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Revolução Republicana
# 195
A luta pioneira de bravos guerreiros
Espada usada pelo revolucionário Leão Coroado
#195 ano XVII • mar/17 • R$ 13,00
CONTINENTE
Pernambuco comemora os 200 anos da Revolução Republicana, deflagrada em 6 de março de 1817. Para celebrar a data, a Cepe lança a História da Revolução Pernambucana em 1817, de Muniz Tavares, com notas de Oliveira Lima. Um texto clássico sobre o movimento que primeiro defendeu a instauração de uma República no Brasil e narrou a luta dos bravos guerreiros pernambucanos contra o arbítrio.
ESPECIAL
1817 UM ANO PARA NÃO ESQUECER
MAR 17
O Bicentenário da Revolução deflagrada em Pernambuco contra a Coroa aponta novos olhares sobre um episódio fundamental para a ideia de nação brasileira
E MAIS
• VIAGEM A MOÇAMBIQUE • DESENHOS DE LAERTE • AUTOBIOGRAFIA DE GERALD THOMAS
REFERÊNCIA EM TRANSPLANTES, MAIS DE 1.400 POR ANO.
26 UNIDADES DE ATENDIMENTO A BEBÊS COM MICROCEFALIA.
SÃO DOIS ANOS DE MUITO TRABALHO. E O MAIS IMPORTANTE: MUITAS VIDAS TRANSFORMADAS.
PRAIA SEM BARREIRAS, MAIS DE 5 MIL BENEFICIADOS.
PRESENÇA QUE FAZ A DIFERENÇA.
PROJETO MÃE CORUJA. MAIS DE 85 MIL MULHERES E CRIANÇAS ATENDIDAS.
26 UNIDADES DE ATENDIMENTO A BEBÊS COM MICROCEFALIA.
PROJETO MÃE CORUJA. MAIS DE 85 MIL MULHERES E CRIANÇAS ATENDIDAS.
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PROGRAMAÇÃO
março e abril
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2017
Nos meses de março e abril, a programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE, Museu do Estado de Pernambuco, segue efervescente.
DOUGLAS GERMANO 11/03 • SÁBADO • 17h
JAM DA SILVA 18/03 • SÁBADO • 17h
TATADIOS 25/03 • SÁBADO • 17h
DUO SENSÍVEL 01/04 • SÁBADO • 17h
REVEREND KM WILLIAMS 08/04 • SÁBADO • 17h
IARA RENNÓ 22/04 • SÁBADO • 17h
DUO RAFAEL MARQUES E JOHANN BREHMER 29/04 • SÁBADO • 17h
29/04 • SÁBADO • 14h OFICINA COM RAFAEL MARQUES – O BANDOLIM DE 10 CORDAS NO FREVO DE RUA. PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
APOIO
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h as 17h Sáb e dom 14h as 17h
REALIZAÇÃO
SECRETARIA DE CULTURA
MINISTÉRIO DA CULTURA
MARÇO 2017
PEDRO ZENIVAL/REPRODUÇÃO
aos leitores Em quantos dias se faz uma revolução? Como nos mostra a História, revoluções nunca começam e terminam como registra o calendário oficial, mas são gestadas em vários acontecimentos que a antecedem e repercutem por muito tempo, em várias camadas, numa imagem um tanto gasta, mas eficaz: como uma pedra atirada na água. Assim se deu, também, com a Revolução Pernambucana de 1817, quando muitos defendem que o nacionalismo, a ideia de Brasil, nasceu, porque esse motim emancipatório queria ver esta terra livre dos colonizadores. Foram somente dois meses, mas aquele episódio – também conhecido como Revolução dos Padres – lançou uma importante semente libertária. São 200 anos desde aquele 6 de março, quando os revoltosos proclamaram o Governo Provisório da então província de Pernambuco. Nesta edição, rememoramos o assunto, direcionados principalmente pelos lançamentos sobre o tema que a Companhia Editora de Pernambuco – Cepe fará ao longo deste ano. Entre as obras em edição, selecionamos os primeiros episódios da
HQ 1817 – Amor e revolução, e a trouxemos em primeira mão para você, leitor. O trabalho foi realizado em parceria pelo escritor Paulo Santos de Oliveira, o quadrinista e ilustrador Pedro Zenival e o designer Alex Dantas. Em outro momento da revista, Pernambuco também encontra protagonismo, dessa vez, por um movimento de fé, que mobiliza cristãos. Em dezembro, acompanhamos a procissão de Nossa Senhora da Conceição, do centro do Recife ao Morro que ganha o nome da santa, no Bairro de Casa Amarela, e contamos um pouco do que vimos e ouvimos pelo caminho. E a fé que move os devotos pernambucanos da Mãe vestida de azul move também a população indígena andina do Noroeste da Argentina, em torno da Mãe-Terra, a Pachamama, que, sob os preceitos dessa religiosidade, é responsável por nutrir e trazer abundância para esse povo. Num gesto que se repete todo ano (assim como a Festa do Morro aqui mencionada), os pachamamistas reúnemse em torno da apacheta para depositar suas oferendas, cantar, dançar, pedir e agradecer. Rituais tão remotos como a própria existência do homem sobre a Terra.
sumário Portfólio
Flávia Junqueira
6 Colaboradores
7 Cartas
8 Entrevista
+ Continente Online + Expediente
Kirsty Fairclough Pesquisadora de cultura de celebridades faz uma análise sociológica da cantora Beyoncé
18 Balaio
Grammy Seria o número de cópias vendidas um critério?
40 Conexão
Internet A discussão sobre o limite de dados no uso da internet fixa volta à pauta
61 Visuais
Laerte Artista reúne seleção de obras produzidas desde 1990 que trazem tom autobiográfico
64 Tradição
achamama P O ritual de agradecimento dos povos andinos à Mãe-Terra
68
Matéria Corrida
Em suas performances, instalações e fotografias, a artista faz uma articulação proposital de maniqueísmos, como novo e velho, infância e maturidade
12
José Cláudio Ano novo, vida velha
70 Claquete
Ocupações A luta pela moradia é o tema central de Era o Hotel Cambridge, da diretora Eliane Caffé
82 Entremez
Ronaldo Correia de Brito Adeus, Guita Charifker!
84 Leitura
Ernesto Dabo Obra do poeta guineense nos leva a conhecer a linguagem e a diversidade étnica e linguística do seu país
88 Criaturas
Gabriel García Márquez Por Ernesto Priego
Pernambucanas
Nossa Senhora da Conceição No Recife, o mês de dezembro se inicia com a tradicional Festa do Morro, que atrai uma multidão de devotos da santa, em especial no dia 8, quando acontece a procissão
50 CAPA FOTO Diogo Condé
CONTINENTE MARÇO 2017 | 4
Capa
Viagem
Há 200 anos, Pernambuco foi palco de uma revolução que instaurou, durante dois meses, uma república no estado e teve papel fundamental no impulso democrático do país
A experiência de uma educadora e voluntária brasileira na cidade de Beira, em Sofala, região central do país, onde há carências de toda ordem
Cardápio
Sonoras
Combinações de bebidas, frutas, chás e outros insumos têm ganhado cada vez mais espaço e já se tornaram até um campo de estudo, a mixologia
Lançamentos dos discos de estreia de The Doors, Velvet Underground, Jimi Hendrix e Pink Floyd fazem deste ano um dos mais profícuos da história do rock
1817
20
Drinques
56
Moçambique
44
1967
74
CONTINENTE MARÇO 2017 | 5
Mar’ 17
colaboradores
Alcione Ferreira
André Nery
Michelle Gueiros
Pedro Zenival
Fotógrafa documental e fotojornalista, atua como freelancer
Fotógrafo, atua no Jornal do Commercio e como freelancer
Educadora, viajante do mundo e fotógrafa nas horas vagas
Pintor, ilustrador e desenhista de histórias em quadrinhos
E MAIS Carol Almeida, jornalista, doutoranda em Comunicação na UFPE. Eduardo Sena, jornalista. Carolina Albuquerque, jornalista. Ernesto Priego, ilustrador e caricaturista espanhol. Guilherme Gatis, jornalista. Isabel Lustosa, pesquisadora da Fundação Casa Rui Barbosa e especialista em Cultura Política do Brasil do séc. XIX. Pedro Vilela, gestor, diretor artístico e idealizador do Trema!. Thiago Soares, jornalista, professor e pesquisador do curso de Comunicação da UFPE.
REVOLUÇÃO DE 1817
SONORAS
Quem desejar saber mais sobre o levante que instaurou a República Pernambucana, há exatos 200 anos, poderá acessar um banco de dados com a lista de várias publicações registradas sobre o tema. Disponibilizaremos, ainda, a revista Continente Documento, nº 34, de junho de 2005, que faz um registro das lutas e disputas que construíram a imagem de bravura de Pernambuco, com destaque para a expulsão dos holandeses, a Revolução de 1817 (com a reprodução na íntegra da Lei Orgância da República de 1817) e a Confederação do Equador.
Assista a um vídeo, dirigido por Andy Warhol, que registra ensaio da banda Velvet Underground, em 1966, um ano antes de lançar o influente “disco da banana”.
CONTINENTE MARÇO 2017 | 6
LEITURA Confira os poemas inéditos Assim não será e Fiel à mudança, do poeta guineense Ernesto Dabo, que serão publicados este ano no seu segundo livro, Olonko.
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR
MAURÍCIO PLANEL
Infelizmente, um título como esse (Patrimônio Cultural do Brasil) não pode garantir nenhum reconhecimento e cuidado político-social para os caboclinhos. IARA CAMPOS RECIFE – PE
Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo
Goiana aparecendo! Linda matéria. Eu, como goianense, alegro-me.
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
TIAGO MELO BELO HORIZONTE –MG
DO FACEBOOK
Vamos celebrar os caboclinhos em bela matéria da Revista Continente.
EUROPA
Agradeço o envio da entrevista com Camille de Toledo (edição de fevereiro, nº 194). Será interessante ver as reações por aí. Parabéns pela iniciativa e por dar espaço a vozes menos conhecidas no eixo Rio-SP. Sempre admirei a autonomia intelectual da Continente.
CARDÁPIO Quanta poesia num “belo texto tão revelador” da mais profunda alquimia da vida... Parabéns, mocinha!!! (Matéria A pedra filosofal da nossa cozinha, edição nº 190, outubro/2016)
RAFAEL CARDOSO
VICENTE FELIX
BERLIM – ALEMANHA
JOÃO PESSOA – PB
Muito honrado de estar conectado à revista Continente. Saudações a todos, amigos do Brasil, presente e futuro... CAMILLE DE TOLEDO BERLIM – ALEMANHA
Texto obrigatório para as salas de aula.
Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente Online) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem)
Muito bom ver a Orquestra Quebramar nas páginas da revista Continente (edição de fevereiro, nº 194). Que possamos contribuir com o frevo, o grande aniversariante, e com a música instrumental feita em Pernambuco por muitas décadas! GEORGE ROCHA
OLINDA – PE
RECIFE – PE
Tudo relacionado ao frevo de rua começa pela valorização do músico! Fora disso, não há salvação do frevo de rua!
Texto e fotos lindíssimos! Maravilhoso! (edição de janeiro, nº 193).
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação)
FREVO
GUSTAVO LEITE
CABOCLINHOS
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe
REVISTA RAIZ
PAULA BRASILEIRO
LIMA FLORIANO
RECIFE – PE
RECIFE – PE
Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Eduardo Montenegro, Erika Muniz e Marina Moura (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se
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REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
CONTINENTE MARÇO 2017 | 7
KIRSTY FAIRCLOUGH
“É difícil relacionar ativismo e indústria do entretenimento”
Pesquisadora da Universidade de Salford, da Inglaterra, há alguns anos, dedica-se à cultura das celebridades e acaba de lançar o primeiro livro acadêmico de análises sociológicas sobre a cantora Beyoncé TEXTO Thiago Soares e Suzana Mateus
CON TI NEN TE
Entrevista
Desde que assumiu, formalmente, no último mês de janeiro, a presidência dos Estados Unidos, Donald Trump tem sido alvo de críticas de um conjunto cada vez maior de celebridades. De Meryl Streep, passando por Madonna, Ashton Kutcher, Emma Stone, entre outros, parece que, cada vez mais, artistas estão se posicionando politicamente, construindo discursos de resistência em lugares improváveis diante do olhar atento de fãs. A outrora alardeada frivolidade das celebridades passa a ser “ocupada” por falas poderosas em torno da mulher, das minorias, dos imigrantes. Parte desse movimento que hoje se observa mais comum tem na cantora Beyoncé um importante epicentro. Quando o álbum Beyoncé foi lançado em 2013, trazendo na canção Flawless trechos do discurso feminista da escritora nigeriana e ativista Chimamanda Ngozi Adichie, a pesquisadora inglesa Kirsty Fairclough nem pensava que, três anos depois, lançaria um livro intitulado Beyoncé: celebrity, feminism and pop culture (Beyoncé: celebridade, feminismo e cultura pop, I.B Tauris, 2016).
Pesquisadora e conferencista em Mídia e Performance na School of Arts and Media da University of Salford (no Reino Unido), Kirsty sempre lecionou assuntos ligados a Media Studies, Film Studies and Performance Studies. Eis que, diante do “entusiasmo de seus alunos” e interessada em analisar produtos da cultura popular midiática, começou a focar suas pesquisas em debates sobre celebridades. Tornou-se membro do corpo editorial do periódico internacional Celebrity Studies (Routledge) e passou a dedicar especial atenção à figura de Beyoncé, analisando sua trajetória, contradições e afecções políticas, que resultaram em seu livro. Integrante do Communication, Cultural and Media Studies Research Centre, um dos maiores centros de pesquisa em mídia, cultura pop e entretenimento do Reino Unido, Kirsty Fairclough concedeu esta entrevista para debater tópicos fundamentais nos enlaces sobre política, celebridades e cultura pop. CONTINENTE Em sua trajetória acadêmica, é possível perceber uma mudança de foco: há cinco anos, seu interesse era, marcadamente,
CONTINENTE MARÇO 2017 | 8
em séries televisivas como Twin Peaks e Mad Men. Este ano, com a publicação de seu livro Beyoncé: celebrity, feminism and pop culture, percebe-se um foco em torno da figura de Beyoncé e do feminismo. Como se deu essa “virada”? KIRSTY FAIRCLOUGH Nossas pesquisas envolvem constantes mudanças de enquadramento e foco. Sempre fui interessada pelas análises da cultura popular midiática e tenho pensado sobre como o feminismo e suas representações nas mídias têm afetado os sujeitos. Venho notando que estudantes têm se engajado de maneira singular naquilo que podemos classificar sob a retranca de “celebridades”. Beyoncé parece estar na linha de frente desse engajamento. Nunca fui sua fã, mas passei a me interessar por ela motivada pelo entusiasmo dos estudantes – através de questionamentos em torno de visões de mundo através das representações, dos gêneros, do feminismo. CONTINENTE Como você define a importância de celebridades para o feminismo? KIRSTY FAIRCLOUGH A cultura das celebridades contemporâneas
DIVULGAÇÃO
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parte do que foi (ou é) o feminismo. Pensar, por exemplo, os “mandatos” de algumas celebridades dentro da cultura midiática demonstra que o movimento feminista ainda importa para as instâncias midiáticas e que ressoa marcadamente no público. CONTINENTE Não há um paradoxo no fato de que Beyoncé é negra, enfatiza sua própria sexualidade para empoderar outras mulheres negras, ao mesmo tempo em que ela pode estar colaborando com o discurso histórico de objetificação da mulher negra?
videoclipe da canção Formation. Discursos sobre empoderamento e objetificação foram invocados nesse momento em particular. O clipe apresenta imagens radicais e políticas poderosas que foram concebidas para gerar debate e desafiar ideias em torno das mulheres negras e suas autorrepresentações. Eu argumento que Beyoncé apresenta um desafio aos modos pelos quais as mulheres negras são frequentemente representadas no mainstream. A imagem de uma sulista orgulhosa de sua negritude significando sua representação é desafiadora e
DIVULGAÇÃO
tem sido rotulada através do tópico do feminismo. Isso tem proliferado discursos sobretudo em revistas populares, blogs e sites fazendo perguntas do tipo: “Qual a posição de nossa celebridade favorita sobre o feminismo?”. Celebridades mulheres passaram a sentir a necessidade de tornar públicas filiações ou rejeições a certa identidade feminista. Eu diria que esses debates culturais ilustram as relações tênues e tensas entre feminismo e cultura das celebridades, ainda que esses dois “reinos” possam,
CON TI NEN TE
Entrevista inclusive, coexistir. Acho que a cultura das celebridades tornou-se um importante lugar para a produção de sentido e de entendimento sobre o feminismo. Sobretudo iluminando o senso comum, que acredita que pautas do movimento feminista estariam “fora de moda” ou fora de sintonia com preocupações de jovens mulheres da sociedade contemporânea. Nesse sentido, o conceito de pós-feminismo tem sido uma ferramenta interessante para pensar de que modo os “quadros conceituais” do feminismo se deram dentro de determinadas culturas e ainda tentar dar conta de inúmeros debates que procuram discutir o que é e o que não é feminismo ou, ainda, quem pode ou não reivindicar fazer
KIRSTY FAIRCLOUGH Essa é uma crítica que frequentemente recai sobre ela. Concordo que há um paradoxo que precisa de interrogações mais profundas. Se olharmos para quando Beyoncé apresentou sua faixa Formation no Superbowl 2016, um espetáculo audiovisual de dimensões globais, ela radicalmente convocou questões em torno de raça e gênero nos Estados Unidos, referenciando não somente a hashtag #BlackLivesMatter (#VidasNegrasImportam) e o Furacão Katrina, mas também todo o legado dos Panteras Negras e do Black Power de maneira mais ampla. Logo depois do evento, um intenso debate nas redes sociais foi acompanhado pela exibição da performance do Superbowl e do
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raramente vista na cultura popular com tamanha visibilidade. Formation é essencialmente uma narrativa de reapropriação. Num certo momento do vídeo, Beyoncé é vista como a anfitriã de um conjunto de mulheres negras numa típica mansão sulista dos Estados Unidos. Retratos de negros e negras, individuais e coletivos, estão pendurados nas paredes – mostrando uma família numa típica vestimenta rosa africana, enquanto outro evidencia uma mulher de pele muito negra quase se misturando ao fundo da tela da imagem (também negra). Isso pode ser lido como a reivindicação do legado escravocrata sulista, enquanto Beyoncé está frontalmente nos convocando através da imagem de uma senhora negra sob
seu guarda-sol e que dança desafiando o status quo. Isso é um descarado “não” em torno do esquecimento da história africana, quando milhares de pessoas foram forçadas a deixar suas terras e emigrar especialmente para o sul dos Estados Unidos, onde a escravidão se estendeu por tanto tempo. CONTINENTE Você enxerga, portanto, relações entre o videoclipe Formation e a corrente de estudos do feminismo negro? KIRSTY FAIRCLOUGH Essas imagens do vídeo promoveram abalos em termos de representação do feminismo negro. Temos uma das mulheres mais bempagas no mundo do entretenimento se posicionando sobre misoginia, sexualidade, beleza da mulher negra e autoafirmação de um modo nunca antes visto no mainstream. O álbum Lemonade levou esse fato a níveis ainda mais profundos. Por tudo isso, eu diria que Beyoncé deve ser celebrada dentro e fora das esferas do feminismo negro, principalmente por abrir o discurso que ela explora no seu lugar de mulher famosa como agente das destrezas político-financeiras. CONTINENTE Diante de tudo isso, não poderia haver a leitura de que Beyoncé estaria transformando a sua negritude em commodity? KIRSTY FAIRCLOUGH É importante não esquecermos que a mensagem política de Beyoncé está, sim, enquadrada em lógicas capitalistas. Suas performances e aparições são pensadas em ordenamento com as demandas dos fãs. Todos os produtos e merchandising da canção Formation estavam disponíveis no site da cantora, assim que o vídeo foi lançado, através de camisetas, tops e bonés. Os produtos, as canções, os vídeos, as performances devem ser tomados, primeiramente, como propaganda de sua materialidade comercial. Os fãs estão “comprando” Beyoncé: o business e seu recém-criado ativismo se tornam um timing perfeito para dar extensão da marca ilimitada que se tornou a própria Beyoncé. Ainda assim, quando esse comércio vem atado com emotivas declarações políticas, é possível que alguns críticos vejam tais performances de maneira cínica e dissimulada. O que Beyoncé parece manusear com exemplar destreza é representar os fãs de maneira crucial, inspirá-los a serem melhores
e mais cidadãos, não sem antes e de maneira clara lucrar com eles. Enquanto ela abraça a ideia de que “seu papel na vida é se vingar”, de alguma forma está encorajando seus fãs a romperem a barreira da pobreza, agarrando-se a oportunidades e sendo agraciados financeiramente com o trabalho duro que mantém o seu labor artístico. Ainda que mascare o ativismo através da lógica da monetarização, há algo de familiar e cotidiano que agencia a vida dos sujeitos dentro da dinâmica do capitalismo.
celebridades em moldar os debates culturais. Tais assertivas sempre foram e serão questionadas. Sobre nosso papel neste contexto, muito tem sido feito (ao menos no Reino Unido) de produção de conteúdo crítico sobre os produtos dessa natureza. No entanto, percebo que parte desse conteúdo acadêmico sobre cultura pop é visto com desconfiança pelo público. Assim, é mais importante que nunca se engajar midiaticamente para apresentar nossas pesquisas – mesmo diante das dificuldades e interpretações distorcidas que porventura possam gerar.
“Eu argumento que Beyoncé apresenta um desafio aos modos com os quais as mulheres negras são frequentemente representadas no mainstream. O videoclipe Formation (foto) é essencialmente uma narrativa de reapropriação”
CONTINENTE Sobre ativismo na cultura pop, há uma constante crítica – muito da ordem de intelectuais que replicam máximas frankfurtianas – de que seria impossível “fazer ativismo” no epicentro da indústria do entretenimento, uma vez que toda estratégia, discurso e posicionamento seriam produzidos sob a égide do capital. KIRSTY FAIRCLOUGH Tenho que concordar que é difícil pensar na relação ativismo e indústria do entretenimento. Diante do quadro de abalos sísmicos e mudanças sistêmicas na política que tem afetado o Reino Unido e os Estados Unidos nos últimos anos, parece haver ameaças ao nosso trabalho de inúmeros modos. Com o resultado das eleições norte-americanas ainda reverberando e o impacto desconhecido na arte e na cultura, nós vamos ter que gritar (como os ativistas) ainda mais e mais alto.
CONTINENTE Você acredita que o cenário mundial está politizando os estudos sobre cultura pop? Qual o papel do pesquisador/acadêmico nesse contexto? KIRSTY FAIRCLOUGH Sem dúvida! Como poderia ser diferente? É mais vital que nunca interrogar o que está emergindo do mainstream e dos mercados não mainstream também em todos os contextos. O impacto de Beyoncé na sua recente incursão nas questões políticas tem sido poderoso, ainda que surpreendentemente se questione como as mensagens de seus álbuns e vídeos sejam questionadas de forma adequadamente pausada e dedicada. Mas isso não é culpa de Beyoncé, mas um problema em torno do questionamento sobre o poder das
CONTINENTE Quais os desafios dos estudos de celebridades diante do contexto político mundial de avanço das direitas via Brexit e eleição de Donald Trump? KIRSTY FAIRCLOUGH Celebridades podem nos dizer muito sobre a vigilância sobre o corpo da mulher, sobre a circulação dos discursos feministas na mídia, assim como sobre a dialética existente entre a própria disputa em torno do termo feminismo e como ele aparece junto a algumas celebridades. Através da investigação de mídias sociais e digitais, pode-se pensar em movimentos de adesão e resiliência a performances. E também das relações entre autoria, ativismo e cultura midiática pós-feminista. Como você pode ver, tenho muitos interesses no campo, sobretudo, tomando a pesquisa como um enfrentamento político.
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FLÁVIA JUNQUEIRA/DIVULGAÇÃO
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FOTOS: FLÁVIA JUNQUEIRA/DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
Flávia Junqueira
TEATRALIDADE EXTRAVAGANTE TEXTO Marina Moura
Em um dia de junho da década de 1920, a londrina Clarissa Dalloway preparase para mais uma festa em sua casa, hábito que aprecia e parece indicar a alegria constitutiva de seu ser. Mas há qualquer coisa de deslocada e distante na personagem criada por Virginia Woolf no livro Mrs. Dalloway. A narradora observa que Clarissa está “sempre dando festas para encobrir o silêncio”. Na mesma década, mas desta vez nos Estados Unidos: as suntuosas celebrações, sem motivo aparente, promovidas na mansão do milionário Jay Gatsby, protagonista de O grande Gatsby, do autor Scott Fitzgerald. Alcoolizada, uma cantora que se apresenta no local “se convencera no decorrer da canção que tudo era muito triste – de modo que não estava só cantando, mas também chorando”. A dimensão decadente e melancólica que pode existir numa festa – desde os motivos pelos quais é planejada até o momento em que termina, deixando rastros de alegria – e nos atores que dela participam, entre a euforia e o desamparo, também são evidenciados na série fotográfica A casa em festa (2010), da paulistana Flávia Junqueira. Nela, apesar dos balões coloridos, confetes, das caixas de presentes e personagens infantis – signos coloridos que remetem à felicidade e celebração –, a artista aparece cabisbaixa, solitária, desanimada. Formada em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), foi sobretudo a partir do mestrado em Poéticas Visuais, na Universidade de CONTINENTE MARÇO 2017 | 14
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1-2 GORLOVKA, 1951 Série concebida em residência para fotógrafos, no interior da Ucrânia
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3-4 BALÕES A artista usa elementos ligados a festas para falar de melancolia
DECADÊNCIA 5 A estética da ruína aparece em obras como Sonhar com uma casa na casa
FLÁVIA JUNQUEIRA/DIVULGAÇÃO
CON TI NEN TE
Portfólio
São Paulo (USP), que Flávia passou a investigar de modo sistemático o termo alemão heimlich, anteriormente analisado por Sigmund Freud. O conceito abriga em si significados divergentes – “pode ser atribuído a familiar, íntimo ou fantasmagórico e oculto, ou seja, desenvolve-se na direção da ambivalência”, assinala. Obra e pesquisa da artista se desenvolvem a partir do que ela chama de teatralidade extravagante, “aquela que se apresenta como meio de ficcionalização e distanciamento da realidade”. Os desdobramentos mais evidentes dessa temática são observados a partir da articulação proposital de maniqueísmos em suas performances, instalações e fotografias, como novo e velho, infância e maturidade. A estética da ruína, atrelada a elementos referentes à juventude, por exemplo, está posta em trabalhos como Sonhar com uma casa na casa (2011) e Gorlovka, 1951 (2011). Este último tratase de uma série fotográfica realizada durante residência artística na Ucrânia, em um palácio abandonado da era soviética. No interior do espaço, Flávia dispôs alguns dos objetos recorrentes no seu escopo criativo: ursinhos, balões, fantasias e serpentinas coabitam com uma paisagem outrora imponente e em estado de deterioração. Em Sonhar com uma casa na casa, o processo é semelhante, e fragmentos de uma casa de boneca estão posicionados em salas antigas, desabitadas. Ambas as obras apontam para um terceiro espaço, “nem totalmente fictício, nem totalmente real”. É nesse território ambíguo que a artista desfaz a lógica de ater-se meramente a dualidades e polarizações. E é por isso que, ao observamos tais imagens, não sabemos que parte do cenário já existia e que parte foi construída. “Uma ingenuidade que anda lado a lado com o senso de tragédia, a inocência infantil justaposta ao senso de solidão e isolamento”, reflete Flávia, acerca dessas fotografias.
