"A Invenção da Palavra", por Cláudio Ferrario

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Cláudio Ferrário

C láud io Ferrario

No começo era o teatro de rua, quando idealizou e atuou no Bumba Meu Boi da Boa Hora (1975-1980) e no Pastoril Balança Coreto (1981). Depois encenou inúmeras peças dirigidas por João Falcão. Em 1984, na TV Viva, criou um personagem entrevistador, o Brivaldo, que não tinha papas na língua, era engraçado, sagaz e tinha um grande carisma. Era uma espécie de Mateus do Bumba Meu Boi, de microfone em punho, ingressando e vivendo esta nova linguagem que surgia: o vídeo. Na TV, participou de inúmeros projetos, entre eles: Armação Ilimitada, Lisbela e o Prisioneiro, e O Coronel e o Lobisomem, com direção de Guel Arraes. No cinema, fez Kuarup, Árido Movie e Deserto Feliz. Desde 2004, apresenta o Projeto Sesi Bonecos do Brasil e do Mundo. Em 2014, recebeu o Prêmio Funarte de Dramaturgia, com o texto teatral As Sete Chaves da Sobrevivência.

Caros e caras, a ideia de publicar o texto da peça A Invenção da Palavra ocorreu após a pré-estreia, uma sessão especial para a imprensa, que foi seguida de vários comentários sobre o prazer de ouvir aquela prosa rimada, com um ritmo que guarda algo das origens cordelísticas, mas vai além e se proseia. Falada, mais que recitada, é a história de um embate atemporal e sem norte entre duas personagens que só existem porque seus contrários existem. Uma representa a luz e a certeza e a outra a dúvida e uma outra luz, diferente. A leitura, após assistir ao espetáculo, acreditamos, fará com que a mágica se prolongue e a imaginação construa novos e outros cenários.

Boa leitura.


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DEUS - Já houve um tempo que de tão inusitado, tão pleno em sua essência, confrontou-se com toda e qualquer ciência e exigiu ser escutado. CAPETA - No auge da sua demência esse tempo desconheceu mentira e verdade, amoleceu ira e maldade, desprezou vida e vivência. DEUS - Não pensou na validade vencida pela carência CAPETA - Nem na solenidade da luta pela subsistência. DEUS - Perdeu a sua referência na síntese da dualidade: aceitar a fatalidade como parte da existência, CAPETA - Ou com muita persistência esgarçar a realidade.

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DEUS - Largou-se por toda e qualquer cidade e atravessou as suas pontes, CAPETA - Alargou seus horizontes, seus graus, suas latitudes. DEUS - Ora oxigenando as suas fontes CAPETA - Ora asfixiando as virtudes. DEUS - Foram tantas as atitudes desse tempo desgarrado CAPETA - Que presente, futuro e passado misturaram-se com teus truques. DEUS - Que passado, futuro e presente mudaram os destinos de toda gente. CAPETA - Que presente, passado e futuro arquitetaram este muro. DEUS - Observem senhoras e senhores: são dois mundos. Aqui se ouve o borbulhar infinito das águas de um rio. Por lá o cantar da poeira e a aridez do calor e do frio estremecem o universo a cada segundo. CAPETA - São dois mundos bem diferentes. Aqui se sente um lamento profundo, tão apertado e tão quente, por lá, como em estado latente, sem gente, sem poço e sem fundo, só há aquele demente que quer porque quer patentear todas as palavras do mundo. São dois mundos bem diferentes.

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DEUS - Um estridente, mas do outro oriundo. Aqui se vê a amplidão dos seus vales a perderemse de vista, lá a solidão dos olhares não espanta os seus males, nem inspira as conquistas. CAPETA - Lá a morte não tem chegada e partida. Aqui agarrada com a vida estão num único plano. DEUS - A luz e a fertilidade imperam. Denunciam o estado de graça. CAPETA - Mas como estão frente a frente e respiram do mesmo ar, até era pra se pensar que como estão frente a frente poderiam até se tocar. DEUS - Até era pra se pensar que como estão frente a frente por lá não mais haveria indigente, nem gente sem comida e lar. Era mesmo pra se pensar que todo o teu contingente de uma forma mais frequente pudesse até se alegrar. CAPETA - Só que estão só frente a frente e só um o outro pode enxergar. Só ele pode contar uma história tão atraente de que aqui não há indigente e que todo e qualquer meu parente tem saúde, comida e lar. DEUS - Trocando em palavras certas escritas por linhas tortas, só eu tenho as chaves das portas, como também as das cancelas e pra mim o que mais importa é por lá espalhar algumas mazelas. CAPETA - Trocando em palavras tortas, escritas por linhas retas, pode ser que as bisnetas das netas de todas as gentes, comecem a ficar

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eretas e, portanto, inteligentes, formando um só conjunto, de seres mais atraentes. E nesse quebrar das arestas comecem a entrar umas frestas que façam com que os dois mundos deixem de ser diferentes.

