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Antonio Candido, o primado da elegância São conhecidas as contribuições do intelectual nas áreas da Sociologia, História e Crítica Literária Daniel Piza
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ntonio Candido, que neste mês comemora 85 anos, andou sempre equilibrado sobre um tripé que, antes e depois dele, fez balançarem e caírem muitos outros intelectuais: a sociologia, a história e a crítica literária. Essa sensação de equilíbrio, que já poderia começar por sua figura de cavalheiro, é dada em primeiro plano por seu texto, cuja qualidade central se resume no adjetivo “elegante”: uma combinação de fluência e precisão, uma exposição prudente e cristalina dos argumentos, uma habilidade de abordagem que jamais abandona o objeto à frente. Mas é, principalmente, resultante de sua tentativa – nem sempre bem-sucedida – de unir as virtudes das três disciplinas, colocando-as em diálogo, porém mantendo-as em zonas sutilmente delimitadas. O historiador não quer se deixar prenContinente julho 2003
der pelos esquemas do sociólogo e tampouco ditar as regras para o crítico literário, que por sua vez olha constantemente para o contexto social e a perspectiva histórica. As contribuições de Candido em cada uma dessas áreas são conhecidas. O historiador deixou o incontornável Formação da Literatura Brasileira, um clássico pelo qual todos os interessados devem passar. O sociólogo fez o inovador Os Parceiros do Rio Bonito, um estudo sobre o interior paulista. O crítico literário deixou avaliações consistentes sobre as letras nacionais e mundiais em coletâneas como Brigada Ligeira, O Observador Literário e Vários Escritos. Os três aspectos, ainda, estão unidos em ensaios como os de Tese e Antítese e em Literatura e Sociedade. A coerência de todos vem de um olhar que é franco por natureza, que não tem vergonha inclusive de sugerir ou tatear
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quando não há a sensação de certeza, e que nunca se entrega aos jargões e classificações excessivos da academia, livre tanto do diletantismo quanto do pedantismo. Esta talvez seja, para ter adquirido o caráter modelar que adquiriu, a principal contribuição de seu método crítico. Numa cultura que sempre se cindiu entre os aventureiros, não raro palpiteiros, que lidam com a cultura como se fosse questão de impulso, de reação quase caótica ao fluxo de novidades, e os sistemáticos, não raro escolásticos, que buscam encaixar passado e presente numa série de escaninhos, Candido sempre manteve a saudável fidelidade ao espírito do ensaísmo, da inteligência crítica que escolhe e organiza mas não impõe nem seu ego nem sua doutrina à sua leitura. Em outras palavras, não é nem impressionista nem professoral. O leitor sente como a atividade in-
telectual lhe dá prazer e, ao mesmo tempo, aprende com ela novas hipóteses. A contribuição do historiador é diretamente decorrente dessa mentalidade. Ao olhar a história da literatura brasileira como um processo de formação, iniciado nas primeiras dissociações de tema e estilo praticadas pelo Arcadismo em face da influência estrangeira, Candido rompeu com as classificações estabelecidas de fora para dentro. Por outro lado, também não caiu no nacionalismo exacerbado, que ignora o legado de assimilações daquelas influências estrangeiras, e escapou do historicismo mais primário, que não vê a dinâmica dessas assimilações em sua relação com cada circunstância social. Seguindo a trilha de Sérgio Buarque de Holanda, Candido entendeu a configuração da literatura brasileira como um Continente julho 2003
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esferas que, na realidade, se inter-relacionam processo análogo ao de sua formação social, de modo muito mais complexo. Também marcada por uma dissonância com o andaexagera ao ler na literatura brasileira o mento da modernidade. Em Sérgio Buarque, as elemento comum da busca do “projeto raízes da sociedade brasileira estão numa colonacional”, obsessão que Machado de Assis já nização que se estabeleceu segundo princípios reprovara em Instinto de Nacionalidade ao dipré-liberais, alheios à separação entre privado e zer que o que confere nacionalidade a uma público, entre religião e Estado, que acompaobra é um “certo sentimento íntimo”que, por nhava a industrialização dos países mais avandefinição, é indefinível. çados. Sua literatura, em conseqüência, refletiu