100 ANOS
# 193
#193
AS TRANSFORMAÇÕES DO GÊNERO QUE É A CARA DO BRASIL
ano XVII • jan/17 • R$ 13,00
CONTINENTE
17 por 12
www.revistacontinente.com.br
O olhar simbólico de doze artistas sobre a Revolução de 1817 Jeims Duarte • Helder Santos • Daaniel Araújo • Bruno Vilela • Beto Viana • Plínio Palhano Jéssica Martins • Gio Simões • Roberto Ploeg • George Barbosa • Renato Valle • Rinaldo Silva
Exposição: 10 de janeiro a 10 de fevereiro de 2017 ESPECIAL
g a l e r i a
JAN 17
arteplural
SEXUALIDADE NA ERA VIRTUAL E MAIS: JOSÉ LUIZ PASSOS | CABOCLINHOS | JÚLIA HANSEN | VEGANISMO
www.cultura.pe.gov.br/funcultura
Em Pernambuco, o incentivo à cultura vai muito além dos aplausos.
F U N C U LT U R A
O Funcultura é, hoje, o terceiro maior fundo estadual de incentivo à cultura do Brasil. E está se modernizando para apoiar ainda mais artistas e produtores culturais pernambucanos. Uma das novidades para 2017 é o lançamento de três editais: o geral, o do audiovisual e o da música. A informatização dos processos vai agilizar a distribuição dos recursos. Serão R$ 36 milhões destinados a projetos culturais nas mais diversas áreas, visando sempre democratizar a produção e o acesso à cultura no estado. É assim que a gente valoriza e mostra, para o mundo inteiro, todo o talento de Pernambuco.
2003 – R$ 3 milhões 2016 – R$ 35 milhões 2017 – R$ 36 milhões
www.cultura.pe.gov.br/funcultura
F U N C U LT U R A 2003 – R$ 3 milhões 2016 – R$ 35 milhões 2017 – R$ 36 milhões
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PROGRAMAÇÃO
janeiro e fevereiro
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2017
Abrindo a programação musical do Ouvindo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco), os meses de janeiro e fevereiro trazem nomes que vão do blues a nova MPB.
AVA ROCHA 21/01 • SÁBADO• 17h
CLAYTON BARROS 28/01 • SÁBADO• 17h
ABEOKUTA 11/02 • SÁBADO• 17h
BIRDLEGG 18/02 • SÁBADO• 17h
LUCAS DOS PRAZERES 04/02 • SÁBADO• 17h
04/02 • SÁBADO • 15h OFICINA “VIVA PERCUSSÃO (O DESPERTAR DA PIRÂMIDE RÍTMICA)” COM LUCAS DOS PRAZERES
PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
APOIO
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sáb e dom 14h as 17h
REALIZAÇÃO
SECRETARIA DE CULTURA
MINISTÉRIO DA CULTURA
JA N E I R O 2 0 1 7
CARYBÉ/REPRODUÇÃO
aos leitores Em janeiro de 1917 foi lançada no Brasil uma composição que contrastava com o clima bélico vivido por um globo em plena 1ª Guerra Mundial, Pelo telefone, considerada a primeira gravação registrada como “samba”. A história assinala dois autores: o sambista Donga e o jornalista Mauro de Almeida. Mas nem a sua primazia na história do samba nem esta dupla autoria são consensos. Alguns pesquisadores apontam “sambas” anteriores, outros dizem que Pelo telefone é fruto de criação coletiva, para a qual contribuíram João da Mata, Hilário Jovino Ferreira, João da Baiana, Pixinguinha e Tia Ciata, mãe de santo que reunia no seu terreiro memoráveis rodas de samba. Polêmicas à parte, Pelo telefone, sucesso do Carnaval daquele ano, foi um marco ao estabelecer o samba como gênero, que, a partir dali, passaria por diversas transformações: samba de roda, samba de partido-alto, sambaenredo, samba-canção, samba-exaltação, de breque, de gafieira, bossa nova, samba rock, pagode… Essas mudanças e criações de subgêneros, ao longo de seus 100 anos de existência, envolveram acontecimentos políticos e sociais, que foram abordados na reportagem de capa desta edição.
Nascido dos batuques africanos, com o lundu e, depois, com o maxixe, nos terreiros de candomblé, o samba sofreu preconceito - porque era feito por negros, na recente abolição da escravidão - e duras perseguições policiais. Porém, acabou se tornando uma das principais manifestações culturais do Brasil, símbolo nacional e um negócio que gera críticas, mas também empregos diretos e indiretos nas áreas de entretenimento e turismo. Embora haja empresários lucrando com o gênero, desde que o samba é samba, é assim: o garfo ritmando no prato de João da Baiana, a disputa entre Noel e Wilson Batista, o ritmo de Geraldo Pereira, Cartola de verde e rosa, o ziriguidum da bateria na quadra da escola, o sacundin de Jorge Ben, o bim bom de João Gilberto, a alegria da Marrom, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, a caixa de fósforo de Adoniran, o violão de Nelson Cavaquinho, a elegância de Paulinho da Viola, o equilíbrio do mestre-sala, o braço erguido de Beth Carvalho, a voz do morro, o rei do terreiro, a tristeza que balança, o manto azul e branco da Portela desfilando triunfal sobre o altar do Carnaval.
sumário Portfólio
Calu Fontes
6 Colaboradores
7 Cartas
8 Entrevista
+ Continente Online + Expediente
Júlia Hanzen A poeta fala de seu último livro, da sua relação com a astrologia e a ayahuasca
20 Balaio
Ferreira Gullar As contradições e o legado do fundador do Movimento Neoconcreto
68 Entremez
Ronaldo Correia de Brito Sobre labirintos, trevas e portas
74 Claquete
Minorias Safra de filmes norteamericanos com estreia em 2017 traz personagens não brancos em destaque
84
Matéria corrida
A artista traz referências da natureza e do esotérico nos seus desenhos, que ganham ainda mais força quando aplicados em objetos do dia a dia como pratos, vasos, azulejos e travessas
14
José Cláudio Salve Farinha
86 Visuais
Revolução de 1817 Exposição reúne obras feitas por 12 artistas tendo como mote o episódio, cujo bicentenário se comemora este ano
88 Criaturas
Frank Miller Por Rodrigo Gafa
70 Leitura
José Luiz Passos Em O marechal de costas, o autor cria uma ficção cujo protagonista é Floriano Peixoto
Especial
Sexualidade As tecnologias e os aplicativos de relacionamento têm possibilitado novas formas de conexão entre as pessoas, nas quais é possível experimentar o desejo e o afeto muito além do corpo
44 CAPA ILUSTRAÇÃO Shiko
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Capa
Viagem
Há 100 anos, quando se consolidou como um gênero musical no país, enfrentou a violência e o preconceito, passando por diversas transformações até se caracterizar como símbolo nacional
Arquipélago, eleito como um dos melhores destinos de 2017 pela National Geographic Traveler, alia história e arquitetura a praias paradisíacas banhadas pelo Mediterrâneo
Tradição
Cardápio
Manifestação popular muito presente em Pernambuco, que envolve elementos de celebração e religiosidade, tornouse, desde novembro de 2016, Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil
Além de fazer da alimentação um manifesto, adeptos do veganismo têm mostrado que é possível, sim, mesmo sem utilizar elementos tidos como indispensáveis na cozinha, criar pratos e receitas com sabor
Samba
22
Caboclinho
60
Malta
40
Culinária vegana
78
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Jan’ 17
colaboradores
Chico Ludermir
Isabel Lustosa
Roberta Guimarães
Tiago Henrique
Jornalista, escritor e artista visual. Autor de A história incompleta de Brenda e de outras mulheres
Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e especialista em cultura e política do Brasil do séc. XIX
Fotógrafa profissional, sóciaproprietária da Imago Fotografia, com vários livros publicados
Fotógrafo documental independente. Dedicado a aspectos culturais e sociais do interior nordestino
E MAIS Clarissa Gomes, jornalista e fotógrafa. Daniela Nader, fotógrafa. Gianne Paula de Melo, jornalista, mestranda em Teoria e História Literária. Guilherme Carrera, jornalista e doutorando em Artes e Mídia. Lia Beltrão, jornalista, trabalha em edição de livros budistas. Lília Simões, psicanalista e mestre em História Social. Mariane Morisawa, jornalista radicada em Los Angeles. Marina Suassuna, jornalista, com especialização em Estudos Cinematográficos. Matheus Calafange, designer e ilustrador. Ricardo Moura, fotógrafo. Rodrigo Gafa, ilustrador e caricaturista. Shiko, artista plástico paraibano, ilustrador e quadrinista.
MAIS SAMBA
SEXUALIDADE
O internauta que visitar o site da Continente vai encontrar, na íntegra, a matéria de capa da edição #122 (Fevereiro/2011) sobre a presença forte do samba em Pernambuco. Além disso, pode assistir ao documentário A verdadeira história do samba (foto). A produção francesa de 1987, dirigida por Hubert Niogret, com apresentação de Grande Othelo, traz depoimentos do historiador Joel Rufino dos Santos e imagens de Pixinguinha, Martinho da Vila, Paulo Moura, Grupo Fundo de Quintal, Nelson Sargento e da Velha Guarda da Portela.
Leia o artigo A paixão pela imagem: o eu como cenógrafo das virtualidades do si mesmo, da psicóloga Marina Pinheiro, entrevistada em nossa matéria especial desta edição.
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TRADIÇÃO Veja ensaio fotográfico realizado por Roberta Guimarães com integrantes dos caboclinhos de Pernambuco no Engenho Mussumbu, em Goiana.
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO DANIELA NADER
GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais
CONTINENTE #192 A edição de dezembro desta bela revista me comoveu muito. Manoel de Barros, um poeta que tanto admiro, Patti Smith no auge da criatividade aos 70 anos, e a vida de Luiz Gonzaga narrada nos incríveis traços das histórias em quadrinhos... Francisco Brennand e seus diários, para nos lembrar da finitude da vida e da importância de preservar a memória. Ainda me diverti relembrando as lutas de Todo Duro e Holyfield, que sempre estavam nos jornais no tempo em que morei no Recife. 2016 ficará para sempre na lembrança de todos os brasileiros como um período de tristeza e graves rupturas institucionais, mas a última Continente do ano nos deu um sopro de esperança. Parabéns a todos que fazem a revista. MÁRCIA GONÇALVES SÃO PAULO – SP
A Continente é um respiro de jornalismo de qualidade nesse momento difícil do país. Cultura e informação verdadeiras. Só falta melhorar a política de assinaturas (internet e física).
REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação)
PEDRO AMARAL
Agelson Soares Santana (tratamento de imagem)
SÃO PAULO – SP
Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Eduardo Montenegro, Erika Muniz, Maria Luísa Falcão e Marina Moura
DO FACEBOOK
FRANCISCO BRENNAND Em 1998, tive o privilégio de passar uma tarde no ateliê de Francisco Brennand. Ao final, fui presenteado com um livro assinado pelo mesmo. Afirmou ele na ocasião: “Façamos nós em nossa casa nosso próprio centro do universo”.
(estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br
ISRAEL PROCHMANN PONTA GROSSA – PR
ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201
ERRATA O nome do compositor Erik Satie foi grafado de forma errada na capa da edição no 192 (dezembro/2016).
Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se
compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, redes sociais e correio. As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
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JÚLIA HANSEN
“Me sinto cada vez mais uma espécie de intérprete” A poeta fala sobre seu mais recente livro, Seiva veneno ou fruto, influências literárias, passando por sua atividade como astróloga, leitura de mapas, a experiência com o ayahuasca, além de apontamentos sobre política e sobre o Facebook TEXTO Gianni Paula de Melo
CON TI NEN TE
Entrevista
Um dos poucos territórios em que
é possível uma respiração alegre no país é o da poesia. Espaço de resistência por excelência, em que diversas vozes multiplicam imagens e seguem tentando dar sentido ao incompreensível do mundo. Dentre os nossos muito bons poetas, a singularidade de Júlia de Carvalho Hansen tem ressoado com uma ternura feroz. Seu mais recente livro, Seiva veneno ou fruto, tem tempo e ritmo próprios, além de uma economia de poemas rigorosa e exigente. Em seu ateliê, no Sumaré (SP), conversamos sobre astrologia, ayahuasca, política, usos do Facebook, sua vizinhança poética e a disponibilidade para interagir com a vida que a cerca. CONTINENTE Seiva veneno ou fruto é um livro miúdo com a densidade das galáxias. Como ele foi gestado e que experiências atravessam essa obra? JÚLIA HANSEN Seiva veneno ou fruto é como um rádio com várias sintonias possíveis; ele está sintonizando e afinando muitos universos. Eu entendo que ele, diferentemente de meus
outros livros, passa por um processo de abertura para o espiritual. É uma coisa que, embora já estivesse presente na minha vida, eu não tinha nenhuma consciência ou centralidade. Antes do meu retorno de Saturno, que aconteceu em 2013, eu dividia o mundo entre imaginação e realidade, não encontrava nada que estivesse no entre. O livro também é marcado por experiências ligadas à ayahuasca, que eu bebo já há 10 anos, mas por experiências de outro nível, com xamãs de linhagem quéchua lamista e, sobretudo, shipibo, que são povos peruanos – aliás, hoje peruanos, já que são muito mais antigos que qualquer ideia de Peru. Eu comecei a acessar outras conexões, além de ter, através dessas cerimônias, limpado conexões ancestrais que, de certa maneira, fechavam a minha sensibilidade por proteção ou por poluição. Sou filha de dois grandes intelectuais, que se esforçam para serem ateus mais do que são de fato. Então, eu não fui batizada, criada pra possibilidade de entender que toda religião, toda espiritualidade, vai ser um mito, mas não uma convivência.
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CONTINENTE E o seu retorno de Saturno atuou nessa mudança de perspectiva. JÚLIA HANSEN Acho que o meu retorno de Saturno me mostrou que eu não podia negligenciar esse lado espiritual da minha vida, porque senão eu ficaria literalmente soterrada pelas coisas. Escrevi o primeiro poema do Seiva veneno ou fruto no dia do meu retorno exato de Saturno, o grau preciso, e eu estava há um ano sem escrever. Desde que tinha terminado o livro Poemas do destino do mar e a minha dissertação do mestrado juntos, sentia que nada era possível de ser escrito. Quando termino um livro, entro num mutismo, numa sensação de encalacrado. Por mais que escreva, não acho que aquilo vai dar em nada. Mas, quando escrevi esse primeiro poema, sabia que tinha começado outra coisa, como se fosse o início de uma raiz para uma proliferação, sabe? E entendo que esse poema vai falar de uma espécie de aprendizado da vida que não passa por um universo racional ou cartesiano. Ele é a semente disso. Vai falar também de uma convivência com a mutualidade de mundos. Hoje, entendo que essa samambaia em cima da minha mesa é
RICARDO MOURA
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a pessoa que pensa ao meu redor ou próximo de mim. Entendo que preciso silenciar, como no verso que diz “preciso dissolver um pouco dos vigilantes olhos”, uma necessidade de ouvir mais o interno a partir de um diálogo com o fora, mas sem muito bláblá-blá semântico, crítico ou teórico.
um ser ancestral, e esse ser, pra quem de alguma forma consiga simplesmente estar receptivo suficiente para observálo, ele diz coisas, ensina coisas, se comunica. Tudo que é vivo, tudo que existe se comunica. E, nesse sentido, acho que esse livro é um rádio, ele é uma espécie de conexão com as coisas que estão se comunicando. Ao mesmo tempo, ele só é sucinto e pequeno, com poucos poemas, porque eu exigi isso.
CON TI NEN TE
JANIO SAJTOS
CONTINENTE Como se deu essa exigência para que ele fosse sucinto? JÚLIA HANSEN Ele é 5% do que eu escrevi em três anos. Por exemplo, optei por não ter nenhum poema de amor, optei por construir uma semântica que fosse integrativa. Em certo sentido, acho que nele resolvi coisas que eu estava procurando desde os meus 14 anos, quando decidi escrever um livro. Pra mim, ele é um paradigma de fechamento, de um estancamento, da escrita mesmo; não sei o que vou fazer agora e isso me angustia um pouco.
CONTINENTE De que forma a poesia contamina o ofício da astróloga e a astrologia contamina o ofício da poeta? JÚLIA HANSEN Comecei a estudar astrologia na mesma época em que
aí do que algo que nasça do meu âmago. Tem a ver com sintonia, sabe? Desde pequena, todas as figuras mais espiritualizadas da minha vida falam: “Ah, você é médium”. Hoje, entendo isso no sentido de “ser um meio”. A astrologia é uma das linguagens mais antigas do mundo, dentre as que estão sendo transmitidas e retransmitidas e atualizadas; ela é contemporânea à poesia, digamos assim. Mas o que sinto da ligação das duas é que, na minha vida, elas são formas de transmutação energética. A prática de astrologia
Entrevista CONTINENTE Como começaram as suas vivências com a ayahuasca e como isso transformou sua escrita? JÚLIA HANSEN Houve uma transformação automática. Por um lado, a ayahuasca expande a consciência, então você vai ver as coisas de outros modos. Mas entendo que ela age, sobretudo, num processo de integração. A ayahuasca pode mostrar, com um uso bem-cuidado, a própria integridade, sabe? Ela mostra onde é que você é você, onde é que você habita em si mesmo. E isso pode ser por vias muito físicas, pois dizem que ela alinha teus chakras, deixa todos eles com a mesma vibração. De certa forma, pra mim, a escrita sempre foi o cerne, comecei a escrever com nove anos de idade, isso sempre esteve pulsando e sempre vai estar. Então, a ayahuasca me fez coincidir com esse caminho que já estava aí e me tirou um pouco dos restos de pensamento coletivo, porque sinto que uma coisa que me impede de escrever algo claro é quando estou pensando como
comecei a me interessar por poesia, mas sinto que só de uns dois anos pra cá entendo que essas coisas estão muito próximas. Quando li Drummond, aos 13 anos, imediatamente senti que queria fazer aquilo. Com a astrologia, sempre foi uma coisa à conta-gotas, nunca quis transformar a minha descoberta numa disciplina, fui lendo por prazer e não por trabalho. Entendo hoje algumas coisas dessa proximidade. Num primeiro ponto, me sinto cada vez mais uma espécie de intérprete, e não astróloga ou poeta; entendo que um intérprete está no intervalo de meios. Sinto obviamente que a produção da minha escrita é minha, mas também sinto que ela é muito mais uma disponibilidade a sensibilidades das coisas que estão
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que tenho com as pessoas não é uma decifração. Também tenho uma pira com oráculos, estudo I Ching, tenho estudado búzios, mas cada vez menos me interessa saber ou dizer o futuro. Eu acho que isso é uma responsabilidade que não pode ser minha. CONTINENTE E o que se esperaria da leitura dos mapas? JÚLIA HANSEN Quando leio o mapa de alguém, estou muito mais dando uma afinada na tonalidade da pessoa em relação ao seu mapa e transmutando energias que estão solidificadas, presas, densas, frustradas, do que qualquer outra coisa. E penso que o trabalho que faço com a poesia cada vez mais também tem a ver com isso, tem a ver
com construir objetos que vão produzir na sensibilidade de quem lê uma forma de transformação de um nível de sensibilidade, de um nível energético. Entendo que o Seiva veneno ou fruto é o livro que faz isso dentre todos os meus livros; tanto que, quando ele simula a dúvida, está sempre simulando uma dúvida que não é angustiada, mas que abre para o amplo, que está sempre indo pro mais aberto, possibilitando liberdade. CONTINENTE O que significa “estar sempre à espera de ver”?
JÚLIA HANSEN Ver é o verbo do Seiva veneno ou fruto, é o verbo articulador de tudo. Eu acho que esse “estar sempre à espera de ver” se relaciona com o estar disponível para aquilo que vem a se comunicar, entende? Esse ver pode tanto ser um ver visionário, como pode ser um ver só de uma observação, como ele pode ser um ver cinematográfico. Entendo que essa diferença entre as possibilidades do ver estão próximas de questões muito íntimas, no sentido espiritual. Numa das piores visões que tive em cerimônia de ayahuasca, passei umas quatro horas vendo nazistas, campos de concentração, uma coisa horrível. Mas eu sentia, durante essa visão, que não estava sendo uma produção interior, que não era algo
que observasse como um sonho, que estivesse vendo dentro. Eu sentia mesmo que via a um centímetro dos meus olhos, pra fora, como um filme que passasse. Isso foi muito intenso pra mim. Lembro que, no dia seguinte, conversei com a xamã responsável pela cerimônia e ela me contou que o rapaz que estava ao meu lado era sobrinho de um SS nazista e que o homem que estava na frente dele era um israelense. Entende? Fiquei vendo o canal entre eles. Conto isso como um exemplo, mas eu teria “n” coisas que já vi na
vida e que não são explicáveis por uma racionalidade, por uma cognição, por um encadeamento. É quase como se eu tivesse sido convencida de que essas coisas se realizam de tanto que elas me acontecem. Mas não é uma coisa em cerimônia de ayahuasca que só se dá comigo. Isso ocorre muito, se a experiência está sendo bem-cuidada por guias, xamãs, cozinheiros, que estão nivelando a energia coletiva e trazendo uma espécie de tom comum. Não é nada que me faça visionariamente especial. CONTINENTE Nesse livro, os elementos da natureza aparecem não como alegorias ou metáforas, mas como lugares de conhecimento e de autoconhecimento. Você tinha ideia da paisagem poética que queria construir?
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JÚLIA HANSEN Acho que ele é o mais inconsciente dos meus livros. No Cantos de estima, reforcei semânticas, palavras que eu queria que estivessem lá, como oceano e coração, eram coisas que estava o tempo inteiro a procurar. Passava a maior parte do meu tempo, como escritora, procurando o texto, mas hoje em dia espero que ele apareça. É mais como se fosse um tom do que um exercício; quase como se vibrasse uma nota e mantivesse um canto ali. As vidas que aparecem, o mineral, o animal, a planta, sinceramente, sinto que isso tem a ver com o que eu vivo hoje, mas tem muito a ver com a minha infância também. Desde pequena, não tem nada que me interesse mais na vida do que a vida. As memórias mais fortes que tenho envolvem estar no meio de animais, no meio de plantas, como se o universo do natural me possibilitasse conviver com tranquilidade com todas as sensibilidades que estão em mim. Por isso, ele aparece. Quase como uma espécie de ativismo político, como se dissesse: “Gente, vamos prestar atenção no que interessa?”. É engraçado uma poeta dizer isso, mas acho que a gente tem muita palavra, muito discurso, teoria, e essas coisas todas tiram a gente desse lugar. CONTINENTE Você acredita que a sua poesia é política? E que o uso que faz das redes sociais destoa do tom afirmativo de outros escritores ou intelectuais? JÚLIA HANSEN O uso do Facebook que eu faço é cada dia mais consciente de produzir esse deslocamento emocional nas pessoas. Comecei a fazer isso sem perceber, mas ele é cada dia mais combativo no sentido de dizer: “Galera, não vamos entrar em desespero”. Isso tem muito a ver com eu saber que, astrologicamente, a gente está mudando de fase, porque Saturno e Júpiter passam de 250 a 300 anos só fazendo conjunções em um mesmo elemento. A gente está numa fase de transição que começou nos anos 1960 e que termina, acho, em 2020. Desde a Revolução Francesa, Saturno e Júpiter estavam fazendo conjunções em elemento terra, havia uma proliferação da matéria, do capitalismo material. Agora, a gente está vivendo uma transição da terra para o ar, então, todas as questões são ligadas à informação, aos vírus, ao capitalismo
JANIO SANTOS
“Cacete, taí um daqueles mestres meus que eu não sabia que era um mestre porque eu nunca tinha lido”. E ele já estava me influenciando. O Ezra Pound fala isso, né? Um cara tão pragmático como o Pound, mas ele diz que mesmo aquilo que não for lido pelas gerações futuras estará incluído no trabalho de um poeta futuro. Quando eu li o Fróes pela primeira vez, senti e ainda sinto isso. Conheci o seu trabalho quando já estava muito interessada pela convivência com o vegetal, e a poesia dele dos últimos, sei lá, 30 anos é completamente isso. No sítio dele, você vê que cada uma das árvores que ele plantou parecem reconhecê-lo e tirar o chapéu pra ele, sabe? Ele é uma entidade daquele mato. Tenho muita admiração por ele. Na poesia portuguesa, eu pensaria no Herberto Helder, que foi alguém que li por todos os lados. Muito dos ritmos que os meus poemas têm, embora sejam bem diluídos, são coisas que aprendi com o Helder. E ele é o animalvegetal-mineral-humano sendo uma coisa só, tudo é voz pra ele, tudo passa pela voz dele. Ele, pra mim, é o poeta.
CON TI NEN TE
Entrevista financeiro, às coisas que, literalmente, se propagam pelo ar. Acho que, consciente disso, não quero fazer parte do desespero mental coletivo, isso é regra da minha existência e será. É uma espécie de tonalidade do desespero que não ajuda, e como me vejo preocupada em ter mais lugares de saúde na minha vida, construir isso com as pessoas e os seres ao meu redor, faço um uso assim do Facebook. Tento ter um gesto afirmativo no sentido de sugerir: “Abre, galera, tem mais tempo no tempo, tem mais vida na vida, tem outros tons tocando”. O que sinto no Seiva veneno ou fruto é que ele é extremamente político por conta dessa espécie de afirmatividade, sabe? Estudei Letras, fiz mestrado em Letras, nasci em uma casa com 20.000 livros, tenho uma reverberação do que o excesso de pensamento e conhecimento pode causar de fragilidade, e fragilidade no mau sentido. Como uma coisa que está fissurada, fragmentada, desconectada,
destruída, e isso, a meu ver, não é um gesto vital. É um gesto de corte, não é um gesto de conexão. Entendo-o político nesse sentido, numa espécie de resistência à fragmentação dos discursos, à desconexão. CONTINENTE Quais poetas, aos seus olhos, se comunicam com seu trabalho, influenciam e se avizinham de sua poética? JÚLIA HANSEN Vejo muito diálogo com o Reuben da Cunha Rocha; embora, aparentemente, muita coisa dele seja muito urbana, ele fala bastante num elo mente-vegetal. Vejo a sua produção como algo que parte dessa sensibilidade e o considero um poetaxamã-cognitivo, ele está cada vez mais a produzir saúde, eu sinto isso. E sinto isso bastante no livro ainda inédito da Bruna Beber, um universo mágico, uma outra fronteira do enigma, muito diferente dos livros anteriores dela, com uma força do axé. Esses seriam os dois casos mais fortes, de pessoas mais próximas de mim, que têm essa ligação. Já o Leonardo Fróes, desde as primeiras leituras que eu fiz dele, eu pensei:
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CONTINENTE Você sempre fala da importância do seu pai (o professor da USP e crítico literário João Adolfo Hansen) na sua formação como algo muito amplo e fundo. JÚLIA HANSEN A minha ligação com o meu pai é imediata. Ele diz que desde a primeira vez que me pegou no colo teve a sensação de que tinha chegado alguém com quem ele ia dialogar a vida inteira. Meu pai é muito cuidadoso com as coisas, cria orquídeas, tem um jardim que é uma selva, sempre tem animais ao redor. Acho que ele cuidou de mim como cuidaria de qualquer ser vivo que estivesse ao lado dele, com a mesma dedicação e generosidade. A imaginação que tenho me foi dada por ele. Quando eu era criança, uma das memórias mais fortes que tenho é a dele me contando histórias pra dormir, e a de que eu gostava mais era uma versão que ele tinha construído da Ilíada com a Odisseia, que chamava A guerra de Troia. Ele contava de cor, porque meu pai é a memória do mundo. Ele abre parênteses de 50 minutos e fecha, ele é muito geminiano, então tudo está falando, muito político, muito anárquico. É engraçado, tão anárquico quanto sistêmico. E ele me contava essa história que durava mais
ou menos 20 dias, né? E, quando ele terminava de contar, perguntava: “e agora, que história você quer que eu te conte?” E eu dizia: A guerra de Troia. Devo ter passado dos três até os meus nove anos ouvindo, todas as noites, a Ilíada e a Odisseia, entende? Ele me deu a ética do mundo no momento em que fez isso, mas uma ética ficcional, uma ética narrativa, uma ética ancestral. Desde que comecei a escrever, ele percebeu que eu tinha um desejo de escrita e foi me dando toques, alguns mais suaves e outros mais duros. E entendo que, sobretudo na minha adolescência, de certa maneira, procurava nele uma espécie de legitimação crítica daquilo que eu estava escrevendo. Ficava o tempo inteiro a não saber muito bem o quanto estava escrevendo e o quanto estava sendo escrita por uma legitimação. Isso eu vejo hoje, não via isso assim na época, claro. CONTINENTE Por isso você diz que começou a escrever algo que considerasse bom quando deixou de escrever para o seu pai e começou a escrever para sua mãe? JÚLIA HANSEN Quando eu tinha uns 23 anos, estava fechando a faculdade, em que essa questão da legitimação da crítica tinha quase que minado a minha poesia. Daí percebi que o que eu procurava era uma aceitação da ligação com um possível leitor. Quem dá essa aceitação da ligação na vida é a mãe, né? E minha mãe tem uma sensibilidade contemplativa que meu pai não tem. Meu pai trabalha o tempo inteiro, ele está sempre ativo. Minha mãe tem uma sensibilidade do olhar, do tocar, do comer; uma sensibilidade física. Aí também percebi que, quanto mais me aproximasse desse tipo de sensibilidade, mais generosidade conseguiria ter com a escrita, e ela saía do mental e virava um corpo. A apreciação da minha mãe nunca é analítica, ela é “gostei” ou “não gostei”. Ou “é lindo, me comove”, ou “não entendi”. No meu primeiro livro, eu mostrava os poemas para o meu pai e ele falava “isso não é poesia”. Daí, tive que parar de mostrar pra ele. Quando eu terminei, decidi propor que ele revisasse o texto gramático do livro. Fiz isso com medo, pensando que ele ia achar uma merda, mas, quando terminou ele disse: “Entendi, você estava fazendo um pássaro e não um livro”.
