas chuvas que percorrem as três histórias, no jorro aparentemente incontrolável de palavras (pois Caio dominava muito bem o texto, que costumava chegar pronto à mão dos editores; se havia um excesso, era proposital). A própria opção pelo formato de novelas, para um autor que quase sempre optou pelos contos, mostra essa intenção de aprofundar e se aventurar, com perdão do trocadilho, em águas mais densas. Triângulo das águas é, também, a primeira vez em que Caio menciona a aids em seus textos, nas palavras de Pérsio, um dos personagens da novela Pela noite. O livro é publicado em 1983, quando a epidemia começava a avançar no Brasil.”

POESIA

FOTOJORNALISMO

Companhia das Letras

Pitomba!

WISLAWA SZYMBORSKA Um amor feliz

BRUNO AZEVÊDO E ANA MENDES Ostreiros

Quando foi lançado no Brasil o livro Poemas, rapidamente a polonesa virou uma “querida” entre os leitores. Esse apreço tem razão de ser: a poesia de Wislawa equilibra contundência e leveza, sobretudo ao abordar temas dolorosos. Agora, podemos reencontrá-la em Um amor feliz, em versão bilíngue, o que nos aproxima do polonês.

O escritor maranhense Bruno Azevêdo e a antropóloga e fotojornalista gaúcha Ana Mendes apresentam, em Ostreiros, mais do que depoimentos de vendedores e registros fotográficos da paisagem do litoral maranhense. São narrativas que trazem cada um dos 33 trabalhadores como protagonistas de suas próprias estórias.

CONTOS

HISTÓRIA

Chiado Editora

Hedra

LUÍS FERNANDO PEREIRA Fronteira O primeiro livro de contos de Luís Fernando Pereira, Fronteira, recebeu, em 2014, menção honrosa na categoria Conto do Prêmio Sesc de Literatura. Os 14 contos exploram a tensão entre a vontade de mudança e a impossibilidade de mudar, através de histórias sobre morte, violência, loucura, assombrações e travessias.

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ALEX CASTRO (ORG.) A autobiografia do poetaescravo Um trabalho valioso este de editar um relato de 1835 de um escravo cubano. Não apenas pela raridade de registros históricos como este na América Latina, mas também pelo modo como foi realizado. O livro traz uma tradução e uma transcrição. A primeira adapta o texto original a uma leitura contemporânea, e a segunda se atém à escrita original.


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

LETRAS E ARTE

Catálogo da exposição de Wellington Virgolino em Ranulpho. Tantos eventos e Zé Cláudio nem mode coisa, nem uma linha. Exposição de Pragana. Coleção com lançamento de livro: A lírica de Carlos Augusto Lira. Eu que escrevo sobre ocorrências muito menos importantes talvez. “Talvez”, digo, porque, para um rapaz que mora em Sertânia transportar uma peça para expor, não tão pesada, é certo, mas que requer cuidados, o próprio autor trazê-la na moto, esse estirão todo, 311 km de sertão brabo, levando sol e comendo poeira, e quando chega aqui, na hora de entregá-la no Centro de Convenções, na Fenearte, notar que falta algum complemento e ter de voltar a Sertânia para buscá-lo, não lembro mais o que, vir pela segunda vez de Sertânia ao Recife no mesmo dia, não me digam que para ele a participação nessa mostra pode ser catalogada de desimportante, mesmo tratando-se de exposição coletiva, inúmeros artistas, sua peça podendo passar despercebida, não signifique para ele um acontecimento da maior

relevância; e não somente para ele, quem sabe para o Brasil, para a vida, para o mundo. Trouxe esse episódio à baila (gostou, Arthur Carvalho?) porque se deu na última Fenearte e de que tomei conhecimento por ocasião da participação no júri de premiação da seção de arte popular, justamente a convite de Carlos Augusto Lira. Não há acontecimentos menores, dependendo do ponto de vista. Pensei até em escrever sobre essa odisseia de um dia, de Daniel, de Sertânia, como Joyce fez com a de Homero. Em tempo, a obra foi premiada, e soube da história depois. Se você quiser falar sobre tudo que acontece vai ficar é doido. Uma lição aprendi com um político que já ocupara altos cargos: chegava numa banca de revistas de Olinda, comprava todos os jornais daqui do Recife e de fora do estado, arrancava a primeira página e deixava o resto; o que não dava primeira página, para ele não existia. Sobre o livro de José Paulo Cavalcanti Filho So/mente/a/verdade, em que a verdade não some, pelo