essa marca do atraso, ao mesmo tempo que teve, Essa defesa de Candido de uma espécie de nos melhores casos, o valor de denunciá-lo. “missão social”na arte prejudica inclusive alCom as sucessivas etapas de desligaguns de seus julgamentos estéticos. O A coerência de seus melhores mento em relação à Colônia, na Inexcessivo papel fundador que vê no livros vem de um olhar que é dependência e na República, a liteModernismo de 22, por exemplo, ratura que se esboçava consolidou franco por natureza, que não tem impediu que o crítico enxergasse com mais clareza os defeitos da ficção de uma trajetória de autonomia também, vergonha inclusive de sugerir ou eventualmente estando à frente dos tatear quando não há a sensação Mario e Oswald, até mesmo em Macunaíma e Miramar, em que os valores de seu tempo. de certeza, e que nunca se efeitos de colagem colocam em segunPara Candido e toda uma série de entrega aos jargões e do plano a sutileza psicológica e rendem discípulos seus na historiografia culclassificações excessivos da a narrativa a seus esquemas estéticos. tural, a declaração de emancipação Candido também não viu os problemas plenamente consciente dessa literaacademia, livre tanto do tura teria vindo no período sinteti- diletantismo quanto do pedantismo da prosa simbolista de Clarice Lispector, na qual julgou ver uma densidade zado em 1922, pela Semana de Arte Moderna em São Paulo. Com o modernismo principalmente de pensamento que ampliaria o poder da língua “brasileira”, mas dos dois Andrades, Mario e Oswald, a Literatura Brasileira a qual parte de um limitado conjunto de slogans metafísicos. E não teria achado enfim uma voz, ainda que às vezes rouca ou fraca, é verdade que não se possa encontrar em Machado uma galeria para dar também sua contribuição de dentro para fora. E aqui de personagens memoráveis, mas apenas ‘situações ficcionais”; se entra a habilidade do crítico, capaz de reconhecer e nomear as há algo que distingue Machado de todos os outros romancistas características desses dois símbolos modernistas, aceitando brasileiros, até mesmo Guimarães Rosa, é a coleção de tipos inclusive o valor de suas diferenças; o inventivo e inquieto inconfundivelmente nacionais como Bento, Rubião, Capitu, Oswald e o estudioso e ético Mario, para Candido, Cubas e Aires. enriqueceram o futuro da Literatura Brasileira ao criar esses Isso não significa que Candido faça reduções sociológicas dois pólos internos. em suas análises literárias, porque sabe entrar na estrutura Tal crítico mostrou mais intensamente seu vigor interpre- autoral com refinamento e objetividade. O problema está mais tativo ao saudar, com relativo pioneirismo, uma fase posterior no ponto de partida do que na travessia ensaística – o que talda literatura nacional, que ele tratou logo de identificar em vez seja causado pelo fato de que nunca foi um crítico de jornal Guimarães Rosa e Clarice Lispector, os quais, respectivamen- na linha de combate, como Álvaro Lins, Otto Maria Carte, deram maior elaboração estética às linhagens regional e peaux ou o próprio Sergio Buarque, e portanto nunca se sentiu urbana. Candido também escreveu como poucos sobre a obra obrigado a apontar defeitos que não fossem os decorrentes de de Carlos Drummond de Andrade, linha condutora entre o algum prisma historiográfico. Sua escrita não pega fogo; diModernismo de 22 e a sofisticação dos anos 50, e descreveu ficilmente faz o leitor mudar de idéia sobre algum autor. É no historiador da literatura, portanto, que está o melhor suas fases, as “inquietudes” de sua poesia, oscilante entre a espontaneidade e a construção. E também seus ensaios sobre ponto de equilíbrio de Candido, ao aproximar sociólogo e críautores estrangeiros, como Nietzsche, Ezra Pound e Unga- tico para um objetivo intermediário. Aqui, como quase ninguém mais, criou um padrão de associações entre as obras e os retti, lançam luzes sobre os temas. Já o sociólogo, se fez o “sui generis” Parceiros do Rio Bonito, tempos que ganhou respeito até dos que discordam de suas foi dos três aspectos de sua atividade intelectual o que mais conclusões. É, em pessoa, a melhor definição de elegância incomodou os outros dois. Quando ele escreve, em Literatura intelectual que pode haver. • e Sociedade, que “as manifestações artísticas são co-extensivas à própria vida social”, aposta numa relação linear entre duas Daniel Piza é jornalista Continente julho 2003