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Outro recurso utilizado por ela é o manejo de excessos para esvaziar conceitos ou criticá-los. Em oito autorretratos, Flávia posa em cômodos de sua casa junto a todos os artefatos dispostos no ambiente. O resultado está na série Na companhia dos objetos (2009), cuja pujança material não impede a artista de mostrar-se solitária e apática, algo como um retrato que poderia perfeitamente ser de Clarissa Dalloway. A infância e os símbolos que a referendam – tema caro à artista – mostram-se como uma alternativa de sublimar o real, a exemplo do carrossel. Em Estudo para inversão (2013) e O caminho que percorri até te encontrar (2011 e 2014), o maquinário típico
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6 SÍMBOLOS Algumas de suas fotografias, objetos e instalações tratam dos medos infantis
7-9 CARROSSÉIS A artista põe em xeque sua funcionalidade como parte de um ritual de lazer
dos parques de diversão ora gira ao contrário – pondo em xeque sua funcionalidade como parte de rituais de lazer –, ora aparece como indicador geográfico em um mapa de Paris, estabelecendo, desse modo, novas sinalizações cartográficas. Desse modo, o que interessa a Flávia é propor fissuras no espaço – seja ele infantil, melancólico ou festivo – em meio ao cotidiano, na tentativa de tensionar e manipular o real, ou, como afirma ela,“inventar esteticamente novos espaços e tempos”.
FOTOS: LUCAS ALBIM/DIVULGAÇÃO
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
GAGA NO METAL?
Racismo ou capitalismo?
Não é um absurdo dizer que a nova-iorquina Lady Gaga é uma artista multifacetada. Tendo transgredido os limites da música pop, a cantora já se aventurou no jazz, ao lado de Tony Bennett no álbum vencedor do Grammy, Cheek to cheek, além de ganhar um Globo de Ouro pelo seu papel na série norte-americana American Horror Story. Recentemente, lançou Joanne, um álbum intimista inspirado na música country. Agora, após a apresentação da música Moth into flame, com a Metallica, no Grammy, a banda de heavy metal quer fazer da Mother Monster sua “integrante permanente”, segundo o baterista Lars Ulrich. Os fãs não gostaram muito, mas, numa entrevista concebida por Gaga, em 2015, ao CR Fashin Book, ela afirmou: “Eu não sou a próxima Madonna. Sou o próximo Iron Maiden.” (Eduardo Montenegro)
CON TI NEN TE
Os últimos três Grammys de Álbum do Ano foram concedidos a artistas brancos, Beck, Taylor Swift e Adele. Na realidade, nas últimas nove edições, a categoria mais importante da premiação foi parar em mãos brancas. O destaque aqui dos três anos recentes refere-se ao fato de contrariarem a expectativa, que seria premiar respectivamente Kanye West, Kendrick Lamar e Beyoncé, todos artistas negros com discos aclamados que tentaram fugir do lugarcomum. Não deixa de ser intrigante que, em 59 edições do Grammy, apenas em 10 vezes artistas negros venceram a categoria. O primeiro foi Stevie Wonder, com Innervisions, em 1974. Na edição de 2017, o favorito Lemonade, de Beyoncé, que concorria em nove categorias, ganhou apenas Melhor Clipe (Formation) e Melhor Álbum Urbano Contemporâneo. Adele, já vencedora da principal categoria em 2012, com 21, ao receber o prêmio pelo maçante 25, elogiou Beyoncé e seu “álbum monumental”. Seria uma coincidência 25 ter sido o disco mais vendido de 2016 (17 milhões de cópias), assim como 1989, de Taylor Swift, em 2015 (9 milhões de cópias)? Bastante simbólico também foi o fato de a organização do evento ter consultado primeiro a cantora britânica sobre a homenagem a George Michael. Os organizadores pretendiam que o tributo fosse prestado por ela, Beyoncé e Rihanna. Adele, no entanto, recusou a ideia, preferiu cantar sozinha. Em tempos de indústria fonográfica em crise, manda quem vende mais. DÉBORA NASCIMENTO
A FRASE
“Não o incluo na minha bibliografia, apesar de os meus amigos insistirem que não é tão mau como eu teimo em dizer.” José Saramago, sobre seu primeiro romance, Terra do pecado, publicado há 70 anos CONTINENTE MARÇO 2017 | 18
Balaio O 1º STEVE MCQUEEN Se estivesse vivo, Steve McQueen faria neste mês 87 anos. Para quem quiser conhecer um pouco mais o ator norte-americano, uma opção é I am Steve McQueen. O documentário narra a vida do astro de filmes como Papillon, Os implacáveis, Inferno na torre, desde sua infância pobre, com uma família desestruturada, até a ascensão ao panteão dos grandes atores de Hollywood. Tendo iniciado no terror B A bolha assassinada (1958) e despontado no faroeste Sete homens e um destino (1960), rapidamente McQueen consolidou-se no cinema. Aclamado, mas cheio de idiossincrasias, recusou papéis em produções que se tornaram clássicos como Bonnie & Clyde, Butch Cassidy & The Sundance Kid, O estranho no ninho e Apocalypse now. Apaixonado por corridas de carro, inclusive pilotando profissionalmente, o artista foi homenageado no protagonista do sucesso da Pixar, Carros (2006), Relâmpago McQueen. Hoje, seu nome circula muito no meio cinematográfico, embora as notícias não se refiram a ele, mas ao diretor norte-americano Steve McQueen (Steven Rodney McQueen), 47 anos, realizador de Shame (2011) e vencedor do Oscar de Melhor Filme por 12 anos de escravidão, em 2014. Cá entre nós, o cineasta fez uma infeliz escolha ao adotar o mesmo nome artístico do legendário ator, morto de câncer, aos 50 anos, em 1980, no auge da fama. (DN)
LEITURA QUE LIBERTA Crime e castigo, de Dostoiévski, lidera a lista dos livros mais lidos dentro do Sistema Penitenciário Federal, seguido por Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, Através do espelho, de Jostein Gaarder, e obras nacionais, como Dom Casmurro, de Machado de Assis, Sagarana e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Os detentos que se dedicam à leitura são recompensados com quatro dias a menos da pena para cada publicação lida. Mas, para tanto, precisam entregar uma resenha sobre a obra em questão. Segundo o Ministério da Justiça, desde 2010, já foram escritos 6.004 textos, os quais são avaliados por uma equipe pedagógica que faz parte do projeto Remição pela Leitura. Os leitores mais vorazes podem chegar a abater 48 dias de sua pena por ano. É que, pela regra do programa, cada detento só pode participar dele 12 vezes nesse período, o que daria uma média de um livro por mês. Um ótimo número num país que, segundo a 4ª Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, apresentada em maio de 2016, tem uma média de 4,96 livros lidos por ano. (Mariana Oliveira)
NEW BLONDIE Sem apresentar inéditas desde o último Ghost of download (2014), o Blondie lançará este ano Pollinator, 11º álbum de estúdio da banda. Segundo o casal Debbie Harry e Chris Stein, a estreia é prevista para maio, mas o single Fun já circula pela web com clipe dirigido por Dikayl Rimmasch – o mesmo de Lemonade, de Beyoncé. O vídeo é uma espécie de roadmovie no espaço sideral, com naves, psicodelia e imagens da própria banda intercaladas a flashes de pistas de dança que lembram as discotecas dos anos 1970. Entre os convidados do álbum estão o guitarrista Nick Valensi, do The Strokes e Dave Sitek, da TV on the Radio, que fez parceria na composição desta primeira faixa. Pollinator foi gravado no mesmo estúdio que The Next Day (2013) e Blackstar (2016), de David Bowie, foram produzidos. A turnê de divulgação começará na Austrália e segue para a Nova Zelândia e Europa a partir de abril. (Erika Muniz)
ARQUIVO
100 anos de Will Eisner Há um século, em 6 de março de 1917, nascia Will Eisner, aquele que veio, em vários termos, criar, renovar e estruturar didaticamente a linguagem da arte sequencial. Foram vários os feitos de Eisner e, certamente, The Spirit é seu personagem mais popular. Entretanto, há na obra do quadrinista um trio que concentra o que poderíamos chamar de “eu profundo” do artista, que são três novelas gráficas (ou graphic novels) escritas e desenhadas por ele entre 1978 e 1991, que trazem muitas referências autobiográficas. De sua memória de menino judeu vivida no Bronx da década de 1930, Eisner criou os quatro contos que compõem Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço (A contract with God and other tenement stories, 1978), em que ele junta ao realismo das situações narradas suas incríveis técnicas de enquadramento cinematográfico. Neste livro, explora com maestria os dramas dos migrantes que ali viviam, sob A Grande Depressão. A este se seguiram O sonhador (The dreamer, 1986) e Ao coração da tempestade (To the heart of the storm, 1991). No primeiro, ele conta a história de um jovem que sonha em trabalhar com as comics, o que acaba por revelar também o início da história deste mercado editorial nos EUA. No segundo, rememora sua vida de pobreza e antissemitismo enquanto viaja para o front na Segunda Guerra Mundial. Sobre a produção deste livro, Eisner declarou que o ano em que se dedicou a ele tornou-se uma profunda terapia, na qual teve de lidar com a culpa e a memória dos entes queridos. ADRIANA DÓRIA MATOS
MEIN TRUMPF Desde que Donald Trump virou candidato à presidência dos EUA, em 2016, os cartunistas não param de relacioná-lo a Adolf Hitler, seja criando um louro de bigodinho, um posto de “Mein Trumpf” ou botando os dois para se beijar, como no desenho de Liphoeryx, ao lado. Depois de eleito, a quantidade de ilustrações associando suas políticas anti-imigração com as antissemitas de Hitler não está no gibi. Em uma charge recente, líderes nacionalistas erguem o punho e bradam, cada um, frases como “Holanda primeiro!”, “América primeiro!” (Trump), “Áustria primeiro!”, “França primeiro!”, enquanto, ao fundo, sai Hitler de sua catacumba dizendo: “Eu não posso dormir com tanto barulho!”. Quanto mais os “filhos” do autor de Mein kampf e suas ideias nazistas se multiplicarem, mais charges com o tema veremos. Alguns acreditam ser este o momento ideal para os chargistas, mas, em um artigo noThe Moderate Voice, o cartunista Daryl Cagle pediu reza para a chuva de clichês que estava por vir. Seja como for, vai faltar tinta. (Olívia Mindêlo)
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REVOLUÇÃO DE 1817 O ano em que o Brasil nasceu Aos 200 anos do levante que durou pouco mais de dois meses, estudiosos apontam a relevância do curto episódio, abafado pela historiografia oficial, mas fundamental para se entender o impulso democrático que mobilizava as gentes que viviam na província de Pernambuco TEXTO Luciana Veras
Pernambucanos, estais tranquilos, apareceis na capital, o povo está contente, já não há distinção entre brasileiros e europeus, todos se conhecem irmãos, descendentes da mesma origem, habitantes do mesmo país, professores da mesma religião. Um Governo Provisório iluminado, escolhido entre todas as ordens do estado, preside a vossa felicidade; confiai no seu zelo e no seu patriotismo. A providência que dirigiu a obra, a levará ao termo. Vós vereis consolidar-se a vossa fortuna, vós sereis livres do peso de enormes tributos que gravam sobre vós; o vosso e nosso país, subirá ao ponto de grandeza que há muito o espera e vós colhereis o fruto dos trabalhos e do zelo dos vossos cidadãos. Ajudai-os com os vossos conselhos, eles serão ouvidos; com os vossos braços, a pátria espera por eles; a vossa aplicação à agricultura, uma nação rica e uma nação poderosa. A pátria é a nossa mãe comum, vós sois seus olhos, sois descendentes dos valerosos lusos, sois portugueses, sois americanos, sois brasileiros, sois pernambucanos. Proclamação do Governo Provisório de Pernambuco, escrita pelo padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro.
Ufanistas e acolhedoras, as palavras transcritas ao lado foram escritas há dois séculos, impressas e divulgadas à população de Pernambuco como parte de uma carta de proclamação, a estabelecer os preceitos pelos quais se estruturava um governo inédito nos tempos de um Brasil colônia. Lidas em voz alta pelas ruas do Recife, ratificavam a insurgência de uma província que se revelava imersa no espírito do tempo, atravessada pelos ideais de independência e liberdade, igualdade e fraternidade que emanavam tanto dos Estados Unidos como da França. O movimento conhecido como Revolução de 1817 deflagrou novo rumo para a história do país “descoberto” por Portugal desde 1500. À luz do bicentenário, o episódio histórico de extrema importância para a nação ganha outros contornos. “A revolução de Pernambuco em 1817, se bem que muito pouco durasse, fará sempre época nos anais do Brasil; tempo virá, talvez, em que o dia 6 de março será para todos os brasileiros um dia de festa nacional”, escreve Francisco Muniz Tavares (1793–1875), CONTINENTE MARÇO 2017 | 21
no prefácio do seu História da Revolução em Pernambuco de 1817, publicado pela primeira vez em 1840 graças aos esforços intelectual e financeiro do próprio autor – que havia sido preso por participar do movimento. O livro é uma imprescindível fonte de informações para o estudo dos fatos que desembocaram na formação do Governo Provisório e ressurge, no bojo das celebrações dos 200 anos, em oportuna nova edição, idealizada e impressa pela Companhia Editora de Pernambuco – Cepe. Este volume traz o texto original de Muniz Tavares e as notas do historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima (1867–1928) acopladas à terceira edição, lançada em 1917 como esforço do então Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (hoje Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano) para marcar o centenário da Revolução de 1817 e, de certa forma, demarcar uma contraposição ao que a historiografia do século XIX havia determinado. Na narrativa “oficial” do Brasil, tudo que se relacionava a 1817 era minimizado.
CON CAPA TI NEN TE Autor de História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal, Francisco Adolfo Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816–1878) e historiador oficial do Império, recebera de Pedro II a missão de narrar a trajetória brasileira para o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil; ao fazê-lo, nos volumes publicados entre 1854 e 1857, não incluiu o movimento nordestino entre os predecessores da Independência de 1822. É compreensível, portanto, que até hoje se ensine e se difunda mais sobre Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e a Inconfidência Mineira de 1789 do que sobre Domingos José Martins, padre João Ribeiro, Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, ou Domingos Teotônio Jorge – todos esses componentes do Governo Provisório instaurado em março de 1817. E é justamente por causa disso que se torna mais necessário revisitá-los. “Duzentos anos depois, a grande lição é tomar consciência da contribuição que Pernambuco deu ao Brasil. O que era o Brasil naquela época? Uma simples colônia, sofrendo o peso e a extorsão de uma Coroa que havia aqui se instalado, após a pior das humilhações – a fuga de Dom João VI. 1817 foi fundamental para o conceito de pátria, nação e liberdade. A semente do Brasil nasceu duas vezes em Pernambuco – uma no século XVI, com a expulsão dos invasores holandeses e a restauração, e outra no século XIX. Devemos aproveitar o ensejo do bicentenário para voltar a ler, a ouvir, a contar, a cantar e a nos encantar com a história de 1817, contra aquele silêncio que uma história nacional impingiu sobre os fatos relacionados à revolução”, sustenta o professor Antônio Jorge Siqueira, do departamento de Sociologia e da pósgraduação em História da UFPE. Ao lado dos professores Antônio Paulo Rezende e Flávio Weinstein Teixeira, ele é um dos organizadores de 1817 e outros ensaios, compilação de 10 textos a ser lançada ainda neste semestre pela Cepe. O interessante do livro é a oferta de análises sobre diversos aspectos do movimento, como a participação de negros e índios nas hostes revolucionárias e do papel crucial desempenhado por padres católicos.
Não é megalomania pernambucana afirmar, como o faz o embaixador cearense Gonçalo de Barros Carvalho Mello Mourão, no ensaio Seis de março, data nacional, que “a Revolução de 1817 suscitou entre nós o poder do apelo à liberdade como despertar da consciência nacional. Representou, em suma, o surgimento da ideia de um Brasil brasileiro, através daquilo que o sublimado padre Dias Martins chamou de busca do ideal de ‘Pátria e o amor da Liberdade’. A Revolução durou parcos 76 dias, 11 semanas, dois meses e meio. Foi pouco, mas foi o suficiente para fazer nascer o Brasil”.
DIREITOS CIVIS E LIBERDADE
Corriam os primeiros dias de março de 1817 e o capitão-geral da província de Pernambuco (cargo equivalente ao de governador) era Caetano Pinto. O Recife só se tornaria cidade em 1823, porém, já era uma babel. Antônio Jorge
“A grande lição é que 1817 foi fundamental para o conceito de pátria, nação e liberdade” Antônio Jorge Siqueira Siqueira utiliza os dados levantados pelo professor pernambucano Luiz Geraldo Silva, da UFPR, em um dos ensaios da coletânea 1817 e outros ensaios, para contextualizar o panorama da época. “Em 1762, no século XVIII, o Recife tinha uma população de 90 mil habitantes, dos quais 25% eram escravos. Dada a importância do cultivo da cana-deaçúcar, percebem-se os escravos como segmento importante para alimentar a indústria canavieira. Em 1810, dois anos após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, e sete anos antes da revolução, a população de Pernambuco era de 392 mil habitantes, dos quais 28% eram brancos, 26,2% eram escravos, 3,2% índios e 42% eram afrodescendentes, livres ou libertos. Ou seja, o panorama era favorável à busca pelos direitos civis e pela liberdade”, indica Siqueira. Autor de Os padres e a teologia da ilustração – Pernambuco 1817 (Editora Universitária UFPE, 2009), em que
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investiga a atuação dos religiosos no levante, o professor recorda que a abertura dos portos, um dos primeiros atos de Dom João ao chegar ao Brasil, não só acarretou uma nova dinâmica comercial, como também desaguou em uma maior circulação de ideias. “Produtos, comércio e ideias formam a tríade que se complementa nesse momento de desarrumação”, aponta Antônio Jorge Siqueira. No ensaio Entre banquetes e batuques: a visão dos viajantes sobre o Recife em tempos de revolução, a historiadora Sylvia Costa Couceiro trabalha com os relatos de quatro forasteiros – o francês Louis de Tollenare e os ingleses Henry Koster, James Henderson e Maria Graham – para compor o quadro de uma vila em ebulição. “Como funcionava o Recife? Lanço uma série de perguntas a partir das reflexões que esses viajantes faziam. Além do que aconteceu durante a revolução, eles falam, com ênfase, da ideia de mestiçagem. O Recife de 1817 era, como o Recife de 2017 ainda é, uma cidade híbrida, mestiça e de profundas diferenças. A vila do Recife compreendia o Bairro do Recife, Santo Antônio, São José e algumas casas na Boa Vista. Locais como Apipucos, Monteiro, Várzea e Poço da Panela eram os destinos para onde as elites iam em momentos de lazer, tomar banhos de rio. Quando a revolução eclodiu, parte da população fugiu para essas casas de veraneio, deixando a área central deserta”, situa à Continente a pesquisadora titular da Fundação Joaquim Nabuco. Os gatilhos da Revolução de 1817 não podem ser percebidos como isolados. Havia o fluxo de produtos e ideias, decorrente da abertura dos portos, havia a herança da França, dos Estados Unidos e das lutas pela independência da América espanhola e havia as noções libertárias discutidas nas casas de maçonaria. Domingos José Martins, capixaba que chegara ao Recife em 1815, vindo de Londres, era adepto e entusiasta de tais ideais disseminados entre os maçons. “Entre os amantes de República, figuravam alguns maçons ou pedreiros livres. Esta sociedade secreta, respeitada por ser misteriosa, e condenada cegamente como tal, diz-se que em tempo assaz remoto fora instituída com o louvável
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Artista pintou Tropas pernambucanas cercam o Forte do Brum a partir dos relatos do ocorrido
Ao lado 2 RENATO VALLE
Desenho Suicídio do Padre João Ribeiro no Engenho Paulista narra visualmente a morte dramática
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fim de confraternizar os homens, e incitá-los à prática das virtudes morais, concedendo aos seus membros plena garantia de pensar, oferecendo mútua comunicação de ideias e socorros”, aponta Muniz Tavares, em História da Revolução em Pernambuco de 1817. “Os maçons – como se a lei de sangue que os prescrevia tivesse sido ab-rogada – congregavam-se quase em público, banqueteavam-se frequentemente de fé. Em seus banquetes ouviam-se brindes acompanhados de expressões que revelavam generosos desígnios.”
“VIVA A PÁTRIA”
Consta que, ao ser alertado sobre possíveis conspirações, o capitão-geral Caetano Pinto dissera: “Os maçons divertem-se: nada farão”. Contudo, resolve agir ao receber uma denúncia do “negociante abastado Manoel de Carvalho Medeiros”. Em O Recife da revolução republicana de 1817: cenários, cenas e atores, concebido especialmente para 1817 e outros ensaios, o arquiteto José Luiz da Mota Menezes esmiúça o desenrolar dos acontecimentos. No dia 5 de março, Pinto “manda prender 70 implicados”.
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“No dia 6 de março, às 11 horas, o governador iniciou as prisões. Foram denunciados os seguintes militares: três capitães de artilharia Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, José de Barros Lima e Pedro da Silva Pedroso, tenente, secretário do mesmo Corpo, José Mariano de Albuquerque e o ajudante de infantaria Manoel de Sousa Teixeira. Preso o negociante Domingos José Martins e recolhido, por ser civil, à cadeia (provavelmente a da atual Rua do Imperador, antes da Rua da Cadeia Nova)”, relata Mota Menezes.
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Quando o general de brigada Manoel Joaquim Barbosa de Castro se dirigiu ao quartel da artilharia (localizado no Bairro de Santo Antônio, entre o que hoje são as avenidas Guararapes e Dantas Barreto) para efetuar as prisões dos militares, deu-se o estopim. Domingos Teotônio foi preso, mas José de Barros Lima, o Leão Coroado, desembainhou a espada e matou o oficial português. Ninguém protestou, como descreveu Muniz Tavares: “Entre tantos oficiais presentes, não houve um só que se opusesse à perpetração do delito; os que eram brasileiros, maquinalmente desembainharam as espadas, e como se fossem feridos por um golpe apoplético, permaneceram inertes espectadores. Dois portugueses, um que era sobrinho do morto, o capitão José Luiz, temendo igual sorte, saltou pela janela e escondeu-se; outro por nome Luiz Deodato, fugiu deixando a barretina e a espada”. Os gritos de “Viva a Pátria” e “Mata marinheiro”, como os portugueses eram chamados, ecoaram nas ruas. Houve conflitos, mortes, “arruaça” e “confusão”, como transparece nos relatos do francês Tollenare (suas Notas dominicais foram publicadas pela Secretaria de Educação e Cultura do governo de Pernambuco em 1978) e nas memórias de Muniz Tavares, que serviram de base para inúmeras revisões. Uma delas, 1817, foi escrita pelo professor Denis Antônio Bernardes para o livro Revolta, motins, revoluções. Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX, lançado em 2011 pela Alamada, e incluída em 1817 e outros ensaios, como uma homenagem ao historiador, falecido em 2013. Sua recapitulação dos fatos: “A resistência da tropa portuguesa e de alguns marinheiros de nada adiantou. No dia 7 de março, o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro aceitou assinar sua capitulação e deixar a capitania acompanhado da família e dos oficiais e familiares que o quisessem seguir rumo ao Rio de Janeiro. No mesmo dia foi eleito um governo provisório, com representantes dos diversos corpos sociais, refletindo a divisão estamental da sociedade:
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Ao ser deflagrado o motim, ouviramse gritos de “Viva a Pátria”, houve mortes, “arruaça” e “confusão”
pelo clero, o padre João Ribeiro Pessoa de Mello Montenegro, pelos militares, o capitão Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, pela magistratura, o advogado José Luís de Mendonça, pelo comércio, Domingos José Martins e, pela agricultura, o senhor de engenho e coronel de milícias Manoel Correia de Araújo. Cessava, com este ato de eleição de um governo provisório saído de uma rebelião militar, a soberania do príncipe regente D. João sobre Pernambuco. Não tardou que, inclusive pelo envio de emissários, a notícia da instalação de um governo republicano e patriótico em Pernambuco logo se espalhasse pelas províncias da Paraíba, Rio Grande
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do Norte, Ceará e pela comarca das Alagoas, ainda território pertencente à província de Pernambuco”.