Espero que não faças mais alarde, pois sabes que sou onipotente, onisciente e onipresente.

DEUS - É nesse mundo que se enfurna o Capeta, sonhando com as lindas palavras, que pavimentam becos, vielas e estradas. CAPETA - É nesse mundo que o Deus trabalha, aprisionando as doces palavras, transformando-as em suas escravas. DEUS - Palavras que quando fecham uma porta logo abrem uma janela. CAPETA - Com tramela? Torta? Por que janela? E não porta? Quando ela entorta? Quando ela quebra? Pra que serve ela? Ou já não importa? DEUS - Um pouco de luz. Tenho pena de ti, pobre coitado. Porque enquanto ladras, eu domino a luz e as palavras que fazem o universo caminhar. CAPETA - Só queria te perguntar... DEUS - Se nos meus leitos dá pra sonhar? CAPETA - Não. Se nos teus peitos dá pra mamar. DEUS - Saibas tu que à clareza do olhar sem vendas é o amor que decifra o que já se sabe. Se espalhá-lo nunca será tarde, trancafiá-lo nem sequer aprendas.

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CAPETA - Que silêncio dessa gente. O que estão a pensar? Será que ainda pensa essa gente? Ou todos esqueceram completamente? DEUS - Não tenho tempo, tenho pressa, para te ver ferida aberta a sangrar. Pra mim pouco importa se o sol vai ou volta a raiar uma nova madrugada. Minhas palavras continuarão a correr soltas no ar. CAPETA - Tudo isso mil anos pode durar, pois pra ti o tempo não tem a menor importância, pra ti o que vale é a ganância, a ânsia do ter que ganhar. Mas na verdade o que se ganha além de uma dor tamanha não dá nem pra mensurar. E o que mais há? DEUS - Nada. Além das palavras que por nós serão ditas e por eles tragadas. Seja noite, seja dia, partidas, chegadas. Lá estarão as tais palavras rindo com a sua ironia. CAPETA - Como mostrar minhas proezas? Por que minhas certezas vivem na contramão? Acaso não possuem grandezas? Ficam como sobremesa que nunca será refeição? DEUS - Porque pra mim foram reservadas as riquezas, porque pra ti só a desilusão, porque sou o dono das historias, dos sangues, dos sonhos e das memórias, de todos os mares, do tempo e dos ventos.

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CAPETA - Dos lugares onde brotam os alentos, proporcionando só a ti as vitórias?

guardadas e escondidas, como dar-lhes as vidas? Como deixá-las mais duras?

DEUS - Isso. Porque de todos os mundos eu já fui parceiro, ajustei-os no meu estaleiro, matei pau e mostrei cobra.

DEUS - Todas elas estão aqui, contidas nas linhas das minhas mãos. Às vezes, quando olho com alguma atenção, nelas só vejo teias de aranhas rainhas, vejo as sobras das plantas daninhas das formigas operárias, vejo as entranhas dos párias, antigas veias secas de qualquer ilusão. E é nesta grande rinha que eu teço novos bordados, quando olho pras gentes e de longe, lá do outro lado, o que vejo são insetos apavorados, esmagados pela solidão. Às vezes me detenho um pouco mais e tudo vira um poço sem fundo. E são nas linhas destas mãos bordadas que surgem gentes quais cobras criadas, sem suas espinhas dorsais. Espragatadas no chão fecundo, pendidas ao junco, esticadas, curtidas em varais.

