Continente #194 - Nova Europa

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# 194

#194

SITUAÇÃO ATUAL DO CONTINENTE É ANALISADA POR AUTOR INÉDITO NO BRASIL, CAMILLE DE TOLEDO

EUROPA ano XVII • fev/17 • R$ 13,00

CONTINENTE

17 por 12

www.revistacontinente.com.br

O olhar simbólico de doze artistas sobre a Revolução de 1817 Jeims Duarte • Helder Santos • Daaniel Araújo • Bruno Vilela • Beto Viana • Plínio Palhano Jéssica Martins • Gio Simões • Roberto Ploeg • George Barbosa • Renato Valle • Rinaldo Silva

FREVO

DANÇA E MÚSICA O ANO INTEIRO

Exposição: 10 de janeiro a 10 de fevereiro de 2017

g a l e r i a

FEV 17

arteplural

E MAIS

RODOLFO MESQUITA FRANÇOIS DOSSE WALÉRIA AMÉRICO NICOLAS KLOTZ




Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

janeiro e fevereiro

Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco

2017

Abrindo a programação musical do Ouvindo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco), os meses de janeiro e fevereiro trazem nomes que vão do blues a nova MPB.

AVA ROCHA 21/01 • SÁBADO• 17h

CLAYTON BARROS 28/01 • SÁBADO• 17h

ABEOKUTA 11/02 • SÁBADO• 17h

BIRDLEGG 18/02 • SÁBADO• 17h

LUCAS DOS PRAZERES 04/02 • SÁBADO• 17h

04/02 • SÁBADO • 15h OFICINA “VIVA PERCUSSÃO (O DESPERTAR DA PIRÂMIDE RÍTMICA)” COM LUCAS DOS PRAZERES

PATROCÍNIO

PRODUÇÃO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

APOIO

Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sáb e dom 14h as 17h

REALIZAÇÃO

SECRETARIA DE CULTURA

MINISTÉRIO DA CULTURA


FEVEREIRO 2017

FOTO: PHIL JOURN/DIVULGAÇÃO

aos leitores O homem da foto acima chama-se Camille de Toledo. Além do registro de nascimento francês e do passaporte europeu, ele possui uma série de outros predicados: origem turco-judaica, cidadão radicado em Berlim, artista, cientista político, historiador, escritor… Diz também que acontece de pensar com frequência que é “uma árvore, uma planta, ou uma mulher, ou qualquer coisa que esteja a meio caminho entre várias espécies, várias línguas, várias culturas”. Quando perguntado sobre qual diagnóstico faz da Europa atualmente, responde que é preciso considerar dois conceitos distintos de Europa, afora as distorções das práticas políticas e econômicas dos últimos tempos. É profunda a análise de Camille de Toledo sobre o continente europeu, que, segundo ele, reflete, ainda se coloca como uma extensão do século XX, na qual permanecem governos e instituições em sua forma de pensar e agir. Em entrevista exclusiva à Continente, concedida à jornalista Olívia Mindêlo, o autor, inédito no Brasil, dá uma aula sobre aquela porção

do mapa-múndi historicamente híbrida, mas igualmente turbulenta. Em sua fala, que ocupa 14 páginas desta edição, ele analisa problemas atuais como as políticas fronteiriças, os imigrantes, o Brexit, a crise na Grécia, a União Europeia etc. E, particularmente, as consequências da mudança de uma “Europa aberta” para uma “Europa fortaleza”. Cita ainda a necessidade de transformações vindas do combate em ruas, praças, dos artistas e dos próprios políticos, pois se “as velhas redes” continuarem se defendendo “contra essas transformações, então o estado de guerra não será outra coisa que não reforçado”. Ainda nesta edição, a repórter Luciana Veras aborda o novo projeto do cineasta Nicolas Klotz, que filmou, em 2016, a vida em Calais, ex-campo de refugiados e imigrantes que desejavam atravessar da França à Inglaterra via Canal da Mancha. Segundo conta, seu documentário nasceu como alternativa aos discursos das agências de notícia internacionais e demais redes midiáticas, dizendo estar ele cansado da imagem fantasma dos imigrantes.


sumário Portfólio

Waléria Américo

6 Colaboradores

64

7 Cartas

72 Cardápio

8 Entrevista

+ Continente Online + Expediente

François Dosse Teórico francês aponta que a sociedade contemporânea vive uma crise de historicidade

20 Balaio

Mãe e filha Documentário mostra a amizade entre Debbie Reynolds e Carrie Fisher

36 Conexão

Bolha virtual Em vez de expandir o horizonte, a web tem criado uma visão de mundo para seus usuários

Matéria Corrida José Cláudio Nariz entupido

Ingredientes Chefs estão cada vez mais atentos à origem dos insumos com que trabalham

O corpo dentro da obra, a relação com o espaço e com a cidade e a reflexão sobre o estatuto da imagem são conceitos essenciais para entender a obra da artista cearense

14

80 Leitura

Infantil A chegada da Morte para um brincante idoso é o tema do terceiro livro de Habib Zahra, O dia em que a morte sambou

86 Entremez

Ronaldo Correia de Brito Eita vida besta, meu deus!

88 Criaturas

Andy Warhol Por Janio Santos

55 Palco

Hamlet Grupo Magiluth prepara montagem do clássico de Shakespeare

Inédito

Rodolfo Mesquita A Cepe Editora publica primeiro livro sobre a vida e a obra do artista pernambucano falecido em fevereiro de 2016

58 CAPA ILUSTRAÇÃO Mauricio Planel

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Capa

Especial

O pensador francês Camille de Toledo dá sua primeira entrevista no Brasil falando sobre os desafios do continente na atualidade

Músicos e dançarinos lutam para que o gênero seja uma atividade artística e esportiva perene todo o ano, e não apenas ligado ao Carnaval

Sonoras

Claquete

Documentários sobre o rock ganham cada vez mais espaço no cinema, conquistando tanto o público quanto a crítica

Dupla de realizadores franceses acompanha a existência e o desmonte do maior campo de imigrantes e refugiados da França, o Calais Jungle

Europa

22

Rockumentary

66

Frevo

40

Documentário

76

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Fev’ 17


colaboradores

João Lima

Marina Suassuna

Maurício Planel

Valéria Vicente

Ator e coreógrafo pernambucano, radicado em Barcelona

Jornalista, com especialização em Estudos Cinematográficos

Estudou Bela Artes no Uruguay. Atualmente, mora no Rio de Janeiro, trabalhando como ilustrador

Passista e artista da dança. Professora da UFPB e pesquisadora do Acervo Recordança

E MAIS Alcione Ferreira, fotógrafa. Carlos Montenegro, gerente de Tecnologia no Porto Digital. Carmen Mendonça, tradutora e professora de francês. Eduardo Sena, jornalista com foco em gastronomia. Mateus Araújo, jornalista, mestrando em Artes Cênicas na Unesp. Yellow, designer, músico, mestre em Ciências da Linguagem.

FREVO O ANO INTEIRO

NOVA EUROPA

Estará disponível, no nosso site, o documentário Sete corações (2014), sobre os maestros de frevo Duda, Nunes (falecido em 2016), José Menezes (morto em 2013), Guedes Peixoto, Ademir Araújo, Clóvis Pereira e Edson Rodrigues. Antigo sonho de Spok, autor do argumento, o filme é dirigido por Déa Ferraz e tem roteiro de Gabriel Mascaro e Eric Laurence. Além disso, estará disponível uma entrevista com o passista Ferreirinha e a Continente Documento nº 54, de fevereiro de 2007, que traz uma edição comemorativa dos 100 anos do frevo.

Assista ao vídeo da exposição Europa/Eutopia , do francês Camille de Toledo e leia trecho original do seu ensaio Le hêtre et le bouleau : essai sur la tristesse européenne.

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SONORAS Assita a The last waltz, dirigido por Martin Scorsese, que marca o último show da The Band, grupo que acompanhou Bob Dylan em sua conturbada fase elétrica.


cartas

EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO ANDRÉ NERY

GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe

CARDÁPIO

SEXUALIDADE

Achei fantástica a abordagem da reportagem Sangue: alerta vermelho para o ingrediente. Com delicadeza, o repórter explora muito além da técnica e dos pormenores do “polêmico” uso de sangue como ingrediente na gastronomia. A matéria se insere na episteme dessa prática, nas raízes sociais e antropológicas do uso desse insumo animal na culinária. Como sempre, ao falar sobre gastronomia, a revista abre horizontes por apresentar novos ângulos ao tratar do tema.

Agradeço a oportunidade de contribuir com a Continente (entrevista na edição 193). Apreciei muito a qualidade crítica e a fidedignidade da escrita. Gosto imenso da revista.

LARA XIMENES OLINDA – PE

SAMBA Recebi hoje o exemplar da Continente, com a matéria sobre o samba, que se destacou no exemplar. Parabéns! Muito boa pesquisa e fluente redação. ALBERTO IKEDA RECIFE – PE

MARINA PINHEIRO RECIFE – PE

DAS REDES E o ano já começou com mais um texto publicado (artigo, edição 193), dessa vez em uma revista que admiro desde os tempos de faculdade. LÍLIA SIMÕES RECIFE – PE

SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Eduardo Montenegro, Erika Muniz e Marina Moura (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br

Acabo de receber a @revcontinente e o @suplementope – ainda não li, mas já fiquei impressionado pela qualidade e beleza de ambos.

MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br

N.R.I.Q @_HENRIHQ ITABIRITO – MG

ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201

ERRATA O nome da poeta Júlia de Carvalho Hansen foi grafado de forma equivocada no sumário (página 4) da edição no193 (janeiro/2017).

Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se

compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, redes sociais e correio. As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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FRANÇOIS DOSSE

“Passamos por uma crise de historicidade”

Historiador francês comenta que a sociedade atual sofre de “comemoracionite” aguda, uma forma de enfermidade que a levaria ao risco da compulsão da repetição, decorrente de uma noção de ausência de futuro TEXTO Luciana Veras

CON TI NEN TE

Entrevista

François Dosse é um historiador

francês, reconhecido como um dos filósofos que mais se lançaram a pesquisar o estruturalismo. Professor de Teoria da História e Historiografia do IUFM – Instituto de Formação de Mestres de Versalhes, Dosse é referência, também, no estudo de dois dos mais importantes filósofos franceses do século XX – Michel de Certeau (1925–1986) e Paul Ricoeur (1913–2005). Os dois não poderiam ter trajetórias mais distintas: Certeau, poliglota e ligado ao catolicismo, veio diversas vezes ao Brasil entre 1966 e 1978, onde aprofundou os preceitos que mais defendia no estudo e na prática da História – a escuta do outro a partir da alteridade; ouvir o outro por entender que ele se constitui pela palavra. Já Ricoeur, protestante, fez com A memória, a história, o esquecimento (Unicamp, 2008) um tratado sobre

o “dever de memória”, que parte do Holocausto para ratificar a necessidade de não esquecer e assim evitar que a história, em especial no que se refere a suas piores atrocidades, não se repita. Em comum entre Ricoeur e Certeau está François Dosse, autor de diversos livros, alguns deles já publicados no Brasil, como A história à prova do tempo – Da história em migalhas ao resgate do sentido (Unesp, 2001) e O desafio biográfico – Escrever uma vida (Edusp, 2009). Após tomar para si a tarefa de biografar Certeau, Dosse resolveu radiografar Ricoeur; o resultado é o livro a ser publicado em maio pela Liber Arts, editora acadêmica paulistana voltada para as Humanidades. Ainda sem título, o volume trará uma perspectiva diferente da produção intelectual de Paul Ricoeur. Certamente, não será uma

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hagiografia, pois Dosse compreende que resgatar a existência de alguém, quem quer que seja, é um “desafio que nunca terá uma resposta definitiva”. “O que conta no trabalho biográfico não é o sujeito biografado, mas a relação entre o sujeito biografado e o biógrafo, e essa relação é singular e particular. Segundo as perguntas colocadas, os modos de narrativa são diferentes, mas a empatia, ah, ela é sempre necessária. Não podemos fazer uma biografia sem empatia, porém, empatia não quer dizer simpatia”, alerta. Dosse conversou com a Continente, quando esteve no Recife em agosto de 2016, justamente para falar sobre Ricoeur em perspectiva às mudanças que atravessaram o século das grandes guerras mundiais. Sobre o cotejamento entre empatia e simpatia, e no tocante ao seu próprio exercício de pesquisador biógrafo


PAULO ANDRADE/DIVULGAÇÃO

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conjuntura: aquilo que chamo de crise de historicidade e que se caracteriza, com efeito, naquilo que eu descreveria como uma “comemoracionite” aguda. É uma forma de enfermidade senil ou, para retomar um termo freudiano, o risco da compulsão da repetição. Uma simples nostalgia por parte de uma sociedade que, não tendo mais futuro, volta-se apenas para o passado – já que não há projeto no horizonte, não tem como reciclar-se e passa a se repetir, como um idoso que não tem mais futuro e que só

que é preciso distinguir história e memória, mas que, ao mesmo tempo, não mais podemos dissociálas, e, sim, pensá-las conjuntamente, inclusive no plano das descobertas históricas, da ciência histórica que é tributária das memórias coletivas. Aí penso na memória da Guerra da Argélia, na memória de Vichy e em todo trabalho que mostra que houve fases de resistência, por exemplo, no período de Charles de Gaulle, que houve focos que se opuseram à política de colaboração a Vichy, e

REPRODUÇÃO

de filósofos que ele admira, foi claro: “Escrever uma biografia é um trabalho imenso de transporte, de transferência afetiva e intelectual, de arquivo e investigação. Acredito que seria um pouco masoquista escolher alguém com quem você antipatiza. Em geral, tomamos figuras das quais nos sentimos mais próximas, com quem tenhamos uma relação intelectual mais interessante. Porém, é como disse: empatia não é simpatia. E o grande exemplo disso é que a melhor

“Michel de Certeau mostra que podemos ter uma relação crítica com a memória, que pode ser concebida como fonte e recurso de criatividade, como portadora de um futuro” CON TI NEN TE

Entrevista biografia do monstro que foi Adolf Hitler é o livro de Ian Kercheau, que fez um enorme trabalho, uma biografia magnífica, mas que definitivamente nunca morreu de simpatia pelo seu personagem”. CONTINENTE Michel de Certeau diz que a história é o que é vivido; a historiografia é o que se narra, o que se escreve. Como tal, é uma escrita sujeita a lacunas, a ideologias e à política. Hoje, vive-se um tempo de excesso de informações, uma espécie de memória saturada – na mente, nos celulares, nos arquivos de computadores cheios. Como viver, experienciar e escrever a história em tempos de hipermemória? FRANÇOIS DOSSE Você toca num ponto fundamental de nossa

pode falar de sua infância e de sua juventude transcorridas com uma certa nostalgia. Mas é preciso ver também a importância memorial atual ligada ao fato de que houve o que chamo de “humanização de ciências humanas”, uma consideração maior da experiência vivida dos indivíduos. A passagem dos grandes conceitos fundadores à interrogação desses mesmos conceitos a partir da experiência humana propriamente dita. Logo, uma consideração da memória dos indivíduos, da memória dos grupos e do componente essencial da história, como bem demonstrou Pierre Nora no seu livro Lugares de memória. Nesses sete extensos volumes, Nora mostra

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como essa lenda de que não houve resistência foi sendo desconstruída pelos historiadores para melhor entender o sentido desse período. Quanto a isso, Michel de Certeau é extremamente importante. Ele mostra que podemos ter uma relação crítica com a memória, que pode ser concebida como fonte e recurso de criatividade, como portadora de um futuro, que se possa fazer dela um germe para construção futura. Por outro lado, ele mostra que a operação historiográfica resulta de um lugar, de uma prática social, de uma escrita pessoal do historiador. Não há uma história que seria uma espécie de julgamento divino. O historiador está implicado nas questões sociais,


sendo ele mesmo marcado pelo seu próprio público, por seu próprio repertório. É preciso recolocar em situação que a produção histórica escrita nunca é o reflexo direto da história realmente acontecida; ela é sempre mediada pelo historiador.

CONTINENTE Paul Ricoeur, no seu livro clássico A memória, a história, o esquecimento, escreve que “o lugar do esquecimento no campo que é comum à memória e à história deriva da evocação que

JULIEN BRYAN/REPRODUÇÃO

CONTINENTE Quem escreve a história são os vencedores. Como produzir um contradiscurso ou uma espécie de novo discurso na voz dos vencidos? A narração é guardiã do tempo, sem narração não se faz história. Há espaço para contranarrativas?

gênero. Uma revista de historiadoras francesas propõe novas maneiras de escrever a história do ponto de vista das mulheres. Podemos dizer que tem acontecido a mesma coisa no que tange aos operários, aos imigrantes e a todos os povos que são efetivamente marginalizados.

que é “lembrem-se, lembrem-se”, Ricoeur, sendo protestante, só pode estar no domínio desse dever de não esquecer os humilhados, os homens feridos. Ao mesmo tempo, ele considera, antes do dever de memória, e para que as memórias não se encerrem no ensimesmamento, a necessidade do avanço de uma noção dinâmica, tomada emprestada a Freud, do trabalho de memória. Uma noção assimilável a esse trabalho de elaboração de que fala Freud, que é essa apropriação da perda do

“A história é, de fato, escrita pelos vencedores. Porém, sob os vencedores, há os vencidos, que em geral mantêm o fio de sua memória coletiva. Às vezes, por via oral, ou por vozes escritas”

FRANÇOIS DOSSE Sim, sim, e cada vez mais. Isso está ligado à questão da memória e do enriquecimento, mas não apenas pela memória, mas pelas memórias. Você tem razão quando diz que a história é, de fato, escrita pelos vencedores. Porém, sob os vencedores, há os vencidos, que em geral mantêm o fio de sua memória coletiva. Às vezes por via oral, ou por vozes escritas que permaneceram subterrâneas. O que estamos vivendo hoje é cada vez mais uma tomada em conta dos mudos, dos vencidos, das pessoas que não tinham poder; as histórias das massas, das mulheres. As mulheres são um bom exemplo de vencidos que, hoje, são cada vez mais reconhecidos com os estudos de

é feita do dever da memória. Este pode ser igualmente expresso como um dever de não esquecer”. Partindo do trabalho de Ricoeur com as memórias da dor dos países que passaram por ditaduras na América Latina, podemos pensar que existe, na historiografia atual, o dever de não esquecer essas grandes dores que a história oficial ajudou a cimentar? FRANÇOIS DOSSE Aí existem duas noções: aquela do dever de memória e uma outra que é colocada por Ricoeur também, que é a noção do trabalho de memória. Alguns acusaram-no de abandonar o dever de memória. Disseram que ele sugerira esquecer o Holocausto, o que é completamente falso. Visto que ele, aliás, lembra um trecho do Deuteronômio em A memória, a história, oesquecimento

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objeto amado, dos próximos que desaparecem, mas não de maneira mortífera ou repetitiva. Apropriarse deles para relançar o futuro. O trabalho de memória deve ser portador de um futuro. Ele deve recriar uma dinâmica criativa e de vida de um passado mortífero, um passado traumático, e podemos utilizar a metáfora usada por Michel de Certeau – um passado como tumba para os mortos. Mas não um sentimento mortífero, e, sim, uma tumba no sentido de honrar os mortos, determinar-lhe seus lugares para que eles não venham assombrar o presente. A partir do momento em que lhes é atribuído um lugar, que eles são honrados,


em que eles assombram o presente, podemos abrir o presente do futuro. É um pouco a lógica do passado, presente e futuro que é atribuído à história por Michel de Certeau. CONTINENTE Certeau fala de uma inversão escriturária – a escrita da história começa pelo fim: uma vez que o problema acaba, você pode finalmente escrever. Tendo em vista os acontecimentos de 2016 no mundo – no Brasil, um impeachment; a crise dos refugiados, a avanço do terrorismo e ascensão de uma extrema direita na

até mesmo a maneira pela qual se escreve a história do passado. CONTINENTE Por quê? FRANÇOIS DOSSE Porque, confrontado-se com a indeterminação do presente, o historiador mostra o que havia de indeterminado no presente das sociedades passadas. E porque temos a tendência, quando conhecemos o fim de uma certa peripécia histórica, de cometer o erro de acreditar que as sociedades passadas também conheciam esse

Entrevista “O historiador do presente tem um problema em relação ao do passado, na medida em que ele não sabe como as coisas vão evoluir. Mas os historiadores nunca têm distância crítica”

DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

trabalho complicado de escrita. Não é verdade que haja uma distância completa do objeto; ele está integrado ao que descreve, ele participa das questões que se colocam em relação ao determinado objeto. Nunca é o passado que fala, é o historiador que fala do passado. Por sua vez, o historiador do tempo presente está confrontado com uma indeterminação daquilo que vai acontecer que ele não pode prever. Um exemplo que mostra bem a importância e a incapacidade dos historiadores vem justamente

França – como se narrará essa história do contemporâneo? Partindo do princípio que, em sua obra, você se descreve como “um historiador do tempo presente” e pensando, como o próprio Certeau disse, que não existe a epistemologia da distância. FRANÇOIS DOSSE Com efeito, o problema que você coloca é o problema maior da História, que é historiar o tempo presente. O historiador do presente tem um handicap, um problema em relação ao do passado, na medida em que ele não sabe como as coisas vão evoluir. Mas os historiadores nunca têm essa distância crítica, porque, apesar de ser um trabalho de objetivação, o lugar e a prática do historiador ocorrem concomitantemente a um

de um dos grandes franceses, Ernest Lavisse. Ele foi muito importante para a construção da história nacional dos manuais escolares, era uma instituição. Na época em que também era o maior especialista em história francesa, em que ele havia escrito os livros didáticos que as crianças do século XIX utilizavam para ler e escrever, perguntaram-lhe se ele achava que haveria uma guerra. O ano era 1914, repare. Ele respondeu que um historiador estaria muito malcolocado para predizer o futuro, mas que, se havia uma coisa da qual tinha certeza, e que podia garantir, é de que não haveria uma guerra. Com certeza, isso é uma deficiência, mas também é um trunfo e transformou

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futuro. Entre os historiadores, há uma tendência a encerrar os determinados períodos historiados em causas e definições muito míticas, num sentido teleológico; mas dentro de um continuum lógico e histórico, trata-se de uma lógica que é depois reconstruída. A contribuição da história do tempo presente é mostrar que em todos os períodos – seja uma atividade na Idade Média ou na época moderna –, quando examinamos as sociedades, elas estão em plena indeterminação do que seria seu futuro. Então, é preciso reencontrar essa indeterminação, desfatalizar a história. E, para isso, é preciso deslocar o olhar histórico. Antes, o historiador tinha como tarefa buscar


a psicanálise, e é aí que encontramos novamente Michel de Certeau: entre ciência e ficção, numa epistemologia mista que está entre os dois polos. CONTINENTE Nesse sentido, por que seguir estudando Certeau e Ricoeur, este último com sua filosofia dos desvios, ainda inacabada, em um mundo cambiante e repleto de incerteza? FRANÇOIS DOSSE É absolutamente essencial. São absolutamente essenciais, porque são pensadores que permitem abrir o futuro. Como

gera o termo inacabamento. Não há um sistema de pensamento encerrado; há sempre uma abertura para que as gerações futuras retomem o legado e possam reinterrogá-lo. Outra necessidade maior de Ricoeur e Certeau é referente à capacidade de ambos para reter e incentivar um pensamento transversal – não encerrar seus limites disciplinares e se abrir às contribuições da filosofia, das ciências humanas, das ciências exatas, da sociologia e assim avançar no saber e na capacidade de pensar

LOUIS MONIER

as causas e as razões; por exemplo, as causas da I Guerra de 1914, o conflito em terras imperialistas, a paz armada. Era só submeter à lógica das causas profundas e causas próximas e encerraríamos o evento, o acontecimento. Hoje em dia, com o crescimento de tudo, é preciso lembrar o que disse Certeau: o acontecimento é aquilo em que se torna, sobretudo para nós. Poderíamos perguntar-lhe hoje, por exemplo, a respeito de como ele faz o reencontro na relação história e memória, quando

“Paul Ricoeur diz que é preciso revisitar, no passado, não apenas a história dos vencidos, mas também revisitar aquilo que ele chama os possíveis não verificáveis do passado”

um acontecimento gera fortes traços na memória coletiva. Tomemos o exemplo de Joana D’Arc. Ela vem de longe, do passado, da Idade Média, mas é uma figura que ainda é muito utilizada. Foi imortalizada e instrumentalizada pelos republicanos, hoje é usada ora pela extrema direita, pelos católicos… Não estamos mais discutindo a história ou a vida de Joana D’Arc, e, sim, a utilização da figura dela até hoje, o que nos leva a perguntar: como vemos Joana na atualidade? Evidentemente, o dia de hoje não tem mais nada a ver com aquela época que ela conheceu, de modo que é como se fizéssemos uma telescopia do tempo. Isso nos remete a relações complexas entre a história e

disse, nós temos uma crise de futuro. Esses pensamentos são muito importantes, porque ajudam a criar um projeto coletivo, de sociedade, de emancipação, com valor universal. E esses dois pensadores são abertos a esse horizonte de espera, a essa postura criativa. Por outro lado, Ricoeur, por exemplo, diz que é preciso revisitar, no passado, não apenas a história dos vencidos, mas também revisitar aquilo que ele chama os possíveis não verificáveis do passado. Os possíveis que eram potenciais e que foram quebrados, despedaçados, rejeitados, e que podem ser fontes para repensar o futuro ou uma ideia de projeto coletivo de futuro. Logo, essa postura

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o mundo dentro de um abordagem transdisciplinar. Mesmo falando de um historiador, no caso de Certeau, e de um filósofo, como Ricoeur, ambos estão abertos a partir do momento em que são convocados a responder às questões do presente. O pensamento de ambos permanece muito atual. É imprescindível alimentar a ideia de valorizar o que chamo de pensamento dialógico, com a articulação de legados geracionais diferentes, e de pensar como uma civilização pode ser enriquecida por sua relação com a alteridade, com o outro. A alteridade transforma, melhora e abre o espírito – tanto Certeau como Ricoeur têm a certeza de que todos nós estamos nesse outro que nos transforma.


FOTO STILL - VICTOR DE MELO/DIVULGAÇÃO

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FOTOS: JOÃO CASTILHO/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Portfólio

Waléria Américo

TRAVESSIA, CORPO E AÇÃO TEXTO Luciana Veras

Se houvesse passado no vestibular para Biologia,

que prestou na década de 1990, talvez Waléria Américo fosse uma das mais proeminentes cientistas do Brasil, dado o modo minucioso com que concebe e elabora suas performances, instalações e jogos imagéticos. A jovem que um dia quis se tornar bióloga, porém, foi levada pelos fluxos da vida a percorrer um caminho menos exato, mas não menos instigante. E, com quase duas décadas de produção artística, saiu dezenas de vezes da sua Fortaleza natal para experimentar processos criativos em Lisboa, Belo Horizonte, Hamburgo, Rio de Janeiro, Buenos Aires ou Belém. É do signo do deslocamento que a artista visual cearense se alimenta, decerto porque o vislumbre da migração faz parte de sua constituição subjetiva desde sempre – os pais, comerciantes de Pedra Branca, sertão central do Ceará, partiram para “morar e viver na capital”. “Desde pequena, tenho esses projetos de vivência em trânsito. A travessia tem a ver com permanência em todos os lugares. Quando vou a uma cidade, não vou rápido; geralmente habito esse

lugar para que ele possa se desterritorializar, saindo da ideia fechada de que se trata de uma cidade com nome X ou Y. Isso me alimenta a aura”, explica Waléria. O mesmo se aplica às obras que imaginou na sua Fortaleza, a exemplo de Acima do nível do mar (2006). “É um muro na praia, como uma imagem que faz sentido no vídeo, mas também uma situação em que a performance possa existir na cidade naquele momento. A cidade não é um suporte, é um espaço vivo ao fundo”, condensa a artista. Em Des-limite (2007), vídeo que integrou Contraditório – 30º Panorama da Arte Brasileira, ficam evidentes algumas chaves para compreender sua trajetória artística: o corpo que se projeta para dentro da obra, a relação com a espacialidade e a reflexão acerca do estatuto da imagem. “Atravesso as janelas por fora, em um ato de desobediência, mas não falo de Waléria e, sim, de uma representação dos corpos possíveis. Assim como não se trata de um registro propriamente dito, porque não é cru. Há um pensamento imagético que me levará a criar o que

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STILL - JOSE CHAVES/DIVULGAÇÃO

Páginas anteriores 1 PERFORMANCE

cima do nível do A mar (2006) usa cidade não como suporte, mas como um elemento vivo

Nestas páginas 2 DOAR

Registro da imersão da artista no espaço urbano e entre pessoas em quem esbarra

CORPO EM CENA 3 Em Pendular, Waléria explora as representações de si própria no ato performativo

3

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FOTO STILL - ANA CAROLINA POVOAS/DIVULGAÇÃO

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WALERIA AMERICO/DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Portfólio

vai existir depois”, pontua a artista. Doar (2006) e Pendular (2014/2015) são obras que também espelham tal imbricação entre corpo e ação, performance e transmissão, a partir da noção de atravessamento. Na primeira, ela cruza uma faixa de pedestres em Belo Horizonte, munida de 80 balões vermelhos; na segunda, puxa um piano antigo por uma corda. “Não sei qual o resultado final, mas são situações que passam por uma construção. Em Doar, sou um corpo que se fragmenta na cidade. Era preciso ter uma câmera do alto e uma outra a me acompanhar para registrar uma ação que durou segundos. Logo me arrancaram os balões”, lembra. Pendular, exibido no 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_VideoBrasil e desdobrado também em Arrasto (2015), traz Waléria Américo sob esforço: numa superfície de relva, ela arrasta um piano: “O ato performativo passa pela convivência com os espaços. Quando vou para a frente da câmara, crio uma imagem para existir no presente, ancorada no corpo performativo”. Enquanto estudava Artes Visuais na primeira faculdade a oferecer o curso em Fortaleza, ela trabalhou como montadora nas exposições do Centro Dragão do Mar, o que ampliou sua consciência sobre a relevância das trocas criativas e sobre as camadas de força que revestem a obra quando nela mergulha, literalmente, de corpo e alma. Aos 37 anos, agora mestra em Arte Multimédia pela Universidade de Lisboa, Waléria Américo agradece os intercâmbios com artistas como Solon Ribeiro, Eduardo Frota e Alexandre Veras e curadores como Bitu Cassundé, Moacir dos Anjos e Ricardo Resende: “Conviver com os outros nos deixa mais vivos; as trocas nos fortalecem e potencializam nossas práticas”. E, tal como a emular a calmaria dos barcos empilhados de Paragem (2014) ou a amplitude de Plano de fuga nº 1 (2009), ela propõe um jogo de “interação e imersão”. “Gosto das coisas livres, sem amarras; as pessoas é que vão dar o tom de como se relacionarão com aquilo. Para encontrar a imagem, hoje transito por um tempo mais dilatado. Desacelerei”, observa a artista visual, atenta às setas descritas por Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas: “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.

