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# 197
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#197 ano XVII • mai/17 • R$ 13,00
100 ANOS
CONTINENTE
REVOLUÇÃO
RUSSA
COM A DERRUBADA DOS CZARES, PROLETARIADO LIDERA O PAÍS E MUDA O CENÁRIO DAS ARTES
PARTEIRAS
AS MULHERES QUE MANTÊM, NO INTERIOR DO ESTADO, A TRADIÇÃO DO PARTO DOMICILIAR
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MAI 17
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E MAIS: MENOTE CORDEIRO | TEUDA BARA | FESTIVAL TREMA! | USINA DE ARTE
Quanto mais alternativas, mais mobilidade urbana.
Um corredor de ciclovias que vai do Marco Zero do Recife até o Sítio Histórico de Igarassu, passando por Olinda,
Igarassu Etapa 5 | BR-101
Etapa 4 | PE-15
BR-101 > Igarassu
10,5km
Ciclovia da PE-15 > BR-101 10,3km
Paulista e Abreu e Lima. O Eixo Cicloviário Camilo Simões é uma obra do Programa Pedala PE que abre novos caminhos para a mobilidade urbana. A primeira das cinco etapas do projeto já foi inaugurada. Quando todo o Eixo estiver concluído, serão mais de 30km de ciclovias,
Etapa 3 | Conexão PE-15 Varadouro > Ciclovia da PE-15 Etapa 2 | Olinda
Centro de Convenções > Varadouro
5km 2,9km
facilitando a vida de quem usa bicicleta para estudar, trabalhar, praticar esporte ou para o lazer. É mais uma
Etapa 1 | Recife
Marco Zero > Fábrica Tacaruna
5,1km
alternativa de transporte para os ciclistas de Pernambuco.
Recife
MOTORISTA, REDUZA A VELOCIDADE AO PASSAR PELO CICLISTA.
Igarassu Etapa 5 | BR-101
Etapa 4 | PE-15
BR-101 > Igarassu
Ciclovia da PE-15 > BR-101 10,3km
Etapa 3 | Conexão PE-15 Varadouro > Ciclovia da PE-15 Etapa 2 | Olinda Etapa 1 | Recife
10,5km
Centro de Convenções > Varadouro Marco Zero > Fábrica Tacaruna
5km 2,9km 5,1km
Recife
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PROGRAMAÇÃO
maio e junho
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2017
Em maio e junho a programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco) reúne músicos das mais diferentes tendências e países.
HUGO LINNS E IVES GUET 06/05 • SÁBADO • 17h
AMARO FREITAS 13/05 • SÁBADO • 17h
NOISE VIOLA 20/05 • SÁBADO • 17h
SERTÃO JAZZ 27/05 • SÁBADO • 17h
ALMÉRIO 03/06 • SÁBADO • 17h
WASSAB 10/06 • SÁBADO • 17h
HELIO FLANDERS 17/06 • SÁBADO • 14h ENTRADA FRANCA
COCO DE TORÓ PANDEIRO DO MESTRE 24/06 • SÁBADO • 17h PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
APOIO
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h às 17h Sáb e dom 14h às 17h
REALIZAÇÃO
SECRETARIA DE CULTURA
MINISTÉRIO DA CULTURA
MAIO 2017
ALEXANDER DEINEKA/REPRODUÇÃO
aos leitores Há 100 anos, insurgia-se uma revolução na Rússia que levaria ao fim o regime czarista, com a deposição e fuzilamento do czar e sua família, e a chegada ao poder dos bolcheviques, liderados por Vladimir Ilyitch Ulianov, o Lênin, em outubro de 1917. Não demorou para o país ser rebatizado de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS e se tornar protagonista nas disputas mundiais. Para os revolucionários, esse era apenas o primeiro passo no processo que levaria o bolchevismo a todo o mundo. Os fatos mostram que essas expectativas não se confirmaram. Mas é inegável o papel central da Revolução de Outubro nos acontecimentos que se seguiram (Guerra Fria, Revolução Cubana, Guerra da Coreia…). Essa forte influência ultrapassou as barreiras da política e reverberou nas artes. Maiakóvski, Malevitch, Stravinski, Stanislavski e Eisenstein são alguns dos artistas cujas obras refletem esse contexto. A arte russa foi marcada pela revolução – seja pela adesão ou negação – e este é o ponto de partida da nossa capa. Como coloca Fábio Andrade, em seu artigo, a despeito do fracasso das grandes
revoluções, o homem contemporâneo segue precisando delas, mas, agora, num contexto de micropolíticas. “Com o desgaste das grandes utopias, das promessas de um futuro de justiça social amplo e definitivo, encaramos a dura tarefa de pensar a mudança ao alcance da mão, perto de casa, na relação com o vizinho, com nossos filhos, nossos amantes. Uma revolução diária que parece ser o tom da literatura”, escreve. Além da discussão desse tema instigante, trazemos para nossas páginas a tradição das parteiras, cujo dia internacional é celebrado em 5 de maio. Viajamos por algumas regiões de Pernambuco e conversamos com mulheres que ajudam outras a trazerem seus filhos ao mundo através de um conhecimento ancestral, carregado de afeto, espiritualidade e rituais. Nesse olhar para o interior fomos também até a Usina Santa Terezinha, situada no município de Água Preta, na Mata Sul do estado, onde teve início, em 2015, o projeto Usina de Arte, que se propõe a mudar a paisagem dessa região, tomada pela canade-açúcar, através de residências artísticas, oficinas e incentivo à economia criativa.
sumário Portfólio
Menote Cordeiro
6 Colaboradores +
7 Cartas
Continente Online + Expediente
66 Entremez
Ronaldo Correia de Brito No trânsito
68 Leitura
Gênero Autoras de literatura fantástica investem na realização e distribuição independentes
8 Entrevista
Teuda Bara Aos 75 anos, atriz mineira, uma das fundadoras do Grupo Galpão, fala de sua trajetória artística
18 Balaio
Dalva de Oliveira Há 100 anos, nascia a intérprete que se destacou na era de ouro do bolero e do samba-canção
86
Temas caros à tradição pictórica, como a espiritualidade e a natureza, são revisitados pelo artista mineiro em técnicas de desenho e impressão digitais
12
Matéria Corrida José Cláudio O Diário de Francisco Brennand
88 Criaturas
Edward Hopper Por Alex Dantas
51 Palco
Transexuais Espetáculos recentes levam ao palco histórias que salientam a realidade da transfobia no Brasil
62 Sonoras
A Casa Discos Gravadora carioca investe no nicho da música erudita contemporânea
Cardápio Memórias
Alguns pratos e receitas, com seus cheiros particulares, são capazes de resgatar sensações agradáveis, levar-nos de volta à infância e remeter às nossas origens
58 CAPA FOTO Arte sobre reprodução de cartaz do construtivismo russo
CONTINENTE MAIO 2017 | 4
Capa
Tradição
Há 100 anos, os bolcheviques deram fim ao czarismo, instaurando o socialismo, regime que teve vasta influência na produção artística e cultural do país
Saber tradicional das mulheres que ajudam outras a parir, e que sofre grande preconceito dentro da cultura da medicalização, está sendo revalorizado
Claquete
Visuais
Realizadores e produtores de várias nacionalidades discutem, em produções recentes, a ideia de uma identidade continental para seus filmes
Projeto ousado se propõe a criar um centro de arte contemporânea em propriedade na Mata Sul do estado, onde a cultura da cana tem sido absoluta
Revolução Russa
20
Cinema latino-americano
72
Parteira
44
Usina de Arte
78
CONTINENTE MAIO 2017 | 5
Mai’ 17
colaboradores
Alysson Oliveira
Fábio Andrade
Julya Vasconcelos
Léo Caldas
Jornalista, mestre em Letras e crítico de cinema no site Cineweb
Escritor, poeta e professor de literatura da UFPE
Jornalista e mestre em Artes Visuais pela UFPE
Fotógrafo independente, proprietário da Agência Titular de Fotografia
E MAIS
Alex Dantas, designer, ilustrador com mestrado em quadrinhos, na França. André Nery, fotógrafo. Astier Basílio, escritor, crítico de teatro, jornalista, autor de mais de 10 livros. Bárbara Buril, jornalista, mestre em filosofia pela UFPE. Carlos Eduardo Amaral, jornalista, crítico de música erudita, pesquisador com mestrado em Comunicação pela UFPE. Daniela Nader, fotógrafa. Eduardo Sena, jornalista com foco em gastronomia. Hélia Scheppa, fotógrafa. Maria Chaves, fotógrafa. Márcio Bastos, jornalista, atua como colunista e crítico teatral do Jornal do Commercio. Pedro Vilela, gestor, diretor artístico e idealizador da Trema! Plataforma de Teatro.
REVOLUÇÃO RUSSA
SONORAS
Quem visitar o site durante este mês de maio vai encontrar na íntegra a matéria de capa da edição de dezembro de 2009, quando comemorados os 50 anos da Revolução Cubana. À época, foi feito um recorte similar àquele proposto nesta edição, mostrando de que forma esse fato impactou as produções artísticas do país. Disponibilizaremos links para ouvir algumas músicas de compositores como Alexander Mossolov, considerado um ícone do futurismo russo. Numa galeria, apresentaremos uma série de obras de artistas da vanguarda russa, citados na matéria de artes visuais.
Em nosso site, encontre uma série de links em que é possível escutar parte da discografia da gravadora carioca A Casa Discos.
CONTINENTE MAIO 2017 | 6
CLAQUETE Assista às entrevistas com a diretora argentina Maria Aparício, o cineasta chileno Carlos Leiva e o produtor escocês/brasileiro Daniel Dreifuss (foto).
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR
REPRODUÇÃO
em tempos do cólera. Parabéns, revista Continente e sua equipe, pela ousadia. JOANA D’ARC LIMA
O ser humano vez em quando volta à escuridão das cavernas. É inadmissível que, em pleno século XXI, o homem seja capaz de uma barbárie desta, matar outro pelo simples fato de não pertencer ao seu grupo.
Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
JOSIAS AUTOR
VIA FACEBOOK
INDÍGENAS
Não apenas pela belíssima capa. Nem por ser uma das revistas que observam a cultura por um viés amplo e pertinente. É pela necessidade de dar visibilidade aos mais de 300 povos indígenas que existem no Brasil. A reportagem de capa da Continente de abril lança seu olhar sobre a situação da população indígena, em mais de 20 páginas que tratam do tema.
Os índios correm em nossas veias, permeiam em nossos cabelos, nos proporcionam ar puro e nos ensinam a respeitar a natureza. Tudo o que precisam é apenas de terra e respeito, nada mais. E isso o homem branco, ganancioso e cego, quer roubar ainda mais. AUGUSTO MENDONÇA
Muito bem, minha cacique (Dorinha Pankará). Força, fé e foco – nós, povo Tumbalalá, tiramos nosso chapéu para você e sabemos o quanto é guerreira nas lutas e caminhadas. NUELLY CRUZ
Quando um meio de comunicação não tem medo de explorar reportagens emergentes
Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Maria Helena Pôrto (revisão)
Maravilhoso texto!
Olívia Mindêlo (Continente Online) CLÁUDIA BEIJA
Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem)
PARABÉNS
ALCIONE FERREIRA
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais)
ELLA FITZGERALD
CURSO DE JORNALISMO DA CATÓLICA
E que emoção divina ver que a escolha da capa é esse projeto essencial e transformador: Marcados, de Cláudia Andujar. Essa edição da Continente já é ouro puro.
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe
Joselma Firmino de Souza (produção gráfica)
O incrível trabalho jornalístico de uma equipe fantástica. Excelente material, revista Continente! FABSON GABRIEL
Eduardo Montenegro, Erika Muniz, Maria Júlia Moreira e Sofia Lucchesi (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783
Uma revista maravilhosa. Parabéns aos que participam desse trabalho de grande responsabilidade. ELIZABETH BRANDT
redacao@revistacontinente.com.br MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br
VIA TWITTER
ASSINATURA
ATENDIMENTO AO ASSINANTE
Finalmente assinei a @revcontinente e tenho certeza de que será a minha primeira melhor escolha pra 2017 LUCAS ALVES SÃO LOURENÇO DA MATA – PE
0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se
compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, redes sociais e correio. As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
CONTINENTE MAIO 2017 | 7
TEUDA BARA
“Se não fosse o teatro, eu nem saía da cama”
Numa conversa cheia de espontaneidade, atriz mineira conta o seu amor pelo teatro, desde quando, filha de uma família tradicional, foi educada para ser “do lar”, até sua rotina de trabalho no grupo Galpão TEXTO Olívia Mindêlo
CON TI NEN TE
Entrevista
“Ninguém passa intacto por Teuda
Bara. Ela é certamente um centro de gravidade para o Galpão. Ao mesmo tempo, é alvo das zombarias mais mesquinhas e recebe de todos o maior carinho e respeito. Os problemas de Teuda são os problemas do mundo. (…) Não existe inércia onde há Teuda Bara.” Com essas palavras, João Santos não apenas introduz os leitores do seu livro Teuda Bara: comunista demais para ser chacrete (Javali), como nos remete à vivacidade de sua biografada: essa figura cuja imagem em cena se confunde com a do próprio Galpão, grupo mineiro de 35 anos, conhecido por sua eloquência na cena teatral brasileira. A atriz, aliás, é uma das fundadoras da trupe, a “mãe”, a presença mais longeva, atualmente em cartaz pelo país com o espetáculo Nós (2016), que parece ter sido feito para ela. Nascida em Belo Horizonte, no primeiro dia de 1941 (cerca de duas décadas antes de seus companheiros de grupo), Teuda Bara nunca foi de negar fogo; aliás, sempre foi fogo. A mais velha de seis filhos, a atriz é “virada” desde criança. Percebendo os sinais precoces de seu espírito liberto, sua mãe tentou torná-la freira, mas nem a madre
superiora do colégio interno deu conta: ou a própria Teuda enlouqueceria, ou todos iriam parar em um manicômio. Na década de 1970, ela virou hippie no curso de Ciências Sociais e adorava viajar pelo Nordeste, região pela qual tem grande carinho – estendido ao Recife. Apesar de sua presença “cenosa”, o teatro só entrou profissionalmente em sua vida aos 35 anos, quando estreou como uma prostituta na peça Viva Olegário!, dirigida por Eid Ribeiro. Depois, passou um tempo em São Paulo, no Teatro Oficina, com Zé Celso. Desde então, nunca mais saiu de cena. Já fez diversas personagens, sendo ela mesma a própria persona. Quando nasceu, foi registrada pelo pai como Sônia Magalhães Fernandes. Indignada com o marido, sua mãe foi ao cartório e mudou para Teuda Magalhães Fernandes. Teuda Bara surgiu no teatro, como nome artístico, já que Eid Ribeiro gostava de chamá-la assim, em referência à atriz norte-americana Theda Bara, um dos primeiros sexy simbols do cinema. CONTINENTE Teuda, conta para a gente como você observa a sua vida hoje, considerando o que já foi e o que poderá vir.
CONTINENTE MAIO 2017 | 8
TEUDA BARA Nóóó! Nossa, é uma diferença, gente! Antes, eu era aquela pessoa criada para casar, de pai militar e mãe católica. Mas a vida vai levando a gente, tudo vai mudando e a gente vai tendo consciência política, tendo as relações… Sonhava em ir para a faculdade e fui (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, onde cursou Ciências Sociais), mas me desesperei com a linguagem científica e deixei. Vivi dos “anos dourados” aos “anos de chumbo”, e tenho medo de uma reviravolta no Brasil. Dá muito medo ver nossos direitos irem por água abaixo, principalmente os do trabalho. Fico pensando: a gente está na mão dos outros, na verdade na mão dos políticos. Poderíamos decidir em relação isso, mas eles também votam, como caso do impeachment… E a gente está no meio de notícias falsas, tudo atrapalhado, desvirtuam tudo. Eu fico muito insegura. CONTINENTE Nesse cenário brasileiro atual, você sente falta daquele teatro do qual fez parte nos anos 1970, do desbunde, que ia para as ruas? TEUDA BARA Não sinto falta, porque eu faço o teatro que quero fazer: na rua, no palco, viajando, trabalhando
GUTO MUNIZ/DIVULGAÇÃO
CONTINENTE MAIO 2017 | 9
TEUDA BARA Marcinho (Márcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro, diretor do espetáculo) foi mandando a gente improvisar. A gente queria fazer um teatro mais moderno, político, e ele sugeriu que começássemos falando da gente, do Galpão. É muito fácil apontar: “Fulano é um ditador”, então vamos falar por nós. A peça é quase uma homenagem a mim e eu amo o Marcinho, mas ela fala de todos nós, do momento atual, de estar na rua, estar difícil para todo mundo. “Tá fácil pra você?
não tem, a gente também bota a boca no trombone: “Calma aí, né assim não!”. De mulheres, somos Inês Peixoto, Lydia Del Picchia, Simone Ordones, Fernanda Vianna e eu. De homens, Eduardo Moreira, Roberto (Beto) Franco, Antonio Edson, Júlio Maciel, Paulo André, Arildo de Barros e Chico Pelúcio. No geral, esse machismo se manifesta quando eles querem mandar, falar. Dizem alguma coisa, e a gente: “Epa, aí não!”. Mas eles não são bestas. Então, não é nada agressivo, sabe? Os homens do grupo não são nenhuns bichos-papões.
GUTO MUNIZ/DIVULGAÇÃO
com diretores novos. Estamos fazendo teatro e isso é muito importante. Se não fosse o teatro, eu nem saía da cama. Eu gosto de fazer teatro, de estar sempre envolvida com outras temáticas, com o texto, a ação, a dramaturgia… Em casa, é cachorro, conta de luz para pagar... E o Galpão tem essa política de viajar, já viajamos para tudo que é canto. E isso é importante, porque TV todo mundo vê, mas teatro, não. Já fomos a lugares aonde nunca o teatro foi. Você não sabe a emoção que é ver alguém vendo teatro pela primeira vez. Um dia, um menino
CON TI NEN TE
Entrevista chegou e disse: “Vocês são poucos, mas são muita atração”. Isso é lindo! CONTINENTE Mas você gosta de televisão também, não é? TEUDA BARA Gosto. Agora mesmo vou participar de um programa no Multishow, A vila, o Paulo Gustavo me convidou. Ainda não sei muita coisa, sei que várias pessoas se relacionam nessa vila. Na verdade, eu gosto de variar as formas de trabalhar. CONTINENTE O espetáculo Nós (2016) parece ter sido feito para você, como se Teuda Bara interpretasse ela mesma e fosse a protagonista daquela história, que é também um pouco a história do Galpão. Foi isso que aconteceu? Conta um pouco.
Não tá fácil pra ninguém!” (texto de Nós). Fala também do machismo, da intolerância, do racismo… CONTINENTE Na peça, há uma espécie de teatro dentro do teatro. O “nós” no sentido do grupo, do Galpão; o “nós”, a gente do público e do coletivo no sentido amplo; e os “nós” que esse mesmo coletivo dá em suas relações. Em determinado momento, você mesma diz que é difícil ser mulher trabalhando com tanto homem. Como analisa a sua relação com o grupo que ajudou a criar? TEUDA BARA Existe machismo dentro do grupo e, quando tem, a gente grita. Mas ali, na peça, estou falando de machismo mesmo, e essa luta é constante; nossa, um trem! No grupo, é uma luta quase por igualdade. Quando
CONTINENTE MAIO 2017 | 10
CONTINENTE Além de trazer o grupo e a sua convivência com eles, outra impressão é de que o espetáculo Nós é a encenação de uma despedida sua. “Sai, não sai”, aquele jogo de cena o tempo todo. Mas não tem esse risco de você sair do Galpão, tem? TEUDA BARA Nããão (risos), não tem não! Aquilo ali foi um filme que a gente viu, que era uma coisa assim, que o cara fala: “Olha, vou ter que mandar alguém embora para vocês poderem ficar”. Ou, ao contrário, um quer ficar e vai ter de sair. Fizemos ensaios abertos com o público em Belo Horizonte e as reações foram, assim, muito estranhas. Teve uma mulher que chorou e saiu no meio do ensaio. No outro dia, ela voltou e pediu desculpas à gente, dizendo que a mãe estava com Alzheimer, que estava
vivendo uma situação assim, de ela querer sair e eles não deixarem… Um dia, um menino ficou muito emocionado e veio com a voz embargada, dizendo “muito obrigado” pelo espetáculo. “Muito ruim querer sair e eles não deixarem”, ele disse. A gente imaginou que tivesse sido preso, algo assim. O espetáculo toca em cada pessoa onde aquela pessoa é, está. CONTINENTE Vocês costumam fazer sempre esses ensaios abertos no Galpão? TEUDA BARA Nem sempre, mas a gente fica louco para saber o que o público vai achar. A gente já fez ensaios abertos antes, como em Romeu e Julieta, mas não para tanta gente. Com Romeu…, lembro que a gente fez ensaio em cidade do interior (de Minas Gerais). Uma delas era um lugar de boia-fria e a gente ensaiava em frente à igreja, passava tudo, ficava até tarde. Todo dia, eles desciam do caminhão, sentavam para ver, riam e até interferiam. “Por que parou?”, gritavam. CONTINENTE Já passou pela sua cabeça deixar de fazer teatro? TEUDA BARA De jeito nenhum! Quando eu fui para o circo (Cirque Du Soleil, 2004–2007, espetáculo Kà), foi insuportável, não dei conta. Fazia dois shows por dia, 10 por semana e, mesmo assim, tinha uma saudade do palco! É diferente, no circo não tem o encontro com o público. Tudo é diferente. Circo não improvisa nada. No teatro, você também não pode improvisar sempre, mas tem hora em que a gente improvisa. CONTINENTE Mesmo assim, o Galpão tem uma rotina superdisciplinada de ensaios, não é? TEUDA BARA Sim, temos uma rotina muito disciplinada e isso marcou o início do grupo, a oficina dos alemães (George Froscher e Kurt Bildstein, do Teatro Livre de Munique, que aconteceu em 1982, como um embrião do grupo). Eles tinham muita disciplina, eram grotowskianos e a gente apanhou muito. CONTINENTE A sua presença, o seu corpo, é uma marca no Galpão e no teatro brasileiro. Isso é motivo de orgulho ou já lhe causou um incômodo? TEUDA BARA Não, tem gente que fala “gorda”, “velha”. Eu tô, uai, mas a vida é assim, é normal, não me incomoda. Fernanda Montenegro que é Fernanda Montenegro está ficando velha, tem 80
anos. A gente envelhece, claro! Tem hora que os joelhos não aguentam, a gente não tem mais a agilidade que tinha. Tem papéis que a gente não pode fazer mais pela idade. Teatro é a representação da vida: com todas as brincadeiras, as pessoas também envelhecem. CONTINENTE Como foi para você ficar nua em Nós, aos 75 anos, em relação à primeira vez em que você tirou a roupa em cena com o Fulias Banana na peça Triptolemo 17 (1978)? TEUDA BARA Tranquilo, difícil falar. Quer dizer, tranquilo não é. No
“A gente queria fazer um teatro mais moderno, político, e ele sugeriu que começássemos falando do Galpão. A peça Nós (foto) é quase uma homenagem a mim e eu amo o Marcinho, mas ela fala de todos nós, da atualidade, de estar na rua, estar difícil para todo mundo” primeiro dia em que fiquei pelada perto do Marcinho, passei maior vergonha com ele. Quando eu falo Marcinho, é o Márcio Abreu, tá? O diretor. E eu não sabia que Eduardo (Moreira) ia escrever em mim na peça. Ele ficava encostando, eu ria e o texto não saía (risos). No Fulias Banana, foi completamente diferente, eu ficava numa banheira, era uma outra coisa. Mas também chocou. E tem uma coisa: parece que você só pode ficar nu se for novo, perfeito, com tudo no lugar e eu nunca fui essa pessoa. E quando tinha tudo no lugar, não saía por aí pelada. CONTINENTE No livro Teuda Bara: comunista demais para ser chacrete, de João Santos…
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TEUDA BARA O João?! É um anjo que caiu do céu na minha vida! Ele era… Como se diz? Estagiário do Galpão! E, no fim do curso (de graduação em Comunicação, UFMG, 2011), ele tinha que escrever a “tese” e disse: “Vou escrever sobre você”. Não sabia que ia acabar no livro, fiquei muito feliz. Ele é, assim, meu filho! Depois, ele fez a adaptação do texto de Doida, de Carlos Drummond (de Andrade, conto), espetáculo que foi um projeto pessoal meu e que eu queria fazer com o meu filho (Admar Fernandes, em 2015). CONTINENTE Bem, no livro de João, lemos o trecho da música Merda, de Caetano Veloso: “Nem a loucura do amor,/ da maconha e do pó,/ do tabaco e do álcool/ Vale a loucura do ator/ quando abre-se em flor/ na loucura do palco”. É a estrofe da sua vida? TEUDA BARA Ah, é a estrofe dos atores! Caetano é foda. Eu amo o Caetano. É um cantor e uma pessoa maravilhosa, faz tempo que eu gosto dele. Quando escutei Sem lenço, sem documento (Alegria, alegria, 1967/1968), botei tudo meu fora, identidade, CPF, tudo fora. Depois, eu ficava com vergonha de dizer o que eu tinha feito com meus documentos. “Foi uma enchente que deu lá em casa, menino!” (risos). CONTINENTE É verdade que até hoje você não quis tirar carteira de trabalho? O livro dá a entender isso… TEUDA BARA Imagina! Não, claro que tenho carteira de trabalho. Tem coisa que não tem jeito, temos que ter. Hoje, somos totalmente profissionais (o Grupo Galpão). E temos de ser assim, temos muita coisa e tudo tem que estar organizado, figurino, cenário, isso tudo é trabalho, é equipe, é dispendioso. Hoje, temos o patrocínio da Petrobras, mas estamos sem pagamento há alguns meses. E a gente precisa pagar tudo, tem todo um custo de um grupo profissional, que é muito difícil de administrar. Mas não é só a gente. Todos os grupos estão com dificuldades no momento. E grupos renomados, hein? Estávamos conversando com o pessoal do Corpo e do Giramundo, que tem os bonecos lindos, e está desestruturado, não tem como se mexer.
DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
Menote Cordeiro
UMA PADRONAGEM SOFISTICADA TEXTO Adriana Dória Matos
Se fosse para ficar por ali, ele tinha se deixado estar na cidade pequena do interior
mineiro, onde, criança, fez as brincadeiras que povoam nossa memória afetiva, de tomar banho de rio, desenhar com lápis de cor e ir à missa no domingo. Se fosse para não quebrar expectativas, já rapaz, tinha seguido o curso de Economia. Mas não foi assim. Aos 19 anos, ele saiu da pacata Janaúba, trancou a faculdade, e fez o que tantos fazem: migrou pra capital. Foi pra Belo Horizonte tentar outra vida, um princípio difícil, mas era já uma promessa, porque conseguiu trabalho para ilustrar um livro infantil. Isso faz 25 anos e, vocês sabem, a vida não é conto de fadas, vai sendo vivida nos altos e baixos mesmo. Com Menote Cordeiro, hoje um homem de 45 anos, não tem sido diferente, mas ele pode dizer que encontrou o próprio caminho, construído pela experiência de trabalhar por duas décadas com ilustração para publicidade e identidade visual para projetos culturais, como autodidata. Menote conta que somente há 10 anos é que pôde se dedicar exclusivamente ao trabalho artístico, técnica que foi sendo depurada com o uso de lápis de cor, tinta a óleo, aquarela e, mais recentemente, caneta óptica, ferramenta que ele usa para desenhar no computador. Embora seja interessante saber a respeito da técnica usada por ele, que hoje é quase toda digital – já que trabalha no computador, criando o que denomina de “retalhos e carimbos digitais”, em composições que equilibram com sofisticação o geométrico e o figurativo – o que certamente atrai os observadores de seus trabalhos é uma temática tradicional muito bem revisitada.