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áginas anteriores P 1 LADRILHO HIDRÁULICO Materiais de revestimento ganham composição geométrica pela artista N estas páginas 2 ARTE URBANA
ainel criado por Calu Fontes está P na Vila Madalena, em São Paulo
3-4 MOTIVOS Fauna marinha e texturas variadas estão presentes nas composições
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Portfólio
Calu Fontes
SENSIBILIDADE ONÍRICA E SAGRADA TEXTO Marina Suassuna É em objetos do dia a dia como pratos, vasos, azulejos e travessas que Calu Fontes se sente à vontade para exercer toda a sua criatividade e experimentação. “São as minhas telas em branco prediletas”, diz a arquiteta e artista plástica paulistana, que fez da cerâmica a sua matéria-prima por excelência, marca registrada de seu trabalho. Mesmo os projetos que desenvolve para outras bases e suportes, entre eles, ladrilhos hidráulicos, calçados, roupas e até uma linha autoral de papel de parede, têm origem na cerâmica. Segundo ela, a paixão pelo material surgiu em 1993, durante a faculdade de Arquitetura e Urbanismo. “Enquanto meus colegas de classe foram estagiar em escritórios, eu preferi trabalhar num ateliê de cerâmica, e não demorou muito para eu me encantar por esse universo. Costumo dizer que me casei com a cerâmica. Foi amor à primeira vista.” Calu produz suas peças com o rigor dos antigos artesãos, uma a uma. Os desenhos são confeccionados no papel e depois transportados para a cerâmica, numa técnica que combina pintura clássica à mão e camadas de adesivos, numa espécie de decalque. A iconografia da artista revela uma sensibilidade que passa pelo onírico e pelo sagrado, como se ela se desligasse dos estímulos externos e desse vazão a sua interioridade. Um estado de espírito parece estar impregnado nas suas obras. Entre o cotidiano e o sonho, entre o delírio e o plano material, Calu Fontes vai imprimindo sua marca, sempre com o desejo de proporcionar uma vida mais colorida às pessoas. Sobre o sentido das cores na sua obra, ela diz: “Cores são vivências. Elas exercem forte influência não só nos espaços físicos, mas também nas nossas emoções. Uma mesa colorida traz alegria para aquele momento da refeição, assim como um painel de azulejos não só dialoga com a arquitetura, como traz cor para o ambiente. Não precisa ser tudo colorido. Às vezes, utilizar uma única cor também gera um significado”.
BAHIA
Se a formação em Arquitetura lhe fornece um domínio das proporções e combinações espaciais e na composição dos painéis e azulejos, é a ligação com suas raízes que sustentam sua identidade visual. Quando pequena, Calu passou grandes temporadas em Salvador, terra natal de sua família,
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onde também se sente em casa. Os passeios pela cidade e pelas praias do litoral, as visitas às igrejas, as rendas, o cheiro das frutas, os murais e o artesanato local, tudo isso estimulou os sentidos da menina, que já frequentava oficinas de arte e exposições acompanhada pelos pais. Dessa maneira, desenvolveu um olhar peculiar para a natureza, principalmente para o fundo do mar, a fauna e a flora. “Todos os grafismos e texturas presentes nesses elementos terminam se transformando em tramas, estampas, referências e, por fim, imagens. É um universo de imagens muito rico e inspirador. Ao mesmo tempo, sou muito atraída pelas linhas e volumes geométricos”, explica. O sangue baiano também está presente por meio da religiosidade. Filha de Iemanjá, a artista evoca frequentemente a Rainha do Mar, uma espécie de ícone de suas pinturas. Por outro lado, há um
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sincretismo que ela faz questão de enfatizar esteticamente por meio de divindades católicas, budistas, hinduístas e do candomblé. “No meu altar, tem de tudo: vários santos, anjos da guarda, orixás, Lakshmi. Trago esse sincretismo comigo, tanto nos cantinhos do meu ateliê como nas peças. Essas imagens trazem boas energias e um sentimento de proteção.” Entre os trabalhos que cita com carinho e orgulho, está uma coleção de ladrilhos que produziu industrialmente, e o painel Peixes e tramas, fixado numa rua da Vila Madalena, em São Paulo a convite da DW, evento de design. “É possível inserir arte e poesia dentro do espaço urbano e provocar descobertas no olhar de quem passa pela rua. Foi o que pensei quando aceitei fazer o mural. Inspirado em Iemanjá, ele é o meu presente à cidade de São Paulo e a todas as pessoas que circulam pela cidade e por seus diversos cantos de insuspeitas surpresas.”
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5-6 FEMININO Artista se apropria da iconografia popular de sereias e de Iemanjá 7 e 9 NATUREZA Padrões e fauna de estética retrô são recorrentes no seu trabalho A ARTISTA 8 Paulista, Calu valoriza sua matriz baiana 8
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
GUERRA PERDIDA
Ferreira Gullar, controverso Transitando entre poesia, teatro e cinema, Ferreira Gullar deixa um legado para a arte brasileira que se estende para além da literatura, a expressão que o levou a tomar assento na cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras, a qual passou anos afirmando que não ocuparia. Controverso, sua trajetória artística foi marcada por relações intensas e rupturas. No período em que o golpe militar eclodiu no Brasil, Gullar filiou-se ao Partido Comunista. A partir daí, fez-se nômade, exilando-se na antiga União Soviética, depois indo “se esconder” em cidades latinas como Buenos Aires e Santiago do Chile. O exílio rendeu-lhe contribuição para O Pasquim, de oposição ao regime militar, para o qual escrevia sob o pseudônimo de Frederico Marques. Anos depois, não poupou críticas aos governos de esquerda que se estabeleceram no socialismo. “Porque o que eu estou dizendo é que o socialismo acabou, estabeleceu ditaduras, não criou democracia em lugar algum e matou gente em quantidade. Isso tudo é verdade, não estou inventando”, disse em entrevista à revista Veja, em 2011. Participou ativamente do Concretismo, movimento de cunho racionalista, geométrico e objetivo, tanto nas artes visuais quanto na poesia. Porém, incomodado com os rumos dessa “artéria literária”, Gullar rompeu com o antigo grupo e foi um dos fundadores do Movimento Neoconcreto, de reaquisição da subjetividade poética, liberdade artística e experimentação criativa. Como parece natural aos seus fluxos, o maranhense abandonou o projeto que ajudou a fundar para concentrar-se em seus poemas, cada vez mais carregados de teor político e social. O comportamento controverso, entretanto, não desabona o poeta Ferreira Gullar. Talvez, tenha sido justamente sua dubiedade a força propulsora de sua genialidade poética. EDUARDO MONTENEGRO
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A FRASE
“Viver no exterior é bom, mas é uma merda. Viver no Brasil é uma merda, mas é bom.” Tom Jobim, que este mês faria 90 anos
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Em outubro de 2016, a Mulher Maravilha foi escolhida pela ONU (que nunca teve uma mulher como secretária-geral) como embaixadora honorária da organização na luta pelos direitos da mulher. À época, tal escolha recebeu diversas críticas, pela imagem extremamente sexualizada da heroína. Criada há 75 anos, com a intenção de representar uma mulher forte e independente, ela é vista, hoje, como uma mulher branca com medidas impossíveis, usando um traje apertado, com referências à bandeira americana. Uma petição online foi organizada, reunindo a assinatura de mais de 45.000 pessoas, e os protestos parecem ter surtido efeito. Em dezembro, a ONU anunciou que a imagem da Mulher Maravilha – que deveria encabeçar uma campanha ao longo de 2017 – não será mais vinculada à instituição. Espera-se que a organização escute também a sugestão dada pelos críticos e escolha uma mulher real que possa representar e levantar a bandeira da igualdade de gênero, independentemente de contexto cultural. (Mariana Oliveira)
Balaio DE REPENTE, DA VINCI! Um médico aposentado de uma localidade no interior da França resolveu levar 14 desenhos herdados do pai, que guardava havia anos, a uma casa de leilão parisiense. Quase todas as obras eram italianas e datavam dos séculos XVI e XVII. Entre elas, figurava um estudo do martírio de São Sebastião que recordava versões similares de Leonardo da Vinci. Para tirar a limpo a suspeita, a casa recorreu a dois outros especialistas, os quais atestaram que, de fato, o aposentado havia guardado durante anos, numa velha pasta, um desenho do mestre, precisamente da sua primeira fase em Milão, entre os anos de 1482 e 1485. A preciosidade chega a valer, hoje, 15 milhões de euros. Segundo a curadora Carmen C. Bambach, do MET de Nova York, uma das especialistas consultadas, nas últimas três décadas, esse é o primeiro Da Vinci desconhecido que foi encontrado. (MO)
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EL BARRIO Uma mistura de latinos (sobretudo portoriquenhos) e negros concentra-se no East Harlem, localidade de Manhattan quase sempre estigmatizada por suas matrizes étnicas, pela “pobreza” e “violência”. Recentemente, a despeito do desprestígio e de sua urbanização no monótono estilo conjunto habitacional, El Barrio – ou Spanish Harlem, como também é conhecido – tem passado por processos de gentrificação e criação de espaços públicos de afirmação da latinidade e da negritude. Um deles foi inaugurado há pouco, o Caribbean Cultural Center African Diaspora Institute (CCCADI), aberto com a coletiva Home, memory, and future. Um dos tópicos abordados pela curadoria é justamente a gentrificação, que extingue do local os elementos de memória coletiva. No primeiro andar da mostra, estão expostas imagens que pontuam essa crítica, como a presença da obra do documentarista Hiram Maristany, que mora no bairro e, ao longo de quatro décadas, tem registrado situações vividas pelas comunidades ali residentes. Uma das fotos de Hiram em exibição é esta reproduzida acima, Funeral Procession of Julio Roldan, feita em 1970. (ADM)
TOUR CASA-GRANDE Uma das séries de maior sucesso da atualidade, Westworld, que tem no elenco Anthony Hopkins, Ed Harris, Evan Rachel Wood e Rodrigo Santoro, narra os bastidores de uma empresa de entretenimento que mantém um parque temático ambientado no Velho Oeste. Um dos aspectos abordados pela produção é o interesse de turistas em passar as férias num local onde podem ser violentos sem a punição legal do mundo civilizado. Podemos dizer que no Brasil há um passeio perigosamente semelhante ao de Westworld. A Fazenda Santa Eufrásia, em Vassouras (RJ), oferece uma atração turística em que os visitantes revivem os velhos tempos da escravidão e são servidos por “mucamas”, sem serem lembrados das gritantes violações dos direitos humanos do período, em especial, naquele Vale do Paraíba fluminense, região que enriqueceu às custas de trabalho escravo nas plantações de café. As visitas, com valores entre R$ 45 e R$ 65, são guiadas pela proprietária Elizabeth Dolson, vestida de sinhá, com um sorriso cândido no rosto. (Débora Nascimento)
Ligue, sintonize, caia fora Aquele 1967 foi um ano de loucura. Todo o desejo de quebra de padrão, de vontade de “pirar” que vinha sendo gestado na puritana sociedade norteamericana transbordou. A contracultura virou fenômeno mundial, mas foi na Califórnia que ela se materializou com intensidade. Aquele foi o ano do Summer of Love, quando simplesmente 100 mil pessoas botaram a mochila nas costas e foram para São Francisco, para a localidade de Haight-Ashbury viver o sonho do amor e do sexo livres: “sexo, drogas e rock’n’roll”, baby. Os lugares de confluência dessa horda de hippies eram comícios, ocupações e, sobretudo, os festivais de música. Um evento-marco dessa pirada coletiva foi The Human Be-In, que aconteceu em 14 de janeiro no Golden Gate Park. Figura síntese da insatisfação que motivara a geração beat e agora os hippies, o poeta Allen Ginsberg (ao centro, na foto) foi o mestre de cerimônias do encontro, começando “os trabalhos” entoando mantras, bem no clima da influência orientalista. Também fez aparição celebrada no evento o guru do LSD, Timothy Leary, cujo brado “Turn on, tune in, drop out” (Ligue, sintonize, caia fora) deu a liga necessária para aqueles jovens mudarem o rumo das coisas, mesmo que depois alguém tivesse que declarar que o sonho acabou. ADRIANA DÓRIA MATOS
A FEBRE FERRANTE A tetralogia italiana, criada pelo pseudônimo Elena Ferrante, é uma das raras conjunções com que público e crítica concordam. Mas, por se recusar a revelar a verdadeira identidade, Ferrante passou a ser alvo de especulações. Em outubro passado, um artigo da The New York Review of Books afirmou ter descoberto seu verdadeiro nome – seria a tradutora Anita Raja (foto), de 63 anos. Logo após a polêmica, o realizador Giacomo Durzi iniciou as filmagens de Ferrante fever, uma tentativa de destrinchar o sucesso da autora. O documentário estreia em 2017 e deve tratar de questões como o anonimato e privacidade de Elena Ferrante, mas Durzi garante que não pretende fazer um filme “bisbilhoteiro”. (Marina Moura)
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AMICUCCI GALLO / REPRODUÇÃO
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SAMBA A voz do morro, o rei do terreiro
Do enfrentamento da violência e do preconceito ao status de símbolo nacional, a transformação musical e social do gênero, que, ao longo do seu centenário, ajudou a construir uma ideia de Brasil TEXTO Débora Nascimento
Donga: Ué, samba é isso, há muito tempo (cantando): O chefe da polícia/ pelo telefone/ mandou me avisar/ Que na Carioca/ tem uma roleta/ para se jogar. Ismael Silva: Isso é maxixe. Donga: Então, o que é samba? Ismael Silva (cantando): Se você jurar/ que me tem amor/ Eu posso me regenerar/ Mas se é para fingir, mulher/ A orgia assim não vou deixar. Donga: Isso não é samba, é marcha.
A discussão acima transcrita, ocorrida numa sala da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (SBACEM), no final da década de 1960, no Rio de Janeiro, foi protagonizada por dois personagens importantíssimos na história do samba: Donga, autor oficial de Pelo telefone, lançado há exatos 100 anos, e Ismael Silva, cristalizador, junto à “turma do Estácio”, do gênero musical brasileiro como o conhecemos hoje.
Pelo telefone, na realidade, uma música de versos desordenados que em nada se parece com o samba atual, exibia, com a irônica denúncia da corrupção policial, a capacidade que o gênero musical teria para criticar e, embora sem pretensão, documentar os fatos políticos, sociais, econômicos e culturais do país. Lançada em janeiro de 1917, em plena Primeira Guerra Mundial e há menos de 30 anos da promulgação da Lei Áurea, a composição, ao se tornar o maior sucesso do Carnaval daquele ano, marca o início do samba como gênero musical, o começo da tradição das composições carnavalescas e da batalha dos negros por uma nova posição na sociedade. “Sem condições de emprego condigno após a conquista do rudimento de ensino representado por três ou quatro anos de escola primária, esses filhos de famílias humildes defrontavam: o trabalho braçal (ainda estigmatizado pelo não há muito extinto
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regime de escravidão), o aprendizado de alguma atividade artesanal ou especializada (marceneiro, ilustrador etc.) ou a livre disponibilidade para algum trabalho eventual englobado na categoria dos ‘pequenos expedientes’”, contextualiza o historiador José Ramos Tinhorão, em História social da música popular brasileira (1990). A partir de Pelo telefone, o samba refletiria a trajetória social do país. Registrada como “samba” em novembro de 1916, por Donga e Mauro de Almeida, a composição, na realidade, era fruto de uma criação coletiva elaborada a partir de muito improviso na festiva casa da cozinheira e mãe de santo Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata (moradora do número 117 da Rua Visconde de Itaúna, próxima à Praça Onze de Junho), uma das míticas tias baianas, que, junto aos ex-escravos, vieram ao Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor e ficaram eternizadas
CON CAPA TI NEN TE JORGE PETER/AGÊNCIA O GLOBO/RIO DE JANEIRO, 1971
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na história do samba. O próprio Donga (Ernesto dos Santos) era filho de uma delas, Tia Amélia. “Esse tratamento de tias para as mulheres que se salientavam aos olhos da comunidade pela maior experiência resultante da idade, ou pelo sucesso financeiro pessoal (o que as credenciava a proteger recém-chegados, órfãos da vizinhança, e a promover festas em suas amplas casas), constituía uma sobrevivência cultural africana, em que na ordem familiar matrilinear o papel dos irmãos é tão importante, que os sobrinhos aparecem quase como filhos. Essa mesma estrutura familiar muito comum por toda a África, embora matizada conforme a região, entrega a casa da família ao controle total da mulher, o que viria a explicar a predominância dessas negras senhoras da comunidade baiana no Rio de Janeiro”, destrincha Tinhorão.
Mestre-sala e porta-bandeira em ensaio da Mangueira de 1977
Nestas páginas 2 DONGA
Autor oficial de Pelo telefone, lançada há 100 anos e que marcou o início do samba como gênero
SAMBA CARIOCA 3 Ismael Silva, líder da Turma do Estácio, responsável pela criação da primeira escola de samba do Rio, com Nelson Cavaquinho
ONDAS MIGRATÓRIAS
Com a abolição da escravidão, em 1888, começam as ondas migratórias no país. A maioria dos trabalhadores negros saem do campo para a cidade e tentam encontrar no Rio de Janeiro, capital da República (a partir de 1889), um lugar para estabelecer moradia. Os migrados passam a ocupar a chamada “pequena África”, situada entre a Pedra do Sal e a Cidade Nova, que, comprimida pela especulação imobiliária, espalha-se por diversos morros, habitados em ajuntamentos de casebres, erguendo o que seria chamado de favela. Esse movimento migratório dobrou, em menos de 30 anos, a população da capital do país, de 522.651 habitantes, em 1890, para 1.077.000, em 1917 – ano de lançamento de Pelo telefone. Em 2016, são 6,5 milhões. De acordo com o levantamento do IBGE, em 2010, o Rio era a segunda cidade brasileira com maior número de negros e pardos, cerca de 3 milhões – em primeiro lugar, está São Paulo, com 4,2 milhões, e, em terceiro, Salvador, com 2,7 milhões. Naquele início do século XX, como reverberação do recente período pós-escravidão, os sambistas passam a enfrentar muito preconceito, principalmente porque os locais onde aconteciam os sambas costumavam ser também terreiros. A polícia os invadia
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No início do século XX, os sambas aconteciam nos terreiros e seus adeptos sofriam muito preconceito
e prendia sambistas, pais e mães de santo. “O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido. Perdido! Pior que comunista, muito pior. Isso que estou contando é verdade. Não era brincadeira, não. O castigo era seríssimo. O delegado te botava lá umas 24 horas de xadrez”, contou Donga ao pesquisador Hermínio Bello de Carvalho. Dentre as punições, amarravam os detidos com uma corda, para, pendurados pela barriga, na altura da água, raspar a ferrugem do casco de um navio. “A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar pandeiro na festa da Penha e a polícia me tomava o instrumento. Houve uma festa no Morro da Graça, no palacete do (senador) Pinheiro
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Machado e eu não fui. Pinheiro Machado perguntou então pelo rapaz do pandeiro. Ele se dava com os meus avós, que eram da maçonaria. Irineu Machado, Pinheiro Machado, Marechal Hermes, coronel Costa, todos viviam nas casas das baianas. Pinheiro Machado achou um absurdo e mandou um recado para que eu fosse falar com ele no Senado. E eu fui. Ele então perguntou por que eu não fora à casa dele e respondi que não tinha aparecido porque a polícia havia apreendido o meu pandeiro na festa da Penha. Depois, quis saber se eu tinha brigado e onde se poderia mandar fazer outro pandeiro. Esclareci que só tinha a casa do seu Oscar, o Cavaquinho de Ouro, na Rua da Carioca. Pinheiro pegou um pedaço de papel e escreveu uma ordem para seu Oscar fazer um pandeiro com a seguinte dedicatória: ‘A minha admiração, João da Baiana. Pinheiro Machado’”, relatou ao jornalista Sérgio Cabral o compositor João da Baiana, que por diversas vezes foi preso. A partir da constatação do talento de músicos como Sinhô, Pixinguinha, Donga, os brancos das classes média e alta começaram a se interessar pelos
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temas relativos aos negros. No artigo Acerca da valorização do preto, publicado no Diario de Pernambuco, em 19 de setembro de 1926, Gilberto Freyre escreve, sete anos antes de lançar Casa-grande & senzala, sobre um evento musical que presenciou no Rio, convidado por Heitor Villa-Lobos: “Ontem, com alguns amigos – Prudente (de Morais Neto), Sérgio (Buarque de Holanda) –, passei uma noite que quase ficou de manhã a ouvir Pixinguinha, um mulato, tocar em flauta coisas suas de carnaval, com Donga, outro mulato, no violão, e o preto bem preto Patrício a cantar. Grande noite cariocamente brasileira. Ouvindo os três, sentimos o grande Brasil que cresce meio tapado pelo Brasil oficial e postiço e ridículo de mulatos a quererem ser helenos (…) e de caboclos interessados (…) em parecer europeus e norteamericanos; e todos bestamente a ver as coisas do Brasil (…) através do pince-nez de bacharéis afrancesados”. O sociólogo pernambucano possivelmente se referiu ao período do pós-Primeira Guerra Mundial, em que o samba começou a sofrer
a concorrência da música norteamericana, como charleston, fox-trot, black-bottom, shimmy. Nessa época, as empresas fonográficas instaladas no Brasil passaram a gravar jazz bands, que, por sua vez, atendendo a esse interesse, multiplicavam-se, concedendo ao entretenimento no país uma ilusão de glamour. Iniciava-se a tradicional peleja da música brasileira, em seu próprio mercado, contra as vantagens da qual desfrutava a estrangeira, principalmente no quesito marketing. “O interessante a observar é que, enquanto o público da nova classe média emergente da fase de transição da economia pré-industrial, manufatureira, para a da moderna indústria, se deixava arrear com as novidades importadas, as camadas populares urbanas mais baixas viviam, no mesmo período histórico, um dinâmico processo de grande riqueza criativa. Levados pela natureza excludente da economia a viver por si, os componentes das camadas mais pobres (trabalhadores não qualificados, biscateiros e subempregados em geral) passaram a organizar-se culturalmente para si”, comparou José Ramos Tinhorão.
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ASSIMILAÇÃO
A diminuição do preconceito enfrentado pelo samba começou a partir do sucesso de Pelo telefone no Carnaval de 1917 e de outras composições do gênero lançadas na década de 1920 e início da década de 1930, despertando a atenção dos artistas brancos das classes média e alta para o novo gênero. O cantor Mário Reis, filho de comerciante, estudante de Direito e marco divisor na forma de se cantar no país, ao conhecer José Barbosa da Silva, o Sinhô (18881930), no centro do Rio, o convidou para ser seu professor de violão. Mário gravou a composição de maior sucesso de Sinhô, Jura, que catapultou sua carreira. “O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda”, escreveu Manuel Bandeira, em 1937, sobre o Rei do Samba. O poeta pernambucano anotou, ainda, a divisão entre as classes sociais que existia no Rio de Janeiro da época. “Sinhô para toda a gente era uma criatura fabulosa vivendo no mundo noturno do samba, zona impossível de localizar com precisão – é no Estácio,
CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO
4 SINHÔ Autor de Jura, é conhecido como o Rei do Samba NOEL ROSA 5 Fez parte de um grupo de jovens de classe média que, já nos anos 1930, subiu os morros cariocas para conhecer melhor o samba
6 CARTOLA Foi um dos criadores da Estação Primeira (hoje, Mangueira), entre 1927 e 1928
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mas bem perto ficam as macumbas do Encantado, mundo onde a impressão que se tem é de que ali o pessoal vive de brisa, cura tosse com álcool e desgraça pouca é bobagem”. No final de 1929, mais artistas brancos estreantes engrossavam o caldo do gênero. Naquele ano, o recém-formado Bando de Tangarás lançou Na Pavuna, a primeira gravação a usar “a batucada própria de escola de samba”, como afirmou seu líder, Almirante. O quinteto, surgido a partir da inspiração dos conjuntos regionais, como Os Turunas Pernambucanos e Os Turunas da Mauriceia, acabou se rendendo ao estilo musical. “No final dos anos 1930, um grupo de jovens de classe média (da baixa à alta classe média) branca começou a ter uma participação decisiva na história do samba: foi a turma de Vila Isabel, que incluía nomes como Noel Rosa (filho de gerente comercial e professora), Almirante (órfão aos 15 anos, trabalhou como caixeiro e serviu na Marinha – daí seu apelido) e Braguinha (filho de industrial)”, relata Hermano Vianna, em O mistério
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Durante a Era Vargas, de 1930 a 1945, o samba ocuparia posição de destaque no mercado nacional com a ajuda do rádio do samba (1995). “Essas expedições acompanhavam a transformação da cidade, tanto em seu crescimento para os subúrbios quanto no surgimento de favelas em vários morros. A população pobre começava a viver realmente separada da população rica. Antes de 1930, as classes sociais se misturavam mais desordenadamente no espaço geográfico do Rio de Janeiro.” Em Noel Rosa – Uma biografia (1990), os autores João Máximo e Carlos Didier apontam a participação do Poeta da Vila na formação do “samba carioca”: “Sempre querendo conhecer o que produzem esses sambistas de morro, trocar informações com eles, somar experiências, Noel segue peregrinando. Salgueiro, Mangueira,
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outros morros. Faz expedições aos subúrbios, ouvidos atentos”. Nessas peregrinações, conheceu Ismael Silva, futuro parceiro em 18 composições, integrante da Turma do Estácio (Bide, Marçal, Bucy Moreira, Newton Bastos, Baiaco, Brancura, Mano Rubem, Mano Edgar), responsável pela fundação da primeira escola de samba, a Deixa Falar, em 1928, no Morro de São Carlos, e por consolidar o “samba carioca”, mais ritmado, que se diferenciava daquele amaxixado, levado ao Rio pelas tias baianas e ainda presente na gravação de Pelo telefone. O sambista e estudioso Nei Lopes resume essa história em um trecho de O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical (1992): “Traçando a linha evolutiva que vem do batuque de Angola e do Congo até o partido-alto, vamos encontrar: a) primeiro, o lundu bailado, dando origem ao lundu puramente canção dos salões imperiais, aos sambas rurais da Bahia e de São Paulo, a um lundu campestre ainda dançado, e a outras manifestações; b) depois, todas essas expressões (com a chula do samba baiano ganhando status de manifestação autônoma) confluindo
JOSÉ VIDAL/AGÊNCIA O GLOBO
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para o que chamaremos de samba da ‘Pequena África da Praça Onze’, onde o núcleo irradiador foi a casa de Tia Ciata; c) depois ainda, o samba amaxixado da ‘Pequena África’, dando origem ao samba de morro; d) finalmente, esse samba de morro se dicotomizando em samba urbano (a partir do Estácio), próprio para ser dançado e cantado em cortejo, e em partido-alto, próprio para ser cantado em roda”. Ismael Silva, líder da Turma do Estácio e autor desse “samba urbano”, explicou, no programa MPB Especial, exibido em 16 de abril de 1973 na TV Cultura, a origem de um famoso termo que criou: “E esse nome escola de samba é porque nesse bairro existia a Escola Normal, de onde saíam os professores.