ECOS PARA O FUTURO
O “tempo da Pátria” foi breve, porém intenso. Incluiu a viagem de um emissário até os Estados Unidos e a conexão com levantes bonapartistas, como detalha a pesquisadora da Fundação Rui Barbosa, Isabel Lustosa, em artigo publicado adiante, na página 26. Deixou, no cotidiano da capital pernambucana, nomes de ruas, como Padre Roma e Gervásio Pires. Foi, para centenas de escravos, o primeiro vislumbre de liberdade – os negros foram alforriados pelos senhores para lutar pela revolução. Com a debelação da insurgência, voltaram à senzala, mas o ideal de liberdade se consolidava no horizonte. “A abolição da escravatura só se deu em 1889, mas um negro que ficou livre para lutar, ao voltar a ser escravo, não era o mesmo. Apesar da repressão violenta ao movimento e das punições exemplares aos envolvidos, o término da Revolução de 1817 não
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3 HERÓI Domingos José Martins é um dos mártires da Revolução 4-5 DOCUMENTO Francisco Muniz Tavares escreveu obra monumental sobre o acontecimento 6 INSURREIÇÃO Pintura de Antônio Parreiras, Benção das Bandeiras da Revolução de 1817, retrata instauração da República de Pernambuco
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fez com que a sociedade voltasse a ser o que era antes. As experiências deixaram marcas para novas atuações libertárias”, pontua a pesquisadora Sylvia Costa Couceiro, da Fundação Joaquim Nabuco. O próprio Joaquim do Amor Divino Rabelo, o frei Caneca, foi um dos grandes envolvidos em 1817. Preso ao lado de Muniz Tavares na Bahia, virou líder da Confederação do Equador em 1824. “Na prática e na História, com a restauração brasileira dos Guararapes, no século XVII, com
a Guerra dos Mascates, a Revolução de 1817 e o movimento de 1824, Pernambuco tem um papel deveras importante para contribuir com a semente de pátria, nação, liberdade, direitos e constituição. Esses ideais não morreriam com o sacrifício dos cabeças revolucionários. Aqueles que foram para as masmorras na Bahia voltaram e continuaram com um ideal de luta. Tudo isso foi corroborado nas revoltas subsequentes, como a Praieira”, reforça o professor e historiador Antônio Jorge Siqueira, da UFPE.
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“Viva a Pátria, vivam os patriotas e acabe para sempre a tirania real”, bradavam os revolucionários, nas ruas e nos documentos que servem de esteio para reviver e repensar a Revolução de 1817. Dois séculos depois, a tirania ainda persiste e há de se olhar para o passado para reposicionar, na história da nação, o pioneiro movimento que uniu brancos, negros, pardos, índios, militares, comerciantes, padres e maçons e seu incontornável legado de luta.
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Artigo
ISABEL LUSTOSA O FRUSTRADO RESGATE DE NAPOLEÃO BONAPARTE EM 1817 Depois da sensacional volta de
Napoleão Bonaparte da Ilha de Elba e de seu reinado de 100 dias e com a certeza de que havia ainda um contingente respeitável de admiradores seus que se mobilizaria ao primeiro chamado do imperador deposto, as monarquias europeias mais do que escaldadas, resolveram tomar providências drásticas. Napoleão esperava ou fingiu que esperava ficar na Inglaterra como hóspede da Coroa inglesa. Sua decepção foi grande, quando lhe informaram que ele ficaria prisioneiro para sempre em uma pequena ilha, quase inexpugnável, no meio do Atlântico. E, de fato, viveria na Ilha de Santa Helena até morrer em 1821, doente e deprimido, desejando antes ter sido executado do que definhar naquele lugar nenhum. No entanto, durante os seis anos em que viveu ali, mesmo sob a maior vigilância, Napoleão e seus admiradores encontraram meios de se corresponder e até mesmo de tramar um possível resgate. Um desses projetos envolveu brasileiros e um momento importante da História do Brasil: a Revolução Pernambucana de 1817.
A CONSPIRAÇÃO
Os Estados Unidos da América, única democracia de fato que então havia no mundo, era um grande atrativo para os antigos oficiais do império francês. Humilhados com a exclusão do exército e com a perspectiva de viver a meio-soldo, poucos meses depois de Waterloo, cerca de mil oficiais franceses de várias patentes tinham partido para os EUA. Além de buscar novas oportunidades, boa parte dessa gente continuava a sonhar com a volta do imperador, nem que fosse para reinar em algum pedaço das Américas. O malogrado rei de Espanha, José Bonaparte, irmão
mais velho de Napoleão, também se estabelecera nos Estados Unidos e era um verdadeiro ímã a atrair toda a sorte de conspiradores com planos para o resgate do ex-imperador. Assim, quando tiveram notícia de que uma revolução republicana estourara em Pernambuco, o ponto da costa americana mais próximo de Santa Helena, as esperanças dos bonapartistas foram renovadas. A notícia dessa revolução que pretendia instalar no nordeste brasileiro uma república chegou aos jornais americanos por intermédio de um de seus líderes, Antônio Gonçalves da Cruz, mais conhecido como Cabugá. Ele promovera em sua casa muitas das reuniões que impulsionaram a rebelião que eclodiria em 6 de março de 1817. Poucos dias depois, em 25 de março, ele embarcava para os EUA como embaixador do governo revolucionário junto às
Rebelados de 1817 tramaram com os EUA o resgate do imperador francês deposto na ilha em que acabaria seus dias autoridades daquele país. Tal como para os mineiros de 1789, para os revolucionários de Pernambuco, os EUA representavam o modelo ideal de nação. Ainda mais naquele momento em que as monarquias da Europa tentavam destruir a herança da Revolução Francesa e voltar às práticas do Antigo Regime. Se o ministro dos Negócios Estrangeiros, Richard Rush, que recebeu Cabugá em caráter informal, não prometeu que seu governo daria suporte aos revolucionários, também não impediu suas idas e vindas. Sob o pretexto das leis liberais e democráticas que regiam a vida no país, o governo norte-americano fez ouvidos moucos aos rogos do embaixador de Portugal, o padre José Correia da Serra, para que Cabugá fosse impedido de comprar armas, fretar navios e contratar homens para levar ao Recife.
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O PLANO
Os bonapartistas franceses viram na revolução pernambucana a situação ideal para finalmente ter uma base de apoio próxima de Santa Helena. O plano fora concebido por José Bonaparte e dele teria conhecimento o próprio Napoleão, que enviara cartas geográficas detalhadas da ilha. Um milhão de dólares estariam reservados para as despesas da expedição que teria como base Fernando de Noronha. Ali se reuniriam duas escunas com aproximadamente 80 oficiais franceses e 700 marinheiros americanos, além de um navio armado pelo almirante Cochrane, tendo a bordo 800 marinheiros e 200 oficiais. Os navios seguiriam com destino à Santa Helena, atacariam a ilha por vários lados e resgatariam Napoleão. Não é preciso dizer que Cochrane, que nada tinha de bonapartista, só estava nessa pelo dinheiro. Como os planos e os recursos comparativamente modestos de Cabugá se casavam com os dos franceses, é um ponto que permanece obscuro. De qualquer maneira, um dos navios fretados por ele, o Paragon, saiu da Filadélfia no dia 15 de junho de 1817, trazendo um grupo formado pelo coronel Paul-Albert-Marie de Latapie, Louis-Adolph Le Doulcet – futuro conde de Pontécoulant – e pelos soldados Artong e Raulet. Ao chegarem a Natal e descobrirem que a revolução pernambucana tinha sido subjugada, traçaram um plano B. Eles sabiam que poderiam contar com o novo cônsul dos Estados Unidos no Recife, o comerciante Joseph Ray, perfeitamente informado da conspiração. O conde de Pontécoulant apresentou-se em Natal como naturalista e, sendo homem refinado, de vasta cultura e de grande charme pessoal, logo estabeleceu amizade com o governador daquela província, obtendo passaporte para poder circular livremente por todo o Brasil. Seus companheiros que preferiram seguir para a Paraíba não tiveram a mesma sorte e, quando ali chegaram, foram logo detidos e enviados para o Recife. As notícias de possíveis conspirações bonapartistas associadas a Cabugá já tinham chegado à região através das desesperadas cartas do padre
NAPOLEON BONAPARTE, DE BENJAMIN ROBERT HAYDON/ACERVO NATIONAL PORTRAIT GALLERY, LONDON
1 NAPOLEÃO Dos muitos retratos do imperador, este evoca o estado de exílio aqui referido
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Correia da Serra que, não encontrando apoio do governo norte-americano, concentrara seus esforços em alertar o governador de Pernambuco sobre os movimentos de Cabugá.
O PAPEL DO CÔNSUL
Apesar das suspeitas, o governador Luis do Rego Barreto não viu irregularidades nos documentos dos franceses e os liberou, mantendo-os, no entanto, sob rigorosa vigilância. Todos se reuniram na casa de Joseph Ray, à espera de Pontécoulant, que já chegava de Natal. Dois dias depois, por iniciativa própria, o coronel Latapie foi ao governador e relatou os verdadeiros motivos de sua viagem: ele e seus companheiros tinham vindo ao Nordeste por ordem de José Bonaparte, para estudar o terreno e averiguar as possibilidades de, dali, procederem ao sempre sonhado resgate de Napoleão. Luis do Rego sugeriu, então, que o próprio
coronel fosse ao Rio de Janeiro contar essa história às autoridades. A atitude de Latapie deixou em maus lençóis os companheiros que continuaram no Recife. A proteção que lhes deu do cônsul americano foi decisiva para que se mantivessem em liberdade. No entanto, em fevereiro de 1818, chegava à costa da Paraíba o segundo navio contratado por Cabugá, o Pengouin, trazendo uma carga de pesados armamentos. A situação se complicou para Joseph Ray, que teve a casa revistada e viu seu secretário, que não tinha imunidades diplomáticas, ser submetido a interrogatórios bastante reveladores. Artong tinha acompanhado Lapatie ao Rio de Janeiro, de onde partiram para a Europa. Raulet foi preso, e só com a ajuda de Joseph Ray conseguiu fugir da Fortaleza de Brun. Foi para o Rio de Janeiro e, percebendo que ali também teria dificuldades, seguiu para Buenos Aires,
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de onde participou com destaque nas campanhas pela independência da América espanhola, morrendo no Peru em 1829. Pontécoulant nada sofreu, mas também teve que deixar o Brasil, fazendo depois, na França, uma longa e bem-sucedida carreira de autor de livros sobre música e sobre a fabricação de instrumentos musicais. Da documentação existente a respeito desse episódio, ressalta o cuidado maior das autoridades portuguesas com os suspeitos estrangeiros, especialmente os de mais elevada patente como Pontécoulant e o general Latapie. O governador Luís do Rego Barreto, em seu relatório final, concluiu que a presença de bonapartistas franceses no Recife fora mais uma questão de oportunidade do que de real comprometimento com os improvisados revolucionários pernambucanos, a seu ver. Isso se comprovava pelo fato de que os contatos internacionais para buscar apoio só foram iniciados depois do 6 de março. As dúvidas de Luís do Rego se concentravam, na verdade, sobre o verdadeiro papel que o cônsul dos Estados Unidos tivera no desenrolar dos acontecimentos. Na verdade, ele desconfiava das reais intenções dos norte-americanos com relação ao Recife. Mas era grande o receio das autoridades brasileiras de contrariar, de qualquer forma que fosse, o governo dos Estados Unidos, e nada foi feito contra Joseph Ray, que continuou no posto até 1820. Posto que voltaria sintomaticamente a ocupar entre 1836 e 1842, últimos anos da Regência e primeiros depois da Maioridade. Período igualmente agitado. Na verdade, se, oficialmente, não interessava ao governo dos EUA se meter com os assuntos do governo português, com o qual tinha bons contratos comerciais, também não lhe cairia mal ter na América do Sul uma república amiga que lhe acenara com a abertura total de seu mercado. Manter na praça do Recife um agente que pudesse informar a seu governo sobre as reais oportunidades que se apresentassem era uma situação muito conveniente para os interesses dos EUA.
1817 Uma Revolução quadro a quadro
Leia a seguir, em primeira mão, as páginas iniciais do álbum de quadrinhos 1817 - Amor e revolução, ilustrado por Pedro Zenival, que levou um ano para ser concluído, sendo o primeiro do gênero a ser lançado pela Cepe Editora CON TI NEN TE
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Por trás da Revolução de 1817, dos arroubos libertários e da luta pela democracia que Pernambuco capitaneou, paira um romance que, como muitos detalhes desse singular episódio republicano, permanece à margem da história oficial. “É o nosso Romeu e Julieta. Domingos José Martins passou quatro anos namorando escondido com Maria Teodora da Costa e decidiu fazer uma revolução para casar com ela”, explica o jornalista e escritor pernambucano Paulo Santos de Oliveira, autor do roteiro da história em quadrinhos 1817 - Amor e revolução, um dos lançamentos da Companhia Editora de Pernambuco – Cepe para celebrar o bicentenário do movimento. A novela gráfica é uma adaptação de A noiva da revolução, escrito por Paulo e publicado em 2007. Com ilustrações de Pedro Zenival Ramos Ferraz, traz uma síntese dos acontecimentos que, a partir de 6 de março de 1817, provocam a erupção da insurgência. Porém, o foco reside na história de amor entre Domingos, 36 anos, um dos líderes da rebelião contra a Coroa Portuguesa, e Teodora, 17, filha de Bento da Costa, um abastado português. Depois de negar a mão da filha por diversas vezes, Bento resolve aceitar o pedido de casamento no dia 8 de março, quando Domingos
já era um dos integrantes do governo provisório de Pernambuco. “Foi o casamento politicamente mais importante da história do Brasil”, observa Paulo Santos de Oliveira. “Apesar de ele ser galã e rico, o pai da moça não permitia antes porque ele era brasileiro. Essa derrubada de preconceito foi importante. Diferente de outros estados, como Bahia e Rio de Janeiro, em Pernambuco, os brasileiros e os portugueses viviam brigando. A união de um pernambucano com a filha de um português rico ajudou a promover uma pacificação. Quando o casamento ocorreu, o povo foi às ruas para comemorar”, completa o escritor. Para Pedro Zenival, o trabalho de um ano na transposição da linguagem literária foi meticuloso e de extrema dedicação. “Fiz uma pesquisa visual nos livros ilustrados relacionados à época, em especial nos registros da era napoleônica, que condizia com a moda e as vestimentas do Recife daquele momento”, comenta o ilustrador, um dos mais prolíficos colaboradores da Cepe, onde trabalha desde 1987. O resultado é de um apuro imenso e faz de 1817 - Amor e revolução uma leitura obrigatória nesse contexto de resgate de um acontecimento sem comparação na história do Brasil. LUCIANA VERAS
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QUADRINHOS
PAULO SANTOS E PEDRO ZENIVAL 1817 - Amor e Revolução Cepe Editora
Baseada no livro A noiva da Revolução, a novela gráfica (104 p.) conta os bastidores do movimento, a partir do romance entre o brasileiro e líder revolucionário Domingos Martins e Maria Teodora da Costa, filha de português abastado, que se casam em plena luta libertária, um acontecimento semelhante ao amor de Romeu e Julieta.
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JANIO SANTOS
Conexão
DADOS Um debate (des)necessário Hipótese de acesso fracionado à rede volta à discussão, desde que ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações fez declaração frágil sobre o assunto TEXTO Guilherme Gatis
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“Chegou a hora da internet dizer
aos novos governantes quem é que manda nessa porra! Não se atrevam. Com amor, O povo.” A mensagem do Anonymous Brasil, publicada na fanpage do grupo de ativistas digitais no Facebook, foi uma resposta imediata a uma declaração do ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, sobre a limitação da banda larga fixa. A fala está registrada em vídeo, publicado no YouTube dia 12 de janeiro, pelo site Poder 360. Kassab demonstra desconforto, engole seco, quando percebe o teor da pergunta e emenda uma fala confusa e demagoga em que garante que o objetivo do governo é “beneficiar
o usuário”, sem explicar como vai conciliar as necessidades de conexão com a demanda apresentada pelas empresas de telecomunicação. No atropelo do próprio raciocínio, o ministro garante que a banda larga fixa será limitada apenas no segundo semestre, com tempo para um período de adaptação. Para ele, o usuário será beneficiado com a melhora dos serviços, mas que, para isso, é necessário encontrar um “ponto de equilíbrio” para que o serviço seja o “mais elástico possível”. O levante do Anonymous e o constrangimento escorregadio do ministro têm um motivo: apesar da Anatel, Agência Nacional das Telecomunicações, vir a público no mesmo dia para minimizar a fala do ministro – e do Ministério desdizer, em nota, a declaração de Kassab, garantindo que não está nos planos do governo limitar a banda larga fixa –, o momento é de desconfiança e também de alerta: o debate sobre a cobrança no volume de dados consumidos pelos usuários é mundial e, no Brasil, entrou na pauta de forma contundente nos primeiros meses de 2016, quando a operadora Telefônica Vivo Telefônica comprou a GVT, uma das líderes de banda larga fixa, e manifestou a intenção de aplicar nos clientes planos com pacotes de dados limitados. Em declarações oficiais, as operadoras tendem a ser evasivas em suas respostas. A Vivo tem uma seção em seu site com perguntas e respostas sobre o tema. Ao se autoquestionar “Por que a Vivo resolveu fazer essa mudança?”, a empresa responde que “a mudança contribui para o dimensionamento mais adequado da rede e, com isso, oferecer uma melhor experiência de uso da internet fixa”. A NET já comercializa franquias mensais de consumo de dados, mas, em comunicado, afirma que “apenas clientes com uma utilização muito diferente da média ultrapassam as franquias estabelecidas”. A Oi não pratica redução de velocidade ou interrupção de acesso. A tensão perdura ao menos até 30 de abril, data em que se encerra o Diálogo Anatel, questionário de consulta pública aberto pela agência para “colher subsídios técnicos destinados a fundamentar a decisão da agência sobre as franquias de dados
na banda larga fixa”. No momento em que esse texto é escrito, cerca de 17 mil pessoas se dispuseram a participar da consulta (segundo o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – Idec – nenhuma outra consulta pública proposta pela agência ultrapassou a marca de 100 participantes). Enquanto a Anatel não anunciar uma “decisão final”, julgada pelo seu conselho diretor, “as prestadoras que oferecem o acesso à internet por meio de banda larga fixa continuam proibidas de reduzir a velocidade, suspender o serviço ou cobrar pelo tráfego excedente nos casos em que os consumidores utilizarem toda a franquia contratada (quando houver), ainda que tais ações estejam previstas em contrato de adesão ou plano de serviço, nos termos de decisão tomada pelo conselho diretor da Anatel”. Ou seja: até o momento, a decisão sobre os modelos de cobrança depende
Operadora telefônica acirrou debate quando manifestou intenção de aplicar pacotes de dados limitados aos seus clientes de como a Anatel vai encontrar o ponto de equilíbrio entre o “atrevimento” das teles e o levante popular contrário à limitação de dados da banda larga fixa, manifestado de forma inconteste no resultado da enquete aberta no site do Senado Federal entre 16 de maio e 15 de junho de 2016. Na ocasião, 99% dos participantes posicionaram-se contra a oferta de serviço de internet fixa com limites pré-definidos.
MAL-ACOSTUMADOS
Na série de declarações atrapalhadas que envolvem esse debate, o expresidente da Anatel, João Rezende, acometeu-se de sincericídio ao afirmar que “o ilimitado acabou de alguma maneira desacostumando os usuários. Foi uma má educação ao consumo que as empresas fizeram ao longo do tempo”. A declaração de Rezende foi feita em maio e ele desligou-se da agência em agosto de 2016. De fato,
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o brasileiro, por padrão, habituouse a utilizar a internet em casa ou no trabalho sem se preocupar com a quantidade de dados consumida, afinal de contas, as ofertas publicitárias e a contratação de serviços de internet se dá por velocidade de tráfego e não por volume de dados. “O modelo de negócios das teles é infraestrutura. O que eles vendem é velocidade de conexão e não volume. Essa ideia de limitar o consumo de dados é tratar a conectividade tal qual esgoto sanitário, água ou energia elétrica, mas há uma diferença significativa nessa analogia. Ao contrário desses serviços, a conectividade não é escassa”, comenta Silvio Meira, professor emérito do Centro de Informática da UFPE. Meira explica que, uma vez que a estrutura de tráfego de dados é implementada, o volume de dados que circula pelos cabos e conexões não é comprometido pelo maior ou menor consumo dos usuários. “Como todo investimento em infraestrutura, o retorno financeiro é recorrente e de longo prazo. Não se constrói uma estrada, por exemplo, esperando retorno nos primeiros anos.” Partindo desse princípio, as propostas de pacotes de dados limitados apresentam-se mais como uma forma acelerada de obtenção de lucro do que como medida que beneficie os usuários desacostumados. A disponibilidade de internet intermitente e ilimitada não gerou apenas costumes de consumo. Modelos de negócios e dinâmicas de trabalho foram desenvolvidas e/ou serão aprimoradas tendo como base o tráfego contínuo de dados. “Limitar a internet é limitar o futuro. Qualquer inovação que se vislumbre na sociedade digital é desabilitada, se você limitar a banda larga. O mundo inteiro está discutindo essa questão e o movimento das teles de impor limites se dá por vários motivos, mas um dos principais é que as operadoras entenderam que dados são um bem muito mais valioso do que a voz, que, aliás, já trafega via dados”, comenta o futurista Jacques Barcia. “Já temos uma geração de pessoas para as quais a internet é uma realidade. Em pouco tempo, não vamos mais raciocinar na lógica de ‘acessar a internet’. Nós seremos a internet, essa
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Conexão é uma realidade para muito breve, com a implantação de tecnologias como o 5G e serviços como o carro autônomo. Praticamos exercícios de ideação de um futuro hiperconectado, mas, nesse momento, debatemos se uma estrutura já consolidada pode voltar e aplicar padrões que deveriam ter sido pensados no início, no final dos anos 1990 para 2000. Não faz sentido retrocedermos”, explica Barcia.
IMPACTOS
A cadeia produtiva do audiovisual é um bom exemplo de como limitar o tráfico de dados pode interferir nas dinâmicas de produção. “Quem trabalha na área tem o hábito de assistir a mais vídeos online do que o usuário comum. Acompanhamos os produtos de outros realizadores, procuramos referências, tudo isso trafegando pela internet”, explica o realizador Henrique Spencer, da produtora Plano 9. A logística de trabalho também envolve uma intensa troca de arquivos pesados. “A maioria dos prestadores de serviço são autônomos, e, como em boa parte das produtoras, as estruturas de trabalho são descentralizadas. A correção de cor, a montagem, a mixagem de áudio, geralmente são feitas em separado e é comum que sejam usadas ferramentas de transferência desses dados”, explica Spencer. Além disso, por também tratar-se de um trabalho técnico e que exige atualizações, a procura por conteúdos didáticos é constante. “Acompanho muitos tutoriais para aprender novas técnicas ou dominar funções de equipamentos e softwares novos.” Quando o horizonte de diminuição ou até corte de tráfego de dados é trazido para a questão educacional, a situação é ainda mais grave. “Cada vez mais temos faculdades, escolas e cursos, treinamentos e outras ações de formação que utilizam mecanismos de conferência via web para a transmissão de conteúdos. Imagine um cenário em que a pessoa precisará definir e calcular da melhor forma seu tempo: a quantidade de aulas vistas num mês vai depender não da disponibilidade do
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Hoje, logísticas de trabalho em vários setores já envolvem intensa troca de arquivos pesados pela internet
aluno, mas do quantitativo de banda à sua disposição, e do quanto ele pretende gastar com sua formação e com lazer”, alerta Silvio Meira. A utilização de ferramentas que disponibilizam conteúdos on demand (sob demanda, arquivos disponíveis para consumo imediato, desvinculados de grades de programação), via streaming, como o Netflix, para séries e filmes, e Spotify, Deezer ou Google Play, para músicas, é irreversível e tende a crescer ainda mais – com o aumento da qualidade de entrega desses produtos e, consequentemente, maior quantidade de dados trafegados. “Quando pesquisamos um assunto, os primeiros resultados que o Google oferece são vídeos. Redes sociais como o Facebook e o Instagram investem e estimulam os usuários a assistirem e compartilharem vídeos. A tendência é termos uma internet cada vez mais audiovisual”, lembra Henrique Spencer.
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1 ANONYMOUS Ativistas reagiram imediatamente às declarações do ministro Kassab
“Consumir e também produzir conteúdos online é um costume que já faz parte do dia a dia do brasileiro. O YouTube e o Whatsapp são ferramentas amplamente disseminadas em todas as classes sociais”, pondera o jornalista Alexandre Matias, do site Trabalho Sujo. Nas entrelinhas da promessa das operadoras de ampliação de oferta, com diferentes limites e a opção de contratos ilimitados, temos o risco de ver uma divisão de classe refletida também na internet, entre os que podem pagar para ter acesso irrestrito e os que não terão condições de pagar pela franquia plena. “O desgaste gerado pela limitação da banda larga, caso seja efetivado, certamente vai gerar uma grande insatisfação em todos os setores da população”, reforça Matias. Não à toa, a mensagem disparada pelos Anonymous contra Kassab sujeitifica a internet como “nós”. Num cenário de exceção, incompletudes e incertezas, queremos, ao menos, continuar a exercitar nossa liberdade digital de sermos sem nos preocupar com limites.