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Equilíbrio no cromatismo de formas da natureza, em obra de 2016
N estas páginas 2 MAR DE IEMANJÁ
Em 2007, artista criou esta obra, que daria início a uma série dedicada aos orixás
3-8 RELIGIOSIDADE Parte significativa da obra de Menote é dedicada ao tema
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CON TI NEN TE
Portfólio
E, por tradicional, nos referimos a temas caros à pintura clássica: natureza/ paisagem e religião/espiritualidade. Em síntese, podemos dizer que são esses os dois assuntos trabalhados e retrabalhados por Menote Cordeiro. O suporte em que o artista aplica suas composições não são os papéis e as telas, mas a madeira (trata-se de OSB, painéis de tiras de madeira prensada), sobre a qual se faz a impressão gráfica com tintas sem uso de solventes e, no caso dele, em grandes formatos. O processo é semelhante ao de impressão de gravuras, sejam elas xilos, litos, linos ou em metal, em que o artista cria uma matriz e a estampa em superfície. Menote cria uma matriz digital e com ela parte para o processo de reprodução, que, por sua vez, é também digital. A história é boa sobre como Menote Cordeiro concebeu os seus “carimbos digitais”. Aquele menino de Janaúba ia à missa de domingo, que era proferida em latim. Ele não entedia nada e ficava extasiado em olhar para o chão coberto de ladrilho hidráulico, aquela beleza de composição geométrica e figurativa. Uma primeira epifania! “O piso da igreja foi minha primeira referência de Deus.” A religiosidade, que aparece de modo tão plástico quanto devocional em seu trabalho, também está impregnada na
sua história. “Os temas relacionados à espiritualidade e às imagens mágicas sempre me fascinaram”, diz. “Os santos, desde a adolescência, depois os devas hindus e, há 10 anos, os orixás.” Outra boa história pode ser contada sobre Menote, agora relacionada às divindades do panteão africano. Como imprime suas obras em madeira, ele nunca conseguia trabalhar bem o azul nessa superfície amarelada, de modo que a cor era um “problema”. Ele foi para a beira do mar e fez uma promessa pra Iemanjá, de que se ele conseguisse o azul que tanto queria daria 10 gravuras a 10 mães. Foi assim que a mãe dos orixás inaugurou uma série de retratos de divindades africanas. “Depois do primeiro desenho, Mar de Iemanjá, veio a inspiração para fazer o Espelho de Oxum, em seguida, Ventos de Iansã e uma trindade de sagrado feminino se potencializava em imagens.” Desde então, Menote produziu cerca de 40 imagens de 15 orixás, que está reunindo no livro Divinamentos – Orixás, disponível em versão digital, mas que ele pretende imprimir, quando achar que arrematou bem os estudos. Quando conversamos, ele estava às voltas com estudos sobre Iroco, associado ao tempo, e Ewá, filha de Nanã. São obras de beleza e vigor, que dignificam a tradição pictórica de cunho religioso.
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9-13 PADRONAGEM Menote Cordeiro diz que vê seu trabalho como "colchas de retalhos, tapetes, estampas de carimbos e, às vezes, uma única grande colcha de memórias e adivinhações"
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O ANTICRISTO NA URSS Neste mês, a editora Kalinka lança pela primeira vez no Brasil o livro Salmo, do escritor soviético Friedrich Gorenstein – mais conhecido pelo roteiro do longa Solaris, de Andrei Tarkovski. Publicado em 1981, Salmo narra a chegada do anticristo na União Soviética, acusando o cristianismo de produzir as forças demoníacas do comunismo e do fascismo. Nascido em 1932 e contrário a qualquer forma de totalitarismo e antissemitismo, o escritor teve o seu pai assassinado durante a repressão stalinista. Gorenstein era considerado um outsider pela comunidade artística, pois manteve-se alheio tanto à cultura soviética quanto ao anticomunismo. SOFIA LUCCHESI
100 anos da estrela Dalva Neste mês do centenário do nascimento de Dalva de Oliveira, faz muito sucesso no circuito sertanejo a “sofrência”. Essas músicas de dor de cotovelo, no entanto, não alcançam o nível de “sofrência” profunda da interpretação da cantora, rainha do vibrato em muitos “erres”. Na era de ouro do bolero, do samba-canção, nos anos 1940 e 1950, a artista reinava com músicas como Que será?, Tudo acabado e Hino ao amor (versão da chanson Hymne à l’amour, de Edith Piaf). As letras de seu repertório traduziam os dramas que vivia, como o casamento conturbado com o compositor Herivelto Martins, do qual nasceram muitas canções e os filhos (cantores) Ubiratan Oliveira Martins e Pery Ribeiro. No processo da separação, Herivelto, com a ajuda do jornalista David Nasser, numa época extremamente machista, destruiu a reputação da ex-esposa na imprensa, o que a fez perder a guarda dos filhos, levados a uma instituição, de onde saíram apenas com 18 anos. Dalva voltou a se casar, dessa vez com o argentino Tito Climent, que virou seu empresário. Eles adotaram uma menina. E, mais uma vez, no divórcio, por conta das antigas reportagens, ela perdeu a guarda da criança. Assim como Piaf, a cantora paulista, descendente de mãe portuguesa e pai mulato, não viveu um conto de fadas como o de Branca de Neve, personagem que dublou no filme de 1938, mas tentou ser feliz, entre um sofrimento e outro, para sempre. DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“Ser incapaz de lembrar os pecados de uma vida anterior não o exime de fazer penitência nesta.” Thomas Pynchon, que este mês faz 80 anos, em Contraluz CONTINENTE MAIO 2017 | 18
Balaio DA VINCI REVISITADO
A vida de Da Vinci é carregada de mistério, tanto no que diz repeito às suas criações quanto à intimidade. Até hoje, a enigmática pintura Mona Lisa fomenta nas mentes criativas diversas teorias. Por isso, o renascentista virou um mito pop. Um novo estudo biográfico, escrito por Walter Isaacson (ex-editor da Time e autor das biografias de Steve Jobs e Einstein), traz especulações sobre o homem. De acordo com o biógrafo, Da Vinci era gay, vegetariano e carente de atenção. Isaacson defende que a obra pode ajudar a compreender a “genialidade” do pintor não somente por sua imaginação, mas também pelo seu “desajuste social”. A previsão é de que o livro chegue ao Brasil, pela Intrínseca, em outubro. EDUARDO MONTENEGRO
ARQUIVO
EXODUS, DE MARLEY, REVIVE Em 2017, Exodus, nono disco de Bob Marley & the Wailers, completa 40 anos. A família do ícone jamaicano pretende relançar – com o título Exodus 40, the movement continues – faixas do álbum remixadas pelo próprio filho de Bob, Ziggy Marley, além de material inédito encontrado anos depois. No repertório da próxima turnê americana de Ziggy, prevista para junho, ele pretende incorporar algumas canções do clássico álbum, gravado em Londres, seis meses após uma tentativa de assassinato, quando Bob ainda estava em Kingston, na Jamaica. É a partir deste álbum que as músicas One love, So much things to say, Three little birds fizeram a cabeça do reggae mundial. ERIKA MUNIZ
DOCUMENTA PARADOXAL Este ano, pela primeira vez, a Documenta acontece para além de suas fronteiras de origem, Kassel. Afora a pacata cidade alemã, Atenas, na Grécia, foi escolhida como local de ocupação desta que é uma das agendas mais disputadas da arte contemporânea no mundo (e acontece a cada cinco anos). Em abril, o curador Moacir dos Anjos foi conferir a abertura da versão grega da mostra e falou sobre sua experiência no CCBA Recife, que apoiou sua ida: “Existe uma distância grande, um golfo, entre o projeto da curadoria e o resultado mostrado”. Parece ilustrar seu comentário a abertura da Documenta 14, promovida pela prefeitura anfitriã: o local escolhido foi uma praça pública ateniense. Em tempos de crises e exclusões na Europa, seria louvável a iniciativa, não fosse o fato de a praça ter sido cercada com um cordão de isolamento para os VIPs– do lado de fora, a “pipoca” de refugiados e moradores de rua assistia ao banquete dos engravatados. A exposição se propõe, em 2017, a pensar o lado “sul” do planeta. OLÍVIA MINDÊLO
Juan Rulfo de Pedro Páramo Juan Rulfo foi dessas crianças com histórias marcadas por perdas. Sua família de proprietários de terras “perdeu tudo” na Revolução Mexicana. O pai foi assassinado e, poucos anos depois, sua mãe faleceu. Aos 10 anos, era órfão e por isso viveu até a maioridade num orfanato. Quase sempre que admiramos um autor, perseguimos sua vida pessoal em busca de pistas que revelem elementos de sua obra. No caso de Rulfo, sua breve obra literária, sobretudo o romance Pedro Páramo (1955), nos leva direto ao cenário geográfico de sua infância e às suas perdas. “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo”, começa o romance. Emblemático início para uma história povoada de fantasmas… Numa entrevista concedida em 1999, o escritor disse: “Pedro Páramo expressa o desejo de fazer viver de novo um povoado morto – que volta a viver na imaginação de meus personagens. Quando eu era criança, vivia num pequeno povoado que me parecia, como é natural das crianças, o melhor do mundo. Quando voltei já adulto, descobri que não era tão grande nem tão importante como eu havia imaginado; além disso, estava quase abandonado, as casas caindo”. Nas fotos de Rulfo – nos anos 1950, ele viajou pelo México e fez excelentes registros pelo caminho – há essa paisagem árida e fantasmagórica, encantadora como seus textos. A propósito, Rulfo faria 100 anos este mês. ADRIANA DÓRIA MATOS
PIXINGUINHA, 120 ANOS No dia 23 de abril, com diversos concertos pelo país e o lançamento do site www.pixinguinha.com.br, foram comemorados os 120 anos de Pixinguinha e o Dia nacional do choro, data oficializada em 2000, em homenagem ao dia do nascimento do maestro, multi-instrumentista e compositor. No entanto, no site organizado pelo Instituto Moreira Salles, a certidão de nascimento de Alfredo da Rocha Vianna Filho retifica: o “pai da música brasileira” nasceu mesmo no dia 4 de maio de 1897. Essa certidão é um dos 9 mil documentos que estão disponibilizados no endereço eletrônico, entre trabalhos acadêmicos, entrevistas, notícias, discografia e hemeroteca completa em streaming, informações sobre todas as suas 500 composições, manuscritos e partituras (esses disponíveis para baixar em PDF) – dentre elas, 40 inéditas do gênio que Vinicius de Moraes definiu como “o ser humano mais lindo que encontrei em toda minha existência”. (DN)
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REPRODUÇÃO
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CAPA
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1917 O ano zero da Revolução Russa O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas. (E então, que quereis? – do poeta russo Vladimir Maiakóvski, escrito em 1927)
Em 31 de agosto de 2016, Dilma
Rousseff era definitivamente afastada da presidência do Brasil por um controverso processo de impeachment. Em seu discurso de despedida, a primeira mulher eleita para o cargo máximo do país citou trechos do poema E então, que quereis? – do russo Vladimir Maiakóvski. A força das palavras traduz, além do ideal de resiliência descrito pelo poeta, o alcance do contexto histórico, político e social da Revolução Russa, o levante que derrubou o regime czarista e que neste 2017 atinge seu primeiro centenário. As raízes da Revolução Russa, também conhecida como Revolução de Outubro, fincam-se em 1905, quando houve uma primeira rebelião contra o czar Nicolau II. Absolutista e concentrador, ele comandava o país de dimensão continental como um déspota. Era alvo da ira dos camponeses e trabalhadores rurais (os mujiks a quem tanto Liévin [o personagem] admira em Anna Karenina, de Liev Tolstói) e dos operários urbanos,
sendo extremamente violento na repressão: a guarda real chacinou mais de mil pessoas que protestavam em frente ao palácio de inverno de São Petersburgo, no episódio conhecido como Domingo Sangrento. Decorreram 12 anos de impostos elevados, pobreza generalizada e insatisfação mesmo entre os nobres latifundiários. A entrada da Rússia na I Guerra Mundial, ao lado da França e do Reino Unido na Tríplice Entente, aumentou a fúria contra Nicolau II, bem como as dívidas do país. Em fevereiro de 1917 (no calendário juliano dos russos; pois, no calendário gregoriano ocidental, já se tratava de março), o czar foi deposto e imediatamente fuzilado ao lado da mulher e dos filhos. Iniciavase a primeira fase revolucionária: assumia um governo provisório, liderado pelo príncipe Georgy Lvov e por Alexander Kerenski, como ministro da guerra e formado por deputados da Duma, o parlamento russo. Outro comitê, o Soviete de Petrogrado, havia surgido da mobilização de trabalhadores, militares e socialistas. Ao longo de sete meses, maximizouse a tensão entre essas duas instâncias políticas. Com a Revolução de Outubro, o Partido Operário Social-Democrata Russo – POSDR assume o poder. Outrora dividido entre mencheviques, liderados por Gueorgui Plekhanov, e os bolcheviques, cujo horizonte era determinado por Vladimir Ilyitch Ulianov, o Lênin, o POSDR passou à proa das ações políticas e militares
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do país já sob comando bolchevique. Lênin se tornou o primeiro presidente do Conselho de Comissários do Povo da República Socialista Federativa Soviética da Rússia. Entre novembro de 1917 e janeiro de 1924, foi o líder supremo do país que, em 1922, ajudou a renomear: nascia a URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O que foi feito dos ideais revolucionários e da própria URSS durante o governo de Lênin e sob a égide de Josef Stálin (secretário-geral do Partido Comunista e do Comitê Central entre 1922 e 1953) é alvo, sobretudo um século depois, de incontáveis estudos e análises críticas. Para o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917–2012) em A era dos extremos – O breve século XX 1914–1991, a revolução “foi feita não para proporcionar liberdade e socialismo à Rússia, mas para trazer a revolução do proletariado mundial. Na mente de Lênin e de seus camaradas, a vitória bolchevique na Rússia era basicamente uma batalha na campanha para alcançar a vitória do bolchevismo numa escala global mais ampla, e dificilmente justificável a não ser como tal”. O bolchevismo não se replicou no mundo inteiro. Até hoje, há quem admire com fervor e há quem rejeite com ojeriza a Revolução Russa e seu legado socialista. Suas ramificações artísticas, contudo, vingaram e se alastraram em acordes, imagens, versos… Vão e voltam como o mar e suas ondas cortadas pela quilha de Maiakóvski. LUCIANA VERAS
MIKHAIL KHMELKO/REPRODUÇÃO
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LITERATURA Entusiasmo e melancolia TEXTO Fábio Andrade
Literatura e revolução. Essas duas palavras caminharam juntas por infernos provisórios e paraísos nunca alcançados. A associação entre elas se tornou um lugar-comum moderno e contemporâneo. Associação recente – é preciso dizer. Até o século XIX, que presenciou o surgimento e desenvolvimento do movimento
romântico, a palavra literatura estava sempre distante da palavra revolução. Tinha as mãos sempre dadas à palavra tradição. Mas foi no século da primeira grande revolução, no sentido político do termo, no século da Revolução Francesa, que o casamento das duas palavras se deu. Sobre os escombros do Velho Mundo,
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sobre as ruínas da nobreza, sobre os cadáveres dos déspotas, dos reis absolutistas, as duas se encontraram e foi amor à primeira vista. Desde então, caminham juntas em fórmulas e mesmo em linhas teóricas que veem a própria poesia como uma forma fundamental de revolução. Nossa idade moderna conheceu o uso popular e difuso da palavra revolução. O historiador espanhol Antonio Maravall, especialista na cultura do período barroco, afirmava que fora nesse momento específico que o termo ganhara um significado similar ao que tem hoje. Mudança profunda, capaz de alterar as bases, os alicerces do mundo que conhecemos. Se, na origem, o sentido de revolução política tinha um caráter pequeno-burguês, como ocorreu com a própria Revolução Francesa, pautada pelos valores filosóficos do iluminismo enciclopedista, outras
1 MIKHAIL KHMELKO Em O triunfo do povo conquistador, de 1949, artista ucraniano retrata com perfeição o triunfalismo do regime
(os mujiks), a economia russa refletia a arcaica lógica de diferenças e privilégios inabaláveis que marcavam o domínio dos czares. Por outro lado, a efervescência artística e literária teve como componente um diálogo intenso da classe intelectual com o Ocidente desde o século XVIII, tempos do czar Pedro I. A geração literária contemporânea à revolução procurava uma renovação do olhar sobre a literatura e, dentro do impulso de ocidentalização, mantinha grande simpatia pelas propostas de transformação das Vanguardas Europeias. Tanto na Rússia quanto na Europa, as universidades estavam dominadas por uma visão historicista e positivista, pouco sensível aquilo que comumente passou a se chamar
Maiakóvski, que ficou conhecido como “poeta da revolução”, aderiu entusiasticamente à Revolução de 1917 possibilidades de “revolucionar” o mundo surgiram a partir desse mesmo princípio revolucionário liberal. No século XIX, o sentimento revolucionário vai tomando outros caminhos – exemplos disso foram o marxismo e o anarquismo, que são linhas de pensamento e ação políticos incontornáveis para se compreender o mundo ontem e hoje. E se deve a esse bloco de esquerda aquela que pode ser a revolução paradigmática dos tempos modernos: a Revolução Russa, de 1917.
REVOLUCIONÁRIO X TOTALITÁRIO
Havia uma grande efervescência cultural, artística e política na Rússia pré-revolucionária. Ao mesmo tempo, essa mesma Rússia era um barril de contradições insustentáveis. Com praticamente 80% de sua população composta por camponeses
“aspectos estéticos do texto”. O texto literário importava mais enquanto documento histórico-social. É nesse contexto, e em oposição ao academicismo, que surge o Círculo Linguístico de Moscou, em 1914, e posteriormente, o Opojaz, em 1916. Os dois grupos, o primeiro em Moscou – como indica o nome – e o segundo em São Petesburgo, assumiram a tarefa de estabelecer princípios fundamentais de uma ciência da literatura, pautada basicamente pelas teorias linguísticas. Um aspecto inovador desse momento, não apenas na Rússia, mas também em vários outros lugares do mundo, foi a intensa participação de poetas e escritores na formulação de problemas e conceitos teóricos que tinham por objetivo lançar uma luz nova sobre o fenômeno literário. Do chamado formalismo russo, participaram vários poetas ligados ao futurismo russo: Khlébnikov,
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Maiakóvski e Pasternak. O principal deles, e que fez parte do primeiro grupo que assumiu o rótulo futurista, de franca inspiração no manifesto de Marinetti, foi Maiakóvski – que acabou sendo conhecido como o “poeta da revolução”. Maiakóvski, com outros poetas e escritores ligados ao grupo moscovita Hylaea, aderiu entusiasticamente à Revolução de 1917. A adesão foi natural. Se o formalismo russo representava uma “revolução” na forma de ler e encarar a literatura – como o provam as ousadas especulações dos jovens teóricos do Opojaz; a tendência inovadora, que em geral ficou conhecida pelo termo futurista, também representou a revolução poética. Já se tornou célebre a afirmação de Maiakóvski que, sem forma revolucionária, não há arte revolucionária. Ao mesmo tempo, esse caráter inovador e quase anárquico será motivo de grandes tensões entre a poesia revolucionária e a ideologia revolucionária do estado totalitário socialista. Alguns dos poemas mais representativos de Maiakóvski têm como ponto de partida o entusiasmo revolucionário, sem abrir mão das experimentações formais que definiam sua poética como uma proposta de vanguarda e de ruptura. Entre esses poemas, pode ser contabilizado o famoso A plenos pulmões, na tradução de Haroldo de Campos: “(…) Professor,/ jogue fora/ as lentesbicicleta!/ a mim cabe falar/ de mim/ de minha era./ Eu – incinerador,/ eu, sanitarista,/ a revolução/ me convoca e me alista./ Troco pelo “front”/ a horticultura airosa/ da poesia –/ fêmea caprichosa./ Ela ajardina o jardim/ virgem/ vargem/ sombra/ alfombra” (…). O caráter experimental, entretanto, da poesia de Maiakóvski e de seus companheiros de geração pareceu supérfluo, excessivamente anárquico e mesmo aburguesado para o estado revolucionário. A mesma reação se sentirá em relação ao formalismo russo. Tanto o Futurismo quanto o formalismo – ambos comprometidos com uma concepção nova de literatura – serão colocados sob suspeição.
CON CAPA TI NEN TE FOTOS: REPRODUÇÃO
MAIAKÓVSKI
O professor e tradutor Boris Schnaiderman escreveu na introdução biográfica ao volume de poemas de Maiakóvski, que traduziu com os irmãos Campos: “Revolucionário nas concepções sociais e na forma que utilizou, desabusado, amigo do palavrão e do coloquial, poeta das ruas, dos comícios, das salas de conferências, Maiakóvski aparece-nos como um dos artistas mais coerentes que jamais existiram”. A coerência de Maiakóvski, como bem vê Schnaiderman, estava entranhada nele como uma postura ética fundamental: ou a poesia deve ser capaz de revolucionar a vida ou não valerá a pena. E para que a revolução verbal e social aconteça é preciso muito trabalho. A imagem do poeta como operário é recorrente nos poemas maiakovskianos. Em 1930, mesmo ano em que cometeria suicídio, Maiakóvski fala sobre suas angústias a um auditório presente na celebração dos 20 anos de suas atividades poéticas. Diz que será melhor julgado pela posteridade do que pelos críticos que acreditavam que ele havia esquecido como fazer versos, e cita um suposto diálogo entre ele e um conhecido comunista, que lhe responde: “Que importa a posteridade! Você vai responder perante ela, mas o meu caso é muito pior: tenho que responder perante o comitê do bairro. E isto é bem mais difícil”. A preocupação de Maiakóvski com a submissão da criação artística a uma ideologia de estado cada vez mais burocratizado se fará ouvir plenamente e a todos pulmões num poema como Incompreensível para as massas: “Aos pávidos/ poetas/ aqui vai meu aparte:/ Chega/ de chuchotar / versos para os pobres./ A classe condutora,/ também ela pode/ compreender a arte./ Logo:/ que se eleve/ a cultura do povo!/ Uma só,/ para todos./ O livro bom/ é claro/ e necessário/ a vós,/ a mim/ ao camponês/ e ao operário”. A angústia de Maiakóvski com os rumos da Revolução de Outubro dizem respeito ao rápido arrefecimento de suas potencialidades libertárias. Participante de seu tempo, Maiakóvski, assim como uma série de companheiros de geração, aderiu de maneira entusiástica ao novo regime, ilustrando cartazes e, principalmente, dedicando versos às
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campanhas sanitárias empreendidas pelo estado nascido da revolução. O que não o impediu de resistir de maneira profundamente coerente a qualquer forma de dirigismo político que traísse suas convicções pessoais e criativas. Foi dono de uma voz que nunca se enquadraria no realismo socialista oficial do novo estado. O poema A plenos pulmões traz versos que exprimem com muita precisão a tensão então vivida pelo poeta: “Também a mim/ a propaganda/ cansa,/ é tão fácil/ alinhavar romanças, –/ mas eu/ me dominava/ entretanto/ e pisava/ a garganta do meu canto”. Chama a atenção o fato de a voz poética nesse texto se dirigir para os “caros camaradas futuros”. Nesse recurso retórico de diálogo com os
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camaradas futuros estão encapsuladas as preocupações do poeta com o futuro da revolução, com seus desdobramentos.
GESTO ANÁRQUICO
Roman Jakobson, grande representante do formalismo russo, na longa entrevista que concede a Krystina Pomorska, menciona a tensão entre Maiakóvski e Lênin. O ponto de partida é um bilhete de Lênin, de 1921, em que ele se opõe “ferozmente”, segundo Jakobson, à aprovação por parte de Lunatchárski da publicação do poema 150.000.000, de autoria de Maiakóvski. O poema, escrito entre 1919 e 1920, tem a liberdade de pensamento própria do ímpeto criativo e altivo de Maiakóvski, alheio a amarras ou arranjos políticos:
“Meu verso não se comove nem com Trotski nem com Lênin. Glorifico os milhões em seu combate, vejo os milhões, canto os milhões”. Uma imagem semelhante a essa se encontra no A plenos pulmões: “Meu verso/ com labor/ rompe a mole dos anos/ e assoma/ a olho nu,/ palpável,/ bruto,/ como a nossos dias/ chega o aqueduto/ levantado / por escravos romanos”. Percebia Maiakóvski o que de coletivismo deveria ser preservado no movimento revolucionário, sempre acima do personalismo mistificador dos heróis. Segundo ainda Jakobson, o bilhete de Lênin acusava o poema de ser uma “refinada e pretensiosa besteira”. O bilhete encerrava com espírito irascível: “Chicotear Lunatchárski por causa do Futurismo”. Aos dirigentes, a revolução poética de Maiakóvski parecia ser excessivamente independente. É preciso dizer que o mundo é mais complexo ou, como dizia o filósofo de Guimarães Rosa – Riobaldo – mais “misturado”. Em 1924, Maiakóvski termina um longo poema dedicado a Lênin, morto nesse mesmo ano. E no poema, publicado no Brasil em 2012 pela editora Anita Garibaldi, sente-se a oscilação entre o tom, predominantemente laudatório, e o acento crítico que por vezes ecoa textos anteriores em que a autoridade do culto revolucionário é questionado. Muito já se cogitou sobre a morte do poeta. Ao que tudo indica, o suicídio resultou de um conjunto de fatores, dentre os quais podemos listar a decepção com o potencial verdadeiramente revolucionário do movimento bolchevique. Numa conversa com Gabriel Caballero, em 1979, transcrita em seu livro Convergências, Octavio Paz explora a distinção entre as palavras rebeldia, revolta e revolução. O ponto de partida da conversa é a polêmica entre os filósofos Jean-Paul Sartre e Albert Camus, iniciada pela publicação do livro O homem revoltado, de Camus. Segundo Octavio Paz, “Rebeldia é um termo de origem militar e tem um matiz individualista; revolução e revolta são palavras irmãs, mas revolução é mais intelectual; é um termo filosófico, enquanto que revolta é mais antigo e espontâneo”. Em seguida, Paz aprofunda a diferença entre revolução e revolta, afirmando que a revolução transforma a revolta em teoria e sistema;
2 MAIAKÓVSKI O caráter experimental da sua poesia e de colegas de geração pareceu supérflua e anárquica ao estado revolucionário JAKOBSON 3 Linguista foi grande representante do formalismo russo, também perseguido pelo regime soviético
A tentativa de insubmissão da criação literária a uma ideologia de estado colocaria em choque artista e poder e a revolta seria a reação espontânea contra a injustiça. O exemplo que ele cita é o da Revolução Francesa, que teria começado como uma revolta (a Tomada da Bastilha), tendo sido logo depois “confiscada pelos ideólogos terroristas”. Assim teria ocorrido com todas as grandes revoluções, a de 1917, na Rússia, não fugiria a isso. É nessa perspectiva que os gestos de Maiakóvski e Camus exprimem a ideia da literatura e da poesia, da arte em geral, como um gesto essencialmente anárquico. Um gesto de autonomia radical, necessário ao poeta, ao artista, desde a utopia platônica que o proscreve ao exílio. As pressões que sofreu Maiakóvski, a perseguição aos formalistas russos, a revolução cultural
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chinesa… são repercussões do mesmo gesto higiênico de Platão, do seu senso de preservação da república perfeita ante o nocivo senso de livre criação do artista. Nesse sentido, a literatura e a arte em geral podem ser interpretadas como uma revolução permanente. Uma revolução crítica, gesto reflexivo que produz o combustível de sua própria atualização, como a semente de que nos fala mais uma vez Guimarães Rosa em Ave, palavra, gerando-se de suas próprias forças e limites. E se o clima fundamental da criação literária é a liberdade, quem poderá abrir mão da arte em nome de sobreviver? A escolha de Sofia não deve nunca ser a saída política. Perdido um dos filhos – ou a dignidade ou a arte –, como não esperar que uma parte de nossa humanidade morra, apodreça?