Portanto, o Bairro de Estácio de Sá passou a responder para os outros lugares, para os outros agrupamentos, que ‘escola de samba era lá no Estácio’, ‘a escola de samba era lá’. Aquelas bobagens, aquelas pretensões, né? Cada lugar queria ser o maior, né?, o tal”.
ESCOLAS DE SAMBA
Em 1932, quatro anos após o desfile da Deixa Falar, acontece o primeiro concurso das escolas de samba a partir de uma ideia do pernambucano, radicado no Rio de Janeiro, Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues. Proprietário do jornal Mundo Sportivo, o jornalista inventou a disputa carnavalesca como forma de suprir a falta de notícia nas entressafras dos campeonatos
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futebolísticos. Na estreia, desfilaram Vai Como Pode (Portela), Para o Ano Sai Melhor (Estácio de Sá), Unidos da Tijuca e a vencedora, Estação Primeira (hoje, Mangueira), criada por Cartola. “A Mangueira foi fundada em 1927/1928. A gente fazia muita bagunça, né? (No Bloco dos Arengueiros.) E a gente era malquisto no morro por causa daquilo. Aí nós resolvemos: ‘Bom, vamos fazer uma escola de samba’. Já tinha o Estácio. Aí, nós fizemos nossa escolazinha. Só tinha barbado. Aí, no outro ano, já foi aparecendo umas meninazinhas, daquelas que gostam de bagunça. Mas a gente foi fazendo sério, sério, sério, confirmando a coisa e acabou os outros (seis) blocos (do bairro) todos cedendo. Fizemos Estação Primeira, no ano seguinte já saímos com umas 40 pessoas. Depois foi crescendo, crescendo, crescendo, e hoje é isso que você vê”, recordou Cartola, no MPB Especial, de 23 de março de 1973. Na sequência, o evento carnavalesco passaria a contar com apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro e do jornal O Globo, que elaborou um regulamento, proibindo a presença de instrumentos de sopro e instituindo a obrigatoriedade da ala das baianas. E, em 1937, o Estado Novo, com sua política nacionalista, determinou que os enredos tivessem “caráter histórico, didático e patriótico”. Durante a Era Vargas, de 1930 a 1945, a música popular brasileira, representada pelo samba principalmente, ocuparia posição de destaque no mercado nacional. Para essa divulgação, havia, ainda, a contribuição do fundamental suporte da época, o rádio, em sua fase de popularização. O uso da música como arma política de propaganda encontrava-se em vários exemplos: o presidente levava artistas em suas viagens internacionais, incentivava a execução de canções em rádios estrangeiras, recomendou pessoalmente a Carmen Miranda que não aceitasse o convite da Broadway sem a inclusão dos músicos brasileiros que a acompanhavam. Mas também chegava a interferir nas letras. O bonde de São Januário (1941), de Wilson Batista, em plena época de culto à malandragem dentre os sambistas, foi censurada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e teve que ser modificada. A letra, com o verso
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original “O bonde de São Januário/ Leva mais um sócio otário/ Só eu não vou trabalhar”, acabou ficando: “Quem trabalha é que tem razão/ Eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde de São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”. Em 1939, como uma confluência a esse apoio de Vargas, é lançada Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, canção que enaltecia as belezas brasileiras e estreava o subgênero samba-exaltação. A composição, que se tornou uma espécie de segundo hino nacional, foi incluída no filme Alô Amigos (Saludos amigos, 1942), de Walt Disney. O cineasta veio ao Brasil em 1941 como a missão cultural da política de boa vizinhança dos Estados Unidos, que mais visava intenções políticas e econômicas na América Latina, em plena época da Segunda Guerra Mundial. Em 1942, seria a vez de Orson Welles aterrissar no país e registrar imagens, como as do carnaval carioca em que Donga aparece sorridente. O samba-exaltação, requintado e, ao mesmo tempo, potencialmente kitsch, teria poucos exemplares, como Onde o céu
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é mais azul, Canta Brasil, Brasil moreno, Brasil pandeiro (composição de Assis Valente feita exclusivamente para Carmen Miranda, mas recusada por ela, gravada pelos Anjos do Inferno, em 1940, e regravada pelos Novos Baianos, em 1972, no clássico Acabou chorare) – e, por que não? – País tropical, de Jorge Ben. Naquele mesmo 1939, como uma coincidência, surge, da Bahia, Dorival Caymmi, com O que é que a baiana tem?, lançada em disco por Carmen Miranda e no filme Banana-da-terra (1940) – a cantora foi responsável por exportar uma imagem exótica do Brasil, tendo o samba como invólucro sonoro.
SAMBA-CANÇÃO E BOSSA NOVA
Após a Segunda Guerra Mundial, chegou a vez do samba-canção estourar no país, encontrando o ambiente perfeito não nos morros, mas nas boates de estilo norte-americano que se alastravam em Copacabana, nos meados dos anos 1940, sendo frequentadas pela elite carioca. “Ary Barroso foi fundamental para a consolidação desse gênero ao compor No rancho fundo (com Lamartine Babo, 1931)”, defende Ruy Castro em A noite do
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meu bem – A história e as histórias do sambacanção (2015). “Todos os compositores e letristas do primeiro time começaram a produzi-lo e, com a implantação das boates no Rio, ele ganhara um habitat perfeito. Um passeio ao passado remoto mostraria, no entanto, que o samba-canção era a continuação natural de uma tradição romântica da música brasileira que começara no século XIX — filho ou sobrinho das canções, modinhas, valsas, serestas, dos foxes e marchas-rancho”, escreve. Em 1940, ainda dentro da política de boa vizinhança, foi gravado um álbum que se tornou uma lenda na história da música brasileira: Native Brazilian Music. O Tio Sam, querendo conhecer a nossa batucada, aportou no Brasil representado pelo maestro Leopold Stokowski (regente do clássico da Disney Fantasia, lançado em novembro daquele ano), que, durante dois dias (7 e 8 de agosto) no navio SS Uruguay, comandou gravações com artistas que despontavam no país. Mais de 30 músicos foram arregimentados por Villa-Lobos. Dentre eles, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Jararaca e Ratinho, Zé Espinguela, Luiz Americano,
7 WILSON BATISTA Sua composição O bonde de São Januário (1941) foi censurada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) CARMEN MIRANDA 8 Cantora exportou imagem exótica do Brasil, tendo o samba como invólucro sonoro
9 ARY BARROSO Foi fundamental para a consolidação do samba-canção ao compor No rancho fundo (com Lamartine Babo, 1931) 10 BOSSA NOVA O grupo de jovens da zona sul rompeu com a herança do samba popular, mudando seu ritmo
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Zé da Zilda e Cartola, que fazia, ali, a sua primeira gravação. Na sessão, gravaram 40 músicas, mas apenas 17 foram lançadas pela Columbia nos Estados Unidos. Cartola disse ter ouvido esse seu registro apenas 20 anos depois e o cachê recebido deu pra comprar “três maços de cigarros baratos”. No final da década de 1950, naquela mesma Copacabana do sambacanção, dominada por nomes como o pernambucano Antonio Maria e a estrela carioca Maysa, despontaria outro subgênero ao redor do samba, a bossa nova. “A nova tendência há tempos vinha sendo preparada com a proliferação das boates no Bairro de Copacabana, cuja clientela de turistas estrangeiros e de representantes do então chamado café society brasileiro pedia um tipo de música de dança mais próxima do gosto internacional, e que desde o pós-guerra era oferecida às classes médias e alta pelos conjuntos de piano, violão elétrico, contrabaixo, saxofone, bateria e pistão, logo especializados num tipo de ritmo que misturava conciliadoramente o jazz e o samba”, descreve José Ramos Tinhorão.
Após a Segunda Guerra Mundial, o samba-canção estourou nas boates cariocas de estilo norte-americano Ao contrário daquela primeira leva de compositores, que subiam o morro e trocavam experiências, como Noel Rosa, essa nova leva estaria afastada das raízes do gênero e enterraria o abolerado samba-canção. Para Tinhorão, esse grupo de jovens da zona sul, quase todos entre 17 e 22 anos, rompeu com a herança do samba popular e modificou o que tinha de original, o próprio ritmo. Tal acontecimento se deu como “resultante da incapacidade dos moços, desligados dos segredos da percussão popular, de sentirem ‘na pele’ os impulsos dos ritmos dos negros”. Daí, substituíram a intuição rítmica, de caráter improvisado, por um esquema cerebral: “o
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da multiplicação das síncopas, acompanhada da descontinuidade do acento rítmico da melodia e do acompanhamento. A essa espécie de birritmia, originada pelo desencontro dos acentos, se daria o expressivo nome de violão gago”, continua o pesquisador.
SAMBA-ENREDO ACELERADO
Em seu centenário, o samba passou por várias transformações, inclusive a aceleração do andamento do sambaenredo imposta pela transmissão do desfile na TV, que homogenizou as diferentes baterias das escolas, crítica que Paulinho da Viola transformou na canção Argumento (“Mas não me altere o samba tanto assim”). Em 26 de julho de 1990, no programa Ensaio (TV Cultura), o compositor, ícone da Portela, reclamou da forma como o desfile foi desvirtuado: “A nossa grande tristeza é que a mudança que se processou nas escolas de samba realmente é uma coisa que só atendeu a interesses comerciais mesmo, só interesses imediatos de grupos que realmente se dão muito
CON CAPA TI NEN TE DIVULGAÇÃO
FELIPE VARANDA/DIVULGAÇÃO
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11 PAULINHO DA VIOLA Ele critica as transformações dos desfiles das escolas de samba impostas pela TV 12 NEI LOPES Além de sambista, é pesquisador com publicações sobre o gênero 11
bem, ganham muito dinheiro. Hoje em dia, uma escola de samba é uma grande empresa, em que corre muito dinheiro mesmo. E isso, infelizmente, não é uma evolução, não é mesmo. É uma mudança, mas pra pior. Isso é lamentável”. Cem anos após o marco Pelo telefone, a luta dos negros por uma melhor posição na sociedade permanece. “O que há de interessante é que o samba, originado nas comunidades negras, e, portanto, alvo de fortes preconceitos, depreciação e perseguições de outros segmentos sociais e da elite durante muito tempo, passou a ser consagrado como grande referência da musicalidade brasileira, reconhecido até internacionalmente. Por sua vez, pelo lado perverso, esse reconhecimento e incorporação do samba e vários outros ritmos musicais das comunidades negras –
como o jongo, o ijexá, o maracatu e tantos mais – como importante traço da identidade nacional brasileira, não obteve a correspondente inserção dos negros na sociedade brasileira, que continuam alijados das melhores condições de acesso aos bens sociais básicos, como moradia, saúde, educação, trabalho e demais aspectos, e, até, em muitos casos, impossibilitados, por exemplo, de participarem dos próprios desfiles das grandes escolas de samba, nos dias principais, por não terem condições de pagar os preços das luxuosas e caras fantasias”, analisa o etnomusicólogo e professor da Unesp Alberto Ikeda. O samba já foi alçado à categoria de símbolo nacional, gênero que mais se disseminou no país, porém, hoje é o terceiro mais ouvido, segundo pesquisa do Ibope, realizada em 2015. “Não sei exatamente se o samba
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foi o estilo musical predileto dos brasileiros ou se isso se confunde com um projeto do Estado Nacional, que viu no samba um elemento propício ao discurso da mestiçagem cordial como elemento de construção de certa ideia de identidade nacional. Da mesma maneira, acho que essas ‘pesquisas de gosto’ são muito marcadas pelo recorte da indústria fonográfica e da grande mídia. O Brasil do agronegócio está na crista da onda e, com ele, por exemplo, o fenômeno do sertanejo”, avalia o estudioso Luiz Antonio Simas, coautor, com Alberto Mussa, do ensaio Samba de enredo, história e arte (2010) e, com Nei Lopes, do Dicionário da história social do samba (2015). “A tendência é que o samba continue fazendo sentido, como um complexo cultural que vai muito além da música ou da coreografia, para aqueles que buscam nele maneiras de criar modos de vida, o que vai muito além de circunstâncias da indústria do entretenimento no Brasil. O problema do samba não é ser o gênero mais ouvido no Brasil. É continuar fazendo sentido como um elemento cultural potente e capaz de engendrar maneiras inventivas de interação com o mundo”, aponta Simas.
EDU MONTEIRO/DIVULGAÇÃO
Entrevista
MAURÍCIO BARROS DE CASTRO “O SAMBA SEMPRE VAI SER UMA ‘CONTRACULTURA DA MODERNIDADE’” Autor do livro Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica (Azougue Editorial, 2013) e coautor do recém-lançado Nos quintais do samba da Grande Madureira: memória, história e imagens de ontem e hoje (Editora Olhares, 2016), o pesquisador, escritor, doutor em História pela USP e professor do Instituto de Artes da UERJ, Maurício Barros de Castro fala à Continente sobre a relação do centenário gênero musical com os acontecimentos políticos do país e as transformações pelas quais passou o samba. CONTINENTE Comparando o samba de hoje com o de 100 anos atrás, o gênero melhorou em quais aspectos (musical, social, mercadológico)? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO O samba possui muitas vertentes, como o samba influenciado pelo maxixe do Rio de Janeiro, do início do século XX, que teve como grande marco Pelo telefone, de Donga, motivo das comemorações do centenário do ritmo. Há, também, o samba de roda do Recôncavo Baiano, o samba rural paulista, o samba de coco de Pernambuco e Alagoas, mas é certo que o samba que se tornou símbolo de uma identidade nacional brasileira foi aquele chamado “samba de sambar” do Estácio, bairro do Rio de Janeiro, formado por um grupo de sambistas importantes, como Ismael Silva, Bide, Heitor dos Prazeres, Baiaco, Rubem Barcelos, Aurélio Gomes, Nilton Bastos, João Mina, Edgar Marcelino, Brancura e Tancredo Silva, fundadores daquela que é considerada a primeira escola de samba: Deixa Falar. Esse samba que trazia novos instrumentos, como o surdo de marcação, inventado por Bide, e a cuíca, trazida por João Mina, privilegiava os instrumentos de
“Esse gênero se consolidou como ritmo historicamente marginalizado e potencialmente contestador” percussão e era feito para acompanhar o cortejo dos blocos e escolas de samba que eram criados naquele momento, no final dos anos 1920, em bairros e morros próximos ou margeados pela linha férrea, como Mangueira e Oswaldo Cruz. Então, não se trata de uma linha evolutiva, mas de múltiplas temporalidades relacionadas ao samba. No Rio de Janeiro, por exemplo, nos anos 1960, tivemos fenômenos como o Zicartola – casa de samba de Cartola e Dona Zica, que, entre outras
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proezas, revelou Paulinho da Viola – e o Fundo de Quintal, outro grupo revolucionário. Nos anos 1990, ainda na cena carioca, tivemos o surgimento do Grupo Semente e a revitalização da Lapa, que revelaram nomes como Teresa Cristina e Pedro Miranda. E, certamente, há outros exemplos contemporâneos interessantes, como o do rapper Emicida cantando Cartola. CONTINENTE O samba perdeu sua capacidade crítica, seu engajamento político? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Não creio. Enquanto herança de matriz africana, o samba se consolidou como ritmo historicamente marginalizado e potencialmente contestador. Por isso o samba sempre vai ser uma “contracultura da modernidade”, como diz o pesquisador britânico Paul Gilroy, mesmo que em muitos momentos se adapte ao discurso oficial dos governos e da mídia.
CON CAPA TI NEN TE ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO. RIO DE JANEIRO, 1964
CONTINENTE Os sambistas foram bastante perseguidos pela polícia no começo da história do gênero. Isso aconteceu novamente na época da ditadura militar? Como podemos situar o Zicartola nesse contexto? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO O samba não foi incluído no Código Penal, como aconteceu com a capoeira, em 1890, mas os sambistas costumavam ser enquadrados na lei de vadiagem, principalmente aqueles que eram considerados “malandros”. No período da ditadura militar, isso ainda acontecia, mas não havia perseguição aos sambistas. O Zicartola foi uma casa de samba criada por Dona Zica e Cartola, que funcionava na Rua da Carioca, 53, no Centro do Rio de Janeiro. Até hoje tem uma placa em sua homenagem nesse endereço. Embora tenha se tornado famoso, o Zicartola durou apenas dois anos, entre 1963 e 1965. Foi um espaço político e cultural que reuniu intelectuais, jornalistas, artistas, sambistas e estudantes universitários, principalmente os que se articulavam em torno da UNE, cuja sede foi incendiada no dia do golpe. O Zicartola foi importante para o ressurgimento de antigos sambistas que estavam esquecidos, como Nelson Cavaquinho, Zé Kéti e o próprio Cartola, cujas músicas foram gravadas por Nara Leão no seu primeiro disco solo, em 1964. Também revelou nomes como Elton Medeiros, Nelson Sargento e, principalmente, Paulinho da Viola, que recebeu na casa de samba os primeiros cachês de sua carreira. Hermínio Bello de Carvalho, poeta e compositor, redescobriu Clementina de Jesus no Zicartola, o que resultou no musical Rosa de Ouro. No Zicartola, o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho e o poeta Ferreira Gullar tiveram a ideia de criar o espetáculo Opinião, que reunia João do Vale, o migrante nordestino, Zé Kéti, o sambista do morro, e Nara Leão, a moça da zona sul carioca, todos frequentadores da casa de samba. O Opinião alcançou enorme sucesso, trazia um forte questionamento político e era inspirado no samba homônimo de Zé Kéti, cujos versos diziam: “Podem me prender/ Podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de Opinião/ Daqui do morro eu não saio não”.
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CONTINENTE Por que houve tanto interesse do Governo Getúlio Vargas (1930–1945) pelo samba? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Uma das preocupações de Getúlio Vargas era formular uma identidade nacional para o Brasil com base nas culturas populares. O samba se torna o principal gênero musical das emissoras de rádio, que apenas em 1932 tiveram permissão do governo para transmitir anúncios comerciais, e alcança grande sucesso na voz de nomes como Francisco Alves, Mario Reis e Dalva de Oliveira. No mesmo ano é organizado o primeiro concurso das escolas de samba, criado pelo jornal Mundo Sportivo, do jornalista Mario Filho. A organização dos sambistas em torno das escolas e a contemporaneidade de suas composições foram fundamentais para a popularidade do samba, um fator importante para sua consagração como música nacional.
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CONTINENTE O samba é considerado o maior símbolo nacional no que se refere à música. Por que isso ainda acontece, se o sertanejo, por exemplo, é o gênero mais ouvido no país? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Acho que isso acontece porque, como falei, não se trata de algo recente, tem a ver com os processos de tentativa de construção de identidade nacional do Brasil que se desenrolaram entre o final das décadas de 1920 e 1930. CONTINENTE Quais seriam os maiores entraves do samba hoje? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Eu poderia citar os aspectos mercadológicos, uma vez que poucos sambistas têm acesso à grande mídia, o que certamente prejudica as trajetórias de muitos sambistas jovens. Mas isso também acontece com outros gêneros musicais. Acho importante lembrar
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1 ZICARTOLA Cartola (ao centro) no bar que criou com a esposa, Zica
2 MARTINHO DA VILA Primeiro sambista negro a se tornar sucesso de crítica e vendas
CONTINENTE Em que medida o samba vem perdendo, nos morros, espaço para o funk? O estilo tem menos adeptos hoje do que nos anos 1970, por exemplo? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Não tenho estatísticas sobre isso, mas não creio que o funk carioca contemporâneo seja um problema para o samba, pelo menos não vejo uma reação de sambistas tradicionais da forma como houve à soul music da Black Rio nos anos 1970, por exemplo. Também não creio que o samba tenha perdido espaço para o soul, é só lembrar do Clube Renascença, que abriga uma tradicional roda de samba e é lugar de memória dos bailes Black do Rio de Janeiro. CONTINENTE É possível que tenhamos no futuro uma geração tão brilhante quanto à de Noel Rosa, Wilson Batista, Geraldo Pereira, à de Cartola, Nelson Cavaquinho e à de Paulinho da Viola? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO As gerações se renovam, repletas de talentos importantes, sem linhas evolutivas e escalas.
“O samba faz parte de tradições familiares e é importante como um ritual de vida para os moradores das periferias e favelas”
CONTINENTE Qual momento você considera o ápice do samba, em termos de qualidade musical e espaço no mercado? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Não sei dizer sobre o ápice do samba, mas é certo que o primeiro sambista negro, que também era compositor e cantor, que se tornou um sucesso de crítica e vendas foi Martinho da Vila, entre meados dos anos 1960 e início dos anos 1970.
de estudantes de medicina do Ceará, que frequentavam o Mangue, zona de meretrício onde tocava sua sanfona, vizinha ao Morro de São Carlos, no Estácio, seu lar na cidade, que ele redescobriu as canções cantadas por seu pai, Januário. Os estudantes disseram para Gonzaga que não dariam mais dinheiro para suas apresentações, se ele não cantasse músicas do Nordeste. Assim teve início um processo que o transformou no Rei do Baião e numa das vozes mais importantes do Brasil.
CONTINENTE Como você avalia a qualidade do samba-enredo hoje? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Avalio o samba-enredo ainda fora do alcance da linha evolutiva, marcado por momentos históricos de rupturas com os modelos anteriores, por isso alvo de críticas dos setores tradicionais fundadores das escolas, em constante negociação com os agentes externos e internos às agremiações. Nessa fronteira em que os bons sambas-enredo continuam acontecendo. DÉBORA NASCIMENTO
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que o samba ainda faz parte de tradições familiares e continua sendo importante como um ritual de vida para as populações afrodescendentes moradoras de periferias e favelas. O extermínio e etnocídio que sofrem essas populações certamente é o maior entrave não apenas do samba, como também do funk e do rap, por exemplo. CONTINENTE Se gêneros, como o frevo ou o forró, tivessem despontado no Rio de Janeiro naquele mesmo contexto, eles teriam chances de ocupar esse lugar simbólico que o samba ocupou? MAURÍCIO BARROS DE CASTRO Não sei, mas é curiosa a história de Luiz Gonzaga. Quando o samba já estava consolidado nas rádios, nos anos 1940, ele criou o baião e reinventou o forró a partir das necessidades que surgiram no Rio de Janeiro. Foi com a reivindicação
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ETNOGRAFIA A sambada do Sertão
Pesquisador percorre núcleos de povoamento urbanos ou rurais no Nordeste em busca de reminiscências do samba TEXTO E FOTOS Tiago Henrique
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“Quem jogou a primeira semente no mundo? Ninguém sabe. E elas continuam brotando e mudando e se transformando. Quando vai acabar? Também ninguém sabe! No chã da lavoura, o samba é isso: sem começo e fim.” João Bezerra, Buíque (PE), 24/10/2014
Quando eu era pequeno, no bar que ficava na esquina da rua da minha casa em São Paulo, todo domingo tinha um samba. Hoje, eu sei que tocavam Demônios da Garoa, Martinho da Vila, Bezerra da Silva e outros. Na época, morava com meus avós. Vó Leonor,
1 SAMBA MAZUCADO Roda na comunidade de Mundo Novo, em Buíque (PE) , fonte de pesquisa do fotógrafo (2014)
quebrado, mas levava a culpa. Num domingo daqueles, ele escolheu ficar calado e o som do samba da esquina pareceu mais alto. Quebrando o silêncio com aquela voz grossa, disse: “Isso não é samba!” – puxou alguns versos, loas e lembro de até ter feito um repente. Aquela exclamação viria a ressoar em minha memória mais ou menos 20 anos depois. No decorrer desse período, vô e vó faleceram, eu me tornei fotojornalista e resolvi morar entre o Agreste e o Sertão de Pernambuco. Foi durante uma das visitas a uma comunidade quilombola que já documentava há alguns meses, na zona rural de Buíque – onde vivo desde 2014, a 300 km do Recife – que ouvi os mesmos versos cantados por meu avô tanto tempo atrás. Era como se eu estivesse frente a frente com
São poucos os registros do samba no Sertão, ao passo que a criação do samba carioca é bem documentada
criada na Zona da Mata de Pernambuco, depois que se converteu, passou a detestar aquela zoada. Vô Antônio, um sertanejo sisudo da Paraíba, como fazia tudo o que ela queria, fingia que não gostava. A casa da minha família ficava em cima da deles e a escada passava em frente à janela da cozinha. Vô Antônio fazia o melhor café do mundo e toda vez que eu passava, parava no meio da escada e pedia um copo. Vô servia o café, às vezes reclamando das minhas traquinagens, da malcriação, de um vidro que nem tinha sido eu que havia
ele e o seu samba novamente. Os versos eram entoados por um senhor relativamente alto, pés descalços, suor escorrendo pelo rosto. Estava quente, mas ao pé da serra soprava uma brisa. Na mão, uma lata enferrujada, cujos grãos enfiados ali há anos a faziam de ganzá. “Eu tenho isso desde quando era novo, meu pai fazia samba com ele”, me disse, ofegante, Seu João Bezerra, 80 anos, um dos cantadores mais antigos ainda vivos da comunidade. No mesmo dia, já em casa e meio atordoado com aquela experiência, revisitei as fotos que fazia durante as frequentes sambadas que aconteciam na comunidade. Percebi nas imagens a força dos laços identitários que transcendem a consanguinidade e o parentesco, e vinculam-se a ideias tecidas sobre valores, costumes e lutas comuns. Ali, o samba motivava tensões ao mesmo tempo em que realizava um papel ritualístico. Vi o
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movimento assumir vários planos de significação: dança, ataque, conflito, ódio, revolta, medo, prazer, riso, esperança e liberdade. *** Mesmo correndo séria e talvez irrecuperavelmente o risco de tornar obscuro aquilo que, na melhor das circunstâncias, já seria difícil de dar clareza e intensidade adequadas em poucas linhas, minha busca aqui não é por primordialismo ou por uma “paternidade” do samba e, sim, por oferecer um contraponto que amplie a visão e a reflexão em torno de uma das maiores lacunas da história do ritmo musical que se tornou um dos pilares da identidade brasileira. Por conta própria, comecei a pesquisar e a fotografar as sambadas em vilas, povoados, comunidades indígenas e quilombolas, do Sertão ao Litoral, investigando as reminiscências do samba, sempre traçando um paralelo com as realidades de quem as faz. Essa imersão em andamento me trouxe questionamentos que não fecham com a ideia do samba ter “nascido” no Rio de Janeiro. Num país como o Brasil, onde, de tempos em tempos, tem-se a sensação de redescoberta, pareceu-me curioso, para não dizer injusto, dar mais destaque a um fato repleto de controvérsias, como é a criação de Pelo telefone, do que às celebrações do centenário do samba feito pelas Irmãs Lopes de Arcoverde. A família de Ivo Lopes já sambava coco no Sertão bem antes das placas identificarem a cidade como a “Capital do Samba de Coco”. No Recife, a Nação Porto Rico também celebrou um século sambando maracatu na cidade. Isso, só para citar dois exemplos de comemorações de 100 anos em 2016. Infelizmente, é escassa a documentação que se tem das manifestações do samba no Sertão, ao passo que as interferências criativas que se desdobraram na criação do samba carioca são fartamente documentadas – ao menos a partir do século XX. Em 2002, o livro A pré-história do samba, do pernambucano Bernardo Alves, foi modestamente lançado, com pouco mais de 300 exemplares, reunindo mais de 20 anos de pesquisa do
CON CAPA TI NEN TE autor em livros, partituras, notícias de jornal e gravações. A publicação estabelece a origem do samba entre os antigos índios kiriri do Nordeste brasileiro com informações detalhadas. A solidez dos argumentos reunidos na obra chamou a atenção do então ministro da Cultura, Gilberto Gil, que, em 2006, esboçou começar um programa que visava à ampliação das pesquisas sobre o samba no Nordeste. Para contribuir com a empreitada, o ministro convidou o jornalista cultural e pesquisador Fábio Gomes, que é um grande divulgador da obra de Alves. Segundo Fábio, Bernardo entrou em contato com ele pouco antes de falecer, em 2004, após ler seu texto O samba n’Os sertões, de 2002, no qual analisa a presença da palavra samba em algumas passagens do clássico livro de Euclides da Cunha, reforçando a ideia de que o termo já era de uso corrente no sertão baiano antes do século XX. Ambos tinham a intenção de trabalhar juntos na pesquisa, mas o falecimento de Bernardo pôs fim à ideia. Os planos com o MinC também não deram certo. O órgão encontrou, nas palavras de Fábio, “dificuldades em coordenar uma pesquisa tão ampla” e, mais uma vez, o trabalho não avançou. “Não se pode valorizar o que não se conhece” – me disse Fábio em uma de nossas conversas por e-mail, referindo-se à pouca amplitude e interesse em relação às questões levantadas na obra de Bernardo Alves. Por mais que reúna informações importantes, o livro acabou não sendo bem-aceito no âmbito acadêmico. O professor dos programas de pós-graduação em Educação Contemporânea, Música e coordenador do Laboratório de Estudos Antropológicos da UFPE, Sandro Guimarães Salles, disse-me que conheceu Bernardo e que eles conversaram muito sobre o livro, mas não concorda com seu conteúdo por diversos problemas “teóricos e metodológicos”, e que “é provável que existam algumas relações entre os fenômenos denominados samba, mas essas relações não podem ser tratadas a partir dos pressupostos”. O fim do século XIX viu o auge do pensamento nacionalista e o caráter multiétnico do país ser relegado
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2-3 ARCOVERDE Ciço puxa a roda em casa, enquanto Dona Maria, sua mulher, comanda a cozinha para quem vai brincar (2015)
4 PIONEIRAS Irmãs Lopes levam tradição que já tem 100 anos
por uma elite “intelectualizada” e “civilizada” à procura de um povo para a nação, como se refere Berthold Zilly, em Sertão e nacionalidade: formação étnica e civilizatória do Brasil segundo Euclides da Cunha. Um processo que, no sentido republicano do termo, formava cidadãos livres e iguais, com sentimento de identidade coletiva e um certo padrão de participação, ainda não foi concluído e gerou estigmas sociais no Brasil contemporâneo. A perspectiva teórica reafirmada da origem do samba me parece ser a parte menos importante a ser debatida. A meu ver, é mais frutífera uma reflexão sobre o único ponto que, possivelmente, o samba dos
O samba dos sertões e dos morros tem em comum uma história marcada por disputas, racismo, xenofobia e desigualdade sertões e dos morros tem em comum: uma história marcada por disputas, racismo, xenofobia e desigualdade.