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WANESSA MALTA/DIVULGAÇÃO

4 DES-LIMITE Vídeo integrou a seleção de Contraditório - 30º Panorama da Arte Brasileira, em 2007 PARAGEM 5 Obra evidencia a relação com a espacialidade, uma das chaves para compreender a trajetória de Waléria Américo

6 PLANO DE FUGA Nº 1 "Quando vou para a frente da câmara, crio uma imagem para existir no presente, ancorada no corpo perfomativo", diz a artista

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

PRINCESA LEIA SEM DESTINO

As estrelas nas estrelas No final de dezembro, duas mortes emocionaram o meio cinematográfico: Carrie Fisher, aos 60 anos, no dia 27, e sua mãe, Debbie Reynolds, aos 84 anos, exatamente no dia seguinte. As atrizes, estrelas de dois clássicos, respectivamente Guerra nas Estrelas (1977) e Cantando na chuva (1952), ao contrário dos conflitos escancarados no drama Lembranças de Hollywood (1990), com Shirley McCLaine e Meryl Streep como protagonistas, se tornaram grandes amigas. É o que exibe o belíssimo documentário Luzes brilhantes, que estreou na HBO no dia 9 de janeiro, com audiência de 1,6 milhão de espectadores. Os diretores Fisher Stevens e Alexis Bloom acompanharam o cotidiano das duas, que moravam em casas ladeadas e viviam se frequentando. O filme traz imagens caseiras antigas, em película de 16 milímetros e em perfeito estado, das brincadeiras e das festinhas infantis na residência, e mostrando Debbie, na época, namoradinha da América, muito à vontade no seu papel de esposa e mãe. A produção desvenda os bastidores dessa família de capa de revista que enfrentou uma rumorosa separação – o cantor Eddie Fisher, pai de Carrie, abandonou a mulher e os dois filhos para casar-se com a então recente viúva Elizabeth Taylor, amiga do casal. Em meio à perseguição da imprensa, Debbie estava sempre simpática e vaidosamente impecável. E foi assim até o fim. Como previu na autobiografia, Unsinkable: a memoir (2013), a única coisa a que não resistiria seria a morte de Carrie. DÉBORA NASCIMENTO

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A FRASE

Embora a atriz Carrie Fisher, morta em dezembro de 2016, tenha gravado todas as suas cenas do episódio VIII de Star Wars, o destino da eterna Princesa Leia parece incerto. Segundo informações do The Hollywood Reporter, o papel da filha de Anakin Skywalker (Darth Vader) não tem futuro, embora a personagem galática tenha (ou teria) dois momentos importantes na nova trilogia: um desses, o reencontro com seu irmão, Luke, e o confronto com seu filho, o sombrio Kylo Ren. Ainda não se sabe o enredo que selará o destino da princesa, se sua presença será reduzida no próximo longa ou se será recriada com os recursos do CGI futuramente. Até lá, que a Força esteja conosco. (Eduardo Montenegro)

Balaio UM TOM DE CINZA Ao tomar posse como prefeito de São Paulo, no início deste ano, João Dória anunciou a campanha Cidade Linda. O que muita gente não sabia era que, dentre as ações do governante estreante estava a destruição do trabalho de 200 artistas no que já era considerado o maior mural da América Latina – grafites distribuídos em 15 mil metros da Avenida 23 de Maio, que, inaugurados em fevereiro de 2015, ajudavam a colorir, embelezar e alegrar a cinzenta capital paulista. Na mesma semana da grande borracha por sobre a arte de rua, o Masp, talvez como resposta à autoritária iniciativa municipal, antecipou o anúncio de que abrigará, em 2018, a exposição de um dos mais renomados pintores do mundo, Basquiat, que era também grafiteiro. (DN)

“A pintura não serve para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo.” Pablo Picasso, sobre Guernica, pintada há 80 anos CONTINENTE FEVEREIRO 2017 | 20


ARQUIVO

ACERVO DESASTROSO Desde 1994, funciona, nos arredores de Boston, o curioso MOBA (The Museum of Bad Art). Com o slogan “Art too bad to be ignored”, a instituição reúne mais de 500 criações de qualidade claramente duvidosa. As peças são adquiridas em lojas de segunda mão, achadas no lixo ou doadas por colaboradores, entretanto, nem por isso deixam de passar por uma seleção. O atual curador do espaço, Michael Frank, contou, em entrevista ao jornal El País, que a primeira coisa que observa ao receber uma peça é a má aplicação da técnica escolhida, elementos exagerados e qual a mensagem que o artista quis transmitir. Segundo ele, a proposta é comemorar os fracassos dos artistas de uma forma saudável. (Mariana Oliveira)

A SENHORA DA REZA

O rei do pôster no MoMA Há 80 anos, 85 pôsteres produzidos pelo artista gráfico norte-americano Edward McKNight Kauffer (1890-1954) eram exibidos no Museum of Modern Art (MoMA), em Nova York. O “rei do pôster”, alcunha atribuída a ele, mudou-se para a capital inglesa em 1914, onde pretendia estudar pintura, mas, no ano seguinte, começou a ilustrar peças publicitárias do metrô de Londres e não parou mais: criou para marcas como Shell, Imperial Airways e os periódicos Financial Times e Daily Herald (o trabalho para este último, em 1918, foi considerado o primeiro cartaz cubista da Inglaterra). Kauffer relatou que sua vontade era ser “um pintor livre da hipocrisia social de pintar quadros vendáveis”, mas, por questões práticas, optou por dedicar sua “atenção à publicidade e desistir totalmente da pintura”. Se não pôde viver exclusivamente das telas e tintas, o designer conseguiu a façanha de alçar seus cartazes publicitários à categoria de arte. Por isso, é encarado como “um dos mais interessantes e significativos artistas do século XX”, nas palavras do escritor Aldous Huxley, em texto de apresentação da mostra. A parceria entre os dois, aliás, já vinha de antes, quando Kauffer concebeu as capas dos livros Contraponto (1928) e Admirável mundo novo (1932). Parte dos arquivos da exposição – que ficaria em cartaz entre 10 de fevereiro e 7 de março de 1937 – está disponível no site do MoMA, como parte do projeto contínuo de digitalização de todas as mostras, desde a abertura do museu, em 1929. MARINA MOURA

Muitos fãs de sagas, como Star Wars, Star Trek, Harry Potter, Game of Thrones, levam sua paixão por essas franquias ao extremo, como se fossem fervorosos devotos de alguma religião. No entanto, ainda não havia aparecido alguém que chegasse a tratar um boneco como um santo, até que uma postagem repercutiu essa informação. Uma usuária do Facebook em Florianópolis postou em seu perfil que a bisavó de sua filha estava rezando todo dia para Santo Antônio, mas, na realidade, era para o boneco de Elrond, de Senhor dos Anéis. Ela só não informou se a senhora, que não é seguidora de nenhuma dessas produções audiovisuais, teria algum problema de visão. Em meio à tanta fé, quem pode ter se beneficiado das orações é o ator Hugo Weaving, intérprete do personagem. Ele está em cartaz no drama Até o último homem, de Mel Gibson, indicado ao Oscar de Melhor Filme, e já está cotado para mais duas novas produções neste ano. (DN)

DOMÍNIO LIVRE As obras de Federico Garcia Lorca, Gertrude Stein (no retrato ao lado, feito por Picasso), André Breton, H G Wells e Mina Loy entram, este ano em domínio público, o que garante que as editoras podem reproduzi-las livremente, sem precisarem pagar ou pedir autorização. Em 2015, quando teve os direitos liberados, o clássico francês O pequeno príncipe, de SaintExupery ganhou várias reedições que atingiram recordes de vendas (quiçá de leituras). Nestes tempos sombrios de paredes cinzas, Trump e cia., imagina se essa história se repete e, a partir de agora, as produções desses artistas, outrora fundamentais no combate contra discursos fascistas, são reeditadas e se tornam sucesso nas livrarias de todo o mundo? (Erika Muniz)

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CAPA

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TRISTE EUROPA

Em entrevista exclusiva, o cientista político, escritor e artista francês Camille de Toledo reflete sobre o Velho Continente, suas memórias e seus ideais no mundo contemporâneo TEXTO Olívia Mindêlo

MAURICIO PLANEL

No início deste ano, a atriz Meryl

Streep proferiu um desses discursos de síntese de nossa era – ou talvez de todas elas. Em um dos trechos, dizia: “Quem somos nós? O que é Hollywood? É um grupo de gente que vem de todas as partes. Eu nasci, cresci e me eduquei em escolas públicas de Nova Jersey. Viola (Davis) nasceu numa cabana da Carolina do Sul e cresceu em Central Falls, Long Island. (…) Amy Adams nasceu na Itália e Natalie Portman, em Jerusalém. Onde estão suas certidões de nascimento? (…) Hollywood está cheia de estrangeiros e forasteiros, e se querem expulsar todos nós, vão ficar sem nada para ver além de futebol americano e artes marciais mistas, que NÃO são artes (…)”. A ocasião da fala deu-se durante a entrega do 74º Globo de Ouro em Los Angeles, no qual a artista recebeu homenagem pela carreira, mas não faria mal se tivesse acontecido nas ruas de Nova York, na posse de Trump ou em um evento em Paris, tendo entre os convidados o político de extrema-direita Jean-Marie Le Pen. E se fosse na sede da União Europeia, em Bruxelas? O francês Camille de Toledo, nascido de família turco-judaica-espanhola, e atualmente radicado em Berlim, não acharia uma má ideia. Historiador, cientista político, escritor, artista e, principalmente, um dos principais

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fomentadores do pensamento crítico da Europa contemporânea, ele é do time dos que defendem o que parece óbvio: somos o resultado de cruzamentos culturais, étnicos, religiosos, sociais, etc., e devemos nossa riqueza a isso. Segundo Camille, é preciso separar a “Europa criadora”, aquela dos refugiados, imigrantes, dos artistas, que “sabe que não há nada de ‘limpo’ na Europa, que não existe ‘essência europeia’”, daquela “instituída no Tratado de Roma, em 1957, e que se chama União Europeia: uma entidade político-tecnocrata que quis sair da história, proibir a guerra, a violência, e que se encontra, hoje, distorcida por um aumento de nacionalismos, de egoísmos de identidade”. Aos 40 anos, Camille já publicou diversos livros, sendo um dos mais conhecidos Le hêtre et le bouleau: essai sur la tristesse européenne (A faia e a bétula: ensaio sobre a tristeza europeia, Seuil, 2009). Também realizou dois projetos expositivos de arte contemporânea. Sua obra foi traduzida na Espanha, Itália, Alemanha, nos Estados Unidos, mas continua inédita no Brasil. A entrevista a seguir, concedida por e-mail, com exclusividade à Continente, é a primeira com ele publicada em nosso país. O que lemos a seguir é uma aula profunda sobre a Europa – e o mundo – nos dias atuais.


CON CAPA TI NEN TE CONTINENTE Qual o diagnóstico que poderia fazer da Europa, atualmente, um homem de origem judaico-espanhola, morando em Berlim? CAMILLE DE TOLEDO Você diz que eu sou um “homem”. Eu não estou tão certo disso assim. Me acontece com mais frequência de eu pensar que sou uma árvore, uma planta, ou uma mulher, ou qualquer coisa que esteja a meio caminho entre várias espécies, várias línguas, várias culturas. E essa entidade estranha que sou lhe dirá que é preciso sempre – quando se fala da coisa chamada “Europa” – distinguir dois mundos. Há a Europa dos poetas, dos pensadores, dos escritores, dos artistas, que é a que Jorge Luis Borges e (Stefan) Zweig compartilhavam, uma Europa que sempre repousou sobre o tríptico da migração, da tradução e da hibridação. Essa “Europa” é a que atravessa o tempo, que é compartilhada e que foi usada pelos poderes e pelas nações para dominar e conquistar o mundo asiático, o africano, e o sul-americano, mas que permanece sempre, de fato, como um contraponto, uma Europa criadora, menor, de exilados e de vencidos – aquela que eu chamo igualmente de Europa benjaminiana –, que deve sua riqueza a cruzamentos entre o mundo judeu, o muçulmano, e o cristão, entre os tempos pagãos e os tempos monoteístas. Essa Europa sabe que não há nada de “limpo” na Europa, que não existe “essência europeia”. Se observarmos a circulação de ideias, de textos que vão formar a “modernidade”, cairemos sempre no que eu chamo de “experiência vertiginosa”, a ideia de que não há origem, de que tudo nasce da mistura, do cruzamento, da superposição de vários scripts. Desse ponto de vista, o que ocorre atualmente é um enésimo desmoronamento, uma enésima regressão da Europa à sua obsessão essencialista. Falando, então, da outra “Europa”, que é a que conhecemos desde o Tratado de Roma, em 1957, e que se chama União Europeia: uma entidade político-tecnocrata que quis sair da história, proibir a guerra, a violência, e que se encontra, hoje, pirateada, distorcida por um aumento de nacionalismos, de egoísmos de identidade. Essa Europa que visa

a estabelecer um “mercado puro e perfeito” está cada vez mais derrotada e, logo, desconstruída – pelas crises de identidade da Hungria à França, à Dinamarca, à Polônia. É importante, o quanto antes, separar as duas Europas, para não se desesperar, para poder se apoiar sobre um alicerce de criações, de traduções, de hibridações, resistindo à definição essencialista, identitária, que ganha a União Europeia como havia ganhado, outrora, no século XV, a Espanha dos reis católicos e

“O projeto europeu tem, desde 1945, uma razão para ser melancólico. Ele se voltou para o passado que ele não quer reproduzir. Disso resulta o que eu chamo de uma ‘inércia memorial’, quer dizer, a maneira como a experiência do século XX é prolongada e conservada”

da Reconquista. É preciso, dessa forma, sem voltar a Toledo, aos significantes da tradução de Toledo, de Benjamin, lutar contra os retornos, as regressões do espaço europeu.

A tristeza europeia CONTINENTE Você diria que há, ainda, na Europa, um fantasma do pensamento do século XX, um pensamento velho? Nós poderíamos dizer que a “nova” Europa é, na realidade, a “velha” Europa? Por quê?

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CAMILLE DE TOLEDO A constituição não escrita, implícita, da União Europeia, é a memória. A expressão “Isto nunca mais”, nascida das duas guerras mundiais, fundou a razão da construção europeia. Todas as gerações de líderes políticos, de (Jean) Monnet e (Robert) Shuman à (François) Mitterrand e (Helmut) Kohl, se referiram a essa lógica memorial. Então, é lógico que a União Europeia, sob o plano éticopolítico, se constitui um projeto que depende da reativação de suas “memórias”. Estudei essa dimensão memorial da Europa em um ensaio, Le hêtre et le bouleau: essai sur la tristesse européenne (A faia e a bétula: ensaio sobre a tristeza europeia, sem tradução para o português), publicado em 2009, pelas edições Seuil. O que é preciso compreender é que essa constituição não escrita só pode recorrer à “razão memorial” desdobrando-se no tempo e no espaço das políticas da memória. O que isso significa é que o projeto europeu tem, desde 1945, uma razão para ser melancólico. De fato, ele se voltou para o passado, para um passado que ele não quer reproduzir. Disso resulta o que eu chamo de uma “inércia memorial”, quer dizer, a maneira como a experiência do século XX se prolonga, é prolongada e conservada além do tempo do esquecimento. É nesse sentido que podemos compreender e apreender, onde quer que seja, a identificação de “lugares de memória”. É uma especificidade do espaço europeu resultante do século XX. Por conta disso, se pensarmos em muitos grupos políticos, veremos claramente que nem todos se referem a um passado proscrito. Ao contrário, eles se referem, com mais frequência, a passados revolucionários que fundem o futuro, a independência ou a democracia; acontecimentos em que se “mata o tirano” para estabelecer um regime de liberdade. Na diferenciação desses mitos do que está por vir, a construção europeia possui apenas um mito da destruição, que a condena a se conjugar no passado. Eis porque podemos compreender que haja tantas “memórias” na Europa, e que ela não consiga mais pensar fortemente, participar do que está


DETALHE DA EXPOSIÇÃO EUROPA/EUTOPIA/CHTO/DIVULGAÇÃO

ÁRVORES 1 Camille de Toledo as utiliza numa metáfora sobre a tristeza europeia

por vir, ou seja, do futuro. Está aí sua fonte espectral, a presença nela de tantos fantasmas, a obsessão por sepulturas coletivas, por mortes. Esta não é uma “velha Europa”, é justo uma persistência da experiência do século XX que impede a Europa de ser contemporânea de seu tempo, um tempo que é difuso e complexo, descentrado e acumulativo, um tempo de mundos múltiplos que coabitam no presente e brigam, precisamente, pelo ritmo, pelo sentido do que está por vir. CONTINENTE Em seu ensaio sobre a tristeza europeia (Le hêtre et le bouleau), você trabalha com metáforas a partir das espécies de árvores – faia, bétula e banian. Não sei se pela dificuldade de tradução do francês, ou devido a essas árvores estarem longe da realidade geográfica e cultural do Brasil, mas me parece um pouco difícil compreender tais metáforas. Você poderia nos explicar qual o significado do seu pensamento, no que concerne a essas árvores, ao definir a tristeza europeia? CAMILLE DE TOLEDO Em A faia e a bétula (Le hêtre et le bouleau), meu ensaio sobre “a tristeza europeia”, eu modelei três “idades para a memória” a partir de três “árvores”. A “idade dos testemunhos” – de Primo Levi à Imre Kertesz – se materializa pela bétula, que é a árvore dos campos de concentração, das florestas da Polônia aos gulags da Rússia (sistema penal da ex-URSS para presos políticos, principalmente). A bétula é a árvore desse Leste Europeu, a árvore silenciosa que as testemunhas dos crimes do século XX viram, descreveram. Trata-se, neste caso, de pensar uma memória direta, dos que atravessaram a deportação. A segunda idade da memória, dos seres assombrados, a geração que vem depois dessa dos testemunhos, é h-abitada, h-assombrada pela história da deportação e do extermínio. A árvore que me faz pensar nesse estado de assombro é a faia (do fracês, le hêtre, justamente com “h”, letra à qual Camille associa as palavras habité,

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CON CAPA TI NEN TE ARMEND NIMANI/AFP

hanté – habitada, assombrada), uma árvore muito presente nas florestas europeias, que tendem a cobrir, a sufocar as outras espécies. É isso que pensa esse tempo das “faias”, uma idade em que a memória acaba por impedir o futuro e o presente, cobrindo o tempo. Corresponde a esse momento em que os diferentes estados-nações da Europa constroem “lugares de memória” para não se esquecerem do século XX. A terceira idade da memória, na Europa, é a “idade das memórias” pós-coloniais, que se chocam com o alicerce memorial do século XX europeu. Eu peguei a imagem da banian, uma árvore que é encontrada na Índia cujos galhos se prolongam na terra para se tornarem raízes. Essas memórias pós-coloniais são, de fato, as da população migrante, desalojada, cuja existência linguística e cultural se situa entre os scripts europeus (coloniais) e os scripts de seus países de origem, que têm que negociar permanentemente entre várias heranças. Eu falei dessas três árvores, a bétula (“idade das testemunhas”), a faia (“idade do assombro”) e o banian (“idade das memórias pós-coloniais, das migrações”) para dar uma forma àquilo que, na Europa, disputa as maneiras de habitar o presente.

Brexit, Grécia, refugiados CONTINENTE Nos últimos tempos, temos assistido a uma série de acontecimentos sintomáticos na Europa: o Brexit, a crise na Grécia, o problema dos refugiados, as políticas de fronteira, os ataques terroristas etc. Poderíamos dizer que esses são sintomas de uma mesma doença? Qual é a origem desses problemas? CAMILLE DE TOLEDO Não existe uma origem comum para todas essas crises que você mencionou, mas há uma fraqueza estrutural do projeto europeu que está ligada à falta de um espaço transnacional compartilhado, aceito. A Europa, além da memória do século XX, nunca encontrou um alicerce comum, uma “poética” que permitisse a conjunção das diferentes nacionalidades. Após a

“A Europa, além da memória do século XX, nunca encontrou um alicerce comum, uma ‘poética’ que permitisse a conjunção das diferentes nacionalidades. Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, a extensão da comunidade europeia, ao contrário disso, acentuou as forças centrífugas”

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queda do Muro de Berlim, em 1989, a extensão da comunidade europeia, ao contrário disso, acentuou as forças centrífugas. A “cidadania europeia” é unicamente um compromisso racional das sociedades nacionais, no mínimo, que aceitam alinhar seus mercados interiores na esperança de criar uma zona de prosperidade. Contudo, a prosperidade prometida pelo mercado único e pela moeda – o euro – nunca veio. Se bem que as promessas da União Europeia não foram realizadas. Na falta de um desejo de fazer comunidade para além das nações, a Europa se expõe, então, a cada crise. Cada dificuldade – econômica, internacional, social – coloca à prova um alicerce comum que faz falta. E, a cada vez, é isso que se passa. Você acaba tendo uma estrutura institucional que não tem legitimidade democrática suficiente para resistir às provações.

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O Brexit (abreviação que significa a saída – British exit – do Reino Unido da União Europeia) é alvo de uma dupla crítica: de direita – a retomada da soberania do Reino Unido – e de esquerda – o déficit democrático da Europa e de seus políticos neoliberais. A crise grega, por sua vez, provou que nenhuma alternativa de esquerda – um contramodelo de esquerda – seria possível no quadro da moeda única. O governo de (Aléxis) Tsípras teve de se curvar à lógica da dívida e aplicar os programas de liberalização que lhe foram impostos por Bruxelas. Por fim, o uso que é feito da crise dos refugiados pelas diferentes elites políticas, sobretudo dos partidos nacionalistas e populistas, conduziu a febres xenófobas e islamofóbicas em toda a Europa. Vemos, então, que, a cada vez que algo acontece, os eurófilos não têm mais argumento. Eles dizem que a Europa é a melhor


maneira de defender a economia europeia. Mas, de fato, a prosperidade não funcionou e os grandes tratados comerciais internacionais tendem a favorecer a economia norteamericana. Eles dizem que a Europa é a melhor maneira de acolher, em vários países, a onda de refugiados, mas, na verdade, eles não conseguem impor as quotas (de imigrantes). Eles dizem que (o Acordo de) Schengen é a melhor maneira de defender as fronteiras, mas, na verdade, eles fazem o jogo dos nacionalistas que não pedem outra coisa senão, justamente, que reconstruam as fronteiras e que se proíba a livre circulação dos cidadãos no espaço europeu. No lugar de atuar somente na construção econômica, teria sido preciso, de fato, não atuar somente na consolidação política, concebendo um modelo de cidadania transnacional, para ir além das nações. E isso não foi feito.

Fronteiras intransponíveis

2 REFUGIADOS A má condução da questão levou a febres xenófobas e islamofóbicas

CONTINENTE As fronteiras são uma questão polêmica na história do mundo moderno e, em particular, da Europa – em seu território e em outros lugares. Pensemos a respeito da criação dos mapas ou sobre os movimentos imperialistas, por exemplo. Parece que estamos diante de um paradoxo, pois a história nos mostrou que, de uma maneira geral, as fronteiras só causam violência, guerra, frustração e estados de miséria. Será que este seria um conceito obsoleto que as sociedades insistem em guardar, em preservar, mesmo com muitos problemas? Por quê? CAMILLE DE TOLEDO Foi em torno disso que trabalhamos em 2014, depois em 2015, em dois temas de exposições que refletiam sobre uma nova definição de Europa. Após a

queda do Muro de Berlim, houve uma crença persistente segundo a qual os “muros” iam cair uns após os outros. A ilusão era a de um sentido histórico que acenava para as sociedades abertas, sociedades sem fronteiras. Não somente a Europa, mas o mundo também foi levado por essa ilusão do desaparecimento das fronteiras. Uma visão puramente econômica do desenvolvimento histórico tendia a fazer da fronteira uma coisa anacrônica, fadada a se esvair. O que deveria desaparecer no horizonte comunista – o desaparecimento das fronteiras e a união de todos os povos – terminou por se reformular no horizonte neoliberal: o desaparecimento das

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CON CAPA TI NEN TE WILLIAM DANIELS/PANOS PICTURES FOR THE OPEN SOCIETY FOUNDATIONS

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alfândegas, das taxas e das barreiras que servem de obstáculo à livre circulação das pessoas e dos bens. Esse desaparecimento das fronteiras certamente não aconteceu. Ao contrário, assistimos, nos quatro cantos do mundo, às portas da Europa e, recentemente, de maneira mais surpreendente, no seio mesmo da União Europeia, a uma reconstrução geral acelerada das fronteiras. Muros são elevados nas fronteiras húngaras, gregas, romenas, ucranianas, espanholas. “A Europa fortaleza” sucede a uma “Europa aberta”. A incapacidade de pensar um espaço político em torno do tríptico da tradução, migração e hibridação; a falta de coragem das diferentes classes políticas europeias; os medos do outro, nascidos de narrativas culturais de oposição entre civilizações; os atentados em Madri, Londres, Paris, Bruxelas e, em seguida, as guerras às portas da Europa; as ondas de refugiados, toda essa aceleração da História, que marca os 15 primeiros anos do século, conduziu um retorno brutal

“O desaparecimento das fronteiras certamente não aconteceu. Ao contrário, assistimos, nos quatro cantos do mundo, às portas da Europa e, recentemente, de maneira mais surpreendente, no seio mesmo da União Europeia, a uma reconstrução geral acelerada das fronteiras”

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aos velhos reflexos estatais: fronteiras, identidades, rejeição das alteridades. Nas duas exposições nas quais trabalhamos, em 2014 e 2015, procuramos, ao contrário, repensar a ligação política de outra forma que não fosse sobre a base de um “nós” exclusivo. O projeto Secessão (2014), apresentado em Berlim, convocou artistas e escritores para refletir sobre uma Europa migrante, benjaminiana, e repensar o laço de cidadania a partir do paradigma da tradução. Em 2015, na exposição Europa/Eutopia, no centro de arte de Leipzig (leste da Alemanha), havia, igualmente, uma instalação que trabalhava essa ideia da migração, da passagem como o lugar mesmo do comum. É uma obra intelectual, material, coletiva, para repensar as nossas condições de vida no século XXI, um modo de vida livre da necessidade de se definir um limite para fundar um espaço comum, compartilhado. CONTINENTE Em entrevista a Valérie Deshoulières (revista Villa Europa, 2011, Universidade do Sarre, Alemanha), você


REUTERS

3 ISLAMISMO Religião cresce nas comunidades muçulmanas europeias 4 QUEDA DO MURO Fato histórico sugeria o fim das fronteiras

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afirma que a Europa deve escolher “entre uma encenação pré-fabricada de seu passado, de suas memórias (…) e um espaço de devaneios e revoluções (…), onde possamos viver, viver entre os mortos, jogando com eles, com a força e as aspirações que eles nos transmitiram”. Seriam esses conceitos ligados a uma distopia e a uma utopia, respectivamente? Poderia nos explicar isso utilizando, se possível, as metáforas da exposição Europa/Eutopia? CAMILLE DE TOLEDO A exposição Europa/Eutopia, que apresentei em 2015, no Centro de Arte Contemporânea de Leipzig, trabalhava sobre um conceito geral de migrance. “Migrância” dos elementos materiais com os quais eu formava o início de uma linguagem, de letras feitas a partir de pedaços de madeira recuperados nas florestas que se transformavam em formas animais. “Migrância” dos corpos, das silhuetas, que atravessavam uma floresta de bétulas cortadas. “Migrância” das memórias, a memória do século XX, a dos judeus exterminados na Europa, que se ligavam, na instalação, à realidade das “migrâncias” contemporâneas, aos refugiados da Síria, do Iraque, da África que atravessam as florestas europeias para ir em direção a uma vida melhor. “Migrância” das crianças, que podiam, na exposição, escalar as estruturas de madeira passando de um lado a outro da esperança, entre um “país” sinalizado por um neon onde se lia “Utopia” e outro onde se lia “Distopia”. Havia a migração da ideia mesmo de foyer (palavra que, em francês, significa espaço de entrada, mas também lar e lareira), com esse fogo apagado, abandonado como uma natureza morta diante do neon “Esperança”. O foyer é a base de nossas comunidades humanas, o caráter tribal de nossos coletivos. E, na exposição, o “fogo” do foyer estava apagado, e apontava em direção a uma concepção de um “foyer migrante”, um modo de habitar o mundo que não


CON CAPA TI NEN TE DENIS BALIBOUSE/REUTERS

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seja ligado a raízes, à identidade, mas, ao contrário, que possa ser pensado como um movimento permanente, uma “migrância”. Tratava-se de recolocar, no coração da Europa, esta noção de migração das almas, dos corpos, das ideias, dos espíritos, dos tempos, apontando em direção a uma transformação poética e política. É o que se vê quando olhamos as imagens da exposição, da instalação. Uma das questões centrais do meu trabalho, que é igualmente o ponto central dos escritos de alguém como Georges Didi-Huberman, é: como fazer dos “traços”, “memórias”, “passados” e “mortes” um espectro de vidas futuras, de nascimentos? Como fazer da melancolia uma força? Havia no chão da exposição, quantidades de folhas de outono, um dos elementos que tinha como título Left melancholy, a melancolia da esquerda, um termo que é empregado por Walter Benjamin para desdenhar do fracasso dos políticos de esquerda ao enfrentar o aumento dos fascismos. Essas folhas de outono, as crianças que visitavam a exposição podiam

brincar com elas, jogá-las para cima, rolar no meio delas. Eis o gesto que está no cerne do meu trabalho: como transformar um espaço melancólico – a Europa – em um novo lugar de experimentação social e política? Eu me interesso igualmente, então, pela reversibilidade da utopia e da distopia, quer dizer, pela maneira como, com um só jogo perspectivo, nós podemos passar de uma à outra, substituindo as crenças por outras crenças. É assim que nós nomeamos, no Les potentiels du temps (sem tradução para o português, livro de 2016 que ele escreveu junto aos teóricos da arte Aliocha Imhoff e Kantuta Quiros), a proposta potencial: uma maneira de escolher, com o espírito, com os olhos, com o corpo, muito mais o possível do que o comprimido. O que desejamos infinitamente é, obviamente falando sobre isso, uma plasticidade integral das formas. CONTINENTE Nesta mesma entrevista a Valérie Deshoulières, você fala muito sobre a questão dos judeus e do Holocausto, mas nós sabemos que houve e que há chacinas

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5 TERRORISMO Manifestação em Lausanne, Suíça, após o ataque a Paris, em 2015

INSTALAÇÃO 6 Em Europa/Eutopia, Camille de Toledo trabalha o conceito de migrance

iguais ou mais perversas do que o Holocausto na história da humanidade. Podemos citar a África ou a América Latina, onde várias populações foram e são exterminadas. Como um europeu de origem judaica, você não se sente em uma condição privilegiada, ou até mesmo hegemônica, para falar sobre os problemas com os quais trabalha? CAMILLE DE TOLEDO Não é necessário de forma alguma “essencializar” as memórias, as histórias; ao contrário, é preciso retomar os pontos em comum das mortes. As mortes do século XX, e as mortes dos séculos XV e XVI, as mortes provocadas pela escravidão e as mortes de nossas épocas contemporâneas, os que se afogam no Mediterrâneo, ou que morrem na fronteira mexicana. É necessário imperativamente recriar este “comum” da morte, pois o que é morto, afinal, a cada vez, são os seres do “entre”, seres dos


DETALHE DA EXPOSIÇÃO EUROPA/EUTOPIA/CHTO/DIVULGAÇÃO

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quais regimes políticos arrancam a dignidade humana. Mesmo se os modos de destruição e de extermínio se modificam, transformam-se segundo os lugares e os tempos, nós podemos tecer as ligações. O que é morto enxerga sempre o “direito à existência” e o status de “sujeito de direito”. Nós podemos estender esse raciocínio a todos os seres sensíveis, aos ecossistemas, como às sociedades indígenas. A modernidade é uma maneira de enquadrar o real que exclui os mundos, as existências. Contudo, é justamente a partir desse direito à existência que podemos reconstruir do político uma política mais vasta, uma nova forma, mais ampla, de representação. Na Europa, é claro, o extermínio dos judeus no século XX ocupa um lugar específico, pois, como disse o escritor húngaro Imré Kertesz, Auschuwitz se tornou um “mito”, quer dizer, uma história que põe as fundações de uma certa ordem do mundo. Vivemos na Europa pós-Auschwitz. Dessa forma, a reconstrução ética e política que

“A modernidade é uma maneira de enquadrar o real que exclui os mundos, as existências. Contudo, é justamente a partir desse direito à existência que podemos reconstruir do político uma política mais vasta, uma nova forma, mais ampla, de representação”

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se instalou após a Segunda Guerra Mundial isolou demais o genocídio dos judeus das outras destruições, ruínas e genocídios. O trabalho que eu empreendi, e que creio que deva ser empreendido coletivamente, é tornar comum os crimes da modernidade, o extermínio dos judeus, pois o que importa, hoje, é sair “das lutas, das guerras de memórias, entre as memórias”. Antes dos anos 1930, a figura do pária permitia relacionar, ligar, párias negros, párias femininos, índios, judeus, homossexuais, tudo o que era excluído de uma ordem dominante. Contudo, nos tempos subsequentes, os combates tenderam a separar isso. Foram as lutas pelas identidades nos anos 1970 que produziram um front extremamente fragmentado, no qual cada um rivaliza os sofrimentos. Mas essa fragmentação está deficiente hoje em dia. Ela condena justamente essa “melancolia da esquerda”, da fragmentação das causas, de maneira que parece necessário repensar as convergências, as “dores em comum”.