ANDANÇAS VIRTUAIS
REBECA Revista publicada pela Socine oferece artigos e entrevistas sobre cinema socine.org.br/rebeca
A importância intelectual da revista Rebeca (Revista de Estudos de Cinema e Audiovisual) se estende além de sua periodicidade semestral (sua última edição, a nona, refere-se ao período
de jan/jun 16). Apresentando artigos e ensaios escritos por doutores e doutorandos na área do audiovisual (para falar de uma maneira geral), a revista online oferece a quem gosta
de cinema um conteúdo crítico de embasamento teórico, além de não dispensar a análise fílmica. Até mesmo quem procura dicas técnicas e respeito da produção de conteúdo cinematográfico poderá encontrar na Rebeca um bom ponto de partida. Nas nove edições disponíveis, divididas em seis seções – tais como Dossiê, Resenhas e Traduções –, o trabalho é de caráter colaborativo: são textos enviados e analisados pela Socine. Há os inéditos, publicados em primeira mão pela revista e os que recebem tratamento para publicação exclusiva. A linguagem é acadêmica, mas acessível a leitores não acadêmicos. A mais recente edição, por exemplo, traz um dossiê sobre o som no audiovisual, um aspecto ainda de recente interesse acadêmico, e tem a colaboração do jornalista e professor da UFPE, Rodrigo Carreiro, que dedica pesquisa a este segmento da produção cinematográfica. EDUARDO MONTENEGRO
ARTE
MÚSICA
LITERATURA
CINEMA
Aplicativo com raciocínio de Tinder facilita compra e venda de obras
Plataforma online destaca a produção de mulheres
Revista disponibiliza gratuitamente livros de ficção para download
Site oferece críticas, artigos e cursos no campo fílmico
wydr.co
womensmusicevent.com.br
revistagueto.com
papodecinema.com.br
Conhecido como o “Tinder da arte”, o WYDR é um novo aplicativo para compra de obras artísticas online que utiliza o mesmo modus operandi do app de paquera. O usuário pode “desaprovar” uma das peças com o simples deslizar dos dedos para a esquerda, ou aprová-la deslizando para a direita. Os trabalhos são postados diretamente pelos artistas vinculados ao app (não há uma triagem, qualquer pessoa pode expor suas peças) e ficam disponíveis para a visualização dos mais de 30 mil usuários que já baixaram o WYDR, cujo nome vem da junção das palavras white wall – uma referência às paredes brancas das galerias – e Tinder.
Em busca de promover diálogos e fomentar o protagonismo das mulheres na indústria musical, a jornalista Cláudia Assef e a produtora cultural Monique Dardenne desenvolveram a plataforma Women’s Music Event (WME). No ar desde dezembro, a página oferece semanalmente playlists e conteúdos exclusivos, como a websérie WME Sessions, na qual apresentações musicais ganham destaque. A primeira, inclusive, está no ar com a cantora Tássia Reis. Destaca-se também o banco de dados em que profissionais do ramo da música podem se cadastrar.
A revista de literatura lusobrasileira Gueto recebe por e-mail contos, crônicas, poemas, ensaios e resenhas para avaliação de interessados em publicar em sua página. Jerome Knoxville e Amanda Sorrentino são os editores responsáveis pela revista, que oferece acesso livre aos textos, além de breve apresentação e o contato de cada autor. O selo independente Gueto Editorial de livros digitais também disponibiliza seus títulos para download sob a licença creative commons. A primeira edição especial da revistalivro Gueto trará contos com a temática Civilização e Barbárie.
Sem dispensar linguagem e dinâmica mais jovens, o Papo de Cinema é um site que se apresenta por si só. Os apaixonados pela sétima arte poderão deleitar-se em críticas bem-construídas, não só de filmes norte-americanos, mas também de outras nacionalidades. Sem dispensar a análise de viés acadêmico, oferece artigos e um diferencial: cursos sobre assuntos específicos, ou recortes do cinema. Destaque para o workshop O fantástico cinema de Steven Spielberg.
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MOÇAMBIQUE Relato de uma mzungu Educadora brasileira conta, em primeira pessoa, a experiência de ser voluntária na cidade de Beira, em Sofala, região central do país, onde as carências de toda ordem levaram-na a ser útil em qualquer circunstância TEXTO E FOTOS Michelle Gueiros
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1 NUTRIÇÃO
Farinha de milho e couve são muitas vezes os únicos alimentos disponíveis
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2 CONSUMO
As mercadorias disponíveis circulam em mercados a céu aberto
meu pai do outro lado dizia: “Compra umas fitas para fazer uns laços e umas mudas de árvores que resolve!”. Desliguei o telefone e chorei de saudade. A decisão de passar um tempo em Moçambique não foi difícil. Já tinha me apaixonado pelo continente africano há quatro anos, quando, depois de concluir a faculdade, resolvi que estava pronta para uma nova aventura e fiz uma viagem para a realização de um trabalho voluntário junto a AIM (African Inland Mission). Voltei para o Brasil com a certeza de que voltaria a essa terra. São Paulo era o meu próximo destino e uma pós-graduação parecia uma boa desculpa para estar em um novo lugar. Concluí a pós em Direção de Arte e descobri que eu amo a arte, e todas as coisas bonitas que eu encontro nela, mas, mais que isso, descobri que amo pessoas, e todos os meus passos me levaram a ser professora, a profissão que me escolheu e que acolheu.
MZUNGU
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Tenho poucas memórias da minha infância, mas não sei como, desde que comecei a me entender por gente, sabia que havia um mundo além do conforto da minha casa. Tenho 25 anos e decretei liberdade há quase 11 anos. Minha vida era confortável e boa e eu tinha tudo o que uma quase adolescente precisava, mas o mundo me esperava de braços abertos e corri para abraçálo. Nele, descobri um abraço que nem sempre foi acolhedor, mas que moldou a pessoa que me tornei ao longo desses anos. Desde 2006, não parei mais. Fiz casas no coração das pessoas e aceitei ser visita. Até consegui parar em alguns lugares, mas nunca tinha conseguido ficar mais de dois anos no mesmo lugar. Não tive problemas em transferir a
faculdade, não me incomodava ir para um lugar desconhecido. Sem apego, eu fazia as malas e partia. Recomeçava e continuava me recusando a pintar paredes das minhas cores favoritas e a comprar um guarda-roupa. Malas se tornaram minhas melhores amigas e companheiras. Minha mãe, sempre desesperada, nunca parou de pedir e insistir para eu voltar para casa. Meu pai, o grande incentivador dos meus voos, nunca me pediu para voltar, mas eu conseguia ouvir um: “Vai, voa, cresce, e, se precisar voltar para casa, nós estamos aqui!” nos nossos abraços de despedida. Nunca esqueço uma ligação que, enquanto a minha mãe falava que estava na hora de eu fazer laços e criar raízes, a voz abafada do
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Lembro que, quando pisei em terras africanas pela primeira vez, uma das primeiras palavras que ouvi foi mzungu. Essa é uma das palavras mais fáceis de se ouvir por aqui. Seja pelas crianças, enquanto correm e acenam para você gritando essa palavra repetidamente, seja pelos mais velhos, que você ouve cochicharem sobre quem acabou de chegar. Mzungu quer dizer homem branco ou mulher branca. Mas, na verdade, ser mzungu parece ter um significado muito além desse. Ser mzungu é ser sempre forasteiro. É quase como o espaço delimitado para aqueles que não pertencem àquele lugar, e que nunca vão pertencer, mesmo depois de muito tempo vivendo ali. Mas o sentimento de pertencimento que venho carregando aqui é tão inexplicável, que todas as vezes em que escuto murmúrios seguidos dessa palavra, eu prefiro imaginar que ela significa “amiga”, e sigo sorrindo. A vida do lado de cá é uma enorme urgência feita de fatos e de pessoas que me transformam diariamente.
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Constantemente, tenho a necessidade de ouvi-las e compreendê-las, não apenas de registrar o que eu vejo. Todos as vivências e histórias que venho juntando na minha bagagem são parte não somente de uma compreensão física e cultural desse lugar, mas de não olhar apenas para mim. Hoje, vivo na cidade da Beira, capital da província de Sofala, na região central do país, onde a tragédia humana clama pela minha atenção diariamente, e todos os sentimentos pesam sobre o meu coração com mais intensidade. É um exercício constante tentar compreender coisas incompreensíveis e deixar a mente vagar junto com as experiências diárias. Deixo o mapa do imaginário me levar para mais longe das terras que julgo conhecidas e para mais perto de mim mesma.
RETRATO
Moro em uma rua coberta de poeira no terceiro andar de um prédio desgastado pelo tempo. Não há energia, muito menos portão, porteiro ou número. É só chegar e seguir até uma escada que leva até a minha porta. Morar sozinha tem suas vantagens, mas aqui na Beira não existe vantagem nenhuma nisso. Preciso estar todos os dias em casa antes do pôr do sol. Isso quer dizer que o meu dia termina em torno das seis e meia.
Então, eu tomo um banho, entro no meu mosquiteiro e espero por mais um dia. Não há uma rotina fixa quando se é voluntário. Você sempre será útil de alguma forma, em qualquer lugar que seja. Entre sala de aula, reforço escolar, brincadeiras com os pequenos vizinhos que ficam de lá para cá na rua, aulas de culinária de pratos típicos com os locais, rodas de conversa com mães e crianças
Moçambique vive crise e tensão política há anos, a moeda local se desvaloriza todo dia. A terra está seca, porque não chove soropositivas, rituais de introdução de recém-nascidos à comunidade, divido as minhas semanas e acordo todos os dias pronta para o que esse lugar tem para mim. Estar envolvida com uma vida completamente diferente da qual eu vivia me dá a possibilidade de me recriar todos os dias. Moçambique está passando por uma crise desgastante há anos e as tensões políticas só aumentam. Não existe acordo ou negociação que ajude o país a sair do buraco tão cedo. A moeda
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está sendo desvalorizada quase que diariamente. Não cai um pingo de água de chuva há meses e as machambas, terrenos de cultivo para a produção familiar, estão secas. Não há colheita e, para muitos, há fome. Todos os dias crianças batem na porta da minha casa pedindo comida ou um pouco de atenção. Algumas ficam para o almoço, outras entram para brincar e outras só ficam olhando sem saber o que dizer. Pessoas estão sendo sequestradas e mortas por se filiarem a algum dos dois partidos políticos existentes. Não há nenhuma possibilidade de manifestação, muito menos liberdade de expressão. Aliás, não há liberdade. A liberdade que tanto achei que tinha escorre pelos dedos das minhas mãos diariamente. Nesses tempos em frente de uma sala de aula moçambicana, descobri que escola é uma das maiores despesas das famílias africanas. O custo excede demais com os gastos de toda a família, e a escola não chega a ser nem uma opção para muitos. Das que se matriculam, muitas não terminam nem o primeiro ciclo ou saem da escola sem habilidades de leitura ou de escrita. Muitas ficam perambulando pelas ruas, buscando algum tipo de passatempo ou pedindo dinheiro nas áreas mais movimentadas da cidade. Adolescentes e jovens ficam encostados em muretas, esperando o
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Viagem
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tempo passar. Reflexo da colonização, ainda hoje é possível ver o mercado litorâneo onde tudo é vendido na beira do Oceano Índico. Peixes, pequenos camarões, vegetais, carnes e até aves vivas. Já a “Calamidade”, como é conhecido, é um mercado a céu aberto em que se vendem roupas, sapatos e acessórios usados, que chegam diariamente no Porto da Beira em fardos provenientes do mundo inteiro como doação. Entre camisas e calças estendidas no chão empoeirado, sapatos e roupas íntimas penduradas em cordas
formando uma grande cortina, e gritos de descontos para todos os lados, a Calamidade é um bom lugar para se explorar e buscar alguns “achados”. Mesmo sendo um país de língua portuguesa, somente 6% falam a língua oficial. Os demais falam os idiomas de suas respectivas tribos. São aproximadamente 30 dialetos no total e a comunicação é um desafio diário, que muitas vezes se transforma em grande frustração. Embora algumas aldeias fiquem a poucas horas da cidade, a falta de
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acesso à informação é quase absoluta. As mulheres sequer sabem como engravidam, pois nunca ninguém lhes falou a respeito. Para elas, seus filhos estão dentro delas e, ao dormir com o marido, eles crescem dentro de seu ventre, como num prelúdio de toda a tragédia que está por vir. A gravidez é silenciosa. Ninguém pergunta, ninguém comenta ou monta qualquer enxoval. Os filhos são criados enrolados em uma única capulana, um pano que tradicionalmente é usado pelas mulheres, para vestir o corpo e também para “colar” o filho à mãe. Com aproximadamente três meses de idade, bebês são atados nas costas de suas mães para a machamba. Lá ficam por horas, enquanto suas mães cultivam a terra seca debaixo de sol escaldante. As necessidades fisiológicas são feitas ali mesmo. As mães, completamente alheias às fezes, urina, suor e lágrimas que escorrem pelo seu corpo e do filho, continuam seu trabalho até quando for necessário. Tomam água contaminada, comem farinha com água e, com cinco meses de vida, os bebês já estão com sérios problemas de subnutrição. Muitos morrem de HIV, sem os pais sequer saberem o motivo da sua morte. Órfãs ou não, crianças lavam suas próprias roupas no rio, sem sabão e as vestem novamente molhadas. Muitos possuem
3-4 PROCRIAÇÃO Maioria das mulheres do país não sabe como engravida 4 PROGRAMA DE APOIO “Clube do bordado” foi criado para oferecer alternativa ao trabalho pesado na roça FLUXOS 5 Transporte de pessoas, produtos e informação são precários no país
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apenas uma muda de roupa e, quando tanto, um par de sapatos. Para conseguirem água, as mulheres e meninas andam quilômetros até o rio mais próximo e por isso costumam equilibrar baldes na cabeça, ou até mesmo bacias de alimentos que foram colhidos na vegetação local. A única alimentação diária é realizada pelas mulheres da aldeia em uma fogueira de pedras e gravetos. O preparo do alimento é feito em panelas rústicas. Farinha de milho e couve cozido são os únicos ingredientes utilizados na alimentação das aldeias. A hierarquia desse costume alimentar inicia-se com os homens mais velhos, que se servem do que desejam, depois as crianças e o que sobra é dividido entre as mulheres que prepararam.
MULHERES
Nas aldeias ou na cidade, mulheres são tratadas como objetos, perdendo toda e qualquer garantia de suas necessidades como seres humanos. Abandonadas às próprias forças, são submetidas à vontade do outro, muitas vezes negociadas por suas famílias por menos do que corresponderia a R$ 200 para pagamento de dívidas ou, no caso das meninas, como dote ou lobolo, como é chamado em Moçambique, ou ainda em troca de gado.
Moçambique foi palco de uma guerra civil que está longe de ser esquecida e cujas dores e marcas ainda estão muito presentes As jovens têm os seus corpos prometidos aos homens ainda meninas. Os pais casam suas filhas ao completarem 11 anos. O matrimônio forçado condena as meninas a gestações sucessivas com alto risco de mortalidade. Se a primeira gestação não acontecer, existe a imediata suspeita de que a mulher seja estéril. A esterilidade é quase uma maldição. Mesmo que a esterilidade esteja no homem, a mulher é culpada. Nesse caso, ela também poderá ser devolvida à sua família. A mulher separada ou estéril dificilmente casará novamente. Muitas são as lutas internas de uma mulher moçambicana. É possível sentir o peso das emoções e da desigualdade que elas carregam. Mas também não se fala nisso. Não há questionamentos contra o sistema patriarcal. Pensando nelas, foi criado um programa de apoio pelas voluntárias, apelidado carinhosamente por mim
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como “clube do bordado”, no qual todas as quartas nos reunimos para aulas de costura e bordado. É agulha para cá, linha para lá, a sala se torna pequena e quem chega se acomoda em esteiras no chão ou onde tiver espaço. Barulho de risada para um lado, barulho de máquina de costurar para o outro, o que é produzido é vendido e o dinheiro fica com elas. Um projeto que nasceu para ajudá-las a terem mais autonomia e a fazerem outra atividade além dos trabalhos pesados do dia a dia. O processo é longo e demorado. Devido ao contato desde pequenas com trabalhos muito pesados, muitas não têm habilidades com trabalhos mais delicados, mas a vontade de aprender ultrapassa o passado doído e se transforma em um futuro esperançoso.
ABRAÇO
A cultura moçambicana não é de abraços. Aliás, abraço é uma das coisas de que mais sinto falta. Cumprimentos são só apertos de mão, mas, quando a dor já faz parte de um lugar e de um povo, o que me resta é abraçá-la forte sem pensar duas vezes. A Moçambique que foi palco de uma guerra civil está bem longe de ser esquecida e as dores dos machucados ainda são bem presentes. Volta e meia é possível ver marcas dos conflitos. Cicatrizes no corpo dos mais velhos e campos ainda com minas terrestres enterradas são o reflexo da delicadeza de pisar em um solo castigado e que costuma ficar envolvido numa neblina de incompreensão e estereótipos. Sei que a minha existência não será validada pela decisão de sair da minha zona de conforto, mas pela segunda vez eu experimento a gratidão de ver uma África florescendo em meio a terra seca, revelando-se dentro de mim na simplicidade de uma vida que me faz acordar todos os dias como se eu estivesse no céu.
Pernambucanas FÉ O povo que sobe o Morro
Todo ano, no dia 8 de dezembro, multidão de católicos segue em procissão do centro do Recife rumo à zona norte para prestar honras a Nossa Senhora da Conceição TEXTO Eduardo Montenegro FOTOS Alcione Ferreira
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Eram quase três horas da tarde,
quando, no dia 8 de dezembro, cortejada e rodeada de flores brancas, a imagem de Nossa Senhora da Conceição saiu da Prefeitura do Recife para ganhar o Bairro de Casa Amarela, na zona norte da cidade. Os calorosos aplausos e assobios dos fiéis – estes, na maioria, vestidos de azul e branco, quando não usando vestimentas semelhantes às roupas da Santa – competiam com o estrondo dos fogos de artifício. Já outros trataram logo de retirar os celulares do bolso para conseguir algum clique do ícone da Imaculada, uma tarefa um tanto difícil de ser realizada, já que a pequena estátua estava rodeada por oficiais da guarda brasileira e guarnecida, na dianteira, por policiais militares, além da própria aglomeração de pessoas que se espremiam para ficar mais próximas da imagem. Aqui e ali, terços eram sacados dos bolsos de alguns mais dispostos a uma caminhada em oração, enquanto outros traçavam o sinal da cruz sobre si para uma avemaria inicial. Pedidos feitos, a música iniciou, e assim a multidão apertou-se para a procissão de encerramento da 112ª Festa do Morro da Conceição. Estimulados por canções animadas, na maioria hinos católicos tocados e cantados de forma que lembravam ritmos como o frevo, a multidão que se via à frente pulava e dançava como quem, de fato, se diverte nas estreitas ruas de Olinda durante o Carnaval. Pequenas bandeiras azuis e brancas também eram hasteadas pelos romeiros, que faziam movimentos para lá e para cá. Uma relação de alegria tão palpável e notável com a Virgem, que a música de abertura da romaria é um trecho do Magnificat, ou Cântico de Maria, um louvor proferido pela mesma Mãe, quando, segundo a Bíblia, visitara sua prima Isabel, ambas grávidas: “Minha alma glorifica ao Senhor, meu espírito exulta em Deus, meu Salvador”, cantavam seus filhos, as vozes subindo de tom, ficando tão altas quanto possível. Uns pulavam, alguns dançavam de maneira tímida, já outros não se resguardavam e inventavam coreografias em grupo. Se Isabel, segundo o Evangelho de Lucas, ficou cheia do Espírito Santo quando recebeu a visita, e até mesmo sua criança “pulou de alegria em seu ventre”, ali, mais de dois mil anos depois, aquelas
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mesmas pessoas pulavam e alegravamse como quem, de fato, acredita estar na presença de Maria de Nazaré. “Desde a barriga da minha mãe que eu sou devota dela”, diz Carla Lidiane, que mora há 14 anos no Morro da Conceição. Católica praticante, ainda que tímida, trabalhou pela primeira vez durante a semana festiva e religiosa no Morro, próximo à praça. Sua barraca era simples, coberta por uma tenda de plástico para se proteger do sol, com uma mesa branca para colocar imagens de santos e terços, seus produtos de venda. “É uma honra trabalhar com a fé que eu professo, eu amo”, regozija-se a vendedora. Uma fé que se transforma em atos todos os dias, ao rezar os cinco mistérios do Santo Terço, um hábito que – segundo ela – faz com prazer e devoção. Com a imagem de Maria à frente, mas também acreditando que ela estava ali em espírito, dentro de seus corações, os pequenos estandartes balançantes assemelhavam-se a um longo tapete para a passagem de uma rainha. Naquela ocasião, em especial, os católicos tornaram reais as palavras proferidas pela nazarena na mesma ocasião bíblica: “Todas as gerações me proclamarão bem-aventurada”. E ofereciam-lhe orações, pedidos, agradecimentos e, também, penitências. “Tudo que eu peço a ela, eu consigo”, afirma Márcia Agripino, de 52 anos. Durante a festividade religiosa, foi ao Morro – antes da procissão – para render orações à Virgem. Sua promessa é de oferecer velas todos os anos para Maria, uma prática também adquirida por sua filha Roberta da Silva, de 15 anos. “Rezo para que ela proteja meus irmãos”, explica a jovem. Até mesmo o calor de 32 graus esquentando o asfalto não impediu algumas pessoas de acompanharem o cortejo descalças. Os pés sujos, por vezes feridos, pela via defeituosa de buracos e pedras, andavam sem se importar com o desconforto. Já outros filhos da Imaculada Conceição apareciam com um tijolo na cabeça, como forma de agradecimento por uma casa adquirida ou como um pedido para uma moradia. A reportagem da Continente observou, ao longe, um homem acompanhando a procissão carregando a própria cruz, a coluna
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cortejo tem início O no Bairro do Recife, seguindo até o Morro da Conceição
Nestas páginas 2-4 FÉ
festa é o A momento dos devotos prestarem suas homenagens e pagarem as promessas dedicadas à santa
CELULARES 5 Fiéis registram o cortejo que segue pela Avenida Norte
envergada para a frente, assumindo – segundo as pinturas sacras em dois mil anos de Cristianismo – a posição em que Cristo levara a sua para o Calvário. Em certo instante, os trios elétricos pararam de andar e a música diminuiu gradativamente: o que se ouvia dos instrumentos era apenas um dedilhado suave dos violões, espalhando para a multidão uma melodia pacata e doce. Guiados pelos sacerdotes, os cristãos começaram a proferir orações: um momento mais íntimo, pessoal e espiritual, em que – seguindo a orientação dos padres – os fiéis começaram a rezar por suas famílias, seus enfermos, amigos e parentes. E assim fizeram. As palavras, os pedidos, as súplicas misturavam-se umas com as outras. Muitos marianos (nomenclatura usada para designar tanto os fiéis da Virgem quanto o culto de veneração) ergueram seus braços para o alto, os olhos fechados, cenhos franzidos em concentração esforçada. Muitos deles mantinham seus braços apontados para diversos pontos cardeais ao longo da via urbana. Em verdade, estavam apontados para
Até mesmo o calor esquentando o asfalto não impede caminhantes de acompanharem o cortejo descalços a direção de suas casas, ou na direção do local em que as orações estavam sendo direcionadas, seja lá qual fosse. “Senhor”, “cura”, “mãe”, “família” eram algumas das palavras pescadas naquele oceano de sons. Naquele átimo, amigos, parentes, colegas e irmãos deram-se os braços, juntando seus corpos, como se dissessem, numa simbologia de fé e união fraterna, que juntos são mais fortes. Camisa azul, olhos suaves e uma barba curta introduzem a figura de José Nunes, de 72 anos, morador de Boa Viagem. Ele conta que é a primeira vez que retorna à Festa do Morro, depois de dois anos de ruptura da tradição. Seus pedidos não se resumem às súplicas pessoais, mas a um clamor
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por um Brasil mais justo. “Vou pedir para ela um governante bom, pedir pra ver se melhora”, revela. Devoto mariano antigo, foi responsável por introduzir seus filhos na fé católica, ainda que tenha vindo sozinho para a 112ª edição da festa. “Viva Nossa Senhora da Conceição do Morro!”, bradava o cortejo, ao final de outra ave-maria. Neste momento, as palavras do padre aos fiéis tomaram novamente protagonismo, o sol incidindo sobre a multidão, obrigando-a a colocar as mãos sobre os olhos, para conseguir observar o falante. “Nossos jovens estão aí embaixo, vestidos de amarelo, para recolher suas assinaturas contra a decisão do Supremo Tribunal Federal de liberar o aborto no terceiro mês”, anunciou o sacerdote. Havia ali homens e mulheres vestindo coletes amarelos, com os dizeres “Sim à vida!”. Onde paravam, pessoas assinavam seus nomes junto com o CPF para impedir a decisão judicial. Foi a campanha daquele ano da Arquidiocese de Olinda e Recife, também usada como tema da Festa do Morro, conforme pedido do próprio arcebispo, Dom Fernando Saburido.
6 SEVERINA SANTANA DE PAIVA Moradora organizou livro que conta história do morro AZUL E BRANCO 7 Os fiéis se vestem das cores da santa para homenageá-la SUVENIRES 8 Os dias de festa ajudam a movimentar o comércio local
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Pernambucanas Nas calçadas da Avenida Norte, por onde seguia a caminhada, havia pessoas esperando o cortejo sentadas. Eram crianças e idosos, alguns segurando imagens da santa nas mãos, vestidos nas mesmas cores que os caminhantes. Outros resguardavam imagens de outras pessoas, possivelmente familiares, gente querida. Os prédios mais altos, mais distantes da avenida, também tinham seus observadores, curiosos que, do alto de suas torres, debruçavam-se nas varandas para assistir à romaria. Com o sol já amainado, o tempo adentrando as cinco horas da tarde, os fiéis seguiam pelas ladeiras para seu destino: o topo do Morro da Conceição, onde se ergue, imponente, a imagem da Virgem Maria proveniente da França, que, ao mesmo tempo que olha com candura a assistência, esmaga uma serpente com os pés.