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contrário, o autor escreveu para que não sumissem as histórias, tenho a dizer, o que era mais para falar a ele próprio mas quem quiser pode escutar, é essa tendência de partir a frase botando ponto em vez de vírgula. Joaquim Falcão disse que quem começou foi ele, Joaquim, porque é gago. José Paulo critica Saramago que “abusava das vírgulas. Em média foram 21, antes de um ponto, no seu O Evangelho segundo Jesus Cristo”. Quando li o So/ mente de José Paulo já tinha lido O Evangelho de Saramago, cativante, uma delícia de leitura. Era como ter saído de uma camisa-de-força, a da tirania da pontuação. Precisa-se lembrar que no princípio não havia pontuação nem espaço entre as palavras, cabendo ao leitor separálas, existindo até hoje dúvida sobre um verso de Virgílio, se ex ilio, as duas palavras separadas, ou pegadas, exilio. Dei uma olhada no livro de Alberto Manguel Uma história da leitura tentando localizar a informação, mas devo ter lido em outro lugar, quem sabe Umberto Eco (maiores informações


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com Francis Boyes e Padre Teodoro Peters, se me permitem eles, com licença de Zé Paulinho, vide Fernando Pessoa/quase uma autobiografia, Praeludium, prelúdio, p. 17). So/mente/a/verdade tem a primeira das virtudes de um livro: deixarse ler. São contos com histórias atraentes, como a de Octavio, provavelmente meu colega do Marista, do Osvaldo Cruz e da Faculdade de Direito do Recife Octavio Lobo. No livro, depois do Fernando Pessoa, espécie de recreio, José Paulo se distrai e nos distrai, antes de empresa maior. Sugeri um livro sobre Sá-Carneiro, já que está, ou esteve, com a mão na massa. Melhor falar de pintura, com que estou mais familiarizado. Pintura me toma muito tempo, o tempo todo. Se não pintasse, que é meu ganhapão, talvez me dedicasse à leitura. Pintura me ocupa 24 horas por dia, isso mesmo, inclusive quando durmo. Quando durmo, a mente, livre de outras preocupações, as soluções despertam e, ao acordar, sinto-me não somente mais disposto

Comprava todos os jornais, arrancava a primeira página e deixava o resto: o que não dava primeira página, não existia como mais clarividente, mais inteligente diria, como se durante o sono o quadro amadurecesse. Isto é, dentro das minhas perspectivas. Não sei se ao dizer “pintura é coisa mental” Da Vinci incluía essa possibilidade, a de o sono nos livrar de nós próprios, das nossas mediocridades, dos nossos bloqueios, da nossa burrice e covardia. Uma vez fui às lágrimas diante de um quadro de Leonardo da Vinci: o São Jerônimo. Só me dei conta quando a lágrima molhou o colarinho. Em Roma sempre andava de paletó e gravata como todo mundo lá. 1957. A primeira visita foi à pinacoteca do Vaticano, um dos poucos lugares que eu sabia de Roma, além do Coliseu

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1 SECA aniel Lau, Nas D

correias do Sertão, madeira, 37 cm (frente) x 47 (lado) x 30 (altura), 2016. A peça representa a ação de levantar a rês, caída pela fome e sede, com a correia, para que possa se alimentar. Acervo Centro de Artesanato de Pernambuco

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visto nas estampas do sabonete Eucalol. É, u, eu; c, a, lê, cal; ó, éle, ol; eu, ca, lol, como dizia a propaganda do rádio. Fui pegado de surpresa. Na grossura da parede entre uma sala e outra estava o quadro, 103x75cm. Todo em sépia, como ele costumava fazer antes de entrar com a cor, perfeitamente dispensável. Não havia cor no mundo que tivesse mais o que dizer ali. Parei, fiquei em êxtase, no sentido próprio aliás, que “êxtase” em grego significa “parada” (Dr. Sérgio Buarque de Holanda disse que só entendeu bem essa palavra quando chegou em Atenas e perguntou como se dizia “parada de ônibus” e lhe ensinaram “êxtase”, assim como “carregador de frete” no aeroporto disseram “metáfora”, descobrindo então que “metáfora” é a palavra que carrega o sentido da outra). Até hoje não sei olhar para esse quadro sem ser pela comoção, como se ele encarnasse o sentimento trágico da vida, para usar o título de Miguel de Unamuno, o eterno sentimento trágico da vida, justamente a consciência de não sermos eternos.