CON CAPA TI NEN TE DIVULGAÇÃO

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Ascensão da direita CONTINENTE É evidente que estamos vivendo, em todo o mundo, um movimento de ascensão da direita e da extrema direita, inclusive no Brasil, por exemplo. A que se deve esse movimento, sob o seu ponto de vista, e como a Europa influencia essa onda no mundo inteiro? CAMILLE DE TOLEDO Eu não creio que haja responsabilidade particular da Europa na onda de “direitização” do mundo. Ou então, seria preciso ir bem longe na exposição do modelo de “estado-nação” e na invenção do “capitalismo” no século XVIII, na Inglaterra, para compreender as razões profundas desse triunfo

dos modos de vida reacionários. Mas, ainda neste caso, creio que, a partir de agora, o estado-nação, como modo de organização dos coletivos humanos, e o capitalismo, como modo de gestão dos fluxos, não podem mais ser eternamente reportados à Europa. São hoje modos de organização compartilhados, mantidos nos quatro cantos do mundo e que terminaram por ser atribuídos a diferentes culturas. É preciso, então, estar atento à dialética entre estes dois modos de gestão: de um lado, o estado-nação, um quadro ligado a noções de identidade, território, fronteira, soberania; e do outro, o capitalismo, um modo de organização dos fluxos econômicos

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7 DONALD TRUMP Sua eleição para a presidência dos EUA aponta para a guinada à direita

que vão além dos territórios, dos corpos sociais, que colocam em concorrência as sociedades em uma escala mundial. E é essa dupla que tende a produzir os monstros da reação. Quanto mais o capitalismo se globaliza, quanto mais ele uniformiza as condições de vida, quanto mais ele coloca em concorrência as sociedades, os países, quanto mais ele enfraquece os Estados, mais a tentação para “reconstruir as fronteiras”, para “defender as identidades”, cresce.


“Quanto mais o capitalismo se globaliza, quanto mais ele uniformiza as condições de vida, quanto mais ele coloca em concorrência as sociedades, os países, quanto mais ele enfraquece os Estados, mais a tentação para ‘reconstruir as fronteiras’, para ‘defender as identidades’, cresce”

Vemos que o liberalismo econômico é dialético em relação à “direitização” do mundo. Fluxos globalizados de um lado, “identitarismo” do outro. Os dois funcionam muito bem juntos e fica extremamente difícil a tarefa de pensar as proposições de esquerda; as proposições que articulem o respeito pela diversidade dos mundos e um modo de regulação dos fluxos que permitam desenvolvimentos sustentáveis. Seria preciso, para isso, imaginar ações na escala da Terra, a fim de preservar nosso meio ambiente, de desenvolver uma ecologia política global, justa, voltada para o respeito e a igualdade de todas as formas de vida. Mas, como tal governança na escala do mundo não existe, a estrutura

dupla estado-nação e capitalismo globalizado empurra as preferências nacionais a uma “direitização” cada vez mais forte. De fato, podemos realmente interpretar o ciclo atual como uma resposta direitista dos Estados e das sociedades à dilatação do mundo. É essa rede das velhas classes dominantes que busca se manter no contexto de uma competição generalizada. O mais irônico, nesse processo, é que os políticos liberais se permitem muito bem oscilar como autoritários, xenófobos, nacionalistas. CONTINENTE Max Weber refletiu sobre os processos de racionalização das ações sociais como a fundação da visão moderna

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e ocidental do mundo. Bourdieu seguiu, de certa maneira, essa linha de pensamento, afirmando que todo o sistema simbólico de classificação é violento, é uma forma de poder. E você trabalha, também, com a ideia dos processos hegemônicos a partir das palavras, expressões, definições etc. Poderíamos afirmar que esse é o grande problema da sociedade moderna/contemporânea, ser refém dessas categorizações racionais, dessa forma de organização social? CAMILLE DE TOLEDO Na segunda metade do século XX, até mesmo a Antropologia, a Etnologia e as Ciências Humanas permitiram ampliar a noção de “razão”, de “racionalidade”. Em sua pergunta, você fala de uma “racionalidade ocidental”, e é verdade que existem traços característicos dessa ratio, que reduziu, conquistou, dominou e oprimiu os mundos múltiplos, as múltiplas formas da vida, particularmente na longa sequência histórica que se abre com a conquista das Américas no século XV. Sendo assim, a crítica da ratio ocidental aconteceu e teve prosseguimento, abrindo-se hoje a um reconhecimento jurídico, filosófico, de uma multiplicidade de modos de existência. É essa virada etnológica, formal, que está no centro de numerosos trabalhos de pesquisadores. Não vemos mais o mundo do único ponto do humano. Nós o observamos do ponto de vista de várias formas de humanidades, do ponto de vista animal, vegetal. Trabalhamos para expandir o olhar – uma empatia política a ser expandida – e essa ciência da expansão é o cerne das críticas contemporâneas da dominação. Pouco a pouco, vemos se desenhar um “direito da natureza”, um “direito dos animais”, que nos obrigam a renovar a maneira como concebemos nossas formas de viver. Essa virada nos modos de existência é o tema central do livro (antes mencionado) que concebi e escrevi com dois teóricos da arte, Aliocha Imhoff e Kentuta Quiros, Les potentiels du temps. Algo está mudando na forma como concebemos o “reino humano”, algo que nos obriga, de agora em diante, a compartilhar, de outro modo, o sensível. Há um combate em torno do compartilhamento do sensível e


CON CAPA TI NEN TE MOHAMED ABD EL GHANY/REUTERS

reconhecemos, mais do que nunca, que há mais de uma foma de viver, de compreender o mundo. É claro que, a reboque dessas transformações do saber, há uma decepção. As formas de governo do mundo não mudam, ou mudam muito pouco. Tudo muda lentamente. Em Les potentiels du temps, espantamo-nos com a inércia dos velhos poderes, dos velhos saberes. Como é possível, haja vista o estado de nossos conhecimentos etnológicos – a sensibilidade animal, antropológica, a multiplicidade das racionalidades, cosmogônicas, a multiplicidade de mundos – que as formas de governo mudem tão pouco, que elas sejam, a essa altura, conservadoras? Por que isso não se transforma mais rápido? Nós apelamos, neste livro, a políticas ovidianas, mais infinitas, mais abertas, que seriam precisamente levadas por uma sede de metamorfose, por uma transformação do modo de viver. É nessa tarefa que nós nos engajamos. Mas é claro que precisamos compreendê-la como um combate. É preciso que esses estados modificados do saber se atualizem. E é neste lugar que o combate ganha corpo, desde a insurreição zapatista, em 1994, até os últimos movimentos “ocupe” ou “podemos” na Espanha, passando pelas revoluções árabes. É preciso que tudo isso finde por desenhar um sentido histórico e que os políticos ajam em favor desses desejos de transformar as formas de governo. Se a rede, as velhas redes se defenderem contra essas transformações, então o estado de guerra não será outra coisa que não reforçado.

Pensamentos revolucionários CONTINENTE Diante desse cenário contemporâneo do continente europeu, e do mundo, que alternativas ao pensamento crítico podemos ter como uma forma de resistência política e cultural? Qual o papel das artes nesse cenário? CAMILLE DE TOLEDO Eu concebo nossos tempos como tempos em preparação. Um novo vocabulário, uma outra gramática, novas maneiras

“A arte é esse espaço em que discursos dissidentes podem se organizar, se manter, um lugar onde ‘ficções de possíveis’ podem ser contadas. São, portanto, essas ficções de possíveis que nós devemos manter vivas, ligandoas, se possível, a movimentos sociais e políticos”

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de viver estão sendo elaboradas. O presente está surdo a essas transformações, mas elas estão aí. Elas visam às modificações legislativas, políticas, econômicas. Existe, frente a esses desejos de metamorfose, um velho alicerce do saber e do poder, uma rede que procura se manter, se defender. No conflito entre essas duas ordens, o presente se articula, se agita. Tenho a imagem frequente do século XVIII, do tempo em que a ordem política parecia imutável. E, no entanto, nas alcovas, nos clubes, nos salões, havia uma atividade intelectual intensa, a difusão de pensamentos que tendiam a modificar, em profundidade, a maneira de se conceber uma sociedade. Esse

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pensamento das luzes levaria mais de um século para se atualizar no mundo, para se tornar um repertório comum de princípios, ligado à liberdade, à igualdade, e certamente esse pensamento teria consequências dramáticas sobre as formas de dominação, sobretudo coloniais. Vemos, então, que há sempre uma ambivalência intrínseca aos projetos de emancipação, sempre ameaçados de virarem modos de dominação. O período atual me parece análogo. O fim do “freio marxista” que serviu de limite, de contramundo ao longo da segunda metade do século XX, evitando que o capitalismo fosse ao máximo de sua lógica – a saber, freando a lógica da rede, da


apropriação, da privatização dos lucros –, causou, no transcorrer dos anos 1980 e 1990, a aceleração e o desenvolvimento de todo o poder predatório do capitalismo, agravando as desigualdades no mundo inteiro. Essa aceleração foi afetada por crises, até o apogeu da crise dos subprimes (crise imobiliária de 2007, a partir dos EUA), que surgiu, um belo dia, como um regime de espoliação. Na América Latina, aconteceu da mesma forma, com as crises sucessivas do fim dos anos 1990 e início dos anos 2000. Em todo caso, o capitalismo tirou proveito do fim da hipótese comunista. Mas, ao mesmo tempo, desde 1989, assistimos a uma tentativa de recomposição política.

É um esforço que religa as greves dos anos (Margaret) Thatcher, na Inglaterra, aos movimentos das praças que entoaram os primeiros anos do século XXI, de Nova York à Tel Aviv, passando por Madrid, Barcelona, Tunísia, Paris, Cairo. Esse movimento das praças é a manifestação de uma recomposição política. E os altos índices de votação para Bernie Sanders na primária democrata, nos Estados Unidos, são outro traço dessa recomposição. São movimentos de fundo. É uma recomposição da inteligência coletiva, da crítica, que é inseparável de uma repolitização dos mundos da arte. A arte é esse espaço em que discursos dissidentes podem

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8 PRAÇA TAHIR Os recentes movimentos das ocupações indicam recomposições políticas

se organizar, se manter, um lugar onde “ficções de possíveis” podem ser contadas. São, portanto, essas ficções de possíveis que nós devemos manter vivas, ligando-as, se possível, a movimentos sociais e políticos. Eu não duvido de que essas forças de recomposição já estejam dando à luz a uma nova política. Mas permanece a questão sobre o ritmo e a amplitude dessas transformações. TRADUÇÃO Carmen Mendonça, com colaboração de Erika Muniz e Olívia Mindêlo.


JANIO SANTOS

Conexão INTERNET A vida dentro das bolhas de alienação

Regras computacionais de gigantescas empresas estabelecem recortes do que os seus usuários devem saber, influindo no seu modo de pensar e agir TEXTO Yellow

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Antigamente, era mais fácil conversar

com as pessoas. Enquanto a sociedade estava submetida à cultura de massa, havia pouquíssima difusão de repertório cultural diverso. Então, as pessoas assistiam (quase) aos mesmos filmes, programas de TV e ouviam (quase) os mesmos discos. Era um ambiente no qual, por exemplo, os programas diários das rádios tocavam as 10 canções mais pedidas pelos ouvintes. A conversa ficava mais simples, assim. A contradição a esse consumo cultural vertical e limitado seria a aldeia global prevista por McLuhan, possibilitada pela arquitetura da internet – uma rede descentralizada e sem hierarquia. Cada cidadão teria a possibilidade de se tornar um transmissor de informação, uma editora, uma estação de rádio, uma rede de TV. Muitas produções culturais se difundiriam e conversas múltiplas – e cada vez mais complexas e ricas – se dariam. Mas não foi isso que aconteceu. Os navegantes – solitários – passaram a consumir apenas a mídia que os interessava, descobrindo filões de


Nossa perspectiva do mundo de dentro de uma bolha de informação pode nos levar a acreditar que nossos amigos pensam como nós, assim como os repórteres que assinam as matérias que lemos. Até que, de repente, somos arrebatados por surpresas enormes – como Donald Trump foi eleito?

Além dos riscos com a privacidade dos dados dos usuários, os cookies representaram uma das primeiras manifestações de customização do conteúdo da internet. Sites passaram a exibir links e propagandas relacionados ao que interpretavam como sendo de interesse dos leitores.

TIPOLOGIA

BUSCA

O isolamento promovido pela web não é devido apenas ao fenômeno psicológico do viés de confirmação (nossa tendência a acreditar mais nas informações que confirmam nossas opiniões). Existem mecanismos estruturais que foram implantados, às vezes com boas intenções, mas nem sempre, que funcionam como tapa-olhos para os usuários da rede, como cookies, buscas personalizadas, e fluxo personalizado de notícias.

COOKIES

A revista Wired começou a alertar seus leitores em 1996 para a existência de arquivos com nomes inócuos (“cookie.txt”) que alguns sites estavam implantando nos computadores dos arquivos mp3 de gravações raras de suas bandas favoritas, fan fiction de suas sagas favoritas, e se isolaram cada vez mais em suas próprias bolhas de realidade. Cadê a conversa? Para além disso, o que acabamos por testemunhar foi o sequestro da estrutura da rede pela cultura corporativa do consumo, exacerbando o individualismo. O meme mais perigoso de todo, o gráfico ortogonal do vetor ascendente sobre a linha do tempo, corrompeu também a mídia que prometia ser a mais democrática da história da humanidade. Os princípios estruturais da rede foram minados e deturpados, e, hoje, nos encontramos em um ambiente bem diferente do idealizado no início dos anos 1990. Em 1994, o rizoma da internet era como uma mata fechada, de difícil navegação, porém rico em biodiversidade. Hoje, não é mais um rizoma, é uma autoestrada privatizada que passa sobre o mangue, e podemos apreciar a vista apenas nos intervalos entre as placas de propaganda no acostamento.

O isolamento promovido pela web se deve muito a mecanismos como buscas e fluxos de notícia personalizados internautas. Tais arquivos continham informações sobre a navegação e detalhes sobre a pessoa que usava o computador, e poderiam ser facilmente localizados e copiados por hackers. O que veio a ser conhecido como cookies é um mecanismo através do qual um site pode guardar metadados (localização, nome, idade, velocidade da conexão, tipo de navegador, resolução da tela, histórico de navegação) no navegador do usuário, para serem usados mais tarde. Através deles, um site pode, por exemplo, “lembrar” da senha de um usuário, para que ele não precise realizar login a cada vez que o site seja acessado. Ou pode “lembrar” do número do cartão de crédito, para tornar mais fáceis as compras online.

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O site Yahoo! foi o primeiro a listar sistematicamente as páginas da rede, promovendo uma classificação por temas. Com a criação dos mecanismos de busca, o consumo de informação mudou drasticamente. Quem só queria saber de um assunto, poderia esbaldar-se em oceanos de informação específicas ao nicho. As bolhas de informação do Google foram instituídas, sem muito alarde, em 4 de dezembro de 2009. Uma discreta postagem no blog corporativo da empresa, em meio a um resumo semanal das suas atividades, anunciava, a partir de então, “busca personalizada para todos”. Antes de existir tal ferramenta, era possível, e era prática comum entre as pessoas, fazer indicações como “no Yahoo, faça uma busca por ‘the cure fascination street’ e acesse o quinto link, é a página da qual te falei”. A busca personalizada acabou com essa consistência de conteúdo entre internautas. Depois da busca personalizada do Google, cada usuário tem diferentes resultados para suas procuras, mesmo que pesquisem os mesmos termos. Basta estar conectado a algum dos serviços do Google, como Gmail ou Youtube, para que ele reconheça e diferencie os usuários. São usados 57 sinalizadores – como o lugar de onde o usuário estava conectado, que navegador estava usando e os termos que já havia pesquisado – para tentar adivinhar quem é a pessoa e de que tipos de site gostaria. Mesmo que a pessoa não esteja usando sua conta do Google, o site customiza os resultados de acordo com sinalizadores como idioma, localização e histórico de navegação. O termo filter bubble foi criado pelo ativista da internet Eli Pariser em seu livro de mesmo nome (no Brasil, publicado pela Editora Zahar em 2012, com o título O filtro invisível). De acordo com Pariser, os usuários têm sido cada vez menos expostos a pontos de vista


DIVULGAÇÃO

1 MENTIRAS Muitos dos indivíduos que usam as redes sociais como única fonte de informação estão submetidos a notícias falsas

Conexão conflitantes, tornando-se cada vez mais isolados intelectualmente em suas próprias bolhas de informação. Torna-se a cada dia mais difícil formar uma opinião através da comparação entre diferentes pontos de vista, e, agora, por coincidência ou não, vivenciamos uma exacerbação na radicalização, em várias partes do mundo. A web se tornou um instrumento de isolamento ideológico, ao contrário do que pretendiam seus criadores e primeiros usuários.

FLUXO PERSONALIZADO

Hoje, a maioria dos usuários do Facebook se acostumou a usar a plataforma de mídia social não apenas para se manter atualizado sobre o que acontece com as pessoas que conhece, mas como principal fonte de notícias sobre o mundo. Um recente estudo do Pew Research Center descobriu que quase metade dos adultos americanos confiam na plataforma como fonte de informação. O Facebook possui um algoritmo que seleciona e promove as notícias mais comentadas e replicadas e as promove ainda mais para os internautas que identifica como ideologicamente similares. Em, talvez, respeito à neutralidade da rede, a plataforma não promove nenhum julgamento acerca da veracidade do conteúdo que reproduz. Após a eleição de Donald Trump presidente dos Estados Unidos, o Facebook foi responsabilizado, por diversos veículos de comunicação, por não coibir informações falsas de se espalharem por sua rede. Foram descobertos vários sites que criavam notícias falsas para ganhar dinheiro com o tráfico gerado. Jovens da Macedônia tomaram a frente, e revelaram que criaram notícias falsas, com aparência de veículos de informação americanos, como fonte de renda, simplesmente porque era muito fácil. Um deles, de 19 anos, disse à BBC: “Os americanos adoraram nossas histórias e ganhamos dinheiro com elas. Quem se importa se são verdadeiras ou falsas?”. Os empreendedores precoces não

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A web tornou-se um instrumento de isolamento ideológico, ao contrário do que pretendiam seus criadores

eram ideologicamente republicanos. Suas amostragens indicavam que o eleitorado de Trump era mais suscetível a acreditar em manchetes como “Papa Francisco proíbe católicos de votarem em Clinton” e “Polícia de Nova York pronta para prender Hillary Clinton por pedofilia e traição”.

VER ALÉM DA SUA BOLHA

Existem alguns comportamentos que podemos adotar para diminuir os efeitos dos filtros de informação. Usar um mecanismo de buscas neutro, que não interfira ou personalize os resultados da busca, por exemplo. E claro que, em vários momentos, a busca personalizada ajuda. Se estamos buscando “horários de cinema”, não queremos ler uma definição na Wikipedia. É muito mais sensato usar o Google mesmo, que vai entender minha localização e mostrar os cinemas mais próximos. No entanto, quando se trata de aprender sobre algum assunto espinhoso, como a biografia de um político, ou entender as motivações para a falência de uma empresa, é melhor se manter afastado da ajuda do algoritmo e usar

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um sistema de busca que não tente adivinhar o que você quer ler. O mais popular é o do site DuckDuckGo. Ler notícias diretamente dos sites, e não de postagens em redes sociais. Usar RSS para se informar. Existem alguns serviços online (e apps), como Feedly e Flipboard, nos quais é possível cadastrar os sites que se lê, e novos conteúdos postados nesses sites são automaticamente acrescentados à sua lista de leitura. O hábito da leitura através de feeds de RRS permite que o leitor tome as rédeas do recorte que terá a mídia que consome, e, convenientemente, agrega em um único lugar seus mais diversos interesses. O agregador de RSS mais popular de todos foi o Google Reader, que a empresa descontinuou em julho de 2013, sob muita polêmica, deixando bem claras suas intenções de manipular a informação que seus usuários consomem. Outra boa estratégia é praticar a deriva. Fazer buscas aleatórias, sobre atores de seriados dos anos 1980, receitas caseiras de protetor solar, notícias antigas, a grafia ou etimologia de palavras estranhas. Tentar descobrir quantos filmes foram produzidos sobre histórias reais de resgates de meninas que caíram em poços. Observar pássaros. Um comportamento imprevisível na internet nos torna pessoas mais interessantes, criativas e, mais importante ainda, inclassificáveis, endoidando o algoritmo do Google, no processo.


ANDANÇAS VIRTUAIS

LETRAS Site reúnde vários gêneros textuais, com ênfase na produção literária livreopiniao.com

O site Livre Opinião – Ideias em Debate

é um portal que divulga conteúdos relacionados às artes, mercado editorial, saraus, intervenções e festivais. Atualmente editado pelo escritor e

produtor cultural Jorge Filholini, traz entrevistas exclusivas, além de crônicas e resenhas críticas que abrangem também áreas como teatro, cinema e música. A página já divulgou, ao

longo dos seus três anos, entrevistas com nomes como Isadora Krieger, Mia Couto, João Gilberto Noll, Paulo Lins, Laerte Coutinho, Lourenço Mutarelli e Luiz Ruffato. O acesso a esses e outros conteúdos está disponível no banco de dados. Além disso, na seção Autores livres, colaboradores disponibilizam desde textos de ficção a críticas. Já em Poema livre, a poesia contemporânea é contemplada. Dentre os que colaboram, estão os escritores Marcelino Freire, Aline Bei, o dramaturgo Marcelo Flecha e o professor Jorge Valentim. “Nossas conversas e entrevistas são coloquiais, visando deixar o entrevistado tranquilo e expor um outro tipo de bate-papo. Esse coloquialismo também é encontrado nos textos que publicamos”, afirma o editor. O Selo LOID foi criado para disponibilizar gratuitamente trabalhos inéditos de novos e já consagrados autores. Clássicos da literatura universal e livros teóricos também estão para download no acervo da seção Biblioteca livre. ERIKA MUNIZ

ARTE

MÚSICA

LGBT

STREAMING

Site classifica obras roubadas durante a invasão nazista na Holanda

Aplicativo oferece playlist que aproxima ritmos e artistas

Plataforma traz comentários sobre posicionamentos de instituições

Aplicativo ajuda usuário a escolher programas na Netflix

herkomstgezocht.nl/en

App Indie Shuffle

freeda.me

App Upflix

Durante a Segunda Guerra Mundial, como é sabido, os nazistas roubaram obras de arte, conforme avançavam e dominavam territórios na Europa. Agora, o governo holandês criou um site no qual é possível rastrear as obras que sumiram no país durante esse período. Algumas delas foram recuperadas e entregues a seus proprietários e outras seguem em museus estatais. Cerca de 15 mil ainda perdidas são apresentadas em fotos e documentos, o que pode facilitar a busca de descendentes por pinturas, porcelanas, tapetes, desenhos que pertenceram um dia às suas famílias.

Disponível para iOS e android, o aplicativo Indie Shuffle é para os que gostam de descobrir novidades de música. Ao escolher uma das faixas disponibilizadas periodicamente pela equipe de colaboradores, é oferecida uma playlist que mistura sons já conhecidos a outros nem tanto, mas de mesmo gênero ou artista. As indicações vêm acompanhadas de um texto explicando por que o usuário deveria ouvir tal som e transitam entre o indie rock, hip hop e eletrônico. Quem quiser também pode participar indicando, é só se inscrever.

A plataforma colaborativa Freeda disponibiliza avaliações e comentários sobre estabelecimentos públicos e privados com relação a seus posicionamentos quanto à diversidade e igualdade de gênero. O selo Espaços de Diversidade Freeda é atribuído apenas a instituições que adotam políticas de respeito à pluralidade. Apesar de o Brasil não ter uma legislação específica para criminalização da homo e transfobia, a plataforma disponibiliza também leitura de algumas leis do Código Penal e outras legislações que condenam qualquer tipo de preconceito e violência.

Diante das várias opções oferecidas no catálogo da Netflix, pode surgir a dúvida do que assistir. Para ajudar na decisão, eis o aplicativo Upflix (iOS e Android). Ele notifica sobre as novidades, quando alguma série ou filme é adicionado, além de informações, sinopse, elenco e trailer de cada uma das opções. A interface é bem simples e de fácil uso. Os títulos são organizados por gêneros ou dispostos a partir de um ranking com avaliações dos próprios usuários e dos sites IMDb e Rotten Tomatoes. Uma das funções é a roleta russa (Roulette), que, pelo gênero ou a classificação etária, pode “girar” e o app indica uma opção do catálogo aleatoriamente.

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FREVO De fevereiro a fevereiro

Ações realizadas em instituições como o Paço do Frevo, e por diversos músicos, vêm conseguindo levar o gênero musical, que completa 110 anos, para além do Carnaval TEXTO Débora Nascimento

CON TI NEN TE

ESPECIAL

“Clóvis vem comer um bolo de chocolate, que ele adora. Ele sai de casa para vir pra cá, fora toda uma geração de músicos que está produzindo aqui dentro. Edson Rodrigues, quando vai resolver alguma coisa no centro da cidade, deixa o sax dele com a gente, no centro de documentação”. Esse “aqui” ao qual o músico André Freitas refere-se é o Paço do Frevo, mistura de museu, ambiente de salvaguarda, formação, pesquisa, experimentação, propagação, criação e, sim, renovação, que, em três anos de intenso funcionamento na Rua da Guia, em frente à Praça do Arsenal, no Bairro do Recife, tornou-se um espaço de convivência, colaboração e crescimento profissional para compositores, instrumentistas, intérpretes, produtores, ouvintes e demais amantes do gênero pernambucano, que, neste 2017, completa 110 anos.