CHEGADA DA IMAGEM
O Morro da Conceição, como se conhece hoje em dia, foi fruto da própria chegada da imagem de Nossa Senhora ao Recife, inaugurada no dia 8 de dezembro de 1904, em
A comunidade do Morro da Conceição começou a ser formada a partir da chegada da imagem ao local, em 1904
comemoração ao Dogma da Imaculada Conceição de Maria. Na época, o então arcebispo de Olinda, Dom Luiz Raimundo da Silva Brito, quis prestar uma homenagem a esse dogma católico – proclamado como doutrina no ano de 1854 pelo Papa Pio IX – colocando uma imagem em alto pedestal, com base para missas, sobre um dos diversos morros do Recife. Não é coincidência que o dia 8 de dezembro seja, também, o dia da procissão final da Festa do Morro, que ocorre desde a inauguração da enorme estátua da Virgem. Aos poucos, o antigo Oiteiro da Boa Vista (como era conhecido o Morro antes da chegada da imagem), foi adquirindo o nome que tem hoje. E, “com a chegada da Santa, chegaram os pobres”, escreve Severina
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Santana de Paiva, autora e organizadora do livro Aos pés da santa – A história de um povo, uma coletânea de documentos e depoimentos não só seus, mas de outros moradores da colina. Falar do Morro da Conceição se mostra indispensável para Dona Sevi, assim conhecida em sua “colina que é o Morro”, como gosta de definir sua casa. De cabelos arrumados, com um cheiro doce e marcante de perfume, trajando uma camisa de Nossa Senhora, a autora não nega sorrisos e simpatia a qualquer um que a aborde em suas idas ao Santuário de Nossa Senhora da Conceição. E foi com simpatia que recebeu a reportagem da Continente em sua casa. Ela conta que a migração de sertanejos, a fim de procurar trabalho na capital pernambucana, foi um dos grandes fatores que desencadearam a ocupação do local. Aos poucos, a vida cotidiana foi se formando ao redor da imagem da Santa. “Tinha apenas algumas casinhas, pequenos mocambos, porque eram moradias pequenas, de barro, as paredes eram só barro e cobertas de capim. Então, não havia escola, não havia posto médico, calçamento, água encanada, potável, nada. Era um povo humilde.” Dona Sevi lembra com clareza a atuação do Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Camara, durante o regime militar. Estimulados por sua orientação, os moradores do Morro começaram a encontrar os caminhos da luta através da Palavra de Deus. Dom Helder fundou o Movimento de Evangelização Encontro de Irmãos, cujo objetivo era oferecer ao pobre a confiança no pobre, e também instruí-lo na fé e na luta por direitos humanos. “Através da Palavra, começamos a conscientizar as pessoas de que tínhamos os mesmos direitos de quem mora em bairros abastados”, pontua Dona Sevi. Assim, o mesmo Magnificat cantado na procissão de 2016 serviu de inspiração para as diversas lutas e protestos que aconteceram durante a opressão militar. Segundo
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conta a autora, o trecho “derrubou dos seus tronos os poderosos, exaltou os humildes, encheu de bens os famintos” servia como um mantra, repetido nas reuniões e nas celebrações eucarísticas, fonte de inspiração para a resistência. Eis que o Morro da Conceição atravessou o tempo, venceu a ditadura, conquistou a democracia e vitórias “pela graça de Deus”. Em comunhão com seus irmãos de comunidade, Dona Sevi continua a se fazer crítica à situação do Morro e da sociedade, de um modo geral. Em suas orações, roga à Virgem pelos seus e, sem rédeas, discursa: “O mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor”. A religiosidade, nesse sentido, promoveu união dos moradores do Morro da Conceição, que vem resistindo aos momentos de dificuldade política e social, encontrando caminhos para se afirmar, seja pela criação do conselho dos moradores ou pelos movimentos culturais. E a imagem da Santa, altiva e pacífica, parece abençoá-los e àqueles que vêm aos seus pés, todos os anos, agradecer, solicitar e saudar a sua força majestosa e inequívoca.
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Cardรกpio
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COQUETEL Dando um gelo na mesmice
Ancorados na mixologia, profissionais de elaboração e preparo de drinques ampliam o repertório de combinações a favor da descontração e de novas experiências etílicas TEXTO Eduardo Sena FOTOS André Nery
Era munido de taças de cosmopolitans à mesa que o famoso quarteto de mulheres do seriado norte-americano Sex and the City se reunia para discutir os problemas e brindar aos sucessos próprios de uma alegoria clichê chamada “universo feminino”. Muito antes dessa combinação de vodca, licor de laranja e suco de cranberry acolher as moças, o enigmático espião James Bond, da série cinematográfica 007, recorria ao dry martini com a célebre recomendação, “shaken, not stirred” (batido, não misturado). Ainda nas telonas, o magnata Sherman McCoy, do yuppie A fogueira das vaidades, não tramava de boca seca. Em mãos, sempre um potente sidecar, rimando conhaque, cointreau e suco de limão. E, se é verdade que a arte é o simulacro da vida, nada mais natural que as pessoas se deixem fisgar pelos sabores envolventes que um drinque propõe, seja para aplacar o calor, relaxar, criar coragem ou descontrair. Sua prática é antiga, não estamos falando de uma invenção historicamente moderna. Segundo a pesquisadora gastronômica Maria Lucia Gomensoro, no livro Pequeno dicionário de gastronomia, a fórmula que deu origem ao que viria a ser batizado de coquetel surge na França, no século XVIII, quando uma parte de champanhe seco foi misturado a um torrão de açúcar CONTINENTE MARÇO 2017 | 57
embebido de brandy – qualquer bebida alcoólica destilada de vinho, frutas ou grãos. O conhaque, por exemplo. A possibilidade de conjugar bases alcoólicas com outros ingredientes deu tão certo que, ainda em 1891, foi publicado um guia, o Cocktail boothby American bartender, que continha mais de 350 receitas, além de dicas para preparar os melhores drinques. Esse receituário clássico permanece até hoje, com algumas combinações tornandose anacrônicas. Mas, em algumas delas, ninguém ousa mexer, como o dry martini, mojito, negroni e pisco sour. Quase que de forma compensadora ao que entra em extinção (como o bull shot – caldo de carne e vodca), uma nova escola, que atende pelo nome de mixologia, tem-se ampliado, dando novo sentido à produção de drinques e desenvolvendo um repertório de receitas e experiências gastroetílicas.
COQUETELARIA + MIXOLOGIA
Se, em outros momentos de transição, tivemos embates entre artesanato x arte, culinária x gastronomia; disputas entre a repetição de fórmulas consagradas e a criação de uma nova linguagem, os drinques seguem o mesmo caminho. “A mixologia nada mais é do que a ciência que estuda, desenvolve e aplica os diversos detalhes que envolvem
1 APERITIVO ORIENTAL Traz entre seus ingredientes o chá de wassabi, o saquê e o gengibre SABRINA SUZY 2 A bartender também investe nos mocktails, os drinques sem álcool
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a história, criação, reprodução e harmonização da coquetelaria como um todo”, descreve João Morandi, mixologista da Pernord Ricard Brasil. Enquanto a coquetelaria pode ser descrita como o estudo dos coquetéis, de como surgiram suas técnicas de execução, trabalhos de rotina, hospitalidade e padrões de receitas clássicas e contemporâneas, a mixologia pode ser apontada como uma “pósgraduação” no ramo. É o que acredita o barman Thiago Teixeira, do oriental Mr. Lam, que margeia a Lagoa Rodrigo de Freitas, na cidade do Rio de Janeiro. É que, na mixologia, além de dominar os conhecimentos em coquetelaria, é preciso estudar e conhecer as bebidas, insumos e apresentação para a elaboração de um bom coquetel. É uma prática que requer atualização frequente. Essas linhas de atuação podem até ser diferentes, mas são indissociáveis. “A coquetelaria é o objeto de aplicação da mixologia, que estuda os detalhes e fenômenos que cercam, interceptam e se relacionam intimamente com os coquetéis”, anota Morandi, que acredita que a diferença se faz notável mesmo é no exercício do ofício. “Há o mixologista e há o bartender, aquele profissional que atende dentro do bar, podendo ele ser um mixologista ou não. Não existe hierarquia entre
as duas profissões e, muitas vezes, os profissionais da área se apropriam do termo mixologista para dar um ar mais sofisticado à sua profissão, quando, na verdade, são profissões diferentes, mas intimamente ligadas e relacionadas”, esclarece. O movimento mixológico está no auge, já que até na degustação de um drinque trivial os consumidores buscam sofisticar suas relações de consumo.“A sofisticação da coquetelaria vem surfando a onda da gastronomia mais complexa. Mas ainda estamos no comecinho de um movimento de acesso ao que há de mais interessante na gastronomia; e de forma mais incipiente ainda nessa aderência das novidades da coquetelaria. Em outros países, esse movimento já é bem maior. No Brasil, estamos plantando as sementinhas”, acredita Morandi.
GIM-TÔNICA
Consenso entre os profissionais do setor é que uma sementinha secular, a de zimbro, por meio da qual é produzido o gim, é a que anda dando as cartas nos bares. “Hoje, a tendência é a apreciação pelo gim. O consumo dele, sobretudo por meio do gim-tônica cresceu muito no Brasil. É um drinque refrescante, com bastante gelo, que tem tudo a ver com o nosso clima
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tropical. Bebida que aceita muitas intervenções, as suas variações são o ponto alto da coquetelaria hoje”, aponta Thiago Teixeira, responsável pelo bar do Mr. Lam, em cujo cardápio há uma seção com cinco versões da bebida. No restaurante Kisu, instalado em um shopping da zona sul do Recife, com gastronomia nikkey (junção da japonesa com a peruana), desenvolvem-se várias possibilidades da combinação da bebida que, como reza a uma das máximas da coquetelaria, ‘dá ânimo aos confrangidos, conforta os cansados e aplaca os aflitos’. A bartender Sabrina Suzy lança diariamente sugestões autorais para os clientes, além das mais de 25 opões fixas do cardápio. O gim-tônica que combina o destilado com chá (à escolha do consumidor), grapefruit, refrigerante cítrico e canela maçaricada é mistura querida dos clientes da casa. Na carta de clássicos, o gim também é base do classudo dry martini, outro hit do Kisu. “O gim tem o potencial de frescor e alto teor alcoólico, que seduz o consumidor. Sem falar que é uma base bastante neutra, possibilitando muitas formas de servir”, conta Sabrina, que, durante o expediente, vai de mesa em mesa, buscando transformar o desejo dos clientes em produções etílicas. Com um pouco menos de teor alcoólico (entre 40 e 42% – o gim tem 47%), a cachaça também é apontada pelos profissionais como a bebida do presente, mas também do futuro. O fermentado que colocou o Brasil no mapa da coquetelaria com a caipirinha espalha-se por toda a coquetelaria mundial, uma vez que possibilita o surgimento de diversas criações. “Além de um excelente destilado, o Brasil contribui com uma coleção rica e ampla de madeiras de envelhecimento da cachaça, promovendo a diversidade da nossa flora para dentro da coquetelaria”, diz João Marandi. Essa opinião já é um consenso entre os profissionais. “O gim-
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Receitas
UÍSQUE KING
Por João Morandi, mixologista da Pernor Ricard Brasil
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tônica é uma realidade, mas é importante falar da evolução da nossa cachaça que, a meu ver, será melhor trabalhada nos bares. Vejo também como movimento futuro, nos bares, deixar de servir coquetéis nos copos e taças tradicionais e servir em recipientes exclusivos. Coisa que já vem acontecendo em alguns bares do Brasil”, comenta Thiago Teixeira. Outra contribuição nacional para as coqueteleiras do mundo é o hábito de trabalhar com produtos frescos e frutas da estação. “Enquanto a coquetelaria ‘gringa’ era refém de xaropes, licores e purês industrializados, o brasileiro fincou pés em uma forma mais simples, porém bastante natural. Isso possibilitou o sucesso de sabores”, opina Morandi.
HARMONIZAÇÃO
Trazer novos aromas e sabores para a taça elevou os coquetéis a vetores de harmonizações gastronômicas, caminho já bem trilhado pelos vinhos e, mais recentemente, pela cerveja. “Tudo, absolutamente tudo, harmoniza. Som, cor, aroma,
sabor, tato… Tudo aquilo que possui propriedades organolépticas harmoniza com outros elementos. Coquetéis não fogem à regra, já são harmonizados. Reúnem bebidas, frutas e especiarias. Mas tudo aquilo que pode harmonizar pode também não criar a melhor das experiências”, sugere Morandi. Para o profissional, é aí que se dá a importância da mixologia, investigando os aspectos importantes que permitam à coquetelaria harmonizações de acordo com as paridades propostas. Para o bartender Thiago Teixeira, os drinques nem sempre são feitos para harmonizar, mas trazem algum propósito, podendo ser mais secos, cítricos, com mais amargor – o que é necessário é que suas propostas fiquem claras. “Por exemplo, no Mr. Lam, criei uma releitura de gim-tônica com xarope artesanal de maracujá levemente picante à base de pimenta dedo-de-moça. Ou seja, cítrico e com pimenta pronunciada, que harmoniza perfeitamente com um dos nossos pratos mais famosos: camarão empanado com molho agridoce e
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Ingredientes 50 ml de uísque 15 ml de Havana Club 30 ml de xarope de açúcar 10 ml de licor de café 10 ml de licor TripleSec 15 ml de suco de limão taiti 15 ml de suco de laranja 30 ml de suco de abacaxi Preparo Bata tudo com gelo na coqueteleira e sirva em copo baixo.
GIM-TÔNICA COM CHÁ Por Sabrina Suzy, do Kisu
Ingredientes Um sachê de chá aromatizado de sua preferência 50 ml de gim Gelo Uma fatia de grapefruit para decorar 20 ml de suco de grapefruit 100 ml de água tônica ou refrigerante cítrico Preparo Em uma taça, faça a infusão do sachê do chá no gim em temperatura ambiente. Aguarde dois minutos e cubra toda a taça com gelo. Adicione água tônica e o sumo de grapefruit. Misture e decore com um pau de canela maçaricado.
RODRIGO AZEVEDO/DIVULGAÇÃO
Receitas
Cardápio especiarias chinesas. Sempre procuro saber qual a pretensão de consumo do cliente, assim consigo minimizar as chances de erro.”
SEM ÁLCOOL
Deslize é dizer que drinque sem álcool é suco. Isso porque estamos falando de uma das tendências da gastronomia apontadas para este ano: o mocktail, o coquetel com 0% de base alcoólica. Ele decorre do empenho dos mixologistas e bartenders em propor combinações não alcoólicas tão sedutoras quanto qualquer outro drinque. Como evita ingerir bebidas alcoólicas, a despeito da profissão, Sabrina Suzy, do Kisu, adora preparar e beber mocktails. “O segredo é que eles devem conter a mesma potência de sabor e complexidade de um alcoólico. A regra é clara: mocktail é drinque, não tem a ver com refresco”, sentencia. “Não pode ser uma bebida simples a ponto de acabar rápido. Tem que ser algo que demore na boca, que dê vontade de curtir até o último gole. Caso contrário, enquanto os amigos bebem um drinque, a pessoa beberá uns cinco”, compara Sabrina. A bartender ensina: o gás é um forte aliado, assim como as produções com sabores marcantes. Densidade e temperatura também são determinantes.
SALERNO GT
Por Thiago Teixeira, do Mr. Lam
O gim é uma base neutra que possibilita muitas misturas, além de ter um potencial de frescor e alto teor alcoólico Dá para trabalhar com pimenta, temperos, chás, reduções e infusões. Apoiada na experiência, ela desenvolve uma cartela de opções sem álcool para o restaurante, onde se sobressai o Ginger Fresh, à base de infusão de gengibre, limão, chá e água com gás. No restaurante carioca Sobe, o barman William Barão criou o Fake Wine (vinho falso), uma brincadeira que leva xarope de romã, redução de chá de flor de hibisco, purê de pêssego artesanal da casa e especiarias como cravo, canela, cumaru e casca de frutas cítricas. Ele explica que fazer um mocktail não é apenas excluir o álcool de uma preparação. “É necessário fazer do zero, pois tudo o que está ali faz parte de uma composição. Até o ano passado, não tínhamos drinques sem álcool na carta, mas toda semana alguns clientes pediam. Comecei então a pesquisar as especiarias e criei essa brincadeira com o vinho.”
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Ingredientes 50 ml de gim 15 ml de xarope de maracujá Folhas de hortelã 10 sementes de zimbro 1 pimenta dedo-de-moça Água tônica Gelo Preparo Adicione o gim em uma taça com o zimbro, a hortelã e a pimenta dedode-moça. Preencha a taça com gelo e acrescento o xarope de maracujá. Complete com água tônica.
APERITIVO ORIENTAL Por Sabrina Suzy, do Kisu
Ingredientes 1 colher de sopa e gengibre ralado 20 ml de sumo de limão siciliano ½ colher de chá de wassabi 3 lâminas de gengibre para decorar 50 ml de saquê 20 ml de vodca 20 ml de cointreau Gelo Fatia de romã para decorar Preparo Macere o sumo de limão com o gengibre ralado e coe. Adicione esse sumo a uma coqueteleira e acrescente todos os outros ingredientes com seis pedras de gelo. Chacoalhe por dois minutos e ponha em um copo com gelo.
LAERTE Um olhar sobre si mesma
Artista lança Modelo vivo, livro em que empreende um olhar sobre a própria trajetória a partir de acervo publicado TEXTO Carol Almeida
Visuais
1 MODELO VIVO Desenhos resultam de curso livre ministrado por Laerte e o filho, Rafael, em 2013
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Em 2011, Laerte me contou que uma das autoras de quadrinhos que mais a instigava naquele momento chamavase Alison Bechdel. Hoje, Bechel, que é mais conhecida por dar nome a um teste que identifica o quão machista um filme pode ser, era já naquele momento a mais bem-sucedida quadrinista norte-americana. Sua obra se projeta sempre a partir de um lugar autobiográfico, marcadamente construído a partir de experiências muito pessoais, algumas divertidas, mas outras bastante doloridas, do que é ser uma mulher lésbica e do que foi ser filha de um homem gay. Na ocasião, perguntei então a Laerte se ela teria disposição (a palavra, na verdade, foi “coragem”) de fazer o mesmo, descascar-se em sua própria história, tornar públicas questões íntimas que a moviam de alguma forma. E ela respondeu: “Não sei dizer. Mais do que coragem, não sei se teria capacidade de dar esse mergulho”. Pouco mais de cinco anos depois dessa entrevista, cedida então para um portal de notícias, Laerte ainda não publicou nenhuma história em quadrinhos autobiográfica per se. No entanto, quando olhamos seu trabalho hoje e, particularmente, quando observamos a produção de anos atrás com mais atenção – uma atenção particularmente dirigida para o fato de que a artista passou a se identificar como uma mulher trans já com 57 anos –, é latente a percepção de que, de formas bastante sutis e sofisticadas, Laerte sempre vestiu seus personagens com sua própria pele, indagações e desejos mais profundos. Em várias dessas histórias, é óptica e háptica a presença de um rastro autobiográfico da autora, seja no que diz respeito a suas inclinações e percepções políticas, seja quanto a inquietações pessoais de identidade. O recém-lançado livro Laerte – Modelo vivo, publicado pela editora Barricada, é testemunho disso. Com nove HQs – sendo apenas uma delas inédita –, essa edição organizada pela própria artista traz histórias que dão conta de palhaços mudos (um arco que chegou a ser adaptado para o teatro em 2008, pelo grupo La Mínima), a irrefreável pulsão autodestrutiva do ser humano,
IMAGENS: REPRODUÇÃO
se transformar em monstros que, abatidos por sua monstruosidade, se transformam em heróis. Na única HQ inédita do livro, desenhada no começo dos anos 2000, apenas alguns anos antes de Laerte se identificar como uma mulher trans, o roteiro mais pessoal do livro: um homem e uma mulher, isolados e entediados numa ilha, gastam o tempo trocando de corpo. São apenas duas páginas de história, mas já há ali alguém exercitando a ideia de outra pele e outro gênero. Tal como nos quadrinhos sobre o Minotauro, Laerte brinca com a metamorfose dos corpos.
O QUE FICOU DE FORA
Visuais 2
a sociedade que vigia e pune, o terror de ter seu corpo consumido pela máquina do sistema, o horizonte medieval do futuro, o amor pelos quadrinhos. Em todas elas, o questionamento sobre a normatização das coisas como elas são dadas. Mas, em três dessas histórias, é possível ver como, desde sempre, já havia um tema constante na obra de Laerte: o atrito entre o corpo e sua representação social. Na mais antiga delas, publicada originalmente em 1988, um sujeito que começa a ver penas surgindo em sua pele. As penas que, em um primeiro momento, são indicativos de um privilégio, logo têm seu significado socialmente alterado, quando mudam
O livro traz desenhos de nus e nove HQs, sendo apenas uma inédita, com temas caros a Laerte, com a sociedade punitiva de cor. Em outra história, de 1989, Laerte faz uma visita à mitologia grega, mais precisamente à parábola do Minotauro, para construir um roteiro estritamente visual de como o confronto entre Teseu e o monstro meio homem meio touro é, também, uma fábula sobre heróis que, ao se posicionarem como tais, podem
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A seleção dos trabalhos neste livro se mostra muito reveladora também por aquilo que ela não traz. Uma das HQs mais conhecidas da artista, Lingerie, tem como protagonista um sujeito tipicamente bronco (e notadamente “macho”) que, por ausência de cueca limpa, termina saindo de casa com uma calcinha de sua esposa, certo de ninguém nunca saberia do fato. Mas Jorjão é atropelado no caminho para o trabalho e eis que todos os seus amigos descobrem que ele vestia essa calcinha. Há nessa HQ um tom que pende muito mais para a piada machista (tão frequente na turma de cartunistas pela qual Laerte ficou conhecido) do que para o humor crítico a essas convenções que, cada vez mais, a artista pratica. Rever sua obra à luz do que, certamente, ela não mais publicaria hoje não deixa de ser uma revisão também de tantas e tantas outras HQs que toda essa geração do Chiclete com Banana teria que rever (a lembrar que esse livro trabalha essencialmente com roteiros publicados originalmente nas revistas que circularam no fim dos anos 1980 e começo dos 1990, como Circo, Chiclete com Banana, Geraldão, Piratas do Tietê e Cachalote). Longe de desmerecer a potencialidade explosiva e o respiro criativo de Laerte, Angeli, Glauco e, pouco depois, Adão, naquele período de fim de ditadura militar, mas é importante notar como o humor desses próprios artistas – com exceção de Glauco que, tragicamente, se foi muito cedo – tornou-se muito mais sofisticado na arte de acompanhar e
REPRODUÇÃO
PIRATAS DO TIETÊ 2 Página da HQ Moto, publicada na edição 11 (set/1991) da revista 1987 3 A HQ História inegável do precioso documento original foi publicada na revista Circo
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provocar debates contemporâneos, sendo Laerte e Angeli os pontosreferência dessa sofisticação, e abriu portas para outros artistas como André Dahmer e Arnaldo Branco, uma geração bem menos preocupada com a precisão do traço, mas igualmente atenta ao espírito de sua época.
MÃO MAIS SOLTA
A se falar em traço, esse novo lançamento com a assinatura de Laerte é intercalado por desenhos dos citados modelos vivos, feitos com uma mão mais solta e liberta de um condicionamento de representação narrativa. Esse traço figurativo, que às vezes beira o abstrato, é revelado no momento em que essa artista,
a despeito de todos os prêmios e o reconhecimento entre seus pares de ser a melhor naquilo que faz, se coloca cada vez mais insatisfeita com seu próprio desenho. Explicase: a insatisfação, neste caso, não é um sintoma de cansaço, mas antes uma evidência da vitalidade transformadora de alguém que foge do lugar de conforto como quem foge de uma partida de xadrez num filme de Bergman. A própria Laerte se explica no texto introdutório do livro: “Talvez seja coisa só minha – mas tenho tido cada vez menos prazer e mais dificuldade com o desenho. É meio duro de dizer e de ouvir, e sinto que preciso afinar a ideia: a expressão ‘menos prazer’ não quer
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dizer ‘desprazer’. O termo dificuldade também pede uma luz – algum tipo de dificuldade sempre temos, porque faz parte do processo de desenhar, não importa quão ‘bem’ a pessoa pareça se defender com um lápis (ou seja o que for que use para isso). E mais: ‘dificuldade’ não significa uma coisa que a pessoa deva evitar (embora dê vontade). Há, embutida nos desafios que vão aparecendo, a chance de uma descoberta – ou a decepção de um fiasco temporário, que pode ser compensado mais adiante”. Os desenhos de modelos vivos presentes aqui foram feitos no decorrer de um curso de desenho livre que Laerte e seu filho, Rafael Coutinho, fizeram em 2013. Depois de mais de quatro décadas desenhando profissionalmente quadrinhos, charges e cartuns com um traço humorístico muito particular e perfeitamente ciente da construção espacial das imagens (Angeli, o amigo cartunista e quadrinista, já disse, em uma entrevista, que sempre invejou a naturalidade e velocidade com que Laerte desenhava grandes cenários), Laerte se permite questionar seu próprio trabalho, entender o que a move a essa altura da carreira, tanto na sua relação com o desenho do corpo humano, como, particularmente, nas implicações do que desenhar esse corpo a provoca no campo íntimo, e eis aí sua não intencional exposição autobiográfica. Colocar-se na berlinda e assumir esse lugar de desconforto com o seu trabalho parece ser, para a mais importante cartunista brasileira hoje, o impulso que a move.
Laerte MODELO VIVO Barricada Artista reúne seleção de obras por ela criadas desde os anos 1990 e série de desenhos de modelos vivos.