CONTEXTO ATUAL
A interrogação de como efetivar essa revolução permanente, que teria na poesia e na arte um ponto de partida, exige um gesto afirmativo, uma resposta, por assim dizer. E talvez haja uma resposta breve, humilde e, evidentemente, provisória. Resposta que
CON CAPA TI NEN TE tem encontrado ressonância na literatura e na arte do nosso tempo, cada vez mais voltadas para aquilo que podemos chamar de “pequenas utopias”. Com o desgaste das grandes utopias, das promessas de um futuro de justiça social amplo e definitivo, encaramos a dura tarefa de pensar a mudança ao alcance da mão, perto de casa, na relação com o vizinho, com nossos filhos, nossos amantes. Uma revolução diária que parece ser o tom da literatura. Embora pareça contraditório, o fracasso das grandes revoluções não deve minimizar a necessidade da revolução no vocabulário do homem contemporâneo. Principalmente como mito fundador da nossa época: como nos pensar sem o vislumbre de uma vida compartilhada mais justa? Como lutar contra as injustiças perversas para com a comunidade negra, contra as mulheres, contra LGBTs; contra a miséria, a pobreza, a falta de oportunidade, sem enxergar a possibilidade de mudança, de mudanças substanciais? Os acontecimentos políticos dos últimos anos, no Brasil e no mundo, potencializaram a necessidade das novas utopias, de um compromisso mais visceral com a política – e talvez, uma política mais visceral. A literatura tem captado essa reconfiguração e pode ter um papel importante, tanto criativa quanto criticamente, ao canalizar e conduzir essa energia de mudança para um espírito revolucionário cotidiano e atento às demandas reais de uma complexidade crescente. São exemplos disso as antologias Vinagre: uma coletânea de poetas neobarracos, organizada por Fabiano Calixto; e Inquebrável: Estelita pra cima, organizado por Wellington de Melo. Tanto o tom anárquico da primeira quanto a configuração pluralista da segunda se voltam para fenômenos políticos imediatos do contexto brasileiro – as manifestações de 2013 e o movimento Ocupe Estelita, que desafiou a especulação imobiliária que ameaça tornar o Recife uma cidade ainda mais desigual. Valorizar a participação política direta e repensar a cidade são bandeiras possíveis de um novo espírito revolucionário, menos propenso ao universalismo opressor das grandes ideologias. Muito cedo, entretanto, para avaliar tudo
GUSTAV KLUTSIS/REPRODUÇÃO
isso com clareza. Mas é um momento, como o de Maiakóvski, prenhe de futuro e de inquietação, marcado por um luto, mas também pela necessidade de reinvenção do sonho de reforma social. No âmbito da narrativa, dá-se o mesmo: o compromisso de um engajamento indomesticável. O crítico e professor da PUC–Rio, Karl Erik Schollhammer, em seu livro Ficção brasileira contemporânea, ao comentar o que seria uma nova tendência realista do romance e do conto brasileiros das últimas décadas, enfatiza o caráter comprometido com a expressão da realidade brasileira, mas sem se submeter a uma cartilha ideológica. Ao mesmo tempo, esse compromisso com as questões sociais do mundo contemporâneo não abdica de experimentar e ousar, demonstrando que a mentalidade inventiva e crítica da vanguarda foi
Mais do que nunca, hoje, o indivíduo despojado de heroísmo e de aura é o ponto de partida para a literatura e as artes assimilada e se tornou um espaço de ressignificação da literatura. Mais do que nunca, o indivíduo comum, despojado de heroísmo e de aura é o ponto de partida para a literatura e as artes. E, para esse indivíduo, a palavra revolução tem um significado urgente: a possibilidade de pensar que o mundo ainda pode ser modificado, transformado e que ele pode ter um lugar onde viver, exercer o seu desejo e a sua diferença. É preciso reconstruir o sentido de revolução, numa arqueologia dolorosa, mas necessária. Principalmente, numa época em que a democracia parece ameaçada pela loucura dos que sonham com um mundo novamente fechado para o diálogo e para a diferença. A literatura contemporânea parece acompanhar esses versos de Maiakóvski: “Apresento/ em lugar/ do registro partidário/ todos/ os cem tomos/ dos meus livros militantes”. 1
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ARTE Da vanguarda ao Realismo Socialista TEXTO Bárbara Buril
1 GUSTAV KLUTSIS Todos devem votar na eleição dos sovietes, cartaz de 1930
“Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”, era o lema do poeta Vladimir Maiakóvski durante os anos posteriores à Revolução de 1917, que deu fim ao regime czarista na Rússia, com a ascensão do Partido Operário Social-Democrata Russo, mais conhecido como Partido Bolchevique, liderado pelo revolucionário Vladimir Lênin. A expressão de Maiakóvski, que inspirou tantos artistas russos engajados com uma radical mudança do estado de coisas da Rússia naqueles anos iniciais do século passado, nos leva ainda a pensar em questões que ultrapassam barreiras geográficas e temporais: quais são os limites entre arte e política
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(se é que eles existem)? A política pode dizer qual é o lugar da arte? A arte pode abraçar a política, mais especificamente a política partidária? Uma arte política pode recair em uma estética panfletária? Certamente, os exemplos que a história das artes visuais na Rússia no início do século XX nos traz não respondem a essas perguntas de maneira categórica. Não nos dizem como a arte e a política devem se relacionar, mas como elas simplesmente se articularam naquele cenário social e político específico, hoje desintegrado. Comemorados neste ano de 2017, os 100 anos da Revolução de 1917 eram esperados por
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Mikhail Gorbachev, o último líder da União Soviética, com uma grande comemoração oficial – algo que não se concretizou. Em 25 de dezembro de 1991, Gorbachev anuncia, em rede nacional, o fim da União Soviética. Durante esses 69 anos de socialismo como política de estado, as artes visuais e decorativas foram do auge ao eclipse. Artistas visuais como Kazimir Malevich, Vladimir Tatlin, Aleksandr Rodchenko, Natalia Goncharova e Mikhail Larionov, embora não fossem exatamente revolucionários do Partido Bolchevique, acreditavam que a arte deveria acompanhar as mudanças revolucionárias que se davam na Rússia. “Mesmo antes da Revolução Russa, este círculo de artistas acreditava que a arte iria transformar o mundo. A Rússia foi um dos primeiros lugares a abraçar a arte moderna e esta arte moderna
realmente acreditava que poderia mudar o mundo. Estes artistas achavam que a estética e a arte teriam um efeito tal, que poderiam transformar o observador e, por sua vez, o mundo”, explica Erika Zerwes, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora da dissertação de mestrado A fotografia eloquente: arte e política em Aleksandr Rodchenko. A atuação política da maior parte desses artistas, como aponta Zerwes, não se daria por meio de armas, mas pela arte. Muitos deles participavam de comícios, no entanto. É importante ressaltar que, antes mesmo da Revolução Russa, também conhecida como Revolução de Outubro, os artistas visuais na Rússia czarista já estavam completamente imersos nos paradigmas estéticos modernos, participavam de grupos de artistas e
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faziam o que já se chamava, na Europa, de arte de vanguarda. Embora esses artistas não tivessem como preocupação principal uma abordagem estética da revolução e nem atuassem como revolucionários diretamente engajados com as ideias bolcheviques, eles recebiam a revolução com muito entusiasmo. Eram, em suma, modernistas que ansiavam por mudanças em um país de dimensões continentais ainda imerso em uma espécie de feudo absolutista, regido pelo czar Nicolau II. Como aponta o historiador da arte John Bowlt, no livro Russian art of the avant-garde: theory and criticism (em tradução livre para o português, Arte russa de vanguarda: teoria e crítica), antes da revolução, já existia uma espécie de espírito revolucionário e anarquista que inspirava as atitudes dos artistas naquela época pré-revolucionária. Os artistas Mikail Larionov e Natalia Goncharova, por exemplo, escandalizavam o público ao andarem por lugares requintados em Moscou com os corpos e rostos pintados. Malevich publica, no jornal Anajiia em 1918, 18 declarações incitando os artistas a apoiarem um novo estilo de vida trazido pela revolução. Rodchenko pinta uma série de quadros pretos sobre preto. Ivan Puni declara, em um panfleto distribuído na exposição 0.10, em 1915, em Petrogrado, que “2 x 2 é qualquer coisa menos quatro”. Para Bowlt, portanto, já existia uma espécie de tendência à anarquia e à revolução entre os artistas da Rússia pré e pós-revolucionária. O que era novo significava modernização e poderia trazer o tão esperado ambiente democrático que a Rússia czarista já não oferecia. De modo geral, foi com o sentimento de boas-vindas entre os artistas que os bolcheviques assumiram o poder. Entre eles, no entanto, havia fortes divergências, quando se tratava de como a arte deveria ser realizada naquele momento. Embora, tradicionalmente, críticos e historiadores buscassem reunir todos esses artistas sob o denominador comum de “vanguardas russas”, havia relevantes diferenças entre eles, que se traduziam frequentemente em conflitos abertos. “A história dos manifestos dos vanguardistas russos (assim como de suas exposições) é
2 MALEVITCH Composição suprematista, 1915 RODCHENKO 3 Pôster de propaganda para a editora do estado soviete, 1924
uma história de constante contradição, paradoxo e aniquilação mútua”, escreve John Bowlt, no ensaio Agentes de la anarquía (em português, Agentes da anarquia), que integra o catálogo da exposição Vanguardias rusas, que aconteceu em 2006, no Museu Thyssen-Bornemisza, em Madri.
SUPREMATISMO X CONSTRUTIVISMO
Como aponta Bowlt, as vanguardas russas iam desde o nadismo ou niilismo até o raionismo, o Futurismo e o Expressionismo. O Construtivismo e o Suprematismo também eram correntes de vanguarda, que ficaram mais conhecidas por terem se desenvolvido na Rússia de forma pioneira. O Suprematismo, representado por Malevich, por exemplo, não só tinha como prioridade a forma geométrica pura como também tinha especificamente o quadrado como base de seu pensamento formal, em uma oposição aberta à arte figurativa. O quadrado seria a semente de todas as possibilidades, a forma básica do suprematismo. Como escreveu Malevich, no manifesto Do Cubismo e do Futurismo ao suprematismo: o novo realismo na pintura,
Durante os 69 anos de socialismo como política de estado, as artes visuais e decorativas foram do auge ao eclipse de 1915: “Mas eu me transformei no zero da forma e a partir do zero eu atingi a criação, ou seja, o suprematismo, o novo realismo pintado – criação não objetiva. (…) Na arte do suprematismo, formas irão viver, como todas as formas vivas da natureza. Estas formas anunciam que o homem atingiu o seu equilíbrio”. No entanto, é preciso ressaltar que, provavelmente ao contrário do que desejava Malevich, não havia tantos artistas engajados com o suprematismo, bastante rigoroso nas suas premissas. “Embora Malevich tivesse seus seguidores e ainda que em 1916 tenha se organizado o grupo Supremus (do qual fazia parte Popova, Rozanova, Kliun, Udaltsova, Menkov, Pestel, Davydova, Puni), entre seus integrantes praticamente não havia autênticos suprematistas”, escreve a
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pesquisadora Tatiana Goriacheva, do Departamento de Artes Gráficas do Século XX da Galeria State Tretyakov, no ensaio Suprematismo y constructivismo: paralelismos y entrecruzamientos (em português, Suprematismo e construtivismo: paralelismos e entrecruzamentos). Goriacheva também aponta que, para alguns artistas, o suprematismo foi mais uma espécie de inspiração para a própria formação do que propriamente um manual para a ação. Dessa maneira, muitos artistas acabavam adotando escolhas estéticas mais livres, não tão presas ao rigor do suprematismo de Malevich. O construcionismo de Vladimir Tatlin, que se desenvolveu simultaneamente ao suprematismo, acabou recebendo aqueles artistas que queriam converter os planos de cor suprematista em construções geométricas, em monólitos ou em formas que tendiam à tridimensionalidade, como concebia Tatlin. Mas, como mostra Goriacheva, o grupo de seguidores de Tatlin era tão instável como o de Malevich. As diferenças entre Malevich e Tatlin e Rodchenko, estes dois últimos do Construtivismo, se traduziam em conflitos que iam mais além do terreno profissional. Não só Malevich
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4 O CICLISTA, 1913 Obra de Natalia Goncharova, uma das poucas mulheres a serem citadas na vanguarda russa 5-6 REALISMO
SOCIALISTA
ara o estado P soviete, o papel dos artistas era enaltecer a Revolução
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não hesitava em criticar fortemente a racionalidade e o espírito utilitário do construtivismo como, depois da Revolução de 1917, houve um choque na vida cotidiana entre Malevich e Rodchenko, de modo que a aquisição de obras, a influência da imprensa e a concessão de tarefas para ambos se viram afetadas diante da rivalidade entre eles. No entanto, como enfatiza a pesquisadora Erika Zerwes, “apesar dos conflitos, todos eles conviviam e eram, de um modo geral, a favor da revolução”.
O AUGE
Assim, apesar dos conflitos entre alguns suprematistas e construtivistas, é importante ressaltar que foi logo após a Revolução Russa que a arte de vanguarda mais se desenvolveu. “Desde o primeiro momento depois da revolução, deu-se muita atenção às artes. Nos primeiros 12 meses, Lênin promulgou mais de 200 decretos em relação à arte e escolheu uma pessoa fundamental para ser comissário de arte, o Anatóli Lunatchárski”, explica Erika Zerwes.
Mesmo com conflitos entre suprematistas e construtivistas, foi depois da Revolução que a vanguarda russa se desenvolveu Lunatchárski, que tinha um conhecimento muito amplo sobre arte, transitava pelos artistas e estimulava, através de políticas públicas articuladas, o florescimento da arte moderna na União Soviética. Incentivou a formação de grupos de artistas semi-independentes, como o Proletkult (em português, “cultura proletária”), que incentivava a produção de uma literatura de cunho social e político acessível ao povo, projetando artistas como Mikhail Gerasimov e Vladimir Maiakóvski. A política do Comissariado Popular de Instrução, gerenciado por Lunachárski, era que a arte deveria se basear nos valores do povo e servir ao crescimento espiritual deste.
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É assim que surge, então, um poderoso complexo de propagandas. As artes gráficas assumem a nova linguagem política e começam a construir a ideia de um “Novo Homem Soviético”: sendo operário ou campesino, teria uma família feliz, as necessidades básicas atendidas e uma confiança irreparável no destino trazido pela revolução. Um complexo de propaganda lançado pelo Comissariado Popular de Instrução buscava – através da escultura, arquitetura, pintura, artes gráficas, porcelana, móveis, entre outras linguagens – realizar uma extensa propaganda artístico-comunista, recorrendo a temas como símbolos do comunismo, desfiles, fábricas, campesinos trabalhando na lavoura, carroças e danças. Os cartazes ornavam a cidade, quando havia festividades políticas, como o aniversário de Revolução de Outubro. Certamente, se a União Soviética ainda existisse como nos seus primeiros anos, o cartaz de 2017 seria cuidadosamente preparado por algum dos artistas mais brilhantes de lá. Quem sabe, um seguidor de
Rodchenko. Foi este, aliás, quem criou os cartazes mais impactantes dos primeiros anos da revolução, como o anúncio publicitário para a seção da imprensa estatal de Leningrado, intitulado Livros, ou os cartazes de propaganda sobre a aviação russa. O juramento de Rudolf Frents, Levanta a produção! e Aliança entre o campo e a cidade, de Artur Kletenberg, todos de 1924, são cartazes políticos que se destacaram nas produções gráficas da época, pela inventividade estética no uso de cores e formas geométricas e, de alguma maneira, por serem cartazes políticos que, embora defendam uma determinada ideologia, não recaem em um mero panfleto.
DECADÊNCIA
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As artes visuais e decorativas das primeiras décadas da União Soviética entram em crepúsculo quando Josef Stálin assume o poder em 1922, após seu afastamento por um problema de saúde. “Em 1930, Stálin fez um decreto proibindo os diferentes grupos de arte, juntando todos em um único movimento, chamado Realismo Socialista”, detalha a pesquisadora Erika Zerwes. Ela também conta que Rodchenko, por exemplo, conhecido por suas fotografias e cartazes vanguardistas, passa a fazer fotojornalismo durante o stalinismo, registrando os grandes empreendimentos lançados pelo então ditador soviético. As vanguardas artísticas passaram a ser criticadas, então, como correntes de orientação estética burguesa. O Realismo Socialista, representado de maneira emblemática nas pinturas de Alexander Gerasimov e Isaak Brodski, nas quais Stálin se torna o centro ao redor do qual gira a vida política na União Soviética, encerra a produtividade inventiva das duas primeiras décadas do século passado naquele país. Não é impróprio afirmar que a experimentação estética perde importância, então, quando o que interessa é ser evidente e óbvio na abordagem temática – em uma subestimação intelectual e artística de um povo já habituado com as subversões de um Malevich, Tatlin ou Rodchenko. É com Stálin, então, que o declínio político e estético da União Soviética se realiza.
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MÚSICA Contra todo subjetivismo TEXTO Carlos Eduardo Amaral
No ambiente musical vigente durante o regime leninista (1917–1924), o único postulado estético que valia era o de evitar uma “arte burguesa”, ou seja, de cunho subjetivista, tal qual apreciada pela elite e pela nobreza defenestradas pelos mencheviques e sepultadas pelos bolcheviques. Dessa forma, um assumido romântico tardio como Sergei
Rachmaninoff (1873–1943) deixou a Rússia logo após a Revolução, junto com mulher e filhas, e teve sua música banida em solo natal. O compositor de Rapsódia sobre um tema de Paganini radicouse nos Estados Unidos em 1918, após um ano de passagem pela Escandinávia, e, no ano em que faleceu, naturalizou-se no país que o acolheu e idolatrou.
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Por sua vez, Igor Stravinski (1882– 1971) já vivia na Suíça em 1917, morou na França de 1920 a 1939 e emigrou para os Estados Unidos, onde também se naturalizou. Os balés russos de Stravinski (O pássaro de fogo, Petrúchka e A sagração da primavera), apesar de inequivocamente russos no enredo, desenvolveram uma original sonoridade, gradualmente complexa na harmonia e agressiva no ritmo, não servindo para a corrente tradicionalista que dominou a estética musical soviética, nem para os futuristas. O autor da Sinfonia dos Salmos voltou à Rússia, a convite de Nikita Khrushchev (1894–1971), para uma série de concertos com suas composições. Em pessoa, o então presidente soviético propôs-lhe voltar a fixar-se no país, sem obter aceite. Já Sergei Prokofiev (1891–1953) deixou a Rússia em 1918, não por discordâncias com o regime, mas para alavancar a carreira como pianista e
1 STRAVINSKI Embora russos em seus enredos, os Balés do compositor não serviam à corrente tradicionalista que dominou o período histórico
música, mas agregou muitos artistas futuristas e fomentou a criatividade musical dessa vertente. O efervescente futurismo russo teve como experiência mais radical e bemrecepcionada pelas autoridades a Sinfonia de sirenes de fábrica, de Arseni Avraamov (1886–1944), com seus cerca de 40 minutos de duração e um instrumental peculiar, que incluía – além das sirenes de fábrica – apitos de navio, buzinas de carros e ônibus, canhões, motores de hidroaviões, armas de artilharia e outros aparatos mecânicos e bélicos que se possa pensar. O ultraexperimentalismo da Sinfonia de sirenes de fábrica antecipava a relevância que iria ser dada à matéria sonora bruta com a música concreta,
No regime leninista, o postulado estético era o de evitar a “arte burguesa”. Assim, vários músicos deixaram o país não correr o risco de ser tolhido em sua atividade de compositor, tanto que, em 1935, depois de morar em diversas cidades norte-americanas e europeias, Prokofiev voltou a viver em seu país – e não escapou das pressões da União dos Compositores Soviéticos, sindicato oficial da classe fundado em 1932 e que sucedeu a Associação Russa dos Músicos Proletários (ARMP), existente desde 1925. Na Rússia leninista, experimentalismo e conservadorismo coexistiam relativamente bem. Havia espaço para o Movimento Proletkult (proletárskaya kultura, ou seja, cultura proletária), que fazia arte de linguagem mais acessível, embora sem propagandismo obrigatório do regime – e, por isso, não caiu por muito tempo nas graças da intelligentsia bolchevique (isto é, da elite intelectual governista). O Proletkult estabeleceu uma nova estética nas artes gráficas, não na
em 1951, e só viria a ser superado em audácia (quando falamos da sinfonia como gênero de composição) pela Sinfonia de Luciano Berio (1925–2003), no final dos anos 1960. Se estreada 10 anos após sua concepção, a peça de Avraamov certamente sofreria censura da União dos Compositores, que veio a ditar a cartilha do realismo socialista para seus afiliados. Como foi estreada em 1922 – no porto de Baku, capital do Azerbaijão –, para celebrar o quinto aniversário da Revolução, passou incólume como obra exaltadora do proletariado.
MOSSOLOV
Porém, se existe uma obra musical que pode ser tomada como ícone do futurismo russo, essa é Zavod: muzika machin, op. 19 (Fábrica: música-máquina), mais conhecida como Forjaria de aço, de Alexander Mossolov (1900–1973). O impacto visual e sonoro da
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execução – com a batida regular e martelada da percussão, as trompas dispostas pela sala de concerto, o emaranhado textural das cordas e do flautim, e os aflitivos e progressivos ostinati (células rítmico-melódicas repetitivas) – imprime a qualquer ouvinte a atmosfera mecânica e sufocante de uma fábrica siderúrgica, especialmente na seção final da obra, em que uma folha de flandres e uma bigorna reforçam a percussão. A suíte para o balé Stal (Aço), estreada em 1927, possuía quatro movimentos: Zavod, o primeiro, e mais três que se perderam – Na prisão, No baile e Na praça. Outras duas peças “fora da caixa” de Mossolov também garantiram fama ao compositor, pelo cunho insólito: Três cenas infantis, op. 18 e Quatro anúncios de jornal, op. 21, ambas para meiosoprano solista e orquestra, nas quais Mossolov se vale de dois tipos de textos banais: miados, zumbidos e deboches com a avó, em episódios domésticos; e anúncios de um caderno de classificados, incluindo o de um cão setter inglês à venda. Em 1932, o realismo socialista tornou-se a diretriz oficial da arte soviética, cabendo a supervisão de sua implantação, na música, pelo órgão criado para tal, a União dos Compositores Soviéticos – em outras palavras, a entidade responsável pelo patrulhamento estético-ideológico dos compositores do país. Mossolov, como diversos colegas de ofício, passou por um severo acossamento para se “adequar” às normas e chegou a apelar, sem sucesso, a Stálin, para que intermediasse em seu favor. Quatro anos depois, Mossolov procurou se reabilitar com a União dos Compositores por conta de imbróglios de caráter pessoal, mas não comoveu a nomenklatura e acabou gentil e piedosamente enviado para um gulag no ano seguinte, sendo liberado do degredo em agosto de 1938 por intervenção de seus professores Glière e Miaskóvski, do Conservatório de Moscou, e proibido de fixar-se em Moscou, Kiev e São Petersburgo (então Leningrado) até 1942. Depois disso, dedicou-se a basear suas composições em temas folclóricos turcomenos, tadjiques e quirguizes, bem ao estilo que agradava à “União”.
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GRUPO DOS CINCO
A maior simpatia da nomenklatura dirigiase às obras do Mogutchaya Kutchka, ou Grupo dos Cinco, baseadas na música dos povos russos e conquistados pela Rússia, e de feitura tonal ou modal. O Grupo dos Cinco, vale lembrar, eram: o russo Mily Balakirev (1837–1910), o médico e químico georgiano Aleksandr Borodin (1833–1887), o lituano César Cui (1835–1918) e os militares russos Modest Mussórgski (1839–1881) e Nikolai Rímski-Korsakov (1844–1908) – este, a maior referência em orquestração no século 19, ao lado do francês Hector Berlioz (1803–1869). Todos os cinco estão enterrados no Cemitério Tikhvin, em São Petersburgo, o mesmo de Dostoiévski e dos companheiros de ofício Anton Rubinstein, Aleksandr Glazunov, Mikhail Glinka e Piotr Tchaikovski. Glinka (1804– 1857), tido como o “pai” da música russa, foi o primeiro compositor a construir linhas melódicas russificadas, mantendo a estrutura e o tratamento vocal operístico do bel canto italiano (seguindo a linha de Rossini, Bellini e Donizetti) e sinalizando, assim, um caminho que os cinco retomaram, no embalo do movimento narodista (populista). A rigor, nenhum membro do grupo pertencia aos narodniks, intelectuais da elite que visavam a mobilizar a classe camponesa contra o regime czarista, na segunda metade do século XIX, aproximando-se e assimilando os costumes desta (experiência fracassada, pela desconfiança e rechaço violento dos camponeses, que serviu para os narodniks se voltarem, dessa vez com sucesso, ao proletariado urbano, preparando o terreno para a revolução de poucas décadas depois). Mas os cinco contribuíram para disseminar a musicalidade de todos os recantos do Império Russo em suas sinfonias, óperas, peças para piano, canções, sonatas etc. e libertar-se das cartilhas francesas, italianas e alemãs. Apesar de usar fontes russas como inspiração em parte significativa de sua obra, Tchaikovski (1840–1893) foi desprivilegiado com a ascensão do regime comunista por ser um compositor do gosto da burguesia – e, ele próprio, um burguês sustentado por uma patronesse burguesa, Nadejda von Meck (1831–1894).
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2 RACHMANINOFF Sua obra foi proscrita pelo regime
4 BALÉ RUSSO A sagração da primavera, 1913
PROKOVIEV 3 Compositor teve que limar sua obra
REALISMO SOCIALISTA
O embate entre futuristas (que defendiam uma radical ruptura com o passado) e tradicionalistas pendeu cada vez mais para o lado destes últimos, à medida que os anos 1920 foram passando e o regime comunista soviético foi adquirindo maior controle da economia, até cessar a Nova Política Econômica de Lênin (1922–1928) e, por tabela, o estímulo artístico via mecenato, que beneficiava todas as vertentes. Com o Estado financiando exclusivamente a arte, vinham junto as diretrizes que deveriam ser obedecidas – nominadas oficialmente, em 1932, de “realismo socialista” e balizadas, em 1934, por quatro pressupostos, a serem seguidos conjuntamente: foco no trabalhador, no seu universo de vivência, na realidade e na lealdade ao Estado e ao Partido Comunista, ou seja, a arte tinha de ser proletária, típica, figurativa e partisana. Por isso, o individualismo subjetivista – seja de viés emotivo, como em Tchaikovski e Rachmaninoff, seja abstracionista, como em Scriabin
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(1872–1915) –, e o experimentalismo futurista foram proscritos sob o rótulo genérico de “formalismo” (utilizado também pelo regime nazista), denegrindo retroativamente a escola literária conhecida por esse termo. Estamos falando de música, mas as artes como um todo, por definição, ficaram sob amarra, já que se encontravam no contexto de um Estado totalitário. Ao artista se impunha a obrigação de beber nas fontes populares e destinar sua arte ao próprio povo, evitando, ainda por cima, a tragédia e o negativismo (o regime nunca poderia passar uma sugestão emocional ruim). A fuga à cartilha realista rendia a censura governamental e o descrédito, como aconteceu com Chostakovitch após a estreia de suas duas mais aclamadas óperas: O nariz (1930) e Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk (1934) – esta, execrada por quase 30 anos, após artigo publicado no Pravda em 1936, atribuído a Stálin.
JDANOV
A despeito da tirania do líder máximo soviético, nenhuma outra figura, na cultura soviética, deteve tanto poder quanto Andrei Jdanov (1896-1948), que ocupou o comando do soviete supremo (parlamento) da República Soviética da Rússia entre 1938 e 1947 e policiou ferrenhamente a arte produzida no regime stalinista (1924–1953),
não poupando de seus caprichos em forma de penalidade sequer os compositores mais conceituados de então: Chostakovitch, Prokofiev e o georgiano (de etnia armênia) Aram Khatchaturian (1903–1978). Os dois primeiros destacavamse, inclusive por exaltar os feitos da revolução ou propagados por ela. A Sinfonia n° 11 de Chostakovitch rememora o Domingo Sangrento, de 1905; a n° 7, a invasão de Leningrado pelos alemães em 1941; e a n° 5 foi utilizada como trilha sonora opcional ao célebre filme Encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein (1898–1948). Prokofiev limou a violência percussiva de seus concertos para piano e suas primeiras sonatas para piano para produzir música bem mais palatável, nem por isso menos brilhante, como Pedro e o Lobo, o balé Romeu e Julieta, a suíte Tenente Kijé e outras duas obras-primas do cinema épico-bélico, também de Eisenstein: Ivan, o Terrível e Aleksandr Névski. Jdanov foi o criador do Cominform (órgão liderado pelo Partido Comunista da União Soviética que coordenava os demais partidos dos países filiados ao
Como em outros regimes totalitários, o da URSS criou órgãos de repressão e censura e isso incidiu sobre toda a arte Pacto de Varsóvia) e dos Congressos de Compositores Progressistas, de cuja segunda edição, em 1948, participaram Cláudio Santoro (1919–1989) e o pianista Arnaldo Estrella (1908–1980), além de Hanns Eisler (1898–1962), principal nome da composição na extinta Alemanha Oriental, autor do hino desse país e parceiro artístico de Bertolt Brecht. Por pertencer aos quadros do Partido Comunista Brasileiro, Santoro teve a entrada para os Estados Unidos negada e não pôde desfrutar de uma bolsa que havia ganhado da Fundação Guggenheim. Isso o impeliu a ir até Praga, sede do congresso, e tomar parte das discussões sobre o realismo socialista, abrindo mão de fazer o exame de conclusão do curso de
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regência no Conservatório de Paris. O compositor amazonense voltou ao Brasil motivado pelos resultados e mudou sua ótica artística, vindo a legar peças representativas nesse sentido, como a Sinfonia n° 4 “Da paz” e o Canto de amor e paz, mas enfrentou dificuldades constantes para encontrar emprego, por conta de sua militância política, ao mesmo tempo em que era executado, aplaudido e gravado nos países da Cortina de Ferro. A mesma recepção foi dada a José Siqueira (1907–1985) em Moscou, quando do autoexílio na União Soviética (por haver sido cassado pelo AI n° 5). Por isso, suas obras mais significativas foram registradas por conjuntos orquestrais e corais soviéticos. E, verdade seja dita, aproveitando-se o ensejo: nunca o regime soviético pensou em extinguir orquestras, bandas e corais em nome da suposta “popularização” das artes ou do remanejamento de gastos. Apenas em países de jecas-tatus se tolhe a cultura musical erudita quando, até nos tempos do despotismo esclarecido do século XVIII, a elite política sabia do poder e do status que ela confere a um povo e a uma civilização.