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Visuais

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CONSTRUÇÃO Projetos em benefício da coletividade

Arquitetura que volta atenção às necessidades da população em detrimento dos interesses corporativos leva equipe à Bienal de Veneza TEXTO Marina Moura

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A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo

Bardi, em meio a desacordos políticos, pouco dinheiro e muito convencimento de autoridades, tomou para si, na década de 1960, a missão de projetar o Museu de Arte de São Paulo (Masp). O edifício seria construído na Avenida Paulista, em substituição ao antigo Trianon, centro político da capital, e Lina propunha uma arquitetura de “simplicidade monumental”. Em artigo publicado na revista Mirante das Artes, ela distinguiu obras monumentais, “no sentido cívico-coletivo”, daquelas que chamou de “elefânticas”. “O monumental não depende das dimensões: o Parthenon é monumental embora sua escala seja mais reduzida. A construção nazifascista é elefântica e não monumental na sua


1 PAVILHÃO DO BRASIL

esta 15ª edição N da Bienal de Arquitetura de Veneza, que se encerra neste mês, a curadoria optou por discutir o caráter multidisciplinar da arquitetura

eram três jovens arquitetos, recémformados pela Universidade Federal de Pernambuco, quando resolveram montar, no Derby, área central do Recife, não exatamente um escritório, mas “um centro de produção de arquitetura, design, artes visuais e vídeo”, definição que consta no site de O Norte – Oficina de Criação, há 18 anos comandado pelos três. Adeptos daquela simplicidade monumental definida por Lina, os sócios procuram “não se restringir a construir paredes”, explica Bruno em entrevista à Continente. Hoje professor da mesma universidade na qual estudou, ele faz questão de assinalar não só “o quão ampla pode ser a ação de um arquiteto”, mas a força de projetos coletivos, que “não se limitam a três pessoas, pois estão sempre agregando mais gente”. Exemplo disso é o espectro variado de projetos – nacionais e internacionais – dos quais a Oficina participa, estimula ou auxilia, que não necessariamente estão de modo direto relacionados à tectônica em si, mas ao espaço social e às diversas possibilidades de reconfigurá-lo. Chico Rocha observa

Os arquitetos reunidos na oficina O Norte defendem a fusão de conhecimento e a partilha de tarefas empáfia inchada, na sua não lógica. O que eu quero chamar de monumental não é a questão de tamanho ou de ‘espalhafato’, é apenas um fato de coletividade, de consciência coletiva. O que vai além do particular, o que alcança o coletivo, pode (e talvez deve) ser monumental. É uma ideia que pode ser esnobada por alguns países europeus que baseiam sua vida e seu futuro político numa falsa ideia de individualismo, num individualismo falsamente democrático de civilização dos consumos, mas que pode ser poderosa num país novo cuja futura democracia será construída sobre outras bases”, escreveu em 1967. No ano de 1998, os amigos Bruno Lima, Chico Rocha e Lula Marcondes

que, na verdade, O Norte retoma um passado no qual os escritórios de arquitetura eram sobretudo oficinas criativas, numa atitude de “entremear processos”. Atualmente, o que se percebe no Brasil é que boa parte do mercado está focada no design de interiores ou em construir edificações. Na contramão da tendência dominante, desde o princípio eles optaram por agregar áreas de conhecimento, “e começamos a receber demandas tidas como incomuns para um escritório de arquitetura”, comenta. Assim como construiu agências bancárias, residências e trabalhou diretamente com aldeias indígenas e quilombolas, a oficina de criação foi também responsável por decorar,

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com material de sucata, o Carnaval de Olinda; trouxe para o Recife parte da programação do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), que acontece anualmente em Goiás; produziu livros, como Olinda: Memórias fotográficas e Índios e caboclos: Reencontros, e firmou parcerias com ONGs locais e globais. A sede do coletivo tem uma tendência agregadora e está sempre aberta a grupos tão heterogêneos quanto relevantes para a promoção da cultura – estudantes e profissionais estrangeiros em intercâmbio, lideranças do movimento Ocupe Estelita e rodas de capoeira do Herança de Angola são apenas alguns dos que passaram pelo local.