CON TI NEN TE#44
Tradição
PACHAMAMA Agradecimento e perdão à Mãe-Terra 1
Cerimônia realizada anualmente com música, dança e comidas típicas no Noroeste da Argentina está de acordo com a lei da reciprocidade que, para os povos andinos, rege o universo TEXTO E FOTOS Carolina Albuquerque
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1 COPLAS Versos do cancioneiro popular são entoados por músicos participantes da festa
de uma bengala, a senhora caminha assertiva em direção ao local. Oferta à terra: empanadas, alfajores, biscoitos etc. Em seguida, o vinho, “sangue divino”, e a água. Termina suas palavras e preces pedindo perdão à Pachamama. “Te peço que mostre o caminho verdadeiro, porque está perdido nosso mundo. Pela desunião. Porque não nos compreendemos. Pachamama, Mãe-Terra, tenha piedade de nós”. É 1º de agosto no Noroeste da Argentina. Precisamente na comunidade Dieguita Kallchaki, localizada no “El Divisadero”, território ancestral da nação diaguita, arredores da pequena Cafayate. No calendário agroecológico andino, a entidade suprema e divina da Pachamama desperta nesse período de um longo descanso. Acredita-se que, nessa fase de transição, é preciso renovar as suas forças dando-lhe de
O ritual de alimentar a Pachamama começa cedo do dia, quando as casas são defumadas. As homenagens duram todo mês de agosto Pela intensidade dos raios solares, já era perto de meio-dia. Muitos já estavam impacientes para a festa que se seguiria com dança, música e farta e típica comida da região de Cafayate, distrito de Salta, Noroeste da Argentina. Uma senhora se aproxima da apacheta. Os cabelos muito brancos contrastam com sua pele queimada, de traços indígenas. A apacheta é o nome indígena para o buraco feito na terra, dedicado a alimentar a Pachamama. A apacheta é a boca e o ventre da “Mãe-Terra” (tradução literal para Pachamama). Traduz o ato de alimentar e dar frutos. É o altar dedicado à divindade maior para os povos andinos. Mesmo sob uma postura envergada e com o auxílio
comer e matando-lhe a sede. O ritual de “hacer comer la Pachamama” (“fazer comer a Mãe-Terra”) se inicia ainda nas primeiras horas do dia, quando as casas são defumadas. As cerimônias, comunitárias ou particulares, de agradecimento e perdão à divindade, contudo, mantém-se ao longo de todo o mês. A apacheta (essa cavidade no solo encoberta por volumosas pedras em formato cônico) é o local central da cerimônia. Sobre uma toalha, posta ao seu lado, os pachamamistas chegam e vão depositando suas oferendas. Não pode faltar a tradicional gastronomia local: folhas de coca (cujo hábito de mascar é ancestral e tem por
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finalidade aguentar as altas altitudes), empanadas de doce de leite e o vinho Toro, um tinto envasado em tetrapak. “Abre-se a boca da Mãe-Terra nesse lugar escolhido energeticamente pelas pessoas. Não é em qualquer lugar. Todos os anos depositamos as oferendas no mesmo lugar. E, nesse dia, oferta-se a comida que cada um mais gosta. Os frutos mais deliciosos e as batatas mais lindas que te deu a Mãe-Terra, num ato de devolver energeticamente”, explica a pesquisadora argentina Noemí Amália Vargas, professora de Artes Visuais da Universidade Nacional de Arte em Buenos Aires e licenciada em Culturas Tradicionais. No vocabulário oral, os pachamamistas usam expressões como “fazer comer”, “alimentar e matar a sede” ou “pagar” à MãeTerra. “Quando estamos fazendo o pagamento à Mãe-Terra, estamos pagando por tudo que temos. Pela comida, pela energia do sol… A Pachamama tem seu próprio espírito. Tem a ver com esse poder que tem sobre nós. Na concepção andina, o homem tem vários espíritos. Não só um. Até sete, dizia minha mãe. Vivemos em um plano horizontal, porque todos temos espíritos, as plantas, os animais, tudo. Muitas pessoas não sabem isso. Sabem que têm que pedir permissão e agradecer. Mas é por isso que temos que pedir permissão à Mãe-Terra, porque ela tem espírito”, ressalta Amália, que também se reconhece como indígena (nação chicha de Jujuy). Esse ritual está intrinsecamente conectado ao princípio da reciprocidade andina, fundamento que mantém o caráter coletivo e comunitário que acompanha as sociedades indígenas. Como comportamento, traduz-se na atitude de “devolver por igual o que recebeu” ou “receber de volta o que foi dado”. Amália Vargas ressalta que o ayni, um dos fundamentos associados à instituição da reciprocidade, funciona como uma espécie de guia que motiva essa partilha, seja qual for o ritual comunitário. Numa explicação apressada, ayni quer dizer “ajuda mútua”. Porém, não se trata de algo simplesmente voluntário. O “dar
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CON TI NEN TE
e receber” independe das atitudes humanas, é uma espécie de lei que rege o universo para os povos andinos. Pachamama (Pacha, “terra”; mama, “mãe”) é um termo quéchua, idioma dos aborígenes incas. No Peru e Bolívia, essa língua ainda se encontra amplamente viva. Enquanto que, na Argentina, cada vez menos frequente no cotidiano dos descendentes dos povos andinos. Interpretar essa entidade como Mãe-Terra, associando-a apenas à fertilidade da terra, recai em reducionismo. Pachamama é terra geológica, mas também todo o seu conjunto. É transcendental e cósmica.
RITUAL
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2-3 PACHAMAMISTAS Maioria da população do Noroeste argentino é descendente dos povos indígenas 4 AMÁLIA VARGAS Pesquisadora em Culturas Tradicionais, ela explica que o local das oferendas é sagrado, escolhido de forma mística 5 APACHETA Escacavado e recoberto de pedras todos os anos, este local encontra-se em Quebrada de Las Conchas, em Cafayate
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À medida que os olhos iam sendo alimentados pela farta comida e bebida posta sobre a toalha, os cerimonialistas eram “defumados”. Banhado com arruda, um cordão era amarrado ao pulso de cada um dos presentes. E uma xícara de barro com vinho era compartilhada. “Convido todos a abrir a apacheta”, conclama o cacique. Dezenas de mãos começam a mover as pedras. As pesadas, as menores. Nesse momento, em silêncio, ouve-se apenas o barulho delas sendo demovidas do topo do buraco. Ali dentro, estão depositadas dezenas de garrafas de vinho (Cafayate é reconhecida pela sua extensa produção de vinho), um ano inteiro “maturando” na boca da Pachamama. Casais são chamados a desenterrá-las e as devem trazer à luz do sol com as mãos unidas. “A Pachamama está relacionada com a fertilidade, que simboliza toda a abundância que ela te dá. Por isso fazemos o ritual em agosto, momento do plantio. E outra oferenda em fevereiro, momento da colheita. E não é feita apenas por aqueles que trabalham com o campo. Não é literal. Está relacionado a tudo que envolve o trabalho, em que ela o ajuda”, pontua Amália. O vinho desenterrado é aberto e celebrado com palmas. À boca da garrafa, bebe-se e se compartilha entre todos. Não sem antes oferecer um gole à homenageada, derramando um pouco ao solo. O clima é de brincadeira, alegria, festa. Os cantores locais vão entoando as coplas (um tipo de verso
poético nas canções populares). “Pachamama, santa terra. Não me leve agora. Veja que ainda estou jovem, tenho que deixar mais sementes”, puxa o verso um dos músicos.
AUTOIDENTIFICAÇÃO
De Jujuy à região de La Rioja, passando por Salta, Catamarca e Tucumán, uma Argentina não branca se descortina. Ainda que a maioria da população não se autoidentifique como indígena, Amália Vargas argumenta que nessa região “todos são indígenas”. Carregam os traços no rosto, na cor da pele e, mesmo sem se dar conta, a cultura dos povos andinos. “Somos da linhagem dos incas, do alto Peru, limite com Bolívia. Todos aqui são indígenas, ainda que não queiram reconhecer. Minha mãe dizia: ‘Eu não sou indígena’. E quando comecei a estudar sobre esse universo, falei que, sim, nós
A Pachamama está relacionada à fertilidade, que simboliza abundância, por isso a festa ocorre no mês do plantio éramos. Disse para ela: ‘A senhora sabe quéchua, faz a cerimônia da Pachamama, fala com uma folha de coca, sabe curar com as plantas, faz a chicHa’, que é uma bebida sagrada dos andinos. Eu já tinha me reconhecido. E respondeu: ‘Ah, não sabia’.” O momento de oferecer a comida e a bebida a Pachamama é bem particular. Por conta do processo de evangelização na época da colonização, as cerimônias dos povos ancestrais carregam elementos de sincretismo. Alguns, ao venerar a
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divindade, fazem o símbolo da cruz ou preces católicas. No entanto, o Dia da Pachamama (reconhecido pelo calendário oficial) é apenas uma das cerimônias de matriz indígena que se mantém viva nessa região da Argentina. Amália Vargas cita, pelo menos, o Dia dos Mortos – um momento de celebração aos que já se foram –, e a Señalada, ritual em que fazem desenhos nas orelhas das cabras e ovelhas. “É uma cultura viva, mas que luta para se manter. E, no entanto, se encontra à margem das políticas oficiais. Quando é dia de fazer a Pachamama, todas as autoridades estão lá. Porém, passada a eleição ou esses eventos sociais, pouco é feito por esses povos”, pontua. Com a boca saciada de boa e farta comida e bebida, fecha-se novamente a apacheta e seguese a festa para a Mãe-Terra.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
ANO NOVO, VIDA VELHA
Meu octogésimo quinto ano. “A
gente sabe que está chegando na estação”, disse Carybé num dos nossos últimos encontros. Sem que isso pudesse preocupá-lo, creio. Carybé sempre foi muito saudável de corpo e alma, forte, alto, atlético. Eu, meio balofo. Suas últimas palavras: “Me f...” As de Hermilo Borba Filho ao menos são publicáveis: “Assim não dá”. Arnaldo Pedroso d’Horta achava que a gente morria quando queria. Morro de pena das pessoas que, quando eu morrer, vão morrer de saudades de mim: minha mulher, meus filhos, minhas netas, minhas irmãs, meus amigos, parentes e até quem nunca me engoliu. Minha morte será um acontecimento muito próximo para todas essas pessoas e não um conto de fada, de ouvi dizer. Há como um eco dentro de vocês, o corpo todo confirma, é a maldita querendo se instalar, tomando providências, estabelecendo pontos. É ela que se aninha num jogo de dissimulações mas, dessa vez, não um jogo sem consequências. Senhor rei mandou dizer que você está na vez.
É hora é hora, camarado. Vamo-nos embora pra Ilha de Maré. Uma coisinha aqui, outra acolá. Uma coceirinha na canela, um cansaçozinho, você dorme, dorme, dorme e o cansaço não passa, disposição que você não mais alcança apesar de ter dormido as horas necessárias. A cama continua a chamá-lo, querendo convencêlo de que seu lugar é ali, você tem esse direito, você deve começar a pensar em não se levantar mais. Antes, você voltava para a cama, dormia um pouquinho e se lentava inteiro. Hoje continua metade lá. O trabalho com horário ficou para trás. Você agora pode tudo, isto é, você agora não pode nada. E dizer que as pessoas vão morrer de saudade, eu que sempre zombei de sentimentalismos! Quem morreu, morreu. Nesse ponto penso como os ianomâmis, como ouvi dizer: lá, é pecado gravíssimo falar, lembrar de quem já morreu. Por isso que sempre achei que sentir saudade era errado. Mesmo para lembrar momentos felizes.
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Quando digo que as pessoas vão morrer de saudades de mim, eu é que já não sou mais o mesmo, eu é que já estou morrendo de saudades de deixá-las. Não sei se entre os ianomâmis é aceito sentir saudade por antecipação, isto é, enquanto vivos todos os implicados como faço agora, quando ainda não morri mas já estou pensando nas saudades daqueles que ficarão se lembrando de mim. Bem, de qualquer maneira isso não passa de narcisismo. Mas sempre tem servido para alguma coisa: enchi minha casa de corrimãos, em cada degrau dentro de casa, no box do banheiro, na escadaria que dá para a rua, aliás neste caso, ideia da amiga Madeline, e que deu lugar a todos os outros. Deixei de estar furando dedo para medir o açúcar. Ontem me surpreendi perguntando a Leonice minha mulher quantos anos durou o pai dela desde que cortou um dedo, depois a perna, porque talvez esse seja o meu destino. Talvez eu deva voltar a comer folha em vez de comida. Bem que o amigo Zezito Pedrosa me disse: “Quando você tiver raiva de uma pessoa, deseje que ela viva muito”.
ACERVO PESSOAL/ REPRODUÇÃO
1 PRIMEIRA
COMUNHÃO
José Cláudio, Ipojuca, década de 30
Meus pais queriam que eu fosse gente. Só que no elenco de homens de prol do meu pai não constava “pintor”. Ele já idoso, eu numa última tentativa de convencê-lo de que pintura era profissão, por acaso tendo recebido o cheque pelo pagamento de um quadro, mostrei a ele. Dono de loja que fora a vida inteira, ele examinou frente e verso e, convencido de que era cheque de verdade, me devolveu perguntando: “Quem foi o besta?” Lembro, como se fosse de outra encarnação, camisa de seda creme de manga comprida, abotoadura. Quando menino, claro. Primeira comunhão com jaquetão de casimira azul-marinho, calor danado, tive de apanhar para vestir. Não havendo
Primeira comunhão com jaquetão de casimira azulmarinho, calor danado, tive de apanhar para vestir colégio em Ipojuca, meu pai deve ter pago uns bons trocados para me botar interno no Colégio Marista aqui no Recife. No princípio deu certo. Primeiro de classe. Mas não tive raça para me manter nesse pedestal. Ou não tive apoio. Com treze anos, sem ter em quem confiar, tomei a resolução de abdicar desse trono
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por uma questão de sobrevivência. Vem daí a minha derrocada, talvez. Fui botado no gelo assim que minha foto saiu na revista Salve Maria como primeiro de classe. Ninguém falava comigo. Davam dedada e chulipa, que é dar tapa nas nádegas com as costas da mão, e quando eu me virava todos ficavam sérios como se nada tivesse ocorrido. Em qualquer jogo ou lugar que eu entrasse os outros saíam. Chutavam minhas canelas, às vezes meninos maiores. Diziam que eu era “o peixinho” do titular da classe Irmão Tomás. Eu tive até que aprender a ser malcomportado. Deixava de dar as respostas certas para tirar notas mais baixas. Certa vez um dos professores chegou a conversar comigo, perguntando o que estava havendo. Se eu dissesse, era um suicídio. Aprendi a me comportar mal para ir de castigo, ficar de pé ou escrever quinhentas linhas. Certa vez o diretor, Irmão Carlos Martínez, espanhol, me pegou pelos braços e me deu uns sopapos, uns balanços, como para me acordar. Não adiantou. Minha transformação foi tão radical que não sei se não havia dentro de mim razões mais profundas. Era axiomático que os homens da família de minha mãe nunca deram para nada. Ela própria vivia repetindo isso. Meu pai dizia que eu não negava que era sobrinho de Filó, meu tio Philogônio, na época tido como farrista. O fato de eu ter abandonado os estudos na Faculdade de Direito para ser pintor, somente vinha confirmar o que todos sabiam, apesar da fama de “inteligente”. Inteligente ou não, fui sim inteligentíssimo em fazer na vida aquilo de que gostava. Disso nunca me arrependi. E também por causa disso, creio, a terra me tem sido leve, embora se use a frase para quem já morreu. Mas não vou morrer um dia? Infelizmente não aconteceu no que Abelardo da Hora acreditava, que iam descobrir o segredo da morte, que ninguém ia mais morrer. Aqui pra nós, também creio.
FOTOS: AURORA FILMES/DIVULGAÇÃO
Claquete 1
OCUPAÇÃO Afirmação e resistência
Em Era o Hotel Cambridge, a diretora Eliane Caffé apresenta uma narrativa na fronteira entre o documental e o ficcional sobre a luta pela moradia TEXTO Luciana Veras
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30 de outubro de 2016, domingo, 22h. Na Avenida 9 de Julho, número 210, centro de São Paulo, no saguão de um antigo hotel de 15 andares, centenas de pessoas ouvem com atenção as instruções de uma baiana de 55 anos. Dentro de instantes, homens, mulheres, adolescentes, crianças, brasileiros e estrangeiros marcharão juntos para ocupar 10 prédios no centro e três na zona leste da capital paulistana. É a noite do Outubro Vermelho, ação da Frente de Luta por Moradia, da qual participam diversos movimentos. Carmen Silva é a coordenadora do Movimento Sem Teto do Centro/MSTC que fala à multidão: “Hoje é o segundo turno das eleições e o que queremos é uma política pública que nos beneficie. Vamos lutar pelos direitos. A moradia não caminha sozinha sem educação, saúde ou cultura. E a luta, mais do que nunca, é feita com vocês, e não para vocês. Todos nós, trabalhadores de baixa renda, brasileiros, imigrantes,
1 HOTEL CAMBRIDGE Hoje, o edifício é um imóvel classificado como HIS – Habitação de Interesse Social
CARMEN SILVA, líder do MSTC “O filme é um instrumento de divulgação da nossa luta, porque leva para fora o nosso coração, o que somos de verdade. Tira esse mito de achar que os trabalhadores sem-teto são vândalos que ocupam prédios produtivos e mostra a tratativa do Estado conosco. É uma tratativa em que essa instituição não desempenha o seu papel real. Não queremos ser à parte do Estado, e, sim, estar introduzido nele, com direitos e tudo que precisa ser provido para os cidadãos. A importância de ter um filme como esse e o projeto de residência artística no Cambridge, e de ter os artistas acompanhando o Movimento Sem Teto do Centro nessa luta por moradia, é que não temos uma luta específica por habitação, mas por direitos. Arte e cultura são direitos que nós reivindicamos, com a compreensão de que nossa vida não pode ser apenas de casa para o trabalho. A arte é um dos princípios para agir mentalmente, no psicológico, e não só como entretenimento, mas para evoluir a vontade de estudar, de ler, de ter compreensão. Através da arte podemos ter uma compreensão maior do direito para nos tornarmos cidadãos plenos.”
refugiados do Haiti, do Congo e de qualquer lugar, estamos ameaçados. Não podemos aceitar esse retrocesso que vem aí. Vamos tomar consciência. A hora é essa e é com todos”. Duas noites depois, Era o Hotel Cambridge (Brasil/França, 2016) era exibido no CineSesc na programação da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O longa-metragem da cineasta paulistana Eliane Caffé já tinha uma trajetória laureada: melhor filme pelo voto popular no Festival do Rio, menção honrosa no 64º Festival de San Sebastián (mesmo festival que, em 2015, havia premiado o projeto, ainda em finalização) e o apoio para a pós-produção do Hubert Bals Fund, do Festival Internacional de Rotterdam. A história narrada no filme, que entra em cartaz em 16 de março, pelo selo da Vitrine Filmes, é reflexo das cenas reais transcorridas no Hotel Cambridge – a vida dos moradores da ocupação que,
O filme reflete a vida dos moradores da ocupação que, desde 2012, transformaram o edifício abandonado em lar desde novembro de 2012, transformou um edifício abandonado em lar para centenas de famílias. Conta a diretora que Era o Hotel Cambridge começou quando ela decidiu pesquisar os refugiados em São Paulo. “Queria ver as problemáticas envolvidas nessa questão dos imigrantes que chegavam em busca de refúgio, como era a entrada deles nas ocupações, e queria seguir suas trajetórias, com o intuito de saber como suas vidas iam se assentando no Brasil”, disse Eliane à Continente. “Muitos deles terminavam
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chegando às ocupações. Atrás dessa bandeira, estão escondidos muitos movimentos especulativos, não éticos, porém, há também os movimentos éticos nesse universo da luta pela moradia. Comecei a buscar a conexão existente entre os refugiados que chegam ao Brasil, em todas as cidades grandes do nosso país, e os trabalhadores de baixa renda. Ambos carecem de uma política habitacional com o mínimo de dignidade humana. Foi a partir daí que entrei na ocupação do Cambridge”, acrescentou. Ela passou um ano e meio convivendo com os moradores que haviam reconstruído suas vidas naqueles quartos de um hotel outrora frequentado pela elite paulistana. Organizou oficinas para introduzir o vídeo no cotidiano daquelas pessoas. Coube a Inês Figueiró e Tayla Nicoletti a tarefa de coordenar esses encontros, num primeiro momento, destinados a crianças de 2 a 14 anos. “Eram oficinas de dramaturgia,
FOTOS: AURORA FILMES/DIVULGAÇÃO
Claquete
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ELIANE CAFFÉ, diretora do filme “A narrativa de Era o Hotel Cambridge é um jogo de ficção: partimos de personagens verdadeiros e reais para criar as personas do roteiro, que foram assumindo a sua própria sua voz. A ideia sempre foi fazer uma ficção ancorada numa zona de conflito real. Todo mundo está ficcionalizando, pois mesmo os atores já faziam parte daquele universo, participando das oficinas com os moradores do Cambridge. O filme traz uma sensação híbrida, na fronteira entre o documentário e a ficção. Essa ausência de nitidez na definição – o que é mesmo que determina uma ficção e um documentário? – vem também com o trabalho dos atores e como eles puxam os não-atores, muitos deles refugiados verdadeiros e que moram, de fato, no Cambridge. Vejo o filme como parte de uma produção de resistência, a mostrar que, com o golpe e o retrocesso político, existe avanço também. Falamos muito do retrocesso, mas a História não anda para trás. Existem frentes de avanço, com muito empoderamento de vários coletivos e movimentos sociais e de artistas e ativistas que têm encontrado brechas no sistema. Assim, seguem a se expressar, criando uma certa narrativa da resistência.”
que íamos fazendo durante o desenvolvimento do roteiro. As crianças criavam pequenos curtas, nos quais elas mesmas faziam tudo”, explicou Inês à Continente, na calçada de frente para o Cambridge – ela também é corroteirista do longa, ao lado de Luis Alberto de Abreu e da própria diretora. “Através dessas oficinas, chegamos aos adultos e logo começamos a trabalhar com os refugiados”, completou Tayla.
FICÇÃO E DOCUMENTO
Em Era o Hotel Cambridge, nomes de estrangeiros, como Isam Ahmad Issa, Qaedes Khaled Abu Thana, Treson Mukendi Muteba e Guylain Muskendi Labobo, dividem os créditos com atrizes e atores como Suely Franco e José Dumont – ator predileto da diretora, protagonista de seus longas Kenoma (1998) e Narradores de Javé (2003) – e com a própria Carmen Silva. É “um jogo de ficção”, na definição de Eliane Caffé, sem se importar com as fronteiras entre documentário e construção ficcional. Aos 15 minutos de narrativa, Carmen, a protagonista fílmica, preside uma assembleia com os moradores para informar a decisão judicial de reintegração de posse. “Se agora nós recuarmos, vamos aceitar a sentença do juiz, então, pessoal, é hora de estarmos unidos e juntos”, brada, seguida de
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2 JOSÉ DUMONT O artista já atuou em outros trabalhos da diretora, a exemplo de Kenoma e Narradores de Javé
aplausos. Hassam, personagem de Ahmad Issa, intervém: “Eu sou refugiado palestino no Brasil, vocês são refugiados brasileiros no Brasil”. Irrompem vaias e aplausos e Carmen se pronuncia com voz firme: “Brasileiros, estrangeiros, somos todos refugiados”. Em outubro de 2016, Carmen, uma das líderes do MSTC, resumia: “Nós, trabalhadores de baixa renda, estamos cansados de ser atingidos. Não queremos saber quem ganhou a eleição, quem tomou golpe e quem deu golpe, e, sim, que aqui somos cidadãos brasileiros e estamos cansados de ter nossos direitos violados. Vamos à luta. Somos todos iguais”. Para Eliane Caffé, o filme integra a produção imagética de “resistência”. “É preciso criar uma narrativa diferente. Movimentos de luta pela moradia e a existência esse universo fértil e politizado do Cambridge são fundamentais para mostrar que houve golpe no Brasil, mas que existem avanços também”, pontua a diretora, que mesclou às imagens captadas na ocupação vídeos feitos por coletivos como Jornalistas Livres e Mídia Ninja. “Aproveitamos imagens da reintegração de posse de um outro edifício no centro de São Paulo para
INDICAÇÕES configurar a reintegração do Cambridge, que nunca foi reintegrado”, detalha. Era o Hotel Cambridge é um dos desdobramentos culturais oriundos da ocupação. No bojo da experiência criativa desencadeada pelas filmagens, ocorridas em 2014, a curadora Juliana Caffé, sobrinha de Eliane, idealizou, ao lado de Yudi Raffael, o projeto Residência Artística Cambridge. A partir de março de 2016, os artistas Ícaro Lira, a dupla Jaime Lauriano e Raphael Escobar e Virginia de Medeiros e o escritor Julián Fuks se tornaram parte da diversificada paisagem humana que frequenta, habita e fortalece o edifício. “Estamos em um microcosmo da cidade. O Estado não tem como dar conta dos refugiados e é a ocupação que faz isso. Pensamos em como seria interessante aprofundar a pesquisa sobre as articulações entre arte, política e sociedade, vias com muita força e potencial para, ao serem cruzadas, criar novas possibilidades para a cidade”, comenta Juliana Caffé. Virginia de Medeiros percebe no filme uma “potente tradução do rico universo” que encontrou no Cambridge: “Além da matéria e da arte, existe o lugar da vida e a maneira como também vamos nos construindo nesses processos. Não consigo mais me pensar, como artista e cidadã, fora dos processos de entrega e das questões humanitárias urgentes. Não podia chegar aqui com um projeto fechado, e, sim, me deixar atravessar pelo desejo de viver essa experiência. Era o Hotel Cambridge, para mim, é sobre direitos, amor e união. É sobre conviver com diferentes realidades, diferentes pessoas, bagagens
e sonhos, e se deixar afetar por elas. Antes mesmo de iniciar a residência, conheci Carmen e percebi como ela era afirmativa e forte e, ao mesmo tempo, generosa demais. Foi para dentro de uma zona de crack para ajudar as famílias que lá estavam sem ter onde morar. Quero ser uma força também para o movimento. Acredito nessa luta”. Em novembro de 2016, Era o Hotel Cambridge foi escolhido pelo júri popular o melhor dos mais de 300 longas-metragens da 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O número 216 da Avenida 9 de Julho é, hoje, um imóvel classificado como HIS – Habitação de Interesse Social. O Movimento Sem Teto do Centro venceu o edital 002/2015, lançado pela Prefeitura de São Paulo, e hoje tem “documentação e escritura em cartório” para não ser tratado como uma invasão. “Mas o temor não cessa, porque não sabemos o que se passa na cabeça do atual prefeito. Vivemos à mercê da política partidária e temos que seguir batalhando”, constata Carmen Silva, do MSTC. A diretora Eliane Caffé não dissocia a sua obra do contexto que a fez possível e, ao mesmo tempo em que se prepara para levar o longa a festivais europeus, monta, junto à Frente de Luta por Moradia, uma estratégia paralela de exibição. “Vamos organizar uma ação conjunta com os movimentos de luta. Queremos levar o filme para ser exibido nas ocupações”, antecipa. No Brasil de 2017, é essencial cavar novos espaços para as narrativas de resistência. Afinal, como dizem os personagens fictícios e os moradores reais do Hotel Cambridge, “quem não luta, está morto”.