1 NA RUA Apresentação de dança e música em frente ao Paço do Frevo movimenta o Bairro do Recife

Coordenador de música da instituição, inaugurada em 9 de fevereiro de 2014, André Freitas confessa que, ao ocupar o cargo, via o gênero musical de uma forma totalmente diferente. “Quando cheguei, achava que o frevo estava em crise. Eu tinha uma visão restrita a partir de seis cordas, sou guitarrista, já tinha tocado com alguns maestros e artistas. O repertório era sempre recorrente, algumas coisas de Capiba, de Michiles, mas sempre frevo-canção. Achava que frevo era isso mesmo, que não tinha novos autores, novas composições. O que acontece é que isso não tem visibilidade – mas não tem crise. A crise é do mercado fonográfico, que vai ter que se reencontrar”, afirma. “O que existe hoje é essa necessidade de ocupar as lacunas dessa cadeia produtiva.” Essa ocupação vem sendo promovida através de diversas ações do Paço em sua coordenação de música. Nesses três

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anos de atuação, foram realizadas mais de 200 apresentações artísticas, 70 delas na Hora do Frevo, que acontece ao meiodia das sextas, com releituras do gênero musical – o que seria, em princípio, uma saída para o oneroso valor de contratação de uma orquestra de frevo, acabou se tornando uma forma de promover experiências em torno do estilo. “Uma formação em orquestra é caríssima, então a Hora do Frevo foi um projeto pensado para novas formações, possibilidades estéticas, trio, quarteto, quinteto. Umas coisas surgem naturalmente, outras a gente provoca, tipo duas guitarras e dois contrabaixos, que foi Luciano Magno, Renato Bandeira, Bráulio Araújo e Hélio Silva”, conta André, acrescentando que o Paço do Frevo pretende, até o final deste ano, contar com uma orquestra de pau e corda, a partir da formação do regional de choro. Com um ano e meio de atividades do espaço, foi criada a Orquestra Frevo


BRUNA MONTEIRO/DIVULGAÇÃO

Essência, desde o 1º Programa de Qualificação Musical. Dirigida pelo Maestro Spok (que participou ativamente das discussões iniciais sobre como seria o Paço do Frevo), ela funciona como uma incubadora de talentos. “Foi feita uma escolha estratégica para atender o aluno do nível intermediário para o avançado, porque a iniciação musical já existe na rede pública ou privada, mesmo com toda as questões. Não é a melhor do mundo, mas isso já é feito. Então, surgem muitos músicos sempre, todo ano. A gente viu que estava faltando a esse músico uma outra qualificação profissional, que fosse uma chave de acesso para outra fatia do mercado. Dominar o conhecimento técnico para orquestração e arranjo era algo não comumente oferecido na cidade, e foi aí que preferimos focar e investir. Isso tem um desdobramento, por exemplo, no repertório, no surgimento de uma geração de compositores; é o

Paço do Frevo vem promovendo apresentações, palestras, cursos e debates sobre o gênero musical que está acontecendo, agora”, aponta o coordenador, complementando que esses músicos também recebem noções de gestão de carreira artística – área que é um “calo” na música independente em Pernambuco. Fora a Frevo Essência, mais três orquestras surgiram no Paço do Frevo: a Leão do Norte, que, regida por Alexsandro Orques, realiza pesquisa de repertório e interpretação de cada período histórico do frevo; a Orquestra Acadêmica do Paço do Frevo, que, também com direção Musical de Spok,

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foi montada a partir de seleção em um edital público e apresenta frevos autorais de seus integrantes, e a Orquestra da Luz, que, regida por Henrique Albino, executa composições originais. “Com a turma que acabou em dezembro, do curso de orquestração e arranjo com o professor Marcos FM, saíram dois frevos novos. Artisticamente, ainda precisam de muita coisa. Porém, já está acontecendo essa renovação. E como tudo está ligado como uma grande incubadora, os alunos de orquestração e arranjo testam o arranjo na orquestra. A gente manda uma semana antes o repertório, todo mundo estuda. Na semana seguinte, se o autor for de fora, ele é convidado, vem e assiste ao ensaio, corrige, melhora e reformula”, destrincha André Freitas, complementando que algumas dessas músicas podem ser ouvidas na Rádio Paço do Frevo (na web), que traz programação com as


CON ESPECIAL TI NEN TE HESÍODO GÓES/DIVULGAÇÃO

composições das bandas, orquestras e demais artistas que já se apresentaram na instituição. Nesses três anos, também foram produzidos eventos como o Guitarra Brasileira, que teve a procura de 500 músicos; o (Com)Passos – encontros de improviso entre bailarinos e músicos – e quatro Conexões Frevo – intercâmbio do frevo com outros estilos, como o bluegrass, fado e tango (que originou a formação de um grupo com o bandolinista Marco César, o acordeonista Beto Ortiz, o baixista Bráulio Araújo e o guitarrista Renato Bandeira). Outro modelo de parceria é o Paço em Criação, que oferece residência a artistas em processo de formação, com o objetivo de desenvolver projetos junto aos pesquisadores e professores da instituição. Esses intercâmbios culturais vêm possibilitando ao frevo estender suas fronteiras, a exemplo da palestra de Spok e Wynton Marsalis, que aconteceu em 1o de abril de 2015, no último andar do Paço, com perguntas e observações de diversos músicos (inclusive de alguns maestros do frevo que estavam na plateia), e da apresentação conjunta da Orquestra Frevo Essência e da Luther College Jazz Orchestra, em 6 de agosto de 2016. No ano passado, o Paço investiu R$ 280 mil em sua agenda. “Quando se pensa que isso é o valor de um headliner no Carnaval…Falamos de quase 10 meses de programação, tudo, não é só música não, os encontros de pesquisadores, os seminários. Não se faz nada de graça aqui, cada palestrante tem uma rubrica de R$ 600”, informa. Com todas essas ações, o Paço do Frevo vem marcando sua presença como espaço cultural imprescindível hoje em Pernambuco, contribuindo para que o gênero consiga ultrapassar a barreira da Quarta-feira de Cinzas. “Faltava o espaço físico, que era o que a Rozenblit ocupava, que a Rádio Clube ocupava. Sem a infraestrutura, não adianta se é frevo, se é caboclinho, não adianta. Como é que eu vou imaginar a Lincoln Center Orchestra sem o seu centro de cultura?”, arremata André, informando que a instituição local formou 800 alunos, oriundos de diversas escolas e municípios pernambucanos, e deve ampliar mais seu alcance com os DVDs de aulas que pretende realizar.

2 FORRÓ Músico comanda Orquestra da Bomba, que realiza shows o ano inteiro MAESTROS 3 Edson Rodrigues, Clóvis Pereira e Duda em formação inédita de trio, no Paço do Frevo

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O ANO INTEIRO

Se o Paço do Frevo se tornou o símbolo e a prova do que sempre desejaram os veteranos maestros, a real possibilidade dessa música ser trabalhada o ano inteiro, hoje, alguns artistas também atestam que isso é possível. O Maestro Forró, com sua Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, é um deles. “Tocamos no interior de Aracaju em pleno mês de junho. O frevo é uma música aberta, de grandeza técnica, que se comunica fácil. A gente não pode ficar pensando só no Recife, é preciso investir também em outros estados”, diz o trompetista, que indica como a única dificuldade para isso o quantitativo de seu grupo: 27 pessoas (21 músicos e seis técnicos). “Faço tudo para não abrir mão dessa formação e viajar com a orquestra completa.” Para Forró (Francisco Amâncio da Silva), a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, formada em 2002, “meio

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que criou um mercado”. “Não tinha um mercado de orquestra com esse formato. Com menos de um ano, tínhamos um produto diferenciado na cidade. Mas a gente teve que sempre se reinventar”, conta o músico, que já lançou dois discos (o segundo, #CabecanoMundo, ganhou o Prêmio da Música Brasileira na categoria Regional, em 2013) e um DVD gravado no Teatro de Santa Isabel; apresenta o programa Andante (Canal Brasil) e dá aulas gratuitas de música aos moradores de seu bairro e redondezas. “Trabalho com frevo todos os dias do ano”, afirmou Spok, antes de entrar no estúdio para gravar um frevo no disco de forró de João Lacerda, filho de Genival. Assim como a Orquestra da Bomba, sua SpokFrevo Orquestra, fundada em 2001, com influências do jazz, vem conseguindo conquistar outros territórios, mesmo com o obstáculo financeiro de levar uma orquestra ao Exterior. “Um dia fora do Brasil, um dia


PAÇO DO FREVO/DIVULGAÇÃO

que não toque, são quase dois mil euros de manutenção. Não é fácil manter uma big band viajando”, admite. “O trabalho da orquestra, de lá pra cá, contribuiu para que muita gente começasse a compor frevo instrumental. É incrível o interesse dos músicos em compor frevo. As pessoas me mandam frevos, até músicos de Los Angeles”, destaca. Spok (Inaldo Cavalcante de Albuquerque), hoje um dos maiores expoentes do gênero, é cedido da Orquestra Sinfônica do Recife, e dá expediente no Paço do Frevo às terças, e todo ano sai do país para ministrar aulas de frevo. “Esta geração está vivendo esse momento de ver realizado o sonho dos mestres”, observa o músico e autor do argumento de Sete corações (2014), para ele, seu maior projeto realizado, o documentário, dirigido por Déa Ferraz, sobre os então principais maestros do frevo: Duda, Nunes (falecido em 2016), José Menezes (morto em 2013), Guedes Peixoto, Ademir Araújo, Clóvis Pereira e Edson Rodrigues. Edson, que neste ano completa 60 carnavais, afirma que, “desde aquela época (em que começou), o frevo evoluiu melódica, harmônica, e ritmicamente, mas hoje, mesmo Patrimônio da Humanidade, não tem o devido respaldo das pessoas que cuidam das coisas da nossa cultura”. O maestro

“A gente não pode ficar pensando só no Recife, é preciso investir também em outros estados” Maestro Forró é uma das pessoas que foram a Paris, em 2012, participar da ação junto a Unesco para conquistar o título para o frevo. “Não foi fácil”, conta o saxofonista, compositor e maestro, que trabalhou como arranjador de discos de frevo na mítica gravadora Rozenblit, responsável pelos lançamentos do gênero no Recife, entre as décadas de 1950 e 1970. “Dos três frevos, o canção é o que está melhor, o pessoal dos blocos produz discos particulares. Isso tem feito com que o frevo de bloco tenha resistido bravamente. Mas faz pena ver as fantasias velhas de alguns desses blocos. Não há uma renovação, são clubes associativos, as pessoas não pagam mensalidade, mas têm um certo direito, elegem uma diretoria, que muitas vezes não tem uma prática de gestão. Batutas passou um tempo sem sair. Madeira do Rosarinho está aos pedaços. O frevo está bem, mas poderia estar melhor”, diz Edson, que

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ultimamente vem sendo convidado para duas ou três apresentações no Carnaval. “Tento ensinar para as pessoas o verdadeiro valor do frevo, cumprindo minha obrigação.” Para ele, o problema do mercado do frevo entrou numa outra esfera, a educacional. “A música não é vista como forma de educação na escola, assim como acontece em outros países, nos quais ela está presente desde a infância até a faculdade. Aqui não temos nada disso. É obrigatório, mas não se cumpre a obrigatoriedade. Os músicos não têm o devido conhecimento técnico para fazer o novo frevo. É por isso que Spok consegue se dar tão bem, ele tem os melhores músicos de Pernambuco.” Maestro Duda, que também atuou como arranjador na Rozenblit, por onde saiu o best-seller do gênero Capiba: 25 anos de frevo (1959), comenta que o mercado está pior do que na época em que existia a gravadora. “Não sei dizer se o povo está fazendo frevo, porque disco não tem. Inclusive o concurso de frevo, que é lei municipal, não se realiza há três anos. Havia o lançamento de novos compositores, novos frevos, não se apresenta música nova e não se grava. A lei diz o seguinte: tem que ser realizado o festival de música entre os meses de novembro e dezembro, para, a partir de janeiro, tomar-se


CON ESPECIAL TI NEN TE LAURA BROTO/DIVULGAÇÃO

conhecimento das músicas novas do festival”, reclama. “Então, o Carnaval sempre está com as mesmas músicas. E, quando aparece alguma produção independente, que banque financeiramente a gravação, as rádios e TVs não divulgam. Só se divulgam baboseira da Bahia e a música sertaneja. Não que eu seja contra a música baiana ou a sertaneja, mas a música pernambucana não tem espaço em canto nenhum. Antes, as TVs e rádios divulgavam. Com o fim da Rozenblit, não tem como fazer. É muito caro bancar um disco de frevo”, lamenta Duda, que, aos 80 anos, vai ganhar um ensaio biográfico e musical dentro da coleção Frevo Memória Viva, da Cepe Editora, que publicará, ao longo do ano, livros sobre Getúlio Cavalcanti, Jota Michiles e Ademir Araújo (o primeiro a ser lançado, neste mês), todos escritos pelo jornalista Carlos Eduardo Amaral. Com 33 anos de frevo, responsável por uma orquestra que, nessas três décadas de Carnaval, acompanha diversos blocos tradicionais, como o Ceroula e Vassourinhas, Maestro Oséas disse que, para ele, não dá para viver de frevo. “Falta aumentar o valor do cachê, é muito baixo, está barato demais. Durante o resto do ano, toco no Boi da Macuca, lá em Correntes, faço São João. De vez em quando, aparece algo fora isso. Mas é muito pouco, pra mim não dá. Eu me viro, trabalho com talha, com artesanato também. Os meus músicos todos têm outro trabalho, não vivem de música, não. Todos eles trabalham em outra profissão, tem advogado, engenheiro. Não dependem de música, é muito pouco o cachê. Está pior agora, antigamente era bem melhor. Deve ser porque tem muita orquestra. Hoje, a turma não quer qualidade, quer saber o valor do frevo. Isso é questão de quem cobra mais barato”, critica. À frente do cinquentenário O Tema é Frevo, o mais longevo programa de rádio dedicado ao gênero, Hugo Martins é uma das vozes mais atentas e críticas. “O frevo é música única no mundo, mas, infelizmente, os pernambucanos não dão muita bola. Recebeu o título de Patrimônio em Paris, em 2012, e ninguém deu bola pra isso. Se fosse na Bahia, seria diferente. Sou paraibano, tenho esse programa há 50 anos. Claro que existe a exceção, mas a maioria não

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“Quando aparece alguma produção independente, as rádios e TVs não divulgam” Hugo Martins

quer saber de frevo. Mandam chamar gente do Sudeste pra abrir o Carnaval, tinha que ser as bandas de música daqui.” Martins lembra que, quando começou o programa, o frevo tocava em diversas rádios, como a Tamandaré e a Clube. “Vejo isso com pesar. Só tocam no período do Carnaval, tem outras que só tocam o frevo baiano. O frevo é pernambucano. Só consigo fazer o programa porque é uma rádio educativa. Houve um tempo em que um vereador veio com uma lei para obrigar a tocar frevo. Isso é um absurdo, uma vergonha, obrigar um estado, através de uma lei, a tocar sua própria música. Lugar nenhum do mundo deve obrigar a tocar música da sua terra. Evidentemente, as rádios não obedeceram e ficou por isso mesmo.”

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O radialista, que vem acompanhando com afinco o frevo nesse meio século, observa que a música passou por transformações. “A qualidade das músicas vai mudando com o tempo, o próprio tempo vai mudando, ouvir um frevo dos anos 1930 é completamente diferente do de hoje. O tempo vai mudando as coisas. Quando se ouve a música erudita, nota-se também a diferença. Isso é normal. A produção de discos é que diminuiu. Naquela época, havia mais lançamentos, RCA, Odeon, Rozenblit, muitos discos no comércio. Hoje em dia, há também pouquíssimas lojas de discos.” Numa das últimas lojas de discos que resistem no mercado musical do Recife, a Passadisco, situada no Parnamirim, zona norte da cidade, o proprietário Fábio Passadisco faz uma espécie de catalogação dos lançamentos da música pernambucana, pois todos os artistas locais dispõem seus álbuns nas suas prateleiras. Segundo ele, até o final de janeiro, só chegaram dois CDs: o de André Rio, Meu carnaval é frevo, e do grupo Som da Terra, Som da terra em bloco. “O ano passado também foi ruim: Ameba


PAÇO DO FREVO/DIVULGAÇÃO

IMAGENS: DIVULGAÇÃO

4 QUEBRAMAR Orquestra, liderada pelo músico Marcos FM, tem influência do jazz HUGO MARTINS 5 O tema é frevo, programa do radialista, completa 50 anos em 2017

6-7 DISCOS Sangue negro, de Amaro Freitas, e a coletânea Frevo do mundo colocam o gênero em outra perspectiva 6

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de Olinda (É frevo pra torar), Don Tronxo (Folias de carnavais), Freveribe (Freveribe) e O Homem da Meia-Noite (Vários intérpretes).

NOVIDADES

Embora não haja muitos lançamentos, o frevo está passando por uma transformação importante, encampada por músicos que não necessariamente estão compondo a forma clássica do gênero, mas fazendo mesclas com outros estilos, como se ouve no álbum Frevo do mundo, com releituras de clássicos feitas por diversos artistas (João Donato, Edu Lobo, Céu, Mundo Livre S/A, Isaar França, Siba, entre outros), no projeto Frevotron (de Spok, DJ Dolores e Yuri Queiroga), nas incursões da banda Eddie pelo gênero, no primeiro disco do pianista Amaro Freitas, o inspirado Sangre negro, e no trabalho da Orquestra Quebramar, do músico, professor e maestro da Banda Sinfônica do Conservatório de Música Pernambucana, Marcos FM. Responsável pela criação e aplicação da disciplina Estética do Frevo no Conservatório Pernambucano de Música, Marcos vem inspirando uma

nova geração de músicos a compor frevo. “Nas aulas, os alunos aprendem sobre a história do frevo, as características, as diversas transformações, a partir de vídeos, LPs antigos, apreciação musical em geral, estilo de cada maestro, o jeito de compor, os instrumentos, sonoridades do frevo.” O professor vem dando valiosa contribuição ao Paço do Frevo. “Tem sido um importante espaço para fomentar a pesquisar e as experimentações no gênero, não poderia dimensionar a importância desse órgão. Realizei dois cursos, no ano passado. No primeiro semestre, Harmonia Funcional; no segundo semestre, Orquestração e Arranjo, direcionado para o frevo de rua. Este ano, vou ensinar nova disciplina, Improvisação no Frevo, mostrando aos músicos como criar os seus próprios solos.” O grupo liderado por Marcos FM, Quebramar, utiliza técnicas composicionais da música de vanguarda, erudita e jazz para compor frevo, maracatu e afoxé, entre outros ritmos brasileiros. O quarteto, que tem influência do estilo de Moacir Santos,

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está em processo de finalização de seu primeiro disco. Também colaborador do Paço do Frevo, Henrique Albino conseguiu uma façanha em 2013: ganhou, com apenas 20 anos, o terceiro lugar e a categoria Melhor Arranjo do último Concurso de Música Carnavalesca, com a música Atravessando a rua. “Inicialmente, não acreditava que meu frevo seria classificado, quanto mais receber prêmios. O que mais me emocionou foi o de Melhor Arranjo. Competir com Clóvis Pereira, que é minha principal influência em arranjo de frevo, foi uma coisa, pra mim, inacreditável. Fiquei muito feliz. Naturalmente, quando componho, sempre quero fazer algo diferente e que seja uma surpresa para o público. Às vezes, o tradicionalismo se torna uma barreira pra que a música continue surpreendendo, e foi isso que me deixou mais feliz em ter ganhado, saber que, no futuro, outros compositores que querem surpreender também terão sua vez de mostrar seu trabalho e serem reconhecidos por isso.” O músico começou, aos 14 nos, tocando flauta nos blocos líricos


CON ESPECIAL TI NEN TE KARI GALVÃO/DIVULGAÇÃO

Entrevista

ANDRÉ FREITAS “ACONTECE HOJE UMA REVOLUÇÃO SILENCIOSA” Responsável por planejar,

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Inocentes, Seresteiros de Salgadinho e Batutas de São José. Depois, aos 16, ingressou no Grêmio Musical Henrique Dias. “Foi quando conheci o grande saxofonista e arranjador Ivan do Espírito Santo e as orquestras de frevo de Olinda, que foram meus professores de frevo, me fizeram, além de tudo, amar essa estética tão profunda e querer participar sempre dela.” Ao mesmo tempo em que praticava a música nas ruas de Olinda, Albino escrevia arranjos para algumas orquestras. “Estudei muito transcrição de frevos, estudei frevo todos os dias por mais ou menos dois anos, analisei todos os instrumentos da orquestra, procurei arranjos dos grandes maestros pra analisar e toquei bastante pelas ladeiras, que é como se fossem as provas nessa escola olindense de frevo.” O músico ainda não gravou um disco, algumas de suas composições estão no SoundCloud, onde se pode constatar seu talento como compositor e arranjador. “Todos os meus trabalhos contêm frevos, nada mais pernambucano, e eu amo a música da gente. Tenho interesse em gravar um álbum só de frevos, mas isso é um projeto que vai precisar de patrocínio, e até agora todos os meus trabalhos foram independentes. Quando for a hora dessa articulação chegar, com certeza vai vir um álbum com

8 HENRIQUE ALBINO Aos 20 anos, venceu o Melhor Arranjo no Concurso de Música Carnavalesca

muitos frevos bem tronchos em várias formações diferentes!”, brinca. Henrique Albino integra uma “juventude dourada”, ansiada por Capiba, “fazendo o que seus avós (mestres do frevo) fizeram em tempos passados”, mas que precisa do apoio do contexto ideal: “É uma pena que o concurso parou de ser feito. O fato de ser uma competição não me agrada, mesmo ficando feliz por ter ganhado. Mas ela não pode parar, porque acaba servindo de combustível para que se continue compondo e surpreendendo. Eu mesmo compus Atravessando a rua apenas para o concurso. Sonho com o dia em que não haja apenas um festival de frevo, mas muitos, o ano inteiro, que fomentem novas composições. Não apenas um concurso, mas algo que faça o publico mais jovem sentir vontade de viver esse som tão pernambucano, algo que nos faça viver experiências jamais vividas antes com ele, que não serve só pra dançar, mas também pra ouvir e pensar, surpreender e ser surpreendido, essa coisa tão abrangente que é o frevo”.

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coordenar, executar e acompanhar as atividades da Escola de Música do Paço do Frevo, que funciona em casarão histórico na Rua da Guia, s/n, no Bairro do Recife, André Freitas é um dos nomes por trás do sucesso da instituição que, neste mês, completa três anos de fundação. Nesta entrevista, o músico e compositor formado em Música pela UFPE, produtor musical e ex-professor do Conservatório Pernambucano de Música, fala sobre as ações realizadas e as principais saídas para os entraves do gênero musical. CONTINENTE Qual é o entrave do frevo? ANDRÉ FREITAS O frevo de rua, na rua, está num risco gravíssimo. Ele está sofrendo com questões econômicas, a falta de uma política pública dedicada a isso, que contemple esse universo. CONTINENTE Quais os problemas do frevo de rua, exatamente? ANDRÉ FREITAS A grande questão é a falta da sistematização do método e de ter um banco de partituras com repertório. Ninguém libera o material. Os músicos, que são iniciantes, param de estudar muito cedo. Falo do perfil que a gente atende aqui, no Paço do Frevo – aí estou falando exclusivamente de frevo de rua, porque o recorte pra frevo de bloco é outro. O músico de frevo de rua tem entre 19 e 24 anos, Ensino Médio incompleto, recebe até três salários-mínimos de renda. Esse cara, geralmente, não consegue entender de forma artística o seu ofício. Como não acessa os arranjos, tira de ouvido de forma errada o que é feito numa formação de orquestra. Tem um naipe de trompetes às vezes em uníssono, mas em outras estão harmonizando,


ALCIONE FERREIRA

presença de Wynton Marsalis (o músico norte-americano se apresentou em palestra no Paço com o Maestro Spok, em 2015) aqui. Foi como se tivessem descoberto que a última mina de ouro está no Recife. Essa repercussão de sua vinda alcança a parte acadêmica, que tem uma lacuna gigantesca. Mas, hoje, a gente começa a acompanhar músicos e pesquisadores de fora de Pernambuco fazendo mestrado e doutorado sobre o frevo. Recebemos japoneses, italianos, portugueses que estão pesquisando o tema a distância. Então, a sistematização muito provavelmente acontecerá por algum gringo.

o primeiro com o terceiro, o segundo com o quarto, assim como o naipe de trombones, os saxofones que deveriam ir do grave até o agudo, do barítono ao tenor; há dois saxes altos e um soprano e a tuba. Eu tinha falado (no debate sobre música, publicada na edição de maio de 2015 da Continente) que a tuba virou o mico-leãodourado. Não é que o instrumento vá sumir, ele vai continuar nas formações militares, nas bandas civis. Está sumindo da formação em orquestras do frevo de rua. Na rua, dificilmente você encontra um tubista que seja um músico competente, que domine e realmente execute o que está lá na concepção do arranjo original ou numa releitura, quando encontra. E isso já implica uma questão geracional, os que tocam o instrumento são mais de uma certa idade. Então, a orquestração do frevo de rua, na rua, está mudando, pelas escolas, por questões mercadológicas, mas também por esse registro de preço, que existe numa formatação ingrata do mercado via poderes públicos. Hoje, uma orquestra de nível A, top, não recebe mais do que 3 mil reais. A orquestração original demandaria 18 músicos. No carnaval do ano passado, anotei aqui, na frente do Paço, uma orquestra com sete – a tuba você já não encontra, tem um sax alto e um tenor, um trombone e um trompete, todos tocando, em uníssono

“Os turistas questionam ‘Isso é frevo?’ Então, a forma instrumental na rua está num momento grave” e desafinados, 10 ou 12 temas que são recorrentes. Quando tocam Fogão, emendam com Vassourinhas e, depois, com Parabéns pra você, e é isso aí. CONTINENTE E os foliões não notam… ANDRÉ FREITAS Acho que é mais grave do que isso. Os turistas questionam “Isso é frevo?”. Então, a forma instrumental na rua está num momento grave. CONTINENTE Você percebe isso desde quando? ANDRÉ FREITAS Nos três anos da plataforma de observação privilegiadíssima que é o Paço do Frevo. Vou fazer um livro, estou analisando o desenvolvimento (dessa música) a partir do século XX até a nova geração que está apontando, que é onde entra o frevo de rua no palco, que vai muito bem, obrigado, não só pelas duas orquestras de maior projeção, a da Bomba e a de Spok, mas, simbolicamente, a própria

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CONTINENTE Fale um pouco sobre o encontro de Wynton Marsalis no Paço do Frevo. ANDRÉ FREITAS O que trouxe Wynton Marsalis dos Estados Unidos até aqui foram, sobretudo, as nossas identidades com New Orleans, porque não é parecido, é igual. A única diferença é a articulação, a linguagem, o fraseado, o sotaque, porque o resto é matemática. Eles vão pensar em quatro, a gente vai pensar em dois. Mas é isso que vamos enxergar, “ouvir”, melhor dizendo, acho que em mais dois anos. Pela agenda da (orquestra nova-iorquina) Lincoln Center, em relação à música brasileira, eles chegaram até Hermeto, que tem 80 anos. Já percebemos nitidamente a influência da música cubana, africana, europeia na sonoridade da Lincoln Center, mas, daqui a uns dois anos, vamos notar a influência da música de Pernambuco. Eu vi isso acontecer aqui dentro, troca de material, de bocal, de método, disco. Isso não vai ser só na orquestra, vai ser também nos subgrupos, nos quartetos, nos trios, nos quintetos de metais. Então, está acontecendo hoje uma revolução silenciosa, e só falei do frevo de rua. Porque o frevo de bloco é outro universo, outra questão. CONTINENTE E em relação à produção e execução da música de frevo desvinculada do curto período do Carnaval? ANDRÉ FREITAS O que acontece é que o problema teria várias frentes, as escolas de música do estado não reconhecem nenhuma parcela significativa da música popular, quanto mais do frevo. Esse problema tem a ver com formação. Claro que, da minha geração para cá (eu me formei em 1996, já se vão 21


CON ESPECIAL TI NEN TE BETO FIGUEIRÔA/DIVULGAÇÃO

anos), passou a existir um núcleo de música popular na UFPE e, agora, uma Orquestra de Frevo Experimental. O Conservatório (Pernambucano de Música) – através de iniciativas muito valorosas de Marcos FM, que foi do Treminhão e está na Orquestra Quebramar – tem uma cadeira de Análise Estética do Frevo. Nino, filho do (maestro) Duda, fez a Semana do Frevo dentro do Conservatório. Algumas soluções já surgem, mas quando você pensa que um músico vai ter um tempo médio, como um saxofonista, do início dos estudos até estar na performance de 10 anos, então a urgência seria de pensar como desenvolver um mercado anual para o frevo agora. A sazonalidade ainda é o grande problema. E o que é o mercado, hoje? O receptivo do aeroporto? O receptivo de agência de turismo, com sete músicos e dois casais de passistas? A gente está falando de uma música de formação de orquestra que tem tantos elementos musicais, tanto refinamento, que ela pode e deve, sim, ser executada em sala de concerto. CONTINENTE De que forma o poder público poderia contribuir neste sentido? ANDRÉ FREITAS Ele tabela por baixo o valor, não existe a saudável disputa do mercado. O músico poderia estudar, formar uma boa orquestra e disputar um mercado, cobrar seu preço. Mas se o cachê máximo é de R$ 3 mil… Aí o músico, que tem uma boa agenda de contatos, chama cinco músicos novos e paga entre R$ 80 e R$ 120 uma tocada de três horas no Carnaval. Geralmente, eles fazem de três a quatro saídas, tocam de 9 a 12 horas por dia, até o lábio sangrar. Passa o Carnaval, não tem mais mercado, o músico guarda o instrumento, não faz manutenção. No ano seguinte, o instrumento não afina. CONTINENTE Teria como saber quantas orquestras de frevo existem hoje? ANDRÉ FREITAS Vai ser sempre uma estimativa, porque existe um catálogo já desatualizado. CONTINENTE Se os músicos fazem migrações em orquestras, é difícil fazer essa conta. ANDRÉ FREITAS Migração? Eles vão deixar o contratante na mão, se alguém der mais 10 reais para eles tocarem! Isso acontece aqui na frente, durante

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o Carnaval, o bloco está parado na concentração, e um cara já vem com a camisa de outro grupo na mão: “Quanto é? Oitenta reais? Te dou 90!”. Isso não tem a ver com música, isso não é certo, errado, bom nem ruim, isso é uma parcela do mercado.

Oséas é o que o carnaval de rua foi um dia. Então, a experiência de você sair na Pitombeira, no Eu Acho é Pouco, Siri na Lata, que são geralmente os contratantes dele, vai ser uma experiência única, a verdadeira experiência do que é ou do que foi o carnaval de rua.

CONTINENTE Mas há alguns maestros que conseguem manter uma orquestra fixa. ANDRÉ FREITAS Pouquíssimos.

CONTINENTE O Paço do Frevo tem registrado o material das experimentações nele realizadas? ANDRÉ FREITAS A memória do museu está toda registrada, é isso que, dessa plataforma privilegiada, me faz afirmar: não tem crise criativa nenhuma. O frevo sofreu grandes impactos ao longo de sua trajetória. O último foi o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade (concedido pela Unesco). Essa movimentação dos 100 anos do frevo (comemorados em 2007), conjugada com o momento de expansão econômica vivido, refinaria, montadora, Hemobrás, estaleiro, gerou um volume tão gigantesco de recursos

CONTINENTE São quantos? ANDRÉ FREITAS Em Olinda, três: Oséas, Carlos e Lessa. Todos os músicos sempre se referem a esses três como os melhores de Olinda. Estou pesquisando Oséas e Spok, são modelos diferentes. Oséas não vai atrás de edital nenhum. Ele cobra o preço dele, dependendo do quanto você tenha de orçamento, ele vai sair com 20 a 35 músicos. Ele não sai com uma tuba, ele sai com quatro, dois surdos, duas percussões, dois caixas, três pandeiros.

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1 DO FREVO AO JAZZ Wynton Marsalis e Spok em encontro no Paço para discutir os gêneros

em troca, dá uma apresentação pra gente. A partir daí, já tem um novo show pra vender, o de frevo. CONTINENTE Como o público responde às experimentações no frevo realizadas no Paço? ANDRÉ FREITAS Maravilhosamente bem. A prova é a própria frequência da Hora do Frevo (pocket show, toda sexta, ao meiodia), que foi pensada na busca de uma alternativa (para a dificuldade de se viabilizar espetáculos desse gênero), já que uma orquestra é caríssima. Não tem como! Isso só aumenta a relevância de Spok e de Forró, que conseguem circular com orquestra, hoje. Se a gente fosse pensar numa figura de linguagem, Marsalis, quando passou aqui, foi o Zeppelin, mas Spok chegando no Lincoln Center – ele já tinha vindo da Berklee (College Music, de Boston) e 16 cidades, fizeram quatro concertos, dois por noite na sala 2 do Lincoln Center, porque na 1 estava a orquestra Lincoln Center, acochou todo mundo na coxia – é, pra mim, quando o homem pisou na Lua. CONTINENTE Como é a relação do Paço do Frevo com os outros grandes maestros do frevo? em Pernambuco, que “sobrou” para a cultura. E essa conjunção perfeita de tempo possibilitou a criação do Paço do Frevo, porque faltava um espaço de convergência e convivência, como foi a (gravadora) Rozenblit, na qual todo mundo se encontrava. CONTINENTE E agora está ocupando o espaço que foi ocupado pela Rozenblit. ANDRÉ FREITAS Sim, porque aqui no Paço recebemos de Claudionor Germano a quem você imaginar. O maestro Clóvis Pereira sai de casa e vem aqui pra tomar café, comer um bolo de chocolate, que ele adora, fora toda uma geração de músicos que está produzindo aqui dentro, que a gente está fomentando. Às vezes, para alimentar a programação artística, o cara tem um grupo de música instrumental, mas ele não tem frevo no repertório, disponibilizamos a infraestrutura, ele ensaia sem custo, desenvolve o repertório e,

“Geralmente, os músicos fazem de três a quatro saídas, tocam de 9 a 12 horas por dia, até o lábio sangrar” ANDRÉ FREITAS Já no primeiro ano, conseguimos construir esse sentido de pertencimento, porque isso aqui não é nosso, isso aqui é deles. Estou aqui de passagem, estamos, eles vêm pra casa. Então, isso foi muito gratificante, mais do que qualquer outra coisa, foi o respeito, e aí eu amplio para toda a comunidade. No ano passado, exatamente nesse período, estávamos no processo de desmobilização, o contrato não havia sido renovado, então, todo mundo assinou aviso prévio.