BIENAL DE VENEZA

Em janeiro deste ano, o prêmio Pritzker – considerado o mais importante da arquitetura mundial – foi concedido a Alejandro Aravena, primeiro chileno e terceiro latino-americano a ganhar ao longo de 41 edições da honraria. Além de ter realizado uma série de obras públicas e privadas em seu país, o feito de Aravena reconhecido pelo Pritzker foi a construção de mais de 2.500 habitações populares, para algumas das quais aplicou o conceito de “casa incremental”. A ideia é que a população a quem se destinam tais moradias tenha participação ativa no processo, de modo que a casa é entregue “incompleta” e depende da intervenção dos indivíduos que vão habitá-la, de acordo com suas prioridades. É emblemático que o prêmio tenha optado por um projeto arquitetônico de viés social e coletivo, em detrimento da exuberância material e da criação em geral hierarquizada, porque sinaliza sua vontade de dialogar com as problemáticas contemporâneas. Em tempos de devastação ambiental, guerras prolongadas, tensões nos fluxos migratórios, precarização das cidades e desigualdades sociais cada vez mais evidentes, cabe ao arquiteto deste século (também) projetar para modificar os espaços e melhorar a qualidade de vida das pessoas. Aravena é responsável ainda pela curadoria da 15ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza – em exposição até o dia 27 deste mês –, cujo tema Notícias do front pretende chamar a atenção do espectador para demandas


FRANCISCO ROCHA/DIVULGAÇÃO

Visuais

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fundamentais e urgentes, que transbordam os limites arquitetônicos e põem em evidência o caráter multidisciplinar da arquitetura e sua capacidade de agenciar processos que tocam a política, a economia e a ecologia. “Nós gostaríamos de aprender com arquiteturas que, apesar da escassez de meios, intensificam o que está disponível em vez de reclamar sobre o que está faltando. Nós gostaríamos de entender quais ferramentas de projeto são necessárias para subverter as forças que privilegiam o ganho individual sobre o benefício coletivo”, afirmou o chileno, por ocasião da abertura do evento. Com surpresa, Bruno, Chico e Lula receberam a notícia de que o projeto deles da Escola Novo Mangue – localizada na comunidade do Coque, na Ilha de Joana Bezerra, área central do Recife – havia sido selecionado para compor o pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza, denominado Juntos. A inclusão de O Norte no evento mundial está repleta de simbolismos, na opinião dos três.

“A obra do Coque foi uma das primeiras que realizamos, em 1999, ou seja, éramos jovens recém-saídos da faculdade, sem muita experiência”, comenta Lula. E continua: “Além do mais, foi marcante porque comemoramos a maioridade da oficina em meio a uma participação no maior evento de arquitetura do mundo”. Ainda é quase inevitável associar a bienal a construções grandiosas e grupos consolidados, e a quebra dessa lógica causa um estranhamento positivo. “A gente pensa que a bienal fala de trabalhos excepcionais, e o nosso projeto parecia pequeno, foi realizado na periferia de uma cidade e de um país periférico. Aquilo que parecia ínfimo tinha e ainda tem algo a acrescentar no debate contemporâneo”, acredita Bruno.