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O nome do lugar onde comecei a compreender minhas raízes não poderia ser mais significativo: Mundo Novo. Segundo a família de dona Josefa, presidente da associação quilombola do Mundo Novo, seu pai e seu avô chegaram ao município de Buíque com um grupo de escravos fugidos do Recife. A região é cortada por estreitas estradas abertas por vaqueiros e pelos antigos almocreves. O almocreve é uma figura importante para a disseminação do samba no Nordeste, por viajar longas distâncias levando mercadorias. Sr. Bentinho, 88 anos, é neto de almocreves e sempre morou na comunidade do Mundo Novo. Num depoimento, ele me disse certa vez: “Minha família já possuía terras aqui quando eles chegaram. Os negros.
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5 MANUTENÇÃO Mulheres dançam no pé da Serra do Fasola para perpetuar sua sambada na comunidade (2014)
Altos. Meu Avô já ‘almocrevava’ daqui para o Sul (Recife) e já sambava por aqui antes deles chegarem. Eles tinham o seu samba, nós outro… Depois misturou”. Desde então, são os núcleos de povoamento urbanos ou rurais no Nordeste – que se formaram nas rotas de ocupação do Sertão até o Litoral, e onde há a presença de caboclos, indígenas e, posteriormente, negros – que investigo em busca de reminiscências do samba. Em cidades com essas características, como Buíque, Águas Belas e Pesqueira, a presença do samba é forte e nos remete a um período muito mais remoto. Entre esses municípios, Arcoverde se destaca por conter uma história rica sobre o samba e boa documentação. Em 1916, a família Lopes saía de Correntes, Garanhuns, em direção à então Vila de Rio Branco, à procura de trabalho. Os avós e bisavós de Severina Lopes, 82, mestra do Coco Irmãs Lopes, nasceram entre índios e negros da região de Garanhuns e, muito provavelmente, foram eles que introduziram o costume na cidade. Dona Severina conta que, na época, o samba tinha uma função específica: nivelar o chão das casas de taipa. Essa função é recorrente nas zonas rurais entre o Agreste e o Sertão. Seu irmão mais velho, Ivo Lopes, ficou conhecido na cidade pelas sambadas que promovia. Da “escola” que ele criou, saíram os grandes mestres do coco de Arcoverde: Lula, Damião e Assis Calixto, Biu Neguinho, percussionista responsável pela criação da batida característica do coco arcoverdense, e Cícero Gomes. A história dessas pessoas e sua riqueza cultural me motivaram a começar o projeto que batizei de Chã: sem começo e fim, cujo propósito é documentar os elementos culturais associados a comunidades que mantêm as sambadas em suas tradições mais antigas, o cotidiano, seus contrastes sociais e a beleza de seus fazeres. Os registros que tenho feito, detalhes sobre o projeto, além de um diário de bordo onde conto minhas experiências e as histórias detalhadas dos lugares por onde passo, podem ser acessados em www.semcomecoefim.com.br.
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MALTA Joia insular O arquipélago maltês entrou para a rota de viajantes que buscam unir o interesse por História e Arquitetura a praias paradisíacas banhadas pelo Mediterrâneo TEXTO Guilherme Carréra FOTOS Clarissa Gomes
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Viagem
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Ao sul da italiana Sicília e ao norte da africana Líbia, o Mar Mediterrâneo dá abrigo a um pequeno país formado pelas ilhas de Malta, Gozo e Comino, além de outras ilhotas desabitadas. Paulatinamente, esse arquipélago de apenas 316 km² e cerca de 450 mil habitantes foi se transformando no disputado destino que hoje é – escolhido pela revista National Geographic Traveler como um dos 21 locais imperdíveis para se visitar em 2017. Sua trajetória recente nos ajuda a decifrar esse interesse crescente. No ano de 1964, Malta resolveu declarar-se independente do Reino Unido. Uma década depois, tornou-se república. Em 1980, viu sua capital Valetta ser eleita Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Um salto temporal de 24 anos e o país passou a ser membro da União Europeia. Em 2008, enfim, a assimilação do euro como moeda culminou em atrair mais e mais viajantes. E esse fluxo, desde então, só aumenta. O pernambucano Thiago Benevides, 27 anos, aterrissou na ilha em fevereiro do ano passado, a trabalho. “Comecei a procurar vagas como engenheiro de
testes em países que falassem inglês. Mandei meu currículo para uma empresa maltesa e fui chamado”, explica. Entre outubro de 2015 e a chegada ao novo país, só deu tempo de pedir demissão do antigo emprego, finalizar o mestrado e juntar toda a papelada. “Cheguei ainda no inverno, me hospedei longe do centro e minhas impressões não foram as melhores.” No dia seguinte, tudo aquilo que encanta os olhos dos turistas começou a fazer sentido. “Fui comer uma pizza à beiramar e relaxei na hora.” De lá para cá, Thiago anda curtindo as benesses de morar em um país compacto, seguro e turístico. “Além das praias e das cidades históricas, andar pela rua e ouvir vários idiomas diferentes é massa.” À parte os turistas, a diversidade étnica não pode ser considerada um dos fortes da ilha. De acordo com o Censo 2011, apenas 5% da população se identifica como não sendo maltesa. Paradoxalmente, a cultura local é resultado da junção de tantas outras que dominaram o arquipélago – antes dos britânicos, também franceses, romanos e muçulmanos, entre outros povos,
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deixaram suas marcas nessa terra. O idioma maltês, por exemplo, soa como uma mistura do árabe e do italiano. O inglês, no entanto, figura como a segunda língua oficial. Na prática, cá entre nós, nem todo mundo é fluente. Mas o turista não chega a passar apuros. Os intercambistas, por sua vez, têm investido no destino para praticar (essa língua)– afinal, sai mais em conta do que desembarcar no Reino Unido. Duro deve ser manter a assiduidade nas aulas, quando o verde-esmeralda das águas grita por atenção do lado de fora.
ALTA ESTAÇÃO
É o mar o principal cartão-postal de Malta. O norte do país fica encarregado das praias mais populares. A Mellieha Bay, de maior extensão, e a Golden Bay, ladeada por falésias, costumam lotar na alta estação, entre os meses de junho e agosto. Mais ao sul, a St. Peter’s Pool fica em Marsaxlokk, onde um mercado popular movimenta o vilarejo de pescadores. Dá para almoçar um peixe fresco, depois de saltar do alto do penhasco para a tal Piscina de São Pedro. Aqui, não tem areia. É canga estendida
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Viagem sobre as pedras, caso queira se bronzear. Para acessar essas e outras praias, vale considerar o aluguel de veículo motorizado, já que o transporte público não funciona a contento. A constatação vem de Joseph Marmara, maltês de 32 anos. “Sem dúvida, esse é um dos pontos que podem ser melhorados.” Nascido e criado na ilha, Joseph diz que se acostumou a viver rodeado de mochileiros, sobretudo durante o verão, e que não pensa em se mudar. “Eu adoro o clima, o mar e o lifestyle daqui.” Na vizinha Comino, encontra-se a melhor das paisagens. Um punhado de empresas faz o trajeto a partir de Malta, com preços e duração variados. Normalmente, saindo no início da manhã e retornando ao final da tarde. O que importa mesmo é atracar na Blue Lagoon. Considerada uma das praias mais bonitas da Europa, a Lagoa Azul não tem esse nome à toa. É lá que o verde-esmeralda mediterrâneo encontra o azul cristalino caribenho. Nem a temperatura da água (um tanto fria, se comparada às do nordeste brasileiro) ofusca esse quadro vivo. Guarda-sóis e espreguiçadeiras, alguns quiosques de comes e bebes e estandes para aluguel de boias e afins ocupam a estreita faixa de areia. Querer esse paraíso só para si já é um pouco demais… Por estar a mais ou menos 80 km da Itália, a influência das pizzas e massas na gastronomia é notória, embora o ensopado de coelho seja considerado o prato nacional. De volta à Malta, na orla de St. Julian’s, por exemplo, o grupo San Giuliano oferece três restaurantes com pitada italiana. O casual Raffael, o charmoso Girasole e o homônimo San Giuliano, todos com vista para os barcos e iates ancorados na Spinola Bay. O calçadão de Sliema não fica muito atrás no número de opções. De frente ao mar, o Fresco’s tem cardápio variado, com entrada, prato e sobremesa, mas a ambientação aconchegante é que rouba a cena. Do outro lado da rua, a RivaReno é o endereço certo para amantes de sorvete. Fundada em Bologna, a franquia italiana faz sucesso. Produtos
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locais, frutas orgânicas e preparo diário impulsionam a degustação.
CENTRO HISTÓRICO
Os hotéis, tanto de St. Julian’s como de Sliema, disputam hóspedes com Valetta. Na verdade, as três cidades mais parecem bairros, uma vez que se pode caminhar de uma a outra com relativa facilidade. Se a vida noturna nas duas primeiras parece mais intensa (os notívagos agradecem), a capital conta com um centro histórico preservadíssimo a seu favor. Construída no século XVI, a cidade tem na Catedral de São João uma de suas mais importantes edificações. Finalizado em 1577, o templo é o símbolo maior do catolicismo, a principal religião na
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ilha. Da temporada que passou em Malta, o pintor italiano Caravaggio deixou como legado à catedral a tela A decapitação de São João Batista (1608), a maior e a única assinada pelo autor. O tíquete de 10 euros é o valor para pôr os olhos sobre a obra. Uma caminhada pelo entorno revela uma cidade quase que coberta por um manto cor de mel. A maioria das fachadas tem tonalidade amarelada, o que acaba criando um interessante diálogo com os tons terrosos da vegetação mediterrânea. Do alto dos Jardins Superiores de Barrakka, ideal para fotos do Grande Porto, essas cores se sobressaem. Com entrada gratuita, o parque fica aberto todos os dias. Mais adiante, o pedestre alcança
1 PATRIMÔNIO
centro histórico de Valetta O é tombado pela Unesco
2 MANTO COR DE MEL
ista para o Grande Porto, a partir V dos Jardins Superiores de Barrakka
3 PASSEIO
mbarcações fazem o trajeto até E Comino, onde fica a Lagoa Azul
os Jardins Inferiores de Barrakka, localizados em frente ao Memorial do Sino do Cerco, um monumento em homenagem aos sete mil soldados malteses mortos na Segunda Guerra Mundial. Colônia britânica, o país serviu como importante entreposto aos Aliados durante o conflito bélico. Seguindo à região central da ilha, Mdina (assim mesmo, sem a letra “e”) costuma ser tão visitada quanto Valetta
por ser um exemplar da arquitetura da Idade Média. Amurada, a antiga capital consegue ser ainda mais pitoresca do que a atual. Na praça central, a Catedral de São Paulo, erguida no século XII e reconstruída entre 1696 e 1705 devido a um terremoto, exige a visita. Mas é nos becos e esquinas que Mdina fica ainda mais fotogênica. Para a maltesa Daniela Galea, 21 anos, não existe similar. “Ela é conhecida como a Cidade Silenciosa. Carros não estão autorizados a circular por ali, o que facilita as caminhadas. Nada pode ser comparado àquele conjunto de prédios históricos.”Aos domingos, até os residentes frequentam seus bares e restaurantes. Ainda sem previsão de volta, Thiago encontrou em Malta a chance de se
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infiltrar não só entre esses residentes, mas em uma cultura única, plural. “Pensar que este território foi colônia de tantos países e, ainda assim, consegue exprimir singularidade, dá uma amostra de como o lugar é especial.” Daquelas primeiras impressões como recém-chegado, quase nada restou. Ele só se queixa de uma certa dificuldade em fazer viagens para além-mar. “É preciso se programar com bastante antecedência para conseguir voos baratos.” Uma alternativa é tomar um ferry rumo a Sicília, a rota mais comum para quem deseja ir ao continente. Uma hora e 45 minutos depois, atraca-se em Pozzallo, extremo sul da Itália. E uma nova aventura está prestes a começar.
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ESPECIAL
SEXUALIDADE Novas formas, nova conexão A partir de ferramentas como aplicativos de relacionamentos, deflagra-se na sociedade contemporânea a permissão para experimentar desejo e afeto fora dos limites do corpo e do espaço TEXTO Luciana Veras
Em setembro de 2016, entre os dias
14 e 16, o Museu de Arte do Rio – MAR promoveu o seminário internacional Eros e Dioniso – Amor e sexualidade na cultura contemporânea. Na mitologia grega, Eros é o deus do amor e Dioniso, a divindade das festas, do prazer, do vinho – Cupido e Baco, respectivamente, no sincretismo romano. Realizado no âmbito do MAR na Academia, o encontro trouxe diversos especialistas para discutir tópicos relacionados ao exercício e à reflexão desses assuntos cabais da contemporaneidade. Não seria estranho imaginar painéis sobre sexualidade sendo apresentados dentro de um museu? Qual a relevância artística e comportamental de uma discussão como essa?
Questões assim, outrora compreensíveis, não mais se aplicam. A sexualidade transbordou. Tal como o mar, incontrolável e vasto, ultrapassou as esferas da alcova ou das ciências da mente para ser pensada como um dos elementos essenciais para a constituição do sujeito na atualidade e das representações que esse mesmo sujeito assume perante si, os outros e o mundo na era da hiperconectividade. Falar sobre isso não cabe mais apenas aos divãs, sussurros em rodas de amigos ou aos papos pós-coito; falar sobre isso é viver nas fímbrias de um contemporâneo que incita e liberta a sexualidade. Ensaísta e pesquisadora argentina radicada no Rio de Janeiro, professora do Departamento de Estudos Culturais
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e Mídia da UFF e idealizadora de Eros e Dioniso, Paula Sibilia abriu o seminário no MAR mencionando as trocas intelectuais e afetivas estabelecidas com o compatriota Christian Ferrer, um dos responsáveis pela ideia de falar “de um certo mal-estar que fomos detectando nos relacionamentos afetivos e sexuais” e ainda “de outros pactos que incluem as possibilidades emocionais e sexuais, o estímulo ao gozo e à realização em todos os ambientes, a satisfação total e constante no terreno da sexualidade e o clima altamente erotizado em uma cultura como a nossa”. “O interesse acadêmico pela sexualidade subiu muito nos últimos anos. Esse é um assunto que nos atravessa com muita potência”, resumiu Sibilia.
Qualquer elaboração sobre o malestar da civilização contemporânea, para citar o título de uma das obras mais lidas e citadas de Sigmund Freud (1856–1939), passa pela análise de como se vivencia, com potência e outra cadência, a sexualidade nos tempos de nudes (autorretratos sensuais ou de nudez explícita partilhados no ambiente virtual) e aplicativos de relacionamentos. Já em 1976, o filósofo francês Michel Foucault (1926–1984) vaticinava, no primeiro dos três volumes de A história da sexualidade: “Não existe uma estratégia única, global e válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações do sexo. A ideia, por exemplo, de muitas
Hoje, reinvenção é palavra recorrente nas discussões sobre o que é amor e como se dão as experiências sexuais múltiplas vezes se haver tentado, por diferentes meios, reduzir o sexo à sua função reprodutiva, à sua forma heterossexual e adulta e à sua legitimidade matrimonial não explica, sem a menor dúvida, os múltiplos objetivos visados, os inúmeros meios postos em ação na política concernente aos dois sexos, às diferentes idades e às classes sociais”.
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São várias as estratégias, é fato, e “talvez um dia cause surpresa”, prossegue Foucault, que tanto continue a se falar disso: “Não se compreenderá que uma civilização tão voltada, por outro lado, para o desenvolvimento de imensos aparelhos de produção e destruição tenha achado tempo e infinita paciência para se interrogar com tanta ansiedade sobre o que é do sexo”. Mas o sexo, as insustentáveis manifestações do desejo, a inevitável associação com amor e mesmo um constante questionar-se sobre o que significa o “amor” – tudo isso faz parte das interrogações recorrentes de quem estuda ou experimenta.
CON ESPECIAL TI NEN TE DIEGO RODRIGUES/DIVULGAÇÃO
Nesse contexto, uma palavra que surge com recorrência é reinvenção: a possibilidade de ser múltiplo, de assumir personas e de explorar a sexualidade para além de visões estanques de gênero e preferências. “Penso que há algo da ordem da simpatia a ser reinventado”, expôs o filósofo húngaro radicado no Brasil Peter Pál Pelbart, um dos palestrantes em Eros e Dioniso – Amor e sexualidade na cultura contemporânea. “Como diz David Lapoujade, a partir de Henri Bergson, a simpatia não é identificação. Simpatizar com alguém não é simpatizar com a pessoa, mas com o seu movimento; simpatizar não com o outro, mas com o devir do outro e também com o devir outro do outro. Simpatizar com o que se torna diferente à medida que o cruzamos. Talvez seja o mais difícil: ser sensível sempre a algo que nos escapa, compor-se com o que nos escapa quando esse escape faz variar a nossa própria composição”, refletiu o professor do Departamento de Filosofia e do Núcleo de Estudos da Subjetividade da pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC–SP. Tais movimentos de contínua recomposição desembocam na chance de ter um perfil no Tinder e perseguir algo completamente diferente no Happn ou em qualquer outro aplicativo (leia sobre aplicativos na matéria da página 54); na possibilidade de reacender o desejo após a perda de um cônjuge ou de atravessar barreiras e provar relações com pessoas do mesmo sexo sem dramas de consciência ou questionamento moral; e na oportunidade de se editar, oferecendo ao mundo uma versão nova, distinta e nem por isso menos legítima do seu “eu”.
“EGO EDITÁVEL”
Afinal, vivemos a era do “ego editável”, como aponta Marina Pinheiro, professora do Departamento de Psicologia e do Programa em PósGraduação em Psicologia Cognitiva da UFPE. Essa expressão nasceu no seu artigo A paixão pela imagem: o eu como cenógrafo das virtualidades do si mesmo, publicado pela Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. “Trabalhei com a noção de um ego editável. Ao falar do sujeito que se avatariza, penso
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ACERVO PESSOAL
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também que essa plataforma é uma espécie de transicionalidade lúdica. Esse sujeito quer se redescrever. Todo mundo, na visão de Nietzsche, quer marcar sua história enquanto um poeta forte. A virtualidade digital e a transicionalidade, termo que pego emprestado de Winnicott, podem ser vistas como uma ambiência: um campo outro, diferente do aqui e agora, que permite um tempo de edição”, afirma em entrevista à Continente, aludindo ao psicanalista e pediatra inglês Donald Winnicott (1896-1971) e ao conceito de transicionalidade como a fricção entre as realidades interna e externa; o encontro entre o espaço íntimo e subjetivo e o universo construído socialmente, muito além do “eu”.
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O estudo deriva de sua observação de um fórum de adolescentes, pesquisados no tocante ao hábito de se fotografar defronte um espelho. “Aquela prática era uma forma de ver a frente e o avesso da foto. Nas fotos tradicionais, a parte de trás da fotografia não tinha imagem; era o excedente de visão, o ponto cego. A partir disso, veio essa ideia de que o ego editável não deixa de ser uma tentativa de capturar, ludicamente e como uma afirmação política também, toda essa parte de mim que não tenho como ver. Só me coloco em perspectiva a partir das respostas que os outros dão. Nesse ego editável, ele se presentifica de forma a elidir as marcas cegas ao, supostamente, postar o que quero”, percebe Marina.
CRISTIANA DIAS/DIVULGAÇÃO
Editar-se é controlar o que o outro vê e mergulhar no fluxo livre da subjetividade e da sexualidade. Estela Miazzi é uma artista visual paulistana que usa o aplicativo Tinder desde 2014. Pode se relacionar com homens e mulheres e não vê problemas em pensar seu vínculo com o Tinder como “um joguinho”. “É uma janela para se expor do jeito que você quer. Se eu quiser, em São Paulo, colocar no meu perfil que só quero conhecer homens, ok. Se chego ao Recife, posso acionar só para que outras mulheres me vejam. Isso não quer dizer que sou isso ou aquilo, e, sim, que estou aberta. É um cardápio e não me incomoda. É prático: você olha as fotos e diz ‘sim’, ‘não’ e, se quiser, dá match e nem conversa”, detalha. “Dar match”, na linguagem do aplicativo, significa o aceno positivo e mútuo à paquera. O cantor e compositor baiano Lucas Santanna escreveu Funk dos bromânticos para seu álbum Sobre noites e dias (2014). Estela cita a letra para exemplificar o que ela enxerga de mais importante no uso do Tinder e seu viés de liberdade e libertação: a escapatória dos rótulos. “Ele beija ela, ela beija ele/ mas se rolar um clima/ ele beija ele, ela beija ela, para eles o amor é livre/ Ela não é gay, ele não é viado, e não são mais classificados”. “A fuga do normativo é essencial. É uma forma política para se questionar gênero e as normatividades das relações. Se um homem que nunca beijou outro homem na balada sente vontade de experimentar, ele vai lá e beija. E está ok, se teve ou não teve tesão, pois está aberto a isso. As músicas do Lucas Santanna, do Liniker e do Jaloo estão sendo feitas para refletir o que as pessoas estão consumindo: esse estilo de vida de se achar no outro e explorar todas as possibilidades”, pontua a artista visual.
ARENA DO CORPO
E a principal arena para tais explorações é o corpo. É o corpo do nude que é mandado via WhatsApp ou pelo Snapchat; o corpo que perde as características usualmente associadas a gênero e assume uma sedutora androginia; o corpo
1-2 PELO TINDER A artista paulistana Estela Miazzi conheceu o músico baiano Gustavo Reis através do aplicativo FERNANDO SUJAN 3 Iogaterapeuta recebe pessoas com bloqueios corporais, que credita a um tipo de “solidão coletiva”
“O próprio Freud dizia que toda força criativa é sexual não genital, porque a energia sexual é de criação”, diz Fernando Sujan que transgride regras que outrora foram impostas pela sociedade e já se mostram caducas. E dele é preciso se reaproximar, na visão do iogaterapeuta Fernando Sujan, para que a sexualidade seja exercitada na plenitude. “O maior órgão do nosso corpo é a pele e é, também, a nossa maior zona erógena. Na era da globalização, houve um distanciamento do próprio corpo. Como posso dar prazer sem conhecer o meu próprio corpo ou sem permitir que o outro me toque? O que houve que fez com que eu me fechasse em concha e não me entregasse mais? As pessoas vêm para a iogaterapia em busca de uma reconexão consigo mesmas. Vivemos uma era de muita
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liberdade, mas também de uma imensa solidão coletiva. O toque é o grande instrumento para vivenciar tudo”, condensa Sujan, do Instituto Anubhava de Hatha Yoga e Ayurveda. Facilitador de oficinas de massagem tântrica no Recife, ele explica que o tantra é uma herança da ancestralidade hindu e existe há quase cinco mil anos: “Na filosofia do tantra, todos os seres são essencialmente bissexuais. Não há nada no nosso corpo físico que possa garantir que uma pessoa só vai gostar de homens ou de mulheres. Pelo contrário, somos seres capazes de nos apaixonar e estabelecer relações, sexuais inclusive, com todos. Mas, como no Ocidente tudo chega esfacelado, tem quem pense no tantra apenas como putaria. Não é: há um componente espiritual de possibilidade de conexão com a kundalini, a energia sexual e vital do corpo. O próprio Freud dizia que toda força criativa é sexual não genital, porque a energia sexual é de criação. E o tantra, segundo Osho, não é moral ou imoral: é amoral”. No tantra, o
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ser é coabitado por sete corpos: o físico, o etéreo, o astral, o mental, o espiritual, o cósmico e o nirvânico. O toque, o sexo que libera a kundalini e as experiências que reaproximam as pessoas de si, à medida que as despem do medo de se relacionar com outros, são as ferramentas de ressignificação. “Ao mesmo tempo, nas oficinas de massagem tântrica, com o uso de óleos, respiração e do toque, trabalhamos a aceitação do corpo como ele é, longe dos padrões que a sociedade tenta impor”, diz Sujan, que valoriza a importância de estar atento à sexualidade ante o turbilhão de estímulos e excessos que o mundo atual oferece: “Florescer em torno da kundalini é uma porta rápida para se conectar com o sagrado”.
LUGAR DE ENCONTRO
Ao lado de reinvenção, conexão é verbete crucial quando se emparelha subjetividade e sexualidade. Além de se conectar consigo e seus desejos, o sujeito pode estabelecer vínculos com pares que, não fosse a mediação do dispositivo, nunca viria a conhecer. O engenheiro Vilson de Oliveira passou 38 anos num casamento “que não foi um relacionamento qualquer” e ficou viúvo em 2015. Perdeu a mãe dos filhos e companheira de vida, viveu o luto e, da tristeza, demorou a se reerguer. Porém, entre junho e novembro de 2016, permitiu-se ser usuário do Tinder: “Antes, nem sabia que existia. Em princípio, fiquei com pé atrás por ser uma ferramenta tecnológica e as pessoas me diziam que era só pegação, só sexo. Mas vi que não, que podia ser uma caminho para conhecer pessoas com quem você divide mil afinidades. Se passassem na rua, ao seu lado, você nunca descobriria, a não ser que tivesse uma bola de cristal”. Atualmente morando em São José dos Campos, ele reconta sua experiência com a percepção de que só seria possível vivê-la estando disposto a se reconectar com sua individualidade após quase quatro décadas de relacionamento. “As pessoas que entram lá estão abertas a se relacionar de todos os jeitos. Quando entrei, no meu perfil,
coloquei que tinha 61 anos e que, por ser viúvo há pouco tempo, não estava com vontade de ter um relacionamento sério. Deixei bem claro no meu perfil. Achei que ninguém iria se interessar ou curtir, mas apareceu um monte de gente interessante. Algumas queriam casar ou namorar, mas eu não estou a fim de dividir teto com ninguém. Meu objetivo era conhecer gente, compartilhar, conversar, trocar ideias. Conheci mulheres muito legais de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Cunha, de Bragança, num raio de 100 km de São José. Foi ótimo construir pontes com pessoas que talvez nunca cruzassem meu caminho”, comenta Vilson. Seu testemunho denota a adaptabilidade que também cinzela as práticas e expressões da sexualidade na cultura contemporânea. “Pequenos ideais ou novas experiências podem, de repente, servir de boia e então eu me visto e me avatarizo de acordo com aquele cenário e paisagem”, sugere a psicóloga Marina Pinheiro, da UFPE. Adaptar-se é, portanto,
Conexão é outra palavra-chave da sexualidade. Com a virtualidade, ocorrem encontros antes inimagináveis poder cambiar de personagem como quem troca de roupa. Mas a subjetividade nem sempre alcança o passo proposto pelo espírito do tempo. “O psicanalista Jurandir Freire Costa diz que as mudanças culturais têm interferência muito grande no modo como subjetivamos. Elas têm uma velocidade maior do que conseguimos agir na nossa subjetividade”, observa Claudine Alcoforado, coordenadora do curso de Psicologia da FBV DeVry e psicóloga clínica. Em The times they’re a-changing, de 1964, o compositor norte-americano Bob Dylan, laureado com o Nobel de Literatura de 2016, já prenunciava a velocidade nas reconfigurações: “Venham, mães e pais (…) e não
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critiquem o que não conseguem entender/ Seus filhos e filhas estão além do seu comando/ E sua antiga estrada está envelhecendo rapidamente/ Por favor, saiam da rua nova se não conseguirem ajudar em algo/ Porque os tempos estão mudando”. Em A moon shaped pool, um dos lançamentos fonográficos mais importantes do ano passado, a banda inglesa Radiohead descrevia o hoje em Present tense: “Essa dança é como uma arma de legítima defesa contra o presente/ o tempo presente/ não ficarei pesado/ vamos manter leve e em movimento/ não estou fazendo mal algum enquanto meu mundo desaba/ eu estarei dançando/ aterrorizando”.