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CONTINENTE Isso foi parar na imprensa. ANDRÉ FREITAS Quando isso vazou, foi muito reconfortante ver postagens e todo mundo que vinha aqui à porta dizendo “a gente não vai deixar”, “não pode”, isso ampliado até para os mestres. Clóvis Pereira, por exemplo, foi o primeiro professor de orquestração e arranjo, ainda em 2014, Maestro Duda está sempre aqui, Guedes não, por conta do AVC. Mas todos eles estão aqui, de uma forma ou de outra. Edson Rodrigues, quando vai resolver alguma coisa no centro da cidade, deixa o sax dele com a gente, no centro de documentação. Penso que, para eles, a questão mais difícil disso, pensando em outro impacto, teve a ver com a desarticulação dos carnavais sociais, já que cada clube tinha a sua orquestra, Sport, Internacional. Então, eles acabaram perdendo mercado. Os únicos que ainda circulam no formato do carnaval atual são Duda e Ademir, mesmo assim sazonalmente. Já essa outra geração, por exemplo, Ivan do Espírito Santo, 45, músico da banda da Aeronáutica, é a essência pedagógica da Henrique Dias, com 60 anos de fundação. Spok e Forró já se apresentam com maior frequência. Marcos FM, se for pensar essa geração do meio, de 45 anos, Nilson Lopes, com a Banda Sinfônica do Centro de Criatividade de Olinda, ou como arranjador oficial da Banda Sinfônica da Cidade do Recife, deve ser o próximo professor de orquestração e arranjo do Paço. Entendemos que essas disciplinas devem ser ministradas por um cara desses, cada um é uma escola em si. Ademir e Guedes são os que têm a maior ligação com a origem militar, do dobrado, cadenciado. Duda, na minha leitura, foi o que recebeu mais influência da música norteamericana. A música dele tem tudo do cromatismo, de nota de passagem, antecipação, substituição. Então, ele cria uma linguagem harmônica, mais contemporânea. Clóvis é o mais erudito. Quando você vai estudar, ouve a influência da Berklee, e ainda tem uma parcela do repertório dele, que é esse seu período lá, que ninguém conhece. Curiosamente, a menor parcela da obra de Clóvis é justamente o frevo. Então, está tudo interligado. DÉBORA NASCIMENTO


EDUARDO ARAÚJO/DIVULGAÇÃO

CON ESPECIAL TI NEN TE

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DANÇA Por dentro do passo

Passistas, grupos e instituições atuam durante todo o ano para dar mais expressão e consolidar as várias formas de pôr o frevo em movimento TEXTO Valéria Vicente

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Qualquer pessoa que já brincou carnaval entre Olinda e o Recife, sabe que não é preciso nenhuma técnica para dançar frevo seguindo as orquestras. Mas o passo, denominação que o teatrólogo Valdemar de Oliveira disseminou para a dança do frevo de rua, exige dedicação e força física. Não são poucos os que se aventuram entre tramelas e tesouras, mas, assim como outras áreas da dança, poucos compreendem a dedicação de tempo e estudo que implica ser e manter-se passista. Para os passistas, amadores e profissionais, o frevo faz parte de suas vidas praticamente o ano inteiro, pois eles criam estratégias para isso acontecer. Para além disso, defendem a possibilidade de essa forma de viver o frevo se expandir para mais pessoas e fazer parte de um mercado que retribua financeiramente a dedicação que fazem ao passo. O Mestre Nascimento do Passo defendia que existem tantos passos


1 GUERREIROS DO PAÇO

Grupo estimula a prática da dança frevo ao longo de todo o ano

são apresentadas em filas que repetem movimentos sincronizados para atravessar a multidão e garantir fôlego nos longos percursos pelas ladeiras. Não à toa, esses grupos são formados, em geral, por jovens e crianças, sua forma de fazer o passo é bastante enérgica, destacando as exigências de força e agilidade, e apresentam a corporalidade com menos influência de danças acadêmicas, como o balé. O Balé Popular do Recife, com suas criações na década de 1970 e 1980, influenciou a forma de apresentação do frevo, enfatizando coreografias em conjunto e variações coreográficas geométricas no uso do espaço. Os grupos ligados a essa tendência, como a Cia. Perna de Palco, evitam incluir movimentos de outras danças, atendose à sistematização inicial. Nos anos 2000, a Escola Municipal de Frevo criou um grupo de dança, coreografado pelo dançarino e professor

As formas de dançar o passo hoje resultam de diferentes influências desde a segunda metade do século XX quanto pernambucanos, mas hoje, dentro desse universo, também existem estilos, ou escolas estéticas. Entre os que se dedicam à dança, destacamos quatro escolas, cuja forma de dançar foi construída através de diferentes influências desde a segunda metade do século XX. Ressaltando que, dentro dessas escolas, existem ainda outras variedades de dança. O passista de grupo é aquele que aprende e ensaia para acompanhar troças e clubes carnavalescos. Os mais antigos estão no Sítio Histórico de Olinda, como a Cia Brasil por Dança, ligada ao Clube Vassourinhas, os grupos Acauã e Frevança, ligados à Troça Cariri, o grupo Frevo, Capoeira e Passo e a Associação Frevolinda. Os líderes desses grupos foram formados pelo Mestre Nascimento do Passo, quando atuou em Olinda, na década de 1980. Hoje estão incorporados às tradições da cidade. Suas coreografias

Alexandre Macedo, que apresentou uma mistura da potência do frevo dos passistas formados por Nascimento do Passo com a elaboração coreográfica da dança cênica. A escola obteve destaque nacional e internacional e passou a difundir o frevo vigoroso, que desde então é o mais legitimado pelo Concurso de Passistas e nas divulgações oficiais. Seguindo para outra direção, antigos professores da Escola Municipal de Frevo, que foram desligados após a saída do Mestre Nascimento do Passo, dedicaram-se à transmissão do método daquele passista e defendem um passo voltado para a expressão individual e à relação direta com a orquestração (não apenas com a marcação binária do frevo). Os grupos Guerreiros do Passo e Brincantes das Ladeiras são os principais estimuladores dessa forma de dança e suas aulas acontecem em praça pública. Seus integrantes podem se apresentar profissionalmente

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e propor criações artísticas, mas seu foco é o passo como expressão do carnaval de rua. No Carnaval, o objetivo é ir para blocos e troças com tradição, procurar as orquestras de maestros que apresentam repertório vasto, como Oséas, Babá e Lessa, e assistir aos melhores shows de frevo.

IMPASSES

Para que todas essas expressões do passo aconteçam no Carnaval, seus integrantes trabalham praticamente o ano todo, mas com pouco apoio ou visibilidade. Para o passista, mesmo o período momesco não é um espaço de grande reconhecimento. Por exemplo, não existe, durante a folia, nenhum espaço oficial pensado para a apresentação dessa arte. Os passistas estão sempre se ajustando à estrutura para os shows de música e seu destaque depende do interesse do artista. “Alguns músicos acham que o passista retira atenção do cantor e da orquestra, alguns chegam a recusar nossa apresentação”, declara Ana Miranda, que dirige a Escola Municipal de Frevo e a Cia Perna de Palco. Para dar visibilidade aos ganhadores do Concurso de Passista, Miranda criou o grupo Passistas Campeões, que se inscreve na programação do Carnaval, pois a premiação de R$ 1.800 (para o primeiro colocado) não é articulada com destaque nem na mídia, nem nos palcos. Nem sempre pessoas que vão para o carnaval de Olinda reagem com bom humor à ideia de abrir espaço para os foliões desenvolverem o passo. “Uma vez um cidadão quis brigar comigo e eu não tenho ideia do que fiz com ele”, conta o passista Ferreirinha. “Em geral, as pessoas gostam e aplaudem, pedem pra gente continuar. Alguns maestros colocam a gente pra dançar junto do estandarte, mas a relação entre orquestra, público e passista ainda tem que se ajustar”, aponta. Esse é o tipo de trabalho educativo que as ações de salvaguarda poderiam fazer, explicando as especificidades do frevo em campanhas de amplo alcance, pois a multidão que toma as ruas é cada vez maior e diversificada em sua relação com o Carnaval. Os envolvidos com o passo se ressentem de políticas públicas estruturadoras. “Falta espaço que não seja para turista ver”, reclama Ana


CON ESPECIAL TI NEN TE FOTOS: ALCIONE FERREIRA

2-3 AULAS Brincantes das Ladeiras é um dos grupos que praticam a dança do frevo em espaços abertos 4 FERREIRINHA Funcionário público começou a dançar o passo aos 49 anos

Miranda, que defende que a Escola Municipal de Frevo deveria atuar através de extensões em outros bairros da cidade. Eduardo Araújo, diretor do projeto Guerreiros do Passo, reflete que a difusão do frevo como arte folclórica, vinculada apenas ao Carnaval, afasta a juventude. “Nada contra os grupos de swingueira, mas seu crescimento reflete a ausência do Estado no incentivo às artes regionais”. A esse respeito, o funcionário público e passista Victor Ramos acredita que o frevo “tem que se soltar, mas sem deixar o ciclo carnavalesco, como hoje existem eventos com samba e forró ao longo do ano. O frevo precisa se libertar dessa pecha de só ser música do Carnaval”. Na observação de Daniela Santos, coordenadora de dança do Paço do Frevo, “existe um mercado a ser explorado, descoberto, com relação ao frevo”, e caberia aos passistas e gestores construírem espaços para a vivência do frevo ao longo do ano. Poucos são os passistas, como Renée Cabral, 27 anos, que conseguiram autonomia financeira como dançarinos e coreógrafos. “O frevo dá a oportunidade de você conquistar outros espaços. Viajar, conhecer muitos artistas. Estou muito feliz com o que conquistei com frevo”, comemora o passista, que dirige na Cia de Frevo do Recife e coreografa a quadrilha Dona Matuta. Retomando as ideias de Nascimento do Passo, o passista Ferreirinha advoga a inclusão do frevo no currículo escolar. Mas, a curto prazo, ele também sugere: “Se nos projetos existentes para a saúde física, como a Academia da Cidade, houvesse aulas de frevo, já seria uma demonstração de valorização”. Espaços semanais para o frevo, como o Dançando na Rua, evento que oferece aulas e apresentações como estímulo para a dança de salão, foram sugeridos por vários dos artistas entrevistados.

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CAPITAL HUMANO

Já na década de 1970, Nascimento do Passo percebeu que as mudanças da indústria fonográfica, que afetavam a

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produção de frevo ao longo do ano, eram uma ameaça para a sobrevivência da dança. A partir disso, decidiu dar aulas em praças e clubes e criar um método de ensino. A escolarização foi o caminho encontrado para transmissão do passo e é onde a maioria dos seus amantes encontram apoio para alimentar sua paixão. “Além da manutenção da técnica do frevo, fazer as aulas permite que você esteja sempre afiado pra dançar frevo. Já que é uma dança que exige muita resistência física, dançar o ano todo evita lesões”, explica o professor de dança Edson Vogue. De acordo com Eduardo Araújo, o mestre Nascimento do Passo defendia que o frevo fosse vivido o ano todo, como ginástica, terapia e lazer. “A gente sempre achou que o Carnaval era um momento de culminância e não de iniciar o contato com o frevo”, explica. Quando soube da existência do grupo, o eletricista Laércio Olímpio, 45 anos, passou a frequentar as aulas. “Comecei a praticar frevo durante o ano todo quando conheci os Guerreiros, em 2012. Aquele folião de outrora passou a ser um passista folião.”

Um elemento que difuculta a propagação do frevo ao longo do ano é a falta de informação sobre essa dança Um elemento que dificulta a disseminação do passo ao longo do ano é a falta de informação sobre a dança, junto com o conceito de que se trata de uma prática para pessoas jovens e musculosas, como são os personagens das peças publicitárias. Sobre o frevo, é comum ouvir “não tenho joelho pra isso”, “se eu dançar isso me quebro todo”. Em 2008 realizei pesquisa com o fisioterapeuta Giorrdanni Gorki para identificar demandas físicas e facilitar o ensino do frevo. Constatamos a grande exigência muscular e articular do frevo e oferecemos indicações práticas e atividades complementares que podem facilitar o aprendizado dessa dança. Assim como qualquer atividade física,

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a escolha de profissionais capacitados permite trabalhar com segurança e ir aumentando aos poucos as exigências físicas. A vantagem do frevo em relação a outras danças sistematizadas é que desde a primeira aula, mesmo sem elaboração técnica, é possível ter acesso aos seus prazeres e suas alegrias. Foi essa alegria que fez o funcionário público Ferreirinha procurar a escola de frevo aos 49 anos para reequilibrar a saúde (leia entrevista com ele no site da Continente). Oito anos depois (e oito quilos mais magro), exibe-se como exímio passista. “Apesar da exibição, eu danço para meu regozijo. Depois que comecei a tomar consciência do frevo, da riqueza que ele tem e do instrumento que ele é para intensificar meus impulsos vitais, tenho mais disposição, tranquilidade, percepção, equilíbrio”, afirma. Assim como Ferreirinha, outros passistas, como Gere da Sombrinha, 55, Laércio Olímpio,45, e Landinha, 52, desafiam os limites da idade através do frevo. “Eu sempre digo que a gente pratica a felicidade e o frevo é a ferramenta para isso”, diz Wilson Aguiar, 52, professor dos Brincantes das Ladeiras.


CON ESPECIAL TI NEN TE JU BRAINER/DIVULGAÇÃO

5 FLAIRA FERRO Bailarina reelaborou sua atuação como passista

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Iniciativas institucionais também são fundamentais para o estímulo do frevo ao longo do ano. Inaugurado em 2014, o Paço do Frevo é um Centro de Referência, mantido pela Prefeitura do Recife e Fundação Roberto Marinho. De acordo com a coordenadora de dança da instituição, Daniela Santos, o Paço oferece cursos livres e cursos de aperfeiçoamento profissional, além de apresentações artísticas e espaço para ensaios. Para Daniela, mesmo com as limitações financeiras, a chama do frevo se mantém acesa ao longo de todo o ano. “Nosso educativo é diariamente solicitado pelas escolas. Fora isso, os fazedores (líderes de agremiações, foliões, passistas e músicos) visitam, provocam, impulsionam nossas iniciativas”, defende Daniela. A Escola Municipal de Frevo Maestro Fernando Borges é vinculada à Prefeitura do Recife e oferece turmas diariamente, nos níveis iniciante, intermediário e avançado. De acordo com censo realizado em 2015, a escola atende a 648 pessoas, de 5 a 70 anos, de diversas faixas econômicas e provindas de toda Região Metropolitana.

CRIAÇÃO NA TRADIÇÃO

Ao longo do ano, a tradição do frevo também é mantida através de criação e intercâmbio. Foi justamente o

Instituições e escolas de dança no Recife e em Olinda contam com aulas regulares do passo, mas ainda é preciso mais estímulo trabalho como profissional da dança contemporânea que me reaproximou dessa dança, que aprendo desde a infância. Encontrei no frevo um caminho para reconhecer e questionar os movimentos que me constituem e criar relações poéticas e políticas. Outros passistas também encontram na participação em espetáculos espaço e estímulo para se manterem na dança. Por exemplo, a dançarina e cantora Flaira Ferro fez a reelaboração de sua atuação como passista construindo o espetáculo solo O frevo é teu?, participando da Antônio Nóbrega Cia de Dança, de São Paulo, e criando comigo, Spok e Lucas dos Prazeres, o trabalho Frevo de casa. Recentemente, os jovens passistas, ex-integrantes da Cia de Frevo do Recife, Júnior Veras e Rebeca Gondim se mantiveram pesquisando e apresentando o trabalho Memórias sensíveis através do frevo. Rebeca, que faz licenciatura em dança na UFPE e

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participa do Grupo Experimental, está investigando memórias do Carnaval relacionadas ao corpo feminino. O Guerreiros do Passo, desde 2006, circula e aprimora o experimento O passo, e integrantes dos Brincantes das Ladeiras criaram o grupo Frevoeterno e o espetáculo Imaginário para dar vazão a suas ideias criativas. Essas práticas permitem o aprofundamento das escolhas estéticas, proporcionam contato com diferentes públicos e permitem a inserção do frevo em contextos que não são o Carnaval. Em outras iniciativas, o frevo enquanto linguagem deixa de ser questionado, mas o corpo do passista é matéria para a dança. É o caso da olindense Iara Sales, que investigou relações entre os carnavais de Recife e Salvador, na performance Peba; e de Otávio Bastos, conhecido pelos 10 anos de atuação junto a Antônio Nóbrega, e que costuma desenvolver trabalhos com colaboradores de outras culturas, a exemplo do espetáculo It’s a woman’s world, em parceria com a artista finlandesa Hanna Vilander. Como espetáculo, vivência ou terapia, passistas vão costurando soluções para manter os traçados e trejeitos do frevo nas ruas e nos palcos e ampliar o conhecimento do frevo como potência para o desenvolvimento humano.


PEDRO ESCOBAR/DIVULGAÇÃO

Palco

1 MAGILUTH Grupo trabalha para estrear a peça em abril

MAGILUTH Um Hamlet descentrado

Grupo recifense trabalha na montagem do texto de Shakespeare, que não segue à risca sua estrutura narrativa original, mas mantém sua carga política TEXTO Mateus Araújo

O reino está podre. A cadeira do poder foi surrupiada numa traição orquestrada. Para chegar ao posto, o novo rei assassinou, roubou e enganou. Mas não chegou sozinho, teve o apoio de seus cúmplices; iludiu seus súditos e assumiu o trono. Numa narrativa de inúmeras humanidades, situações de desejo, buscas e egocentrismo, Shakespeare criou Hamlet, uma de suas mais famosas obras, um de seus textos mais lidos e refletidos, não só no teatro, mas em todas as esferas de análise do homem e da sociedade.

Com montagens de variadas estéticas e múltiplas abordagens no mundo inteiro, o clássico do bardo inglês agora vai receber nova versão, montada pelo Grupo Magiluth, cuja estreia está prevista para abril deste ano. Com Hamlet, a companhia recifense novamente mergulha numa dramaturgia consagrada. Há três anos, eles deram uma pausa na investida em textos autorais e adaptaram Viúva, porém honesta, de Nelson Rodrigues, nas comemorações do centenário do anjo pornográfico. Foi um experimento

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premiado, o qual tensionou a farsa teatral através do jogo cênico construído nos limites do real e do criado, marca da sua linguagem teatral. Dessa vez, a decisão de tomar o clássico shakespeariano como base para a nova montagem do grupo veio após a leitura de variados textos – muitos deles clássicos. “Durante o processo de montagem de O ano em que sonhamos perigosamente (2015), para chegar ao fragmento que usamos de Tchekhov (o grupo pinçou cenas de O jardim das cerejeiras e as usou na encenação), passamos por outros autores, inclusive Shakespeare”, lembra o ator Giordano Castro. A decisão de escolher Hamlet como uma nova montagem, conta ele, foi do diretor Pedro Wagner. Não é a primeira vez que a companhia recifense pega nuances do texto do dramaturgo inglês. Em 2010, em Um torto, o Magiluth utilizou Hamlet na dramaturgia. Naquele momento, o grupo se apoderou das questões existenciais do personagem de Shakespeare. “Um torto nos levava a entender o indivíduo. Era uma fase pessoal nossa de querer nos conhecer. Era olhar para nósmesmos. E ali utilizamos um pedaço de Hamlet”, pontua Castro. Sete anos se passaram daquela experiência e, como observa o ator, os questionamentos do grupo também


SANDRA DELGADO/DIVULGAÇÃO

Palco caminham em outras esferas. Se, antes, o olhar sobre a identidade individual era uma prerrogativa, agora, a reflexão permeia as questões sociais: o indivíduo como parte de um coletivo. “O mundo e a sociedade quebraram muito rápido. Os abusos eram velados; agora, as pessoas não escondem nem os preconceitos. Sabemos quem são nossos inimigos, eles têm nome. O conservadorismo não tem mais medo de se esconder. E Hamlet nos aponta para isso: ele sabe quem é o assassino do pai e pergunta: como lidar com tudo isso? Como agir?”

POLÍTICA

Primeira peça escrita pelo dramaturgo no chamado Período Trágico, o texto tem referência nas canções medievais islandesas. Na obra, o rei foi morto pelo próprio irmão, Claudio, que assume o trono e se casa com a viúva, Gertrude. Hamlet, o príncipe, descobre o crime ao conversar com o fantasma do pai e começa um plano de vingança para desmascarar toda a armação do seu tio, e agora padrasto. Nesse sentido, as problematizações da ética e da vingança fazem com que Hamlet seja comparado ao momento político atual brasileiro. As questões de poder e traição presentes no texto de Shakespeare possibilitam associações plausíveis ao processo de saída da presidente Dilma Rousseff do seu cargo e a tomada de posto pelo seu até então parceiro e vice Michel Temer. Se montar essa peça nesse contexto é uma decisão panfletária do Magiluth em defesa da sua posição ideológica e política, Giordano Castro se antecipa a dizer que não, mas ainda assim o grupo “não tem medo”, ressalta. “Acho incríveis os trabalhos de grupos que se posicionam veementemente, como a recente montagem da Cia. do Tijolo (SP) sobre Dom Helder (O avesso do claustro, 2016). Os trabalhos do Magiluth têm posicionamento político claro, mas a gente acaba fazendo um trabalho que estimula mais no campo do provocar para a reflexão. Não tomamos partido de nada.” O fazer político do Magiluth, completa Castro, está mais explícito na forma de se viver o teatro. “A gente

entende que os nossos posicionamentos e a nossa forma de fazer teatro já são uma posição política forte. A forma como o Magiluth se propõe a ser um grupo de profissionais que trabalha exclusivamente para o teatro, quando não é fácil nesta cidade, já mostra isso também. Estamos sempre no risco da corda bamba”, conta. Hamlet – que, na verdade, ainda é um nome provisório, já que a peça também poderá se chamar Play Hamlet ou Brasil – tem sido trabalhado à custa do próprio Magiluth, sem patrocínio. “Não aprovamos o Funcultura. Estamos fazendo por conta própria”, esclarece Giordano Castro, referindo-se ao projeto apresentado ao Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, e reprovado. “E isso é político também. Porque a gente se coloca a fazer o trabalho da forma que quer fazer, sem deixar que a situação política molde a nossa forma de trabalhar. É assim que acreditamos nos

Na montagem, o Magiluth dá novas nuances às questões humanas das outras personagens e do próprio ambiente nossos trabalhos. Não é por falta de edital ou porque ele não contempla a visão política do estado, que não vamos fazer.”

MONTAGEM RIZOMÁTICA

A montagem em curso do Magiluth traz um processo de desconstrução, tanto no sentido de abordagem quanto estrutural. Sem querer levar à cena o texto à risca, o coletivo buscou recortes dramatúrgicos para fazer sua adaptação. A versão do grupo para a peça inglesa pretende criar uma sequência de cenas aparentemente isoladas que compõem um todo. “Estou tentando trabalhar por uma perspectiva com a qual eu possa fazer a figura da direção não ser tão hierárquica. Não sei se a gente está diluindo como uma direção coletiva, mas tentando, dentro da estrutura, fluir menos hierarquizado. O que já existe na dinâmica do grupo, mas não tão refletida”, explica o diretor Pedro Wagner. “Precisamos ter

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consciência mais coletiva e horizontal. E uma alternativa foi tentar tirar a hierarquização do texto, por exemplo, no sentido dominante. Começamos a mexer na estrutura da dramaturgia, dos seus atos, e dividir em 15 a 18 movimentos. E isso nos faz pensar na ideia de movimento.” Essa percepção “rizomática” da obra, como Wagner se refere à construção, faz com que as cenas independentes sejam coerentes com o contexto geral da peça. São possibilidades de recortes da dramaturgia que tiram do centro o protagonista e dão novas nuances às questões humanas das outras personagens e do próprio ambiente em que se passa a história, como os lugares assumidos pelas mulheres na trama. Por exemplo, Ofélia, a filha de Polonius, o conselheiro do reino, que é usada por Hamlet psicologicamente e cujos abusos do rei para com ela são ignorados pelas outras pessoas. “Há uma cena na


2 VERSÃO RECENTE Montagem do clássico teve Wagner Moura como protagonista

peça em que Ofélia relata a Polonius que Hamlet estava enlouquecido e foi agressivo com ela. E o pai diz a filha ‘precisamos levar para o rei’, mas como situação episódica e não como uma defesa”, exemplifica o diretor, lançando luz para um olhar também pontuado por questões feministas, que deve estar presente na montagem. A possibilidade de deixar Hamlet no mesmo patamar das outras figuras da história faz parte também do jogo de abertura entre os atores e a plateia, típico da linguagem do Magiluth. “Quando se diz, a princípio, ‘vamos fazer Hamlet’, você pensa no personagem Hamlet, mas acho tendencioso pensar o resto como acessório. Existe um ambiente nesse espaço ficcional, que é a Dinamarca, que pode servir como jogo para esses atores, mais do que desenvolver essa história que todo mundo conhece”, conta Pedro Wagner.

Assim, o reino, lugar fictício, pode ter seu sentido ampliado e assumir uma correlação com o Brasil ou até mesmo com a América Latina.

OUTRAS MONTAGENS

Shakespeare não inventou Hamlet, dizia a crítica de teatro Barbara Heliodora, que morreu em 2015 e era a maior sumidade brasileira na obra do inglês. Shakespeare, explicou Barbara, transcendeu Hamlet. Isso porque, completa ela, o que apenas poderia ser uma história de vingança se tornou uma avaliação interna, uma autoanálise do príncipe para fazer-se entender e se justificar da necessidade de matar o seu tio Claudio. O professor e pesquisador da UFPE Luís Reis ressalta, no entanto, que a universalidade de Hamlet não está na sua leitura política, mas nas percepções psicanalíticas levantadas pelo autor. “Esse raciocínio ligando a peça à política é pertinente, porque a cada momento

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da história a obra vai ser puxada por essas pernas. Mas ali, na trama, há outras camadas sobre o homem que são universais: a inveja, a inquietação, a depressão”, destaca Reis. A complexidade e a riqueza dramatúrgica da peça possibilitam inúmeras interpretações, em variados estilos cênicos. Uma das mais aclamadas montagens de Hamlet, no Brasil, estreou em janeiro de 1948, com direção de Hoffmann Harnish, pelo Teatro de Estudantes. A peça foi apresentada no Teatro Fênix, no Rio de Janeiro, e tinha no papel principal o então jovem ator Sergio Cardoso, celebrado por crítica e público pela sua atuação. O Teatro Oficina também já experimentou a obra. Foi em 1993, na reabertura da sede do grupo paulista. Na sua adaptação, José Celso Martinez Correia imprimiu críticas à sociedade patriarcal e à desigualdade no país. A montagem foi filmada e está hoje disponível no site Global Shakespeare, página colaborativa que reúne material sobre espetáculos do mundo inteiro com textos de sua autoria. A mais recente e famosa montagem nacional foi em 2008, com direção de Aderbal Freire-Filho e protagonizada por Wagner Moura, que dividiu a opinião da crítica. Barbara Heliodora, além de não gostar da adaptação, que tirou as rimas do texto, considerou a montagem “mais do mesmo”. O diretor lhe respondeu, em carta aberta, dizendo que, ainda assim, dedicava a ela a criação. Já o crítico Sergio Coelho, da Folha de S.Paulo, chegou a dimensionar Moura como o “Hamlet da sua geração”. “Não busca ser original, mas eficiente, e faz um apelo contagiante pela própria grandeza do teatro”, pontuou Coelho. No Recife, o professor Luís Reis lembra que uma instigante versão da trama shakespeariana foi feita pelo encenador João Denys, em 2009. O trabalho trazia uma releitura do texto, a partir do diálogo entre Hamlet e o Coveiro. Enquanto remexiam o túmulo, fazendo ressurgir os questionamentos sobre a morte e a traição, os personagens criavam uma espécie de nova história a partir do clássico inglês.