ESCOLA NOVO MANGUE

O contexto de construção da escola foi, para dizer o mínimo, conturbado. Se ainda hoje os moradores do Coque sofrem com o estigma da pobreza e da criminalidade, além de a área apresentar um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH)

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da Região Metropolitana do Recife, no final da década de 1990 o cenário era pior. Naquele período, a Unicef fez uma pesquisa e concluiu que a comunidade era a mais violenta da cidade. Diante do resultado, resolveu fazer uma doação em dinheiro, em parceria com a rede de TV e rádio de Luxemburgo, para que fosse construído um equipamento de melhoria social, a ser definido pelos próprios moradores. A mediação foi feita pela ONG Centro de Cidadania Umbu-Ganzá, que já atuava na comunidade, com crianças de 7 a 14 anos em situação de evasão escolar. O terreno no qual o projeto se desenvolveu representava um local estratégico para a desova de corpos de jovens assassinados pela guerra do tráfico. “A escola foi construída justamente entre o Rio Capibaribe e o pontilhão do metrô. A comunidade optou por tornar aquele lugar que representava a morte num símbolo de vida”, aponta Chico Rocha. Houve uma seleção fechada, na qual 10 projetos de diferentes escritórios foram apresentados, entre eles o de O Norte, que acabou escolhido.


KARINA MORAIS/DIVULGAÇÃO

2 ESCOLA NOVO MANGUE

Projeto desenvolvido em 1999 mantém sua função original O NORTE 3 Lula Marcondes, Bruno Lima e Chico Rocha foram colegas de faculdade

Lula Marcondes acredita que o diferencial da proposta deles em relação às demais foi a de “dar protagonismo ao rio”. A partir daí, foram muitas discussões para se chegar a um acordo que agradasse a todos os envolvidos. A população tinha demandas próprias, a ONG apresentava propostas e a prefeitura, por ser detentora do terreno e responsável pela gestão futura do local, também se posicionava. Uma das exigências, por exemplo, era de que o equipamento construído apresentasse o mínimo de portas e janelas, para evitar riscos de vandalismo ou arrombamentos, já que foi identificada no entorno a presença de infratores. Os três arquitetos amenizaram essa ausência de aberturas com “rasgos” no teto para se ver o céu. A sensação de enclausuramento também foi resolvida com paredes perfuradas, por meio de tijolos vazados, como cobogós, para promover ventilação e iluminação naturais. Elementos simples, como o pátio interno, com jardim e abertura para

Há uma consonância, na Bienal de Veneza, daquilo que o grupo de O Norte denomina de “arquitetura da carência”

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o rio, estimularam ainda o cuidado constante e o reflorestamento da vegetação que margeia o Capibaribe. Em uma equação equilibrada, envolvendo limitações orçamentárias, espaciais e negociações, a equipe de arquitetos conseguiu realizar uma estrutura edificada que segue até hoje cumprindo sua função inicial: agregar crianças e adolescentes a um local que estimulasse cultura e cidadania e fosse “incorporado ao patrimônio urbanístico do Recife”, sublinha Chico.

ARQUITETURA DA CARÊNCIA

A Escola Novo Mangue, e sobretudo seu resgate pela Bienal de Veneza, funcionou como um lembrete aos três amigos e sócios, de algo que eles

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já sabiam, mas é sempre necessário repetir: o que deve contar é o olhar diferenciado sobre os processos criativos envolvendo a arquitetura, ou, como afirma Bruno Lima, “pequenas ações reverberam e podem ter uma voz muito ampla”. Ele acredita que o projeto apresentado por O Norte está em consonância com boa parte de ações presentes em muitos pavilhões da mostra italiana, que define como retratos de uma “arquitetura da carência”. E o que seria isso? “Na América Latina, em geral, construímos na carência diariamente, e esse não deve ser um motivo para pararmos. Será, por exemplo, que é o recurso monetário que limita e qualifica o espaço? É possível agregar a técnica, a criatividade, a persistência e o conhecimento humano para vencer a limitação”, pondera. Para Chico Rocha, o foco do evento mundial e da visão arquitetônica como um todo estão basicamente centrados na ideia de ativismo, em contraponto a uma “função decorativa, de enfeite”. Como, então, definir a arquitetura? Nos anos 1980, após construir o Sesc Pompeia – centro de cultura e lazer localizado em São Paulo –, Lina Bo Bardi respondeu ao questionamento de alguns alunos que visitavam o local: “Arquitetura, para mim, é ver um velhinho ou uma criança com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço de nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva”. Certamente os criadores de O Norte se irmanam com a simplicidade monumental do entendimento de Lina, uma vez que, mais que projetos e formas, a eles interessa, nas palavras de Chico, “um discurso que enfatize o nosso papel dentro da comunidade”.