CAPETA - A obra está terminada? Pronta e bem acabada? DEUS - Toda encaixada e sem sobra. CAPETA - Deus é muito esperto nas coisas que apronta, às vezes até ri, às vezes com seu riso aberto perde a conta das suas criações. Vi a aspereza nas suas canções, as correntezas nas tantas moções, as suas ações nas tantas represas. Às vezes de forma bem consciente fecha as imaginações de todas as gentes. DEUS - Deus que é Deus fecha a boca e abre o coração. Deus que é Deus não está para brincadeiras. Deus que é Deus não perde tempo com asneiras. Deus que é Deus divide o seu pão. Deus que é Deus não se mete em confusão. Deus que é Deus quer os homens puros. Deus que é Deus cria os frutos já maduros. Deus que é Deus só pensa em bondade. Deus que é Deus é só fidelidade. Deus que é Deus faz tijolos de oito furos. CAPETA - Esperto Deus, criador dos tijolos de oito furos. Correto Deus criador dos homens puros. Mas o que me dizes da maldade e das tuas atitudes futuras e sobre tuas raivas escuras

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CAPETA - Tuas linhas das mãos são como escopetas. Na verdade, jamais me deram os merecidos créditos. Os malditos e céticos imaginam que todas as palavras foram inventadas com a emoção daquele único momento. Disseste três ou quatro abracadabras e elas sopradas por ti perderam-se ao vento. Mas, a partir de agora, eu vou mudar o rumo dessas estradas, pois velejarei mares bravios como os corsários. Inverterei todos os velhos itinerários e serei o senhor real e absoluto de todas as palavras. O senhor real e absoluto de todos os tempos. DEUS - O senhor real e absoluto de todos os tempos? O dos anos com os seus horários? Ou os dos seres com seus lamentos? O dos meses com

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seus movimentos? Ou os dos enganos abrindo armários? As palavras como o tempo vivem soltas, em bandos selvagens, livres e sem dar qualquer satisfação. Se dominá-las soa como voz de prisão, hoje estão aí, cantadas em prosa e em versos. Ignorá-las seria o reverso, seria como abandonar o poder da mão. Se investires, serás sempre uma nau perdida na amplidão, dilacerada e sem qualquer contato, explodirás num momento exato, quando, aí sim, estará concluída a criação.

DEUS - Desprotegidas sem as minhas memórias, haveriam de perder-se.

CAPETA - Minhas partes teriam o gosto e a visão do tato e o meu todo o cheiro da audição. Quando sentirem o sabor do meu palato, todas as palavras estarão aqui na minha mão. DEUS - Não podes tecer, nem comentar o criado. CAPETA - As minhas luas têm formas variadas, minhas cidades são de ruas sem calçadas. O breu e o vácuo dão o tom do ar às minhas praças. DEUS - Com fúria eu arrebento a pedradas as tuas vidraças e com força destruo os vazios das tuas almas danadas, abandonando-as tão bem guardadas, trancafiadas sob as minhas ordens e ameaças. Aprisionadas e tontas, prontas para serem diluídas. CAPETA - É para isso que servem as palavras tuas, pra deixar sempre os seres tão marcados, melhor não seria, então, tê-las deixadas soltas, livres e sem estragos, vagando loucas sem as tuas glórias?

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CAPETA - Porém viajariam em toda e qualquer noite escura. DEUS - Sou eu o criador dos tijolos de oito furos, dos buracos, das mãos e dos escuros, das roscas e dos arcos, dos marcos e das moscas, das toscas e dos bascos, dos barcos e das cores foscas. CAPETA - És também o criador daquele homembomba que agora se estilhaça mundo afora? DEUS - Sou o criador dos anjos e da aurora, do trabalhador e do seu grande fardo. CAPETA - Da fome que perfura feito dardo? E da criança que chora e sofre? DEUS - Decomponho ponto a ponto qualquer bordado e sempre solitário outros bordados vou tecendo. CAPETA - Mesmo quando não sabes o que estás fazendo? DEUS - Faço o que minha mente concretiza. Pois deus que é deus não perde o momento. CAPETA - Quantos somos? Quantos ao Deus pertencemos? Com quantos paus se faz uma jangada? A alma já vem almoçada? Quantos recebem diária? Quantos ao Deus pertencemos?