FOTO: CARLOS MONTENEGRO

Inédito

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RODOLFO MESQUITA O desenho de potência crítica Falecido há um ano, o artista pernambucano terá montagem de exposição e lançamento de livro, do qual extraímos o trecho a seguir TEXTO João Lima

Certa vez, Rodolfo Mesquita colocou no papel que “escrever e desenhar são atividades idênticas na superfície e no fundo”. O traço, sua forma de escrita, foi também a maneira – talvez única e inegociável – de estar no mundo, de sobreviver a ele. Nascido em 1952, o artista fez de sua arte uma potência crítica necessária a tempos críticos, como escreve a seguir João Lima, coreógrafo, ator e também filho deste que é um dos desenhistas mais importantes da história da arte pernambucana. Neste mês, faz um ano que Rodolfo faleceu. Para lembrar a força do seu legado, a Cepe Editora publica o primeiro livro sobre a vida e a obra do artista. Inédito, o texto a seguir é parte da publicação que, junto a uma mostra no Museu do Estado, trará ao público a oportunidade de conhecer a força do pensamento e do gesto do artista. CONTINENTE FEVEREIRO 2017 | 59


FOTOS: FRED JORDÃO/REPRODUÇÃO

Inédito Iniciarei estas palavras com uma

advertência: o texto que o leitor está prestes a ler é assumidamente afetado pela proximidade entre o que é descrito e aquele que o descreve. Não poderia ser diferente. Sou filho de Rodolfo Mesquita e aqui traçarei algumas linhas sobre a sua vida e obra. É uma missão arriscada, eu sei. Além da familiaridade, vejo-me diante do impasse de escrever à revelia das convicções do artista, que sempre se demonstrou contrário à autoexposição. Radical, Rodolfo acreditava que a arte devia falar por si, chegando a escrever uma vez: “É preciso falar por necessidade e ficar em silêncio pela mesma razão”. Como não poderia ser de outra maneira, a obra de Rodolfo Mesquita está vinculada às circunstâncias em que ele viveu. Desse modo, o seu fazer artístico está estreitamente ligado ao Recife, à cidade onde nasceu, passou a maior parte da sua vida e onde morreu recentemente, em fevereiro de 2016. Foi na capital pernambucana que o artista elaborou seu trabalho, extraindo dele muitos dos seus personagens e cenas, integrando-os a elementos universais, através de uma perspectiva pessoal. No entanto, ainda que a realidade recifense de sua época tenha sido um cenário importante para as suas representações, a sua arte se afirma para além das fronteiras geográficas e é capaz de inspirar novas leituras através do tempo. Rodolfo era um atento observador de sua época. Mas, ainda assim, em alguns aspectos ele parecia situar-se em outra temporalidade, chegando, por vezes, a se posicionar anacronicamente em relação ao seu tempo. O certo é que a sua consciência histórica lhe permitia uma atitude crítica diante de algumas tendências contemporâneas, em especial diante da apologia ao novo e do culto ao progresso, característicos da modernidade. Rodolfo percebia que o desenvolvimento técnico se devia ao sangue e suor de gerações e que só representava uma melhor qualidade de vida para poucos, submetendo grande parte da civilização a um regime dependente e destrutivo. Além disso, sua

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desconfiança com a noção de progresso também procedia da compreensão de que o conceito se originava, antes de tudo, de uma exigência de mercado, o qual ele recusava com veemência. O ceticismo de Rodolfo em relação ao progresso histórico se estendeu, portanto, ao mercado cultural e à sua constante imposição de novidade. Nada menos do que o acelerador de uma imparável máquina de produção e acumulação de capital. Desse modo, a obra de Rodolfo, elaborada constante e pacientemente, se revela um manifesto contra o império do novo, tão caro à atualidade. No mesmo sentido, sua atividade artesanal, resultado de um processo acumulativo de várias etapas, contrasta com a ideologia da racionalidade tecnológica e sua exigência por resultados instantâneos. Diante da crescente desvalorização do trabalho manual, é significativo lembrar que, até o fim da vida, Rodolfo guardaria consigo o martelo do seu avô marceneiro. Ao que tudo indica, o artista entendeu desde cedo que a tecnologia apenas lhe serviria como ferramenta e que ele já possuía os instrumentos de que precisava: papel e caneta. Rodolfo escolheu seus materiais e foi longe com eles, redefinindo constantemente a sua arte. Sendo autodidata, ele nunca se conformou com

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as formas e estruturas preestabelecidas, buscando criar com seus próprios recursos, através de uma exploração incessante dos limites do desenho. Assim, ele logo percebeu que as convenções da arte e as restrições da superfície do papel lhe serviriam como parâmetros favoráveis ao aprofundamento, para finalmente impulsionar a elaboração de uma linguagem gráfica original. Ao olhar os seus trabalhos, torna-se evidente que toda a sua obra compõe uma série contínua de experimentação e redefinição do seu próprio fazer artístico, sempre deixando os procedimentos à mostra. Frente à progressiva desmaterialização do objeto artístico, os desenhos e as pinturas de Rodolfo Mesquita colocam em evidência a questão da técnica, e revelam um saber específico: a coordenação artesanal entre o olho e a mão. Trata-se de um movimento de duplo sentido, mediado pela subjetividade: através da articulação entre a mão e o olhar, a visão se une ao tato. Daí em diante, a mão se converte em olho e o traço assume uma forma de olhar. Ao insistir no envolvimento direto com as suas criações, o artista reivindica a dimensão da experiência, travando um corpo a corpo com seus materiais


1 PESAR Desenho em nanquim, de 1998 (coleção de Gislaine Andrade) RINGUE, 1978/79 2 Humor crítico está na base do traço do artista (coleção de Gislaine Andrade)

e formas. É por meio desse contato que Rodolfo se dedica a solucionar certos enigmas, charadas que só poderiam ser resolvidas pelo ato de desenhar. Assim, cada desenho se inscreve num movimento contínuo entre pensamento e ação, numa incessante busca de sentido. O termo sentido, na obra de Rodolfo, implica, antes de tudo, direções, vetores, linhas, traços e formas. Essa indagação por uma orientação expressa à perplexidade do artista diante de uma realidade muitas vezes difícil de compreender ou aceitar. Sem temer a luta por sentido, a obra de Rodolfo Mesquita também poderia surgir da sua ausência. Muitas vezes, parece ser o colapso de significado aquilo que desencadeia o processo de criação. E ele não tinha problemas em assumir o lugar de fala de uma consciência incômoda. Essa consciência do seu lugar de observação podia acarretar vertigem, mas era inevitável para o artista. Sua arte é crítica porque os tempos são críticos. Mesmo assim, se, por um lado, o seu trabalho deve a sua motivação, em grande medida, a um sentimento de inconformidade, por outro, seria insuficiente se o reduzíssemos a isso. O conjunto de suas criações também evidencia uma dimensão lúdica, de humor, no qual se pode perceber o prazer e a satisfação

“É preciso falar por necessidade e ficar em silêncio pela mesma razão”, declarou o artista, contra a autoexposição do artista em elaborar suas figuras. Mas Rodolfo era avesso à ideia de arte como meio de autoexpressão e, além desse aspecto, a obra dele também aponta uma rigorosa pesquisa formal. Salta aos olhos que, nos traços do artista, os elementos que compõem a realidade sejam tratados como uma série de experimentos. Através dos seus exercícios de figuração, Rodolfo é capaz de colocar à prova a própria realidade em que estava inserido. Para isso, a sua fonte de inspiração mostra-se diversa, indo desde observações do seu cotidiano pessoal, seu hábito de leitura, até o interesse pela linguagem da mídia em geral – cartazes de publicidade, fotografias de jornais, mapas, catálogos de máquinas, utensílios domésticos, manuais vários et cetera. Qualquer coisa que estivesse ao seu alcance poderia lhe servir como material bruto. E, assim, em sua busca por dissecar a realidade, o theatrum mundi servia de gatilho para o

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seu processo criativo. Rodolfo parecia querer colocar em questão tudo o que estava ao seu redor. E, para isso, processava o acúmulo de referências e o combinava entre si. Seja qual fosse o ponto de partida, imagens que ele encontrava por acaso ou visões próprias, o artista parecia operar através de uma criteriosa “mastigação” daquilo que o afetava, para, em seguida, agitar as formas e, finalmente, revelar uma perspectiva desconhecida. Em sua particular apropriação do real, Rodolfo costumava proceder por subtração, isolando os elementos essenciais para depois rastrear direções. Desse modo, os seus traços designam mapas de relações, dando a ver, por meio de linhas e pontos, as coordenadas de uma geografia própria de pensamentos e sentimentos. A permanente invenção que Rodolfo exercia na folha do papel era a sua forma particular de questionar o campo do possível. O artista colocava em tensão os elementos da realidade para fazer surgir a sua linguagem, uma expressão capaz de sacudir a nossa sensibilidade de forma direta. Entretanto, Rodolfo era contrário ao sentimentalismo e à sedução do público, sendo frequente, em seus procedimentos, a deliberada interrupção da ilusão pictórica. Por meio de recursos de distanciamento, que se assemelham aos do teatro épico


FOTOS: FRED JORDÃO/REPRODUÇÃO

Inédito de Brecht, as suas composições não nos deixam esquecer que estamos diante de figuras desenhadas. Do mesmo modo, em suas obras, a forma reivindica a sua concretude. Seja pelo uso de metacomentários ou através da intromissão da realidade das manchas de tinta, o autor nos adverte das evidências do ato criativo e de sua materialidade. A partir daí, somos convidados a ter consciência da obra de arte enquanto objeto, com acesso aos vestígios da sua elaboração. E, assim, reconhecemos que não existe olhar neutro. Um traço sui generis do trabalho de Rodolfo Mesquita é a sua contínua busca por figurar e desfigurar os personagens que desenhava. Sua trajetória foi dedicada especialmente à representação de figuras humanas, tendo o registro caricatural marcado fortemente a sua etapa inicial. Essa insistência em delinear homens e mulheres, com especial atenção aos seus semblantes, pode ser vista como uma estratégia para desvelar o rosto da sociedade de uma maneira geral. Como se, através da fisionomia de cada sujeito, ele pudesse capturar uma sensibilidade coletiva. Assim, no elenco de personagens de Rodolfo, encontramos figuras anônimas, reconhecíveis pelas suas expressões, estados de espírito e outros códigos sociais. São soldados, burocratas, mulheres diversas, loucos e “homens comuns”, cada qual com a sua máscara determinada pelo uso. Em suas cenas, aparecem indivíduos isolados ou comunidades imaginadas e, por meio delas, parecemos ter acesso à algaravia humana, com suas nuances e tensões. Nessas composições de grupo, surgem turbas interagindo ou multidões dispersas, através das quais Rodolfo tende a representar a massa humana como uma força indeterminada, sem autoconsciência. Aqui, cada uma das figuras exerce seu papel, sendo também frequente vê-las à espera, em delírio, deslocadas de suas atribuições. E assim, a cada quadro, surgem coreografias banais ou inusitadas, em que Rodolfo desdobra lúcidas análises das condições sociais.

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A desfiguração nos desenhos do artista vem a ser um recurso desenvolvido meticulosamente, atuando como meio para dar vazão à sua visão crítica de sociedade. Ao mesmo tempo, através disso, se manifesta uma forma singular de subjetividade coletiva. Se, tradicionalmente, o rosto humano é o elemento mais destacado da representação identitária, Rodolfo parece ir na mesma direção para, contudo, recusar os valores habituais e finalmente revelar uma figuração marcada pelo grotesco. Esta seria a sua forma de renunciar aos tradicionais valores de beleza, associados à autocomplacência, e dizer sim ao assombro e à inconformidade. Eis o seu meio para sacudir a estabilidade do nosso sistema de representação, historicamente movido por um narcisismo exacerbado. Através do grotesco, Rodolfo realiza um gesto de dissenso contra o reflexo atávico de reconhecimento que parece apontar uma dimensão desconhecida.

FIGURAS, OBJETOS

Sapatos, lâmpadas, chapéus, guardachuvas, facas, pistolas, malas, carros e aviões. Esses são alguns dos objetos aos quais Rodolfo dedicou especial atenção em seus desenhos. Suspensos

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3 CETICISMO Visão crítica se manifesta em suas pinturas e desenhos

4 DECAPITAÇÃO, 2009 Obra retrata situação sombria, de violência e tortura

na folha do papel, os objetos frequentemente surgem desprendidos das suas funções instrumentais, retirados dos seus usos e necessidades. Inutilizados pelo artista, aparecem antes como naturezamorta do que como mercancias, manifestando-se como vestígios de outras épocas. Assim, Rodolfo parece extrair capacidades intempestivas dos seus objetos e daí surge uma certa melancolia, sentimento característico da modernidade. A partir disso, as coisas falam, deixando entrever uma dimensão fetichista da nossa sociedade. Através dessa poética, Rodolfo elabora uma crítica, muitas vezes bem-humorada, ao progresso capitalista e dá vazão a formas improváveis. Além dos objetos reconhecíveis, Rodolfo também foi um inventor de máquinas, engrenagens e dispositivos diabólicos. Por meio dos seus instrumentos fictícios, surgem diagramas, estruturas entrecruzadas, sempre com perspectivas inusitadas. São as suas abstrações, que nunca


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abandonam a dimensão material e acabam se convertendo em uma grande máquina de “moer” figurações. Atento ao poder da imagem e à sua estreita relação com a memória, Rodolfo era consciente da dimensão política da sua obra e, sendo assim, os seus trabalhos também podem ser vistos como relatos de uma época. Desse modo, em suas composições, o artista também assume o papel de narrador, contando, através da caricatura, certos costumes absurdos da burguesia, assim como aspectos sombrios da história dos perdedores. Incapaz de ignorar o sofrimento humano, Rodolfo se dedicou a desenhar cenas de opressão e violência, apresentando corpos fracos, esquecidos pela história oficial e retirados do nosso campo de representação. Através de uma linguagem fragmentada, surgem antinarrativas e, com frequência, a superfície do papel se apresenta como o campo de batalha de uma sangrenta luta de classes, na qual uma estranha memória parece vir à tona. Aqui estão implícitas algumas ruínas, catástrofes morais que evidenciam uma decadência civilizacional. Apesar de desenvolver composições com fortes componentes

O cotidiano, a mídia, a realidade, o theatrum mundi serviam de gatilho para o processo criativo de Rodolfo Mesquita contestadores, Rodolfo não estava interessado em lançar mensagens. Mesmo com a presença de textos (que mais tarde seriam abandonados), suas obras são, na maioria, amorais, sem pretensão de exemplaridade e, com frequência, recusam a adesão fácil dos seus espectadores. Ele costumava dizer que seus trabalhos não eram políticos, apenas falavam de política. Talvez essa fosse uma forma comedida de se referir à dimensão política dos seus desenhos. O certo é que, em constante desconfiança com regimes de poder, Rodolfo se recusou a servir como propaganda, renunciando a criar agitprops, seja para qual fosse a ideologia, preferindo manter o seu olhar e a sua arte livres de qualquer etiqueta política. Ainda que no fundo fosse uma pessoa solitária, Rodolfo não era antissocial como alguns poderiam

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pensar. Sua introspecção não tinha nada de alienação; pelo contrário, era um espaço vital cheio de movimento e compromisso com o seu tempo. Tenho a impressão de que ele entendia a solidão como algo necessário e intrínseco à sua forma de viver. Uma forma de vida que prezava pelo tempo para si, para a reflexão e para o silêncio. Mesmo recluso, poucas coisas lhe davam tanta alegria como um bom diálogo. E admiro a capacidade que ele tinha de conversar com todo tipo de gente, sempre com a fala sincera e uma sonora gargalhada. Nas últimas décadas, Rodolfo atravessou algumas transformações. Voltou a expor com um pouco mais de regularidade, chegando a receber um reconhecimento mais declarado tanto da mídia local quanto das gerações mais novas. Suas obras dessa etapa refletem um artista maduro, ainda mais econômico em seus meios, mas sem abandonar as características que o marcaram: a verve inquieta e o traço singular. Entre os temas recorrentes no trabalho de Rodolfo, a morte foi um deles. Abordar essa questão talvez tenha sido a forma que encontrou para compreender a sua própria finitude. Mesmo assim, o fenômeno do desaparecimento permanece indecifrável. Ao revisitar as páginas do volume de Viagem ao fim da noite, de Louis-Ferdinand Céline, livro que Rodolfo leu e releu, encontramos o seguinte parágrafo sublinhado pelo artista: A grande derrota, no fundo, é esquecer, e sobretudo aquilo que fez você morrer, e morrer sem nunca compreender até que ponto os homens são cruéis. Quando estivermos com o pé na cova, nada de bancarmos os espertinhos, nós aqui, mas também nada de esquecer, vamos ter de contar tudo sem mudar uma palavra do que vimos de mais celerado entre os homens e depois calar o bico e depois descer. Isso aí é trabalho suficiente para uma vida inteira. (p. 35) Rodolfo faleceu de forma abrupta no dia 24 de fevereiro de 2016, aos 64 anos de idade, deixando um imenso legado artístico.


José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

NARIZ ENTUPIDO

Quem matou a charada, se se

pode chamar de “charada” coisa de tamanha seriedade, foi Ricardo, tão jovem, marido de minha neta. “É nariz entupido”, ele disse, “isso é nariz entupido”. Fiquei admirado de uma pessoa nova, aí pelos trinta, calculo, já saber dessas coisas, quando a mim tais fatos somente ocorreram, e eu sem saber a que atribuir, depois dos oitenta e quatro entrando para oitenta e cinco anos. A geração mais nova começa a saber das coisas mais cedo, concluí. Acho que hoje foi a segunda ou terceira vez que tive isso. Até me lembrei, durante o próprio “pesadelo”, chamemo-lo assim, da pergunta de Ivan Ilitch no leito de morte: “Então é assim que se morre?” Não sei se vai dar para interromper a leitura dos robustos volumes do Diário de Francisco Brennand, de que não consigo largar, para ler A morte de Ivan Ilitch como faço todo início de ano religiosamente, para não me esquecer de como se escreve, com mil perdões para a ingenuidade. Também vi na televisão uma reportagem sobre algo parecido, e

que ocorria, explicava um médico, quando a mente acorda antes do corpo, manda a ordem de acordar para os outros órgãos e estes não obedecem de pronto. Você, por exemplo, quer se levantar mas as pernas, as mãos, os braços, ignoram essa sua vontade. A gente tenta agarrar em alguma coisa, na grade da cama, na beira do colchão, para erguer o corpo mas este continua paralisado. Você ao mesmo tempo não consegue respirar. Não tenho ideia de quanto tempo demora essa sensação, talvez frações de segundo, mas que dura uma eternidade: sim, eternidade ipsis litteris, porque não sabemos quando, e se, dela sairemos. Lembrei de Joca Souza Leão nos ter descrito alguma coisa assim. A passar por outro momento desse, ele sinceramente preferiria morrer. As pessoas que deram depoimento, na reportagem de televisão a que me referi, eram gente jovem, dois rapazes, que me lembre, e contavam rindo o sucedido como se não passasse de brincadeira. Bela juventude. Nós, velhos, pensamos

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logo na maldita. De fato o médico da reportagem disse não haver consequência nenhuma. Tal “pesadelo” que me ocorreu hoje, e aqui descrevo, começou de uma maneira totalmente insólita, eu dizendo ao meu primo Béco (Albérico) que raramente via, a última vez já faz uns sessenta anos, que eu não admitiria rebeliões: quando eu o convidasse para almoçar, não aceitaria recusas, mesmo que ele usasse como justificativa – veja que conversa sem pé nem cabeça – ir se casar; nesse exato momento descubro que Béco havia muito tempo falecera e que eu próprio não estava conseguindo respirar, talvez estivesse morrendo ou, quem sabe, já tivesse morrido. Vi então o desespero, tentando me levantar – pois aí me vinha a consciência de estar deitado dormindo –, sem conseguir. Na vez imediatamente anterior, poucos dias antes, ou noites, pois só costumo dormir de noite, gritei duas vezes “Léo! Léo!” tão alto que ela ouviu do outro quarto e


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veio ver o que era (depois que os meninos casaram, ela dorme num quarto e eu noutro). Mas quando gritei já havia despertado e ela me encontrou em pé junto da cama meio sem saber dizer o que havia acontecido. “Léo” é, desde criança, o apelido de minha mulher Leonice. Depois do palpite de Ricardo, Leonice comprou logo dois Sorine, desentupidor de nariz, um para ficar no meu quarto e outro no dela. Pensando melhor, mais calmo, depois desse acordar no meio da noite, me deu impressão também de ter comido demais no jantar, uma ótima sopa de peixe: meu jantar agora se resume a uma sopa, de feijão, de espinafre, de alho-poró, de

Nesse francês meio esquecido que aprendera no Marista, ao ler a grafia “arraes” julguei pronunciar-se “arré” couve (caldo verde) e outras menos votadas. Diria que esses dois fatores estão associados: nariz entupido e algum empachamento. “Quem eras tu”, digo de mim para mim, “que te empanturravas a qualquer hora do dia ou da noite!” Tem duas coisas que, eu acreditava, a velhice, se a ela chegasse, me traria de bom:

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1 REGISTRO iguel Arraes e M Violeta Arraes Gervaiseaux

comer pouco e dormir pouco. Ledo engano. E olhe que, diabético, vivo em luta constante para emagrecer. Deixemos tais ensaios de morrer, quem sabe influência de tanta gente boa que morreu neste dezembro de 2016 em que escrevo. Pulo para um nascimento, mas que também não deixa de ser notícia de morte: o centenário de nascimento de Miguel Arraes, falecido há alguns anos. Me lembro do dia em que ouvi pela primeira vez esse nome “Arraes”. Era o verão de 1958 na Europa. Encontrava-me em Paris. Tanto que, nesse francês meio esquecido que aprendera no Marista, ao ler a grafia “arraes” julguei pronunciar-se “arré”. Fui imediatamente corrigido pela dona do nome, Violeta Arraes, perguntando-me ela se eu era do Recife e se nunca tinha ouvido falar em Miguel Arraes. Sim, eu era do Recife mas no nome de Miguel Arraes nunca tinha ouvido falar. Qual era mesmo o endereço? Avenue de Versailles. Auteuil. Passei vários meses em Paris mas, por andar sempre de metrô, por cima do chão só conhecia o Louvre, Notre-Dame e um ou outro trecho do Boulevard St. Michel e do St. Germain. Através de um amigo, que tomava conta de casas de brasileiros de férias, acabei morando em três lugares ao mesmo tempo, sendo um desses a casa de Violeta Arraes Gervaiseaux. Sempre fui distraído em matéria de política. Nessa mesma temporada, em Bruxelas, não sabia quem era o presidente do Brasil, para espanto de Isaac Gondim Filho com quem convivera em Roma e encontrara casualmente na Expo 58. “Juscelino Kubitschek”, ele disse arregalando os olhos. Teve uma época que resolvi apagar da memória nomes de políticos e seus cargos, coisa que, noto, começa acontecer neste dezembro de 2016. Era melhor quando eu só sabia nome de pintor.


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ROCKUMENTARY A ascensão da música às telas

Documentários sobre o rock conquistaram espaço no cinema como uma temática relevante, forjando um subgênero com adesão de público, crítica e premiações TEXTO Marina Suassuna

Com o surgimento do cinema direto nos anos 1960, a maneira clássica de fazer documentário sofreu uma transformação radical. No lugar da encenação, passou a ser valorizada a espontaneidade diante da câmera, a intervenção mínima do realizador e a intimidade com o objeto filmado, além do uso de plano sequência, câmera

no ombro, fotografia despojada e improviso. A nova tendência favorecia, ainda, os elementos dramáticos do mundo real: som direto nos ambientes, diálogos, gestos e expressão facial. Nesse contexto, um dos principais interesses dos documentaristas foi filmar personalidades públicas e do show business num viés intimista.

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Músicos e bandas famosas de rock ganharam a tela, forjando um subgênero de vocação bastante popular, conhecido como rockumentary. A nova linguagem documental tinha como pano de fundo a revelação da cultura jovem a partir da difusão da música pop e do rock, quando houve a ascensão de vários ídolos. Entre as personalidades que se tornaram objeto fílmico está Bob Dylan, cuja turnê no Reino Unido, em 1965, foi documentada em Don’t look back, de A.D Pannebaker, um dos mais profícuos e atuantes documentaristas da época. Pannebaker foi responsável por documentar o primeiro grande festival de rock do mundo, em junho de 1967, em Monterey, na Califórnia, resultando no documentário Monterey pop (1968). Também registrou os bastidores do show mais emblemático de David Bowie em Ziggy Stardust and the spiders from Mars (1973), quando o astro anunciou sua despedida dos palcos. Em 1964, jovens de todo o mundo lotaram os cinemas para assistir ao primeiro filme dos Beatles, A hard day’s night. Dirigido por Richard Lester, o filme promocional fez sucesso


1 WOODSTOCK Documentário do festival de 1969 é um dos clássicos do gênero

de público e crítica justamente pelo formato inovador, que documentava a beatlemania com um caráter cômico, descontraído e cheio de improviso. Em 1969, os Rolling Stones entravam em turnê histórica pelos EUA, que deu origem a mais um rockumentary de sucesso na época, Gimme shelter (1970), dos irmãos Mayles e Charlotte Zweig.

BONS FRUTOS

O rockumentary, por sua vez, abriu as portas para que a música conquistasse espaço no cinema como uma temática relevante e consistente. Prova disso é que, mais de 50 anos depois, sobretudo nas últimas duas décadas, os documentários sobre música continuam gerando bons frutos, mostrando um desempenho notável e ocupando cada vez mais espaços. “Existe uma atenção maior por parte do público, dos meios de comunicação e dos programadores em relação a esse tipo de filme”, acredita Marcelo Aliche, curador da edição brasileira do In-Edit Festival Internacional de Documentários Musicais, criado em 2003, em Barcelona, na Espanha, com edição em vários

A nova linguagem documental tinha como sustentação a cultura jovem, difundida a partir da música pop e do rock países como Colômbia, Chile, México, Argentina, Alemanha. Além de exibir uma seleção dos documentários musicais mais expressivos da atualidade, o festival, cuja edição brasileira acontece anualmente em São Paulo e em Salvador, promove diferentes atividades relacionadas aos filmes, entre shows, debates, encontros com diretores, feiras e projeções ao ar livre, uma experiência completa para quem gosta de ver o mundo através da música. Em 2013, o Oscar de melhor documentário de longa-metragem foi para uma produção com temática musical. Dirigido pelo sueco Malik Bendjelloul, Searching for Sugar Man narra a saga do cantor e compositor folk norte-

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americano Sixto Rodríguez que, após 24 anos de anonimato, tem a sua carreira radicalmente transformada. No mesmo ano, o filme foi a atração principal da quinta edição do In-Edit Brasil, além de ter sido exibido em diversos festivais pelos EUA, arrebatando prêmios e plateias. Em 2014, A um passo do estrelato, sobre backing vocals de grandes artistas ganhou o Oscar. Em 2016, um outro documentário de música foi contemplado pela premiação: Amy, dirigido por Asif Kapadia, que se debruçou sobre a vida da cantora britânica Amy Winehouse, de sua infância ao percurso artístico, passando da eclosão à sua cessação, as inspirações herdadas, a influência e seu posicionamento cultural. Na esteira da tendência de documentar cantoras mulheres, surgiram, nos últimos anos, além de Amy, títulos como Janis: little girl blue (2016), sobre a cantora Janis Joplin, com lançamento comercial nas salas de cinema, Mercedes Sosa – A voz da América Latina (2013), Beyoncé: life is but a dream (2013) e What happened, Miss Simone? (2015). Este último, dirigido por Liz Garbus, filha da cantora Nina Simone, foi encomendado pela Netflix, que produziu e lançou o filme exclusivamente no serviço de streaming, no qual os documentários de temática musical vêm obtendo grande êxito. Basta acessar a categoria do gênero na plataforma online e verificar o número de produções disponíveis: quase 50 documentários de música. Não se pode esquecer, também, os inúmeros títulos ainda inéditos e que tiveram exibição apenas em mostras, festivais ou salas especiais, fora do mercado cinematográfico e em pequenas mostras de festivais como a Mostra Mimo de Cinema, Mostra Play the Movie (do festival Coquetel Molotov), Festival Internacional de Cinema de Arquivo – Recine e É Tudo Verdade – Festival de Internacional de Documentário.

CAMADAS SUBJETIVAS

Boa parte do encanto despertado pela safra atual de documentários que tratam de música certamente resulta dos princípios do rockumentary. Por meio desse subgênero, tornou-se


FOTOS: DIVULGAÇÃO

2 NINA SIMONE Toda energia combativa da cantora no doc a seu respeito UMA NOITE EM 67 3 70 mil pessoas foram ao cinema ver o filme

4 CARTOLA Filme sobre o sambista conta com farto material de acervo

Através deles, foram fornecidos retratos autênticos da contracultura americana para diversas gerações posteriores que não vivenciaram aquele período.

CONTEXTO NACIONAL

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possível acessar camadas subjetivas do artista, desvelar seu entorno, descortinando um âmbito privado ao qual o espectador não teria acesso fora da tela. De acordo com a pesquisadora baiana Natalia Rueda, “o espectador pode chegar ao documentário mais atraído pelo músico que pelo filme, através do qual tem acesso a uma espécie de backstage que o aproxima da vida pessoal do rock star que apenas conhece no palco”. Por outro lado, há uma relevância do documentário musical que transcende o simples relato biográfico sobre músicos e bandas. De acordo com Marcelo Aliche, os documentários de música têm relevância pelo momento histórico, pela pesquisa, imagens, dados. “Muita gente começou a entender a oportunidade de trabalhar com mercados musicais atrelados a conteúdo. No futuro, músicos, antropólogos, jornalistas e gente de diversas áreas poderão beber dessa fonte e fortalecer seu trabalho, pois a principal contribuição desse subgênero é registrar grandes histórias e deixálas para a posteridade. Esses filmes

Os documentários musicais ganham relevância também pela momento que registram e pela pesquisa histórica serão fontes de pesquisa, seja por suas qualidades musicais e cinematográficas ou por aspectos políticos, sociais, históricos, humanos”, atesta o curador. Exemplos disso são os documentários Monterey Pop (1968) e Woodstock: 3 days of peace & music (1970), de D.A Pennebaker e Michael Wadleigh, respectivamente, pioneiros nesse modo de fazer documentário. O fato de esses realizadores terem registrado dois dos maiores eventos da geração paz e amor, numa conjuntura política e social de inconformismo e contestação em que a música pop e os festivais ocupavam um importante lugar na produção de pensamento e ativismo dos jovens, fez de seus filmes, por si sós, documentos históricos.

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No Brasil, mais de 70 mil espectadores foram aos cinemas assistir a Uma noite em 67, documentário de Renato Terra e Ricardo Calil. Este, que mereceu a quinta maior bilheteria brasileira nos cinemas em setembro de 2010, mostra, com imagens vibrantes, os bastidores do Festival da TV Record em 1967, que foi um ponto de inflexão na história da MPB. A música popular produzida nas décadas de 1960 e 1970 é um dos universos musicais mais apreciados e recorrentes nos documentários de música brasileira. Entre os mais aclamados, podemos citar Saravah (1969), de Pierre Barouh, Doces Bárbaros (1976), de Jom Tob Azulay, Tropicália (2014), de Marcelo Machado, Cartola: Música para os olhos (2007), de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, Filhos de João – O admirável mundo novo baiano (2009), de Henrique Dantas e Wilson Simonal: Ninguém sabe o duro que dei (2009), de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvino Leal. Este último, além de premiado no festival É Tudo Verdade, é uma das maiores bilheterias do gênero no Brasil. Ao refletir a abrangência e as implicações de posicionamentos culturais e políticos dos biografados, documentários como Jards (2013), Jorge Mautner – O filho do holocausto (2013), Loki – Arnaldo Baptista (2008), Raul – O início, o fim e o meio (2014), Olho nu (2014), sobre Ney Matogrosso, e Daquele instante em diante (2011), sobre Itamar Assumpção, acabam produzindo experiências sobre o Brasil. Isso quer dizer que falar de artistas e músicos num determinado contexto sociocultural é também jogar luz sobre a identidade de uma nação. Em Cartola: Música para os olhos, por


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exemplo, a dupla pernambucana Hilton e Lírio reflete sobre a construção da memória do país através da biografia de Cartola, sambista, artista e negro, que fez história num contexto de cultura popular urbana. Pernambuco é parte importante do desempenho dos documentários musicais no Brasil. O homem que engarrafava nuvens (2008), de Lírio Ferreira, sobre o compositor Humberto Teixeira; Sete Corações (2014), de Dea Ferraz, sobre os mestres de frevo, Caranguejo elétrico (2016), de José Eduardo Miglioli Junior, sobre Chico Science, Faço de mim o que quero (2009), de Petrônio de Lorena e Sergio de Oliveira, que aborda a produção da música brega, e Di Melo: O imorrível,

de Alan Oliveira e Rubens Pássaro, são alguns dos títulos que atestam a vocação do estado para o subgênero documental. Atualmente, está sendo produzido Reginaldo Rossi, meu grande amor, documentário sobre o Rei do Brega, dirigido por José Eduardo Miglioli Junior.