DIVULGAÇÃO

Palco 1

ESTRUTURA Picadeiro mais fácil de levar de cá pra lá

Em sua 12ª edição, o Festival de Circo do Brasil segue investindo em produções contemporâneas, porém mais minimalistas, facilitando sua circulação pela cidade TEXTO Márcio Bastos

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No imaginário coletivo, o circo ativa

memórias afetivas que remetem, em geral, à sua expressão mais tradicional, do picadeiro de lona montado por trupes familiares. A arte, no entanto, se apresenta como um organismo vivo, em constante mutação, dialogando, portanto, com outras linguagens e expandindo a própria concepção do que é o circo. Em Pernambuco, o Festival de Circo do Brasil (FCB) se firmou como o grande catalisador e expoente dessa multiplicidade do fazer circense, ao privilegiar uma programação que promove essa interseção entre a tradição e o contemporâneo. Sua 12ª edição acontece entre 4 e 13 de novembro em teatros e bairros da capital pernambucana.


O conceito “portátil” dá a tônica do evento este ano. Segundo a produtora do festival, Danielle Hoover, vários fatores influenciaram a escolha temática, entre eles a crise financeira nacional. Dessa forma, ao contrário do que aconteceu em anos anteriores, quando uma estrutura era montada na área externa do Parque Dona Lindu, o festival optou por apresentações de caráter volante, para serem apresentados em bairros e comunidades do Recife. “Procuramos na essência itinerante do circo uma forma de preservar e amplificar nossas ações. A ideia é que essas apresentações remetam quase a um circo de bolso, que reforce noções de leveza, da dinâmica do ir e vir”, explica.

Essa adequação, no entanto, não implica mudança na curadoria, que continua voltada para produções contemporâneas e grupos com trabalho contínuo de pesquisa de linguagem. A diferença, dessa vez, é que, em vez de espetáculos com equipes grandiosas, o FCB investe no minimalismo. Dessa forma, os teatros de Santa Isabel, Apolo, Hermilo Borba Filho e Luiz Mendonça recebem apresentações de grupos da Finlândia, França, Itália e Brasil, como o Gran Teatro Dentro e Rufino Clown (ITA), Circo Zanni (BR), fundado pelo ator Domingos Montagner, Cie Sôlta (FRA), Artinerant’s (BR), entre outros. Conceituar o que é circo contemporâneo é, de certa forma, cair numa armadilha. Mais do que encaixotar, a ideia remete à flexibilização das possibilidades. A partir do diálogo com outras linguagens, a arte circense ativa potências que apontam para um caminho sempre em construção e aperfeiçoamento. Mais do que uma negação da tradição, essa característica reflete o caráter aglutinador da linguagem. “O panorama do circo no Brasil é de crescimento. Hoje, temos escolas importantes, como a Escola Nacional de Circo, no Rio, e em outros polos, como São Paulo, Salvador e Londrina, que fomentam a arte. Essa retomada tem contribuído para que o circo se aprimore e cumpra uma fundação que lhe é inerente: buscar sempre uma atualização de seus temas, da técnica. É um desenvolvimento da linguagem, com a formação de artistas ligados também a outras artes, é muito enriquecedor. Hoje, estamos em uma fase de transição, com artistas que não vieram de famílias circenses investindo na formação”, situa Ésio Magalhães, do Barracão Teatro, que apresenta no festival o espetáculo Circo do Só Eu.