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TEATRO Palco manchado de sangue TEXTO Astier Basílio
1 ENSAIO Tchekov (ao centro) lê sua peça A gaivota para integrantes do Teatro de Arte de Moscou
Em 1917, quando aconteceu a
Revolução de Outubro, era na Rússia que se fazia o melhor teatro em todo o mundo. Foi o que constatou Oliver M. Sayler, crítico de teatro norte-americano, ao desembarcar em Moscou no mês em que os bolcheviques consolidaram o poder. Pouco tempo depois, Sayler publicou o livro The theatre under revolution (Little, Brown and Company, 1920), no qual afirmou: “O teatro russo, como eu vi, durante o inverno de 1917–1918, era essencialmente o mesmo teatro que nas últimas duas décadas havia ocupado a liderança nos palcos modernos”. Aos 54 anos, Konstantin Stanislavski já era um nome consolidado. Suas pesquisas redundariam na criação de um método com ênfase na criação do personagem cujas ideias são discutidas até hoje. Naquele
momento, a principal voz de contestação ao seu trabalho advinha de um antigo aluno seu, Vsevolod Meyerhold. Os dois, que também eram atores, estiveram juntos no elenco da montagem de A gaivota, de Tchekov. A produção foi montada em 1898, ano em que teve início o Teatro de Arte de Moscou, companhia fundada por Stanislavski e Danchenko, que fora professor de Meyerhold. Em A gaivota, o consagrado Trigorin e o rebelde Treplev, escritores de gerações diferentes, foram interpretados, respectivamente, por Stanislavski e Meyerhold. Era um prenúncio o que ocorreria na vida real. Em 1904, Meyerhold procuraria seu próprio caminho como encenador. No ano seguinte, houve uma tentativa de conciliação e eles abriram juntos um estúdio. Uma das peças na qual se debruçaram foi A morte de Titangiles, do belga Maeterlinck,
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cuja dramaturgia simbolista tanto interessava a Meyerhold, que ansiava por outras possibilidades estéticas além do Realismo. Mas em 1905, ano de abertura do malogrado estúdio, a Rússia presenciou uma série de acontecimentos turbulentos, marcados por protestos contra a monarquia, sendo o mais emblemático deles a revolta do navio de guerra Encouraçado Potemkin. Evento que ficaria famoso, anos depois, quando o cineasta Sergei Eiseinstein transformou o episódio em filme. A frustrada Revolução de 1905, como ficou conhecida, foi o prenúncio da triunfante Revolução de Outubro. A razão do estúdio não ter prosperado é descrita por Laurence Senelick, em Historical dictionary of Russian theater (The Scarecrow Press, 2007): “Eventos
políticos e argumentos sobre ‘este exclusivamente teatro teatral’, no qual ‘a vida era banida do espírito humano’, levaram Stanislavski a dissolvê-lo antes de abri-lo”.
ADESÃO E DESCONFIANÇA
Em 1906, Meyerhold foi convidado a trabalhar em São Petersburgo, então, capital do império russo, cidade onde se fixou estabelecendo, assim, um contraponto geográfico com Stanislavski, que se mantivera em Moscou. Há um certo simbolismo no fato de a Revolução Bolchevique ter se iniciado em fevereiro nas fábricas de São Petersburgo, onde Meyerhold estava morando. O seu entusiasmo com a nova ordem foi tanto, que chegou a se filiar ao Partido Comunista. Como boa parte da classe teatral da época, Stanislavski mantevese reticente. Integrantes de sua
Com atores e diretores teatrais ocorreu também, durante a Revolução Bolchevique, a busca de refúgio no exterior companhia, porém, em turnê pela Ucrânia, decidiram emigrar para Europa. Dava-se início a uma leva de diretores, dramaturgos e artistas que iriam, ao longo dos anos, encontrar refúgio no exterior. Poucas semanas após a consolidação do poder dos bolcheviques, o comissário de Instrução Pública, Anatóli Lunatchárski convocou os principais artistas da Rússia. Na pauta constava a reorganização das artes. Apenas cinco dos 120 convidados compareceram. Entre eles, Meyerhold
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e o seu parceiro Maiakósvki, poeta que começara a escrever para teatro.
AS ILUSÕES DA VANGUARDA
O Comissariado de Instrução Pública estatizou todas as casas de espetáculo. A diretoria do setor responsável pelo teatro foi entregue a Meyerhold. O encenador criou o Outubro Teatral, um conjunto de ideias cujo objetivo era transpor aos palcos os ideais da Revolução. Entre os princípios defendidos por Meyerhold estavam a negação do teatro apolítico e das normas estéticas burguesas do realismo psicológico. Essas eram medidas para abrir o caminho para uma nova plateia. Visão semelhante tinha seu parceiro, Maiakósvki. O poeta insistia em que toda arte anterior tinha de ser abolida e que o teatro deveria começar do zero. O ímpeto iconoclasta dos artistas, que serviu aos revolucionários
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2-3 MONTAGENS Peças a partir dos textos literários A gaivota (Tchekov) e O poder das trevas (Tolstói) 4 MEYERHOLD Autor foi perseguido e morto pelo regime soviético STANISLAVSKI 5 Dramaturgo era admirado por Stálin
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na campanha pela derrubada da monarquia, se transformou em algo incômodo no momento em que os bolcheviques se tornaram chefes do governo. Quando Meyerhold declarou “guerra civil no teatro”, o comissário de instrução pública, Lunachárski, que havia colocado sob sua supervisão algumas das maiores companhias, não endossou o radicalismo de seu subordinado e o demitiu. Apesar do esforço do novo regime em promover novos talentos, instituindo concursos, no campo da dramaturgia, não surgia nada notável. Tanto é assim que, em 1926, quando a censura quis banir Os dias dos Turbín, do escritor Bulgakov, a
voz em contrário partiu do próprio Stálin, que assistira ao espetáculo nada menos que 12 vezes. Por outro lado, a peça desagradou a Maiakósvki, que, embora não apoiasse sua censura, ameaçou organizar uma vaia na plateia. A justificativa para salvar o texto de Bulgakov, dada por Stálin, era a de que não havia, até então, uma “dramaturgia soviética digna”. Ao contrário de Lênin, que não gostava de ir ao teatro, Stálin era um frequentador assíduo de casas de espetáculos – desde que essas dispusessem de uma tribuna de honra. Talvez porque a declaração pública de apoio a Stálin tenha
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ocorrido em 1937, um ano antes de morrer, pouco se menciona esse deplorável fato na vida de Stanislavski. A história é mencionada no livro Anton Tchekov at the Moscow art theatre (Routledge, 2005), traduzido e editado por Vera Gottlieb, no qual, em uma nota, se lê: “(…) Antes de Revolução, Stanislavski e NemirovichDanchenko (seu sócio) eram ricos latifundiários e comerciantes – o que é muito irônico que Stanislavski tenha se tornado amplamente prestigiado por Stálin mais do que o bolchevique Meyerhold, que pereceu em suas mãos. A potencialmente perigosa (mas também discreta) aprovação de Stanislavski por Stálin, que via no ‘naturalismo’ do Teatro de Arte de Moscou algo de acordo com o realismo socialista, é uma história que permanece sem ser contada”. Coincidência ou não, poucos meses após a declaração pública de Stanislavski, foi expedida uma ordem de fechamento do teatro de Meyerhold. Ele se opusera frontalmente ao realismo socialista, que desde 1934 se convertera em política de estado. Em mais um lance complexo entre a amizade dos dois, Meyerhold foi amparado por Stanislavski, que o convidou para trabalharem juntos. Meses após a morte de Stanislavski, foi-se o escudo que protegia Meyerhold. Mandado à prisão, foi torturado e morto com um tiro, em 1940.
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LEGADO ARTÍSTICO Em 1955, a União Soviética passaria por um momento intenso de reavaliação, devido ao fato de Nikita Khrushchev ter revelado ao mundo os crimes de Stálin, o que redundou em várias reabilitações de personalidades, a exemplo de Meyerhold. Foi neste período que um jovem polonês de 22 anos chamado Jerzy Grotowski chegou em território russo para estudar teatro. Após sua experiência, Grotowski, que se tornou o maior encenador do século XX, disse que foi com Stanislavski que ele aprendeu como trabalhar com os atores, mas que tinha sido com Meyerhold que, como diretor, ele aprendera as possibilidades de criação de cena. Na dramaturgia, um dos nomes de maior relevância, naquela primeira metade do século XX, é o de Bertolt Brecht. Imbuído do ideário marxista, o dramaturgo e poeta alemão manteve com o establishment soviético uma relação de fidelidade. Porém, quando a Alemanha de Hitler fechou o cerco contra ele, no final dos anos 1930, Brecht optou por emigrar para os
O romeno Matéi Visniec é hoje o maior expoente dramatúrgico dos escombros da União Soviética Estados Unidos, recusando-se a ficar em Moscou, onde muitos de seus amigos estavam sendo fuzilados durante os expurgos de Stálin. Nos dias atuais, é da Romênia que vem Matéi Visniec, o maior expoente dramatúrgico dos escombros da União Soviética. Curiosamente, foi lá que houve a maior resistência anticomunista do Bloco Leste. O dramaturgo se tornou uma verdadeira sensação no teatro brasileiro. Em 2014, no Festival de Curitiba, houve três montagens de textos seus. A editora É Realizações publicou nada menos que 20 peças de sua autoria, entre as quais, Ricardo III está cancelada – Ou cenas da vida de Meierhold, na qual o poder do teatro fulgura contra o autoritarismo.
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Com inspiração do teatro popular da Revolução Francesa, os bolcheviques trataram as artes cênicas como ferramenta de formação política e ideológica e investiram, de modo significativo, na formação de plateias. É tocante o depoimento de Stanislavski, ao constatar o novo público que chegava ao seu teatro. “Foram apresentações muito interessantes e eles nos ensinaram um excelente pacto; eles nos forçaram a sentir completamente a nova atmosfera da plateia. Nós começamos a entender que essas pessoas vinham ao teatro não para serem entretidas, mas para aprender (…)”. Pelo menos uma discussão instaurada desde o começo da Revolução ainda não se resolveu e é tema de constantes debates: a separação entre palco e plateia, a hierarquização da arte em relação à vida. Toda vez que se discute esse assunto é como se dessem polimento em uma antiga estrela que se enferrujou, mas ainda consegue brilhar.
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CINEMA Das escadarias de Odessa para o mundo TEXTO Alysson Oliveira
Não dá para comprar a revolução. Não dá para fazer a revolução. Só se pode estar na revolução. Está no seu espírito, ou não está em lugar nenhum. Ursula K. LeGuin, escritora de ficção científica norte-americana
Poucos cenários são tão emblemáticos quanto a escadaria da cidade de Odessa, na Ucrânia, em O Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein. Seus degraus são o palco que sedimentou uma imagem icônica do cinema.
Não é apenas a narrativa de tensão de classe explícita que estabeleceu a perenidade do longa de 1925, mas como seu diretor usava ali uma técnica de montagem que ele mesmo teorizou. Depois daqueles tiros, aqueles corpos caindo, e todo um extrato da sociedade lutando contra uma história de opressão e tirania, nunca mais o cinema, nem o mundo, foi o mesmo. Embora a Revolução de 1917 e o que veio depois sejam divisores nas águas do cinema russo, é inegável que já existia um cinema produzido no
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país dos czares. Porém, a impressão que se tem hoje é de que o cinema passou a existir por lá só depois do surgimento da União Soviética, só com Eisenstein e Dziga Vertov. Como se sabe, uma profunda mudança na base da sociedade – política, economia – reverberará, é claro, nas outras estruturas, como a cultura. Fundados no final da primeira década do século XX, segundo o historiador do cinema David Parkinson, em seu History of film, os estúdios russos estavam “sob a censura czarista e tinham produção limitada de entretenimento medíocre e escapista”. O primeiro filme russo de que se tem notícia é o curta Stenka Razine, de Vladimir Romashkov, sobre um grupo de foras da lei vivendo às margens do Rio Volga. Poucos anos depois, o país já contava com mais de mil salas de exibição, mas a maior parte do que era exibido nas telas russas era de filmes importados. Foi nos anos entre a Revolução e a ascensão de Stálin que os cineastas soviéticos foram capazes de inventar uma nova linguagem que influencia a
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1-2 EISENSTEIN Obra monumental, O Encouraçado Potemkin é classico do cinema russo
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arte cinematográfica até hoje. Eisenstein e Vertov perceberam como ordenar e combinar imagens a fim de transmitir uma ideia, mais do que simplesmente contar uma história. Assim, perceberam que ritmo de montagem e música, por exemplo, seriam capazes de transmitir ou evidenciar emoções. Em 1919, a indústria cinematográfica foi nacionalizada; foi criada, também, a primeira escola de cinema do mundo, em Moscou, a VGIK, que começou treinando atores, e existe até hoje. A partir daí, a produção cinematográfica pôde ser usada como forma de educação e propaganda. O cinema deixa de lado a ortodoxia católica, que moldava a sociedade russa pré-revolucionária, para se estabelecer como parte da promessa comunista de um mundo melhor. As obras dessa época eram claramente propagandísticas, exaltando a coragem e força do povo soviético. Ainda assim, a produção cinematográfica foi capaz de levar questões políticas à estética. “Os cineastas russos participavam de um movimento político que acreditava
Na URSS, o cinema se tornou uma ferramenta de propaganda capaz de falar às massas com facilidade na possibilidade de libertar a arte da condição de separação e isolamento na qual havia colocado a cultura ‘burguesa’ e de fazer dela um dos elementos propulsores da construção de uma nova sociedade”, conforme aponta o historiador italiano de cinema Antonio Costa, em seu livro Compreender o cinema. O cinema czarista russo era bem menos avançado, técnica e esteticamente, do que aquele praticado no restante da Europa, e a Revolução acabou, é claro, por abortar qualquer desenvolvimento que poderia vir a ele. O impacto desse cinema em seu púbico era imenso, uma vez que este era constituído sobretudo pelo proletariado urbano e rural sem contato com a tecnologia, dentro de um contexto em
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que o cinema era um entretenimento produzido para aplacar o tédio e o cansaço do dia de trabalho. A guerra civil contrarrevolucionária que se seguiu ao levante de 1917 foi uma das causas do fracasso da tentativa de nacionalização do cinema, devido à grande destruição do país e às inúmeras mortes, especialmente do proletariado urbano, que foi quase destruído como classe. A partir disso, o governo bolchevique precisou não apenas reconstruir a Rússia, como também criar uma consciência da classe trabalhadora. Nesse contexto, o cinema se tornou uma ferramenta de propaganda capaz de falar às massas com facilidade, embora a ruptura sócio-histórica tenha também imposto transformações ao cinema na transição do governo czarista para o soviético. A perda de profissionais e materiais forçou a nova geração de jovens cineastas praticamente a inaugurar um novo tipo de cinema, agora, abandonando o passado, e mirando no futuro. A ausência de diretores veteranos representativos permitiu a cineastas como Eisenstein, Vertov, Lev Kuleshov e Vsevolod Pudovkin focarem na montagem. O cinema soviético nasceu da descontinuidade e se fortaleceu em seus propósitos ideológicos e políticos. Além da produção cinematográfica, cineastas desse período desenvolveram a teoria, ligada ao marxismo, de que o meio seria capaz de fomentar não apenas a consciência política necessária às classes trabalhadoras, como também ser um canal de agitação. O termo usado para denominar essa junção de agitação e propaganda era, justamente, agitprop.
A MONTAGEM
O conceito de montagem dentro do cinema vem da indústria moderna, e está ligado à construção de uma peça a partir de outras já prontas. Dessa forma, a produção cinematográfica passa a ser também indústria, processo de produção, e o cineasta não é visto mais como um artista, uma categoria elevada acima do restante da humanidade, mas como um produtor, outro trabalhador qualquer. Kuleshov, por exemplo, via cada plano como um tijolo de uma
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construção maior. Eisenstein, por outro lado, chamava de “célula da montagem”, ou seja, muito mais do que apenas um simples elemento, era algo vivo, e a junção dos planos promoveria um ponto de vista. Sua técnica ficou conhecida, entre outros nomes, como “montagem dialética”. Filho de uma família de classe média, e estudante de engenharia, Eisenstein se envolveu com o Exército Vermelho, na guerra civil, e acabou abandonando a faculdade em 1920, até entrar para o teatro engajado, chegando a trabalhar com nomes de peso como Vsevolod Meyerhold, e poucos anos depois começou sua carreira como teórico do cinema e montador de novas versões de filmes estrangeiros para serem exibidos na União Soviética. Nesse trabalho, o diretor pôde ter contato, em primeira mão e sem qualquer censura, com filmes hollywoodianos clássicos. Acredita-se que ele esteve presente na reedição de filmes como Intolerância, de D. W. Griffith, entre outros. Apesar das mudanças devido à censura (uma delas, por exemplo, foi a remoção
por completo do epílogo cristão), o filme teve um impacto enorme não apenas no cinema soviético, como em toda a sociedade. Conta-se que o próprio Lênin queria o cineasta americano como chefe da indústria cinematográfica soviética, e isso não por questões estéticas, mas por perceber que, como o diretor, ele era capaz de transformar um filme em um artefato de agitação política. Griffith acabou sendo uma influência assumida para quase todos os cineastas mais importantes desse período na URSS. Quando começou a atuar como cineasta, Eisenstein filmou peças de teatro, mas subvertendo a maneira mais usual, já experimentando na edição, desconstruindo a trama, e usando artifícios que davam uma comicidade ao filme, ao que ele chamou de “montagem das atrações”, formulada em parceria com Sergei Yutkevich – enfim, uma provocação ao cinema tradicional. Mas foi com a montagem dialética – a qual, grosso modo, alterna imagens de duas sequências distintas – que Eisenstein se destacou. Um dos
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maiores exemplos disso é a famosa cena da Escadaria de Odessa, na quarta parte de seu O Encouraçado Potemkin. Cria-se, inicialmente, uma dialética entre as cenas ensolaradas de pessoas acompanhando e saudando embarcações dos mais diversos tamanhos. Até que essas imagens idílicas são subitamente substituídas por soldados do czar atirando contra pessoas nos degraus. A primeira imagem, do rosto de uma mulher que perde o equilíbrio, já estabelece o novo tom, o do caos. As pessoas desesperadas descem pela escadaria, enquanto os soldados, enfileirados como uma muralha, seguem atrás. Os planos abertos ser alternam a outros mais fechados de pessoas caindo, desesperadas, tentando se salvar. A dialética de vida e morte se intercala com imagens da população (câmera em movimento tremulante) e de soldados (câmera sempre firme). Até culminar na mãe exasperada com o filho ferido no colo caminhando em direção à guarda, pedindo que não atirem. O episódio, no entanto, terá seu clímax com outra figura materna, que,
3-4 VERTOV Autor de Um homem com uma câmera, documentarista foi experimentalista e transgressor
faria, pois chamaria a atenção para a montagem, distraindo o espectador de sua imersão no filme – ou seja, quebraria o efeito da mentira realista do cinema. Eisenstein, por sua vez, não se interessava por essa ilusão, e trabalhou com uma montagem de conflitos, contrapondo contrários de um momento a outro.
REFERÊNCIA E LEGADO
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mortalmente ferida com um tiro, deixa escapar o carrinho de seu bebê, e este desce penosamente degrau por degrau, até tombar no final da escadaria, ao mesmo tempo que uma outra mulher é ferida no rosto. A escolha da escadaria como cenário, simbolicamente, já vem carregada de significado. Estabelece entre cada uma das pontas (a de cima e a de baixo) uma dinâmica de classe social, de tentativa de ascensão frustrada a balas pelos soldados dos donos do poder. A tensão da alternância das imagens é a materialização formal da mesma tensão entre os estratos da sociedade, transmitindo ao público uma sensação de choque, mas, ao mesmo tempo, fascinação diante do destino trágico de toda uma população. Obviamente, embora isso tudo esteja distante da montagem das atrações, há um princípio unificador entre os dois tipos de edição: uma espécie de hipnose. É impossível desconcentrar e parar de prestar atenção numa cena dessas. A descontinuidade entre dois planos, algo que no presente está naturalizado, era inovador, e em O Encouraçado Potemkin
Os trabalhos com a montagem desenvolvidos pelos cineastas russos revolucionou a técnica mundialmente nos causa até hoje estranhamento e desconforto emocional. Eisenstein acreditava que os filmes deveriam ser construídos por meio de uma série de choques ou conflitos – uma ideia inspirada na dialética hegeliana. Nessa ideia, o cineasta materializa a própria Revolução de 1917, com o embate entre dois opostos: os donos do poder e da propriedade e a classe operária. A síntese seria, ao menos em teoria, a ascensão de um novo estado dos trabalhadores. A alternância entre planos abertos e fechados de toda a sequência, por exemplo, cristaliza na forma o conteúdo sócio-histórico da dialética da Revolução. Esse é exatamente o tipo de edição que o próprio Griffith não
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As ideias do russo sobre montagem, conflito e desconforto persistem até hoje. Filmes, até norte-americanos, se inspiram nessa forma para criar conflito. O exemplo mais claro está em Os intocáveis, de Brian De Palma, em que o episódio do carrinho de bebê da escadaria de Odessa é copiado plano a plano. Francis Ford Coppola também se vale de algo bem parecido em seu primeiro O poderoso chefão, intercalando imagens de um batizado com a de diversos assassinatos de inimigos da família de mafiosos protagonistas do filme. O legado do cinema soviético, no entanto, está longe de perder sua força. “Diretores como Eisenstein ainda terão muito a ‘contar’ não apenas para nós, mas para as gerações futuras. Ainda que ele tivesse apenas sistematizado a teoria da montagem, já seria o suficiente! Ocorre que Eisenstein não é ‘apenas’ um diretor de cinema (não que isso seja pouco). Ele foi um dos grandes mestres universais da arte, um dos maiores teóricos da arte (e não apenas do cinema). Sua erudição e capacidade de reflexão e articulação das ideias de forma profunda e criativa é incomparável dentro de toda a cinematografia (e não apenas da cinematografia russa). Artistas com essas características são inigualáveis e suas obras atravessam séculos, a cada vez que são vistas, lidas e estudadas, mostram novas nuances, ainda que séculos os separem das novas gerações”, explica Neide Jallageas, editora do site brasileiro KinoRuss, e doutora pela USP, onde estudou o cinema de Andrei Tarkovsky.
HÉLIA SCHEPPA
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Tradição
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PARTEIRAS Um saber passado de mão em mão
Mulheres que atuam em suas comunidades realizando partos domiciliares contam com o apoio de projetos de valorização da atividade, que sofre preconceito pela cultura da medicalização TEXTO Julya Vasconcelos
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FOTOS: HÉLIA SCHEPPA
Na casa de Dôra, há ervas
secretas plantadas no quintal. Se alguém lhe pergunta os nomes, ela sorri e diz: “Aaah, não pode dizer não. É segredo!”. As dores do parto, as angústias da espera, os sangramentos, o coração, o corpo, a mente: tudo pode ser curado com chás, emplastros e banhos feitos
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Tradição com as ervas dos quintais, ou com aquelas que nascem selvagens, no mato. O segredo de Dôra não é feito de mesquinharia, mas de sabedoria e cuidado, porque “a gente não quer que as pessoas passem a usar as ervas sem saber o que é, sem respeitar a tradição, de qualquer jeito”. Maria das Dores Nascimento, vulgo Dôra, ou mãe Dôra, índia pankararu, devota dos praiás e dos guias, das velhas parteiras indígenas, de Santo Antônio e Nossa Senhora, parteira, pegou tanta criança do Brejo, do Saco, do Jitó, que há anos já nem mais conta quantas mulheres atendeu. Mas quando Dôra fala do segredo das ervas, o mais interessante é seu sorriso. Um sorriso para um subsequente amoroso “não pode dizer, não”. Na Aldeia Brejo dos Padres, em Tacaratu, sertão de Pernambuco, o riso do povo é frouxo feito água correndo no rio, e, se retribuído, cresce como redemoinho, e ninguém mais lembra do que ri. E, minutos depois, se a memória traz uma emoção à tona, o choro vem também, feito da mesma água. Dôra desce a escadinha de cimento de sua casa usando a camiseta da Corrida do Umbu, festa tradicional da etnia Pankararu. Nas costas, está escrito: “Nascer e viver, amando e praticando a minha tradição pankararu”. A saia jeans no joelho, os cabelos em um coque, o rosto bonito de olhos puxados e o riso (novamente ele) larguíssimo. Alguma timidez na tensão dos braços. Na parede da sua casa, a inscrição: “parteiras tradicionais”, acima da janela basculante. O sol do sertão vai queimando a pele de Dôra. “A seca tá demais desde o ano passado”, lamenta. Depois ri. No
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meio da conversa, o olhos marejam, e a parteira que já ouviu tanto choro de criança recém-nascida, de mulher com dor de parto, leva as mãos ao rosto para enxugar as lágrimas. “É muito difícil contar isso sem chorar.” E conta sobre o primeiro parto que fez, aos 18 anos, massageando a barriga da cunhada, por pura intuição, ajudando Mãe Chiquinha a trazer Ricardo ao mundo, hoje com mais de 30 anos e prestes a ter um filho. “É como se eu já soubesse.” Lembra quando um bebê demorou um longo tempo pra
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respirar, e de como os guias trouxeram a criança de volta à vida. “A gente tem os guias. A gente pede às parteiras velhas que já se foram; pedimos a presença delas. Estava desesperada. Pedi pra tia Ana puxar um canto da nossa aldeia. Quando ela começou a cantar, eu joguei o bebê nos braços dela e ele gritou.” É bonito ver, de longe, a figura da mulher de chapéu de palha em meio a dezenas de pés secos de pinha, jogando devagarinho feijões nos sulcos abertos na terra. Dias antes, deu
1-2 DÔRA NASCIMENTO A parteira, que é índia pankararu, já perdeu as contas de quantas mulheres atendeu em Tacaratu ANA DOS SANTOS 3 Atua junto com Dôra e acredita também no poder das ervas e orações para a realização de um parto tranquilo
profundo associado a afeto e cuidado, e de conexão com o tempo, com a natureza, com a memória. Há algo que diferencia os procedimentos de uma parteira tradicional que está relacionado ao atendimento e ao respeito ao corpo da mulher. “Eu já trabalhei em hospital e via como as mulheres eram atendidas. Não tinha carinho, não tinha amor. Aqui, quando eu chego na casa de uma mulher que está em trabalho de parto, a primeira coisa que eu faço é tranquilizar, fazer massagem, preparar um chá. A gente conversa, fala coisa engraçada, canta, dança, dá risada”, compara Dôra.
MEDICALIZAÇÃO
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uma chuva forte no Sertão, enchendo de esperança a gente nas aldeias de Tacaratu, que logo tentou trabalhar a terra. Ana Maria dos Santos, a tia Ana, tira o chapéu, sorri, prende o cachorro, que late desesperadamente. “Eu e Dôra gostamos de fazer juntas os partos. Enquanto uma ajuda a mulher, a outra pega uma coisa. É muito bom essa parceria”, conta a mulher de mais de 60 anos. “Na hora que eu vi o menino já roxinho, roxinho, pedi a Deus, deu vontade de puxar uma toada, todo mundo chorando.”
Existe algo na relação de Dôra e Ana com a sua atividade que transcende a ação de “fazer um parto”. Há, inegavelmente, um saber acumulado de muitas gerações. Um saber empírico, construído por mulheres que conhecem seus corpos e seus processos, e aperfeiçoam esse conhecimento observando outras mulheres e a variedade de situações que podem ocorrer em um parto. Um saber tradicional que recepciona e salva vidas há séculos. Mas há, para além disso, uma dimensão holística, de conhecimento
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Luciana Palharini, antropóloga e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas, observa que há uma questão de gênero colocada na marginalização das parteiras, e que o corpo feminino foi medicalizado e investigado como o corpo do homem não foi. “A história da ciência obstétrica nos mostra que o investimento sobre o corpo feminino, nos moldes do biopoder, alijou a mulher do protagonismo sobre a gravidez e o parto, deslocando seu significado para um evento patológico”, explica Palharini. A pesquisadora afirma que a medicalização da assistência ao parto e ao nascimento tem início no século XVII, em países europeus como França e Inglaterra, estabelecendo-
DANIELA NADER
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se, de fato, no século XX, após haver passado por diversas fases e em meio a contextos complexos, como o período pós-II Guerra Mundial e a própria profissionalização da ciência e da medicina. “Esse advento não se deu sem conflitos, colocando em cena relações de gênero entre médicos e parteiras, entre o conhecimento institucionalizado masculino e o saber tácito feminino, e entre o médico, homem, e a parturiente, mulher. O parto, até então, não era considerado um ato médico e ficava a cargo das parteiras, pertencendo ao domínio privado – o ambiente doméstico, íntimo e composto por mulheres com outras mulheres. O termo em inglês para parteira, midwife, quer dizer withwife, ‘com mulher’. A presença masculina não era bem-vinda pelos pudores morais da época. A atenção ao parto dentro dessa rede, que se limitava ao universo feminino, era entendida mais como uma ‘solidariedade’ entre mulheres, extensão do ambiente doméstico, do que como uma profissão”, completa a pesquisadora. “O instrumental tecnológico que começava a ser desenvolvido, e que pertencia exclusivamente ao domínio do cirurgião, conferia a fama de eficácia e domínio pelos homens sobre um evento do campo feminino.” Paula Viana, coordenadora do Grupo Curumim, ONG feminista que atua, principalmente, na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, observa que, há pouco tempo, na Declaração de Nascido Vivo, não havia nem mesmo a opção de nascido com parteiras. A declaração incluía as opções “médico”, “enfermeiro” ou “outros”. “No Código Brasileiro de Ocupações está a atividade de parteira. Lá se chama ‘parteira leiga’, um termo de 1940! O que é leigo? Leigo é o que não sabe! É um absurdo colocar as parteiras no lugar do leigo”, pontou Paula, em seminário que aconteceu recentemente no Museu do Homem do Nordeste.
