Arte e arquitetura contemporânea

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Arte e arquitetura contemporânea: caminhos cruzados Por Guilherme Wisnik

Dois formalismos opostos As artes plásticas e a arquitetura são duas esferas da cultura que se aproximam e se afastam de forma descontínua ao longo da história, de acordo com o ―espírito‖ de cada época. Com efeito, a convergência de ambas em direção a uma ―síntese das artes‖, nesse percurso, é mais a exceção do que a regra, e ocorre em momentos de particular densidade histórica, como no Renascimento, ou com as vanguardas construtivas do início do século 20. Nas últimas décadas, desde que uma parcela significativa dos artistas procurou abandonar a expressão subjetiva em direção à conquista do espaço público (muitas vezes urbano), pode-se perceber uma confluência de questões entre arte e arquitetura, desdobrando-se muitas vezes em alguma indistinção entre elas, e, outros casos, em certa rivalidade. É o que se depreende, por exemplo, da 51a edição da Bienal de Veneza (2005), em que se destacaram as intervenções ―meta-arquitetônicas‖ de Dan Graham, Ed Ruscha, Rachel Whiteread, Olafur Eliasson e Hans Schabus — o último, construindo uma carapaça plastificada (The last land) ao redor do elegante pavilhão austríaco, desenhado por Josef Hoffmann, parecendo engolí-lo. No entanto, situações como essa de afrontamento são gestadas em momentos de maior afastamento, em que a arte vem denunciar a excessiva positividade da arquitetura em relação à sociedade, dado o compromisso quase ―umbilical‖ desta com a encomenda do cliente, com os altos custos envolvidos na obra, com um processo de produção que inclui muitas equipes de trabalho, e, sobretudo, com as noções de eficiência e funcionalidade. A obra do artista norteamericano Gordon Matta-Clark opera brilhantemente nesse registro de disjunção, em que a arte, carregada de negatividade crítica, vem acusar a aderência complacente da arquitetura ao real, pretendendo literalmente arruiná-la. Ao tratar dessa relação, precisamos antes atentar para os diferentes caminhos seguidos pelas artes plásticas e pela arquitetura após a crise e dissolução do projeto moderno nos anos 60 e 70. Caminhos que passam, ambos, pela noção de ―formalismo‖, termo comum às duas áreas, mas que assume significados distintos em cada caso, sem que isso seja normalmente notado. No campo das artes, o conceito de formalismo está diretamente ligado à sua formulação original pelas vanguardas construtivas modernas — sobretudo a russa, em diálogo com a lingüística —, estendendo-se até os diversos abstracionismos dos anos 50. Trata-se, portanto, do princípio-chave da arte moderna segundo a definição de Clement Greenberg, caracterizado pela incorporação da matéria-suporte como linguagem, em reação ao ilusionismo naturalista. Assim, como defende Greenberg, ―a história da pintura de vanguarda é a história de uma progressiva rendição à resistência de seu meio‖, consistindo na negativa que o plano-suporte impõe ―aos esforços feitos para atravessá-lo em busca de um espaço perspectivo-realista.‖ Seus efeitos mais


evidentes, na pintura, são a ausência de profundidade do campo pictórico (remetendo-se à planaridade da tela), a evidenciação da pincelada, e a abolição tanto dos temas narrativos quanto dos efeitos expressivos de representação (claro-escuro, linhas de contorno etc). Operação essencialmente reflexiva, que faz com que consideremos a obra de arte tanto mais formalizada quanto mais as suas relações internas estejam ―estruturadas‖. Na arquitetura, a idéia de formalismo é diversa. Em registro moderno, é possível localizála em uma plasticidade formal como a de Oscar Niemeyer, que, embora universalista, está distante dos princípios tectônicos de ―verdade dos materiais‖, ou ―honestidade construtiva‖, por exemplo. Mas é na produção pós-moderna que o formalismo se torna dominante, sobretudo pela influência do estruturalismo a partir dos anos 60. Basicamente, arquitetos como Aldo Rossi e Peter Eisenman, e teóricos como Colin Rowe, buscam estabelecer uma autonomia disciplinar da arquitetura privilegiando sua sintaxe: sua ―história interna‖, não mais subordinada a condicionantes externos ao código formal, supostos na raiz da noção de ―funcionalismo‖. Tanto na pesquisa tipológica de Rossi quanto no desconstrutivismo estão contidos um desprezo pelo uso (função) e pela dimensão construtiva da obra, elementos essenciais na práxis moderna. Em substituição a estes, passa-se a pensar a arquitetura tanto como processo quanto como conceito a priori, isto é: mensagem, meio, linguagem, sistema de comunicação formal. Ora, a crise da modernidade, na arte, corresponde exatamente a uma renúncia daquela reflexividade formalista, traduzida na explosão do suporte material em direção ao espaço do mundo, onde as dimensões da ―arte‖ e da ―vida‖ ficam promiscuamente imbricadas. Simultaneamente, as relações internas da obra no espaço da ―vida‖ ficam tão minimizadas que a sua forma, em si mesma, é considerada ―fraca‖. Torna-se claro, a partir de então, que o conceito tradicional de arte, fundado na autonomia e na exemplaridade modelar, entra em crise, trazendo no seu bojo a perspectiva de ―morte da arte‖. É desde esse ponto de fuga negativo, na passagem dos anos 60 para os 70, que a arte mira a positividade arquitetônica, encerrada em sua plácida autonomia formal. Faz-se significativa, nesse sentido, a profanação ao templo da arquitetura novaiorquina realizada por Matta-Clark em 1976. Refiro-me ao edifício do Institute for Architecture and Urban Studies, dirigido por Eisenman, que teve suas janelas quebradas pelo artista em Window Blow-Out. Através dessa metáfora é como se a arte, ao invadir o espaço do mundo comum, antes ―território‖ da arquitetura, quisesse incutir nela a sua crise, tentando arrastá-la para uma ―morte‖ a dois. Para Robert Smithson, a arquitetura é um sistema de ordenação que entra em falência diante da entropia da natureza, como se vê em Partially Buried Woodshed (1969), onde uma casa submerge em meio a um monte de terra. Já Matta-Clark, assim como Richard Serra, traz alguns princípios da land art, como o site specific, para o interior da cena urbana. Perfurando e extraindo partes de edifícios abandonados (vigas, lajes, paredes, portas, janelas), toma artefatos arquitetônicos como ready-mades que ele não apenas desloca de seu contexto original, ressignificando-os, mas os mutila por dentro, como numa colagem cubista às avessas e em grande escala. Nesse sentido, como observou Dan Graham, sua obra é uma espécie de ―agit prop urbana‖, semelhante à ação dos situacionistas em Paris. Quer dizer, o seu ataque à arquitetura diz