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O doce incendiário modernista O pretendente era pouco recomendável: mulherengo (estava no quinto casamento), 30 anos mais velho, comunista e... escritor. Somente depois ela saberia que era também antropófago. Mas a mocinha fincou pé e, apesar da oposição da família, casou com Oswald de Andrade, em 1943. Haviam se conhecido pouco mais de um ano antes, quando Maria Antonieta, ainda estudante, fora contratada por ele para secretária. Apaixonaram-se (num longo poema de amor, ele fizera a invocação: Maria Antonieta d'Alkmin toma conta de mim) e viveram felizes por 12 anos, até a morte dele. O livro Maria Antonieta d'Alkmin e Oswald de Andrade: Marco Zero, de autoria de Marília de Andrade (filha do escritor) e Ésio Macedo Ribeiro – reunindo textos de Antonieta e Marília, correspondências, dedicatórias, notas, referências bibliográficas, iconografia – traça um retrato íntimo do mais rebelde e iconoclasta dos mentores do Movimento Modernista brasileiro. Um retrato em que realçam os traços de um marido e pai amoroso, numa personalidade autoritária e trepidante. Ao lado de vislumbres do processo criativo do romancista, poeta e en-
saísta – especialmente a construção do romance A Revolução Melancólica do projeto Marco Zero – a obra traz, sem pieguice, comovedoras revelações da vida do polemista incendiário, como a narrativa, por Marília, da falta de reconhecimento público e a própria dúvida sobre o talento do pai: “Fora do restrito círculo familiar e dos poucos amigos (...), ninguém das minhas relações conhecia o escritor Oswald de Andrade. Os pais de minhas amigas, mesmo os mais intelectualizados, nunca haviam lido nenhum de seus livros, não havia nenhum exemplar deles na biblioteca da escola (...), seu nome sequer constava das antologias de literatura brasileira, no capítulo sobre o Modernismo”. E finaliza com a perplexidade da redescoberta (e mitificação) do pai, em 1967, com a encenação da peça O Rei da Vela, por José Celso Martinez Corrêa.
Maria Antonieta d'Alkmin e Oswald de Andrade: Marco Zero Imprensa Oficial SP – Edusp, 2003 203 páginas, R$ 49,00
A cena política imperial
Uma arte coletiva
Era de festa e crise
O historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, ao debruçar-se sobre a política brasileira na época do Império para a elaboração de sua tese de doutorado pela Universidade de Stanford, produziu dois clássicos da historiografia brasileira: A Construção da Ordem e Teatro de Sombras. São análises do espaço da política formal e das representações simbólicas no Brasil do século 19, como a construção da ordem escravista e da unidade nacional. Em síntese, oferecem uma chave de leitura para a dialética de ambigüidades nas relações entre Estado e sociedade. Os dois textos, num só volume, acabam de ser relançados.
O poeta Arnaldo Antunes e a fotógrafa Marcia Xavier uniram seus talentos para produzir um livro em que os poemas não fossem meras legendas das imagens, nem estas fossem simples ilustrações das palavras, e sim, que as duas formas interagissem entre si, criando uma expressão nova e independente. No livro ET Eu Tu, entretanto, há um terceiro elemento constitutivo e indissociável nesta produção final: o design gráfico, assinado conjuntamente pelos dois, mais Carlito Carvalhosa, utilizando transparências e páginas que se desdobram. E, mais, uma capa espelhada que leva o leitor, ao se ver refletido, perceber que é também o quarto co-autor desta requintada edição.
Para escrever a história dos festivais de música que literalmente abalaram a MPB entre 1965 e 1972, Zuza Homem de Mello muniu-se de forte documentação informativa na qual embasou um conhecimento privilegiado: foi testemunha ocular da história, operando nos bastidores daqueles programas televisivos. Em linguagem clara e agradável, Zuza revela segredos, como a decisão de Chico Buarque de não receber o prêmio por A Banda se não fosse dividido com Disparada, de Geraldo Vandré; ou a atuação de Gutemberg Guarabira como agente esquerdista, infiltrado no esquema dominado pelos militares da ditadura, nos festivais da Globo.
A Construção da Ordem – Teatro de Sombras – José Murilo de Carvalho – Civilização Brasileira, 2003 – 459 páginas – R$ 50,00
ET Eu Tu – Arnaldo Antunes, Marcia Xavier – Cosac & Naify, 2003 – 200 páginas – R$ 79,00
A Era dos Festivais – Uma Parábola – Zuza Homem de Mello – Editora 34, 2003 – 527 páginas – R$ 54,00 Continente julho 2003