BOLSA DE PARTEIRA
“Toda a vida eu fui muito corajosa, muito curiosa. Tudo eu queria fazer”, diz Josefa Alves de Carvalho, uma das parteiras mais antigas em atividade em Caruaru. Zefinha, como é conhecida, fala em ritmo acelerado, como que para
conseguir dizer o máximo no mínimo de tempo. Os olhos vivíssimos da menina que foi criada sendo balançada na rede pelos irmãos Antônio, Luís, Severino e José. E trepando nos pés de fruta, correndo nas plantações de milho e feijão, pulando com as cabras do terreno da família na Pedra do Cachorro, em Fazenda Velha. Conta como “fez de tudo nessa vida”, porque tudo o que ela tomava conhecimento da existência, dizia “eu sei, eu quero fazer”. E foi assim com o ofício de partejar. Um dia, resolveu que faria e, sem ninguém que a ensinasse, foi lá e realizou o parto de uma vizinha quando tinha 27 anos. Hoje tem 77. A bolsa branca de parteira está sempre pronta, a postos, com álcool, tesoura, luvas, sabão, o inseparável estetoscópio de Pinard, normalmente de madeira, e com o qual se escutam os movimentos e batimentos cardíacos do bebê. Às vezes, faz um chá de pimenta
Josefa Alves de Carvalho, conhecida como Zefinha (foto), fez seu primeiro parto aos 27 anos, hoje tem 77 e segue em atividade do reino para acelerar as contrações, às vezes, uma xícara de café com manteiga. Há alguns anos, a Associação de Parteiras Tradicionais, presidida por ela, passou por um processo de enfraquecimento. A gestão anterior da prefeitura de Caruaru incentivou as mulheres a não serem acompanhadas pelas parteiras. “Fez um verdadeiro terrorismo, estimulando a ignorância em relação à atividade dessas mulheres, que são verdadeiras sábias”, pontua Maria, filha de Zefinha. Partos, só no hospital, “com segurança”. Um verdadeiro boicote por meio das políticas públicas foi empreendido contra as parteiras da cidade agrestina, que sentiram fortemente a falta de apoio e a perseguição, o que comprometeu as atividades de grupo e a quase extinção da associação. Para Júlia Morim – doula e antropóloga que atua junto a parteiras tradicionais, no que diz
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respeito a documentação, promoção e valorização do ofício –, as parteiras sofrem preconceitos. “São marginalizadas por esse modelo tecnocrata, médico centrado e hospitalocêntrico de atenção ao ciclo grávido-puerperal. Os saberes populares são sempre vistos como ‘menores’ por aqueles que estão inseridos no paradigma biomédico. E como nosso sistema de saúde é baseado nesse paradigma, as parteiras e suas práticas são marginalizadas.” Júlia é uma das responsáveis por tirar do papel a ideia do Museu da Parteira, um projeto em construção, que vem ajudando a documentar, expor, valorizar e comunicar as práticas e saberes das parteiras tradicionais. Um dos objetivos da organização de informações referentes às práticas das parteiras tradicionais é a inclusão desses saberes na lista de patrimônios culturais imateriais do Brasil, através do Iphan. O projeto de museu esteve em exposição entre novembro de 2016 e abril de 2017 na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife. Diana Dianovsky, da Coordenação de Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, explica que “um patrimônio para ser reconhecido tem que ser enraizado no tempo. E isso não é problema para as parteiras”. O grupo de antropólogas, parteiras e militantes do parto tradicional e humanizado estão levando à frente um trabalho hercúleo de sistematização de informações para a defesa da inclusão das parteiras no cadastro do instituto. Para o grupo engajado nessa luta de difusão dos saberes, o reconhecimento é importante porque, como acredita Elaine Muller, que coordena o grupo de pesquisa Narrativas do Nascer, no Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, “a política pública para o patrimônio imaterial, conforme é colocada pelo Iphan, se assemelha a uma ‘carta de intenções’ da parte do Estado, embora não garanta totalmente a continuidade ou melhorias na qualidade de vida das parteiras”.
HERDEIRA
Na Rua Maria Augusta Dutra tem um pé de coco amarelo, indica Maria dos Prazeres Souza. “Não tem erro não,
MARIA CHAVES
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é a única rua aqui onde tem um pé assim, o resto é tudo verde.” As ruas tortuosas de Sucupira levam a uma casa de fachada azul escura, onde a parteira vive. Os gatos rondam a porta da sala, assim como os seus netos, que fazem um burburinho de crianças enquanto um café com bolo é servido. “Eu fiz desse trabalho um sacerdócio”, diz a mulher de quase 80 anos. Mostra as mãos, pequenas como as de uma criança. As linhas escuras e fundas lhes dão uma aparência de escultura, marcas do tempo. A aparência frágil da mulher de voz mansa esconde uma força inabalável. Prazeres não para. “Eu sou do signo de Escorpião”, diz, como se revelasse a si mesma. Ela é uma das idealizadoras do Museu da Parteira e, ao falar da sua atividade, expressa vitalidade e compreensão de sua importância no mundo que são inspiradoras. “Tá vendo essa ladeira? Quantas vezes eu não subi essa ladeira pra atender parto de filho de bandido? Quantas vezes eu não subi pra atender parto em casa que não tinha nada, nada, de eu
A atividade das parteiras é, muitas vezes, vista como “menor” por aqueles que fazem parte do modelo biomédico ter que comprar comida pra família, ou de ter que convencer a Celpe a não cortar a luz bem na hora em que uma criança vinha ao mundo?”, relembra a mulher, que é filha de uma parteira indígena que lhe ensinou o ofício. “Gosto de queimar alfazema na hora do parto, isso é uma coisa muito tradicional. Lembro quando era criança e começava a sentir o cheiro. Sabia que tava vindo menino. Minha mãe não me deixava ver, mas eu ouvia todas as conversas. Meu sonho era fazer um parto.” Um dia, ainda adolescente, correu para atender um parto na ausência da mãe. Reproduziu o que havia escutado, lembrou como cortava o cordão, lembrou o chá, o café, o cuidado. Trouxe a
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4 PRAZERES SOUZA Parteira militante, que aprendeu o ofício com a mãe, foi uma das idealizadoras do Museu da Parteira
primeira pessoa ao mundo. Sentiuse gigante no seu menos de 1,50 m. Prazeres não é ingênua a respeito da sua missão no mundo. Entende que sua prática, da maneira como a encara, e por atender numa região próxima de um centro urbano, envolve também militância, resistência e estudo constante. “Enquanto existir vida humana, haverá parteiras. Nós somos muito úteis, corajosas. Nós somos simbiose, estamos em todas. Não tenho medo de nada, nem de bandido, nem de lugar feio. Me aposentei de tudo, mas de parteira tradicional, não. A coisa que eu mais tenho orgulho de dizer é que essas mãos são puras”, e mostra mais uma vez as mãos. “Onde é que estão os olhos das parteiras? Nos dedos, nos dedos!”, afirma Prazeres. “Cada passo, cada coisa, cada gemido. Nós, mulheres, somos muito parecidas, e a nossa história é muito bonita. Nós não vamos recuar”, diz em pé, na frente de casa.
BERNARDO CABRAL/DIVULGAÇÃO
TRANSEXUAIS Temática é acolhida e discutida no palco
Encenações como Gisberta, Joelma e BRTrans, em sua maioria, monólogos, trazem à cena um repertório calcado na realidade da transfobia, que macula as relações no Brasil TEXTO Pedro Vilela
Palco Ao olharmos para a recente produção cênica brasileira, podemos observar, ainda que sob diferentes campos de abordagem, determinadas recorrências temáticas, motivadas principalmente pelas angústias que regem a sociedade no mundo atual. A crueldade e repercussão da morte de Dandara dos Santos (travesti torturada e espancada até a morte em 17 de fevereiro deste ano, em Fortaleza), gravada em vídeo que circula nas redes sociais, joga luz sobre o combate à transfobia, tema que vem encontrando nos palcos lugar de acolhimento e discussão. Sendo o Brasil o país que mais assassina
transexuais no mundo, não são poucos os dados de violência, aversão sem controle, repugnância, ódio, preconceito contra pessoas e grupos com essas identidades de gênero. O olhar sobre tais questões vem sendo posto em cena, em sua maioria, através de monólogos, o que de alguma maneira configura também a angústia pessoal de determinados artistas. A mais recente estreia sobre a questão é Gisberta, solo do ator Luís Lobianco, dirigido por Renato Carreira, que cumpriu temporada nos últimos dois meses no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-Rio). O espetáculo reconta momentos dessa
1 BR TRANS O espetáculo, do Coletivo Artístico As Travestidas, foi criado a partir de conversas com travestis, transexuais e transformistas 1
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ELISA MENDES/DIVULGAÇÃO
2 GISBERTA Mais recente estreia sobre a temática é um solo de Luís Lobianco JOELMA 3 Espetáculo é baseado na vida de uma das primeiras transexuais do país
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brasileira, vítima de transfobia, que teve morte trágica após ser torturada por um grupo de 14 menores de idade, em 2006. O ator, com mais de 20 anos de carreira, conhecido do público brasileiro principalmente pelo viés cômico, participando do programa Vai que cola, do Multishow, e integrando o canal Porta dos Fundos, mergulha nesse espetáculo através da tragicidade da história em questão. Nascido Gisberto, em São Paulo, caçula de uma família com oito filhos, logo após a morte do pai, confessou à família que gostaria de ser mulher, tornando-se Gisberta. Aos 18 anos, com medo da crescente violência contra transexuais na capital paulista, optou por se mudar para a França, onde passou curto período, e logo depois passou a residir no Porto, norte de Portugal, onde viria a falecer. Ainda que os crimes cometidos tenham sido em países diferentes, Gisberta e Dandara fazem parte de uma mesma estatística. Indo mais além, configuram também o descaso do poder público em relação ao
O assassinato da brasileira Gisberta em Portugal tornou-se paradigma da pauta transexual no país europeu tema. Em Portugal, ao proceder com o julgamento dos acusados sobre o crime de Gisberta, o juiz disse, textualmente, que o assassinato foi “uma brincadeira de mau gosto de crianças que fugiu ao controle”. Transformada em música por Pedro Abrunhosa, sob voz de Maria Bethânia, através da Balada de Gisberta, o assassinato dessa brasileira acabou sendo responsável por um novo paradigma para a pauta trans em Portugal. Nos anos seguintes à sua morte, após pressão de militantes e de parte da população, o legislativo português criou uma série de leis voltadas para a igualdade de gêneros, com o objetivo de garantir a pessoas trans maior acesso à
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justiça, à educação e ao emprego. Além disso, foi aprovada a concessão de asilo a transexuais estrangeiros em risco de perseguição. Enquanto isso, os números não param de crescer no Brasil, e talvez a presença dessas obras sobre os palcos tenha ainda maior importância por se configurar como alternativa reflexiva para parte da população. É louvável a atitude de Lobianco, artista que vem tendo grande repercussão em nosso país, por escolher esse tema tão penoso para vestir-se em solo. Diferentemente de grande parte de sua geração, o ator se nega à busca por uma obra “atrativa” comercialmente, como os stand-ups (em grande parte, amparados dramaturgicamente por piadas excludentes e preconceituosas). Acompanhado de três músicos, que executam a trilha ao vivo, o ator refaz a trajetória de Gis a partir de depoimentos recolhidos de seus familiares, do processo judicial e de visitas aos locais da tragédia. Para ele, o Brasil não aprendeu nada com esse assassinato, uma vez que é um dos países que mais cometem crimes de transfobia e homofobia, num processo que se soma a uma onda conservadora de intolerância com as diferenças. “Se não conseguimos mudar as leis que não nos protegem, que a justiça seja feita no teatro, com música e luzes de cabaré. Que venham as identidades de humor, gênero, drama, música, tragédia e redenção. O caso de Gisberta não é conhecido por aqui e decidi que Gisberta vai reviver a partir da arte e será amada pelo público”, diz Luís Lobianco.
OUTRAS GISBERTAS
A construção de dramaturgias a partir de casos reais não pode ser vista como uma exclusividade de Lobianco. É o caso, por exemplo, do ator Fabio Vidal, que vem circulando por todo o
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país desde 2013 com o solo intitulado Joelma, baseado na surpreendente vida de uma das primeiras transexuais do país, de nome homônimo, natural de Ipiaú, no interior da Bahia. Nascido inicialmente de um curtametragem dirigido pelo diretor do espetáculo, Edson Bastos, com este trabalho, o ator baiano redimensiona o olhar para além das questões de gênero, dialogando, em sua narrativa, com o campo da religiosidade (Joelma, desde cedo, dizia ser visitada pelas “13 almas benditas, sabidas e entendidas”), sendo a casa atual de sua personagem, uma espécie de centro espiritual. Dois terrenos polêmicos nos quais o ator navega com intensidade cênica.
Para o crítico Valmir Santos, a peça resulta habilidosa “na dimensão ética de não expor a Joelma da vida como ela é, em suas filigranas, idiossincrasias e alteridades”. “O espectador do cinema ou do teatro tem subsídios para chegar às próprias conclusões no liame do que é invenção e do que é verdade. De como ela sublimou na espiritualidade, por exemplo, toda forma de opressão, ciente de que a solidão pode inspirar ou aspirar a um estado de vigília existencial, mesmo no contexto da vida a dois. Edson Bastos, Fábio Vidal e equipe foram sutis sem abdicar das dores e das delícias em habitar o mundo refratário em vários aspectos, a começar pelo machismo, sem recuar
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da determinação de ser feliz, amar e ser amada. Outra perspectiva evidente é a do papel da sociedade, a hipocrisia de “atores” fundamentais numa cidade interiorana, como a igreja, a família, a imprensa e a polícia. Em Bastos, sendo ipiauiense, o curta e o solo ressignificaram aquela comunidade em suas fissuras”, escreveu. Também nordestino, o Coletivo Artístico As Travestidas possui como foco de sua pesquisa exclusiva a abordagem sobre o universo das travestis e transformistas, objetivando compreender para além do estereótipo e preconceitos. Com mais de 12 anos de trajetória, o coletivo nasce com a criação do espetáculo Uma flor de dama, solo do ator Silvero Pereira, inspirado no conto Dama da noite, de Caio Fernando Abreu. Entretanto, é com BR-Trans, estreado em 2013, que Silvero finalmente é “descoberto” por todo o país e alçado à referência artística nacional na pesquisa sobre o tema. O espetáculo, criado a partir de fragmentos de vidas reais, coletados através de conversas com travestis, transexuais e transformistas da cidade de Porto Alegre, circulou por quase todas as capitais, esgotando sessões, além de ter se apresentado em festivais internacionais. Para o crítico Gustavo Fioratti, da Folha de S.Paulo, “alguns espetáculos de perfil político-discursivo causam impacto porque são contundentes naquilo que se propõem a defender ou atacar. Outros, e este é o caso de BR-Trans, criado por Silvero Pereira e Jezebel de Carli, conseguem mais, fazem o discurso abrir-se para sequências de enigmas”. Outra importante obra sob sua direção e que foge do caráter de solos é Quem tem medo de travesti, traçando uma pesquisa histórica do papel da travesti no teatro, em comunhão com uma reflexão sobre a decadência e marginalização da figura “trans” na nossa atual sociedade. Nessa obra, percebe-se uma maior abertura para a performatividade de gênero, por meio do deslocamento poético das identidades de travestis e transexuais para a cena. O ator, que atualmente pode ser visto na novela da Rede Globo
Palco Força do querer, acredita que “a marginalidade da travesti é fruto de uma sociedade excludente. Portanto, essa sociedade deveria acolher os filhos que ela joga nas ruas”.
SOBRE TRANS FAKES
Quando nos deparamos com essa temática tão provocante sob diferentes aspectos, é quase impossível não encontramos outro ponto de vista para esses trabalhos. No último dia 11 de março, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, foi lançado o Movimento Nacional de Artistas Trans (travestis, mulheres e homens trans de todo Brasil). Nele, é posto em questão o fato de personagens trans não estarem sendo interpretados por atores trans, apontado uma possível incongruência em um ator cisgênero interpretar um personagem transgênero, tornando-se, portanto, fake (trans fake = trans falso). A necessidade de visibilidade e representatividade, não só nos palcos, mas principalmente na oportunidade de empregos, surge como justificativa principal desse movimento que tece críticas ao próprio Luís Lobianco, ao escolher recontar a história de Gisberta sem uma trans no elenco, acusando-o ainda de ser integrante do Porta dos Fundos, um dos canais mais transfóbicos. O movimento ainda pontua a escritora Gloria Perez, que convidou a atriz cisgênero Caroline Duarte para viver um homem trans na novela
Força do querer, lembrando, ainda, que a autora toca no tema da transexualidade e travestilidade há um bom tempo: em 1995, em Explode coração, Floriano Peixoto interpretava Sarita; em 2012, na novela Salve Jorge, trouxe Maria Clara Spinelli e Patrícia Araujo. Lobianco, em outro texto postado em rede social, intitulado Manifesto Gisberta, responde aos questionamentos: “Se estamos falando de sobrevivência, o teatro, que tem seus estimados 82 mil anos, é um dos maiores resistentes da história. É um senhor que abraça todos e todas as causas – todas as intenções. Que sejam bem-vindos e nobres – nele – todos os debates contemporâneos que estamos conquistando. E que o palco, o ritual, nunca seja censurado. Sabemos dos arranhões que a censura deixou recentemente nas artes, temos o dever de zelar para que nada parecido seja reproduzido”. O que parece não ter sido levado em consideração na escrita do manifesto trans fake é que estes projetos, com exceção das novelas globais, são batalhados e viabilizados pelos próprios artistas, enfrentando também inúmeras dificuldades para viabilizá-los. A compreensão de que não é possível construir nenhum tipo de luta negando o outro ainda nos é cara. Entretanto, tamanha a procura do público por essas obras parece-nos, ao menos, o apontamento de um estágio inicial em que, finalmente, nossa sociedade busca reparar as questões relacionadas à homofobia e transfobia.
TREMA! Utopias para sobreviver ao caos
Festival de teatro chega à sua quinta edição com espetáculos que trazem a inquietação e a busca por compreender o homem na contemporaneidade TEXTO Márcio Bastos
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JENNIFER GLASS/DIVULGAÇÃO
1 ABNEGAÇÃO 1 A trilogia doTablado de Arruar (SP) é um dos destaques da programação
Em um momento no qual o conceito
do real é cada vez mais poroso (vide a proliferação das fake news), o absurdo pode se tornar a regra sob o manto da salvação, de um futuro que olha para o passado e promete resgatar valores “fundamentais”, cuja função parece ser manter privilégios e barrar o avanço da pluralidade. Uma descrição que parece capturar a essência do Brasil em 2017. Buscar formas de problematizar e transformar esse cenário tem sido a preocupação cada vez maior dos artistas de teatro do país. Norteado pelo conceito de distopias e realidades, o Trema! Festival de Teatro, em sua quinta edição, que ocorre de 3 a 14 de maio, no Recife, endossa esse movimento e propõe olhares múltiplos sobre o Brasil e os “Brazis”. Fundado em 2012 com o intuito de ser um festival voltado para a produção de grupos, o Trema! vem conseguindo, em um curto espaço de tempo, se
Diante da crise, os festivais estão mais enxutos, com menor duração, mas com curadorias mais potentes
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firmar como um dos mais importantes eventos de artes cênicas do Nordeste. Em Pernambuco, a mostra tem assumido um lugar que se afasta da necessidade de promover uma grade extensa (porém, sem muito conteúdo), preferindo montar uma programação enxuta, com diretrizes curatoriais claras e voltadas para a pungência da produção contemporânea. “Percebíamos que o teatro de grupo, configurado pela pesquisa continuada, acabava sendo relegado em alguns festivais. Isso se dava pelo caráter destes trabalhos, que não estava amparado
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pela figura de ‘grandes nomes’ ou celebridades que fariam encher os teatros facilmente, mas pela pesquisa e experimentação de linguagem. Eu me deparava com trabalhos maravilhosos e me perguntava ‘como isso nunca chegou ao Recife?’. Então, resolvemos encarar esta batalha de sermos agentes atuantes para viabilizarmos estes encontros”, explica Pedro Vilela, que integra a plataforma Trema! junto a Mariana Rusu e Thiago Liberdade. Desde o ano passado, porém, o festival aboliu as restrições para produções individuais, entendendo que o conceito de pesquisa continuada não se restringe à criação coletiva. Esse movimento se deu também pela própria trajetória de Vilela, que, antes, integrava o Grupo Magiluth. “Ao sair de um grupo, percebi que esse recorte poderia ser um agente excludente. Isso também se relacionava a uma conjuntura nacional de diferentes artistas que ou iniciavam novos processos distantes de seus antigos grupos (caso da Grace Passo com o Espanca) ou de grupos que se associam com produtores para viabilizar sua manutenção. Percebi também que a tão falada continuidade de pesquisa e experimentação de linguagem não se reduzia aos grupos teatrais, ainda que, em sua maioria, ainda estejam neles”, pontua.
CRISE E ARROCHO
É de se destacar o papel do Trema! no cenário de artes cênicas de Pernambuco. Se, antes, eventos como o Festival Recife do Teatro Nacional, promovido pela Prefeitura do Recife, cumpriam o papel de trazer à cidade um recorte vigoroso do que está sendo produzido no nível local e nacional, ajudando também a formar público, hoje, o que se vê é um esvaziamento dessas iniciativas. O FRTN, inclusive, chegou a não acontecer em 2014, por uma opção da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura da Cidade do Recife de torná-lo bienal. Posteriormente, a decisão foi revogada, mas seus efeitos danosos permanecem. A mostra, que chegou a ser uma referência no Nordeste, hoje
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perdeu força e credibilidade (vários cachês da última edição, realizada em novembro de 2016, ainda estão com previsão de pagamento para este mês, sob protesto dos artistas). A situação, no entanto, não é sintomática apenas em Pernambuco. Diante do arrocho financeiro pelo qual atravessa o país, os festivais de artes cênicas têm passado por um profundo processo de reformulação.“A ‘crise’, que automaticamente fez reduzir os recursos para suas realizações, obrigou a todos repensarem seus modelos, seus objetivos e formatos. E disto fez surgir o investimento em festivais com menor duração, mas com grande potência em suas curadorias, privilegiando questões básicas que andavam esquecidas, como o encontro, o diálogo”, acredita Vilela. Orçado em R$ 230 mil, o festival tem apoio do Ministério da Cultura e do Itaú, que entrou com 50% do valor total. Para Vilela, o incentivo financeiro por parte da administração pública deveria ser, por essência, uma baliza para os produtores, diminuindo o preço dos ingressos e, assim, popularizando o acesso.
Nesta edição, a curadoria norteia seu trabalho a partir de Huxley, que indaga: E se esse planeta for o inferno de outro? “Acho que nós artistas devemos ser referências no que fazemos, principalmente por lidarmos cotidianamente com dinheiro público. Criou-se a falsa ideia de que somos ‘mamadores’ de dinheiro público e isso é uma leitura inconsequente. O grande problema é como a Lei Rouanet vem sendo empregada, principalmente, em produtos que por si só possuem capacidade de viabilização no mercado. Quando um festival recebe milhões para sua realização e não cumpre o princípio básico de acesso à população, democratizando os valores de ingressos, para mim há algo errado nessa cadeia. Para que realizarmos um festival de teatro com ingressos a
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R$ 70? Para retroalimentarmos quem tem condições de acesso a essas obras em qualquer momento do ano? Nosso pensamento é contrário: queremos ingressos a preços acessíveis, porque queremos mudar paradigmas, desmontar estruturas e sabemos que o teatro é potente para isso”, reforça.
UTOPIAS DIÁRIAS
Para esta edição, o Trema! usa como referência curatorial uma indagação de Aldous Huxley, autor do distópico Admirável mundo novo: e se esse mundo for o inferno de outro planeta? Assim, sua grade congrega espetáculos que têm em seu cerne a inquietação e a busca por compreender o homem inserido na contemporaneidade. Entre os destaques, está a Trilogia abnegação, do Tablado de Arruar (SP). Escritos por Alexandre Dal Farra, os espetáculos abordam as estruturas políticas do Brasil através da investigação da história de um partido político de esquerda, formado por trabalhadores, da sua fundação à chegada ao poder. Também direcionando uma lente de aumento
VITOR VIEIRA
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2 MÁQUINA FATZER A opressão do homem pelo Estado no texto do grupo cearense
4 DIAFRAGMA 1.0 Atriz e bailarina Flávia Pinheiro discute a impermanência
ORGIA 3 Adaptação para o palco de relatos do argentino Tulio Carella
NOITE 5 Grupo português Circolando propõe uma investigação sensorial
em busca das minúcias do ethos nacional, o Club Noir (SP) traz Leite derramado, adaptação do livro de Chico Buarque. Na peça, o protagonista, descendente de portugueses escravocratas, de políticos corruptos e aliados à ditadura militar, passa seus últimos dias abandonado em uma maca de hospital público, precisando lidar com as consequências de injustiças que ajudou a perpetuar. A convivência e a opressão do homem pelo Estado também norteiam a dramaturgia de Máquina Fatzer– Diga que você está de acordo, do Teatro Máquina (CE), que acompanha quatro soldados confinados em um local à espera de alguma revolução. Em Cabeça (Um documentário cênico), o Complexo Duplo (RJ) leva ao palco as canções do álbum Cabeça de dinossauro, dos Titãs, lidas como reflexo de seu tempo, os anos 1980, e dos dias atuais. No campo que permeia mais o abstrato, dois espetáculos destacamse por sua investigação do sensorial: Noite, do Circolando (Portugal) e dois trabalhos de Flávia Pinheiro (PE), Diafragma 1.0: Como manter-se vivo e o inédito Utopias to everyday life, em parceria com Carolina Bianchi (SP). Orgia, do Teatro Kunyn (SP), também permeia o campo do simbólico, adaptando para o palco narrativas do argentino Tulio Carella, em que relata o desabrochar de sua homossexualidade no Recife dos anos 1960, fornecendo um retrato delicado sobre a natureza humana e a cidade da época, com seus cheiros, cores e tipos. “O teatro, mais uma vez, se coloca como um agente de entendimento de nossa humanidade, antevendo questões ou jogando lupas para dados concretos de que teimamos fugir; olhando mais fundo nosso próprio país. Porque,no fundo, o teatro serve para refletirmos sobre o nosso próprio estar no mundo”, enfatiza Vilela.
Cardรกpio
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MEMÓRIAS O olfato como gatilho
O cheiro de refogado de alho e cebola é um dos que acionam sensações agradáveis, que dizem muito de onde nascemos e com quem convivemos TEXTO Eduardo Sena FOTOS André Nery
Se imagem tivesse cheiro, muitos
de vocês, leitores, estariam, a partir de agora, envolvidos numa atmosfera olfativa prazerosa, movida por uma lembrança de algum momento feliz. Não existe uma pesquisa que bata o martelo sobre o assunto, mas, quando se trata de comida, tudo leva a crer que o aroma do refogado de alho e cebola responde à principal epifania olfativa do brasileiro. É como, certa vez, disse uma amiga sobre cheiros capazes de emocionar: “Têm cheiros do corpo que são muito bons. Mas ainda prefiro o perfume de alho com cebola refogando e anunciando o arroz pela casa. Parece que estou na década de 1990. O perfume era sinônimo de começar a me arrumar para ir à escola, e, alguns minutos depois, sentar para almoçar”. Quando esse efeito aciona memórias particulares e aconchegantes, nós nos aproximamos da constatação teórica do sociólogo norte-americano Sidney Mintz. Ele sustenta que o lugar onde crescemos e as pessoas que passaram por nossas vidas constroem um
“material cultural”, formando os comportamentos alimentares pessoais ligados diretamente a enredos íntimos e identidades sociais. Em busca do tempo perdido, um símbolo da literatura mundial, do escritor Marcel Proust, foi motivado por esse impacto. É que ele teve sua vida profissional e pessoal reativada após um trivial lanche da tarde. Ao tomar um gole de chá com um naco de bolo, recordou uma época esquecida de seu tempo de criança. Ao cruzar com suas digressões, Proust rompe com a falta de motivação para produzi-la e lança a publicação. “Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim”, registra o escritor, na obra que se tornou um clássico.