respeito à ilusão de perenidade e eficiência que nela se materializa, tornando-a uma poderosa metáfora do status quo social. Nesse sentido, ao procurar eliminar a sua ―coluna vertical semântica‖, o artista revela o caráter efêmero, precário e ideológico da arquitetura como construção simbólica, atacando também o ciclo de produção e consumo da cidade: sua obsolescência programada, o descaso com os bairros suburbanos, e a compartimentação alienante dos espaços domésticos, normalmente ocultada pela uniformidade protetora das fachadas. De forma complementar, em obras como como Reality Properties: Fake Estates (1973), em que compra parcelas mortas de terreno por apenas 25 dólares – como um quadrado de 30 centímetros em um miolo de quadra –, desvela a irracionalidade dos processos urbanos escondida atrás da aparente disciplina ordenadora das suas edificações. Pode-se dizer, por essa via, que as mutilações que realiza em edifícios abandonados replicam, inversamente, as cicatrizes urbanas abertas por Robert Moses na malha viária desses mesmos bairros, substituindo antigas ordens comunitárias pela impessoalidade fáustica e desagregadora da modernização capitalista. Mais uma vez comparando as duas áreas, se com a crise do projeto moderno os artistas passam a colocar em xeque a capacidade que a forma tem de ordenar as coisas, os arquitetos, nesse momento, passam a exacerbar a dimensão escultórica de suas obras. Enquanto os primeiros tornam-se progressivamente projetistas, engenheiros ou ―mestres-de-obras‖ — lembremos, aqui, por exemplo, de Smithson ou Michael Heizer comandando helicópteros, escavadeiras, equipes de operários etc —, os segundos, com a crise do modelo fordista de produção em série, parecem retornar à condição de artesãos. É o caso, por exemplo, de Frank O. Gehry e Santiago Calatrava, em cujas construções podemos perceber – embora por caminhos diversos –, a mão do arquiteto modelando as formas. Com efeito, a negatividade contundente das intervenções ―anarquitetônicas‖ de MattaClark tem semelhanças com o niilismo escatológico de Georges Bataille, escritor surrealista dissidente, para quem a arquitetura representa a encarnação da geometria autoritária que ampara o funcionamento da sociedade. É justamente em contraposição a essa razão ordenadora ―arquitetônica‖ — a um tempo artificial e ilusória —, que Bataille afirma o caráter informe do mundo, excluindo qualquer hipótese de inspiração mimética para as artes. O ―universo não se assemelha a nada‖, diz ele, ―é informe como uma aranha ou uma cusparada‖. Em meados dos anos 90, Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois tomaram as provocações de Bataille a favor do ―informe‖ como mote de uma exposição homônima realizada no Centro Georges Pompidou, em Paris (L’informe, 1996). Exposição que teve a obra de Matta-Clark como um dos seus pilares centrais, já que esta, segundo os curadores, não se esgota no afrontamento físico dos edifícios em si, visando, antes de tudo, colocar em xeque a própria função social da arquitetura. A tentativa de tradução desse conjunto de questões para o campo da produção arquitetônica strictu sensu foi ensaiada de diversas maneiras. Um bom exemplo de investigação nessa direção é o número 50 da revista espanhola Arquitectura Viva (1996), onde se aventam


paralelos entre as distorções fraturadas de Peter Eisenman, Coop Himmelb(l)au, Daniel Libeskind e Zaha Hadid, ou os tentáculos flácidos e invertebradas de Frank O. Gehry e Ben van Berkel, e o projeto dissolvente de Bataille. Tratava-se, através da noção de ―informe‖, de encontrar caminhos interpretativos que pudessem dar conta do mal-estar reinante no panorama cultural após a ressaca do figurativismo historicista pós-moderno — o que, no caso da arquitetura, implicava em um evidente paradoxo, já que esta é, por definição, ―construção e forma‖. Curiosamente, até aquele momento as pregações de Rem Koolhaas a favor do ―informe‖ ainda não tinham ganhado ressonância, nem tampouco a semelhança de princípios entre os seus ―espaços negativos‖ e as extrações de Matta-Clark tinha sido devidamente observada.