FORMAÇÃO

Outra característica fundamental desta edição é o destaque para artistas brasileiros e o intercâmbio entre os países. Hoover explica que o Festival de Circo do Brasil está conectado com outros quatro importantes eventos similares no mundo, com bases em Helsinki (FIN), Montreal (CAN), Toulouse (FR) e Estocolmo (SWE). Todos os espetáculos que integram a grade têm

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1 CIRCO DO SÓ EU

Espetáculo foi criado pelo grupo Barracão Teatro, herdeiro de família de circenses

ao menos um artista brasileiro em sua composição. “O ambiente dos festivais tem o poder de acrescentar o intercâmbio entre linguagens, com vivências, cores diferentes. Não é intercâmbio propriamente técnico, e, sim, artístico e cultural”, reforça. Com o projeto Circus Incubator, em parceria com a La Granieri (FRA) e a União Europeia, o festival espera também contribuir com o fomento do circo contemporâneo em Pernambuco. Do estado, selecionaram três artistas para participarem de trocas de experiências em solo internacional: Euler Kalebe, que esteve na Finlândia e Canadá, e João Lucas Cavalcanti e Vitor Lima, que vão à Suécia em fevereiro. “No Recife, não tem nenhuma instituição profissionalizante que dê base realmente técnica para trabalhar com o circo. Então, a gente tem tentado assumir o compromisso de aperfeiçoar nossa técnica. Aqui ainda tem uma perspectiva mais tradicional e nós queremos nos adentrar mais na lógica do circo contemporâneo. Por minha formação no teatro e em dança, busco mesclar isso no meu trabalho para construir novas possibilidades como artista”, explica Vitor Lima, que atualmente se aperfeiçoa, junto a João Lucas Cavalcanti, na Escola de Circo de Londrina. Para Danielle Hoover, possibilitar a apresentação de trabalhos que ampliam a percepção do que é a arte circense é uma contribuição não só para a área, mas também para outras linguagens.“Antes de tudo, estamos falando de arte, e creio que o festival tem conseguido imprimir essa ideia. Temos conseguido extrapolar barreiras, atingindo artistas de dança, teatro, música, que, tocados pelas possibilidades demonstradas nos espetáculos, passam a refletir sobre seus próprios fazeres. Pernambuco não é um polo circense, mas temos conseguido esse envolvimento com as outras artes, que o circo contemporâneo possibilita”, acredita.


GUTO MUNIZ/ DIVULGAÇÃO

Palco

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TEATRO Uma ferramenta de transformação

Festival Recife do Teatro Nacional volta a apostar em produções nacionais, com obras de caráter político que refletem o momento vivido hoje no país

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Fazer teatro (arte como um todo) no Brasil é um trabalho hercúleo. Montar um espetáculo, mantê-lo em temporada e circular com ele é uma dificuldade real para os artistas e, assim, muitas obras ficam restritas aos seus estados ou regiões de origem. Nesse sentido, os festivais cumprem um papel fundamental de apresentar recortes da produção nacional e promover o intercâmbio entre grupos de diferentes localidades. Na capital pernambucana, o Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN) cumpriu esse papel por mais de 15 edições, sofrendo, no entanto, forte baque com a falta de políticas culturais efetivas nos últimos anos. Como resultado, o FRTN, capitaneado pela Prefeitura, através da Secretaria de Cultura e Fundação de Cultura Cidade do Recife, não foi realizado em 2014 com a proposta de virar uma ação bienal, o que revoltou a classe artística.


1 GRUPO GALPÃO

Companhia mineira traz ao festival sua 23ª montagem, o espetáculo Nós

aqui apenas com a bilheteria, sem apoio de editais ou instituições, e o festival cumpre essa função. São trabalhos sem apelo comercial, mas de alta qualidade artística, diretriz que foi definida junto à classe na escuta pública durante o 3º Encontro de Artes Cênicas, realizado em março”, aponta o gestor.

ENGAJADOS

Em resposta ao descompromisso do poder público, o engajamento dos artistas e da sociedade civil forçou um olhar mais atento ao evento, ainda que o retorno da maratona cênica, em 2015, tenha sido marcado pela falta de proposta curatorial, basicamente reciclando peças locais na programação. Ficou a impressão de que os efeitos do esvaziamento do festival e a desarticulação causada pela manobra política ainda demorarão anos para serem contornados. No entanto, segundo Romildo Moreira, gerente de artes cênicas da Prefeitura do Recife, a ideia é que, este ano, o FRTN, que acontece de 19 a 27 de novembro em vários teatros da capital, retome seu caráter inicial, com foco em grupos com pesquisa de linguagem.”Queremos trazer espetáculos que dificilmente viriam se não fosse através do festival. É custoso para grupos de fora se apresentarem