NO CÉREBRO
Mas o que associa intimidades, repertórios vividos e contextos pessoais a sabores e aromas momentâneos? Para a literatura
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científica médica, não se trata de uma questão tão complexa. É o que esclarece Terce Liana, neurologista com especialidade cognitiva do Hospital das Clínicas. “Esse efeito é explicado pela anatomia do cérebro, que mantém uma proximidade entre as regiões cerebrais responsáveis pelo olfato e gustação com o hipocampo e a amídala. São eles que processam as memórias e as emoções. Já as vias visuais, auditivas e somatossensoriais se conectam com essa região por outros caminhos.” Trocando em miúdos, o olfato é um gatilho mais poderoso para a memória do que a visão e a audição. “É importante falarmos em olfato, pois muito do que se chama de paladar é, na verdade, olfato, pois, na boca, os alimentos liberam odores que são apreendidos pelo nariz”, registra. A médica ainda aponta que estudos com escaneamentos cerebrais demonstram que esses registros olfativos têm um processamento realizado pelo hipocampo, também responsável pelas lembranças de longa duração.
DIVULGAÇÃO
Cardápio
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Madeleine
O FAMOSO BOLINHO DE LIMÃO M de madeleine, Marcel Proust e memória. Foi a combinação desse típico bolinho francês – em forma de concha e perfumado com limão – com uma xícara de chá a responsável por resgatar a infância do escritor francês e curar sua doença. No seu Ducasse de A a Z – Um dicionário amoroso da cozinha francesa, o chef Alain Ducasse dedica um capítulo à madeleine. “O prazer que tenho ao degustar um talvez não seja idêntico ao de Proust. Mas ativa uma felicidade muito prosaica. É um doce que acho absolutamente irresistível: a massa finamente alveolada, derrete literalmente na boca, de uma maneira delicada, seja com café, chá ou chocolate. Com basicamente quatro ingredientes triviais (manteiga, ovo, açúcar e farinha de trigo), um desses geniais resultados de experiências, misturas e tentativas que, uma vez achado o ponto de equilíbrio, uma vez estabelecida a receita perfeita, existem para sempre, sem sofisticação superlativa”, descreveu o chef.
Para Bourdieu, “é nos gostos alimentares que se pode encontrar a marca mais forte e indelével do aprendizado infantil” Sem se dar conta da explicação científica, a chef Karyna Maranhão escolheu essa bandeira para conduzir o seu trabalho nos mais de 10 anos dedicados profissionalmente às panelas. Desde o começo, a cozinheira sempre teve como discurso a produção de uma cozinha afetiva. “Minha memória associada a cheiros, aromas e sabores têm o poder de me fazer viajar no tempo, me levam para perto de pessoas que amo, ou de volta a momentos prazerosos vividos. Em especial, à comida da minha avó, que cozinhava de forma exímia, e com quem vivi momentos de ternura”, detalha Karyna. Ela cita como exemplo um bolo de laranja feito por sua avó. “São inesquecíveis o cheiro, a textura
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fofinha na boca, o doce da calda de açúcar… Vivo procurando sentir essa emoção novamente. O que me motiva a promover essas sensações sempre tão boas nas pessoas”, completa. Entre os pratos que prepara com esse intuito está a receita de filé com parmesão, bacon e passa de caju. “A presença notável do fruto em conserva agridoce de açúcar, combinado com o gratinado do queijo parmesão e o defumado do bacon em um molho à base de vinho e creme de leite, despertam no comensal confortos de vários momentos”, garante. As relações entre alimento e memória não passaram despercebidas ao olhar profundo do sociólogo Pierre Bourdieu. Ele considerou que “é provavelmente nos gostos alimentares que se pode encontrar a marca mais forte e indelével do aprendizado infantil. São lições que resistem por mais tempo a distância ou ao colapso do ‘mundo nativo’ (o dos gostos primordiais e alimentos básicos) e que conservam a nostalgia”. Responsável pelo ambulatório de Neurologia Cognitiva do Hospital das Clínicas, Terce Liana endossa o raciocínio de Bourdieu e explica que os bebês já nascem apreciando o gosto doce do leite materno, rejeitando prontamente o sabor amargo. “O sabor é um dos principais determinantes do desenvolvimento de preferências e aversões alimentares. Os hábitos alimentares decorrem de diferentes aspectos: genéticos (preferência pelo doce e aversão ao amargo), culturais, familiares e de imitação. Quando os receptores gustativos são estimulados, tendem a construir boas e resistentes lembranças que nos fazem rememorar com carinho e saudade das comidas dos nossos avós e pais”, afirma a neurologista.
CONFORT FOOD
Defensor da gastronomia como um instrumento político, o sociólogo italiano Carlos Petrini mostra outros prismas dessa discussão, pontuando que, apesar de mudanças naturais no gosto e nas preferências alimentares ao decorrer da vida, são os primeiros
Receita
FILÉ COM PARMESÃO, BACON E PASSA DE CAJU (Rendimento de 4 a 6 porções) Por Karyna Maranhão INGREDIENTES 1 peça de filé mignon 1 colher de chá de açúcar 1 e 1/2 xícara de creme de leite 100 g de parmesão ralado 1/2 xícara de vinho branco 6 fatias de bacon picadinho 2 colheres de sopa de passa de caju picadas 1 cebola picada 2 dentes de alho Sal e pimenta-do-reino moída na hora Azeite Manteiga para untar Um ramo de alecrim fresco
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aprendizados que permanecem para sempre na consciência. “A indústria não pode representar uma mãe nessa relação. A alimentação infantil tem recebido cada vez mais cedo a introdução de produtos ultraprocessados com o esforço de parecer feito pela sua mãe”, defendeu em carta-manifesto o fundador do movimento internacional Slow Food, que milita por um “alimento bom, saboroso, de qualidade, sustentável e limpo”. “A memória é uma dimensão importante na relação com a alimentação, quais sentidos e identidades que essas marcas podem construir na infância?”, questionou. Ao pesquisar o efeito da publicidade infantil pelos preceitos da neurociência, o doutor em neurofisiologia Billy Nascimento concluiu que o entendimento de como o cérebro processa informações, causando impacto na mente do consumidor infantil, possibilita às empresas construírem marcas fortes que se conectem de maneira única com essas crianças de hoje, formando uma nova geração de consumidores. “Temos hoje o conceito das love brands, ideia que
1 MADELEINE O bolinho levou Marcel Proust a reviver seus tempos de criança
2 KARYNA MARANHÃO Chef tem como referência a comida feita por sua avó
explora uma personificação das marcas em objetos e personas afetivas que interagem emocionalmente com o consumidor. Esse fenômeno cria tribos e fãs que definem sua própria identidade por meio da sua ligação com as marcas”, aponta o especialista em neuromarketing. Marketing que levou o setor gastronômico no biênio 2011/12, ainda que às cegas do ponto de vista científico, a se apropriar da memória alimentar como aliada de estratégias de mercado. À época, o mercado batizou esse quadro emotivo ocasionado pela alimentação de confort food. “Esse movimento mercadológico desidratou enquanto movimento coletivo, pois as leituras eram padronizadas. Enquanto experiências de ‘comidas confortáveis” são particulares”. Mas, felizmente, afeto não precisa do mercado publicitário. Embaixador da gastronomia pernambucana, o chef César Santos
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PREPARO Corte o filé em medalhões e tempere com sal, pimenta e azeite e sele em uma frigideira antiaderente com o açúcar. Acrescente a cebola, o alho e o bacon picados com o alecrim, doure rapidamente. Junte o vinho, o creme de leite e as passas. Unte um refratário com manteiga e coloque o filé com o molho, e o parmesão sobre a carne, para gratinar por 20 minutos em forno preaquecido a 220°C. (A chef serve a receita acompanhada por minibatatas ao murro, assadas no forno com alecrim.)
tem como carro-chefe do seu trabalho um ingrediente que remete à sua infância simples, parecida com a de muitos pernambucanos. “O jerimum era uma das comidas preferidas do meu pai e virou ícone no Oficina do Sabor com a moranga recheada. Também tenho no cardápio um cabrito em homenagem a ele. Os bolos que aprendi com minha mãe estão lá. O nosso dia a dia era recheado com sabores bem nordestinos. Hoje, muito do que eu faço é reflexo de tudo isso”, conta o cozinheiro. Ele acredita que o elemento que torna essas receitas especiais é o carinho. “A verdade é que todas as receitas estão aí para todo mundo fazer igual, mas, se não forem feitas com carinho, aí não tem prato que dê certo”, opina.
GRAVADORA Somente a música erudita de autores contemporâneos
Fundada por Sergio Roberto de Oliveira, com recursos próprios e empréstimos de amigos, em 1999, a carioca A Casa Discos chega este ano ao marco de 30 CDs lançados TEXTO Carlos Eduardo Amaral
Sonoras A música clássica , por si só, é um nicho pouco lucrativo na indústria fonográfica nacional, salvo pelos álbuns blockbusters de estrelas comercialescas como Andrea Bocelli ou André Rieu (há duas décadas, a febre eram os “três tenores”: Carreras, Domingo e Pavarotti; há três, Richard Clayderman). “Pouco lucrativo” talvez seja bondade, pois é plausível cogitar que esse segmento não seja veramente deficitário no Brasil, mesmo levandose em conta as plataformas virtuais de vendas, a exemplo do Spotify e iTunes. Afinal, quem gasta dinheiro com música clássica hoje em dia – um entretenimento que, para muitos, continua tão exótico quanto filatelia, aero ou ferreomodelismo, numismática e criação de raças raras de cães e gatos? O fundador de uma gravadora no Rio de Janeiro pensou diferente
e decidiu apostar nesse filão, mais especificamente de música clássica criada por compositores brasileiros vivos. Sem lastro financeiro estatal e sem apelar a outros gêneros musicais para expandir o catálogo, Sergio Roberto de Oliveira investiu cerca de 150 mil dólares – de recursos próprios e de empréstimos com amigos e familiares – na aquisição, reforma e adaptação de uma casa antiga no Bairro do Rio Vermelho, na região central do Rio, além da compra dos equipamentos de som necessários, em 1997. A inauguração d’A Casa Estúdio aconteceu em fevereiro de 1998 e a empresa oficializou-se em junho de 1999. “Meu início de vida foi muito conturbado: minha filha nasceu quando eu estava no segundo período da faculdade de Música e tocava na noite para pagar as
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contas. Com a tecnologia digital, os equipamentos de gravação tornaram-se bastante acessíveis, principalmente com a paridade dólar/real, conseguida no governo Itamar Franco. Ou seja, ao mesmo tempo que havia uma necessidade pessoal de sustento, os meios para montar um pequeno estúdio eram mais fáceis”, conta Sergio. Antes de adquirir A Casa, o produtor possuía um estúdio doméstico no apartamento em que morava, montado em 1995. O aumento da demanda o fez alugar um estúdio de ensaios, para onde levava seus equipamentos de som. O passo seguinte foi construir o próprio estúdio: A Casa demorou cerca de sete anos para ficar estruturada por completo: três anos para reforma do edifício e mais quatro para a estrutura social (banheiros, recepção, escritório etc.).
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01-1 SERGIO ROBERTO DE OLIVEIRA
O compositor foi indicado ao Grammy Latino em 2011 e 2012
DISCOGRAFIA
A Casa Estúdio estreou o próprio selo, A Casa Discos, no início dos anos 2000, e concluirá 2017 com 30 CDs lançados, sendo 24 de música clássica (21 destes, de música contemporânea). Em 2016, a gravadora produziu três álbuns: OSN-UFF interpreta compositores de hoje, com obras sinfônicas inéditas de cinco autores residentes no Rio, entre elas, uma do próprio Sergio Roberto, ex-aluno de César Guerra-Peixe (1914-1993); Água-forte: Duo GrosmanBarancoski interpreta Tacuchian, com peças para duo de pianos ou piano a quatro mãos; e The Biedermeiers, que traz arranjos raros com instrumentos do primeiro quartel do século XIX, como o flageolet francês, o csakan húngaro e a guitarra romântica, interpretados por Rubens Küffer e Max Riccio. Outros títulos de destaque d’A Casa são: o box Quinze, com quatro CDs comemorativos dos 15 anos de carreira de Sergio Roberto, em 2012; e os álbuns O piano de Guerra-Peixe, com interpretação de Ruth Serrão; Bem brasileiro, dedicado a peças de diversos autores nacionais para dois violoncelos, tocadas pelo Duo Santoro; Música brasileira contemporânea, vol. 3, de composições interpretadas pelo violonista Armando Uzeda, e Prelúdio 21: Quartetos de cordas, em que o Quarteto Radamés Gnattali executa partituras de integrantes do principal coletivo de compositores eruditos do país. Os dois últimos renderam a Sergio Roberto a rara indicação ao Grammy Latino, em 2011 e 2012, respectivamente. Primeiro, pela composição Umas coisas do coração; depois, pela produção fonográfica. No Recife, os CDs d’A Casa, que são distribuídos nacionalmente pela Tratore, podem ser encontrados nas principais livrarias da cidade. No entanto, o produtor chama atenção para as atuais restrições de estoques do setor: “Muitas vezes estamos no catálogo de uma dessas grandes livrarias, mas não no estoque. Cabe ao consumidor fazer 1
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Sonoras 2
a sua parte e encomendar, pedir, pressionar que o varejista tenha o produto que ele quer adquirir”.
LUCRO RELATIVO
Em um nicho no qual poucas gravadoras se aventuraram, como a extinta Kuarup (responsável pelos CDs mais importantes do Quinteto da Paraíba, do Quinteto Villa-Lobos e da última década de carreira de Sivuca), a CPC-Umes e o Sesc Digital, surge a indagação sobre a rentabilidade do empreendimento. Sergio retruca, afirmando que seria, de fato, lucrativo aplicar no mercado financeiro. “Mas acho que, como brasileiros, temos que pensar além do próprio umbigo: precisamos construir o país, não só na tarefa de toda empresa (geração de emprego e renda) como na de qualquer empresa cultural (ajudar na construção da cultura nacional)”, defende Sergio, que emprega cinco funcionários n’A Casa. Ele explica que A Casa Estúdio congrega estúdio de gravação, estúdio de ensaio, produtora e o selo A Casa Discos, mas que apenas a produtora e o selo trabalham direcionados para o mercado da música erudita, com ênfase na contemporânea. Os estúdios de gravação e de ensaio são ativos tanto no meio erudito
Os estúdios de gravação e de ensaio d’A Casa Estúdio são ativos tanto no meio erudito quanto no da música popular quanto no da música popular. Apesar disso, declara Sergio, o mercado da música clássica tem andado aquecido o suficiente para ser o principal pilar da empresa. Para ele, o segredo, “se é que existe algum”, é não se deixar levar por rumores de crise, arregaçar as mangas e agir como todo empresário deve fazer: analisar o mercado, identificar oportunidades e investir para consegui-las. “Desde que se começou a falar em crise, há cerca de dois anos, nosso negócio apenas aumentou. Independentemente de qualquer coisa, a música contemporânea brasileira justificaria tudo. Graças a Deus, não é o caso”, conclui. Em 2016, A Casa começou a priorizar gravações sinfônicas, tendo lançado dois discos com a Orquestra Sinfônica Nacional da Universidade Federal Fluminense: o …compositores de hoje e o mais recente, o Menestrel e o SertãoMundo,
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01-2 PARCERIA
Junto com o grupo carioca Gnu, Sergio Roberto de Oliveira lançou disco em homenagem a Fernando Pessoa
saído em abril passado, com a participação de Elomar. Mas Sergio não deixa de lado a música de câmara, uma de suas predileções, enquanto há mais de dois anos trava uma guerra contra o câncer de pâncreas. “O trabalho é fundamental. Antes de mais nada, porque a música é uma paixão e realmente ter o foco em algo que amo tanto, em que acredito tanto, que tem tanta vida, ajuda demais. Além disso, percebo que o meu papel como compositor, e através d’A Casa, tem sido muito importante para música brasileira. Vários compositores mais velhos têm me procurado para falar isso, sem contar os mais jovens, os intérpretes. Então, diante de uma missão tão relevante, ganho um combustível a mais para querer viver, querer dar o máximo de mim. Enquanto eu estiver por aqui – e espero que sejam muitos anos – vou continuar criando, produzindo, interferindo no nosso ambiente musical, para tentar dar mais visibilidade para a música de concerto, principalmente para a música de hoje.”
INDICAÇÕES ERUDITA
DUO GROSMANBARANCOSKI Água forte A Casa Discos
Com mais de 60 anos de carreira e um obra de 250 títulos, o compositor Ricardo Tacuchian teve seis composições – para dois pianos e para piano a quatro mãos – escolhidas e interpretadas por Miriam Grosman e Ingrid Barancoski, professoras e intérpretes atuantes na capital do Rio de Janeiro: Grafite, Água forte, Estruturas gêmeas, Tapeçaria, Azulejos e Este verão eles chegaram. Um registro raro e vigoroso de partituras desafiadoras.
ERUDITA
ORQUESTRA FILARMÔNICA DE MINAS GERAIS Guarnieri e Nepomuceno Sesc Digital
A Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, regida por Fabio Mechetti, e a pianista Cristina Ortiz trazem três obras para piano e orquestra de dois marcantes autores nacionais: As valsas humorísticas de Alberto Nepomuceno (1864-1920) mais o Concertino para piano e orquestra de câmara e o Choro para piano e orquestra, ambas de Camargo Guarnieri (1907-1993). O disco foi gravado em junho de 2016, na Sala Minas Gerais, em Belo Horizonte.
ERUDITA
MAX RICCIO E RUBENS KÜFFER The Biedermeiers A Casa Discos
Em seu primeiro álbum, o duo formado pelo violonista potiguar Max Riccio e pelo dulciflautista carioca Rubens Küffer investiu em uma formação instrumental inédita no mundo. The Biedermeiers reúne a guitarra romântica (Max), o flageolet francês e o csakan húngaro (estes, parentes da flauta doce) e interpretam peças de Ferdinando Carulli, Ernst Krähmer, Felix Mendelssohn, Mauro Giuliani, Fernando Sor e Carl Scheindienst.
ERUDITA
ORQUESTRA SINFÔNICA NACIONAL DA UFF E SOLISTAS Orquestra Sinfônica Nacional da UFF interpreta compositores de hoje A Casa Discos
Este álbum traz cinco peças de variadas concepções criativas: Phoenix, de Sergio Roberto de Oliveira; Expressões, de Rami Levin; Fragmentos, de Mariza Resende; Variações para fagote e orquestra, de Pauxy Gentil-Nunes, com Aloysio Fagerlande ao fagote, e Jornada fantástica num trem de ferro, de Alexandre Schubert.
Tibério Azul
ELEMENTOS DA NATUREZA COMO CONCEITO FABIANO CAFURE/DIVULGAÇÃO
“Costumo dizer que faço disco como quem escreve livro. Sempre tive uma raiz centrada na literatura. Quando vou compor, eu defino o conceito antes de iniciar a criação das músicas. Tenho alguns caminhos próprios de definição, de coisas que me
norteiam. Escolho elementos para o disco e geralmente tenho um título provisório, aí começo”, explica o cantor, compositor e poeta Tibério Azul em entrevista. Seu mais recente trabalho solo, o álbum Líquido ou a vida pede mais abraço que razão
(independente), como o próprio título sugere, partiu da ideia de utilizar elementos da natureza como rios, mar, chuva e água para se compreender o cotidiano. Com este novo disco, ele reafirma seu espaço na música brasileira que vem sendo construído desde 2011, ano de lançamento de seu primeiro álbum Bandarra ou o caminho que vai dar no sol. A produção musical do disco é assinada por Yuri Queiroga, os arranjos de metais e cordas foram escritos pelo maestro Nilsinho Amarante e a arte da capa foi pensada por Raul Luna. Numa espécie de construção coletiva, o disco conta, ainda, com as participações especiais da cantora Clarice Falcão, na faixa Chover, do músico Pedro Luís, em Nem a pedra é dura, e Vítor Araújo traz o piano para Faz favor e Deixa assim. O pianista, inclusive, participa das composições de algumas
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músicas, que conta também com Vinícius Sarmento, Zé Manoel e Castor Luiz – este último, que Tibério defende como mais do que parceiro, “sócio de seu trabalho”. O lado letrista de Azul, neste disco, foi bastante aflorado, já que compôs a maior parte das letras. Como não poderia deixar de ser, parte deste momento do músico pernambucano está no campo da literatura. Além do disco, ele lança o livro de poemas Líquido ou o homem que nasceu amanhã (Confraria do Vento). Apesar de serem produtos independentes, eles compartilham similaridades. “Quando terminei o disco, por sempre ter esse vínculo com a literatura, achei que tinha mais verve poética. O livro e o disco não precisam um do outro para se entenderem, mas se completam de alguma forma”, afirma Azul. ERIKA MUNIZ
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
NO TRÂNSITO
Que maravilha, uma visita desejada! O amigo resolve aparecer de repente, depois de anos de ausência. Mal recebemos o anúncio de que está para chegar e já começam os preparativos: arrumamos o quarto, forramos a cama com os melhores lençóis, fazemos as compras de supermercado pensando no que mais agrada, abarrotamos a geladeira e o freezer, esboçamos uma agenda de passeios e até consultamos a previsão do tempo. No dia, bem antes da hora, me junto ao círculo de pessoas que esperam no desembarque do aeroporto. O riso se escancara, os braços são poucos para tantos abraços. Em meio às perguntas nem escuto as respostas. O que vale é a excitação, o reboliço das falas, os olhares para descobrir o que mudou na pessoa, a pressa em revelar em poucos minutos a programação de quinze dias. Empurrando a pequena bagagem, entramos na fila de pagar o estacionamento. Tudo se
resolve ligeiro, os carros param ao atravessarmos a pista, quase comento que vivemos num mundo civilizado, mas silencio. O primeiro contratempo: esqueço o piso onde estacionei o carro e também não anotei se na fila B, J, C... Peço desculpa e atribuo o lapso à ansiedade pelo reencontro. Não me arrisco a confessar que sou especialista nesses desleixos. – Espere aqui. Chego em dois minutos. Subo, desço, me desespero, aperto mil vezes o controle que faz abrir as portas, desejando ouvir um barulho conhecido e ver o pisca acender. Depois de meia hora, encosto o carro em frente ao amigo, desço e ajudo a acomodar a minguada bagagem no porta-malas. – Mil perdões, encontrei um paciente. Pense num cara complicado. Tive de receitá-lo aqui mesmo. Sabe como é médico, todo mundo acredita que vivemos de plantão, minto sem pudor. Começa o segundo round da visita. Nesse primeiro convício foram
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aparadas arestas, outras surgiram, descobre-se que ele já não come carne, prefere vegetais, e apenas duas vezes na semana se arrisca num peixe. Que já não se interessa por literatura contemporânea, lê os filósofos, escuta música barroca e precisa de um tempo diário para a meditação. No carro, você se lembra de cancelar o passeio no catamarã pela Praia de Carneiros, ele não irá apreciar o forró que toca a bordo. Chega na ponta da língua a vontade de saber se ele ainda consome uma caipirinha e fuma um baseado, mas não me arrisco a tanto. Melhor ficar quieto. A visita comenta o quanto a cidade mudou nesses anos, destruíram o patrimônio arquitetônico, isso nunca aconteceria numa cidade européia como Paris – cita logo que cidade! –, mas é comum de acontecer no terceiro mundo. Engulo em seco, odeio a classificação de primeiro e terceiro mundo, odeio quem fala “é coisa de cinema”. Sinto ganas de perguntar o que ele veio fazer no terceiro mundo,
MARIA JÚLIA MOREIRA
voando na classe econômica. Deixo por menos, somos amigos, estudamos juntos até a formatura, ele vive fora do Brasil, ralou para garantir um bom emprego na França e o luxo de morar em quarenta metros quadrados, num bairro razoável de Paris. Logo que cidade! O trânsito não flui, há fortes chances de consumirmos duas horas do aeroporto ao nosso apartamento em Casa Forte, falo pelos cotovelos, procuro distrair o colega do tumulto na pista. – É sempre assim? – Não!, me apresso em mentir novamente. Alguma coisa muito grave aconteceu. Talvez um acidente fatal ou um protesto. Várias motos ziguezagueiam entre os carros parados, uma delas quase leva o retrovisor lateral junto a mim. Avanço dois metros, descuido e caio num buraco. Por bem pouco não estoura um pneu. – O que foi isso? – Um desnível na pista, eu acho. Minto pela terceira vez. Ai
O trânsito não flui, há fortes chances de consumirmos duas horas do aeroporto ao nosso apartamento em Casa Forte meu São Pedro Chaveiro! O asfalto que vendem ao Brasil não é o mesmo que vendem à França. – Será verdade? – Dizem. – Li que a turma do Ministério dos Transportes embolsa uma parte do dinheiro e compra asfalto de terceira. Corrupção? De novo? Não basta o que mostram na TV? A alegria e o ímpeto do reencontro dão sinais de acabrunhamento. Bem que a mulher havia sugerido acomodar a visita um hotel de preço médio, num lugar tranquilo e silencioso. Onde? Existe lugar tranquilo e silencioso no Recife? Tenho convicção de que não existe,
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mas caso ele se atreva a insinuar isso, abro a porta do carro e peço que desça ali mesmo, debaixo de um viaduto onde se arrancham alguns sem teto. – Camus comparou Recife a Florença, quando se hospedou aqui, em 1949. Ele estava com febre ou talvez delirasse, comenta irônico. – Antigamente, o Recife parecia mesmo com Florença, embora o poeta João Cabral o comparasse a Sevilha. – A Sevilha? Pensando bem, talvez o calor insuportável seja igual. – Por que debocha? – Por nada. Vocês nunca perdem a mania de grandeza. Ainda acreditam que os rios Capibaribe e Beberibe se juntam para formar o Atlântico? O trânsito para de vez. Quinhentos metros à frente atearam fogo em pneus e uma coluna de fumaça preta sobe à procura do céu. Os amigos levantam a cabeça, perscrutando o futuro. No final de tarde, já se avista no poente um risco de lua e uma estrela. Por sorte, a fumaça não encobriu os astros. Os dois aproveitam e olham.