As pessoas seguem a bailar enquanto as tecnologias avançam e o mundo quase entra em colapso; à subjetividade, cabe a busca por equilíbrio. “É como se nossa subjetividade fosse marcada pelo tempo, pela história, pelas nossas questões, mas vamos engatinhando enquanto as mudanças acontecem numa grande celeridade. Nossa subjetividade tenta arrumar lugar, tenta buscar referências anteriores, mas algumas não cabem mais, e aí vamos buscar novas referências que não sabemos ainda quais são. Nossos processos subjetivos seguem em passo mais lento. O que às vezes soa estranho, aos poucos, vai se tornando familiar, enquanto a
subjetividade caminha devagar”, acrescenta Claudine Alcoforado. Músico baiano que mora em São Paulo desde 2014, Gustavo Reis é tradução de um processo de subjetivação que soa estranho para alguns, porém perfeitamente acolhedor para ele e a mulher com quem se relaciona há poucos meses – a artista visual Estela Miazzi; sendo uma síntese do alargamento do escopo da sexualidade. Estela chama Gustavo de Flora, alcunha que ele adotou. “Acho lindo o apelido, um belo nome feminino. Todo mundo acha que sou gay, na perspectiva dessa energia feminina que tenho muito forte mesmo. Esse nome que ela me deu foi a confirmação
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de tudo”, comenta, ao resgatar a trajetória do casal à Continente. Embora seja refratário à hiperconectividade (“me incomoda muito a obsessão por uma velocidade de resposta, estamos sofrendo uma dependência de tecnologia e isso está deixando as pessoas chateadas e doentes; sou do tipo de pessoa que visualiza a mensagem, não responde e demora a responder”), Gustavo conta que conheceu Estela no Tinder, quando ele deu um super like no perfil dela. E que advogam a liberdade de estar com outras pessoas. “Monogamia não dá certo. Toda vez que menti pra mim mesmo, por uma pressão da minha parceira, achando que ia ficar só com ela,
CON ESPECIAL TI NEN TE nunca rolou e só deu problema, sofrimento, autossabotagem. Com Estela é tranquilo, pois ela me dá espaço para ser quem eu sou, me entende, me aceita, pois somos parecidos nesse sentido. É assim que nos relacionamos e gostamos de estar juntos”, resume o músico.
TEMPOS FRATURADOS
O mito do amor é narrado por Platão em O banquete. No seminário Eros e Dioniso – Amor e sexualidade na cultura contemporânea, para o qual foi convidado a partir da entrevista sobre a utopia do silêncio que deu à Continente, publicada em abril de 2016, o filósofo Peter Pál Pelbart lançou mão da mitologia para falar do amor nos tempos fraturados do contemporâneo. Consta que, na era dos deuses gregos, os seres se dividiam em três gêneros – masculino, feminino e andrógino – e possuíam quatro mãos, quatro pés e “uma força e vigor terríveis”, nas palavras de Platão. Ao desafiar o Olimpo com sua audácia de subir à morada divina, foram atingidos por raios de Zeus, que os separou, condenando-os a vagar eternamente à cata de seu complemento – a história ganhou força lírica na canção The origin of love, da trilha sonora da peça e do filme Hedwig (2001), de John Cameron Mitchell. “O amor vem a ser essa tentativa de resgatar a antiga natureza, de curar a ferida do corte, restituindo uma inteireza originária ou uma completude. O que move os seres é a busca de um estado primitivo, uma integridade primeva, a unidade originária da totalidade rompida”, concatenou Pelbart. Mas se deve ir além da constatação de que reencontrar a metade é impossível, como ele mesmo argumentou: “Em vez de ficar girando na impossibilidade, sustentando os analistas, é melhor cavalgarmos na linha de fuga. Talvez seja mais difícil amar no outro não sua identidade, mas a sua bifurcação, a partir do ponto em que ele se distancia dele mesmo”. Dos desvios, das novas rotas e das propostas abertas se erigem os modos de rearmar a sexualidade.
Artigo
LÍLIA SIMÕES A HIPERCONECTIVIDADE E A EXACERBAÇÃO DA CULTURA DO NARCISISMO Em sua forma acabada e fechada, um filme funciona também como organismo plástico, aberto, livre e passível de mil interpretações, sem que isso influencie a singularidade de sua essência. Em cada experiência diante da arte, a obra revive em uma perspectiva original. Foi assim que Umberto Eco, tão sensível, descreveu nossa interação com as diversas formas de arte. Por que não poderíamos dizer que são essas, também, nossas formas de
Atuando como uma extensão narcísica de corpos e desejos, dispositivos mudam o estatuto da imagem experiência com as pessoas? A cada encontro, interpretamos e somos interpretados de modo livre. Diferentemente da obra de arte, no entanto, estamos o tempo todo transformando nossa essência. A arte tem sido uma excelente companheira para pensar o humano; não à toa, a psicanálise recorre a esse instrumento para compreender ou ilustrar nossos dilemas. Existem artistas que compreendem a atmosfera do humano de forma extremamente sensível. Para mim, um deles é Ingmar Bergman. Mas onde caberia falar de um filme de Bergman em um texto sobre sexualidade, corpos e desejo nas dinâmicas da hiperconectividade? Simplesmente porque estamos falando de desejo, algo intrinsecamente humano e desmedidamente bergmaniano.
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Há uma cena de Persona que aparentemente pode ser banal. Uma personagem em conflito está prestes a fazer uma viagem. Poderia ser um conflito qualquer, mas, em se tratando do diretor, pulamos do concreto ao existencial. Neste ponto, a personagem poderia ser eu, você, ou qualquer outra pessoa pensando sobre o quanto, muitas vezes, é esgotante viver e se adequar aos diferentes papéis na sociedade. Ela solta uma frase forte como um soco: “o irrealizável sonho de existir, não o de parecer, mas o de ser”. A partir daí, podemos pensar: por um lado, estamos conectados ante a multiplicidade do mundo e suas diferentes possibilidades, por outro, há a premissa de se adequar. Pensadores da contemporaneidade têm refletido bastante sobre a liberdade que a atualidade nos proporciona, no sentido de sermos cada vez mais livres para ser. O afrouxamento de algumas fronteiras aumentou nossas possibilidades de escolhas para que o ideal de ser não contrarie o que é específico de parecer. De outra forma, a dinâmica de vestir personagens ainda faz parte da sociabilidade, talvez não mais como necessidade de adequação a uma coletividade, mas a nossas próprias conveniências. As personas que encaramos atuam para alimentar nossas próprias satisfações. Esse autocentramento e a sociabilidade têm dialogado de forma paradoxal no que a psicanálise, por exemplo, costuma chamar de cultura do narcisismo. Joel Birman, em seu livro O sujeito na contemporaneidade: Espaço, dor e desalento na atualidade, fala de sujeitos que têm privilegiado mais o Eu, sustentando sua singularidade, desvencilhando-se da máscara social ao mesmo tempo que investem em experiências performáticas num mundo que se assemelha a uma vitrine de possibilidades identitárias, excessos e consumos.
MATHEUS CALAFANGE
Nesse contexto, os dispositivos tecnológicos funcionam como uma extensão narcísica de corpos e desejos. Incrementam mutações no estatuto da imagem e do corpo, provocando uma estetização da vida cotidiana na busca pela satisfação. Consumimos e somos consumidos nas experiências cotidianas dos usos que fazemos nos aplicativos de relacionamentos, por exemplo. Redes de relacionamento sempre existiram, mas nunca estiveram tão personalizadas e dinâmicas. Em uma breve expedição etnográfica pelos aplicativos de paquera que transitam entre o virtual e real, damos de cara com imagens, histórias e interesses em um perfil alimentado por nós mesmos, para sermos vistos e para moldar a forma como somos vistos. Experimente baixar, instalar e usar alguns desses aplicativos. A primeira etapa consiste em montar o seu perfil,
ou seja, como você será visto pelos outros usuários do app. Isso significa colocar fotos e preencher alguns dados, como idade, trabalho, interesses e localização. Alguns aplicativos se dão o trabalho de listar amigos em comum, o velho “diga-me com quem andas que te direi quem és”, mesmo que você não ande com essas pessoas. A partir daí, você escolhe ou é escolhido; se der match, na linguagem do app, algo como uma identificação imediata entre ambos, vocês partem para algo mais concreto. Ou não. Tudo funciona no estilo selfservice: escolho aquilo que quero de forma simples, prática e objetiva. Mostramos o melhor de nós na expectativa de encontrar alguém tão bom quanto. Até aí, nada diferente do que fazemos, quando estamos paquerando na vida real. O que altera é a maneira como diminuímos esforços, reduzimos os erros e evitamos
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decepções. Essas são demandas típicas da contemporaneidade: o mínimo de desprazer, a falta de tempo, a liberdade, possibilidade de fazer escolhas e o descomprometimento das relações. O narcisismo encontra diversas formas de expressões no espaço e no tempo e em diferentes tipos de cultura. O que se discute, hoje, é que esse narcisismo se alimenta da forma espetaculosa como conduzimos nosso modo de ser e encontra nesses aplicativos a ferramenta perfeita para mostrar o quanto somos bonitos e felizes. Em contrapartida, essa necessidade de construir uma vitrine “perfeita” viria da busca em preencher um vazio. Tal demanda se reflete no caminho como tornamos mais dinâmicas as nossas relações e a forma como vivenciamos a sexualidade. Na expectativa de preencher o vazio, continuamos a desejar e consumir relações momentâneas que aparentemente preenchem esse espaço. Por outro lado, por que parece ser tão difícil encontrar alguém que ocupe esse espaço definitivamente? Podemos recorrer a Zygmunt Bauman e suas ideias sobre a fluidez e liquidez das relações, ou mesmo a Gilles Lipovetsky e seus escritos sobre o deserto do humano e intensa busca do bem-estar, com a valorização do Eu em detrimento do outro. No irrealizável sonho de ser, terminamos criando aversão por qualquer experiência de desprazer e evitamos ao máximo as contrariedades – o que se torna impraticável em relações duradouras, nas quais está implicado abrir mão de muitas de nossas próprias demandas. Por outro lado, o uso desses aplicativos se transforma em mais uma possibilidade de vivenciarmos nossa sexualidade de forma livre. Essa iniciativa de emancipação dos desejos e dos corpos, herdamos da modernidade e sua crítica a uma cultura patriarcal, puritana, hipócrita e “desmancha prazeres”. Viver com o máximo de intensidade e seguir o próprio impulso eram bandeiras da vanguarda moderna, desfrutada por muitos movimentos de contracultura. Terminou respingando em nós.
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Entrevista
MARINA PINHEIRO “A SEXUALIDADE SEMPRE VAI TER UM TRAÇO TRANSGRESSOR” Professora do Departamento de
Psicologia da UFPE, com doutorado em cognição, pesquisa em linguagem e subjetividade na contemporaneidade e uma investigação atual sobre processos criativos, a psicóloga Marina Pinheiro partilhou com a Continente sua percepção sobre as convergências entre sexo, relacionamentos e conectividade extrema. “Há a ideia da virtualidade como uma grande novidade, mas ela participa da construção humana desde quando nos consideramos sujeitos com hábito de fala, e principalmente quando pensamos na comunicação e interação como um eixo que, ao longo da história da humanidade, sempre foi o lugar de embate e da instrumentalização do discurso”, sustenta. CONTINENTE Como refletir sobre sexo nesse contexto de hiperconectividade e de uma subjetividade editável, se o sexo é uma linguagem que, desde sempre, se atrela à intimidade da alcova e agora aparece em evidência e em maior exposição nas fraturas da contemporaneidade? MARINA PINHEIRO Lembro-me do psicanalista Jurandir Freire Costa e do seu livro Sem fraude nem favor – Estudos sobre o amor romântico. Um dos pontos que ele coloca é que hoje somos formados numa cultura da autorrealização e da individuação, mas do ponto de vista afetivo os nossos mitos ainda são quase shakesperianos – a renúncia, a entrega, o grande amor e ainda aquela noção de pensar no amor como uma espécie de rendição absoluta, de passividade. Claro que não estou igualando a questão da sexualidade ao amor, mas essas contradições são próprias ao nosso tempo, se pensarmos nessas plataformas pela transicionalidade de que fala (o pediatra e psicanalista inglês Donald Woods) Winnicott e na divisão que marca a sexualidade. A sexualidade é o enigma fundamental de todo ser vivente. Nessas plataformas, encontramos um
campo de expansão. O próprio Freud, aliás, dizia com relação às tecnologias que elas são como a realização de um desejo; quase como os contos de fadas, amplificadoras, e nesse sentido estão aí também para potencializar essas formações. Há os riscos: o lado obscuro da impulsividade, do anonimato, da objetificação, da instrumentalidade. Vejo essas plataformas como um campo privilegiado para exploração dessas outras formas de viver o erotismo e a sexualidade, talvez até permitindo uma outra via de acesso… Uma facilitadora desses acontecimentos, dessas atuações. Não temos mais como dizer “não, porque antes era assim”, pois esse antes já não existe. É uma comparação incomensurável. CONTINENTE Ao entrar num aplicativo, a pessoa faz a exposição da figura; ao mandar nudes, também se expõe. Você acredita que o fator da hiperexposição traz implicações?
“Em tempos conservadores, tudo volta para o corpo como uma plataforma a partir da qual se reescreve a história” MARINA PINHEIRO Em A câmara clara, Roland Barthes já falava do que acontece com o nude ou a superexposição. Ele escreve sobre seu desconforto ao ser fotografado: “caio numa imitação infinita de mim, sou capturado por um sentimento de inautenticidade e o outro pode fazer de mim o que quiser”. O que está jogado no nude é justamente que essa imagem não tem como ser desfeita. É uma materialidade que no momento não é mais minha, mas, sim, do outro. E esse outro faz o uso dela que bem entender. Vêm daí as histórias que vemos de bullying ou violência quando essa exposição ganha um destino que não é previsto pelo autor. As relações de confiança são outro problema da contemporaneidade, para além da questão da sexualidade. CONTINENTE É quase como se estivéssemos em um episódio do seriado Black mirror: imersos em tanta tecnologia
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para nos libertar, mas também ficar reféns das consequências. MARINA PINHEIRO A tecnologia favorece a expressão de tudo aquilo que não se pode colocar na rua. Mas tem também a exploração e o acesso a todos os tipos de vivência. A sexualidade sempre vai ter um traço transgressor, independentemente da tecnologia. Mas podemos pensar que a ferramenta em si não é boa nem ruim; vai depender do uso. Sou pragmática em relação às mediações. Coloca-se uma autonomia para os dispositivos que eles não têm. Existe outra coisa que faz parte dos juízos, dos valores de um tempo, e, aí sim, temos uma seara bem mais complexa, que tem os efeitos performativos nesse uso. Agora, os dispositivos talvez ampliem o acesso a possibilidades de você experimentar a sexualidade. A contemporaneidade é bastante incitativa. Há um forte apelo, tanto para o “viva o hoje” como para o “seja você mesma, se singularize, deixe a sua marca, marque o seu corpo”. Do ponto de vista da psicanálise, o superego não é só, como se imagina no social, a proibição e interdição; é superincitativo, é tirânico. Ele quer que você vá lá e faça. Muito da impulsividade vem do superego; a mídia e a produção tecnológica nos fornecem mais acesso, porém, o superego faz parte da nossa constituição, é inerente à dimensão do fantasma e nos incita. CONTINENTE Esse jogo de incitação/excitação não poderia levar a pessoa a se ensimesmar, a fazer sexo consigo mesma ou apenas pela mediação virtual? MARINA PINHEIRO Talvez, se não existisse esse gadget, nem isso fosse ser possível para esses sujeitos. Percebe? São imensas as possibilidades que o uso dos dispositivos dá. Com a sexualidade, muitas vezes nos vemos diante de uma máquina nova na feira de prazeres e experimentações. Mas sempre tendemos a achar que estamos vivendo menos e que o outro, quem quer que seja, está vivendo mais. Por outro lado, esse corpo, se é visto, é disciplinarizado – desde as dietas, ao movimento fitness, às plásticas. Há o ritual da exploração e potencialidade desse corpo como uma arena mesmo, que vai se emprestar às diferentes vozes sociais que dele vão
DANIELA NADER
tentar se apropriar. Vem o empenho para ser um poeta forte, para conseguir se apoderar desse corpo, para que, de um corpo hipersensível se torne um corpo próprio, um atravessamento de tantas vozes, invasões e sequestros afetivos que vivemos no interior. CONTINENTE Sequestros afetivos interiores? MARINA PINHEIRO Penso numa cultura em que você tem a sensação de que tudo está ali, num grande mercado de prazeres, numa lógica de consumo mesmo. Vai depender da minha escolha e eu estarei submetida aos sentidos da efemeridade e das sensações. Em um tempo de muita coerção social, como o que estamos vivendo agora, quais são os apetites, que pulsão vamos alimentar? Precisamos pensar que a esfera da sexualidade acaba se tornando essa espécie de amortecedor dos prazeres, dos excessos e das angústias que o corpo permite. Nesse momento, os excessos
podem surgir das mais diversas formas – do erótico, dos apetites, da sexualidade – e estar sujeitos às sensações que surgem quando os sentidos comuns e coletivos se tornam muito opressivos, ou profundamente dissonantes. É como se ficássemos à deriva do corpo. Christopher Lasch falava do corpo como refúgio de um mundo sem coração, de muito embate, hostil e sem garantias. CONTINENTE Como exercer a sexualidade na sua definição mais ampla e poder ser quem é e quem quiser ser em tempos de recrudescimento de um pensamento conservador? MARINA PINHEIRO É quando a sua vida afetiva se torna um ato transgressor, que transgride e recria, a dupla face de tudo. E você pode reconstruir naquele universo ali um campo de autoria e de resistência, um território seu. Penso cada vez mais que tudo volta para o corpo como uma plataforma a partir da qual se pode reescrever a sua história.
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Uma plataforma política. Você já viu o documentário Bichas? Na história daqueles meninos, que falam sobre suas saídas do armário, o que se presentifica muito forte são as alienações – ora feitas pela Igreja, ora pela família – e as interdições da palavra. Então, quando eles falam, não é só por cada um, mas também pelos outros. Para mim, são polaridades dialógicas: em tempos de recrudescimento, as formas de resistência e recriação vêm com força no campo das artes e da sexualidade. Elas surgem como uma plataforma possível para ser quem pode e se quer ser. Para viver as liberdades possíveis. É como se ali você encontrasse o fortalecimento do ideal de ser um poeta forte. E, ainda que de forma marginal, construísse uma linguagem que seja própria sua. O que marca a nossa linguagem é a ambiguidade, é a possibilidade de ser outra coisa. E essa é uma luta para a vida toda.
MATHEUS CALAFANGE
CON ESPECIAL TI NEN TE
VIRTUALIDADE Dinâmicas amorosas contemporâneas
Os sites de paquera e os aplicativos para smartphones fundaram um novo modo de se relacionar, mas a localização territorial ainda é elemento fundamental no processo TEXTO Marina Moura
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Um rapaz jovem, inseguro e pouco atraente – ao menos do ponto de vista dos padrões vigentes – contrata os serviços de uma espécie de conselheiro amoroso que o acompanha em tempo real por vídeo e áudio. Este trabalha ao lado do computador dando dicas e checando perfis do Facebook e, por sua vez, é assistido por vários desconhecidos online, curiosos para saber como se desenvolve o processo pelo qual duas pessoas se aproximam e se interessam uma pela outra de modo sexual ou afetivo. Este é o mote de um dos episódios do seriado Black Mirror, ficção científica que pretende mostrar como, em um futuro muito próximo, a sociedade
filosóficas da virtualização, a qual não se oporia fundamentalmente ao real. A diferença, segundo ele, está na característica-chave do virtual: a possibilidade de ser infinitamente atualizado. O conceito pode ser verificado, se pensarmos nas informações que compartilhamos em perfis das redes sociais, na linha do tempo do Facebook em constante mudança de conteúdo ou nos aplicativos e sites de paquera cujos pretendentes estão sempre a se modificar. Para Paul Virilio, a partir da virtualização e do ciberespaço, todas as ações e relações foram sendo delegadas, de maneira parcial ou total, a “máquinas eficazes”, que nos colocam em facilitação ou confronto com elementos como a “instantaneidade, ubiquidade e imediatez”. Embora as dificuldades de demonstrar interesse, a vontade de encontrar alguém compatível com nossas expectativas, a incerteza de ser ou não correspondido e administrar a tensão que antecede o primeiro encontro sejam circunstâncias que
Os anúncios casamenteiros do século XVII são congêneres dos aplicativos de relacionamentos lidaria com os aparatos tecnológicos, intrinsecamente associados aos seus modos de vida. É bem verdade que este mundo “regulado pelas redes e pela velocidade”, como observou o filósofo e arquiteto francês Paul Virilio já na década de 1980, quase mais nada possui de distópico, e é possível que parte do sucesso da série resida justamente no fato de apresentar situações muito próximas do que vivenciamos atualmente. Em 1996, mesmo período em que os computadores pessoais e a internet começaram a se popularizar, o sociólogo francês Pierre Lévy escreveu O que é o virtual? Na obra, Lévy analisa as implicações antropológicas, sociopolíticas e
já existiam muito antes da ideia de virtual, é certo que novas sensações e condutas foram assimiladas na era da hiperconectividade. O ator, roteirista e escritor estadunidense Aziz Ansari experimentou um tipo de ansiedade muito comum a qualquer usuário de smartphone – a espera por uma resposta. “A piração que tomava conta de mim não existia 20 ou mesmo 10 anos atrás. Ali estava eu, olhando para a tela do telefone como um maníaco, a cada poucos minutos, em um turbilhão de pânico, mágoa e raiva, só porque uma pretendente não tinha respondido a uma mensagem curta num aparelhinho idiota”, relatou. A experiência serviu para que
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Ansari iniciasse uma longa pesquisa, em parceria com o sociólogo Eric Klinenberg, da Universidade de Nova York, acerca das dinâmicas amorosas mediadas por celulares, sites, aplicativos e redes sociais. Entre 2013 e 2014, eles entrevistaram centenas de usuários – em grupos presenciais e online – e estudiosos, além de visitarem importantes capitais do mundo, como Paris, Buenos Aires e Tóquio. O resultado foi reunido no livro Romance moderno: uma investigação sobre relacionamentos na era digital (Companhia das Letras, 2016).
ANTECEDENTES
O uso das tecnologias disponíveis como aparato para encontrar alguém ou conhecer pessoas remonta ao século XVII. Em meados de 1690, surgiram os chamados anúncios casamenteiros em jornais diários ou semanais. Por muito tempo, os classificados foram o modo preferido que os solteiros encontraram para expandir suas possibilidades amorosas, especialmente na década de 1960, com a Revolução Sexual, e perduraram até os anos 1980. Em textos curtos, com cerca de 50 palavras, o interessado fazia uma breve descrição de si e do que procurava. Uma vez publicado o anúncio, aguardava-se por um contato na caixa postal, com mensagens de aproximadamente três minutos. Devido à escassez de informações e fotos e às limitações comunicacionais até o momento do encontro, o número de casais efetivamente formados pelos anúncios não chegou a ser substancial. Algumas pesquisas indicam que boa parte das relações construídas neste período passava pelo fator geográfico, na lógica do quanto mais próximo, melhor. Aziz Ansari entrevistou 36 idosos em Nova York e mais da metade disse ter se casado com pessoas do mesmo bairro. Um levantamento realizado em 1932 pelo sociólogo James Bossard, da Universidade da Pensilvânia, aponta para a mesma direção. Bossard examinou 5 mil certidões de casamento da Filadélfia e concluiu que um terço dos casais
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morava a um raio de até cinco quarteirões antes do matrimônio. No entanto, o espaço geográfico é sobretudo contextual. Avancemos para 2011, Buenos Aires, capital da Argentina, com 3 milhões de habitantes. Mariana, que vive praticamente enclausurada em seu apartamento e tem fobia de elevadores, questiona-se: “Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar?”. Ela conversa em um chat da internet com Martin, webdesigner que pouco sai de casa, a não ser para passear com o cachorro. Mariana e Martin – que moram mesmo quarteirão, mas não se conhecem – são personagens do longa-metragem Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual, de Gustavo Taretto. O filme questiona a desterritorialização presente no espaço urbano e dialoga com o pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, para quem “o outro lado da moeda da proximidade virtual é a distância virtual: a suspensão, talvez até anulação, de qualquer coisa que transforme a contiguidade topográfica em proximidade”.
ALGORITMOS
Com a chegada dos computadores, inicialmente parafernálias imensas que ocupavam cômodos inteiros, os primeiros serviços de agências que se propunham a juntar casais apareceram nos idos de 1960. Os clientes preenchiam formulários imensos e detalhados, e as respostas eram registradas e processadas em computadores, que encontrariam o parceiro ideal de modo lógico e racional, a partir do cruzamento de algoritmos. Alguns fatores explicam o motivo de a ideia não ter agradado: a desconfiança com aparelhos eletrônicos ainda era grande, já que o seu uso era circunscrito a empresas específicas e quase não havia acesso a eles; além do mais, não havia quaisquer garantias de que os possíveis casais dariam certo de fato. Dan Slater, autor de Love in the time of algorithms (Amor nos tempos dos algoritmos), aponta que os serviços desse gênero baseavam-se exclusivamente no que os usuários
afirmavam querer, o que considera um erro. Ao analisar seus hábitos de navegação e buscas na internet, Slater concluiu que a descrição do parceiro ideal simplesmente não era compatível com o tipo de pessoa pelo qual esse indivíduo de fato se interessava. Um programador com quem Dan Slater conversou durante a pesquisa para o livro afirmou que ele e seus colegas perceberam que “é frequente as pessoas quebrarem as próprias regras, e de como o comportamento virtual é discrepante das exigências reais”. A antropóloga Helen Fisher, especializada em mecanismos de escolha, vê a questão dos algoritmos de maneira semelhante. Para ela, o
A lógica dos sites de relacionamento avança quando permite aos usuários a autonomia na busca por parceiros único modo de determinar se duas pessoas darão certo é encontrandose pessoalmente, e é categórica ao dizer que “o cérebro é o melhor e mais sofisticado algoritmo, não existe nenhum serviço de facilitação de encontros no mundo que faça o que o cérebro é capaz, quando se trata de encontrar a pessoa certa”.