NICHO DE MERCADO

A participação de reconhecidos diretores da indústria cinematográfica, como Martin Scorsese, na produção dos rockumentarys, também contribuiu para o sucesso comercial desses documentários ao longo dos anos. Embora não tenha se dedicado exclusivamente a esse gênero cinematográfico, Scorsese conta em sua

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filmografia com um número razoável de produções desse tipo. Além de ter editado Woodstock: 3 days of peace & music, dirigiu os documentários The last waltz (1978) – leia sobre isso na matéria da página 70, No directon home (2005) e George Harrison: Living in the material world (2011). Produziu ainda a série The blues (2003), dirigida por sete cineastas. Quando o rockumentary despontou nos anos 1960, inúmeros consumidores de música pop, notadamente jovens, passaram a vincular seu comportamento, modo de pensar, agir e vestir ao dos ídolos que surgiam. Assim, a música se tornou, pouco a pouco, uma forma de identidade de grupos de jovens, refletindo o gosto e as ideias da juventude da época, fazendo com que a indústria enxergasse esse público como um nicho de mercado. Isso fez com que esses documentários fossem vistos como de grande apelo por empresários do show bussiness. Ao mesmo tempo em que preserva uma vocação popular e comercial, capaz de ser consumido massivamente, o documentário musical sempre trouxe uma reflexão artística, sendo, também, e principalmente, a expressão de diretores que enxergam, na música, a capacidade de educar o espectador e transcender o simples status de entretenimento. “A recusa ao espetacular e a aproximação ao registro é que dão força a esses filmes”, avalia Pedro Henrique Kalil, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais. De acordo com o curador Marcelo Aliche, é importante não confundir o documentário musical com filme promocional/DVD, reportagem e filme tributo. “No filme promocional, o artista está ali para divulgar seu trabalho, falar um pouco de sua vida íntima e agradar aos fãs. O mesmo acontece com as reportagens estendidas e filmes-tributo: são feitos para o fã. Já o documentário procura oferecer a visão do diretor sobre o assunto ou o personagem, e isso é muito diferente. No documentário, existe um distanciamento, uma análise das contradições e um olhar diferente. É o que diferencia a arte do entretenimento. Seja como for, o sol do documentário musical é generoso e brilha para todos. É só escolher o jeito que você quer usufruir”, afirma.


REPRODUÇÃO

1 BOB

DYLAN Músico foi o motivo para que a Warner bancasse o doc e, durante as gravações, recusou-se a ser filmado

Sonoras 1

THE LAST WALTZ Um atropelo que virou um clássico

Registro do último show de The Band, filmado em novembro de 1976, foi o primeiro dos documentários musicais dirigidos por Martin Scorsese TEXTO Débora Nascimento

Dois dos grandes momentos na história da música: Van Morrison interpretando vigorosamente a sua Caravan, ladeado pela The Band. Depois, o cantor irlandês, a mesma banda e mais Joni Mitchell, Neil Young, Eric Clapton, Neil Diamond, Ronnie Wood e Ringo acompanhando Bob Dylan na interpretação apoteótica de sua I shall be released. Essas duas performances

memoráveis ocorreram num mesmo dia, 26 de novembro de 1976, e foram registradas no filme The last waltz – O último concerto de rock, dirigido por um cineasta que, naquele ano, tinha no currículo cinco longas-metragens, dentre eles Taxi driver: Martin Scorsese. Em 1976, Scorsese, aos 34 anos, era um dos diretores da promissora geração que revolucionava o cinema norte-

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americano (Spielberg, Coppola, George Lucas, Brian De Palma, Robert Altman, Hal Ashby), trazendo novas ideias, temáticas, abordagens, perspectivas. Desde cedo, o cineasta novaiorquino descendente de italianos exibia sua forte ligação com a música. Em seu primeiro longa, Quem bate à minha porta?, lançado há 50 anos, utilizou uma técnica que marcaria sua filmografia, editar sequências de acordo com o ritmo de uma canção. I get around, dos Beach Boys, foi usada como referencial da montagem de uma das cenas do filme, embora não tenha sido inserida na trilha e, sim, El watusi, de Ray Barretto. No início de sua carreira, Scorsese não tinha ainda cacife para contratar compositores renomados, como Bernard Herrmann, responsável pela música dos suspenses de Hitchcock. Então, uma das saídas acessíveis financeiramente era usar músicas pop na trilha sonora. Foi assim que criou um dos recursos que marcariam seu estilo, inserir rock numa cena de violência. Com The last waltz – O último concerto de rock, Scorsese estreita o seu vínculo com a música e o cinema, o que geraria outros importantes documentários musicais, Eric Clapton: nothing but the blues (1995); Blues (2003), do qual foi produtor e diretor de um dos episódios; No direction home (2005), sobre as influências e o início da carreira de Bob Dylan; Shine a light (2008), registro do show dos Rolling Stones no Teatro Beacon (NY), em 2006, e George Harrison – Living in the material world (2011). Hoje um dos documentários clássicos do rock, The last waltz guarda em seus bastidores histórias de arrepiar qualquer cineasta. Embora contasse com cameramen competentes, como Michael Chapman (Touro indomável), Vilmos Zsigmond (Contatos imediatos de terceiro grau) e László Kovács (Easy rider), Scorsese enfrentou diversos contratempos, câmeras que quebraram, troca não planejada de rolos de 35 milímetros e problemas de comunicação com os técnicos. A realização do filme só foi aprovada pela Warner Bros devido à presença de Bob Dylan, que não sabia da condição. Na hora de subir ao


INDICAÇÕES palco, o músico negou-se a ser filmado, porque isso poderia prejudicar o seu próprio projeto audiovisual em andamento, Renaldo and Clara. Depois de Robert Robertson, guitarrista da The Band, prometer que The last waltz só sairia depois do seu filme, o autor de Like a rolling stone concordou que fossem registradas apenas duas músicas (Baby, let me follow you down e Forever young). Robbie tinha a confiança do principal convidado porque a The Band, cujo nome foi o próprio Dylan quem deu, o acompanhou no início de sua polêmica fase elétrica (1965/1966). Porém, no momento da interpretação de I shall be released, as câmeras continuaram filmando. “Quando Dylan subiu ao palco, o som estava tão alto que eu fiquei sem saber o que filmar”, disse Scorsese. Um dos membros do staff do músico mandou desligálas e começou o “filma, não filma”. O produtor Bill Graham tomou a frente do imbróglio. “Filme, não se preocupe. Filme”, garantiu ele ao diretor. E, um ano depois, foram feitas as entrevistas com os agora ex-membros da The Band. Ambas as obras saíram em 1978, Renaldo and Clara, em janeiro, e The last waltz, em julho, o que foi conveniente para Scorsese, pois pôde trabalhar em New York, New York (1977) – que seria um dos seus raros fracassos de bilheteria e crítica. Nessa época, o diretor e alguns dos artistas envolvidos viviam o auge do vício em drogas. Nos bastidores da filmagem de Last waltz, havia um cômodo apenas para esses aditivos. Um dos convidados, Neil Young abusou da oferta e subiu ao palco exibindo uma

bolinha de pó no nariz. O resquício teve que ser retirado na pós-produção através de rotoscopia. Mas o semblante de chapado permaneceu. Após o concerto, Scorsese continuou as filmagens em um estúdio com The Band, quando a registrou, com o grupo The Staples Singers, a clássica The weight, da trilha de Easy rider. Em 1993, em sua autobiografia, o baterista Levon Helm criticou o documentário, disse que Scorsese e (o carismático) Robbie Robertson, que virou amigo e colaborador constante do diretor, conspiraram para fazer The Band parecer “a banda de Robertson”. Afirmou que os demais integrantes (ele, Richard Manuel, Garth Hudson e Rick Danko) apareceram bem menos que Robbie. E, para ele, o mais grave foi I shall be released. Os diversos convidados são mostrados, mas Manuel, que canta um belo trecho da música em falsete sequer aparece. No filme, fica clara a tentativa (malsucedida) de mostrar o músico. Mesmo com todos esses perrengues, The last waltz, que, em seu 40º ano de registro, ganhou uma caixa especial (roteiro da filmagem, livro de 300 páginas com prefácio de Scorsese, ensaio do roteirista Mardik Martin, trilha sonora original, em CD e LP, com áudio remasterizado, incluindo ensaios, outtakes e Blu-Ray com extras), segue como um dos principais documentários musicais. Pode-se até arriscar, como o fez Michael Wilmington, crítico de cinema do Chicago Tribune: “O melhor filme de rock ao vivo já feito – e provavelmente o melhor filme de rock já lançado, ponto final”.

MPB

BLUES

Joia Moderna

Interscope / Polydor

BRUNO CAPINAN Divina graça

THE ROLLING STONES Blue & Lonesome

Assista ao clipe de Vicente, terceira música na entrada das 12 selecionadas para este disco. Ela é uma síntese sonora e temática do que Divina graça pretende nos dizer. Bruno Capinan declara, suave e sensualmente, seu desejo por um rapaz: “Quero sair de mim, Vicente, só pra te ver”. “Quis falar do amor de uma forma totalmente plena e nada discreta”, escreveu o artista. Liniker e Johnny Luxo certamente encorajaram Capinan, músico baiano que está radicado há 15 anos no Canadá, onde foi gravado este disco, o terceiro de sua carreira.

Aos 55 anos de carreira, a mais longeva banda de rock da história presta tributo às suas raízes em seu primeiro disco de covers apenas com o gênero musical norte-americano que está no cerne de sua formação. Algumas das 12 faixas de Blue & lonesome, como Commit a crime, de Howlin’ Wolf, e Just like I treat you, de Willie Dixon, são originárias do Chicago Blues. Produzidas por Keith Richards e Mick Jagger, essas vigorosas performances mostram como os Stones ainda soam em conjunto longe dos velhos hits e riffs “chavões” de seus shows.

JAZZ

ROCK

Motéma Music

Reprise

DONNY MCCASLIN Beyond now Ao fazer um mergulho no jazz em seu último álbum, David Bowie projetou ao mundo o nome do saxofonista norte-americano Donny McCaslin, líder do quarteto que inclui o baterista Mark Guiliana, o baixista Tim Lefebvre e o tecladista Jason Lindner, e que foi sua banda de apoio em Blackstar. O inspirado Beyond now exibe o talento de McCaslin como compositor e a sofisticação de seu grupo. Como homenagem ao músico inglês, foram incluídas duas versões das músicas Warszawa (de Low, 1977) e A small plot of land (de Outside, 1995).

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NEIL YOUNG Peace Trail Possivelmente, o músico mais engajado em causas da atualidade (ambientais, indígenas, pacificadoras e sociais, como para arrecadar fundos para pequenos fazendeiros e crianças com necessidades especiais), o incansável e prolífico canadense lança seu 37º álbum de estúdio. Peace trail traz em suas letras, como Indian givers, John Oaks e My pledge, abordagens sobre alguns desses temas. O álbum não contou com sua mais nova banda, Promise of the Real, foi gravado com os experientes Jim Keltner (bateria) e Paul Bushnell (baixo).


ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

Cardápio RECURSOS Ingredientes e suas origens

Interesse em trabalhar com produtos de procedência conhecida estreita laços entre chefs de cozinha e pequenos produtores TEXTO Eduardo Sena

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“Arroz de pato com uvas do São Francisco ao perfume de laranja, linguiça portuguesa defumada grelhada, agrião temperado com limão galego e farofa do Corredor”. É exatamente dessa forma que vem descrita no cardápio uma das opções de prato principal de um restaurante na zona norte do Recife. Para além de descrever a receita de forma detalhada, o trecho do menu evoca um movimento em ebulição no país, alicerçado em tornar pública a origem dos ingredientes. A busca é agenciar, entre clientela e refeição, valores


contemporâneos da gastronomia, como politização, procedência, pequenas cadeias produtivas e cuidado com saúde e bem-estar. O “Corredor” do prato citado, por exemplo, faz menção ao projeto Corredor da Farinha, do município de Glória do Goitá, na Zona da Mata Norte pernambucana, cuja farinha é de manejo orgânico e sinalizada na peça gráfica como “quebradinha”. Essa preocupação em biografar o insumo, aliás, é um dos tópicos elencados pela consultoria francesa Food Service

Vision, que desenvolve anualmente uma pesquisa sobre as tendências do mercado de gastronomia. Encomendado para ser apresentado em 2017, no Sirha de Lyon (um dos maiores congressos do setor no mundo), o estudo teve a sua divulgação antecipada para o Sirha Rio, no último mês de outubro na capital fluminense. Nele, o segmento do bem-estar demonstra que essa febre está apenas começando: os produtos que trazem a etiqueta de linhagem

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deixaram de ser um nicho para se tornarem obrigatórios no mercado. “São tendências de longo tempo, dentro das quais podemos identificar evoluções e sinais de fraqueza”, sintetiza François Blouin, presidente da Food Service Vision, sobre o método do levantamento que cruza informações obtidas em entrevistas com milhares de profissionais ao redor do mundo com uma base de dados sobre os produtos fornecidos à indústria alimentícia. Para o chef Pedro Siqueira, à frente das panelas dos novos Puro e Massa, no Rio de Janeiro (RJ), a gastronomia passa por um processo de se desvincular de uma prática elitista e se tornar um movimento com ares mais democráticos. E é aí que entra a figura-símbolo desse deslocamento: o pequeno produtor. Segundo o profissional, há uma predisposição natural para que o cozinheiro passe a adotar uma postura mais política no seu ambiente de trabalho, tornando-se a grande mola propulsora para essa figura. “Temos o papel de mostrar que eles existem, que possuem um produto diferenciado, feito com alma, carinho. Acredito que o principal do pequeno produtor é que ele gosta do que está fazendo, tem paixão em plantar, em produzir, e saber como esse ingrediente vai chegar às mãos de quem cozinha”, explica. Par de profissão, o pernambucano Joca Pontes dá outro tom à discussão. “A função do pequeno produtor vai além desse processo de politização. A questão é que ele pode oferecer muito mais produtos exclusivos, qualidade superior, além de representar nossa região, nosso terroir, valorizando a cultura e desenvolvendo o nosso entorno”, pontua o chef do Ponte Nova. Na casa, a propósito, são 11 os fornecedores especiais com quem Joca desenvolve parcerias, agregando uma série de benefícios à sua cozinha alinhada com identidades locais elevadas à dita alta gastronomia. Pontes sabe que o seu gesto, e os daqueles cujas falas são dotadas de alguma influência, podem criar um dinamismo econômico a partir de uma lógica que encurta as distâncias da produção do ingrediente para a mesa (farm to table). “Particularmente, quando encontro algum produtor legal, que tem um insumo diferenciado, procuro divulgá-lo para que cada vez mais


DIVULGAÇÃO

Cardápio pessoas, cozinheiros e restaurantes tenham acesso, e possam viabilizar a continuidade do mesmo”, conta. Nos restaurantes de Pedro Siqueira, essa relação faz parte do DNA das casas. A interdependência, de tão próxima, permite uma espécie de consultoria econômica. “Um dos grandes problemas que os produtores enfrentam, por exemplo, é a logística. Não conseguem fazer isso com a demanda que, às vezes, o restaurante tem. Tomam muito prejuízo nesse vaivém com a mercadoria. Por essa razão, aparecem os atravessadores para fazer a ponte. Com isso, o produto chega bem mais caro do que deveria. Tentamos sempre levar essa noção de negócios para que eles não só melhorem o custo, mas também não desistam de oferecer um produto com o qual tanto gostamos de trabalhar e apresentar ao cliente”, explica o cozinheiro, que utiliza pupunha, brotos, queijos e cortes de carnes oriundos de pequenos produtores. SEM ATRAVESSADORES É justamente no encurtamento dessas relações que o chef Julio Prouvot enxerga mais um ganho advindo desse movimento. Sempre que termina o expediente no Prouvot Bistrô, no Parnamirim, na madrugada da sexta para o sábado, o jovem cozinheiro segue para a feira de orgânicos do Bairro das Graças, também na Zona Norte da cidade, para fazer as compras semanais de alguns insumos. “É uma outra relação. Antes, fazíamos o pedido por e-mail ou telefone, chegava um carro ao restaurante e alguém deixava o pedido com a nota fiscal. Conhecer quem planta, onde planta, e como planta, conversar com o produtor, amplia nossa visão sobre o sistema gastronômico. Pode até dar mais trabalho, claro, mas é muito mais prazeroso e enriquecedor”, conta Julio. Em João Pessoa, Onildo Rocha reitera o discurso na prática no seu Roccia Bar, em Tambaú. Há cerca de três anos, deu início a um trabalho com Seu Dedé, agricultor que, impulsionado pelo cozinheiro, participou de um curso do Sebrae para aperfeiçoar sua técnica e

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Os produtos que trazem a etiqueta de linhagem deixaram de ser um nicho, para se tornarem obrigatórios no mercado

fornecer as folhagens e os tubérculos para a cozinha que Rocha comanda. “Em um primeiro momento, passei tudo o que precisava e foi preparado um escalonamento de produção. A ideia é de que o produtor saiba a data em que vai colher, de forma que não falte nenhum insumo na cozinha”, explica. Para quem acha que se trata de um

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nível de envolvimento muito avançado, aparentemente está enganado. “Encontrando o produtor certo, que assuma o compromisso de entregar o produto, fica fácil”, desmistifica. Pelas mãos do cozinheiro, o arroz vermelho de seu Dedé se tornou um marco de sucesso dessa parceria. Nacionalmente, o grão é conhecido como “arroz da Paraíba” ou simplesmente “arroz de Onildo”. Mais recentemente, lambretas de tamanho incomum, produzidas em pequenas fazendas paraibanas, são as novas vedetes do cardápio do bar. “A ideia é que produtores e atores da cadeia do alimento possam sobreviver do que produzem. Os ingredientes regionais, brasileiros, precisam estar acessíveis.


MARCELO KATSUKI / DIVULGAÇÃO

1 NATHALIE PASSOS Chef do carioca Naturalie Bistrô, defende uma visão holística da sustentabilidade gastronômica ROCCIA BAR 2 O restaurante paraibano, comandado pelo chef Onildo Rocha, serve lambretas produzidas em pequenas fazendas do estado

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Assim, tanto os produtos quanto o nosso saber culinário serão reconhecidos como parte de nossa cultura”, destaca Rocha. Atento a esse movimento, o Sebrae–PE desenvolveu o projeto Alimentos e Bebidas – Do Campo à Mesa, trabalhando os elos da cadeia produtiva, visando aproximar o produtor dos restaurantes, encurtando distâncias e otimizando preços com uma dinâmica de venda direta e criteriosa, na qual os chefes podem escolher os produtos diretamente com o produtor. “Em Pernambuco, já temos um mercado consolidado para vinhos, frutas, doces, tubérculos, cachaças e uma infinidade de outros itens. Desde o ano passado, estamos trabalhando fortemente na agricultura orgânica e

na produção de sorvetes e também das cervejas artesanais”, lista Valéria Rocha, gestora do projeto. Para o Sebrae, no segmento gastronômico, essa é mesmo a bola da vez. No Brasil, das 15 mil propriedades certificadas para produção de orgânicos, 75% pertencem a agricultores familiares, consolidando o país não só como um grande produtor, mas também exportador. ALAVANCA ECONÔMICA Em crescimento, o ofício de produtor foi apontado como uma das profissões de um futuro próximo, segundo estudo recente da consultoria Ernst & Young. Para a entidade, essa profissão se chamará “fazendeiro urbano” e, até 2025, embalada pelo aumento

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da produção autônoma de alimentos orgânicos, deve se multiplicar em alta escala no Brasil. O país, a propósito, movimentou, em 2016, mais de US$ 30 bilhões em alimentos orgânicos, fazendo-se o 5º maior mercado de alimentos e bebidas saudáveis do mundo. Enquanto, por aqui, esse mercado cresce 20% ao ano, no mundo, o índice é de 8%. Em entrevista à Continente, ainda em 2015, a apresentadora e chef de cozinha Bela Gil “cantou a bola”. Na oportunidade, reiterou que comer comida com procedência, menos processada e industrializada possível, valorizando os produtos locais e da estação, é o caminho natural da alimentação no mundo. “Quando a sociedade enxergar a alimentação saudável como um investimento e garantia de qualidade de vida, quando cozinharmos pensando e respeitando a saúde do corpo, da terra e dos produtores, aí, sim, conseguiremos construir um futuro melhor”, defendeu. “O que vejo de mudança no cenário é que, antes, a cozinha mais sustentável era tratada como se não fosse integrante da gastronomia, e, sim, algo à parte. Agora, podemos ver gente voltada para os legumes sem aquele perfil natureba, mas com um comprometimento com a cozinha”, pontua a chef carioca Nathalie Passos, nome dos mais festejados da nova safra dos cozinheiros brasileiros, cuja escola é a cozinha sustentável. Nathalie oferece um contorno crítico a esse movimento, preferindo tratar a sustentabilidade da gastronomia de forma holística. A cozinheira do Naturalie Bistrô, em Botafogo, acredita que seja um gesto importante valorizar a origem do produto, a relação com o pequeno produtor, mas provoca: “Do que adianta, se não nos importamos com o que fazemos com o lixo e a água depois?”.


REUTERS

Claquete

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DOCUMENTÁRIO Filmando em campo de imigrantes

Realizadores Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval registraram os refugiados no Calais Jungle, montado – e desmontado – na França TEXTO Luciana Veras

Em fevereiro de 2016, Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval, um casal de realizadores franceses, começou a frequentar o Calais Jungle, o maior campo de imigrantes e refugiados da França, quiçá do continente europeu. Os dois saíram da sua casa, na Normandia, e percorreram centenas de quilômetros para chegar à cidade

que, desde 1999, sediava abrigos para refugiados. Tendo o Canal da Mancha à sua frente, Calais demarca a fronteira marítima com a Inglaterra. Klotz e Perceval queriam documentar a vida daquelas pessoas que integram o vasto contingente em travessia – dados da Organização das Nações Unidas apontam que, ao fim de 2015, havia 65,3

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milhões de refugiados em situação de “deslocamento forçado” no planeta. “Temos muita liberdade para trabalhar nos projetos que escolhemos, pois temos câmeras e uma ilha de edição em casa, então podemos não nos importar com dinheiro. Fazemos filmes sem orçamento algum. Elisabeth e eu mudamos as condições de trabalho para não ter que confiar no sistema do cinema comercial. Essa perspectiva condiciona como as pessoas vão ver os filmes e o dinheiro que financia esses mesmos filmes. Nesse sistema, não se filmam os problemas políticos. Por exemplo, se fôssemos pedir dinheiro para filmar um campo de imigrantes, demoraria muito tempo”, narraria Klotz à Continente oito meses depois. Corria o mês de outubro de 2016 e ele, jurado na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, estava na capital paulista também para exibir o médiametragem Mata Atlântica. Como em todos os outros títulos já exibidos no festival paulistano, a exemplo de Pária (2000), A ferida (2004), A questão humana (2007) e Low life (2012), tratava-se de uma parceria – Elisabeth roteiriza, Nicolas


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dirige. Na filmografia do par, evidenciase o olhar sobre os invisíveis, aqueles que estão à margem da imagem e das representações – os imigrantes, os moradores de rua, “todos os excluídos”, como resumia o cineasta. Mas o foco nunca é reducionista. “Cineastas não são jornalistas e tenho problemas com filmes que tentam apenas fazer jornalismo. Gostamos de cinema, Elisabeth e eu, e trabalhamos nesse sentido”, acrescentou. Foi sob tal perspectiva que os dois iniciaram o registrar do cotidiano do Calais Jungle (literalmente, “a selva de Calais”), onde cerca de 10 mil imigrantes viviam “em uma cidade construída da lama” em 2014. “Pessoas da Síria, Sudão, Iraque, Afeganistão, do Irã chegavam lá tentando ir até a Inglaterra. Mas a polícia francesa os bloqueava, então eles viviam no campo. Eram essas pessoas que a extrema direita sempre combatia”, observa Klotz. Em março de 2016, o presidente François Hollande determinou que se destruísse metade do campo. Na manhã da sexta-feira em que conversou com a Continente, o diretor lamentava a devastação completa de um

Milhares de pessoas do Sudão, Síria, Iraque, Afeganistão e Irã moravam no campo na esperança de chegar à Inglaterra lugar “extremamente importante para a Europa e para o mundo” – na segundafeira anterior, policiais armados com metralhadoras, tratores, escavadeiras e caminhões haviam removido todos os moradores e derrubado tendas, barracas e contêineres que serviam de casa, sob a justificativa de que iriam para abrigos qualificados para recebê-los. “Hollande falhou muito, matou a esquerda francesa e alimentou a ideia fantasma de que os imigrantes são o mal-estar da sociedade. O campo de Calais era um problema europeu e do mundo inteiro. Agora, é uma terra de ninguém. Temos que quebrar essas ideias de que aquelas pessoas são apenas vítimas pobres e fracas. Não, pelo contrário. A maioria tem entre 15

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1-2 TERRA ARRASADA Tendas, barracas e contêineres se espalhavam na selva de Calais; em outubro de 2016, o governo francês mandou derrubar tudo

e 30 anos, são jovens, têm energia para trabalhar, pensam politicamente, falam no WhatsApp, ouvem músicas, gostam de se vestir bem, são fortes e muito bonitos. E têm poder”, analisou Klotz. Ele recordou as condições em que foram recebidos, “com uma certa hostilidade”, quando iniciaram as visitas ao campo: “Era bem complicado. Por um lado, eles odiavam jornalistas. Por outro, durante o inverno, quando torciam que o acampamento não fosse destruído, estavam contando, de uma certa forma, com a ajuda das pessoas que se dispunham a filmá-los. Tinha gente lá que não queria ser vista pela família na internet, pois diziam que estavam na Inglaterra e, na verdade, estavam em Calais. Outros chegavam e pediam para ser filmados, então nós trazíamos os equipamentos e passávamos um bom tempo com eles. Quando a parte sul foi destruída, eles ficaram muito hostis com qualquer um que parecesse um jornalista. Se


PHILIPPE HUGUEN/AFP MÁRIO MIRANDA/DIVULGAÇÃO

Claquete

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vissem a câmera, gritavam ‘fodam-se’ e ‘parem de filmar’ . Foi bem tenso e tínhamos que filmar só as pessoas que já conhecíamos. Mas nunca escondemos a câmera. Gosto de estar com ela à mostra, para que sempre saibam que estamos filmando. De uma certa maneira, eles não nos colocavam no time dos jornalistas, mas não sabiam por que estávamos lá filmando todos os dias”. As horas de depoimentos e imagens coletadas servirão de mapa para a montagem, “mas sem pressa”. “Fomos ao Calais Jungle porque queríamos documentar aquilo. Buscar os caminhos entre as pessoas que conhecemos lá era, também, a tentativa de achar o nosso caminho dentro do filme que estávamos fazendo. Qual vai ser esse caminho? Vamos descobrir”, pontuou Klotz, para quem o cinema não pode mais ser visto como uma arma revolucionária. “Isso pertence aos anos 1960 e 1970, quando a música, a poesia, a literatura e o teatro convergiam para a mesma direção do cinema – de que seria possível mudar o mundo. Mas nós vimos que o mundo mudou em uma direção completamente oposta”, observou. O diretor, porém, não se exime da responsabilidade de pensar o cinema à luz dos acontecimentos da contemporaneidade: “É importante nos concentrarmos em que tipo de filme queremos fazer, para que o cinema não desapareça. Onde está escrito, afinal, que o cinema tem que continuar? Você pergunta se o cinema pode ser usado,

3 À MARGEM DA IMAGEM Ideia do imigrante terrorista, difundida pela mídia e por políticos de direita, virou mote para o filme

pelos diretores, como uma arma, mas eu pergunto: o que é uma plateia? Qual a responsabilidade do público diante dos filmes? O cinema pode ser uma arma para os espectadores? Eles vão usar o cinema nas suas vidas, vão refletir, por exemplo, sobre os imigrantes e o tratamento dado a eles pelos países europeus, ou apenas vão para comer pipoca, ver filmes estúpidos e tentar se vestir como os personagens?”. O documentário de Nicolas Klotz e Elisabeth Perceval sobre a selva de Calais ainda não tem título, mas tem um norte: discutir a própria noção de Europa na era em que o Velho Mundo se mostra incapaz de lidar com a massa que lhe pede refúgio, boa parte fugindo das ex-colônias de seus países. “A Europa está morta. Mesmo com a Grã-Bretanha, já estava morta. Aliás, os ingleses nunca estiveram de fato e sempre causaram problemas. O continente, como se pensa e se vive hoje, é uma ideia morta. Quanto mais rápido os políticos profissionais e corruptos da França, que há 30, 40 anos se revezam no governo, saírem do poder, mais rápido algo de novo e esperançoso pode acontecer. Até lá, temos que tentar colocar as pessoas em contato com outras ideias de formação do mundo e lutar contra os algoritmos para achar outras possibilidades de viver”, arrematou o cineasta.

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Entrevista

NICOLAS KLOTZ “ISSO É ESSENCIAL NO MUNDO DE HOJE: OLHAR PARA AS PESSOAS” CONTINENTE Vivemos em um mundo saturado de memórias, numa contemporaneidade em que tiramos centenas de fotos que mal vamos olhar. Para você, o que significa produzir imagens hoje? NICOLAS KLOTZ Eu acho que você tem que filmar pessoas. Nosso maior interesse é filmar gente de verdade. Porque filmá-las é importante demais. Parece simples, mas é bem difícil. Se eu fosse filmá-la enquanto você falasse, seria um filme verdadeiro; estaria filmando você, e não alguém fingindo ser você e fingindo ser jornalista. Produzir imagens, para mim, só tem relevância quando se filmam as pessoas. CONTINENTE Por quê? NICOLAS KLOTZ Quando você filma alguém, está procurando por algo que não vê imediatamente. Existe um insight para quem filma, que precisa de algum tempo para levar aquelas imagens à tela, e também para quem vê. O público olha e vê uma outra coisa, totalmente diferente, e tem um


INDICAÇÕES outro tipo de experiência. Isso é essencial no mundo de hoje: olhar para as pessoas. Na França, por exemplo, as pessoas estão muito sós. Nem se olham mais. Acho que estamos perdendo o modo de olhar para o outro, talvez por causa das novas tecnologias. Sempre encaramos os celulares, perdendo a chance de observar ao redor. CONTINENTE Mas as novas tecnologias não facilitam o acesso à produção de imagens? Qualquer um pode fazer um filme com um iPhone, por exemplo. NICOLAS KLOTZ Sim, a revolução que os celulares e as novas câmeras trazem é interessante e importante, mas precisamos achar um meio para usar essa tecnologia sem perder o cinema. Os cineastas têm a responsabilidade de achar as condições através das quais é possível falar do mundo a partir de uma ideia concreta de cinema – às vezes, até, com uma concepção mais radical de cinema. E não se perder na facilidade das novas tecnologias ou no sistema comercial. Porque o esquema do cinema comercial coloca todo mundo para dormir, não para pensar. CONTINENTE Ao fazer um filme sobre um campo de imigrantes, você se posiciona politicamente sobre a atual crise dos refugiados, talvez a maior da humanidade. Por que decidiu filmá-los? NICOLAS KLOTZ Sim, é uma crise imensa, e não terminou, aliás, não está perto de terminar. Com os problemas climáticos e as outras guerras, talvez se torne maior. Quisemos mostrar, primeiro, que na França a mídia e os políticos de direita produzem uma imagem do imigrante que não bate com

a realidade. Tentamos entrar na intimidade deles, e assim produzir uma outra imagem, diferente dessa visão difundida pela imprensa e pelos políticos. CONTINENTE Para oferecer uma contranarrativa? NICOLAS KLOTZ Totalmente. E para dizer que houve outros campos na história da Europa, campos de concentração, como bem sabemos, e que esse campo, o Jungle, foi uma oportunidade de construir uma ideia totalmente diferente. Porque poderia ter sido um lugar para os imigrantes encontrarem advogados que pudessem ajudá-los e onde pudessem trabalhar no que quisessem. Não um campo humanitário, mas um campo utópico, um experimento utópico do mundo de hoje, não do mundo do passado. Estamos num novo mundo e, ao destruir o campo, o governo francês está dizendo que não quer o mundo de hoje, e, sim, o de ontem. Os governantes querem ficar com as velhas ideias, com a Europa velha, mesmo que isso esteja matando a Europa. Querem ficar em guerras antigas, e com seu velho fascismo e suas velhas crises financeiras… Tudo velho. Esse lugar poderia crescer para ser algo totalmente diferente, totalmente novo. Seria algo do mundo de hoje. Existe uma lacuna enorme entre o mundo de hoje e o passado e queremos alcançar e discutir isso através do cinema. Isso é político. Os filmes precisam ser testemunhos do mundo em que vivemos hoje.