REPRODUÇÃO
Leitura
GÊNERO As mulheres na literatura fantástica
Tendo como precursora no Brasil Emília Freitas, essa produção, que enfatiza a aventura e o mistério, é hoje realizada de forma independente pelas autoras TEXTO Eduardo Montenegro
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Emília Freitas era uma escritora rebelde. Nasceu no Ceará, em 1855, e desde os 18 anos passou a publicar contos e poesias nos jornais locais. Ela é a autora de A rainha do ignoto, lançado em 1899, livro que permaneceu praticamente obscuro na história da literatura brasileira, sendo somente impressa uma segunda edição em 1980. Caracterizada pela própria como um “romance psicológico”, a obra de Emília Freitas é considerada a primeira de literatura fantástica do país. Logo nas primeiras páginas, apresenta seu livro quase como um desafio aos escritores brasileiros de sua época, a quem dedica o trabalho: “Ei-la delapidada como um diamante arrancado do seio da terra e oferecido por mão selvagem”. Ainda que outras obras mais antigas do que A rainha do ignoto possuam elementos do fantástico, tais como Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, é venerável a participação esquecida de Freitas para a construção desse gênero que, ultimamente, cresce em popularidade, especialmente nas redes sociais. No romance, a autora ultrapassa os limites impostos pela cultura sexista da sociedade do Império, desafiando o “papel-lugar” da mulher; em outras palavras, o enredo poderia se encaixar perfeitamente numa história produzida nos tempos atuais. Em seu “clássico escondido”, a rainha é um ser mágico, carregado de doçura e mistério, que viaja pelo Brasil “salvando” mulheres de suas realidades sufocantes e opressoras. A Ilha do Nevoeiro, por fim, é o local onde uma sociedade secreta é formada por essas mulheres resgatadas, que desenvolvem atividades atípicas para seu sexo na época: são advogadas, médicas, engenheiras, donas de si. Portanto, ao contemplar esse livro específico de Emília Freitas, a representatividade da mulher no campo da literatura é um tema de indubitável importância. No Brasil, escritores do fantástico já se consagraram no meio, a exemplo de André Vianco, autor de inúmeros livros bem-sucedidos comercialmente; Eduardo Spohr, de A batalha do apocalipse (Versus Editora, 2010), traduzido em outros idiomas; e Raphael Draccon, com sua trilogia Dragões de éter (LeYa, 2011). A própria Lygia Fagundes Telles, autora de clássicos com elementos do fantástico, como Seminários dos ratos (1977), também
já se consagrou. Entretanto, ao olharmos para as estantes de literatura fantástica nacional, ainda parece existir um vácuo de nomes femininos. Ao questionarmos sobre representatividade, é necessário pensar numa idiossincrasia por parte de dois polos: mercado e autoras. Por exemplo, quando J.K. Rowling terminou seu rascunho de Harry Potter e a pedra filosofal, várias editoras disseram que as pessoas não leriam um livro de fantasia escrito por uma mulher. Eis o motivo da abreviação de seus nomes Joanne Kathleen (este sendo o nome do meio) ao seu sobrenome. “No Brasil, o mercado literário é muito fechado para autores nacionais. Mas sinto que muitas coisas estão mudando, o que é gratificante”, explica Bianca Carvalho, da Trilogia das cartas, lançada de forma independente. Sua estreia foi com o primeiro volume da saga, Jardim de escuridão, durante a Bienal
A literatura fantástica ainda é um gênero subestimado pela crítica, aponta pesquisadora Cristina Batalha, da USP do Livro Rio, em 2011. Na edição seguinte do evento, vendeu 600 exemplares do segundo volume, Versos sombrios. “Eu acho que elas estão chegando. De mansinho, mas vão aparecendo. Há muito preconceito ainda, principalmente vindo do público masculino, que, mesmo sabendo que existe uma J. K. Rowling (e muitas outras), ainda torcem um pouco o nariz. Temos muitas coisas publicadas de forma independente, porque algumas editoras fecham as portas. O que falta no mercado brasileiro é mais ousadia”, acrescenta Bianca, em entrevista à Continente. Carolina Vasconcelos, estudante de Psicologia na Faculdade de Saúde de Pernambuco (FPS), define-se como uma leitora ávida de literatura fantástica, mesmo assim, não lembra ter lido autores nem autoras nacionais. Ela diz que começou a admirar esse gênero na infância, pelos contos de fada. “O melhor é que não tem nenhum ou quase nenhum
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toque de realidade. Quando você é uma criança e sua realidade não é segura, ou não faz com que você se sinta segura, uma coisa completamente fora dela te ajuda muito”, categoriza a estudante. Olhando em retrospecto ao contexto histórico da literatura fantástica no Brasil, vimos que, por muitos séculos, esse gênero era subestimado pelos críticos: é o que aponta a professora doutora Maria Cristina Batalha em entrevista para a revista Desassossego, da USP. A pesquisadora é especialista em literatura fantástica no país, estudando também o Romantismo e Ultrarromantismo. Em entrevista concedida por e-mail à Continente, afirma que – nos dias atuais – o papel da mulher nesse nicho literário vem aumentando, uma vez que “uma retomada do gênero de um modo geral e a sequência de filmes, quadrinhos, livros, no Brasil e no mundo, trouxeram de volta o fantástico e suas variantes (gótico, horror, maravilhoso, fantástico, ficção científica etc.)”. “Essa manifestação literária, embora com presença relativamente forte no Romantismo, era tida como ‘não séria’, vinculada à literatura de baixa qualidade ou àquela que era dirigida às mulheres, por gostarem de histórias escabrosas. Por conta disso, era sistematicamente excluída dos espaços de alto valor simbólico, como livros, antologias, currículos escolares”, acrescenta Batalha.
LINHAS NARRATIVAS
Numa analogia, se na Ilha do Nevoeiro as mulheres reuniam-se numa seita secreta para desenvolverem papéis que, na sociedade real, lhes eram vetados, podemos dizer que a Ilha acontece agora para as autoras do gênero: independentes, muitas vezes recorrem à internet para divulgarem seus trabalhos. É interessante notar que muitas escritoras, hoje em dia, fazem seu público dentro do universo do mistério, do terror e do suspense. Kaori (Giz Editora, 2009 e 2011) é uma série de livros escritos pela nissei Giulia Moon, que mistura a cultura vampírica à cultura oriental. Apelidando seus fãs de vamps, Moon é considerada um dos notáveis nomes do mundo vampírico no Brasil: Kaori, personagem principal de sua trama – mesclando o universo do Japão feudal com a atual e caótica Avenida Paulista –, possui também a
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Leitura
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própria legião de fãs no Facebook: os kaorilovers, com quase 600 membros. A autora afirma que se interessou desde cedo por histórias de fantasia e terror: ela é uma grande fã das Crônicas vampirescas (1976), de Anne Rice. Descobrindo, na internet, um grupo de admiradores da obra de Rice (e do universo dos vampiros em geral), passou a publicar pequenos contos que, segundo ela, vinham com excelentes feedbacks. “Nunca enxerguei como algo excêntrico”, diz a escritora, referindose à simbiose de universos diferentes. A presença feminina é forte nas obras de Moon, seja nos seus primeiros contos publicados na internet (disponível em seu site www.giuliamoon.com.br), seja nas suas criações mais recentes. Ainda que os protagonistas, em alguns casos, sejam homens, a maioria de suas ações é desencadeada por mulheres. Buscando inspiração no seu entorno, mesmo que para fins fantásticos, as personagens de Giulia Moon são reflexos das próprias mulheres da sociedade. “O fato de ser uma escritora, e não um escritor, talvez aguce a minha atenção para o desempenho das mulheres e facilite a
“Usamos a fantasia para abordar temas muito reais, às vezes chegando a extrapolar certos cenários” Roberta Spindler compreensão da psique feminina, mas isso acontece de forma natural”, explica. No que diz respeito a essa presença de gênero, na referida Trilogia das cartas, a mulher como personagem está presente desde a capa até seu conteúdo. “Eu gosto de escrever sobre e para mulheres. Acredito que cada uma das minhas personagens tenha um pouco de mim, mas nenhuma delas sou eu. Sempre busco criar personagens do zero, pois é um desafio mais gostoso. Porém, todas elas têm a força, a intuição e a delicadeza que todas as mulheres possuem, assim como eu”, acrescenta Bianca Carvalho.
FANTASIA NO REAL
“Usamos a fantasia para abordar temas muito reais, às vezes chegando a
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extrapolar certos cenários justamente para causar uma reação mais forte no leitor, alertá-lo (como no caso das distopias). Incluir mulheres nas narrativas, tratá-las como protagonistas de suas histórias e reverter tramas tradicionalmente machistas é importante para conscientizar os leitores”, afirma Roberta Spindler, autora de A torre acima do véu (Giz Editora, 2014) e Contos de Meigan (independente, 2011). Para ela, a literatura fantástica pode ser um incentivo para iniciar – principalmente nos jovens – uma hábito de leitura. Segundo ela, o gênero pode oferecer um atrativo para quem julga literatura algo entediante, especialmente quando o Ensino Médio brasileiro enfatiza a leitura dos clássicos em detrimento do contemporâneo. “Uma mãe me contou que seu filho não costumava ler, mas depois que descobriu A torre acima do véu, por uma indicação em um site de video games, passou a amar livros”, comenta a autora. Felipe Siciliano se diz ávido leitor de literatura fantástica. Ele conta
INDICAÇÕES ARTE
ROBERTA BARROS Elogio ao toque ou como falar de arte feminista à brasileira
POESIA
DEMETRIOS GALVÃO O avesso da lâmpada Editora Moinhos
A pesquisadora e artista visual Roberta Barros investiga questões de gênero no campo das artes visuais e as conecta à história em Elogio ao toque ou como falar de arte feminista à brasileira. Parte de análises das obras de Lygia Pape, Anna Maria Maiolino, Márcia X, Daniela Mattos, entre outros.
Quarto livro do poeta e historiador Demetrios Galvão, O avesso da lâmpado, traz experimentações e reafirma pontos já apresentados na trajetória poética do autor de Bifurcações (2014). Divididos em quatro capítulos , os poemas demonstram uma tentativa de se produzir outras dimensões “onde as palavras têm febre e a matéria se bifurca”, como no poema Recanto.
ENTREVISTA
POESIA
É Realizações
Crivo Editorial
Relacionarte
2
1 BIANCA CARVALHO
2 GIULIA MOON
Sua Trilogia das cartas centra-se no romance e no mistério
Autora mistura cultura vampírica à oriental, num cenário urbano
400 livros em sua estante, muitos deles dedicados ao gênero. Estudante de Letras no Centro Universitário Moura Lacerda, em Ribeirão Preto (SP), o rapaz de 22 anos conta que iniciou o hábito de leitura desde cedo, “assim que aprendi a ler”. “A literatura fantástica é, ao mesmo tempo, uma fuga da realidade e uma crítica à realidade. É como sair do mundo real, mas, ao mesmo tempo, refletir sobre ele por meio de relações que nem sempre são tão claras. Acredito que representa que não há limites para a criatividade humana”, afirma o estudante. O apreço por esse nicho literário o levou ao apego pelas personagens femininas, especialmente por Luna Lovegood e Hermione Granger, da saga Harry Potter. Para ele, são personagens que somente uma mulher saberia trabalhá-las. “Não que seja
uma regra, mas, nas minhas experiências de leitura, acabei me identificando mais com essas personagens que foram exclusivamente criadas por mulheres.” Se a fantasia, como gênero, se dá na hesitação do leitor em face aos acontecimentos sobrenaturais de uma narrativa – como conceituou Todorov em Introdução à literatura fantástica –, observamos este impulso criativo e psicológico nas autoras aqui referidas. De Emília Freitas, no século XIX, às autoras que hoje encontram repercussão na internet, o que se observa é o desejo de suspensão do real “sufocante” aliado à capacidade de criar cenários e personagens que, num mundo de fantasia, são capazes de colocar essa mesma realidade em xeque.
MORTIMER J. ADLER E CHARLES VAN DOREN A arte da leitura Um diálogo de leitores sobre a leitura, em suas mais variadas facetas, pode ser instigante tanto para outros leitores em busca de pares quanto para não leitores em busca de referências, não é verdade? Certamente, é este o objetivo duplo deste volume, que regista a conversa culta e amena entre o filósofo Adler e o historiador Doren.
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VINÍCIUS MAGALHÃES Verve para passarinho O poeta apresenta uma obra sensível ao coração e às memórias. Parece revisitar a própria história, criando arte por cima de suas dores, como no poema Tua alma deixou pegadas obscuras. A verve é a referência afetiva que pode despertar no leitor um excesso de liberdade para que o “homem-pássaro” trace seu voo, ou se refugie em sua selva.
IDENTIDADES A América Latina expressa no cinema
Produções audiovisuais contemporâneas iluminam o debate sobre os pontos de correlação e as contradições do continente TEXTO Luciana Veras
Claquete 1 NA ESTRADA King Kong em Asunción está sendo rodado no interior da Bolívia e no Paraguai
¿Usted es chileno, español o mexicano? –Soy latinoamericano. (Resposta do escritor chileno Roberto Bolaño em sua última entrevista, concedida no ano da sua morte – 2003 – à jornalista Mónica Maristain, editorachefe da Playboy para a América Latina)
“É a América Latina a região das
veias abertas”: assim escrevia Eduardo Galeano (1940-2015) no mais famoso dos seus livros, em uma tentativa de descrever o monumental território de quase 20 milhões de quilômetros quadrados, do México aos confins do Chile, atravessando os oceanos Atlântico e Pacífico e o Mar do Caribe. Mais de três décadas separam a publicação de As veias abertas da América Latina, em 1971, das declarações proferidas por Bolaño; no entanto, o conceito de uma identidade latino-americana segue em evidência na produção cultural contemporânea. Do campo audiovisual,
sobretudo, emergem obras que almejam investigar as mazelas e os deleites embutidos numa frase como “soy latinoamericano”. Afinal, o uruguaio Galeano já profetizava: “Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas, ao longo da torturada história latino-americana, emergem nas novas experiências, assim como os tempos presentes, pressentidos e engendrados pelas contradições do passado”. Da estrada entre Tupiza e Tarija, duas cidades no interior da Bolívia, o cineasta pernambucano Camilo Cavalcante ratifica os falecidos escribas latino-americanos ao falar sobre King Kong em Asunción. “O filme é um desafio – uma produção brasileira filmada na Bolívia, no Paraguai e em Pernambuco, que integra profissionais e artistas dos três países. Tivemos que fazer um estudo logístico para cruzar fronteiras e percorrer quase três mil quilômetros, mas a proposta é de integração artística
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e humana, pois nossa realidade é a mesma. Sofremos dos mesmos males, da mesma opressão política; o Brasil acaba olhando muito para fora, para cima, para a Europa e a para a América do Norte, e acaba esquecendo de olhar pra dentro. Precisamos cada vez mais dessa integração”, detalha Cavalcante à Continente. O enredo do longa-metragem, o primeiro desde A história da eternidade (2014), ancora-se na figura do Velho (Andrade Jr.), um pistoleiro de aluguel em busca da filha, a percorrer locações que cruzam as paisagens paradoxais do continente. Trafegando entre o experimentalismo e a ficção, King Kong em Asunción quer “contar uma história de forma original, absorvendo e respeitando as culturas do seu povo e questionando, com orçamento enxuto e muita criatividade, uma estética imposta pelo modelo industrial de produção”, nas palavras do diretor. “Se tem um
AURORA CINEMA/DIVULGAÇÃO
elemento que pode ser celebrado nesse panorama atual da produção latinoamericana é o crescimento de obras expressivas que discutem as relações de poder de modo profundo e genuíno, abordando temas plurais que vão do extermínio e catequização dos povos originários, que hoje lutam bravamente para manter vivas as suas culturas, ao registro da vida no subúrbio de Caracas”, diz Cavalcante. “Nesse trabalho com equipes do Paraguai, da Bolívia e do Brasil, entendemos o sentimento forte que chega a todos: estamos realizando uma obra na qual vamos nos ver. Veremos bolivianos, paraguaios e brasileiros, ouviremos português, espanhol e guarani. Veremos nosso continente na tela grande. Aquele que nós, brasileiros, não conhecemos tanto, mas deveríamos. Um continente vivo, onde o mercado cinematográfico ainda é dominado pela indústria norte-americana, que chega
“Sofremos dos mesmos males, da mesma opressão política, e o Brasil acaba olhando muito para a Europa” Camilo Cavalcante forte nas salas comerciais de todos os países latino-americanos com filmes de orçamentos estratosféricos, com os quais não nos identificamos”, pontua Carol Vergolino, da Alumia Conteúdo, produtora associada do longa, cujas filmagens iniciaram em abril, no Salar do Uyuni, na Bolívia. Identificação é termo crucial para se pensar quais seriam os pontos de correlação entre filmes feitos no Chile, no Brasil, em Cuba e na Colômbia, por exemplo. El primeiro de la família (Chile, 2016) foi trazido pelo diretor Carlos Leiva
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para a 40ª Mostra Internacional de São Paulo. Na trama, Tomás (Camilo Carmona) é o personagem-título: o primeiro de sua família a cursar uma universidade, a ganhar uma bolsa de estudos e a realizar o sonho de viajar de avião. No fim de semana que antecede sua partida para Londres, a casa onde mora com os pais, a irmã e a avó, no subúrbio de Santiago, sofre com problemas de encanamento. Em outubro de 2016, após uma sessão na mostra paulista, Leiva foi abordado por diversos espectadores. “As pessoas me diziam ‘não pense que esse filme é somente chileno, ele também é brasileiro’, pois viviam realidades parecidas. Nossos países são assim: há pouca gente com muito dinheiro e muita gente que não tem nada. Até os 18 anos, dividi um quarto com meu irmão, minha irmã, minha avó e minha tia. Na minha casa, quando a descarga dava problema, tudo ficava alagado de água podre”, recordou à Continente.
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2 VIDA NA CAPITAL El primero de la familia enfoca desigualdade social CARLOS LEIVA 3 Diretor chileno se inspirou em sua vida em Santiago
4 LAS CALLES Entre ficção e documentário, uma bela investigação MARIA APARÍCIO 5 Jovem realizadora portenha criou uma ode à memória
6 MARCO DUTRA “É difícil falar em identidade latinoamericana fixa“
Claquete MARIO MIRANDA FILHO/AGÊNCIA FOTO/DIVULGAÇÃO
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“A partir desses dois elementos reais, elaborei um relato que falava criticamente do Chile e era uma metáfora da desigualdade feroz que existe no meu país e no nosso continente. Pode ser muito trivial viajar de avião, mas para mim isso representa o desequilíbrio social do Chile e da América Latina. Outro ponto importante é que cresci vendo meu pai e minha mãe serem humilhados no trabalho. Quantos trabalhadores hoje, por exemplo, não sofrem com legislações que querem tomar seu dinheiro e seus direitos? A história do filme não é apenas a da minha família, é de todas as famílias chilenas e de todos que vieram conversar comigo em São Paulo, que sofrem com habitação
Um viés para atestar o amadurecimento do audiovisual latino-americano é o crescimento das linhas de fomento precária, saúde pública nefasta e uma situação laboral absurdamente descuidada”, acrescenta o diretor. Detalhe: a primeira vez em que Carlos Leiva entrou em um avião foi em 2011, para exibir um curtametragem na capital paulistana. Outra obra presente à 40ª Mostra de SP que ampliava o horizonte de reflexão sobre a América Latina era Oscuro animal (Colômbia/Argentina/Alemanha/ Holanda/Grécia, 2016). Com direção do colombiano Felipe Guerrero, o filme entrelaça as histórias de três mulheres que, em graus distintos, porém com muita dor, eram vítimas dos conflitos armados daquele país. “A Colômbia é o país com o maior número de desabrigados do mundo. Há milhares de pessoas que tiveram que sair do campo, de qualquer forma, em um êxodo urbano que enriqueceu os bolsões de pobreza e de miséria. Nós nos interessamos pelo efeito que o conflito tinha nas mulheres. É uma síntese de muitas histórias reais”, conta Gema Juárez Allen, da Gema Films, produtora do longa. O trio de protagonistas (interpretado com maestria e silenciosa delicadeza
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por Marleyda Soto, Jocelyn Meneses e Luisa Vides) evidencia, também, outro aspecto da realidade da América Latina: a violência machista, que vitimiza mulheres e faz explodir o número de feminicídios, por exemplo. “Há muitas transformações no continente. Vivemos, atualmente, sob muitos governos de direita – Argentina, Brasil… Isso tudo está conectado”, pondera Gema, uma argentina que por 10 anos viveu no Rio de Janeiro. Para ela, uma janela para perceber o amadurecimento da produção audiovisual contemporânea do continente é o crescimento do fomento: “É uma característica do Brasil que é comum a todos. Essas iniciativas de fomento têm permitido uma diversidade de linguagens, de estéticas e de propostas narrativas que resultam numa liberdade criativa inédita. Na Europa, isso não existe. Sinto que a Europa está olhando para a América Latina; basta ver nos prêmios dos principais festivais uma presença marcante do cinema latino-americano. O aumento do fomento abriu lugar para a experimentação como linguagem”. A professora, jornalista e crítica paulistana Luiza Lusvarghi partilha dessa percepção. Sua tese de doutorado em Comunicação na USP versava sobre as aproximações entre cinema e televisão, a partir do cotejamento entre Cidade de Deus (2002), o filme de Fernando Meirelles, e Cidade dos homens, seriado nascido a partir do longa e exibido em uma emissora nacional entre 2002 e 2017. “Muita coisa mudou desde então,
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porém estão cada vez mais borradas as fronteiras entre os gêneros audiovisuais e mesmo entre as produções pensadas para o cinema e aquelas feitas para TV. Antes, nunca imaginaria que um seriado sobre Pablo Escobar fosse produzido com dinheiro norte-americano e com um diretor e um ator principal brasileiros. Todas as produções que tratavam da figura de Escobar eram sempre ‘americanoides’. Porém, a discussão sobre o crime organizado e sua evolução é coerente com a globalização. Narcos está aí, com Wagner Moura como Escobar. Suas duas temporadas foram um sucesso no Netflix”, argumenta Luiza, que é integrante da diretoria da Associação Brasileira de Críticos de Cinema/Abraccine e do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e coordenadora do núcleo de cinema da Intercom. Ela tem se dedicado a pesquisar as narrativas criminais na América Latina a partir das relações entre as produções ficcionais de cinema e televisão nesse tema. Por conseguinte, tem acompanhado com lupa tudo que é feito e pode atestar, por exemplo, que, apensar do idioma ainda diferenciar o Brasil da quase totalidade dos países do continente, as narrativas tendem a se assemelhar porque as questões enfrentadas são as mesmas. “A realidade da América Latina é transnacional. As grandes migrações, produzidas por contextos políticos, sociais e econômicos, provocam um outro tipo de exclusão social que se vê
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em todo o continente. A desigualdade em uma favela no Rio de Janeiro não é diferente da que existe em Lima. As oportunidades de produção e coprodução propiciam uma expansão do cinema e do audiovisual que leva essa nossa precária realidade a transcender fronteiras. Não é por acaso que o Netflix tenha produzido o seriado brasileiro 3% ou que tenha adotado o Brasil como plataforma modelo para experimentar seus lançamentos. Se funcionar por aqui, funciona em qualquer lugar do mundo que tenha uma classe social pobre, uma classe média fragilizada e uma elite endinheirada”, situa. Luiza Lusvarghi chama a atenção para alguns dos títulos premiados no 44º Festival de Gramado, a exemplo de
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Guarani (Paraguai/Argentina, 2016), de Luis Zorraquín, e O silêncio do céu (Brasil/ Uruguai, 2016), de Marco Dutra, a fim de ressaltar as inúmeras facetas desse audiovisual de várias línguas, contudo de essência igual à resposta curta do autor chileno Roberto Bolaño – “soy latinoamericano”. “Não tem como essa realidade não transbordar nas narrativas. As fronteiras estão desaparecendo”, sintetiza. Marco Dutra, por sua vez, rodou O silêncio do céu em espanhol, com atores portenhos (Leonardo Sbaraglia), brasileiros (Carolina Dieckmann) e uruguaios (Mirella Pascual). Foi sua primeira coprodução internacional. “Temos a diferença de língua que nos dá uma falsa ideia de isolamento dentro da geografia latina, mas é uma barreira
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7 OSCURO ANIMAL O peso do conflito colombiano sobre três mulheres
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GEMA JUÁREZ 8 “Vivemos sob governos de direita e tudo se conecta”
9 LUIZA LUSVARGHI As fronteiras estão “borradas” entre países e gêneros
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mais superável do que imaginamos”, comenta o cineasta paulistano de Quando eu era vivo (2014). Dutra considera difícil “falar em uma identidade latino-americana fixa porque há tanta coisa específica de cada cultura, que uma aproximação genérica seria injusta”, mas enxerga elos pertinentes: “Olhemos para a história: as relações com os colonizadores, as guerras com as populações nativas, o tráfico de escravos… E, no caso de tantos de nós, regimes ditatoriais e vínculos estranhos com nações imperialistas. A história não é tudo, mas é um ponto de partida, e acredito que há muitos elementos que possam fazer um filme do Recife ser compreendido e abraçado no México, em Cuba ou no Uruguai, por exemplo.
Um desses elementos é, inclusive, o questionamento de que identidade seria essa nossa, e de onde ela veio”. Em As veias abertas da América Latina, Eduardo Galeano conjecturava: “A História é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será”. No (Chile/França/México/EUA, 2012), de Pablo Larraín, recria um dos episódios cruciais do continente – o referendo chileno de 1988, que removeu o general Augusto Pinochet do comando do país. “A História com H maiúsculo oferece momentos inacreditáveis. Uma ditadura que acaba com um plebiscito democrático era fascinante. O fato desse plebiscito ser antecedido de um programa diário de televisão torna a
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história ainda mais incrível. Era uma possibilidade interessante de retratar o conflito entre o indivíduo e a sociedade”, sustenta Daniel Dreifuss, um dos produtores de No. O filme traz Gael Garcia Bernal no papel do publicitário encarregado da campanha do “não”. “É uma história muito próxima do que aconteceu em quase todos os países latinoamericanos, que têm em comum a triste passagem da ditadura. O desafio era transformá-la em uma narrativa universal, para que alguém na Ucrânia visse e, mesmo sem saber onde é o Chile, se envolvesse com tudo aquilo. Ao mesmo tempo, era uma história que tinha a ver comigo”, comenta Dreifuss, que nasceu na Escócia, cresceu no Brasil e hoje mora em Los Angeles – seu pai, René Dreifuss (1945-2003), escreveu 1964: a conquista do estado, um dos primeiros livros a contextualizar a participação civil no regime militar, e foi obrigado a sair do país. Ele acredita que, ante “o movimento comum no mundo, com a ascensão de Donald Trump e o que ocorreu no Brasil, na França e no Brexit”, o cinema não deve assumir um tom panfletário, mas não pode se negar a refletir a turbulência social: “Momentos socialmente e politicamente complicados são interessantes para a arte, ainda que dolorosos, trágicos e tristes”. Atualmente, vários países da América Latina se encaixam com exatidão na definição de “momento socialmente e politicamente
INDICAÇÕES complicado”. Para a diretora portenha Maria Aparício, que exibiu Las calles (Argentina, 2016) na programação da 40ª Mostra Internacional de São Paulo, é inadmissível ser cineasta e não se relacionar com as fraturas do continente. “Creio que os filmes sempre têm que estar em diálogo com a realidade, com o momento social e histórico em que estamos. Se quisermos falar de uma História latinoamericana, precisamos reconhecer certos temas que perseguimos como assuntos latino-americanos. Hoje, o que acontece na Argentina e no Brasil no campo político é muito similar. Também nesses mesmos países, por exemplo, os habitantes originários foram dizimados”, sublinha. Las calles se equilibra entre documentário e ficção para falar de um projeto escolar transcorrido na minúscula cidade de Puerto Pirámides, na península Valdés, na Argentina. A cineasta soube do exercício de memória que uma professora local havia inventado: incentivar as crianças a irem perguntar, nos encontros com os mais velhos, a origem da história local para nomear as ruas. “A única rua que tinha nome se chamava Julio Argentino Rico. Ele foi um dos primeiros ‘heróis’ de história argentina, um militar que limpou todos os povos originários da Patagônia, o líder da campanha de deserto que aniquilou todos os nativos. Era a única rua com nome. Se quase todos de lá são descendentes dos povos originários, e estamos falando de um momento não tão longínquo da nossa história, temos que perguntar por que esse nome aparece, simbolicamente, como algo importante. Cinema é testemunho da
época. Creio que todos os filmes devem nos levar a perguntas para que possamos chegar a algum lugar”, condensa Maria Aparício. Os brasileiros Eduardo Coutinho (1933-2014), Leon Hirszman (1937-1987) e Glauber Rocha (1939-1981); os chilenos Raul Ruiz (19412011), Patricio Guzmán e Miguel Littín; o uruguaio Israel Adrián Caetano; a argentina Lucrecia Martel; o mexicano Carlos Reygada; o cubano Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) e o colombiano César Augusto Acevedo foram citados pelos entrevistados para esta reportagem como referências/expoentes do cinema latino-americano. Não deixa de ser um alento notar que, ao lado de expoentes do Cinema Novo ou da produção de resistência contra os golpes militares dos anos 1970, figuram realizadores novos, nascidos já sob os ares da redemocratização. Em ambos os casos, são cineastas que mergulharam nas assimetrias do continente para conhecêlas e, na confluência entre passado e presente, vislumbrar um futuro com todas as múltiplas identidades englobadas num “soy latinoamericano”. Como definiria Eduardo Galeno na segunda edição de As veias abertas da América Latina, “o passado sempre aparece convocado pelo presente, como memória viva do nosso tempo”. A busca de uma maior consciência histórica, prosseguiria o escritor uruguaio, “contribui para explicar o tempo presente, a partir da base de que a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la”.
CINEBIOGRAFIA
NACIONAL
ALÉM DAS PALAVRAS
VERMELHO RUSSO
Dirigido por Terence Davies Com Cynthia Nixon, Jennifer Ehle Cineart Filmes
Dirigido por Charly Braun Com Martha Nowill, Maria Manoella Vitrine Filmes
O cineasta britânico Terence Davies se lançou à empreitada de biografar uma das poetas mais adoradas pelos norte-americanos: Emily Dickinson. O resultado é um joia, tanto pela magistral interpretação de Cynthia Nixon (a Miranda do seriado Sex and the city) como pelo tom, por vezes soturno até, que Davies imprime à narrativa que se desenrola com delicadeza. Assim, Dickinson ganha um tributo à altura do brilho de seus 1,8 mil poemas, descobertos apenas após sua morte, aos 56 anos, em 1886.
No centenário da Revolução Russa, o diretor Charly Braun lança uma das mais instigantes experiências dramatúrgicas da produção contemporânea do Brasil. Marta e Manu (vividas por atrizes com o mesmo nome) viajam para a Rússia com o intuito de se reinventar na profissão que escolheram – são atrizes em crise. Mas como enfrentar um inverno rigoroso, Stanislavski e a diferenças culturais que se tornam um abismo sem perder, aos poucos, os limites da sanidade?