MATCH.COM
O ponto de inflexão no modo de reunir possíveis casais por serviços computadorizados pode ser associado ao lançamento do site de relacionamentos Match.com. Criado em 1995, nos Estados Unidos, pelo programador Gary Kremen, a página inaugurou a lógica de que os próprios usuários deveriam ter autonomia para procurar parceiros. Assim, em vez de depender de algoritmos que sugerissem pontos de confluência entre dois indivíduos, o Match.com propunha uma apresentação com foto e descrição, num modelo parecido ao de redes sociais, nas quais existe um perfil e os participantes interagem entre
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si via bate-papo. Helen Fisher, que posteriormente se tornaria consultora da página, acredita que o termo site de relacionamentos não corresponda ao serviço oferecido. Para ela, deveriam se chamar sites de apresentação, pois o que oferecem é apenas uma oportunidade de “a própria pessoa ir atrás de conhecer alguém”. Kremen pode até ter sido considerado excêntrico quando, à época, declarou que sua criação iria “trazer amor para este planeta como não se vê desde Jesus Cristo”, mas o fato é que, em 2005, o Match.com já registrava mais de 40 milhões de usuários. Em Romance moderno, Aziz Ansari avalia que a iniciativa de Gary Kremen criou um novo modelo de
MEDIANERAS 1 Filme argentino retrata jovens que vivem em isolamento social e acabam se encontrando por conta da internet
mercado, e logo em seguida “os concorrentes pipocaram, procurando novos nichos, ao mesmo tempo que tentavam se apropriar da base de clientes do Match.com. Cada novo site surgia com uma marca registrada — o eHarmony era para pessoas em busca de um relacionamento sério; o Nerve, para os hipsters; o JDate, especializado no público judeu, e assim por diante”. E continua: “O advento dos sites de busca de par transformou a forma como iniciamos relacionamentos românticos. Em 2000, apenas cinco anos após a criação do Match. com, 10% das pessoas vivendo uma relação tinham conhecido o parceiro na internet, número que já era de quase 25% em 2010”.
NICHOS
Mestre em Direitos Humanos, o professor universitário Daniel Cisneiros, 25 anos, acompanhou a migração dos sites de relacionamentos aos aplicativos, popularizados com o advento dos smartphones. Em 2010, resolveu criar um perfil no Badoo. O site foi lançado em 2006, no Reino Unido, pelo russo Andrey Andreev. Apresentada como uma “rede social para conhecer pessoas”, e sem oferecer qualquer tipo de facilitação entre usuários com afinidade, na prática, no entanto, a página foi quase sempre associada a indivíduos em busca de parceiros sexuais ou amorosos. Os perfis são apresentados de modo semelhante àqueles do
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Orkut, reunindo informações do usuário, fotos, vídeos, textos e chats. No intuito de conhecer alguém que considerasse interessante, sem necessariamente um apelo afetivo, Daniel encontrou no Badoo um modo de vencer a timidez e se conectar especificamente com o público LGBT. “Você entra nesses sites e aplicativos e há todo tipo de interesse. Há pessoas que quererem namorar, outras são explícitas ao procurarem sexo rápido, algumas querem só conversar. Na verdade, acredito que todos esses recursos tecnológicos são construções sociais e variam muito de acordo com o usuário”, comentou em entrevista à Continente. Foi lá que, após engatar algumas conversas que não fluíam
CON ESPECIAL TI NEN TE ou não resultavam em encontros presenciais, acabou conhecendo seu primeiro namorado. “Era um menino que eu não achava tão interessante, inclusive as fotos dele eram estranhas, dava a impressão de que estava se escondendo. Mesmo assim, resolvi enviar uma mensagem, que ele não respondeu. Insisti, e ele acabou conversando comigo durante semanas, marcamos de nos encontrar e deu certo.” Daniel Cisneiros faz parte de um grupo que o sociólogo Michael Roselfend, da Universidade de Stanford, chama de “mercados limitados”, representados, por exemplo, por pessoas que buscam relações homoafetivas ou entre parceiros de meia-idade. Em um levantamento intitulado How the couples meet and stay together (Como os casais se conhecem e permanecem juntos), Rosenfeld entrevistou mais de 4 mil adultos de língua inglesa, entre solteiros e casados, e, entre outras conclusões, apurou que 60% dos casais LGBT se conheceram através da internet. Para ele, a razão desses nichos explorarem o virtual e obterem sucesso é simples: “quanto menor o universo de potenciais pares românticos, menor a chance de encontrá-los pessoalmente, seja por intermédio de amigos, seja em lugares públicos”.
GEOLOCALIZAÇÃO
Inspirados em jogos de cartas, Sean Rad e Justin Mateen, dois estudantes da Universidade do Sul da Califórnia, resolveram criar, em 2012, um aplicativo de paquera no qual o usuário, vinculado a um perfil no Facebook, escolhesse possíveis pretendentes a uma distância de até 160 quilômetros. Cabe a ele analisar as fotos dos possíveis pretendentes e decidir se gosta (desliza o dedo para a direita) ou rejeita (para a esquerda). Em caso positivo para ambos – isto é, quem analisa está sendo igualmente analisado –, It’s a match! (É uma combinação), e só depois se abre um chat para os dois indivíduos, que escolhem ou não conversar entre si. Eis o funcionamento do Tinder, a criação mais bem-sucedida, até o momento,
JANIO SANTOS
no ramo de relacionamentos virtuais – já são mais de 100 milhões de pessoas conectadas a ele, e 10% de usuários brasileiros. O pré-requisito do interesse mútuo foi uma das inovações trazidas pelo Tinder que garante parte de seu sucesso estrondoso. A necessidade de aprovação dos dois lados evita, por exemplo, mensagens inconvenientes de alguém que não inspira interesse. Outro fator a ser considerado é a obrigatoriedade de o aparelho celular estar com o GPS ativado. A tendência foi iniciada com o Grindr, app de 2009 voltado para homens gays que mostra as 50 pessoas mais próximas do usuário. Lógica semelhante foi adotada pelo francês Happn (2015), sugerindo perfis a partir de cruzamentos pela rua, num raio de 250 metros. Nesse sentido, a lógica de tais aplicativos tem retomado as noções
Levantamento feito entre adultos de língua inglesa apurou que 60% dos casais LGBT se conheceram pela internet de tempo e espaço daqueles idosos de Nova York que se relacionavam entre si mediados por distâncias entre quarteirões. Se, com a criação de um novo lugar – o ciberespaço –, a internet prometeu (e cumpriu) aproximar pessoas que de outro modo dificilmente teriam condições de interagir, há também um movimento contrário, mas não necessariamente conflitante, de retorno às origens, como se, pelo virtual, fosse possível e necessário “reterritorializar”, para usar um conceito de Gilles Deleuze, o espaço real – os edifícios, as esquinas, os bairros. “É preciso dizer que é o próprio mundo que nos arma as duas armadilhas da distância e da identificação”, afirmou o filósofo francês. E, pelo mundo, pode-se muito bem incluir os sites, smartphones, aplicativos e redes sociais.
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Sites e apps
OS ENDEREÇOS MAIS PROCURADOS PARA INICIAR RELACIONAMENTOS Foi ainda na década de 1990 que surgiu o primeiro site de relacionamento, com o objetivo de aproximar pessoas com interesses comuns. Desde então, têm surgido aplicativos que facilitam desde uma paquera despretensiosa a encontros com interesse específico em sexo.
MATCH.COM www.match.com
O primeiro site de relacionamentos foi criado em 1995, nos Estados Unidos, pelo programador Gary Kremen. Em vez de apostar em algoritmos que indicassem possíveis casais, o Match.com (no Brasil, chama-se Par Perfeito) inovou ao permitir que os clientes fizessem sua escolha em tempo real.
BADOO
www.badoo.com/pt
O Badoo chegou ao mercado em 2006, no Reino Unido. Foi o primeiro site de relacionamentos a inserir a ideia de perfil com linha do tempo, como o Orkut e o Facebook. Presente em mais de 180 países, possui cerca de 140 milhões de usuários cadastrados, embora atualmente a maioria esteja inativa.
GRINDR
Lançado em 2009, foi o primeiro aplicativo exclusivo para homens gays. Precursor do recurso de localização geográfica, continua a ser o mais utilizado pelos públicos homo e bissexual. Sua ferramenta de contato entre usuários é territorial: as 50 pessoas que estão mais próximas fisicamente aparecem umas para as outras.
TINDER
Lançado em 2012, pelo iraniano Sean Rad, o Tinder revolucionou a paquera virtual ao ter como pré-requisitos o interesse mútuo (Match!) como fundamental para iniciar uma conversa. O perfil do usuário precisa necessariamente estar ligado ao Facebook, de modo que é possível ver interesses e amigos em comum. Possui mais de 100 milhões de usuários no mundo e cerca de 10 milhões só no Brasil.
SNAPCHAT
O aplicativo articula imagens, mensagens e filtros e seu conteúdo se “autodestrói”, sendo, por isso, muito popular para o envio de nudes. Criado em 2011, por dois jovens estadunidenses com o objetivo de enviar e receber fotos que não precisassem ou pudessem ser armazenadas, o Snapchat não é um serviço específico para paquera, e oferece ainda conteúdo jornalístico e entretenimento.
HAPPN
O aplicativo francês, criado em 2015, une a lógica do Tinder, que pressupõe interesse mútuo, e a geolocalização do Grindr. Assim, os pretendentes vão aparecendo a partir de cruzamentos na rua, num raio de 250 metros de distância.
POPPIN
Idealizado pelos brasileiros Guilherme Ebisui e Filipe Santos em 2016, sugere os pares a partir de eventos do Facebook. Ou seja, para conversar ou dar match, é necessário que as duas pessoas estejam confirmadas ou tenham interesse em um evento específico. De acordo com os criadores, o objetivo do app é facilitar e naturalizar o primeiro encontro.
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CABOCLINHO Agora, patrimônio cultural nacional Desde novembro do ano passado, folguedo ligado às tradições de matriz indígena passa a integrar as expressões populares brasileiras salvaguardadas TEXTO Chico Ludermir FOTOS Roberta Guimarães
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Tradição
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Era fim de tarde no Engenho
Mussumbu, em Goiana – PE, e uma dezena de ônibus antigos, estacionados sobre o chão de terra batida, assinalava que os caboclinhos já haviam chegado. À contraluz do sol, revelavam-se as fantasias repletas de penas, nos porta-malas, no chão e, aos poucos, nos corpos dos brincantes, que, apressados, começavam a se preparar para a apresentação que logo começaria. Por cima de pequenos shorts, as meninas e os meninos, as mulheres e os homens de 14 tribos diferentes sobrepunham as tangas, amarravam as atacas nos pulsos e tornozelos e seguravam seus cocares nas mãos para encaixálos na cabeça, esperando a hora do
desfile em comemoração ao título de Patrimônio Cultural do Brasil, recebido em novembro de 2016. Nana, a essa hora, mantinha o foco e o empenho para que tudo se mantivesse dentro do mínimo de controle. Enquanto presidenta do Canindé do Recife, o caboclinho mais antigo em atividade e Patrimônio Vivo de Pernambuco, cabia-lhe dar conta de organizar os quase 50 brincantes, metade de crianças, que saíram da Bomba do Hemetério, na capital, pouco depois do almoço. Dois, quatro, seis, oito, contara aos pares, antes de embarcarem rumo a Goiana, cidade conhecida pela abundância dessa e de outras expressões populares.
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1 CORPO CABOCLO Indumentária de penachos e caracaxás são distintivos ASSIMILAÇÕES 2 Dinâmica, a prática da cultura popular acolhe o contemporâneo
Depois da chegada, não havia mais conta possível. A meninada se espalhava no terreiro, corria com as fantasias pela metade, já ensaiando espontaneamente os passos que aprendera imitando os mais velhos muitas vezes, no mesmo momento em que aprendia a caminhar. O som agudo da gaita (flauta reta de metal, característica dos caboclinhos) já
se ouvia por todo os cantos. Mesmo que as apresentações não tivessem começado, assim como os mais novos, os músicos, adultos, também já se juntavam em trios (ou “ternos”, como é mais comum chamar), iniciando a brincadeira com tarol (espécie de tambor) e caracaxá (chocalho também de metal). – Nana, estava querendo conversar um pouco com você sobre o Canindé e o título de Patrimônio Cultural do Povo Brasileiro dado aos caboclinhos – digo, ao me aproximar. Enfiada dentro do porta-malas do ônibus, retirando as indumentárias que completariam as fantasias de quatro curumins (os mais novos), a mulher de 40 e poucos anos, estatura baixa e
O público reconhece os cortejos de caboclinhos em brincantes que dançam com agilidade ao som de flautas, tambores e chocalhos cabelos pretos na altura dos ombros, bagunçados pelo excesso de tarefas, tenta começar a conversa, uma, duas, três vezes, sempre interrompida por alguém que o chamava, perguntava, demandava. Ao ver os meninos correndo para fora dos limites do engenho, desembesta-se atrás deles e deixa a entrevista pra depois.
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– Fala com Guedes, sugere, gritando, já afastada, enquanto corria chamando os meninos de volta para o seu ângulo de visão e cuidado. Guedes ainda não tinha descido do ônibus. Tentava se concentrar na sombra abafada do coletivo, antes da tocada. Estava sentando em uma poltrona, com a sua gaita, companheira inseparável desde 2006, quando a tocou pela primeira vez. “Eu morava na Ilha do Maruim (Olinda) e sempre olhava admirado os caboclinhos passando e imaginava o dia em que eu entraria em contato com eles. Demorou muito, mas depois que eu fui lá no Canindé pela primeira vez, nunca mais deixei”, começa contando.
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Tradição Guedes é um dos poucos integrantes do grupo que não é morador da Bomba e nem tem nenhuma relação familiar com os demais. Sua presença, singular, acaba por nos apontar para um dos principais elementos da cultura popular, que é o caráter comunitário, seja pelos laços consanguíneos, seja pelas relações de vizinhança. No caso do Canindé, o mestre Bibiano, líder da brincadeira desde a década de 1950, passou o comando do grupo para Juracy, sua filha, em 1985. Sem herdeiros biológicos, Juracy escolheu sua afilhada Nana para tocar o brinquedo, quando morresse. Juracy faleceu em junho de 2015. Josiely, de apenas 18 anos, que desfilou pela primeira vez quando ainda usava fralda, já carrega a responsabilidade de substituir Nana, se preciso for. O gaiteiro é olindense e se aproximou do Canindé motivado por uma pesquisa que fazia sobre música e religião nos caboclinhos (ou seria o contrário: escolheu estudar música e religião motivado pela paixão da infância?). Cleiton, na época o cacique do folguedo, levou-o à sede, no período do Carnaval, para que Guedes pedisse permissão ao grupo para acompanhá-los no desfile de agremiações. Em junho do mesmo ano, recebeu um recado de Cleiton. “Juracy quer falar contigo. E ela disse que tem que ser logo.” Foi. “Tu vai ser o gaiteiro do Canindé. Sonhei com minha mãe me dizendo isso. Tu se garante?”, perguntou a então líder no tom direto que a caracteriza. Guedes que, apesar de flautista, nunca tinha tocado gaita, aceitou, inseguro. Esperou os momentos de ensaio sem saber que em brinquedo popular não tem disso. “Tu vai e faz. Aqui se aprende fazendo”, explicou Juracy, quando perguntada como é que seria na apresentação do Festival de Inverno de Garanhuns em julho do mesmo ano. “Tu já fez até o repique? Então está muito bem”, comentou a performance, referindo-se aos
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agudos mais fortes disparados pela gaita. Desde então, Guedes nunca mais se ausentou de tocadas do grupo em concurso ou apresentação. Aproveito os últimos minutos antes da vez de Guedes se arrumar e peço para que me mostre os diferentes ritmos do caboclinho. Com os quatro furos da gaita, toca o ritmo “guerra”, mais acelerado, o “perré”, um pouco mais cadenciado, e a “macumba de índio”, tocado, geralmente, nos momentos em que se cultua o caboclo protetor do
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brinquedo. Incluem-se nos ritmos ainda, segundo a pesquisa do governo do estado que serviu de base para os caboclinhos se tornarem patrimônio, os ritmos “baião” e a “sambada”. Este último, influenciado pelos toques do maracatu rural. Descemos juntos, Guedes e eu, seguindo o chamado de Nana para que ele também colocasse sua fantasia. As tribos que antecederiam o Canindé no desfile do engenho já começavam a se enfileirar. Enquanto o Oxossi Pena Branca, do Alto do
Pascoal, era anunciado pelo locutor e avançava nas tradicionais duas filas de caboclos, a presidenta retocava o brilho dourado, espalhando purpurina na pele de cada uma das meninas que lhe circundavam. Ao lado, os cocares mais pesados eram encaixados nas cabeças com o auxílio de outros integrantes do grupo. Em alguns casos, são necessários até protetores para as cabeças que vão aguentar uma dezena de quilos, enquanto o resto do corpo se mexe em passos ágeis. O som do terno do Oxossi Pena Branca, já amplificado pelas caixas de som, reverberava por todo o engenho. Na gaita, o veterano Nadinho, com meio século de experiência no instrumento, conduzia o bailado do seu grupo na “guerra”, no “perré” e na “macumba”. Aos 66 anos e tocando desde os 15, Nadinho é o gaiteiro
Entre os ritmos tocados no caboclinho estão o de “guerra” (acelerado) e a “macumba de índio”, tocado no culto ao protetor da tribo mais experiente de Pernambuco. Passou por diversos grupos do Recife, desde o já inexistente Tabajara, do Alto José do Pinho, até o também Patrimônio Vivo de Pernambuco Caboclinho Sete Flexas do Recife, passando ainda pelo Canindé. Enquanto cessavam os repiques de Nadinho, iniciavam-se os de Guedes, anunciando a hora da entrada da sua agremiação. Acompanhando de longe, Nana, talvez pelo hábito das tantas vezes em que competiu nas ruas do Recife
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3 ESPIRITUALIDADE Entre os personagens encenados, figuram entidades da jurema 4 INTEGRANTES Os grupos de caboclinhos têm forte identificação familiar e comunitária
Antigo no Carnaval, torcia para que fossem os mais bonitos da noite. Desejou sorte à sua afilhada Josiely, que desfila como Cacique e se permitiu relaxar por um momento. Ver o Canindé, assim como observar as outras 13 tribos que desfilaram durante aquela noite de comemoração pelo título de Patrimônio Cultural do Brasil, além de um espetáculo de uma beleza dificilmente descritível, foi capaz de revelar as diversas camadas da cultura dos caboclinhos que tentaremos destrinchar.
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Tradição CONTEXTO HISTÓRICO
“De todas as danças dramáticas que vi, os caboclinhos são o único bailado verdadeiro”, escreveu Mário de Andrade, ao chegar da Missão de Pesquisa Folclórica. Na época, Andrade integrava o Departamento de Cultura de São Paulo, empenhado em investigar aspectos formadores da identidade nacional. Quase um século depois desse que é um dos primeiros registros históricos dessa expressão popular, no último dia 24 de novembro, os caboclinhos conquistaram o título de Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, em Brasília. Embora os grupos de caboclinhos não sejam homogêneos, é possível reconhecer a presença de diversos elementos comuns aos brincantes, tanto na forma como no conteúdo, permitindo-lhes sentirem-se parte de um mesmo universo. Assim como em diversas manifestações encontradas na cultura popular, grande parte dos grupos de caboclinho é marcada por um conjunto de práticas e saberes que envolve arte, celebração e religiosidade. A geografia desses grupos compreende os estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba, havendo registros também em Alagoas e Minas Gerais. Pernambuco, no entanto, é onde há maior incidência, com presença significativa na capital, o Recife, e na Zona da Mata Norte do Estado, região marcada pelos antigos aldeamentos jesuíticos e palco de diversas políticas indigenistas. Atualmente, são identificados cerca de 70 grupos de caboclinhos em Pernambuco, dos quais aproximadamente 30 estão na capital. Apesar da referência à cultura indígena, evidente nas vestimentas e adereços, segundo pesquisa realizada para o Inventário Nacional de Referência Cultural, os caboclinhos são uma manifestação
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“De todas as danças dramáticas que vi, os caboclinhos são o único bailado verdadeiro”, escreveu Mário de Andrade
miscigenada que apresenta elementos de origens diversas – europeia, africana, indígena –, sendo, portanto, fruto de transformações decorrentes desses encontros. O mesmo inventário aponta para a hipótese de que a expressão tenha sua origem ligada às áreas em que por mais tempo permaneceram a memória e a identidade indígenas, o que nos remete, no caso de Pernambuco, à Mata Norte. Como nas outras manifestações características dessa área, tais
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5-6 PRESENÇA Caboclinhos ocorrem em Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba, havendo registros também em Alagoas e Minas Gerais
quais o maracatu rural e o cavalomarinho, o caboclinho tem na religiosidade uma de suas marcas. Deste modo, seus brincantes, pelo menos uma parte significativa deles, concebem-no como uma forma de relacionar-se com uma das muitas entidades da categoria Caboclo. Nesta perspectiva, além do caráter lúdico e socializador, o caboclinho se configura como um espaço de reafirmação de um conjunto de crenças e práticas integradas à vida religiosa de homens e mulheres, que têm na tradição da jurema uma de suas principais referências.
Características
ELEMENTOS DO CABOCLINHO INDUMENTÁRIAS E ADEREÇOS
Os caboclinhos são marcados pelas referências aos povos indígenas. As indumentárias e adereços são confeccionados pelos próprios grupos e têm como material principal as penas de diversos pássaros. Afora a dança e a música apresentadas ao público, a criação do figurino é também uma arte cultivada pelos brincantes e passada de geração em geração. Além das penas, geralmente de pavão, ema, faisão e chichila (parte do rabo do galo composto por penas curtas), é comum ver os caboclinhos brilhosos de lantejoulas, miçangas e pedras que são bordadas ou coladas nas sedes dos grupos. Nos meses que antecedem o Carnaval, as fantasias são confecionadas e, muitas vezes, ocupam toda a sede. Antigamente, as plumas eram adquiridas no comércio local, mas a maioria é encomendada a São Paulo por telefone ou pela internet. Indumentárias e adereços representam também a maior parte dos gastos dos caboclinhos, em especial para aqueles que competem nos concursos de carnaval, que aumentam as cobranças pelo espetáculo. Uma única pena de faisão, por exemplo, pode chegar a R$ 30 a unidade, ou, se comprada no quilo, têm preço médio de R$ 2 mil. Alguns cocares chegam a ter 200 penas, e a custar valores próximos a R$ 5 mil. O binômio alto custo das fantasias e pouca remuneração nas apresentações, não raro, resulta no endividamento dos grupos em bancos e, sobretudo, com agiotas.
PERSONAGENS
Personagens diferentes aparecem nos diversos caboclinhos, mas é possível elencar os mais comuns entre os grupos da Região Metropolitana do Recife e da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Eles são praticamente os mesmos, em especial pelas exigências nas participações de concursos. As crianças são chamadas de “curumins”, os adultos que compõem os dois cordões de dançarinos são as “tapuias” (mulheres) e “perós” (homens), que também são nomeados de “caboclos” e “caboclas”. Cada uma das duas fileiras tem nas dianteiras a figura dos puxantes, que coordenam o grupo durante as apresentações. Dentre os destaques estão o cacique e a cacica, que representam o mãe e o pai da tribo, o rei e a rainha que, assim como os caciques, executam os passos de forma mais livre e elaborada. Entre os cordões, encontrase a figura do “pajé” (também chamado de “curandeiro” ou “feiticeiro”) e, à frente da agremiação, apresenta-se o porta-estandarte, carregando o símbolo do brinquedo com a função de apresentá-lo ao público. 6
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MÚSICA
O escritor Mário de Andrade, em suas pesquisas dos folguedos populares na década de 1930, ressaltou o caráter original da musicalidade dos caboclinhos. Segundo ele, trata-se de uma música que não se confunde com nenhum outro gênero nem tradicional nem popular. Nessa perspectiva, o modernista destaca o caráter singular das melodias, que, em suas palavras, “discrepam violentamente de tudo quanto estamos acostumados a considerar como constâncias nacionais da nossa música”. A música do caboclinho é basicamente instrumental, sendo executada por uma gaita (uma flauta reta), acompanhada por instrumentos de percussão que podem ser o caracaxá ou o ganzá (também chamado de mineiro ou maraca) e um tarol. Alguns grupos usam também o atabaque no ritmo da macumba. Outro instrumento característico dos caboclinhos é a preaca (ou o arco e flecha), que é tocado por quase todos os brincantes. O conjunto de músicos do caboclinho é chamado de “terno”, mas também é conhecido como baque ou batucada e tocam os ritmos: guerra, perré, baião, macumba e sambada. As melodias centrais são curtas e se desenvolvem em improvisações. A voz fica restrita aos gritos de guerra e às loas que são cantadas quando o terno silencia, puxadas pelo cacique e respondia pelo grupo.
DANÇA
Uma das principais formas de expressão do caboclinho é a dança, chamada de “manobra” ou “evolução”. Existe uma variedade de manobras referentes a cada toque, em sua maioria homônimas do ritmo. No toque baião, ele é manobrado com diversas variações relacionadas a uma base específica. Da mesma forma, no perré e na macumba, com a exceção do ritmo guerra, que tem como base a manobra tesoura. Essa ausência de nomes está diretamente relacionada ao modo de transmissão do conhecimento do caboclinho. O aprendizado dá-se essencialmente pela observação. A prática das manobras acontece numa estrutura coreográfica chamada “cordão”. O cordão é composto por duas fileiras de caboclos e caboclas, os jovens brincantes que se movimentam num sentido único, simultaneamente. As manobras mais elaboradas envolvem agachamentos (cocas), giros e pequenos saltos, combinados com os estalados das preacas. FONTE: Inventário Nacional de Referência Cultural
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
SOBRE LABIRINTOS, TREVAS E PORTAS O escritor Pedro Salgueiro me
encaminhou trecho de uma carta de Rosa de Luxemburgo, escrita da prisão de Breslau, numa noite natalina de 1917. Ela diz: No escuro, sorrio à vida, como se eu conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras, transformando-as em luz intensa e felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para essa alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta saber olhar. No estalar da areia úmida, sob os passos lentos e pesados da sentinela, canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir. O texto me deixou inquieto porque veio sem qualquer apresentação ou justificativa, aparentemente por nenhum motivo, com um pequeno título grifado: noite. É possível tatear no escuro à procura de uma saída, mesmo que as portas pareçam fechadas? Não é difícil reconhecer que o escuro existe, basta ligar a televisão ou o rádio, ler os jornais e ir ao cinema. Ou olhar pela janela do
carro. Você não precisa freqüentar como paciente a emergência de um hospital público, ou como réu uma delegacia de polícia. Não vá tão longe. Também não se aventure pelas veredas de uma favela, onde igualmente poderá se extraviar. O labirinto não passa de um emaranhado de caminhos, dos quais alguns não têm saída, e constituem impasses. No meio dele é necessário descobrir a rota que nos levará ao centro, embora se trate de um emaranhado de caminhos, que retardam a chegada do viajante ao centro que deseja atingir. As trevas sempre nos ameaçaram. Plínio, O Velho, até escreveu que encarar a luz é para os mortais a coisa mais aprazível e o que está sob a terra é nada. Jaz escondido, pertence ao mundo da ignorância. Quando desejamos conhecer algo, nós o trazemos para a luz. A luz da ciência, a luz do conhecimento, a luz da razão. Luz e escuridão se alternam. Uma época sombria é seguida de uma época luminosa, pura, regenerada. Mircea Eliade escreveu que se pode valorizar as eras sombrias, épocas de grande decadência e de decomposição: elas adquirem uma significação supra-
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histórica, embora seja precisamente em tais momentos que a história se realiza de forma mais plena, porque os equilíbrios aí se tornam precários, as condições humanas apresentam uma variedade infinita, as liberdades são encorajadas pela deterioração de todas as leis e de todos o padrões arcaicos. Prefiro a luz, não necessariamente a luz da razão. O logos, este saber dos gregos confundido com ciência, explica o que a mitologia deixou de explicar, mas não preenche todo o saber. Permanece o espaço da não razão, que nem sempre é treva. A ciência não nos colocou no lugar mais calmo e justo, isso já sabemos. O medo de que algo inevitável está para acontecer atormenta nosso sono. Do mesmo jeito que atormentava o dos povos antigos, ao pressentirem o exército inimigo sitiando suas muralhas. Qual a diferença entre as bolas de fogo arremessadas das máquinas de guerra medievais e o fogo de uma bomba atômica? Ou o terror de um meteorito se aproximando da Terra? A morte está no fim de tudo, não importa a intensidade da explosão.