DRAMA
BANG GANG, UMA HISTÓRIA DE AMOR MODERNA
Diretor: Eva Husson Com: Finnegan Oldfield, Marilyn Lima Full House
COMÉDIA DRAMÁTICA
O FILHO DE JOSEPH
Diretor: Eugène Green Com: Victor Ezenfis, Natacha Régnier Supo Mungam Films
O primeiro longa da atriz Eva Husson, também roteirizado por ela, explora o universo jovem em seus sentidos mais extremos, ao afundar-se nas descobertas da sexualidade numa cidade ao sul da França. A jovem George (Marilyn Lima), de 16 anos, em suas andanças, apaixona-se pelo predador Alex (Finnegan Oldfield), insaciável na busca por mulheres. O filme não se limita ao pudor do cinema americano em relação à suposta “inocência” da juventude.
“Eu não tenho pai.” As palavras proferidas por Vincent, de 15 anos, são como um mantra aprendido com sua mãe. Inspirado em passagens bíblicas, como o Sacrifício de Isaac e o Bezerro de ouro, o longa se baseia numa busca pela identidade e por vingança, ao descobrir, finalmente, quem é o seu pai. Dividido em cinco partes, o filme de Green (La sapienza, 2014) apresenta uma reviravolta quando Vicent conhece Joseph, um homem marginalizado, que irrompe na sua vida e na de sua mãe trazendo mudanças.
SÉRIE
DRAMA
Criado por Steven Daldry e Peter Morgan Com: Claire Froy, Jared Harris Netflix
Diretor: Flávio Ramos Tambellini Com: Carolina Ferraz, Sandra Corveloni H2O Films
THE CROWN
Explorando a vida pessoal e pública da Rainha Elizabeth II, desde a época de princesa até o início do seu reinado, a série original da Netflix não é somente um retrato da vida monárquica tão apreciada no Reino Unido. Lança um olhar sobre os conflitos políticos e econômicos que se perpetuam nas páginas dos livros de história – nomes como Hitler e Stalin são citados aqui e ali, por exemplo. Mesmo com elementos fictícios, a criação de Daldry e Morgan é ideal para os apaixonados pela monarquia.
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A GLÓRIA E A GRAÇA
A vida de Glória (Carolina Ferraz), uma travesti dona de um movimentado restaurante no Rio de Janeiro, é sacudida com a chegada de Graça (Sandra Corveloni), sua irmã, a qual não via há 15 anos, e que pensa que ela ainda atende pelo seu antigo nome masculino. Porém, com a descoberta de um aneurisma que põe a vida de Graça em risco, o reencontro das duas é necessário para aproximar a tia dos sobrinhos, os filhos de Graça. Um filme que toca numa das questões mais prementes da sociedade: a família moderna.
JOEL BRODSKY/REPRODUÇÃO
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Sonoras 1
1967 Um ano inesquecível para o rock’n’roll
Há 50 anos, eram lançados os discos de estreia de The Doors, Velvet Underground, Jimi Hendrix e Pink Floyd, que promoveram uma revolução total no gênero TEXTO Débora Nascimento
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Quando Lou Reed morreu, aos 71 anos, serenamente em sua casa, tendo ao lado sua esposa, Laurie Anderson, era uma manhã de domingo. Ele partiu em 23 de outubro de 2013, no mesmo dia ao qual se referiu em Sunday morning, faixa de abertura de The Velvet Underground & Nico, disco que, lançado há 50 anos, deu início à sua trajetória musical. Embora tenha abordado as drogas em faixas como Heroin e I’m waiting for the man, contrariou o que se esperava dele, morrer jovem e em decorrência do vício, como Jimi Hendrix e Jim Morrison, ícones do rock que também estrearam em disco em 1967, mas morreram precocemente aos 27 anos, fulgurantes e fugazes estrelas de um ano-chave para a música.
1 THE DOORS Banda de Los Angeles abriu o ano de 1967 com disco arrebatador
que transformariam 1967 num marco para o rock. Com nome inspirado no livro As portas da percepção, de Aldous Huxley, sobre suas experiências com drogas psicoativas, título, por sua vez, retirado de uma frase do poeta inglês William Blake (“Quando as portas da percepção estiverem abertas, tudo parecerá como realmente é: infinito”), a banda abria as portas do gênero musical para as possibilidades sonoras que despontariam. Caracterizado pelo duelo entre o teclado de Ray Manzarek e a guitarra de Robby Krieger sobre a bateria jazzística de John Densmore, o disco começa com
Ano do Sgt. Pepper’s, dos Beatles, ainda teve as estreias em LP de David Bowie e Van Morrison, e primeiro festival de rock
Não se sabe se foi uma conjunção astral, uma coincidência ou o resultado da linha evolutiva do rock aliada a uma revolução comportamental, ou tudo isso junto, mas aquele ano ficou assinalado por lançamentos memoráveis, como Sgt. Pepper`s Lonely Hearts Club Band e Magical mystery tour, dos Beatles, Between the buttons e Their satanic majesties’ request, dos Rolling Stones, Younger than yesterday, dos Byrds, Sell out, do Who. Além desses, foram lançados os primeiros álbuns do Kinks, Van Morrison e David Bowie. No entanto, as estreias notáveis ligadas ao rock foram as do Velvet Underground, Jimi Hendrix, Pink Floyd e The Doors. O álbum de estreia do Doors, autointitulado, iniciou, em janeiro daquele ano, a sequência de discos
a protopunk Break on through, engloba o pop barroco The cristal ship, a música de vaudeville Alabama song (Whisky bar), a sedutora Light my fire, o cover do blues Black door man, e encerra com a psicodelia épica e hipnótica protagonizada pelo canto majestoso de Jim Morrison em The end – faixa que, em 1979, abre Apocalipse now, de Francis Ford Coppola, uma ironia, pois o cantor, antes de montar o grupo, formou-se em Cinema na Universidade da Califórnia. Após a morte de Morrison, em 1970, a banda ainda lançou três discos, mas sem a mesma repercussão. Em setembro de 1981, a Rolling Stone o estampou, em sua capa – com a manchete “Ele é quente, ele é bonito e ele está morto” – uma prova da crescente adoração em torno da banda e de seu líder. A mística foi estimulada ainda por The Doors – O filme (1991), de Oliver Stone, que angariou uma nova legião de fãs.
VELVET
O mesmo fenômeno aconteceu com a Velvet Underground. O nome da banda nova-iorquina ganhou reverberação após seu fim. E boa parte desse mérito
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deve-se à força de seu disco de estreia. Lançado em março de 1967, The Velvet Underground & Nico ia contra toda a vibe hippie daquele ano. Trazia, assim como The Doors, mesmo que esse grupo fosse da ensolarada Los Angeles, uma atmosfera soturna à música pop. Considerado um dos mais impactantes álbuns do rock, influenciou o surgimento de gêneros como punk, glam, gothic, noise, indie, lo-fi, atestando a frase de Brian Eno: “Apenas 30 mil pessoas compraram o disco de estreia do Velvet Underground na época, mas quem o fez certamente montou sua própria banda”. Inclusive o próprio Eno, com o Roxy Music. A variedade de temas e sons presente nos cerca de 49 minutos é um dos fatores responsáveis por essa interferência no futuro do rock. Em meio a bandas americanas como The Mamas and the Papas, Beach Boys, Grateful Dead, Jefferson Airplane e artistas como Simon & Garfunkel e Bob Dylan, The Velvet Underground & Nico parecia um disco saído de um outro lugar, Inglaterra possivelmente, ambiente que mais ousava no gênero, através de bandas como Rolling Stones, The Who e Beatles, que já tinha lançado Revolver e aberto as comportas da psicodelia com Tomorrow never knows. Essa pegada inglesa do disco do Velvet tinha a ver com a presença de John Cale. Nascido no País de Gales, era o único membro que frequentou escolas de música e que ambicionava escrever sinfonias. Ao final do curso de Composição Moderna em Massachusetts, ele viajou para Nova York, onde conheceu Lou Reed, que já tinha composto algumas das canções que fariam parte do primeiro LP do Velvet. “O que mais gostei em Lou é que nós dois não víamos o blues como uma religião e não queríamos ser virtuoses do instrumento e nem pretendíamos aprender cada riff de guitarra. Eu gostava, por exemplo, da guitarra de Chuck Berry, mas gostava muito mais de suas letras”, afirmou Cale. Uma das peculiaridades desse álbum é o vocal insolente de Lou Reed (evidente em I’m waiting for the man e Venus in furs) e o canto bizarro de Nico, modelo e atriz húngara que tinha feito uma ponta em A doce vida (1960), de Fellini, e foi imposta à
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banda por Andy Warhol, agente do grupo. Sua interpretação pesada, com acentuado sotaque, fica à beira da desafinação e de estragar composições como Femme fatale, I’ll be your mirror e All tomorrow’s parties, mas curiosamente sua voz acabou se tornando parte do diferencial do Velvet Underground. “O mais importante disco da história do rock”, ousou dizer, certa vez, o nada modesto Lou Reed, arrematando, “Pergunte para essa nova geração de onde eles tiram esse som.” Ele estava certo. A influência desse álbum e do VU pode ser percebida em diversas bandas e artistas, como David Bowie, Patti Smith, Television, Stooges, Roxy Music, Can, Neu!, Joy Division, Sonic Youth, The Jesus and Mary Chain, Strokes, Galaxie 500, Pavement, Pixies, Nirvana, Belle and Sebastian… The Velvet Underground & Nico exalava frescor e rebeldia. O diretor italiano Michelangelo Antonioni ouviu algumas dessas músicas, antes de serem lançadas no álbum, e tentou, sem sucesso, levar a banda para tocar no seu filme que capta o espírito da Swinging London, Blow Up (1966). No lugar do quarteto
Lançado em março de 1967, “Disco da Banana” influenciou o surgimento de subgêneros do rock e de diversos artistas nova-iorquino, tocou, na cena da boate, a inglesa Yardbirds, que, na época, tinha como guitarristas Jimmy Page (antes de formar o Led Zeppelin) e Jeff Beck (substituto de Eric Clapton). O début do VU só não teve mais reverberação devido a questões externas à música, como, por exemplo, um imbróglio provocado pela contracapa. Enquanto a icônica capa, assinada por Andy Warhol, chamava a atenção por sua originalidade, o outro lado trazia uma foto da banda tocando, com o filme Chelsea girls projetado ao fundo. O ator Eric Emerson, que tinha sido preso por posse ilegal de ácido, moveu uma ação contra a gravadora por uso indevido da imagem, provavelmente para receber dinheiro para pagar seu
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próprio processo judicial. Em meio ao impasse, o disco sofreu uma má distribuição. Após a venda da primeira prensagem, não foi feita imediatamente outra tiragem. Quando o LP voltou a ser comercializado, já estava na praça, desde 1o de junho, um concorrente de peso, Sgt. Pepper`s Lonely Hearts Club Band, o “melhor disco de rock da história”. Enquanto o Sgt. Pepper’s, mais famoso exemplo de “álbum-conceito” (algo difícil de ser explorado hoje, na época das playlists), era o resultado de uma superprodução oriunda do topo da cadeia da música pop, que transmitia aos ouvintes a sensação de ter sido gerado num Olimpo inatingível aos pobres mortais, o “disco da banana” era um produto saído da guerrilha do gueto do rock e a prova de que o gênero era uma poderosa forma de expressão acessível a qualquer um que conseguisse juntar três ou quatro acordes. Ao mesmo tempo em que o Velvet Underground tentava divulgar o disco nos light shows (uma mistura de performance musical com projeção de imagens que se tornaria uma marca dos espetáculos no futuro, como os do Pink Floyd), promovidos por Andy Warhol, que abandonaria a banda após o fracasso comercial do LP de estreia, um jovem de 24 anos, exguitarrista de Little Richard, finalizava seu primeiro álbum, o estrondoso e visionário Are you experienced?
HENDRIX
Ao lado de dois competentes músicos ingleses, o baixista Noel Redding e o baterista Mitch Mitchell, o norteamericano de Seattle, Jimi Hendrix, fez uma das estreias mais surpreendentes da música, trazendo ao rock diversas inovações, como usar na gravação a manipulação da distorção, da microfonia e dos amplificadores. “Esse disco alterou a sintaxe da música de uma maneira, que eu comparo a, digamos, Ulysses de James Joyce”, disse o crítico e pesquisador norte-americano Rueben Jackson. Além de despontar como verdadeiro deus da guitarra, ultrapassando Eric Clapton, Pete Towshend, Jimmy Page e Jeff Beck, Jimi Hendrix ainda se mostrava como um talentoso e diversificado compositor, com abrangente influência que ia do rock ao
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2 VELVET UNDERGROUND Estilo da banda nova-iorquina destoou da vibe hippie da época
5 “DISCO DA BANANA” Teve má distribuição e sofreu concorrência do Sgt. Pepper’s
SYD BARRETT 3 Compôs 10 das 11 faixas do primeiro disco do Pink Floyd
6 ARE YOU EXPERIENCED? Jimi Hendrix fez estreia surpreendente e visionária
4 THE DOORS Álbum apresenta as primeiras composições do quarteto
THE PIPER AT THE GATES OF DAWN 7 Disco de estreia marca fase psicodélica da banda inglesa
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do blues, passando pelo soul e free jazz (presente no estilo da bateria de Mitch Mitchell), distribuída em músicas como Foxy lady, Manic depression, Purple haze, Red house, Remember, The wind cries Mary. Em plena década de 1960, quando o gênero de origem negra estava sendo protagonizado por artistas brancos, Hendrix, com esse álbum, trouxe o negro de volta ao rock, potencializou o iniciante hard rock e se tornou, com suas letras provocantes, como Foxy lady, e seu jeito sexy de tocar guitarra, o primeiro negro a exibir e esbanjar sensualidade na música, como uma espécie de Elvis dos músicos – herança que Prince e Lenny Kravitz quiseram tomar para si. Um mês depois do lançamento de Are you experienced?, Jimi Hendrix subiria ao palco do Monterey Pop Festival, primeiro festival de música pop da história. A inclusão do guitarrista na programação aconteceu por insistência de um dos curadores do evento, Paul McCartney. O beatle e seus companheiros de banda tinha ido ao show de encerramento da turnê do trio Jimi Hendrix Experience na Inglaterra, que aconteceu em 4 de junho de 1967, no
Teatro Saville, em Londres. Poucas horas antes da apresentação, McCartney deu a Hendrix uma cópia do Sgt. Pepper’s (lançado havia três dias). Ali mesmo, o virtuoso guitarrista contou ao seu baterista e baixista que queria abrir o show com a música título do álbum. Sim, sem ter ensaiado. Os Beatles, que estavam no camarote, ficaram chocados. Após sua incendiária performance, em 18 de junho, no último dos três dias do Monterey Pop Festival, Hendrix, único roqueiro negro de todo aquele line-up, tornou-se uma estrela e uma lenda, cuja brilhante trajetória foi interrompida precocemente em 18 de setembro de 1970.
PINK FLOYD
Em agosto de 1967, três meses após o lançamento de Are you experienced?, a Inglaterra, responsável por gerar bandas como os Beatles, Rolling Stones, The Who, apresentava ao mundo seu mais novo segredo, o Pink Floyd. Mergulhando fundo na psicodelia presente no Sgt. Pepper’s e nas estreias fonográficas do Doors e de Hendrix, o grupo inglês lançou The piper at the gates
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of dawn. Psicodélico e experimental, foi também uma das melhores estreias de bandas, traduzia em fonogramas a cena alternativa do rock londrino. Assim como Are you experienced? era a demonstração da genialidade de Jimi Hendrix, o début do Pink Floyd é o atestado de prodígio de Syd Barrett, autor de 10 das 11 faixas, com letras surrealistas sobre camadas de art rock de melodias sublimes e etéreas. Gravado no Abbey Road Studios, teve como produtor Norman Smith, um nome desconhecido na produção, mas que foi engenheiro de som dos discos da primeira fase dos Beatles, With the Beatles, Please, please me, Beatles for sale, A hard day’s night, Help! e Rubber soul. Ou seja, foi o braço direito do produtor George Martin até a chegada de Geoff Emerick, engenheiro de som do quarteto a partir de Revolver, e que ganhou um Grammy pela maestria em Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. The Piper, que hoje rivaliza com Dark side of the moon (1973) a posição de melhor álbum do Pink Floyd, foi paralelamente o despertar e o crepúsculo de um gênio de apenas 20 anos. David Bowie diria, mais tarde, que a forma de Syd Barrett
INDICAÇÕES FOTOS: DIVULGAÇÃO
R&B
JAZZ
Republic
Independente
THE WEEKND Starboy
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cantar, com desavergonhado sotaque inglês, o influenciou. Seguidoras do rock e blues norte-americano e com receio de não conseguirem penetrar naquele mercado, as bandas britânicas da época costumavam disfarçar suas origens. Algumas das músicas de The Piper, como Astronomy domine e Insterestellar overdrive, também seriam responsáveis pela invenção do “rock espacial”, do qual Bowie se tornou maior representante com Starman e Space Oddity, que, lançada em 1969, foi utilizada pela BBC durante a transmissão da chegada do homem à Lua. Assim como a narrativa do filme Psicose (1960) transfere abruptamente o protagonismo da secretária fugitiva Marion Crane para o jovem Norman Bates, o Pink Floyd também. Depois do LP de estreia, Syd felizmente não morreu vítima do vício como Hendrix e Jim Morrison, mas enveredou em suas viagens alucinógenas e nunca mais voltou delas. Enlouqueceu e faleceu no ostracismo, aos 60 anos, em decorrência da diabetes, em 2006. Apenas quatro meses após o lançamento de The Piper, o baixista Roger Waters
AMARO FREITAS Sangue negro
No Grammy deste ano, The Weeknd se apresentou, mesmo que não estivesse concorrendo em nenhuma categoria. Seu mais novo disco, Starboy, não foi lançado a tempo de competir na premiação. No entanto, já é forte concorrente à edição de 2018. Nesse álbum, o cantor canadense de R&B e pop dá um mergulho no hip hop, a exemplo da faixa-título, e na disco music, com I feel it coming. Compostas em parceria com o Daft Punk, são duas das melhores músicas do álbum e de 2016.
Em sua sofisticada estreia em disco, o pianista pernambucano mostra as possibilidades em torno da mistura entre a música erudita, o jazz e a tradição. Em seis faixas de sua autoria, Amaro Freitas, além de demostrar sua habilidade como instrumentista, exibe seu talento como compositor. Das composições aos arranjos, o músico, acompanhado de Jean Elton (baixo acústico), Hugo Medeiros (bateria), Fabinho Costa (trumpete) e Elíudo Souza (sax), construiu um álbum memorável.
ROCK
POP
8 JIMI HENDRIX Estreia em LP exibia sua genialidade como compositor, músico e arranjador
substituiu Syd pelo exímio e centrado guitarrista David Gilmour e a banda deu uma guinada para o rock progressivo. De sensação do underground inglês, o grupo tornou-se pioneiro nos gigantescos espetáculos de arena. Em 1975, o Pink Floyd fez uma homenagem a Syd na faixa-título do disco Wish you were here e na música Shine on you crazy diamond. A abertura das portas da percepção, em 1967, somada ao despertar da liberdade comportamental e cultural, refletiu na música, dando passagem a centenas de bandas e artistas e de lançamentos de discos. Dezenas delas se desfizeram, muitos morreram, diversos desses álbuns se perderam no esquecimento. No entanto, as estreias fonográficas do Pink Floyd, Velvet Underground, Doors e Jimi Hendrix foram algumas das mais duradouras marcas do esplendor da revolução de uma era, permanecem hoje tão à frente do seu tempo como há 50 anos.
RYAN ADAMS Prisioner Blue Note
Aficionado por covers, Ryan Adams lançou, em 2015, um disco inteiro dando a sua versão (melhorada) de 1989, de Taylor Swift. Agora, o músico e compositor lança um álbum de inéditas inspiradas em hits radiofônicos dos anos 1980: do hair metal Do you still love me? ao folk pop de To be without you. Há influências específicas de Bruce Springsteen em canções como Doomsday, Shiver and shake e Outbound train. Um belo disco de coração partido munido de ironia.
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MARCELO YUKA Canções para depois do ódio Sony
Mais de 10 anos depois de seu último disco, com o projeto F.U.R.T.O, Marcelo Yuka volta a lançar músicas novas. Com influência dos batuques africanos, da batida funk e repleto de sintetizadores, o álbum marca o retorno do compositor mais contundente da geração dos anos 1990, autor de O que sobrou do céu, Minha alma, Pescador de ilusões. Diante de um mundo que parece desmoronar, é bom saber que Yuka está de volta, inspirado, criativo e sempre do lado certo.
ARTE SOBRE FOTOS DE DIVULGAÇÃO
Palco GERALD THOMAS Dramaturgo se reconta em autobiografia
Em Entre duas fileiras, o polêmico personagem da cena teatral faz um relato de sua vida pessoal, sua carreira e alinhava impressões acerca do mundo artístico TEXTO Pedro Vilela
Um cidadão desterritorializado
escreve. ELES, os alemães. ELES, os ingleses. ELES, os brasileiros. ELES, os americanos. Nunca NÓS. Afinal, o tempo lhe “provou que é tolo criar raízes em um país, cidade ou comunidade. Todo mundo está melhor, se todo mundo está melhor”. O cidadão do mundo pode ser encontrado na Alemanha, na Suíça,
no Brasil ou em Nova York. Pode ser encontrado também em um espetáculo de teatro, uma ópera, uma ilustração, um livro ou em qualquer outro lugar onde houver pulsação de arte. Amado por muitos e destratado por vários, um pouco do cidadão Gerald Thomas pode ser encontrado na autobiografia Entre duas fileiras, publicada
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pela Editora Record no final de 2016. Intenso como sua própria vida, não poupa assuntos em sua escrita e, com extrema habilidade literária, nos conduz ao longo de mais 350 páginas pelos encontros e desencontros de um dos artistas mais polêmicos de sua geração. Escrito em inglês e traduzido posteriormente para o português, sua obsessão por comunicação é tamanha, que a nota inicial da edição nos aponta a possibilidade de Thomas ter escrito este livro duas vezes – em inglês e em português – e revisto pelo menos cinco. Não à toa, o categorizado como hipocondríaco e bipolar se autodefine como pentapolar. Não esperemos uma autobiografia cronológica. Ao se definir em cima de um palco, o autor executa o exercício imaginário de conversa com os leitores e com um assistente de nome Michael. Para isso, utiliza diferentes recursos linguísticos, que vão desde a recorrência de frases análogas (digamos que tudo começou) à constante solicitação de seu assistente, além de interlocuções questionadoras quanto à presença do leitor. Se o início do livro é marcado claramente por uma narrativa ficcional, os episódios posteriores trazem os leitores mais próximos da “vida” de Gerald, de suas realizações, andanças e, principalmente, obsessões. O próprio autor relata em seu livro a busca pela escrita como pensamento. “Penso do modo como falo, logo, existo”. E essa existência é marcada pela espera de “que os ecos de (sua) risada possam ser ouvidos por alguém, qualquer um, perto ou longe, que compreenda sua dor e a dor de viver, a dor de estar vivo e a frustração de não ser capaz de solucionar a insolúvel doença chamada humanidade e seu sangue pútrido”. Talvez nisso resida a principal característica de seu livro. O transbordamento de sentimentos e afetos que nutriu pelas pessoas que passaram em sua vida, como Ellen Stewarte, sua La MaMa, e Fernanda Montenegro, sua ex-sogra. Suas marcas e cicatrizes são revisitadas, sem o receio de fazê-las sangrar novamente. Uma espécie de testamento, ora de um menino judeu que se via obrigado a estar sempre em estado de alerta para fugas,
IMAGENS: REPRODUÇÃO
Palco 1
1 ENCONTRO Samuel Beckett e Gerald Thomas, em Paris, 1984 MATTOGROSSO 2 Em 1989, o diretor estreia a ópera coassinada por ele e o músico Philip Glass QUARTETT 3 Thomas montou pela segunda vez a peça de Heiner Müller, em 1996, tendo, desta vez, Ney Latorraca como protagonista 2
ora de um artista que ressignificou sua vida e seu estar no mundo ao se deparar com obras de Rembrandt e de Picasso. Ao afirmar que biografias e autobiografias são formas lentas de morrer, Thomas nos oferece uma dose concentrada de vida. Como bom contador de histórias, deixa-nos o desejo de sê-lo, mesmo que por alguns instantes, ou de fazer parte de sua conspiração global, sua organização secreta, que se estende por todos os continentes, a qual denomina “E, mortos, caminhamos”, enquanto outros a chamam de “teatro”. Poucos artistas tiveram uma relação tão ferrenha com a crítica especializada. Provavelmente, boa parte dessa o acusará, mais uma vez, de praticar seus devaneios, uma mera narrativa fictícia. Esses limites, entretanto, ele mesmo adianta pouco se importar, afinal, “uma biografia é, em virtude de seu conteúdo literário, ficção. Não estou dizendo que
este não seja o melhor relato possível de minha vida – e de minhas referências. Não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo é que, ao confiá-lo a vocês, minha plateia, ele se torna puramente ficcional”, escreve.