FICÇÃO HISTÓRICA

FAROESTE

Dirigido por Oliver Hirschbiegel Com Christian Friedel, Katharina Schüttler Mares Filmes

Dirigido por David Mackenzie Com Chris Pine, Jeff Bridges Califórnia Filmes

13 MINUTOS

A QUALQUER CUSTO

A trajetória de Georg Elser, um alemão que, em novembro de 1939, planeja assassinar Adolf Hitler, é narrada com maestria por Oliver Hirschbiegel, que se especializou no gênero das ficções históricas – vide A queda (2005), em que reconta os últimos dias do Führer. Aqui, ele utiliza o recurso do flashback: Elser, preso pelo atentado malogrado, relembra sua conspiração solitária, deixando o público a especular sobre o mundo que teríamos hoje, caso ele tivesse obtido êxito.

Dois irmãos em lados opostos do espectro ético – Toby (Chris Pine) só quer cuidar do filho após o divórcio, Tanner (Ben Forster) é um ex-presidiário intempestivo – se juntam para roubar um banco e assim salvar o rancho da família, no Texas. Mas, no meio do caminho há um policial prestes a se aposentar (Jeff Bridges, impagável). O diretor David Mackenzie foi incensado pela crítica por esse contundente faroeste contemporâneo, apontado por muitos jornalistas como um dos melhores lançamentos de 2016.

DRAMA

NACIONAL

Dirigido por Dagur Kári Com Gunnar Jónsson, Franziska Una Dagsdóttir Imovision

Dirigido por José Luiz Villamarim Com Irandhir Santos, Júlio Andrade Vitrine Filmes

DESAJUSTADOS

Fúsi é um quarentão obeso e introvertido, que mora com a mãe, nunca saiu da sua pequena cidade, na Islândia, é virgem e sofre bullying dos companheiros de trabalho. E Desajustados (título brasileiro horroroso) poderia ser um amontoado de clichês, porém se esquiva das soluções fáceis e constrói uma delicada narrativa sobre solidão e as perspectivas para sair dela. Destaque para o ator Gunnar Jónsson, que vive o protagonista com silêncio e candura.

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REDEMOINHO

Gildo (Júlio Andrade) e Luzimar (Irandhir Santos) são amigos de infância que a vida calhou de afastar. Porém, no dia de Natal, quando o primeiro retorna a Cataguases, em Minas Gerais, vindo de São Paulo para reencontrar o segundo, que dali nunca saiu, delineia-se um acerto de contas no qual o passado irromperá com violência. Com roteiro do pernambucano George Moura, essa estreia no cinema do diretor José Luiz Villamarim, responsável por vários seriados televisivos, saiu premiada do Festival do Rio 2016.


VALERIA REY SOTO/ REPRODUÇÃO

Leitura

1

CONTO Encontro dançante com a Morte

Em seu terceiro livro ilustrado por Valeria Rey Soto, Habib Zahra apresenta com leveza o tema áspero e inquietante para o público infantil de todas as idades TEXTO Adriana Dória Matos

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1 CORRESPONDÊNCIA

Em O dia em que a morte sambou há sintonia fina entre texto e ilustrações Página 82 2 O BURRO ERRANTE

Na sua primeira história, Habib Zahra aborda questões de preconceito e inadequação

Um burrinho que ganha a estrada por conta de uma crise com a família. Um lobo muito malvado em crise com sua natureza agressiva. Um velho brincante às voltas com a morte, talvez, a maior “crise” do homem (somente comparável à do nascimento). Esses são os pontos de partida de três contos escritos pelo egípcio radicado em Olinda, Habib Zahra. Sabemos que as histórias para crianças estão repletas de tragédias, mortes, abandono, violência, e que nem sempre os autores ou contadores poupam seus pequenos interlocutores do horror de experienciá-las, como acontece no Pinóquio de Collodi. Embora Habib Zahar não se furte a tratar de assuntos espinhosos, ele encontra um caminho leve para colocar o leitor diante dos impasses da vida. Vejam a tão conflitante questão do preconceito. No primeiro livro de Habib, O burro errante (2012), esse assunto está em discussão todo tempo, a partir das distinções sociais da família do burrinho protagonista, que o instrui a ficar longe de “gentinha” como macacos, coelhos e ratos. Claro que o burrinho desobedece aos pais e descobre que, por baixo dos preconceitos, existem amor e amizade. Preconceito é coisa séria, a gente sabe, que adoece as relações pessoais e sociais. Habib conta que essa historinha reflete, de certa forma, os conflitos que sofreu dentro da própria família e também no Cairo, onde viveu até os 16 anos, quando passou a morar na Califórnia. Na sua adolescência, quem comandava o Egito era Hosni Bubarak, que perseguiu aqueles que não se encaixavam no seu governo ditatorial. Habib era um garoto que gostava de rock, cultura ocidental, gostava de dançar, de escrever poemas, fábulas… definitivamente, um “burrinho” rebelde. Numa viagem de férias, o pai de Habib tratou de arranjar para que ele ficasse com familiares na Califórnia. Habib viveu e amadureceu na costa oeste norte-americana, graduouse em Biologia, ficou mais rebelde ainda, porque se politizou, escrevia artigos nos jornais sobre política, póscolonialismo. Numa de suas viagens, veio para o Brasil, mais especificamente, para Olinda. Foi como uma epifania. Ele conta: foi aqui que descobriu (ou se descobriu n’) a música, a dança, o teatro. Veio também a literatura, iniciada com O burro errante, continuada CONTINENTE FEVEREIRO 2017 | 81

com O último golpe do Lobo Mau (2014) e chegada até aqui com O dia em que a morte sambou (2016). Mas nada foi abrupto, ao contrário, parte de um processo. Habib Zahra só começou a escrever seus livros para crianças (de todas as idades, é sempre bom lembrar) quando já estava “pensando em português”. A gente não deve menosprezar nenhum passo dado. Digo isso aqui por conta de Habib, claro, mas vale para qualquer um. Tudo que a gente faz, em algum momento, vai ter serventia. No caso de Habib, os diários de viagem são um bom testemunho. Sempre que bota o pé na estrada, ele vai anotando aquilo que lhe importa. Quando chegou a Pernambuco, a língua em que tomava notas era o inglês, no qual já vinha escrevendo na Califórnia. Com o tempo, o inglês já não dava conta das peculiaridades da paisagem local, e assim o português foi entrando no seu vocabulário, numa assimilação orgânica, natural. Era hora de contar a história daquele menino burrinho que ganhou o mundo para se (re)conhecer. E os diários serviram de fonte. Além do mais, você sabe, a vida sempre nos dá empurrõezinhos (nem todos suaves, convenhamos) para a gente fazer o que precisa. Mas o empurrãozinho de Habib foi legal. Ele conheceu uma também viajante e artista, a salamanquense Valeria Rey Soto, que estava no Recife estudando Artes Plásticas. Formou-se “a corda e a caneca”, como diz o ditado popular. Basta dizer que todos os livros de Habib são ilustrados por Valeria, que também se tornou sua esposa e mãe do seu filho, o pequenino Miguel Ibrahim. Com essa “mão de fada”, ficava mais fácil tornar luxuriantes, alegres e vibrantes as aventuras e desventuras dos seus personagens. Os livros de Habib e Valeria podem ser classificados como belos e encantadores, sem cometer injustiça. Na base das narrativas está aquele interesse original do autor por poesia e fábula, de quando ele era um garoto incompreendido no Cairo. O que tem dado tessitura às suas histórias, entretanto, é o contato com as tradições populares do Nordeste, para as quais sempre acorre em suas andanças. “Isso de existirem as brincadeiras – coco, cavalo-marinho, maracatu – nas ruas, das quais toda a comunidade participa,


REPRODUÇÃO

Leitura 2

se diverte junta, é forte e importante. Me descobri nisso, conectado, vivo”, comenta Habib.

DANÇA COM A MORTE

E aqui chegamos ao recente conto de Habib, O dia em que a morte sambou (2016), no qual ele aborda o tema assustador e doloroso da morte, mas também situações concernentes à velhice. As primeiras frases são significativas da solidão inerente à idade: “Dos seus amigos de infância, da sua família, das pessoas com quem cresceu, ele guardava apenas lembranças. Até seus filhos não estavam mais por aqui. O ancião morava só, em uma casinha de taipa, do outro lado do Rio Tracunhaém. As únicas companhias, além das crianças que o visitavam de vez em quando, eram as flores, os pássaros, algum gato perdido. Quando nasceu, de que água bebeu, isso ninguém sabia ao certo. Parecia estar aqui há séculos, desde sempre: o velho brincante, Seu Biu”.

Essa introdução que o conto traz, e logo em seguida reconhecer que seu Biu tinha “chegado ao crepúsculo da sua vida” e que ele fenecia como um decurso da própria existência, prepara o leitor para aceitar sua morte. Mas a graça, ou a leveza da história, é que, mesmo sem dentes, com os cabelos branquinhos e cheio de rugas, Seu Biu não parava de sorrir e dançar. Nada a ver, portanto, com o arquétipo da velhice carrancuda e enclausurada, de rigidez e cenho franzido, que vai receber sua parcela de crítica nessa narrativa. O dia em que a morte sambou oferece ao leitor a possibilidade de “dançar a morte”, ou seja, despedir-se da vida despreocupadamente, como se a gente fosse, ali, sambar um maracatu (talvez seja isso mesmo…). Se o conto de Habib Zahra, por si só, oferece essa leitura tranquila de uma passagem para o desconhecido incontornável, as ilustrações de Valeria Rey Soto chegam junto para arrematar

CONTINENTE FEVEREIRO 2017 | 82

a ideia. A ilustradora trabalha com campos de luz e cor, ornamentos, delicadezas, tudo em desenho aquarelado, que contribui para a singeleza da narrativa visual. O quintal de Seu Biu é cheiinho de flor, sua roupa é listrada e florida, seu olhar é doce e ele ainda anda com um raminho de arruda enfiado no chapéu, afastando as más influências… As crianças, suas amigas, brincam numa praça toda arborizada e florida, as casinhas são caprichosas, com fachadas estilizadas. Mas você não tenha dúvida de que a figura da Morte é mais encantadora, na sua beleza particular. Ela é uma caveira que carrega uma foice, não tem como duvidar do seu jeito mortiço, mas, ao invés da capa preta, enlutada, a morte de Valeria é herdeira da Catrina mexicana, adornada de flores e cores. É desse jeito que a malvada chega à casa de Seu Biu, com seu alarido de Morte. Mas…“Ao sentir o sopro frio da Morte no seu pescoço, o brincante não estremeceu. Simplesmente olhou para trás e sorriu calorosamente, como se estivesse reconhecendo uma amiga de longa data”, escreve Habib. Agora acompanhado de Valeria e Miguel, Habib empreende suas jornadas. Além das tradições nordestinas, ele tem investigado manifestações em outros territórios, e encontrado muitas similaridades. Numa segunda viagem ao Egito, desde que deixou o país na adolescência (ele agora tem 37 anos), no ano passado, ele foi em busca de elementos da cultura popular também no seu país de origem. Conta que encontrou coisas interessantíssimas em comunidades de pescadores próximas ao Cairo, música de trabalho, música de ciganos egípcios e algumas ritualísticas, de vertentes heréticas do islam. No Marrocos, seguiu o mesmo caminho, sobretudo encantado que ficou com a gnawa, música tradicional do país norteafricano. Algo semelhante se deu na visita que fizeram ao México. O caderno de viagem continua sendo usado com o mesmo desprendimento das investidas anteriores. Como enfatiza Habib Zahra, não se trata de um interesse científico, instrumental, mas de uma genuína necessidade de se comunicar com as gentes através do coração e registrar essa calorosa experiência.


HALLINA BELTRÃO

ENFOQUE Protagonistas não hegemônicos

Anatomia do paraíso, de Beatriz Bracher, e Reza de mãe, de Allan da Rosa, focam na construção de personagens marginalizados TEXTO Marina Moura

O sociólogo francês Pierre Bourdieu observou que “entre as censuras mais eficazes e mais bem-dissimuladas situam-se aquelas que consistem em excluir certos agentes de comunicação excluindo-os dos grupos que falam ou das posições de onde se fala com autoridade”. A literatura, como aliás todas as modalidades artísticas, pode servir também como espaço de legitimação do discurso dominante, e, neste caso, padecer de uma limitação de perspectiva. Quem é, de onde e para quem fala, neste Brasil tão diverso e

tão pouco representativo, o indivíduo ficcional? O homem branco, classe média, heterossexual e urbano. Eis o perfil clássico do personagem e/ ou narrador do discurso literário brasileiro contemporâneo, é o que concluiu um levantamento coordenado pela professora do Departamento de Letras da Universidade de Brasília (UnB) Regina Dalcastagnè. Ao longo de 15 anos de pesquisa, foram lidos e catalogados contos e romances publicados entre 1990 e 2004 pelas principais editoras nacionais, e

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mais de 1.200 personagens, autores e prêmios, analisados. O resultado está no livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (Editora Horizonte, 2012), que atesta e destrincha a pouca pluralidade das vozes narrativas. Alguns números revelam tal conclusão: mulheres representam menos de 30% das personagens das obras; 79,8% das personagens de ambos os sexos são brancas; enquanto isso, negros, mestiços, orientais e indígenas não chegam a 16%. Se esses dados são desanimadores, na medida em que prevalecem nas narrativas recentes, é preciso celebrar obras que contradizem o quadro hegemônico, como dois livros recentes, cujo esforço de sair deste terreno, ainda que em diferentes medidas, dá-se pela construção de personagens em geral marginalizados das narrativas. São eles Anatomia do paraíso, romance de Beatriz Bracher (Editora 34, 2015), e Reza de mãe (Editora Nós, 2016), livro de contos de Allan da Rosa. Em ambas as obras, há a representação de trabalhadores negros em suas especificidades, e não como um


FOTOS: DIVULGAÇÃO

Leitura 1

1-2 BEATRIZ BRACHER E ALLAN DA ROSA Autora faz um paralelo entre protagonistas de realidades opostas. Allan aproxima-se do “periférico”

conjunto. Aqui, cabe a observação feita por Regina Dalcastagnè, em seu artigo Uma voz ao sol: “A categoria ‘trabalhador’ (ou ‘suburbano’, ‘marginal’, ‘malandro’, conforme o caso) pretende condensar numa só abstração um conjunto de milhares de experiências vividas, como se fossem uniformes. O fato é que os autores brasileiros se mostram muito mais sensíveis à variedade das vivências dos estratos sociais mais próximos ao seu. Mesmo quando se propõem a organizar alguma espécie de painel da vida contemporânea, é comum ver esmiuçadas as minúsculas variações do estilo de vida das classes médias, enquanto que a existência das multidões de pobres é chapada, como se a diferença que separa um médico de um advogado fosse mais significativa do que aquela que afasta um balconista de lanchonete de um motorista de ônibus”.

ENREDOS

A tessitura de Anatomia do paraíso é composta por capítulos que se alternam e mudam consigo o foco representativo: ora a narradora se debruça sobre Félix, jovem estudante universitário, branco, de classe média que mora num quarto e sala em Copacabana e escreve sobre o poema épico Paraíso perdido, de John Milton; ora centra-se em sua vizinha, Vanda, que precisa conciliar dois trabalhos e os estudos para

2

o vestibular, além de ser responsável pela criação de sua irmã mais nova. Entre eles, pouquíssimas cenas em comum e uma personagem que transita pelos dois contextos: a adolescente Maria Joana, ou Jojô. Uma das leituras possíveis do romance de Bracher é de igualar os protagonistas em realidades diametralmente opostas. Ele, que é financeiramente dependente da família, é tomado de preocupações quase sempre de ordem metafísica e recorre a uma série de micropersonagens para servilo: há sempre alguém para cozinhar, lavar, limpar, ler, fazer curativos, cuidar de Félix. Já Vanda, entre o emprego de técnica do Instituto Médico Legal (IML) e instrutora de uma academia, vive com o aluguel atrasado e lida com a perspectiva de ter que sair de lá em meio a uma gravidez não planejada. Nas 14 narrativas de Reza de mãe, há personagens e espaços que se repetem ou não, apresentados em uma linguagem associada à periferia. Com um domínio discursivo exemplar, Allan da Rosa alterna os tons e modos de narrar, em primeira ou terceira pessoa, seja em forma de crônica, conto ou poesia. Assim, vislumbramos Valdeci, “vendedor de guloseimas na saída dos colégios pagos em euro”; Nefertiti se masturbando no chuveiro enquanto a apressam do lado de fora; Seu Tebas de Jenê, ex-pedreiro que mantinha a obsessão de esfregar bem as mãos para tirar a “laje”, motivo de vergonha para sua filha; ou Valagume, prestes a ser morto pela polícia. Esses são apenas

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alguns dos personagens de Reza de mãe, e, a despeito da situação precária em que vivem, não são de modo algum postos como uma massa informe de vítimas.

CONTRADISCURSOS

É da teoria e crítica do regionalismo que Regina Dalcastagnè toma emprestados alguns termos para analisar e classificar as especificidades de narrativas contemporâneas que incluem os marginalizados, isto é, “o outro”. Há quem conduza suas narrativas de modo exótico, numa oscilação entre o cínico e o piegas, na reprodução de preconceitos, por exemplo. “Escapar a esses discursos, já prontos e enraizados, talvez seja tão difícil quanto imaginar cada um desses homens ou mulheres que vemos trabalhando pelas ruas – varrendo, consertando coisas, dirigindo ônibus – como alguém com uma história, um passado, projetos e sonhos, parecidos ou não com os nossos”, sublinha a pesquisadora. A outra possibilidade para lidar com tais indivíduos é de modo crítico. No caso de Anatomia do paraíso, o estranhamento entre o intelectual, representado por Félix, e a massa, encabeçada por Vanda, e a convivência não pacífica entre eles deixam claro que o lugar de fala da narradora é permeado por uma condição de quem mantém certa distância de um contexto marginal. Não à toa, a trama se passa em um bairro nobre da capital carioca. No entanto, Beatriz Bracher, ao optar por uma narrativa aparentemente neutra


INDICAÇÕES e repleta de detalhes, com uma disposição minuciosa da rotina e dos objetos que circundam as personagens (sabemos, por exemplo, o que Vanda carrega na mochila ao sair de casa, e saber disso já nos diz de sua jornada tripla), apresentanos um retrato bastante convincente e lúcido do abismo social, mesmo entre duas pessoas que moram no mesmo prédio-comelevador-perto-da-praia. Um terceiro modo de tratar literariamente essas vozes minoritárias é conceber uma narrativa a partir da perspectiva de um olhar “de dentro” da periferia, numa galeria de personagens que se mostram pela própria linguagem, numa espécie de autorrepresentação discursiva, como é o caso dos indivíduos de Reza de mãe. “Apesar do continente que separa meu moletom do seu colete à prova de balas, nossa cor nos une e compreendo sua grandeza ancestral”, diz Caçú a um policial, no conto O iludido. Vemos, assim, sujeitos com vida própria, sem mediações de narradores mais cultos ou sem fazer parte da paisagem do homem branco. A complexidade deles é evidenciada na fala de um dos personagens, para quem não existem apenas as opções simplistas entre “vencer na vida” ou lutar coletivamente por uma mudança de status: “Uns têm crença na guerreiragem individual, esforço de titã e de monge, alpinista de elevador pra cargo bom, vai subir e assinar o destino de vencedor. Outros pregam a força do povo unido, única vereda para reverter a vampiragem e desfrutar junto de escola a lousa, banheiro sem fedô, churrasco sem miséria, beira de piscina, talvez um veleiro… Quem tem

mais sapiência? Quem molha mais o pé na poça da ilusão?”. Tanto em Anatomia do paraíso como em Reza de mãe é interessante ver, ainda, a maneira como é tratado o corpo negro feminino. A sexualização precoce e o abuso no seio familiar estão presentes em ambas as narrativas, com situações perversas vividas pelas adolescentes Maria Joana (na obra de Bracher) e Lavanda (no conto homônimo de Rosa). A escolha ou não pela maternidade e suas consequências também estão colocadas nos enredos. Não importa se opta por continuar a gravidez (é o caso de Vanda) ou interrompêla (como Amora, em Jogo da velha), à mulher negra e periférica destina-se o estigma da maternidade sem a figura do pai ou o aborto clandestino (“se tirassem feto de homem, já estava aprovado desde o tempo das pirâmides”, declara o personagem de Rosa). Como diz Vanda, em determinado momento do romance de Bracher, “em geral a gente resiste, o mais normal é isso, a gente resiste e passa”. E é justo à resistência que se referem as duas obras analisadas, das exigências práticas pelas quais clamam e nos colocam, enquanto leitores, em contato com diferentes perspectivas sociais, sem neutralizá-las ou estereotipálas. Nesse sentido, os autores Beatriz Bracher e Allan da Rosa contribuem para o alargamento do debate literário, quando entendem que minorias econômicas, raciais e de gênero precisam urgentemente de representação na sociedade e na literatura, duas instâncias da diversidade do mundo que necessitam reformular seus discursos de hegemonia.

HISTÓRIA

ROMANCE

Companhia das Letras

Biblioteca Azul

SVETLANA ALEXIÉVICH O fim do homem soviético

VALTER HUGO MÃE Homens imprudentemente poéticos

“Não faço perguntas sobre o socialismo, mas sobre o amor, o ciúme, a infância, a velhice”, afirma a escritora, ganhadora do Nobel de Literatura 2015. Em seu quinto e último livro sobre o mundo soviético, ela narra a derrocada do comunismo, utilizando recursos da reportagem e da literatura.

O sétimo romance do português é ambientado em uma ancestral aldeia japonesa e trata da difícil relação entre o oleiro Saburo e o artesão Itaro. Com tons fantásticos, a narrativa põe em cena personagens que, embora através de percursos diferentes, apoiam-se sobretudo na intuição.

ANTROPOLOGIA

ENSAIO

VÉRONIQUE DURAND Órfãs de esperança Editora Cuzbac

A antropóloga francesa é veterana na observação e pesquisa dos tipos de violência cometidos contra a mulher, especialmente em países africanos e sul-americanos. Neste livro, a autora reúne dados e histórias a partir de uma abordagem intercultural, com foco nos dois eixos que mais estão relacionados às situações de violência – o controle da sexualidade e dos direitos reprodutivos.

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MARIE-JOSÉ MONDZAIN Sideração Zazie Edições

Neste ensaio de 2014, em tradução inédita pela Zazie Edições, a filósofa francesa reflete acerca das definições possíveis do termo sideração: entre uma renovação delirante e contínua dos objetos e a possibilidade de romper repetições, numa espécie de “arte do salto”, movimento tão necessário à criação. Disponível para download gratuito.


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

EITA VIDA BESTA, MEU DEUS! A praia de Carneiros parece ilha do

Caribe, com tudo o que imaginamos existir num paraíso tropical: coqueiros, mangueiras, pés de frutapão, pássaros exóticos e manguezais repletos de guaiamuns, caranguejos e ostras. Um braço de mar avança por dentro da floresta de mangues e os pescadores circulam em barcaças, arriscando a sorte com as redes. Nas marés vivas, os nativos saem para pescar tainha e agulha. Se dá sorte, voltam com peixes maiores. Nem digo o tamanho porque vai parecer mentira de pescador. Olhando-se da capelinha de São Benedito, construída no século XVIII, avista-se as praias de Guadalupe, Sirinhaém, e a ilha de Santo Aleixo, vendida para se transformar num grande resort. Quando as águas baixam, se alcança os arrecifes caminhando pela areia. Quem vê de fora, acha que andamos sobre o mar, como Jesus Cristo. Não sei o que Ele sentiu, mas experimentamos uma leveza sobrenatural. Carneiros fica no litoral sul de Pernambuco e um trovador cantaria

em versos que foi o último baluarte a cair, vencido pelos ataques imobiliários e turísticos. Durante anos, extensas faixas de litoral se mantiveram preservadas nas mãos de algumas poucas famílias. Perverso acaso em que o latifúndio e a propriedade privada contribuíram para a nobre causa da preservação. Com a morte dos velhos senhores, os herdeiros – filhos e netos – estraçalharam os espólios. O grande tornou-se pequeno e o pequeno foi convertido em lotes minúsculos. Extensões de matas nativas e sítios com fruteiras viraram casas e prédios, amontoados urbanos, da noite para o dia. É possível que me chamem conservador e saudosista. Acho que não sou essas coisas, mas presenciei a destruição do litoral pernambucano com impotência e amargura. Praias antes selvagens e paradisíacas reproduziram o caos das cidades, sem projeto urbanístico ou sanitário. Hotéis, casas e prédios de apartamentos foram levantados em tempo recorde, arbitrariamente, sem nenhum controle ou intervenção

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das prefeituras, em completa desarmonia com a paisagem, ferindo a estabilidade dos ecossistemas de mangues, florestas e rios. E nada se fez, nada se faz. – Cara, – argumenta um dono de barco de passeio – vale que incrementou o turismo. Antes, aqui só tinha casebre de palha e pescador. Agora vive cheio de gringo. Tem razão, encheu de turista. E isso é bom? Até na baixa temporada, dezenas de catamarãs cruzam de um lado para outro, cheios dessa gente com roupa de banho, aparelhos celulares e máquinas fotográficas, a fim de curtir a natureza, ao seu modo, é verdade. Cada embarcação possui uma especialidade sonora. Algumas carregam trio de forró, que não para de tocar um minuto. Outras levam grupos de axé, frevo, pagode ou batuque. As mais modestas reproduzem CDs, amplificados em caixas volumosas, semelhantes às dos paredões usados em carros e camionetas. Os repertórios, vocês imaginam. Mesmo que se trate de uma partita de Bach


ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO

ou um adagietto de Mahler, qualquer música fere a sonoridade monótona das ondas e do vento. A ordem é se divertir, encher a cara, dançar continuamente, gritar alto, empanturrar-se de comidas típicas, tomar sol e expor-se às câmeras dos aparelhos celulares. Há um roteiro que todos cumprem como Via Sacra. O catamarã para em frente à igrejinha de São Benedito, as pessoas descem, posam para retratos (se esforçam para contrair e disfarçar os excessos da barriga), entram seminuas na casa de Deus, fazem novas fotos, sobem no barco, bebem mais, comem mais, gritam decibéis acima do som alto, pois desejam ser escutadas, renovam o protetor solar, posam, fotografam, posam, fotografam, falam nos aparelhos onipresentes com alguém longe e seguem até a segunda estação. Uma praia com argila medicinal. Alguém inventou que o barro amarelo esfregado na pele faz as pessoas rejuvenescerem. Nesse ponto, o passeio ganha as cores da comédia. Seduzidos pela promessa de se

Praias antes selvagens e paradisíacas reproduziram o caos das cidades, sem projeto urbanístico ou sanitário tornarem jovens e revigorados, todos se cobrem de argila. Mais fotos e fotos e fotos. Os fanáticos percorrem enlameados o restante do passeio, risíveis papangus debaixo do sol quente, ao som de Morena tropicana ou Riacho do navio, o hit mais popular nos catamarãs. Terceira estação, os arrecifes de corais. Nesse santuário conspurcado – desculpem o palavrão que significa sujo, manchado, maculado, infamado, desonrado – eles arrancam tesouros marítimos, escavam entre as rochas e subtraem estrelas do mar, conchas e ouriços, que geralmente esquecem nos barcos como carga inútil. Um nativo instalou a barraca de cerveja, refrigerante e água mineral em meio

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aos arrecifes e prospera com o seu negócio. Barqueiros aproveitam a pausa e trocam os números dos celulares com turistas mulheres, e alguns homens. A noite existe para curtir a lua, uma bebida quente e o quarto de hotel aconchegante. E vamos às fotos, com a barriga bem contraída. A quarta estação dentro dos mangues, a quinta num cruzeiro erguido sobre um penhasco do tempo da colonização (já acabou?), a sexta, a sétima, a oitava… Todas com bastante barulho de fundo para afugentar os peixes e erradicar a pesca nas praias pernambucanas. Os barqueiros de camisa regata, musculosos, tatuados e bronzeados arremessam anzóis em todas as direções, com a isca infalível do corpo desejável. Quase nunca os novíssimos pescadores se frustram. As iscas retornam mordidas, mesmo que seja por uma gorda albacora ou um bagre velho. Por último, mais bebida e som alto que ninguém é de ferro. Tira-se férias para quê?


CON TI NEN TE

Criaturas

Andy Warhol por Janio Santos

Há 30 anos, morria o ícone da pop art Andy Wahrol. Na década de 1960, começou a produzir suas obras pop, a exemplo da Campbell Soup, e foi um dos pioneiros no uso do video como suporte. Fascinado por Hollywood, desenvolveu uma série de retratos de artistas como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Elizabeth Taylor. Ele próprio uma celebridade previu que, hoje, todos teriam seus 15 minutos de fama.

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# 194

#194

SITUAÇÃO ATUAL DO CONTINENTE É ANALISADA POR AUTOR INÉDITO NO BRASIL, CAMILLE DE TOLEDO

EUROPA ano XVII • fev/17 • R$ 13,00

CONTINENTE

17 por 12

www.revistacontinente.com.br

O olhar simbólico de doze artistas sobre a Revolução de 1817 Jeims Duarte • Helder Santos • Daaniel Araújo • Bruno Vilela • Beto Viana • Plínio Palhano Jéssica Martins • Gio Simões • Roberto Ploeg • George Barbosa • Renato Valle • Rinaldo Silva

FREVO

DANÇA E MÚSICA O ANO INTEIRO

Exposição: 10 de janeiro a 10 de fevereiro de 2017

g a l e r i a

FEV 17

arteplural

E MAIS

RODOLFO MESQUITA FRANÇOIS DOSSE WALÉRIA AMÉRICO NICOLAS KLOTZ


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