MARIA LUÍSA FALCÃO
No filme Sonhos, do japonês Akira Kurosawa, alguns soldados se perdem na tempestade de neve quando procuram um forte. Amarram-se uns aos outros para não se extraviarem. Cuidam em não dormir. Mas a fadiga e o sono são irresistíveis. O comandante deita e sonha com a morte. Ela vem buscá-lo, sedutora e bela. O comandante acorda e grita para seus homens. Tateiam há dias, dão voltas sem nunca acharem o fortim que os acolherá, salvando suas vidas. Por fim, escutam um toque de corneta bem próximo. Sempre estiveram há alguns passos da salvação, mas, no escuro, nada divisavam. Nunca existirá uma porta, afirmou Jorge Luis Borges ao escrever sobre labirintos. Pior que afirmar não
Quando desejamos conhecer algo, nós o trazemos para a luz. A luz da ciência, a luz da razão. Luz e escuridão se alternam existirem portas é dizer que estamos sós, ligados numa rede de comunicação, que não nos coloca em contato verdadeiro com ninguém. Dura metáfora. Dura muralha de pedra. Como responder à pergunta dos personagens de Tchekhov – o que fazer? – se a resposta é sempre: não sei. Convencer-se de que o mais
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importante é transformar a vida e que o resto é inútil. Mas, transformar que vidas? Todas, conclui, Tchekhov: ... na bagunça da vida cotidiana, na confusão de toda a miuçalha de que são tecidas as relações humanas, o forte impedir o fraco de viver já não é uma lei, mas uma contradição, pois tanto o forte como o fraco tombam vítimas de suas relações mútuas, submetendose involuntariamente a alguma força diretriz desconhecida, situada fora da vida, estranha ao homem. Dos fios de uma Rosa de Luxemburgo prisioneira, me aparece a crença de que o segredo não é outro senão a própria vida; de que a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo e que basta saber perscrutá-la.
JANIO SANTOS SOBRE REPRODUÇÃO
Leitura
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ROMANCE Um personagem controverso no centro da narrativa
Em O marechal de costas, José Luiz Passos cria ficção cujo protagonista é o segundo presidente do Brasil, Floriano Peixoto, em história que enlaça no enredo outros nordestinos e presidentes TEXTO Isabel Lustosa
Figura das mais controversas dos
primeiros anos da nossa República, seria difícil para qualquer historiador pensar em Floriano Peixoto como protagonista de um romance. Especialmente de um romance que mistura aspectos da História com a história íntima desse que, para muitos contemporâneos, foi considerado um ditador. E não um ditador como os ditadores modernos que, segundo alguns depoimentos eram, no trato pessoal, amáveis, sedutores, vivendo em ambientes luxuosos, cercados por artistas e belas mulheres. Mas um ditador prosaico, pai de numerosa família, que morava no subúrbio, vinha para o Itamaraty de bonde e não tinha nada na aparência física que o distinguisse. Ao contrário, a acreditar-se na descrição que fez dele Lima Barreto em Triste fim de Policarpo Quaresma, a aparência do Marechal de Ferro “era vulgar e desoladora”, “o bigode caído e o lábio inferior pendente”, “os traços flácidos e grosseiros”, “o olhar mortiço, redondo e pobre de expressões”. Finalmente, arremata o escritor: “tudo nele era gelatinoso, parecia não ter nervos”.
Na verdade, a descrição de Lima Barreto era a de quem não via o novo regime com bons olhos e, especialmente, aquele governante, que passaria à história como o consolidador da República, cognome que se devia justamente à dureza com que reprimiu os adversários. Mas o presidente, homem maduro, castigado pelas tantas doenças que trouxera da Guerra do Paraguai, era bem diverso do jovem que protagoniza as primeiras partes de O marechal de costas, romance de José Luiz Passos. Este é rapaz sadio, forte e de corpo trabalhado pelos exercícios e as lutas marciais; exímio esgrimista; excelente atirador; bom desenhista e de aparência relativamente agradável. Apesar de tipo físico característico do caboclo brasileiro e que lhe valera alguns apelidos, apesar da estatura mediana, a presença de Floriano sempre impôs certo respeito. Respeito que impunha talvez pela placidez quase indiferente com que realizava seus feitos militares, sem alardes, pois tinha horror a qualquer exagero; talvez pelo seu jeito de homem
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desconfiado, de olhos sempre baixos, de pouca conversa, econômico no uso das palavras que usava apenas nos momentos certos. Talvez ainda pela coragem e pelo talento estratégico com que comandara suas tropas no Paraguai; talvez pela violência com que punia os preguiçosos e recalcitrantes. Talvez, ainda mesmo, já na presidência, pela forma implacável com que puniu os adversários, fossem eles de que estatura fossem ou pela soma de todos esses atributos que fizeram dele um líder tão popular e amado por uns, quanto detestado por outros. O personagem que emerge da narrativa ficcional de José Luiz Passos respeita as contradições da imagem pública com que ele passou à história e, a partir dela e dos recursos estéticos do escritor, apresenta um novo Floriano.
O ROMANCE
A primeira imagem que se guarda da leitura do livro de José Luiz Passos tem um clima de cinema italiano da escola de Frederico Fellini. É a cena em que o rapaz aparece vestido de forma ridícula, numa fantasia que,
FERNANDA FIAMONCINI/DIVULGAÇÃO
1 JOSÉ LUIZ PASSOS O autor respeitou as contradições da imagem pública de Floriano Peixoto
Leitura 1
pela descrição, faz lembrar as roupas com que as antigas gravuras italianas apresentavam o Pinóquio. É a figura melancólica de um moço de calças no joelho, com um chapéu alto na cabeça e uns sapatos de saltos de madeira que lhe dão um ar desengonçado, entrando em cena, trazido pela mão do preceptor. Era uma apresentação teatral que marcaria o final de seu curso na Escola Militar, e o preceptor de Floriano, ao qual ele se manteria ligado por toda a vida, fazia ali o papel de Napoleão Bonaparte. Ofuscado pelo jogo de sombra e luz do palco e intimidado pela plateia, o rapaz que se mostrara tão talentoso para as artes plásticas, a ponto de ter pintado o pano de boca e os cenários do palco, não consegue sequer balbuciar o texto que decorara. A essa imagem que parece emergir de um sonho ou de um pesadelo se somam outras tantas situações que nos apresentam Floriano como um rapaz sonhador, silencioso e isolado, movido a fantasias eróticas. Um Floriano tão obcecado pelas partes íntimas femininas,
Em paralelo à história de Floriano Peixoto, há uma outra narrativa que tem como protagonista uma cozinheira que “desenhava em cadernetas diferentes tipos de vagina. Via no Corcovado e na Serra dos Órgãos formas e volumes de mulher. Até mesmo a boca em couro na bainha do sabre lhe lembrava a coisa”. Um Floriano que, na mocidade, “visitava semanalmente bordéis no Centro”, no Rio de Janeiro. Um Floriano que alimentava um desejo sensual pela prima-irmã que crescera ao lado dele, bem mais nova, e que ele desposaria depois que voltasse da Guerra do Paraguai. Guerra em que um Floriano, metido em orgias imaginárias, mistura as imagens da noiva Josina com a de Rosaura, a mulher uruguaia que se dava a toda a tropa na ausência do marido.
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A construção desse Floriano fictício também se faz a partir de outros personagens que com ele se confundem ou se alternam na narrativa. O fascínio por Napoleão Bonaparte, cuja biografia lhe inspirava e cujo ideário lhe servia de modelo vinha do tempo da Escola Militar, se consolidara na leitura de obras sobre o imperador dos franceses e se afirmara também na identidade com o militar que Floriano queria ser e que procuraria imitar. Dessas leituras, constatara que o triunfo de Napoleão se deveu “menos às suas medidas tomadas durante os combates e mais a um grande talento para a organização das tropas e o perfeito arranjo da marchada”. Espirito técnico e frio que Floriano mimetizaria em suas ações militares e políticas. Na narrativa, trechos de falas, de estratégia de campanha e mesmo de concepções estéticas de Bonaparte se confundem com a fala do próprio protagonista. Difícil às vezes separar um do outro. Bem poderia ser do desconfiado e silencioso Floriano o trecho em que Napoleão diz que não pretendia escrever suas memórias pois não se inclinava às confissões como Rousseau, já que elas não dariam conta de explicar seu lugar no mundo: “os eventos causados pelas minhas ações, sim. Ao atuar, altero meu povo, modifico-lhe a história, porque a gênese do passado está no presente, não o contrário”. Dizem que Floriano também admirava Solano Lopez e que, diante da bravura e do destemor do paraguaio, teria dito: “de um homem desses é que o Brasil precisa”. O general implacável que executava os desertores era também um estrategista. A informação de que o ataque ao Brasil fora preparado minuciosamente por Lopez com dois anos de antecedência contribuiu certamente para infundir em Floriano ainda mais respeito pelo inimigo. Também Dom Pedro II, figura que na historiografia é quase o oposto de Floriano, comparece aqui com
INDICAÇÕES elementos inspiradores. No imperador, é a simplicidade que lhe chama a atenção: “a longa casaca de fazenda inglesa, de um negro aceso e denso que reluz no sol da tardinha” e sobre a qual não brilha nenhuma insígnia, nenhuma joia. Floriano nunca se preocupou com a própria aparência e se vestia com modéstia, até mesmo com desleixo. Talvez também o aproximasse do Imperador a infância de meninos malamados, criados sem mãe. Circunstância que jogou seu papel no destino desses dois brasileiros que governaram o país. Se Floriano foi um dos que derrubaram o imperador do trono, sentiu profundamente o impacto da morte desse homem que vira em Uruguaiana, saudando as tropas brasileiras.
PODER E LUGAR DA FALA
Uma narrativa corre paralela à vida romanceada de Floriano. Ela transcorre nos nossos dias e tem como protagonista uma cozinheira, nascida na mesma cidade onde nascera Floriano, Ipioca, em Alagoas. Como tantos migrantes, acabou como empregada doméstica em um lar burguês do Bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. Personagem que mistura, em sua composição, elementos típicos da trajetória de muitas mulheres nordestinas, distingue-se, no entanto, por certa sofisticação de gosto e de conhecimentos que, se não a credenciaram para ofícios mais nobres, fazem com que mereça certo respeito e consideração por parte do patrão benevolente e de seus convidados. O momento é junho de 2013, e essa virada temporal da narrativa faz com que
movimentos acontecidos no final do século XIX, de certa forma, dialoguem com as circunstâncias do Brasil contemporâneo. Brasil governado por uma mulher, Dilma Rousseff, cujos pequenos deslizes ou declarações infelizes em discursos espontâneos seriam francamente explorados pela grande imprensa, ocupada em desconstruir a imagem da presidenta. Neste romance, Dilma, que, três anos depois seria deposta, fala de forma clara e honesta, em textos claros e límpidos, cheios de humanismo. Discursos que, pronunciados em meio à grande agitação que marcou o ano de 2013, ninguém quis ouvir. Ninguém prestou atenção. É interessante pensar como esses três governantes que José Luiz Passos reuniu de forma bastante feliz em seu romance tiveram na fala – ou ausência dela – um elemento fundamental em sua trajetória política. Se a voz fina de Dom Pedro II não é muito comentada pelos contemporâneos, deve ter sido um elemento inibidor em suas manifestações públicas. A fracassada estreia de Floriano no palco foi um indicador de que não estaria na palavra seu elemento de força. Dilma, reduzida ao silêncio pelos ataques que suas falas mereciam, tanto da imprensa quanto dos que batiam panelas para abafar o som de sua voz na TV, perdeu força e espaço político. Mas o silêncio de Floriano, associado a uma personalidade complexa que as páginas deste romance se propõem a decifrar, foi um elemento a mais a compor o enigmático marechal.
POESIA
REPORTAGEM
Linguaraz Editor
Edições Sesc/Ubu
MARIANA TABOSA A mulher-fósforo Em 47 poemas, Mariana Tabosa apresenta A mulher-fósforo, que oferta palavras de abandono, desejos, miudezas e impropérios, material de poesia. A autora conta que parte dos “cadernos-divã” para o primeiro livro. Ela nos diz que “O silêncio do abandono tem som (e é agudo)” e que “Esse não é um mundo que admite cafunés e utopias de quero-ser”.
EUCLIDES DA CUNHA Os sertões O hoje canônico título da literatura brasileira, Os sertões, foi resultado de um trabalho de campo de Euclides da Cunha, que saiu de São Paulo para reportar o que acontecia em Canudos. Nesta edição, destaque para a fortuna crítica, que traz 14 textos que comentam Os sertões desde o seu lançamento, em 1902, escritos por gente como Gilberto Freyre e Walnice Nogueira Galvão.
ARTES VISUAIS
TATIANA GENTILE E LAURA TAMIANA (ORGS.) Retrato: substantivo feminino Terreiros Produções
Trabalho de alta empatia, este projeto de documentação em fotografia e vídeo de mulheres que atuam em grupos de tradição em Pernambuco (cavalomarinho), Mina Gerais (reinado), São Paulo (batuque de umbigada) e Rio de Janeiro (jongo). Colocar em protagonismo as mulheres, não apenas como personagens, mas como agentes – já que elas manipularam os equipamentos de foto e vídeo – resulta de um entendimento diferenciado dos folguedos, muitos deles levados às ruas por homens.
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CINEMA
AMANDA MANSUR E PAULO CUNHA (ORGS.) A aventura do Baile perfumado: 20 anos depois Cepe Editora
Este trabalho faz importante registro das variadas etapas de produção de um filme. O livro é excelente ferramenta, ao reunir itens como o roteiro original, diário de filmagem e cronograma de produção. Há ótimas imagens.
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Claquete 1
MINORIAS Na briga por mais representatividade
Campanhas que pedem maior diversidade de gente e personagens não brancos no cinema ecoa na safra de filmes norte-americanos prevista para 2017 TEXTO Mariane Morisawa
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Com a chegada da temporada
de premiações, Hollywood volta a pensar em #OscarsSoWhite. Nos últimos dois anos, a hashtag criada por April Reign, do site BroadwayBlack.com, foi usada para criticar a falta de não brancos no prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. A repercussão foi tanta, que a presidente da Academia resolveu tomar medidas. Cheryl Boone Isaacs, mulher e negra numa organização que, em fevereiro do ano passado, era 91% branca e 76% do sexo masculino, anunciou a decisão de dobrar o número de representantes de minorias até 2020. Em junho, convidou 683 novos membros, um recorde, sendo 46% deles mulheres e 41% não brancos.
1 O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO O filme traz a história de escravo que liderou uma revolta no sul dos EUA no século XIX
protagonistas ou coprotagonistas não brancos. Entre os personagens com falas, 73,7% eram brancos. Mas 2016 terminou sendo um bom ano para as minorias no cinema norteamericano. Gil Robertson, presidente da Associação de Críticos de Cinema Afro-Americanos, fez um comunicado dizendo que foi um ano “excepcional” para negros no cinema. Começou com a aquisição recorde no Sundance Festival de O nascimento de uma nação, de Nate Parker, homônimo do clássico de D.W. Griffith, que revolucionou o cinema e elogiou a Ku Klux Klan. Parker escreveu, dirigiu, produziu e protagonizou o longametragem sobre Nat Turner, um escravo que virou pregador e liderou uma revolta nas fazendas do sul dos Estados Unidos no século XIX. Sua ideia foi destacar uma história pouco conhecida sobre a resistência dos escravos, mostrando que O nascimento de uma nação de Griffith tinha também um outro lado,
Estudo apontou que, em 2015, apenas 14 das 100 maiores bilheterias nos EUA tinham protagonistas não brancos Apesar dos esforços da Academia, a verdade é que o problema começa bem antes, na aprovação de projetos e produção de longas-metragens. Segundo o relatório de Diversidade em Hollywood, feito pelo Centro Ralph J. Bunche de Estudos AfroAmericanos da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), das 163 maiores bilheterias de 2014, apenas 12,9% tinham protagonistas de uma das minorias – negros, asiáticos, latinos ou nativo-americanos –, quando elas, somadas, representam 37,9% da população. Outro estudo, promovido pela Universidade do Sul da Califórnia (USC), chegou à conclusão de que, entre as 100 maiores bilheterias de 2015, apenas 14 tinham
apoiado no sofrimento dos homens e mulheres trazidos da África. Desde janeiro, quando foi comprado pela Fox Searchlight por uma quantia recorde, US$ 17,5 milhões (cerca de R$ 59 milhões), poucos dias depois do anúncio dos indicados do Oscar de 2016, a produção entrou na lista de possíveis premiados. Mas, em agosto, ressurgiu na imprensa a acusação de estupro contra o diretor e seu amigo Jean Celestin, que divide o crédito pelo argumento. Ambos foram julgados, com Parker sendo inocentado e Celestin, condenado, mas depois libertado. A resposta pouco convincente de Parker em relação ao caso acabou prejudicando a carreira do filme, que fez apenas US$ 15,8 milhões na bilheteria norte-americana.
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Outros filmes falam abertamente da experiência dos negros com o racismo nos Estados Unidos. É o caso de Fences (ainda sem estreia definida no Brasil), dirigido e protagonizado por Denzel Washington, baseado na peça de August Wilson, vencedora do Pulitzer e do Tony em 1987. Washington é Troy, um exjogador de beisebol que não conseguiu muito sucesso e luta para sustentar a família na Pittsburgh dos anos 1950. Viola Davis interpreta sua mulher, Rose. Loving, de Jeff Nichols, um dos diretores americanos mais interessantes da atualidade, inspira-se na história real de Richard (Joel Edgerton), branco, e Mildred (Ruth Negga), negra, que se apaixonam na década de 1950 e decidem se casar depois de ela engravidar. Como o casamento inter-racial é proibido no Estado da Virgínia, eles vão até Washington D.C. Ao voltar para sua cidade de origem, onde vivem suas famílias, os dois são presos e depois banidos de morar na Virgínia por 25 anos. Tempos mais tarde, ela escreve para o senador Robert Kennedy e recebe uma indicação à American Civil Liberties Union, que oferece um advogado para levar o caso ao tribunal. Nichols evita todos os clichês desse tipo de filme, mostrando Richard e Mildred como pessoas comuns, que não tinham interesse no ativismo, mas foram obrigadas a procurar seus direitos e, por isso, mudaram a história. Estrelas além do tempo, de Theodore Melfi, que tem lançamento previsto para este mês no Brasil, também é baseado em fatos. O filme foca em Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), três negras que eram “computadores humanos”, responsáveis pelos cálculos do programa espacial americano antes da chegada dos computadores-máquinas, no início da década de 1960. No estado da Virgínia, ainda estavam em vigor as leis Jim Crow de segregação racial, o que fazia com que tivessem de usar banheiros separados, por exemplo. Johnson, a única ainda viva, recebeu uma Medalha Presidencial da Liberdade, entregue por Barack Obama, em 2015. O próprio fato de essa história incomum de triunfo ser praticamente desconhecida é um atestado de racismo e falta de interesse pelas narrativas dos negros.
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2 MOONLIGHT O enredo foca na história de crescimento de um menino que sofre bullying
Claquete 2
HISTÓRIAS COMUNS
Por outro lado, uma das grandes sensações da temporada é Moonlight, de Barry Jenkins, que não se baseia em história real nem fala exatamente da luta contra o preconceito. O filme, escolhido o melhor do ano pela Associação de Críticos de Los Angeles, tem elenco totalmente negro, é baseado na peça de um negro e dirigido por um negro. É uma história de crescimento, como tantas já contadas no cinema, ao mesmo tempo universal e específica, sobre Little (Alex R. Hibbert), um menino que sofre bullying e é protegido pelo traficante Juan (Mahershala Ali). Sua mãe (Naomie Harris) é viciada em drogas. Na adolescência, chamado Chiron (Ashton Sanders), descobre sua homossexualidade. Na terceira parte, já adulto, agora apelidado Black (Trevante Rhodes), lida com suas escolhas. O longa-metragem atende a uma reivindicação expressa por boa parte das associações de minorias: histórias comuns sobre gente comum, estreladas por negros, latinos, asiáticos. “Na maioria das vezes, os filmes negros que concorrem ao Oscar são sobre pessoas como Martin Luther King Jr. ou Malcolm X ou Solomon Northup. Pessoas que, por qualquer medida, são exemplares”, disse Marc Bernardin, em artigo na revista The Hollywood Reporter, referindo-
Os latinos e os asiáticos têm ainda menos espaço que os negros em Hollywood e também começaram a se mobilizar se a produções como Selma – Uma luta pela igualdade, de Ava DuVernay, Malcolm X, de Spike Lee, e 12 Anos de escravidão, de Steve McQueen. Mais adiante, ele complementa: “Por outro lado, há filmes como Joy: o nome do sucesso, sobre uma mulher branca que inventou um negócio e ficou milionária”. Como ele bem apontou, ela não foi a primeira mulher a ficar milionária nos Estados Unidos. “Ou O quarto de Jack, sobre uma mulher branca e seu filho presos num quarto. Ou Nebraska, sobre um homem velho branco que gosta de perambular. Ou Blue Jasmine, sobre uma mulher branca rica que fica sem dinheiro”. Moonlight é um filme sobre as dores do crescimento. Little, ou Chiron, ou Black é negro e homossexual, mas o longametragem não é sobre isso, ainda que não ignore essas questões. Esses filmes todos são boas notícias e provam que ter mais negros em posições decisórias – como produtores, chefes
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de estúdio, diretores e nas agências de talentos – é fundamental para que suas narrativas cheguem à tela. Mas a verdade é que, apesar da justa reclamação dos últimos anos, a discrepância é menor para os atores negros em comparação com outras minorias. Eles receberam 10% das indicações desde 2000, sendo 13,3% da população americana. É pior no caso dos latinos – 3% de indicações para 17,6% da população – e asiáticos – 1% para 5,6% da população. Entre as 100 maiores bilheterias de 2015, apenas uma tinha protagonista ou coprotagonista latino, e quatro foram protagonizadas por mestiços. Nenhuma por asiáticos. É ainda pior porque as minorias, embora representem 37,9% da população, compraram 46% dos ingressos de cinema nos Estados Unidos em 2014 – só os latinos compram um quarto das entradas. No caso da maior bilheteria daquele ano, Transformers: a era da extinção, as minorias representaram 59% do público doméstico. Isso fez com que a atriz Gina Rodriguez, estrela da série Jane the Virgin, fizesse uma campanha nas redes sociais, chamada Movement Mondays, por mais papéis para latinos. Os americanos asiáticos também estão lutando por seu espaço. Fizeram uma campanha nas redes sociais contra as piadas com conteúdo preconceituoso em relação aos
INDICAÇÕES asiáticos de Chris Rock na cerimônia do Oscar de 2016, que destacou como muitas vezes o preconceito vem de outras minorias também. Depois, protestaram, com a hashtag #Whitesahedout, contra a escolha de Tilda Swinton e Scarlett Johansson em papéis de personagens asiáticos em Doutor Estranho e Ghost in the shell. Também colaram o rosto de John Cho e Constance Wu sobre a face de outros atores, indicando que eles poderiam ter feito filmes como Perdido em Marte ou Jurassic World.
MERCADO GLOBAL
Demorou, mas a constatação de que as minorias são fundamentais para a bilheteria parece começar a fazer diferença nas produções mais comerciais também – oito filmes com elenco composto por 41% a 50% de minorias arrecadaram US$ 122 milhões em 2014, contra US$ 52,6 milhões de 55 longas com menos de 10% do elenco de minorias. Esses filmes precisam, mais do que nunca, conquistar também o mercado global. Entre as maiores bilheterias de 2016, Capitão América: guerra civil, Mogli – O menino lobo, Esquadrão suicida e Doutor Estranho tinham não brancos como protagonistas. Sete homens e um destino era praticamente um filme de cotas, com um negro, brancos, um latino, um asiático e um nativo-americano juntando-se a três brancos. Rogue one: uma história Star Wars tem um latino (Diego Luna), um inglês descendente de paquistaneses (Riz Ahmed), dois chineses (Donnie Yen e Wen Jiang) e um negro (Forest Whitaker) no elenco principal. Quase nenhum desses fala exatamente da experiência dessas minorias nos Estados Unidos e estão mais voltados
para conquistar o mercado internacional, mas, sem dúvida, têm o importante papel de colocar na tela tipos diferentes de pessoas, com a possibilidade de empoderar jovens e crianças. Moana – Um mar de aventuras, a nova animação da Disney, que também estreia neste janeiro, abandonou as princesas loiras para dar lugar à futura líder de um povo da Polinésia, morena, de cabelos cacheados e corpo menos esquálido. A luta por mais representatividade das minorias no cinema, sem dúvida, ganhou força durante o governo de Barack Obama, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. O próprio Obama foi objeto de dois filmes, Michelle e Obama e Barry, que está no ar na Netflix. Deu destaque a peças de teatro fundamentais, como Hamilton, de Lin-Manuel Miranda. Na televisão, que tem um modo de produção mais ágil, hoje se veem várias séries com elenco totalmente negro, asiático e latino, ou com protagonistas negros, asiáticos e latinos. Durante seus oito anos no cargo, o tema da identidade tornou-se preponderante, causando uma reação que foi ao menos parcialmente responsável pela eleição de Donald Trump. Não dá ainda para saber como o novo governo vai influenciar as artes e o entretenimento. Será que teremos mais produtos culturais com o norte-americano branco de classe média que se sente excluído? Pode ser. Mas parece difícil ignorar que, em 2016, quase 38% da população é de minorias. E que, daqui a 24 anos, as minorias, somadas, vão se tornar a maioria.
TERROR
CINEBIOGRAFIA
Dirigido por Na Hong-jin Com Kwak Do-won, Hwang Jung-min Califórnia Filmes
Dirigido por Hugo Prata Com Andréa Horta, Gustavo Sampaio Paris Filmes
O LAMENTO
ELIS
Logo após a exibição dessa joia coreana no Festival de Cannes de 2016, começaram as comparações com Twin Peaks, o seriado criado por David Lynch. Com razão. O lamento se passa numa cidade minúscula onde, após a chegada de um visitante misterioso, iniciase uma série de assassinatos com aspectos ritualísticos. O diretor Na Hong-jin mistura, com habilidade, terror, suspense, cinema fantástico e melodrama sem perder o prumo da narrativa e a capacidade de assustar a plateia.
Elis Regina era um mito, um bicho, pura intensidade, arte e energia em estado bruto. Em seu primeiro filme, o diretor Hugo Prata tenta dar conta desse furacão, porém desliza em alguns momentos e falha, por exemplo, em oferecer ao público uma maior contextualização de momentos cruciais da vida dela. Embora fique a sensação de que a cinebiografia não faça jus a quem foi Elis, a interpretação de Andréa Horta, que se esmera no papel da Pimentinha, vale a pena.
FANTASIA
DRAMA
Dirigido por Tim Burton Com Eva Green, Asa Butterfield Warner Home Video
Dirigido por Marco Bellocchio Com Alberto Craco, Lidiya Liberman Fênix Filmes
O LAR DAS CRIANÇAS PECULIARES
Tim Burton é capaz de criar impressionantes paisagens em seus longas-metragens. Aqui, em mais uma adaptação literária, ele descortina um universo de fantasia extrema para Jake (Asa Butterfield), um adolescente que, ao investigar uma história que seu avô sempre lhe narrou, vai parar em um lugar que desafia as convenções de tempo e espaço e onde uma cuidadosa guardiã (Eva Green) protege crianças mais do que peculiares em meio ao caos da Segunda Guerra Mundial.
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SANGUE DO MEU SANGUE
O cineasta italiano Marco Bellocchio aborda dois dos temas que lhe são mais caros – religião e política – nessa narrativa que atravessa o tempo. No século XVII, na pequena Bobbio, um monge se envolve com Benedetta (Lidiya Liberman), freira acusada de estar possuída. Na atualidade, o mesmo convento onde ela foi encarcerada vira epicentro da disputa entre um oficial da lei e um morador supostamente desaparecido, mas que ainda habita o imaginário afetivo da cidade.
Cardápio
VEGANISMO Em vez do discurso, o bom prato à mesa
Cozinheiros e cozinheiras que fazem da alimentação um manifesto provam que, na culinária vegana, a delícia e o desejo também são possíveis TEXTO E FOTOS Lia Beltrão
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Nossa relação com a comida guarda
qualquer coisa misteriosa e potente. Algo que consegue fazer do ato mais corriqueiro da existência uma experiência do domínio do desejo, da sedução; algo capaz de transformar subsistência em maravilhosa frivolidade. Dio fece il cibo, il Diavolo i cuochi (Deus fez a comida, o Diabo, o cozinheiro), diz um velho ditado italiano. Facilmente, diante dela escolhemos não escolher e, bem mais, nos deixamos ser escolhidos, em uma mistura de volúpia e cegueira cômoda. As promessas
CUSCUZ TEMPERADO COM TOFU MEXIDO* INGREDIENTES
250 g de flocão pré-cozido de milho (fubá) 500 ml de água 1/2 colher de chá de sal 100 g de cenoura ralada 80 g de buquês de brócolis picadinho 80 g de cebola roxa picada 100 g de folhas de espinafre grosseiramente rasgadas 40 g de ervilha fresca Salsa picada a gosto * É possível encaixar uma variedade grande de vegetais nessa receita. Faça sua própria combinação. Dê preferência a vegetais e fubá orgânicos.