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Quantos estamos sob os seus sovacos? Quantos repetimos os seus motes? DEUS - Quantos ao Capeta pertencemos? A quantos a amargura descerrou cortinas? A cobrirlhes a íris, inebriar-lhes as retinas? A quantos e quantos mais ele lhes negou a cura? Em quantos abriu ferida? Em quantos viu o que ninguém via? Em muitos deixou sua marca? Em quantos há uma estrada? Pra quantos um orifício que pra muitos abre o olho pro nada? CAPETA - Quantos ao Deus pertencemos? Para um monte de desvalidos ele abre os olhos, fecha os ouvidos, se tranca em sua infinita tristeza? Fica sem sonhos santos sentado com os doze apóstolos inebriados na santa ceia do senhor? DEUS - A quantos o capeta chamou? A quantos deixou de fora? CAPETA - Quantos comeram o pão que ele mesmo amassou? DEUS - Deus que é Deus fecha a boca e abre o coração. CAPETA - O silêncio envolve o universo e deixa as vidas suspensas no ar. Com suas respirações prestes a parar DEUS - Como se cada rima houvesse perdido o seu verso. No meio do nada tudo fica imerso, sem cores, sem cotornos definidos. As palavras perdem todos os sentidos

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CAPETA - Como se cada rima houvesse perdido o seu verso. Os desejos viram seres complexos, emaranhados, sem alquimia. Os olhos perdem a magia

DEUS - Melhor, pois viramos as mesmas vertentes que só se encontram no infinito e o tempo com seu andar intermitente arrastará tudo para os tais poços sem fundos.

DEUS - Como se cada rima houvesse perdido o seu verso.

CAPETA - Ao menos deixarão de ser diferentes.

CAPETA - As palavras perdem todos os sentidos.

DEUS - Que importa? Este tempo nunca será pensado, pesado, ou medido, pois ninguém, nunca, terá este intento. Nem tu sempre tão atrevido.

DEUS - O silêncio envolve o universo. CAPETA - Nem tu sempre tão capacitado. CAPETA - Como se o fim eu já conhecesse. Como se amanhecesse o dia fora de hora, ou se chegasse a aurora e eu não a merecesse. E se acaso adoecesse? Melhor seria ir embora? Correndo e sem demora? Se o inferno escurecesse e antes do fim eu morresse? DEUS - Como se o fim eu já conhecesse. Como se fosse logo agora que o dia amanhecesse? Ou como o desconhecer da aurora só a mim padecesse? Melhor seria ir embora se acaso adoecesse? E se eu também morresse, assim tão sem demora, como todos que têm a sua hora? E se o céu escurecesse? CAPETA - E agora? DEUS - Agora? Chegamos a um tempo ausente, que transformará todo dito em não dito. CAPETA - Guardamos as nossas serpentes e desprezamos qualquer veredito que nos cheguem das bocas das gentes?

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DEUS - Melhor que saias por aí afora, arrastando o teu tridente. CAPETA - Com passos pesados? Fora de hora? Contente? Ressabiado? DEUS - Construas na areia três linhas paralelíssimas donde brotarão palavras tortas, que, talvez, intuam as linhas retíssimas. CAPETA - Qual vida se pede à vida? A da noite anterior ou a que estar por vir? A que geme e escorrega de suor molhando olhos e ventres? Ou esta mesma pelo resto do seguir? Qual vida se pede à vida? Depende do seu humor em relação aos pecados? Depende dos seus recados em relação ao amor? Depende de um nada consta, cartório e papel timbrado? Ou o timbre quando é dado dispensa papel passado, despesas com escritório, anúncio em noticiário, moedas perdem o valor? Melhor que tu também saias por aí afora arrastando o teu cajado.

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DEUS - A passos contados? Em boa hora? Descendo batente? Escalando telhados? CAPETA - Construas na areia uma linha torta, porém esperta e quente, donde, talvez, brotem palavras certas, mas de um jeito diferente. DEUS - Qual vida se pede à vida? A de um poeta ainda rapaz ensaiando um novo soneto? Ou a que é cria do gueto das sombras dos ancestrais? A que acha que pedir nunca é demais? A que pensa que doar é sempre um passo atrás? Ou com outro corpo num leito, com paixão e bom proveito, mudam-se os mundos e muito mais? Qual vida se pede à vida? A vida que cada qual cria em todos os seus momentos? Alguns em meio a tormentos? Outros de pura energia? Uns nas noites de ventos, quando escorregam desatentos e esbarram na luz do dia? CAPETA - Qual vida se pede à vida? DEUS - A que tem cheiro de mar? CAPETA - A com apneia de ar? CAPETA e DEUS - Ou a com gosto de amor?

F I M

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DIDA MAIA


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