DISSECANDO THOMAS
Nesta era biográfica, na qual o interesse pela vida de pessoas famosas cresce enormemente, a autobiografia surge como um exercício narrativo pessoal. Para isso, pode ser escrita de próprio punho ou utilizar-se de um ghostwriter (escritor fantasma), que desaparece sob a assinatura de outrem, utilizando diferentes discursos narrativos, tais como diários, memórias e entrevistas. Um primeiro exercício autobiográfico de Gerald Thomas foi publicado em 2012, organizado pelo ator Edi Botelho, com o qual o dramaturgo trabalhou longo tempo na Companhia Ópera Seca. Com o título Gerald Thomas: cidadão do
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mundo e editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (coleção Aplauso), o livro esteve poucos meses disponível, tendo sido recolhido por um processo judicial aberto por outro ator da mesma companhia, tornando os poucos exemplares que sobraram no mercado artigo de colecionadores e admiradores do biografado. Diferentemente do livro assinado por Thomas, no de Botelho há o aprofundamento vigoroso nos processos mental e criativo do perfilado, trazendo um relato do seu universo cênico, ressaltando os seus valores e não poupando duras críticas aos seus fracassos. Também em comparação com o Entre duas fileiras, em Gerald Thomas: cidadão do mundo percebe-se o olhar superficial dedicado à Companhia Ópera Seca, na qual Thomas e Botelho atuaram em espetáculos como Quatro vezes Beckett, Quartett, Carmem com filtro e Eletra ComCreta, e com a qual o diretor demarcou o seu nome no teatro contemporâneo brasileiro. Apesar de isso não ser explicitado, é possível que essa evasiva esteja ligada ao receio de enfrentamento dos mesmos problemas jurídicos do livro de Botelho. Em entrevista ao programa Roda Vida, da TV Cultura, quando questionado sobre esse assunto, o dramaturgo afirmou: “A Ópera Seca, para quem é brasileiro e me acompanha, pode ser muito importante. Mas será que ela foi importante para mim? Foi um período muito pequeno na minha vida”, desviando do assunto. Essa ausência, entretanto, não chega a se tornar uma lacuna na compreensão do artista, pela disponibilidade de outras obras que dissecam as questões estéticas e poéticas do diretor, caso de Um encenador de si mesmo: Gerald Thomas, que reúne artigos de diferentes autores, organizados por Jacob Ginsburg e Silvia Fernandes. A pesquisadora Silvia Fernandes, inclusive, dedicou mais tempo à obra de Gerald Thomas, na publicação intitulada Memória e invenção: Gerald Thomas em cena, na qual realiza levantamento de suas peças e obras, por meio de críticas, entrevistas e textos de programas, comparando os procedimentos empregados aos de outros importantes criadores como Richard Wagner, Bertolt Brecht e Bob Wilson.
EVELSON DE FREITAS/FOLHAPRESS
PERSONA PÚBLICA
Em Entre duas fileiras, Gerald Thomas não foge da recorrente polêmica sobre biografias não autorizadas, que teve enorme repercussão nacional no livro Roberto Carlos em detalhes, de Paulo César Araújo, que saiu de circulação por ordem judicial em 2007. Para ele, “o artista é uma persona PÚBLICA, um SER que pertence ao público, e esse pertencimento é uma premissa básica! Assim, a própria noção de manter uma vida ‘privada’ é, em si mesma, absurda”. Se, por um lado, afirma que Hélio Oiticica, Gilberto Gil e Caetano Veloso são as pessoas que fazem a arte acontecer pela ótica de “pensar a arte”, sendo Caetano o homem mais inteligente que conheceu (com uma “visão maravilhosamente clara do que está in e do que está out”), por outro, tece críticas ao mesmo Caetano que, junto a Chico Buarque (“os guerreiros da liberdade nos últimos 40 anos”), agiu como censor de biografias. Destila ironia, ao apontar para a grave questão educacional do país: “pouco tempo atrás, o Brasil se encontrava no meio de uma grande discussão sobre biografias – o que, em si, é engraçado, dado que 40% do país é iletrado e os que leem mal conseguem lidar com livros reais. O máximo que fazem é postar fotografias de pizza no Facebook”. Entretanto, abre parênteses para o episódio público no qual exigiu a Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, que retirasse do mercado a primeira edição do livro Ela é carioca, de Ruy Castro, em que, no primeiro capítulo, sua avó era citada como possível amante de nazistas. Apesar de não ter processado a editora, teria o próprio Gerald caído na armadilha da censura? Replica-se então o questionamento do autor no mesmo capítulo: “Imaginem isso! Censurar o que as pessoas pensam e dirão em um livro que NINGUÉM JAMAIS LERÁ! Por quê?” “Eu sempre estava lá quando a merda batia no elevador.” Duplicada como título em dois capítulos, essa afirmação bem poderia resumir a vida andarilha de Thomas. Woodstock, 11 de Setembro, Martin Luther King no Tennessse, 7 de julho de 2005 em Londres, renúncia de Nixon, golpe militar de 1964: ele esteve presente.
Trocou cartas com Beckett, conviveu com Oiticica, além de ter sido o primeiro judeu a encenar Wagner na Alemanha Oriental Motorista de veículo de emergência, trabalhou na Anistia Internacional, como ilustrador do jornal The New York Times, baterista da Mangueira, além de voluntário no 11 de Setembro, que afirma ser a maior tragédia que sua geração vivenciou. Gerald Thomas foi tudo isso e muito mais. Surgiu para o mundo ao dirigir o lendário ator Julian Beck, magoou muita gente, especialmente mulheres. Trocou cartas com Beckett, conviveu com Oiticica, além de ter sido o
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primeiro judeu a encenar Richard Wagner na Alemanha Oriental, com skinheads na porta do Teatro Nacional de Weimar ameaçando matá-lo. Gerald fez tudo isso e muito mais. Estuprado aos 12 anos, garoto de programa aos 15, aderiu à macrobiótica. Amigo de Phillip Glass, inimigo de tantos outros, encontrou no vício uma maneira de lidar com o mundo, por não conseguir “SUPORTAR a imensa dor da vida, a dor de viver”. Entre duas fileiras é forte e prazeroso de ser lido. Parafraseando o autor, é um vasculhar sobre alma, notas e sentimentos de remotos traços esquecidos, falecidos, distantes. Se tudo é verdade? O próprio Thomas responde: “Como artista, não devo NADA À VERDADE. Meu pacto é com minhas próprias fantasias ou minha própria versão dos eventos. Esse é o MEU pacto”.
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
ADEUS, GUITA CHARIFKER! Abandonei a sala antes de projetarem as imagens de cachoeiras, vales, lagos, despenhadeiros e campos floridos, com frases sobre o bem e a eternidade. O mesmo repertório de outras despedidas, a música new age e as pétalas de rosas caindo do alto, enquanto o ataúde era engolido para dentro de um espaço obscuro. Imaginei a morta sentada numa poltrona na primeira fila do velório, olhando a cena com humor cáustico e reclamando. – Por que não escolheram uma canção de Chico Buarque? Melhor se mostrassem minhas aquarelas, ao invés dessas paisagens! Guita Charifker morreu. Antes que ela virasse sonho eterno, já havia largado a pintura há mais de dez anos e, lentamente, como crepúsculo boreal, a paixão pela vida. Fiel à sua rebeldia exigiu ser cremada, contrariando as leis do povo judeu. – Espalhem as cinzas no jardim de minha casa. A casa do Amparo, em Olinda, que ela comprou e restaurou com
a venda de desenhos e aquarelas. Ampla, alta, caiada de branco, dando para o quintal e os jardins, que haviam sido um horto botânico, há muitos anos. As portas e janelas se abriam para o mundo, acolhedoras às ideias arejadas e às pessoas amigas. Guita e a casa viraram uma mesma entidade generosa e desapegada. – Entre, fique pro almoço. Joaninha fez um doce de banana com frutas do quintal. (Joaninha, a servidora fiel, partiu um mês antes. Foi abrir a porta do céu e arrumá-lo.) Guita fala por nada uma de suas frases habituais: – É muita coisa acontecendo. Muita, nos papéis espalhados sobre a mesa de trabalho e com os pincéis trazidos do Japão por alguém. – Nem lembro quem trouxe, ando esquecida. Envelhecer é péssimo. Acende um cigarro. – Dizem que faz mal. Eu, hein? Uma coisa tão pequena fazer mal! E logo em seguida: – Só quero viver enquanto trabalhar. É chato depender dos outros.
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Mostrava os pés de jasmim floridos. No fundo do quintal, o cajazeiro secular tombou. Queixavase das freiras de Santa Gertrudes. Não sei o que elas fizeram, mas eram as culpadas, eu concordava. – O pior é o calor. Sou judia de Olinda, a reencarnação de Branca Dias. Dizem que ela jogou as jóias no rio do Prata. Minha avó perdia tudo o que usava. Um dia, eu saí pro carnaval, e quando voltei pra casa estava sem o anel de brilhante. Não sei quem arrancou do meu dedo. Um presente do sogro joalheiro. – Seu Samuel me deu muitas joias. Empenhei todas na Caixa do Rio de Janeiro e nunca fui buscar. Eu, hein? Não me acostumo ao calor. Minha família veio da Ucrânia, lá faz bastante frio. O pai e a mãe chegaram da Europa Central, no porto do Recife, em 1915, fugindo aos pogroms, aos campos de concentração, ao holocausto. Guita nunca tinha certeza do local exato de origem. A geografia na Europa se redesenhou em sucessivas guerras, revoluções e anexações de territórios.
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Rosa e Salomão Greiber parecem pequenos, numa foto com Guita e o filho mais novo. Há tanta beleza e harmonia no retrato, dói saber que os dois morreram cedo, vítimas de tuberculose. O neto lê um necrológio em que lembra o ecumenismo da avó. Ela se declarava uma judia filha de Oxum, devota de Santa Clara, simpatizante de religiões orientais. – Que sua recusa a qualquer tipo de intolerância sirva de exemplo, proclama. – Amém. Às nossas costas, fecham as portas corrediças e ficamos trancados no cubículo. Vai ter início a solenidade de cremação. Revejo fotos de corpos amontoados em carroças, levados aos crematórios. Não consigo não pensar nessas coisas. Lacan fala em deslizamentos do inconsciente. As
Fujo da sala claustrofóbica. Lá fora, a tarde se põe linda, alegre como as aquarelas de Guita. Viva a vida! Sempre portas fechadas e o crematório me provocam avalanches de lembranças. Fujo da sala claustrofóbica. Lá fora, a tarde se põe linda, alegre como as aquarelas de Guita. Viva a vida! Sempre. Ela diria bebendo o uísque, fumando um cigarro, abrindo a mapoteca onde guardava os trabalhos que escapavam às vendas e aos presentes. – Escolha uma gravura para Avelina. – Não, Guita. – Eu quero dar.
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Nas paredes da casa, desenhos minuciosos a bico de pena, figuras antropomórficas, que o tempo e a umidade de Olinda escureciam. – Você é desleixada, Guita. Não basta ser pintora, é preciso zelo, catalogar o que faz. Com quem está o que saiu da mapoteca? Quem anota o destino do que você pinta? – Não nasci com vocação para burocrata. Sou uma artista. Que pintou no México; em Santa Tereza e na Urca, quando morou no Rio de Janeiro; em Taiba, no Ceará; na ilha de Fernando de Noronha; séries exuberantes no Sítio Santa Clara, em Paulo de Frontin; muito em Olinda. E, bem mais tarde, na paisagem agreste de Chã Grande. – Gosto desse ocre das novas aquarelas. Ela finge indiferença ao meu comentário. Respiramos as flores do jardim úmido. Há entre nós uma nostalgia lamuriosa. Conto pedrinhas recolhidas no quintal e nas viagens, arrumadas meticulosamente num batente do terraço. Uma ordem obsessiva. A mesa de trabalho se entulha de caixas vazias de chocolate, queijo, biscoitos... Parecem obedecer a um projeto. O mesmo do caixão de pinho, onde gravaram a estrela de Davi, as inicias do nome, e o corpo descansa por último, lacrado, sem chance de ser visto novamente. Um costume judaico que aprecio. – Já vou, grita a velha empregada Joana, no andar de cima. – Até amanhã, responde Guita. Os sabiás bebem água, escuto a porta bater, aceito um cigarro. Talvez seja o momento de ir embora. Contemplo a mulher com olhos sombreados de azul e batom rosa claro nos lábios. Já não sei que tempo é esse, se ontem, hoje ou amanhã. Distraí-me. Ela fala que não tem vocação para o casamento e que não há mistério em pintar aquarelas, basta água, tinta e paciência. Sorrio e me pergunto quantas vezes escutei isso. Abraço a artista admirável, sinto a força de nossa amizade. Lembro versos do poeta Assis Lima: “Cabe-nos o presente, que, por sinal, já passou.” Despeço-me. – Adeus, Guita, até quinta-feira.
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Leitura 1
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POESIA A palavra-grito de Ernesto Dabo
Depois de ter perdido quase todo seu acervo na guerra civil deflagrada na Guiné-Bissau, poeta decide-se pela autoedição, para aplacar os escombros TEXTO Erika Muniz
Faces e dentes/ dizem melhor do acantonamento das almas/ Viagem a pingar última gota/ Da ponta da ponte/ atiram-se abraços cruzados e abertos/ Do mar à terra/ ampla luz de amor e saudades/ Reencontro com a filha bela da mãe natura/ minha Ilha-mãe/ BOLAMA Ernesto Dabo, no poema Ilha-mãe
No poema que abre Mar misto (2011), primeiro livro publicado do poeta guineense Ernesto Dabo, ele faz referência à sua terra natal, seu lugar de pertença, como sendo uma mãe. No caso dele, mais uma, já que se diz sortudo e agradecido por ter tido cinco mães que lhe deram à luz ,“cada uma a seu tempo e a seu modo”, como escreve na dedicatória do livro. Além da mãe biológica Nna Ndjai, também lhe cederam o afeto maternal, ao longo da vida, outras quatro mulheres que atendem por Nna Garandi (Mamãe Garandi), Nna Cinho (Mamãe Cinho), Mamã Cármen Hernandez e Maria José, essas duas últimas quando viveu em Portugal, entre 1963 e 1974. Poeta, músico, ativista cultural, mestre em Direito Internacional, Ernesto Dabo é de Guiné-Bissau, mas vive pelo mundo. Ao longo do ano, faz diversas viagens a convite de amigos e admiradores de seu trabalho nos mais diversos países, entre apresentações artísticas e palestras. Em novembro de 2016, esteve no Brasil. Sempre que viaja, retorna à sua terra. Esse trânsito constante faz parte de sua vida desde muito cedo, como relata em entrevista ao programa de TV português Mar de Letras: “No fundo, talvez eu iria ser piloto porque, desde a minha infância, estou em franco movimento. Só para se ter uma ideia do percurso: saí de Bolama, viemos para Có, Bula, Bissau e CONTINENTE MARÇO 2017 | 85
Lisboa, em 1963. É mais ou menos um périplo desde muito novo. Talvez tudo isso tenha me ajudado a entender que não estamos sozinhos e nem devemos estar sozinhos. Tudo aconteceu num espaço de tempo muito curto”. Vindo de uma família numerosa, Ernesto reconhece a figura do seu pai como a de um visionário, por ter procurado garantir a alfabetização para todos os seus filhos, apesar do quadro colonial da época. “Em uma colônia que, em 1960, 99,7% da população estavam fora do sistema de ensino, haver alguém que entende que, contra essa corrente, ia formar todos os seus filhos minimamente e conseguiu fazer isso… Em sua casa não havia analfabetismo, e a primeira profissão entre os seus filhos foi a de professor de instrução primária. Para mim, isso foi uma atitude de visionário e um fato que motivou nós todos. Os livros e a leitura entraram assim também”, afirma o artista, de 67 anos, em entrevista à Continente. Revelam-se em suas memórias e produções artísticas fragmentos importantes da história de seu país. Uma de suas incursões mais marcantes foi a participação, ao lado de músicos como José Carlos Schwarz, Aliu Bari e Duko Castro Fernandes, no Cobiana Djazz. O grupo foi precursor em fazer música de expressão moderna na Guiné-Bissau do final dos anos 1960. Essa movimentação artística teve forte relevância do ponto de vista político, com relação ao fortalecimento da resistência guineense durante o processo de luta pela independência. Segundo o instrumentista Juca Delgado, o Cobiana teve o papel de mostrar nas rádios, pela primeira vez, a música feita no país naqueles anos de luta armada
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1 ESTREIA Apesar de escrever há tempos, Dabo só publicou o primeiro livro em 2011
Leitura e, por isso mesmo, um veículo muito importante para espalhar aos jovens, nos grandes centros urbanos, as mensagens do PAIGC (Partido Africano para Independência de Guiné e Cabo Verde). “Musicalmente, também foi muito importante, porque foi a primeira banda em que as músicas eram cantadas em crioulo; antes, entendia-se que não era uma língua musical”, relata Delgado. O PAIGC a que o músico se refere é um grupo fundado em 1956 pelo líder político Amílcar Cabral, responsável por iniciar a luta armada que culminou no fim do regime colonial implantado em Guiné-Bissau e Cabo Verde. “O meu país foi colônia por mais de quatro séculos. Na década de 1950 para 1960, organizou-se uma luta de libertação, a qual, infelizmente, fomos forçados a fazê-la de forma armada. Quando entendi que essa luta era para a minha liberdade, pela independência do meu país, me engajei nesse processo e acredito que está intrínseco à minha vida. Entendi que devo ter como fim criar, para que a minha sociedade melhore e avance. Isso implica que eu tenha que refletir em meus trabalhos e criações as minhas preocupações relativas à sociedade”, afirma o artista. Ademais, o Cobiana Djazz musicou poemas escritos em língua crioula, como Mindjeris di pano preto (Mulheres de pano preto), do poeta conterrâneo de Ernesto Dabo, Armando Salvaterra, tido até hoje “quase como um segundo hino”. Os versos originais dizem: “Mindjeris di panu pretu/ ka bo tchora pena/ Si kontra bo pudi/ ora ki un son di nos fidi/ bo ba ta rasa/ pa tisinu no kasa/ Pabia li ki no tchon/ no ta bai nan te/ bolta di mundu/ i rabu di pumba” (“Mulheres de pano preto/ não chorem mais/ Se puderem/ quando um de nós ficar ferido/ rezem/ para trazer-nos à nossa casa/ Porque aqui é nossa terra/ não importa aonde formos/ a volta do mundo/ é um rabo de pomba”). Através da representação simbólica, proveniente da linguagem literária, o poema trata da persistência, do sentimento de pertença e da busca pela libertação do povo guineense. Em 1973, Ernesto foi novamente pioneiro
1
na história da música, quando, com o Djorson, lançou o primeiro single da história da música do país.
LITERATURA
Como escritor, durante muito tempo Ernesto Dabo publicou seus textos em revistas, periódicos e, mais recentemente, em blogues. A primeira edição do livro Mar misto deu-se somente em 2011. “Eu sempre escrevi, mas no meu país não havia tantas editoras e, quando surgiram, não havia grandes apoios para os escritores editarem livros. Então, eu ia escrevendo e guardando, de vez em quando colaborava ou participava em antologias, mas sempre com esperança de um dia publicar os meus poemas, da maneira que quisesse. Em 1998, houve uma maldita guerra civil no meu país. Saquearam as casas, destruíram tudo. Depois da guerra, quando voltei para casa, revistando os papéis, encontrei algumas folhas com poemas. Se a memória não me falha, são poemas desde 1979”, conta. Foi a triste guerra civil que incitou a urgência para a publicação de uma versão impressa do seu livro. Mas, além
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disso, serviu de inquietação para que os destroços e dificuldades dos conflitos fossem retratados e transformados em linguagem poética, como nos versos impregnados de angústia de Cidade: “Flocos de chama letal/ partiam de canos aos céus/ Um par de olhos que não via o engodo de pão para se calar/ girava na face nascente/ faiscando temor/ envolto em pó e questão”. A linguagem literária, como uma das possíveis fontes de registro de uma sociedade, é feita a partir de interpretações e é fundamental para que os indivíduos (re)conheçam suas raízes. Perceber a obra como documento pode ser um caminho, sem negar seus valores estético-literários. De maneira complexa, política, história, sociologia, literatura e outros tantos campos coexistem e se amalgamam na criação. Os meses da guerra civil de 1998 também lhe tiraram grande parte de seus textos e documentos de pesquisa sobre a cultura do país. “Perdi todo o meu arquivo, coisas que eu tinha feito da cultura popular, entrevistas, um acervo de dezenas de anos. Com isso, pensei que, haja guerra ou não,
INDICAÇÕES tenho que publicar e não esperar mais. Peguei meus papéis todos e comecei a organizar, quando cheguei a um volume razoável de poemas, decidi que ia editar.” Das particularidades de Mar misto (2011), a que revela muito do pensamento de seu autor a respeito das questões linguísticas e, portanto, culturais, é a escolha por um livro bilíngue (em crioulo e português). Como faz questão de pontuar, não há razões para criar conflitos entre idiomas, porque isso já seria uma maneira de hierarquização. “São poemas em português e em crioulo porque eu uso as duas línguas. Não vou pô-las em competição. As duas me fazem falta, cada uma com preponderâncias em um aspecto. A minha língua, o crioulo, é o veículo principal, ‘o DNA da minha cultura’, parafraseando meu amigo Gilles Vigneault, pensador canadense”, explica o artista. Mesmo com a divisão, há versos em português na seção de poemas em crioulo e vice-versa, talvez pelo traço da oralidade em que essas fronteiras são enfraquecidas. “Assim como Dabo, Odete Semedo (poetisa, ex-ministra da Cultura da Guiné-Bissau e autora de No fundo do canto) e Tony Tcheka fizeram questão de escrever em suas línguas. A primeira língua é sua pátria, como disse Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa). Por outro lado, é preciso que a mensagem chegue também em outros idiomas, que, no caso dele, é o português. A mensagem é para ir pro mundo, porque a África fala para o mundo, duas línguas ampliam”, afirma Zuleide Duarte, professora de Literaturas Africanas da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) em entrevista à Continente.
A quantidade de poemas também foi definida pela preocupação do autor de que seus versos fossem realmente lidos pela população de seu país. “Não pus muitos poemas, porque tenho que ser realista, o hábito da leitura no meu país está a começar agora. Se você vai publicar livros com 200 ou 300 poemas, pouca gente vai ler. Um caderno de 30, 40 poemas deu resultado, porque as pessoas com menos tempo leram os meus poemas e o fato de ser um livro bilíngue também caiu muito bem”, explica Dabo. A obra do poeta, assim como a de Abdulai Sila, Odete Semedo, Felix Siga e Huco Monteiro, entre tantos outros escritores e artistas da Guiné-Bissau, é substancial para se conhecer a riqueza dessa diversidade étnica e linguística que há no país. Muito dos nossos saberes e heranças culturais vêm desse e de outros países africanos – inclusive dos que não falam língua portuguesa –, e a literatura é um dos alicerces para reconhecermos os outros e, assim, refletirmos sobre nós mesmos. “A África está cada vez mais senhora de si, como sociedade multiétnica e plural. Está se construindo uma base econômica mais fortalecida”, afirma Ernesto Dabo. Seu livro Mar misto é dessas leituras que despertam o leitor para o questionamento da perspectiva hegemônica na qual a história costuma ser contada e para as relações linguísticas. Conhecer as literaturas de cada um dos países africanos – além dos latino-americanos – é, sobretudo, nos familiarizar com as diferenças, pois como dizem estes versos de Dabo: “À tua porta há rosas./ Colhe uma e com ela muda o mundo”.
REVISTA
CIÊNCIAS SOCIAIS
Edição dos autores
Zahar
VÁRIOS AUTORES Acrobata
ZYGMUNT BAUMAN Estranhos à nossa porta
A cada seis meses, um quarteto de editores piauienses coloca na praça uma edição da Acrobata, que se concentra em literatura e artes visuais. São vários colaboradores de diferentes regiões do país, que enviam poemas, narrativas curtas, análises e críticas de obras em circulação. A cada edição, um artista é convidado para fazer toda a ilustração.
Falecido em janeiro deste ano, o sociólogo de origem polonesa foi um profícuo pensador das questões da modernidade e da pósmodernidade. Estranhos à nossa porta trata de assunto urgente: “o pavor provocado pelas migrações e o processo de desumanização dos recém-chegados”. Bauman defende que a atual política de separação é equivocada.
HISTÓRIA
DIREITO
CEHM
ZL Assessorias
GUSTAVO ARRUDA No tempo da Fratelli Vita A deliciosa história de um refrigerante recifense. Neste livro, sabemos o caminho percorrido pela família Vita e sua fábrica de bebidas gasosas, que iniciou na Rua da Imperatriz, em 1913, e agigantouse quando passou para a Rua da Soledade, agindo como propulsora da urbanização. Excelente título da Coleção Municipal, do Centro de Estudos de História Municipal.
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JÔ RAMOS A mulher e seus direitos Publicado em 2013 e, agora, em segunda edição, este livro tem como objetivo “popularizar leis, decretos e documentos que reafirmam os direitos das mulheres”, através da compilação do que vem sendo decidido neste âmbito no Brasil. Jô Ramos é jornalista com pósgraduação em Sociologia Urbana, autora também de Violência contra mulheres, dê um basta! (2012).
CON TI NEN TE
Criaturas
Gabriel García Márquez por Ernesto Priego
Gabo “chega” aos 90 anos. Parece natural que o colombiano Gabriel García Márquez não tenha morrido, embora sua despedida do corpo tenha acontecido em 2014. Afinal, a profusão de gentes criadas por ele forma ao seu redor camadas tão reais de vida, que alçam o escritor à imortalidade. O grande romance Cem anos de solidão expressa bem essa “presença” mágica. Nele, ficamos maravilhados com as peripécias de sete gerações da família Buendía.
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REFERÊNCIA EM TRANSPLANTES, MAIS DE 1.400 POR ANO.
26 UNIDADES DE ATENDIMENTO A BEBÊS COM MICROCEFALIA.
SÃO DOIS ANOS DE MUITO TRABALHO. E O MAIS IMPORTANTE: MUITAS VIDAS TRANSFORMADAS.
PRAIA SEM BARREIRAS, MAIS DE 5 MIL BENEFICIADOS.
PRESENÇA QUE FAZ A DIFERENÇA.
PROJETO MÃE CORUJA. MAIS DE 85 MIL MULHERES E CRIANÇAS ATENDIDAS.
www.revistacontinente.com.br
Revolução Republicana
# 195
A luta pioneira de bravos guerreiros
Espada usada pelo revolucionário Leão Coroado
#195 ano XVII • mar/17 • R$ 13,00
CONTINENTE
Pernambuco comemora os 200 anos da Revolução Republicana, deflagrada em 6 de março de 1817. Para celebrar a data, a Cepe lança a História da Revolução Pernambucana em 1817, de Muniz Tavares, com notas de Oliveira Lima. Um texto clássico sobre o movimento que primeiro defendeu a instauração de uma República no Brasil e narrou a luta dos bravos guerreiros pernambucanos contra o arbítrio.
ESPECIAL
1817 UM ANO PARA NÃO ESQUECER
MAR 17
O Bicentenário da Revolução deflagrada em Pernambuco contra a Coroa aponta novos olhares sobre um episódio fundamental para a ideia de nação brasileira
E MAIS
• VIAGEM A MOÇAMBIQUE • DESENHOS DE LAERTE • AUTOBIOGRAFIA DE GERALD THOMAS