DRAMA
FICÇÃO CIENTÍFICA
FACES DE UMA MULHER
Dirigido por Arnaud des Pallières Com Adèle Exarchopoulos, Gemma Arterton Mares Filmes
Quatro fases distintas na vida de uma mesma mulher estão em evidência nesse drama francês. Da infância à vida adulta, a personagem, que se espelha em outras ao longo da narrativa, é vivida com intensidade e sofrimento. Uma dessas fases/faces pertence a Adèle Exarchopoulos: aqui, ela atesta sua versatilidade e mostra habilidade e cacife para novos voos na carreira depois de explodir em Azul é a cor mais quente (2013).
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ALIEN: COVENANT
Dirigido por Ridley Scott Com Katherine Waterston, Michael Fassbender Fox
Será que o personagem de Katherine Waterston é um espelho da lendária Ripley de Sigourney Weaver? Será que os dois androides interpretados por Michael Fassbender terão ainda mais protagonismo do que em Prometheus? Será que a tripulação selecionada em casais, como uma arca de Noé pós-moderna, será toda devorada pelo monstro que qualquer fã de ficção científica aprendeu a temer em Alien? Ridley Scott retorna, com maestria, ao campo onde se consagrou rei.
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USINA DE ARTE Transformando o entorno Projeto ousado, iniciado em 2015, leva movimentação cultural incomum à Mata Sul do estado TEXTO Mariana Oliveira FOTOS Léo Caldas
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Visuais O trajeto entre o Recife e a Usina
Santa Terezinha, no município de Água Preta, a 140 km da capital, é formado por uma paisagem que fala muito sobre o passado da região, a monocultura da cana-de-açúcar, seus engenhos e usinas. Tempos atrás, Pernambuco possuía 60 usinas em funcionamento. Hoje, são 13, divididas entre a Zona da Mata Norte e a Mata Sul. A Santa Terezinha – que na década de 1950 viveu tempos áureos e chegou a ser, em um ano, a maior produtora do país – está entre aquelas que foram desativadas. Há pouco mais de 15 anos não se mói cana por lá, ainda que parte de suas terras ainda sirva para sua plantação. O imaginário desses tempos de cultura canavieira forte parece estar impregnado no lugar e também nas pessoas que lá vivem. Usinas como a de Barreiros e a de Catende conseguiram, diante da sua potência, constituir comunidades que foram alçadas à categoria de municípios. Hoje, também desativadas, deixaram uma lacuna no modo de vida das pessoas. A Santa Terezinha não chegou a fundar um município, mas criou uma vila em seu entorno, cujos moradores também sofreram os impactos do fim da moagem de cana. Enquanto essa cultura arraigada se deteriora, a população local viu surgir, em 2015, algo novo naquele lugar onde antes a cana-de-açúcar era centro da vida. Uma movimentação cultural brotou de forma pouco organizada: nascia o projeto Usina de Arte. Proprietário das terras da usina, o empresário Ricardo Pessoa de Queiroz deu início – informalmente – ao projeto após uma viagem ao Centro de Arte Contemporânea de Inhotim, instalado na cidade de Brumadinho (MG), espaço ao qual o Usina de Arte vem sendo reiteradamente comparado. Em 2012, Ricardo e sua esposa, Bruna, fizeram uma visita ao centro mineiro. Lá, eles se apaixonaram pelo trabalho do artista Hugo França, que desenvolve “esculturas mobiliárias” em madeira. “Falei para Bruna que queria uma peça dele. E o convidei para vir até a usina e aproveitar a matéria-prima que temos em abundância por aqui.
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Depois, alguns amigos me pediram para convidá-lo novamente para desenvolver outras peças para eles. Hugo veio em 2013, depois novamente em 2014. A partir daí, em nossas conversas, surgiu a ideia de chamar outros artistas para vir a esse lugar, dialogar com o entorno e com as questões culturais da região”, conta Ricardo.
PODER DA ARTE
Era início de 2015, e eles receberam a sugestão de convidar o paraibano José Rufino para conhecer a Usina e desenvolver ali uma obra. O artista levou um tempo para aceitar o convite, mas seguiu rumo à Santa Terezinha achando que era chamado simplesmente para a produção de uma obra encomendada
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– já levava, inclusive, duas propostas. Ao deixar seu ateliê, no entorno de João Pessoa, Rufino sabia que se dirigia a uma área com números altos de violência e índice muito baixo de desenvolvimento humano. Além disso, chamava a atenção a ausência de manifestações culturais na região, já que a Mata Norte, a despeito da exploração da cana, conseguiu preservar algumas de suas tradições culturais. Essa era uma pergunta importante para o artista. Por que a Mata Sul não tinha referências culturais tão fortes quanto às da Mata Norte? Ao chegar, em contato com Bruna e Ricardo, percebeu que ali havia espaço para se investir no processo de mudança social através da arte. “Temos aqui a opulência e a decadência, num
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Santa Terezinha foi desativada há A mais de 15 anos
Nestas páginas 2 JOSÉ RUFINO
artista tornou-se um conselheiro O do Usina de Arte
ANTIGO DEPÓSITO 3 Local agora abriga obras de Carlos Mélo, incluindo o registro da performance Berlinda
4 ESTAÇÃO DE RÁDIO Proposta idealizada por Paulo Meira vai ficar à disposição da população local, com o nome Catimbó
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ambiente rico, com possibilidade de transformação”, pontua Rufino. O que se ventilava nas conversas não era uma simples encomenda de obras para fins particulares. O contato com o entorno passou a ser visto como mais importante que a obra física. Surgiu a ideia das residências, foi criada a escola de música – que hoje atende a 53 crianças –, deu-se início ao cultivo de um jardim botânico e foram pensadas ações para fomentar a economia alternativa. O projeto tem sido transformador também para o artista. “Foi a primeira vez que vi o meu trabalho em teste. Você vai para uma bienal e está protegido, a cada ano você fica mais protegido, porque vai se mitificando. Aqui não, estou acompanhando direto o trabalho e
sua relação com as pessoas, vendo se ele serve, se funciona. Ainda que o prazer do ateliê seja algo incrível, estou tendo dificuldade de me imaginar de novo nessa produção silenciosa”. O artista recebeu convite para participar de uma exposição em São Paulo e o curador pediu que a obra viesse justamente dessa sua experiência na Usina Santa Terezinha. O pedido causou certa confusão para Rufino, para quem a ideia de tirar a obra do lugar e enviá-la para São Paulo, colocar a roupa de “arte”, integrar um grande evento, sair em um catálogo, vir acompanhada de um texto crítico, não fazia mais tanto sentido. “A gente está vivendo uma era pós-contemporânea do ponto de vista da arte. Não interessam apenas
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as galerias, os museus, o mercado da arte. As ocupações, os trânsitos, os compartilhamentos passam a ser relevantes”, diz. O projeto, segundo Bruna Pessoa de Queiroz, foi nascendo de modo intuitivo, ganhando vulto e crescendo. A Associação Jacuípe foi criada para dar conta das propostas que surgiram. Rufino chegou lá como artista, mas, com o avançar das ideias, terminou fazendo o papel de curadoria. Ele se apresenta, na verdade, como uma espécie de conselheiro da associação. “É como se fosse uma curadoria porosa, cada colega sugere alguma coisa e vai virando algo coletivo. Ainda não temos uma estrutura institucional de logística grande, então, cada um faz um pouco”, conta. Dentro dessa proposta de ação ampliada, o grupo viu também suas responsabilidades serem alargadas. Passou a ser necessário responder a demandas históricas, ter a preocupação de buscar artistas que nunca se destacaram em Pernambuco, outros de estados vizinhos, ou que se relacionam de algum modo com a cultura da cana; enfim, buscar uma diversidade que atenda ao ideal do projeto, apresentando o que é a arte na região, no país. Um artista que está na mira de Rufino é Macaparana, pernambucano radicado em São Paulo desde a década de 1970, pouco conhecido em seu estado.
RESIDÊNCIAS
As residências artísticas começaram no final de 2015, com o artista pernambucano Carlos Mélo. Depois de explorar o lugar durante duas imersões de 15 dias, ele propôs a realização de Freedom, um trabalho que engloba uma fotografia e uma performance. “Foi uma iniciativa muito desafiadora para mim. Fui sem noção do que faria e encontrei
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um livro sobre o açúcar, com muitas receitas de doces, no quarto em que fiquei na casa-grande. Nele, havia um trecho de Gilberto Freyre que se referia à escravidão como o momento mais amargo do açúcar, acompanhado pela imagem de um negro sendo torturado na berlinda. Aquilo me chamou a atenção, vi que tinha que trazer essa discussão para a obra”, conta Mélo. Com esse mote, ele criou a performance Berlinda, na qual ficou preso pelos pés no instrumento de tortura homônimo durante algumas horas no meio da vila, repetindo o ato, por mais algumas horas, numa das instalações da usina, que hoje guarda suas obras. Mélo escolheu uma das colinas que cercam o local para criar o cenário da sua fotografia. Ele instalou um varal em que foram estendidos os lençóis brancos da casa-grande, simbolizando um tratado de paz. “Eu queria trabalhar essa ferida trazendo a perspectiva da liberdade, dando um viva à liberdade. Curiosamente, depois que já estava com a obra em curso, Ricardo me trouxe um recorte de um jornal português
Apesar das semelhanças, o Usina de Arte se diferencia de Inhotim por ter como elemento central as residências que destacava famílias que haviam dado alforria a seus escravos antes da abolição. Entre eles, estava um tio dele. O documento está lá, hoje, junto com as obras, cujos direitos de exibição foram adquiridos pela Associação Jacuípe”, detalha Mélo. Segundo Rufino, há a ênfase em chamar para as residências artistas que sejam capazes de imergir naquele ambiente. “Não queremos alguém que chegue aqui e diga a lista de coisas que temos que comprar para produzir seu trabalho. Desejamos que as ideias e as obras surjam a partir do nosso espaço, com os materiais e também com as histórias, lendas, tradições da região.” Esse modus operandi do projeto é o que vai diferenciá-lo daquele realizado em
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Inhotim. As semelhanças chamam a atenção, quando se observa que ambos têm muito marcada essa relação da arte com a botânica. Entretanto, Rufino vê no espaço mineiro uma constituição mais formal, com o perfil do dono, enquanto, na usina, é algo mais endógeno, orgânico, com essa ideia de residência artística e troca com a população, sem a criação de pavilhões. Ele acredita que o Usina de Arte vai se aproximar mais de outros parques no mundo, que trazem esse formato de residência como algo fundamental e específico. Iniciativas que levam artistas a ocupar uma fábrica inoperante e, a partir dessa vivência, produzir obras e atuar diretamente no lugar, impactando na vida das pessoas. Agora, estão em residência os artistas Lais Myrrha e Daniel Acosta. A mineira visitou a usina pela primeira vez em 2016 e retornou este ano para mais algumas temporadas. Seu trabalho já está em curso e deve resgatar a tradição das olarias da região, do uso do barro, a ideia da passagem de uma coisa a outra – tal como a passagem imposta a essa população habituada a uma cultura
5 RICARDO PESSOA DE QUEIROZ Foi o convite do empresário ao artista Hugo França para produzir uma das suas esculturas mobiliárias que deu origem ao projeto 6 JARDIM BOTÂNICO A primeira etapa terá 29 hectares e vai receber cerca de 35 mil mudas
da cana-de-açúcar na busca por novas formas de ganhar a vida. Já Daniel Acosta, cuja trajetória perpassa a questão da arquitetura, da criação de espaços, foi convidado para pensar uma obra aplicada, a criação de um epifitário de 1.500 m2 dentro do jardim botânico, o qual vai abrigar as espécies epífitas (orquídeas, bromélias e afins). Em vez de chamar um arquiteto para projetar as estruturas do jardim, o grupo propõe convidar artistas que possam pensar esses ambientes. Um desafio, segundo Acosta, que já está estudando as características técnicas que um epifitário necessita, para criá-lo com base nessas orientações. O artista também saiu em busca dos materiais pelas redondezas e encontrou estruturas de metal leve em outra propriedade de Ricardo Pessoa de Queiroz. Possivelmente, esses serão os elementos-chave de sua obra.
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Além dos artistas convidados, a Associação Jacuípe estabeleceu um acordo com a Sociedade dos Amigos do Mamam, que possibilitou a vinda
“Temos a opulência e a decadência, num ambiente rico, com possibilidade de transformação”
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José Rufino de alguns artistas ligados ao museu, convidados pela diretora da instituição, Beth da Matta. Márcio Almeida, Marcelo Silveira, Paulo Meira, Paulo Bruscky e Daniel Santiago abraçaram o projeto e se comprometeram em repassar ao museu parte dos valores que recebessem pela execução das obras. Cada um deles está desenvolvendo um trabalho de grande dimensão, a ser incorporado ao jardim botânico. O artista Marcelo Silveira propôs a reprodução do pátio interno da casagrande – projetada pelo arquiteto italiano Giácomo Palumbo, responsável também pelo projeto do Palácio da Justiça e pelo prédio do Memorial de Medicina de Pernambuco – dentro do jardim botânico, possibilitando que a população
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local, para quem a casa dos proprietários gera muita curiosidade, pudesse entrar e conhecer um pouco desse elemento central na construção. Paulo Meira planejou a criação de uma rádio, a Rádio Catimbó, que ficará à disposição dos artistas residentes e também da população. O artista ministrou a primeira oficina com os moradores para ensinar-lhes como manusear o equipamento. Paulo Bruscky começou a recolher materiais diversos durante suas três visitas à Usina. Ferros, parafusos, restos de espelhos e afins irão compor Arquitetura de imaginário, uma série de muros que vão sofrer o impacto do ambiente, sendo modificados com a chuva, com a ferrugem. Márcio Almeida percorreu o lugar e criou lendas inspiradas naquilo que viu, tais como as quatro ninfas do Rio Jacuípe, para o seu Eremitério tropical, situado na entrada do jardim botânico. A proposta de Daniel Santiago ainda está em fase de consolidação e deve ser definida até o fim do ano. Segundo Bárbara Maranhão, presidente da Sociedade dos Amigos do Mamam, existe a possibilidade de a parceria ser estendida e passar a incluir outros artistas em 2018.
O HANGAR E O JARDIM
José Rufino também produziu uma série de obras na usina. Logo que chegou, vislumbrou no espaço do antigo hangar o seu ateliê. Dentro dele, encontrou muita matériaprima, peças em metal, tratores e maquinário sem uso. Na parte externa, ele compôs a instalação Tempus fluvium com a antiga cadeira de José Pessoa de Queiroz, bisavô do atual proprietário, Ricardo Pessoa de Queiroz, que comandou a propriedade nos anos áureos da cultura do açúcar em Pernambuco, sendo seguida por um rastro que imita o trajeto do Rio Jacuípe, feito com restos de peças metálicas encontradas na usina, até os limites com o Rio Una.
Visuais No espaço interno, em uma das paredes, está disposta parte da obra Ligas. Rufino reuniu velhos facões de corte de cana – instrumentos que têm um tempo de vida determinado e precisam ser trocados regularmente – e começou a fazer composições, em diálogo com a população local, fazendo referências ao maculelê, manifestação popular tradicional que utiliza bastões de madeira numa espécie de luta. Foram feitos 900 conjuntos, mas só parte deles está em exibição no hangar. O artista considera a obra Opera hominum, na qual utilizou as fichas coletivas de recibos de pagamento dos antigos funcionários, como uma das mais importantes produzidas por ele no local. Nelas, os funcionários tinham que assinar ou imprimir sua digital (aqueles que não eram alfabetizados), quando recebiam seus pagamentos. Rufino propôs que os antigos funcionários marcassem as fichas com suas mãos. A ideia é de que a obra seja reunida numa pequena publicação. O artista também se apropriou das fichas de controle de entrada e saída dos materiais do almoxarifado da usina e adicionou a elas monotipias. Enquadradas, as fichas trazem agora elementos botânicos, numa referência à diversidade de vegetação que começa a surgir no entorno do hangar, com a criação do jardim botânico, cuja primeira etapa tem 29 hectares e deverá receber mais de 30 mil plantas de médio e grande porte, num espaço onde antes só se via cana-de-açúcar. A criação do jardim botânico está provocando a população local, acostumada à monocultura da cana, na medida em que a leva a pensar em outras formas de trato com a terra. Além das iniciativas do projeto cultural, Ricardo Pessoa de Queiroz tem investido na mudança de alguns dos seus negócios, instalando a pecuária em suas terras e levando antigos canavieiros a terem contato com o gado – algo não muito comum na região. O grupo sente que ainda existe uma resistência em “abandonar” o sonho da usina e parte dos moradores não entende o porquê
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de tirar as pessoas da cana para plantar palmeiras ou cuidar do gado. Entretanto, enquanto alguns resistem, ou julgam que se trata de algo passageiro, outros se engajam no projeto como parceiros dos artistas. Há ainda a movimentação gerada na vila. Os moradores passaram a ver o projeto como uma oportunidade para empreender em outras áreas. Um pensa em ampliar o salão de beleza, outro idealiza a criação de um restaurante que possa dar conta de uma demanda de visitantes que
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se espera ter no lugar com o avanço das atividades, e com a realização do Festival Arte na Usina, que teve duas edições, em 2015 e 2016.
O FESTIVAL
Os produtores consideram o festival um momento de culminância do Usina de Arte, trazendo para o lugar artistas das mais diversas áreas para dar oficinas, participar de palestras, shows, performances, exibição de filmes, numa programação gratuita e aberta ao público. Ricardo conta que,
MARIA CHAVES
7-8 INSTALAÇÃO
Marcelo Silveira recriou o pátio da casa-grande, que será aberto à visitação quando concluído
9 BENJAMIM TAUBKIN Músico se apresentou na primeira edição do festival, em 2015
na primeira edição, eles tiverem que fazer um trabalho de captação para que a população da região soubesse das oficinas e se inscrevesse. Em 2016, o processo fluiu de forma mais natural, com a comunicação via redes sociais. Os produtores, além de oferecer um camping para quem vinha de fora, criaram mecanismos para viabilizar o aluguel de casas na vila. Para 2017, a aposta é que a população tenha autonomia e disponibilize a hospedagem diretamente. A segunda edição, em novembro do ano passado, teve 10 dias e trouxe 15 artistas para dar oficinas, participar de palestras, shows, performances, exibição de filmes. O curador e pesquisador cearense Bitu Cassundé foi um dos convidados e participou da mesa Arte como transformação, com José Rufino e José Luiz Passos. Ele trouxe suas experiências nesse processo de formação desenvolvida no Porto Iracema e também mostrou de que forma a artista Virgínia de Medeiros, cujo trabalho ele vem acompanhado há algum tempo, trabalha a questão da transformação.
O festival é visto como um momento de culminância do Usina de Arte, que realiza suas ações durante todo o ano “Estou muito feliz por estar nesse festival. A ideia me soa muita simpática, quando eu penso na formação de repertório aqui do entorno. Eles têm uma potência que pode ser desdobrada. Acredito muito no poder transformador da arte vindo, muitas vezes, pelo exercício do ver, do construir repertório e do exercício do fazer. É interessante observar essa possibilidade num espaço cheio de camadas históricas como esse”, destaca Cassundé. Leda Catunda foi outra convidada para o festival, no qual ministrou uma oficina de pintura. Ela se instalou com o seu grupo num dos prédios da usina, que carrega toda a mitologia do lugar, ainda viva no dia a dia da população do entorno. “Essas pessoas vêm ao
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prédio abandonado e encontram os artistas e aquilo mexe com o imaginário delas. Está sendo muito importante para mim passar por esse processo com essas pessoas. A gente não fica imune, sentimos o que os outros estão sentindo”, refletiu, à época, a artista. Os produtores, além da planejar a realização de mais uma edição do festival, vislumbram a possibilidade de uma visitação externa mais perene, com pessoas vindo durante o ano conhecer o projeto, visitar o jardim e visitar as obras desenvolvidas por lá. É por isso que incentivam ações de negócios na vila que possam ajudar nesse processo. Uma das colinas que se avista desde a casa-grande já não foi utilizada para plantação de cana na última safra. Nela surge, espontaneamente, uma nova vegetação, que parecia estar latente, esperando o momento de emergir. Em alguns anos, quando o projeto tiver avançado e o jardim botânico, consolidado, a paisagem será outra. E será possível também conhecer a força da arte nesse processo de transformação.
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
O DIÁRIO DE FRANCISCO BRENNAND É muito difícil um livro resistir a tanta expectativa. Me lembro de um de Aníbal Machado, autor que tinha feito grande sucesso com o conto A morte da porta-estandarte e, mesmo este, naquela época em que as coisas aconteciam no sul e depois de um ano ou mais é que se sabia aqui, quando fui ler, não sei se porque já tinham me contado tantas vezes, achei totalmente previsível, correndo o boato de que o verdadeiro motivo de tanta receptividade teria sido a candidatura de seu irmão Cristiano Machado à presidência da república, vejam só. Tanto que esse livro que ia sair nem sei se chegou a ser escrito ou publicado apesar de já ter virado um grande acontecimento. O Diário de Francisco Brennand, pelo menos pela parte que me toca, era torturantemente esperado, situação que se agravava quando saía no jornal algum trecho, comprovando a sua existência, embora me lembrasse sempre da afirmação do artista de somente acreditar no que resistisse a um longo período de ostracismo. Será que chegarei, será
que chegaremos, ao fim desse “longo período”? Até que o dia chegou. Não podendo comparecer ao lançamento, procurei saber e deixei na galeria Espaço Brennand, com Andréia, o valor do livro, cem reais, pensando que era só um. Qual não foi a minha surpresa quando ela, dias depois, me devolveu o dinheiro e entregou uma caixa muito bem bolada, com o retrato do Brennand moço de um lado e o Brennand velho do outro, um com a barba menor preta e outro com a barba maior branca, como se dissesse que era o mesmo Brennand, e quatro primorosos volumes de capa dura como eu nunca vi igual. Desses presentes que quando você recebe diz de si para si “eu agora estou feliz”. Já o nome da editora, que parece ter sido criada ad hoc, antecipa o conteúdo do Diário: “Inquietude”. Preciso dizer que, apesar da imensa expectativa, o que Brennand escreveu ao longo da vida supera tudo o que poderíamos esperar ou imaginar, como se do princípio até o fim nos quisesse surpreender de várias formas, não somente por escapar do
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relato convencional, se bem que essa primeira parte, viagem à Europa, me interessou de maneira especial, algo que eu sempre quis saber melhor, mas daí envereda por livros e filmes e nem mesmo o nascimento da primeira filha ocupa maiores espaços, como se a vida material fosse ficando longe. A certa altura ele diz, como se lembrando que o mundo existe, “hoje fiz uma coisa útil: dei um pulo, bati palmas com as mãos acima da cabeça e matei uma muriçoca”, não me lembro exatamente da redação nem em qual dos volumes, ou “eu estava escrevendo, ela chegou, tirou a roupa e ficou nua em cima da mesa: penetrei-a ali mesmo”. Dá impressão de que fala mais de filmes e livros do que de arte, embora se sinta o tempo todo que pintura e cerâmica são o lastro em que assenta a sua vida e justifica e faz suportar todos os “horrores”. “O horror! O horror!” é expressão que surge durante todo o Diário, como outras tiradas, colhidas nos seus autores prediletos. O seu nome de origem inglesa, Brennand, é glosado de várias
REPRODUÇÃO
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maneiras, às vezes num só lugar, como na longa carta de uma de suas encarnações, “Prezado Senhor Brenan” (sic), Viriata, de raça negra, nascida num subúrbio do Recife, que se despede em alemão: “Danke Schön”. Eu sempre pensei nesses estrangeiros e seus descendentes nascidos no Brasil, se não teriam feito melhor negócio ficando lá na sua terra, não por algum tipo de chauvinismo e sim pelo contrário, se não deveríamos tratá-los melhor, para compensá-los das perdas e sacrifícios causados pela mudança de pátria. Este sentimento possivelmente me tenha sido incutido muito cedo, quando menino de Ipojuca, onde não havia estrangeiros, senão os frades alemães,
É desses presentes que quando você recebe diz de si para si “eu agora estou feliz”. O nome da editora antecipa o conteúdo: “Inquietude”
a quem devíamos oferecer sempre o melhor para correspondermos à generosidade de habitarem entre nós. Agora imagine-se essas duas entidades constituindo a mesma pessoa que conflitos de identidades não poderiam causar ao longo da vida, da formação, ora sentindo-se europeu vivendo entre os bárbaros, ora sendo
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1 INQUISIDOR rancisco Brennand, F
Autorretrato como Cardeal Inquisidor, 1948. Incansável inquisidor de si próprio
tido, por equívoco, como bárbaro, e isso sem falar de raça, e falando, porque o que vale é a criação. Eu acho que pesa nisso essa busca que chega à insanidade de tantos indivíduos a se digladiarem dentro de um mesmo Brennand, um dos quais falecido, Mestre Brennand. Outro contraste é a sua adoração por Gauguin por ter se desvencilhado da cultura ocidental, isto é, renascentista, greco-romana, “Grécia, nunca mais”, e ao mesmo tempo a importância da mitologia e do teatro gregos na temática de sua cerâmica. Em quase duas mil páginas, e isso porque tocou fogo nas que tratavam de uma época, o assunto Francisco Brennand continua em aberto, tanto quanto sua arte originalíssima e inesgotável. Depois de ter ido tantas vezes à Oficina na Várzea vejo que precisava desse guia para poder saber o que estarei vendo, que não vi nada, que não sei nada, que não conheço nada. A primeira coisa que tenho a fazer é pegar de novo esse Diário, de lápis na mão, e ir observando cada pergunta que suscita, assinalando cada livro, filme, autor que preciso conhecer, olhar para cada quadro seu e procurar vê-lo. Como um ontem na exposição de Ranulpho. Como anteontem o ovo magnífico na frente do shopping Rio Mar, de que tirei uma foto para mandar para o filósofo Carlos Cirne Lima que no seu livro Dialética para principiantes tem um capítulo sobre o ovo como origem de tudo, assim como num dos volumes do Diário. Não disse isso por falta de cultura, logo falta de autoridade, mas que tive vontade de dizer, tive, como faz no prefácio Alexei Bueno: “Não temos a menor dúvida ao afirmar que O nome do livro [isto é, o Diário de Francisco Brennand] é a obra maior no gênero do diário já aparecida na literatura brasileira”.
CON TI NEN TE
Criaturas
Edward Hopper por Alex Dantas
O artista que retratou tão soberbamente a América moderna, Edward Hopper, morto há 50 anos, não chega ele mesmo a ser um “retrato” conhecido. Poucos reconheceriam sua figura numa fotografia como são capazes de fazer com a de Picasso. Entretanto, sua obra tornou-se icônica, até para os que desconhecem sua autoria. A mais popular delas é certamente a pintura Nighthawks (1942), uma obra-prima sobre a solidão instrínseca à humanidade.
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Quanto mais alternativas, mais mobilidade urbana.
Um corredor de ciclovias que vai do Marco Zero do Recife até o Sítio Histórico de Igarassu, passando por Olinda,
Igarassu Etapa 5 | BR-101
Etapa 4 | PE-15
BR-101 > Igarassu
10,5km
Ciclovia da PE-15 > BR-101 10,3km
Paulista e Abreu e Lima. O Eixo Cicloviário Camilo Simões é uma obra do Programa Pedala PE que abre novos caminhos para a mobilidade urbana. A primeira das cinco etapas do projeto já foi inaugurada. Quando todo o Eixo estiver concluído, serão mais de 30km de ciclovias,
Etapa 3 | Conexão PE-15 Varadouro > Ciclovia da PE-15 Etapa 2 | Olinda
Centro de Convenções > Varadouro
5km 2,9km
facilitando a vida de quem usa bicicleta para estudar, trabalhar, praticar esporte ou para o lazer. É mais uma
Etapa 1 | Recife
Marco Zero > Fábrica Tacaruna
5,1km
alternativa de transporte para os ciclistas de Pernambuco.
Recife
MOTORISTA, REDUZA A VELOCIDADE AO PASSAR PELO CICLISTA.
www.revistacontinente.com.br
# 197
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100 ANOS
CONTINENTE
REVOLUÇÃO
RUSSA
COM A DERRUBADA DOS CZARES, PROLETARIADO LIDERA O PAÍS E MUDA O CENÁRIO DAS ARTES
PARTEIRAS
AS MULHERES QUE MANTÊM, NO INTERIOR DO ESTADO, A TRADIÇÃO DO PARTO DOMICILIAR
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MAI 17
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E MAIS: MENOTE CORDEIRO | TEUDA BARA | FESTIVAL TREMA! | USINA DE ARTE