Dentro da proposta de trazer grupos cujos trabalhos refletem uma preocupação com o desenvolvimento de um projeto artístico, duas companhias que estiveram em edições passadas, inclusive a primeira, em 1997, retornam este ano: o Grupo Galpão (MG), com Nós, sua 23ª montagem, e a Cia. do Latão (SP), com O pão e a pedra. Obras de caráter político, que discutem o momento pelo qual o país passa, esses trabalhos refletem também o intuito dos criadores em utilizar o teatro como ferramenta de transformação, uma trincheira contra a barbárie. “O momento político está afetando a circulação de espetáculos. Vivemos uma fase crítica na cultura por conta da visão neoliberal que está sendo implementada e só visa o lucro. Nossa postura tem que ser de resistência”, enfatiza o ator Eduardo Moreira, do Galpão. Em Nós, um grupo de sete pessoas (cuja ligação não fica clara) prepara sua última refeição: uma sopa. Durante o processo, os indivíduos discutem questões relacionadas ao seu lugar na sociedade, o público e o privado, violências reais e simbólicas e celebra os 30 anos do grupo. A direção é de Márcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro (PR). Para o Latão, voltar ao festival também tem um significado singular, porque o evento se confunde com a própria trajetória do grupo. “Participar das primeiras edições do FRTN foi importante para nós. A encenação de Ensaio para Danton no Teatro do Parque, em 1998, mostrou que nosso trabalho, ainda em seu começo, tinha uma linha estética que poderia interessar a muita gente. Tanto que a mais importante

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de nossas peças dos primeiros anos, O nome do sujeito, se passava no Recife, contando histórias de violência em torno de um barão do império que teria feito um pacto com o diabo: era uma alegoria da modernização regressiva, uma espécie de pré-história do que se vê em alguns dos filmes de nosso melhor cineasta atual, Kleber Mendonça Filho”, reforça Sérgio de Carvalho, fundador do coletivo. O caráter de crítica social está presente também em Memórias de um cão, do Coletivo Alfenim (PB), inspirado na obra de Machado de Assis, que abre o festival e expõe as contradições do ethos brasileiro na questão da luta de classes. Outra aposta da curadoria é o Teatro Popular de Ilhéus (BA), cujo trabalho tem forte ligação com a cultura popular nordestina. A ideia é também fortalecer os laços entre os grupos da região.

PRATA DA CASA

Como mais uma característica do festival, as produções locais que foram destaque durante o ano, na visão da curadoria, estarão presentes no evento. Entre elas, dois espetáculos que põem sexualidade e gênero no centro do debate: Puro lixo, dirigida por Antonio Cadengue e inspirada na trajetória do Grupo Vivencial, e Ossos, do Coletivo Angu, baseada na obra de Marcelino Freire. Além de obras que já ganharam os palcos da cidade, o festival promove ainda a estreia de Severinos, Virgulinos e Vitalinos, dirigido por Samuel Santos. Este ano, o festival presta homenagem ao grupo Mamulengo Só-Riso, fundado em Olinda, em 1975, por Fernando Augusto Gonçalves Santos, Nilson de Moura e Luiz Maurício Carvalheira, cujo trabalho na pesquisa e divulgação da arte do bonequeiro nordestino representou um marco na cultura pernambucana e nacional.“É um grupo fundamental para a preservação e renovação da arte do mamulengo, que é patrimônio imaterial, mas que, hoje, passa por uma situação difícil, com poucos artistas se dedicando à sua pesquisa e, principalmente, à sua execução. O teatro de bonecos é vibrante e precisa ter seu espaço destacado”, reforça Romildo. MÁRCIO BASTOS


CON TI NEN TE

Criaturas Marieta Severo por Mario Alberto

Filha de um advogado e de uma professora, Marieta Severo da Costa, que chega este mês aos 70 anos, estreou como atriz em 1965. Foram mais de 30 peças de teatro, 40 filmes e 20 novelas e programas televisivos, entre eles o saudoso A grande família, no qual deu vida à Dona Nenê durante 14 temporadas. Seu talento, prestígio e sucesso tornam o fato de ter sido casada com Chico Buarque apenas um detalhe.

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