PREPARO
Hidratar o fubá com a água, misturando bem. Temperar com o sal e deixar descansar por 20 minutos. Juntar todos os vegetais crus e misturar. Numa cuscuzeira já preenchida com água, depositar a massa delicadamente, sem compactá-la. Tampar e cozinhar no vapor por 15 a 25 minutos ou até que esteja bem unido e fofinho. Desligar.
PARA O TOFU
200 g de tofu soft 1/2 colher de chá de missô claro 1 colher de chá de gengibre ralado Pimenta do reino a gosto 2 colheres de sopa de suco de limão uma pitada de curry ou zaatar um fio de azeite cebolinha picada para finalizar.
PREPARO
Numa tigelinha, misturar todos os temperos, dissolvendo bem o missô. Numa frigideira, colocar o fio de azeite e, quando quente, desfazer o tofu grosseiramente com as mãos e colocar para grelhar. Após alguns segundos, adicionar o tempero mexendo bem. Cozinhar por alguns minutos até que comece a grudar na panela. Finalizar com a cebolinha.
descritas nas embalagens dos produtos do supermercado, o frenesi de uma noite em um rodízio de pizza, a delícia de comer lentamente os cinco pratos da culinária francesa em um bom restaurante, com vinho e companhia boas, são situações em que facilmente (mas não necessariamente) abdicamos de ponderações sobre o que comer e o que não, e, simplesmente, mergulhamos no que se apresenta sem pensar. Mas há quem prove que, apesar dessa volúpia diabólica provocada pela comida – e talvez com sua própria ajuda,
escolhas conscientes são possíveis. Ter consciência sobre o que se come é jogar luz em nosso corpo e em cada coisa que ele está prestes a acolher; é puxar como um novelo de lã o fio de relações que sustentou aquilo que nos alimenta até que chegasse ao nosso prato. Isso parece, à primeira vista, um exercício romântico que nos leva da fatia de pão a bucólicos campos de trigo semeados por agricultores felizes. Mas, nos dias de hoje, essa não é uma tarefa muito fácil. Quando olhamos por esse ângulo, o ato de comer se complexifica
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em uma série de implicações nutricionais, ambientais e éticas e na descoberta inevitável de coisas que preferíamos ignorar. Talvez a mais gritante delas seja o sofrimento real de seres vivos, ou seja, a morte de animais não humanos alimentada em última instância por nossos desejos, ignorância, hábitos e tradições – não necessariamente nessa ordem. Quando o novelo de lã de relações se abre, a delícia do nosso encontro sensorial com a comida, a delícia do não planejado, a delícia de se deixar
Cardápio levar, parece, em um piscar de olhos, ser extinta por completo. Parece restar em nós apenas mal-estar.
COSTELLO E OS ANIMAIS
Esse mal-estar é descrito de forma um tanto perturbadora em As vidas dos animais (Cia das Letras), livro do Prêmio Nobel de Literatura J. M. Coetzee. Inspirado pelo convite que recebeu para participar das famosas Tanner Lectures na Universidade de Princeton, Coetzee, que é ativista dos direitos dos animais, escreve este livro no qual uma de suas personagens, a escritora Elizabeth Costello, viaja da Austrália aos Estados Unidos para proferir uma série de palestras na universidade em que, coincidentemente, seu filho é professor. Costello não falou em suas palestras sobre crítica literária, como era esperado pelo público. Os argumentos trazidos pela escritora, que assim como Coetzee é vegetariana, comparam o abuso de seres humanos contra os animais e a falta de empatia que sentimos por eles com o Holocausto – do qual todos sabiam, mas nada faziam – e geram um mal-estar na comunidade acadêmica bem como na casa de seu filho, onde está hospedada. Costello considera a dieta onívora uma redução dos animais à categoria de coisas e, sobretudo, um reflexo de que somos incapazes de reconhecer a simples “sensação de ser” dos animais, a alegria em estar vivo que todos nós seres vivos compartilharmos, e levar em conta isso antes de tirar-lhes a vida para nosso desnecessário desfrute. Em casa, a nora de Costello não faz questão de esconder que acha seus argumentos “inconsistentes e sentimentais”. Mas o que aconteceria se, em vez de apenas descrever a brutalidade a que chegamos em nossa relação com os animais, Elizabeth Costello resolvesse, em seu discurso, mostrar que é possível gerarmos empatia, compaixão por eles? Se ela fosse uma agente para que isso acontecesse, não de forma acusatória, mas amorosa? Se ela conseguisse mostrar que, além da cegueira cômoda e do mal-estar, existe uma outra via? Aliás, existe uma outra via?
SENSAÇÃO DE SER
Experiências em culinária vegana por aí afora estão provando que, sim, existe uma via que caminha em direção ao encontro amoroso com as pessoas e com os alimentos, escolhidos com cuidado desde sua origem e preparados com uma criatividade que, muitas vezes, só pode ser classificada como genial. No coração dessas experiências estão cozinheiros e cozinheiras veganos, pessoas que, por questões sociais, ambientais, éticas e/ou por compaixão, decidem não compactuar com a exploração animal e circunscrevem a sua cozinha ao reino vegetal. São quebradores de mito sobre sabor e sobre nutrição e, sobretudo, questionadores corajosos da eficiência do radicalismo. Talvez, se esses cozinheiros e cozinheiras pudessem dizer alguma coisa a Elizabeth Costello, seria: “Sabe, falar essas coisas todas é importante, mas, mais do que isso, reúne toda a
Cozinhas veganas preparando comida para não veganos parecem ser uma tendência no mercado gastronômico hoje humanidade que tu tens, Elizabeth, e oferece para tua família – teu filho, nora, netos e todos os amigos que eles quiserem trazer – e para teus colegas acadêmicos um belo risoto de limão siciliano com nozes, tomates recheados com creme de castanhas, e uma torta de cacau com um café temperado com cardamomo ou então um belo chá indiano. Apenas oferece. O resto vem por conta própria”. Essa filosofia da boa comida como porta de entrada para reflexões e escolhas lúcidas sobre o que comemos é o que move o que hoje é considerado por muitos como o melhor restaurante de comida vegana do Recife – que, curiosamente, não é vegano –, o Papaya Verde. A história por trás da transição muito bem-sucedida de um bufê com inspiração árabe e poucas opções vegetarianas para os atuais 70% de pratos veganos no menu diário começa com um encontro casual de João Asfora,
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BOLINHO DE TAPIOCA COM PIMENTA DOCE 1 l de leite de coco forte 1 l de água ½ kg de tapioca granulada 1 coco seco ralado 2 pitadas generosas de sal 4 colheres de sopa bem cheias de cebola desidratada 2 colheres de sopa bem cheias de alho desidratado
PREPARO
Ferva o leite com a água, e os temperos todos. Quando estiver fervendo e borbulhando, retire do fogo e adicione a tapioca e o coco. Mexa vigorosamente até a tapioca engrossar e ficar mole. Derrame em uma assadeira retangular untada com um pouco de óleo. Leva à geladeira de um dia para o outro. Corte em quadradinhos ou retângulos e frite em óleo bem quente até dourar. Escorra os bolinhos em papel absorvente. Sirva com uma mistura de pimenta sriracha e mel de engenho ou use uma geleia de pimenta já pronta.
um dos sócios do Papaya, com um famoso e impactante documentário pró-veganismo chamado Terráqueos. Depois de um choro compulsivo por se dar conta do que ele descreve, com as mesmas palavras da nossa Elizabeth Costello, como um “holocausto animal”, e tentar deixar o restaurante, João é convencido pelo sócio a permanecer no Papaya. Decide então começar uma militância pró-veganismo ali mesmo, o que resulta na “veganização”, como ele chama, do cardápio. O resultado é um menu com todo tipo de delícias veganas, que vão muito além da velha proteína de soja e do tofu temperado com shoyo. Um dos favoritos de João é o bolinho de tapioca com pimenta doce, cuja base são ingredientes locais – a tapioca e o coco – preparados de forma nunca antes imaginada e ainda por cima servido com um molho doce de pimenta sriracha. A delícia do encontro com os sentidos parece bem viva aqui. Cozinhas veganas preparando comida para não veganos, como a do Papaya, parecem ser uma tendência. Alguns restaurantes e chefs preferem falar inclusive em culinária vegetal, e não mais em culinária vegana (já
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Cardápio que o veganismo é uma filosofia que transcende a alimentação e inclui todo tipo de restrição à exploração e crueldade animal, como o uso de roupas de couro, produtos desenvolvidos a partir de experimentos em animais etc.). Um rótulo que celebra o próprio reino ao qual essa cozinha pertence: o reino vegetal e sua imensidão, não apenas de legumes, frutas e verduras, mas de sementes, nozes, cerais, grãos, raízes, temperos, flores, algas, fungos e tudo enfim que possa ser considerado colheita. Quando deixamos os animais fora da mesa, um mundo novo e muito, muito mais colorido, se abre para nós. Compare, por exemplo, a paleta de cores de um café da manhã onívoro com a de um café da manhã vegano. Claro, na mesa da tradicional família brasileira, haverá frutas. Mas, como substituir com cores os habituais e monocromáticos cuscuz, pão, queijo, ovo e talvez um desbotado peito de peru? Se nos permitimos seguir as dicas de café da manhã de Fabrisa Silva, chef de cozinha e dona da Frutteto, empresa de alimentação vegana com base no Recife, a nossa paleta de cores matinal vai aumentar exponencialmente. Aqui, a culinária vegetal faz jus ao nome: em vez de um cuscuz homogeneamente amarelo, adicione à massa úmida as cores do brócolis e espinafre picadinho, da cenoura ralada, de ervilha fresca, de cebola roxa e salsa. Para acompanhar essa maravilha colorida fumegante, tofu mexido na frigideira, temperado com missô, gengibre, suco de limão, curry ou zaatar (tempero árabe), um fio de azeite e cebolinha para finalizar.
PLANTAS
O reino vegetal traz suas cores, mas também uma boa dose de desafio para quem o adentra. “A primeira experiência marcante – e inesquecível – que tive foi a de conseguir fazer bolos maravilhosos, como o Bolo Marielba, sem ovos, substituindo-os por sucos, linhaça ou simplesmente água. Portas da percepção se abriram e a bruxa alquimista em mim ressurgiu.” Essa é a fala de Rafaela Valença sobre suas primeiras alquimias veganas, dentro da cozinha da Avena,
o negócio delivery que ela fundou em Olinda em sua própria casa – uma produção artesanal tecida a partir de uma rede de fornecedores de agricultura familiar orgânica e comerciantes locais. “A Avena foi minha carta de amor ao mundo, minha microrrevolução.” Capitaneando há oito anos, no Bairro da Liberdade, em São Paulo, o seu Broto de Primavera, o chef André Cantú define o que faz com palavras parecidas com as de Rafaela: “Sou um cozinhador de plantas e o que faço é uma cozinha amorosa”. Para ele, “a maneira mais rápida de chegar no coração da pessoa é através da comida. É falar de compaixão através dela”. André classifica sua culinária – e a vegana em geral – como uma culinária
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imitativa, e este é um de seus recursos amorosos na cozinha. “A gente ainda vive de imitação, infelizmente. Umas são felizes, outras bem infames.” E pela descrição dada por ele da tradicional feijoada vegana, servida semanalmente, seus pratos imitativos estão mais para felizes, muito felizes. “Na feijoada, a berinjela, crocante por fora e macia por dentro, faz uma alusão anedótica ao toucinho, e a soja, apesar de usarmos bem menos do que antes, bem frita e temperada, oferece a proteína para quem está em período de transição.” Para acompanhar, arroz-cateto integral e uma farofa “rica em legumes bem picadinhos, que, quando você come, chega a arrepiar”, além das tradicionais couve e laranja. Tudo como manda o
BOLO MARIELBA INGREDIENTES
3 xícaras de cenoura ralada 2 xícaras de trigo integral 1 xícara de açúcar mascavo Noz moscada e canela Uma pitada de sal ½ xícara de óleo 2 xícaras de suco de laranja 1 colher de sopa de fermento químico 1 colher de chá de bicarbonato de sódio Tâmaras picadas
PREPARO
Misture a cenoura, o açúcar, o óleo, o suco de laranja e os temperos. Acrescente aos poucos a farinha até que a massa fique homogênea e adicione o fermento e o bicarbonato. Mexa apenas um pouco e despeje a massa em uma forma untada. Cubra a massa com tâmaras e leve ao forno pré-aquecido por cerca de 50 minutos (temperatura média).
figurino. Por último, mas não menos importante, uma caipirinha feita com rapadura, limão, pimenta dedo de moça, gengibre e gelo. Em um bairro residencial de Porto Alegre, funciona o Vê, o primeiro restaurante 100% vegano em sistema de bufê da cidade. Sua fundadora, Maria Julia Rosa, insiste em dizer que o cardápio é simples, que “a culinária vegana é uma culinária simples”. Mas, na cozinha, sabemos, o simples pode se tornar extraordinário, a depender do jeito que se prepara. E, ali, a média de 180 pessoas por dia (tendo chegado ao pico de 300) confirma o primor da preparação. No cardápio, risoto de açafrão com banana e gengibre, hambúrguer de amêndoas com
A cozinha vegetal é composta não apenas de legumes, frutas e verduras, mas de tudo que possa ser considerado colheita tomate seco, almôndegas de lentilha com menta, lasanha com moranga, omelete de grão-de-bico. Entre as sobremesas, sagu de chia com molho de amêndoas, paçoquita vegana e outras delícias delicadamente montadas em porções individuais. Informar à sua grande clientela que, na maioria, não é vegana, sobre
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veganismo e suas razões éticas, ambientais, sociais, não é a intenção de Julia, que adotou a dieta vegana depois de entrar em contato com o conceito de não violência, ou ahimsa, enquanto lia a autobiografia de Mahatma Gandhi. “Eu não me senti acusada de fazer nada errado, quando li o livro do Gandhi e decidi me tornar vegana. Então, não quero que as pessoas se sintam assim. Para muitos dos clientes, simplesmente vir a um lugar no qual não vão encontrar carne já é ofensivo. Percebi que a abordagem mais suave costuma ter um efeito mais positivo. Se eu ficar falando, é possível que espante um público que está se abrindo para uma ideia.” Em uma das paredes centrais do Vê, uma bela imagem mostra uma criança abraçada a vacas, galinhas, girafas, elefantes e outros animais não humanos. Os braços do menino se estendem até conseguir abarcar todo mundo e ninguém ficar de fora. Poderíamos ler ali a celebração da “sensação de ser”, como diz Costello em sua palestra, da alegria que todos nós, seres vivos, compartilhamos em estar simplesmente vivos. Mas nada disso precisa ser dito. Aqui, como na mesa de outras cozinhas do reino vegetal, a comida é a palavra. E a palavra é, deliciosamente, comida.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
SALVE FARINHA
Uma grande falha da cozinha
europeia foi não ter adotado a farinha de mandioca. Já pensou, a vida toda sem comer um pirão? Gosto de todo tipo. Pirão de cozido. De cozidos: de carne, de peixe, de bacalhau. Pirão mexido. Tanto feito com caldo de feijão mulatinho, feijão escaldado, como somente a água, um ovo dentro, boa dose de pimenta-do-reino moída. Ou farofa de bolão, farofa matuta, brim-branco: bota a água fervendo no prato fundo, cobre com farinha, deixa inchar um minutinho para escaldar a farinha, revolver com o garfo formando os bolões. Cai bem umas cebolinhas picadas, da comum ou da branca com talo verde também cortado. Dá bom, em vez da água, ou juntamente com a água se o molho do guisado não houver em quantidade suficiente, o molho puro fervente, caso não muito grosso, e a farinha jogada por cima. Há quem vá comendo a farofa aos poucos, misturando a farinha ao molho à medida que vai comendo com a carne, mantendo o resto coberto com a farinha, para não esfriar, a farinha
servindo de abafador. Agora me deu vontade comer um guisado de bode, ou galinha gorda, ou capão, ou perua, ou guiné, porco ou boi, ou os dois juntos como costumam fazer. E farofa matuta com linguiça sertaneja, recusar quem há de? E farinha de paneiro, pra comer com peixe na água grande? Deve haver mil jeitos de comer farinha, a começar pela farinha seca jogada na boca, com a colher ou a mão, acompanhando por exemplo torresmo ou camarão torrado, de preferência de rio, depois da cheia. Quando o Ipojuca era rio: hein, Breno? hein, Deda e Ilo? Aqui no Recife mesmo chegava muito camarão de cheia, daqueles bem vermelhos. Sem falar de pitu. Uma meninota que passou uns tempos lá em casa em Ipojuca, acho vindo de Camela, uma de cabelo assanhado, minha irmã Nena, a mais velha, deve se lembrar, gostava de comer farinha seca com pimenta malagueta verde, duas ou três a cada punhado de farinha que jogava na boca. Uma vez peguei um taxi em Peixinhos, motorista uma mulher,
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a primeira que vi no oficio aqui, faz muitos anos — em Nova York também peguei um táxi, quando fui à exposição de Picasso no Moma, julho de 1980, tomei um susto: a motorista era uma mulher de grande estatura jovem e belíssima, eu até pedi desculpas pensando ter feito algo errado, mas ela confirmou que era táxi e estava livre, eu segui mas ainda sem acreditar — a de Peixinhos bem despachada, assararazada, cabelo pixaim começando a embranquecer, pura simpatia, de vez em quando botava a mão num pacotinho aberto no tabelier e jogava um punhado de farinha seca na boca. Fiquei curioso. Ela notou, me mostrou a mão aberta. Perguntou: “Quer?” Era farinha seca com tanajura torrada. Aceitei. Minha mãe não deixava a gente se misturar com “aquela mundiça” por ruas e becos correndo atrás de tanajura e depois tinha medo de veneno que botavam nos formigueiros justamente dessa formiga saúva que virava tanajura. A da taxista era torrada na manteiga, o que dava à farinha uns toques amarelados.
REPRODUÇÃO
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Na casa de farinha do meu avô paterno Joaquim Pedro da Silva, vulgo Pedro Taveira, por ter morado muitos anos no sítio Taveira, no Cabo, dita casa de farinha no Engenho do Meio, Ipojuca, pegado com o Penderama da família de José Paulo Cavalcanti Filho, Zé Paulinho, na casa de farinha, dizia eu, costumavam comer nas farinhadas farinha mole, quando não está perfeitamente assada, com bacalhau, ou outro peixe assado, bagre seco ou uma sardinha salgada que chamavam “rapariga de cambiteiro”. Não deixavam menino comer farinha mole: diziam que dava dor de barriga. Devia ser ruindade. Sempre gostei de comer manga com farinha seca, cortando a banda da manga e espremendo o amarelo úmido da polpa na cara da farinha no prato. Uma vez fiz isso na casa de Carybé, na Bahia, ele viu e disse: “Agora só vou fazer assim”. Vovô Pedro, além de comer manga com farinha, ainda comia as cascas. “Pra não fazer mal.” Também é bom banana machucada com farinha. Sertanejo come farinha com rapadura.
Segundo o amigo Toínho, sogro de minha neta Emília, a farinha de Cruzeiro do Sul, Acre, é a melhor do Brasil Farinha com mel de engenho é sem igual. Nem goiabada bate. Depende do mel: tenho visto muito mel por aí que nem vale a pena. No A Guerra do Fim do Mundo de Vargas Llosa ele diz que brasileiro costuma jogar farinha de mandioca por cima de qualquer comida, mais ou menos como fazem os andinos com farinha de milho. Por falar de peruano, outra lacuna da culinária europeia é a carne de charque, invenção dos incas. Companhia inseparável de feijão e farinha. Meu mestre Abelardo da Hora toda segunda-feira religiosamente comparecia à Travessa do Macedo, Mercado de São José, para escolher a charque que comia no feijão a semana toda. Até 90 anos a rotina era a mesma.
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1 CASA DE FARINHA odesto Brocos y M
Gomez (Santiago de Compostela, Espanha, 1852 - Rio de Janeiro, 1936, naturalizado brasileiro). Engenho de Mandioca, óleo sobre tela, 1892. Museu Nacional de Belas Artes
Minha mãe fazia um mingau de massa, meio insosso, ótimo para comer com peixe assado salgado, feito bacalhau, se não me engano comida de Semana Santa, ou era quando nos lembrávamos dele, como bredo ou feijão de coco e quibebe. Minha prima Olga disse até que ia me dar a receita desse mingau de massa de mandioca: se chegou a dar, não sei onde botei. E ainda não falei de tapioca nem de beijus! Continuo a gostar de tapioca apenas com coco ralado. Tá certo, façam tapioca de tudo que quiserem: pra mim, só com coco ralado. Beiju é capítulo à parte. De todas as grossuras, de todos os formatos, de todas as texturas, redondos ou quadrados, abertos ou enrolados, o mais fino de todos, chamado “cambraia”, em que minha mãe era exímia. Faltei falar de uma das obrasprimas da culinária brasileira tirada da mandioca: o tucupi. Tudo é genial: desde o tipiti, onde a massa se espreme a si própria sem força de braço, até o tacacá e o divino pato no tucupi.
IMAGENS: REPRODUÇÃO
Visuais
Além da história, a arte possui
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EXPOSIÇÃO Alguns episódios da Revolução de 1817
1 RINALDO SILVA Tela do artista traz os elementoschave do fato histórico
Doze artistas de Pernambuco mostram suas criações que representam o espírito insurgente vivido no estado há 200 anos
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também o seu poder de revisão em relação ao passado. Duzentos anos depois, 12 artistas de Pernambuco cumprem agora a tarefa de recontar os fatos da Revolução de 1817, um dos marcos do espírito insurgente do estado e do país à época do Brasil Colônia. Seja a pincel, a lápis, a carimbo, pintura, desenho, gravura, diferentes técnicas traduzem cada uma dessas perspectivas dos episódios históricos na exposição que entra em cartaz a partir do dia 11 deste mês na Arte Plural Galeria, no Bairro do Recife. Na mostra, há artistas como Jeims Duarte, cujo trabalho costuma ser animado por um espírito crítico em relação ao espaço urbano; instigado, sobretudo, por estabelecer um diálogo contemporâneo entre a cidade e a sua história. Um dos seus desenhos marcantes nesse sentido aborda a polêmica construção das torres gêmeas da Moura Dubeux, em área antiga do Recife, a partir de uma paródia – as torres são reprojetadas em formato de glande no topo. Agora, nesta exposição, ele faz referência ao local de reunião dos maçons, responsáveis por planejar o levante emancipacionista de 1817. “Na prática, reproduzi o prédio da antiga maçonaria que se encontra atualmente atrás da Habbib’s da Avenida Conde da Boa Vista, com uma indicação de reunião interna através de uma única janela iluminada. O edifício simboliza, assim, a Organização”, explica Jeims, sabendo que a Loja Maçônica Conciliação, à qual se refere, não foi o “real” lugar onde tudo se passou, mas o Areópago de Itambé, no interior pernambucano. “Desejei justamente ‘linkar’ com uma referência mais próxima das pessoas hoje. O processo se deu justamente nesta tensão entre um propósito didático e um propósito crítico”, justifica. “A ‘liberdade poética’ se mostra na forma ‘expressionista’ do retrato das esfinges, a indicar, basicamente, dúvidas em relação ao futuro, que são instadas a prever, e no cenário ao redor, indicativo de nossa época; ou seja, ligando as preocupações libertárias de 1817 às atuais. Há uma placa com a inscrição (cortada) onde se lê ‘PHORA’ (grafia antiga para“FORA” ). Sabemos
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2 JEIMS DUARTE Artista faz referência à reunião dos maçons em releitura crítica e atualizada
bem qual o personagem que tem sido convidado ultimamente a ‘dar o fora’.
CALENDÁRIO
As obras da coletiva foram feitas a partir de uma encomenda da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) para o seu calendário de 2017, comemorativo dos 200 anos da Revolução Pernambucana. Os originais desses trabalhos são justamente aqueles com os quais o público irá se deparar na galeria. Além de Jeims Duarte, estão na lista os artistas Helder Santos, Daaniel Araújo, Bruno Vilela, Beto Viana, Plínio Palhano, Jessica Martins, Roberto Ploeg, George Barbosa, Renato Valle, Gio Simões e Rinaldo Silva. Pernambucanos ou de outras origens, mas tendo carreira artística consolidada no Estado, eles foram convidados para fazer um “registro objetivo” dos episódios mais marcantes da Revolução de 1817. Cada um imprimiu a sua leitura sobre os acontecimentos de um povo com ideais libertários republicanos que não queria mais se submeter aos abusos da coroa portuguesa. Nesse arsenal de obras, há desde interpretações para a bênção da bandeira de Pernambuco, idealizada justamente em 1817 (mas oficializada quase 100 anos depois), a representações dos maracatus, que puderam desfilar
DAANIEL ARAÚJO 3 Pintura alude ao momento em que os revolucionários chegam ao Forte do Brum
4 RENATO VALLE Desenho a carvão retrata o suicídio do padre revolucionário João Ribeiro
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livremente nas ruas, à época, pela primeira vez. Há ainda registros de episódios trágicos, como o suicídio do padre João Ribeiro, pelas mãos do exímio desenhista Renato Valle, e o fuzilamento do padre Roma, no início da revolução, por Gio Simões, artista conhecida por desenhar mulheres, às vezes com uma pegada mais pop. Como
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se sabe, os padres tiveram protagonismo nesta e em outras revoluções. Ao reunir em sua pintura elementoschave de 1817, é Rinaldo Silva quem resume o espírito que animou não apenas aquele momento, mas permaneceu entre os pernambucanos, mesmo com o massacre dos líderes da revolução em praça pública.
CON TI NEN TE
Criaturas Frank Miller por Rodrigo Gafa
O quadrinista Frank Miller chega aos 60 anos neste mês. Celebrado por uma legião de fãs, foi o responsável, na década de 1970, por resgatar a trajetória do Demolidor – O Homem Sem Medo. Mas foi com o clássico Batman: O Cavaleiro das Trevas que demonstrou todo seu potencial, construindo um roteiro que trazia o super-herói anos depois de sua aposentadoria, numa clima sombrio e ameaçador, num diálogo com os romances policiais noir.
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www.cultura.pe.gov.br/funcultura
Em Pernambuco, o incentivo à cultura vai muito além dos aplausos.
F U N C U LT U R A
O Funcultura é, hoje, o terceiro maior fundo estadual de incentivo à cultura do Brasil. E está se modernizando para apoiar ainda mais artistas e produtores culturais pernambucanos. Uma das novidades para 2017 é o lançamento de três editais: o geral, o do audiovisual e o da música. A informatização dos processos vai agilizar a distribuição dos recursos. Serão R$ 36 milhões destinados a projetos culturais nas mais diversas áreas, visando sempre democratizar a produção e o acesso à cultura no estado. É assim que a gente valoriza e mostra, para o mundo inteiro, todo o talento de Pernambuco.
2003 – R$ 3 milhões 2016 – R$ 35 milhões 2017 – R$ 36 milhões
100 ANOS
# 193
#193
AS TRANSFORMAÇÕES DO GÊNERO QUE É A CARA DO BRASIL
ano XVII • jan/17 • R$ 13,00
CONTINENTE
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www.revistacontinente.com.br
O olhar simbólico de doze artistas sobre a Revolução de 1817 Jeims Duarte • Helder Santos • Daaniel Araújo • Bruno Vilela • Beto Viana • Plínio Palhano Jéssica Martins • Gio Simões • Roberto Ploeg • George Barbosa • Renato Valle • Rinaldo Silva
Exposição: 10 de janeiro a 10 de fevereiro de 2017 ESPECIAL
g a l e r i a
JAN 17
arteplural
SEXUALIDADE NA ERA VIRTUAL E MAIS: JOSÉ LUIZ PASSOS | CABOCLINHOS | JÚLIA HANSEN | VEGANISMO