Anti-utopia e espaço negativo Analisando edifícios comerciais norte-americanos dos anos 70, Fredric Jameson formula o conceito de ―hiperespaço‖. Trata-se do equivalente espacial ao descentramento do sujeito no pósmodernismo: uma mutação no próprio espaço construído, para o qual os nossos sentidos ainda não desenvolveram a capacidade de se orientar fenomenologicamente. Jameson toma o exemplo do Hotel Bonaventure (1976, Los Angeles), de John Portman, um complexo incluindo shopping center e outros serviços. Com acessos urbanos muito pouco configurados, e uma circulação interna não hierárquica, o edifício propicia uma experiência de radical imersão interior, dada a sua aspiração a ser ―um espaço total, um mundo completo, uma espécie de cidade em miniatura‖. Vagando erraticamente por escadas rolantes e elevadores — ―esculturas cinéticas gigantes‖, segundo Portman —, nos tornamos alegorias da antiga flanêrie urbana, ―sem nada daquela distância anterior que nos possibilitava a percepção de volume ou perspectiva‖. Se a arte nos anos 60 ganhou o espaço público, o ―hiperespaço‖ arquitetônico pósmoderno dá as costas à cidade e suas transições, ao mesmo tempo que elimina a distância perceptiva do observador em seu interior, isto é, a dimensão de profundidade ótica. Se lembrarmos que a noção de ―utopia‖ (u-topos) se assentava exatamente sobre essa distância disjuntiva — a negação provisória do ―lugar‖ a partir de um distanciamento que permite a reconstrução futura de um novo ―lugar‖ —, entenderemos o caráter restaurador da arquitetura moderna, cujo ideal de transparência nada mais era do que uma tentativa de ativação do entorno urbano decaído através da exemplaridade saneadora dos novos edifícios. Por outro lado, o sentido anti-utópico da atual imersão em espaços destituídos de profundidade — que não sabemos se foram reduzidos à planaridade ou alçados à quarta dimensão do ―espaço liso‖ deleuziano — pode ser tomada como o correlato arquitetônico à explosão do suporte na arte, já que a leitura perceptiva das distâncias, a orientação quanto às noções de verticalidade, horizontalidade, perspectiva visual etc, sempre foram o seu medium, isto é, a matéria-base da arquitetura. Nesse ponto é que se tornam relevantes as reflexões teóricas e projetuais do arquiteto holandês Rem Koolhaas quanto à explicitação de uma vocação contemporânea para a grande


escala, que ele chama de ―bigness‖ (grandeza). Se, no plano erudito, a reação pós-moderna à patologia da cidade funcional tinha sido a contestação daquela exemplaridade utópica da arquitetura através do aprendizado com a cidade existente — no caso europeu com a tradição histórica, no caso americano com o vernáculo comercial —, Koolhaas alinha-se aos americanos. Aprendendo com Las Vegas (e ensinando a partir dela), Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour dão voz a um discurso urbano que até então se considerava mudo, residual, deslocando o antigo protagonismo da arquitetura para a função comunicativa dos signos espaciais. O ―formalismo‖ desconstrutivista, embora distinto, corresponde a esse deslocamento. Encerrando a arquitetura em um campo disciplinar autônomo, expressa a incapacidade de se agir na cidade, renunciando tanto ao contraponto disjuntivo de totalidades regeneradoras, quanto à disposição em ―falar‖ a sua língua corrente. Koolhaas, no entanto, ao contrário de Venturi, mantém um profundo interesse pelos eventos arquitetônicos. Porém, não tratando-os como conteúdos geradores de formas — como faz Eisenman —, mas de programas. Aprendendo com Manhattan, o arquiteto holandês reconstrói a genealogia de uma ―cultura da congestão‖ urbana, essencial na formação do imaginário metropolitano do século 20. Trata-se da invenção de um mundo inteiramente artificial, denso e heterogêneo, que se materializa no arranha-céu: uma cidade vertical sem coesão interna, cujos elementos de conexão — o elevador e a escada rolante — não são espacialmente articulantes. Quer dizer, se há um vernáculo a ser aprendido pelo arquiteto, ele não está nos postos de gasolina, cassinos ou letreiros de beira de estrada de Las Vegas, mas na densidade flexível e heterogênea do ―bigness‖ de Manhattan, com suas torres multifuncionais criadas pela fantasia do mercado, sem doutrinas ou manifestos arquitetônicos prévios. Esse é o modelo que Koolhaas vê multiplicar-se na cidade contemporânea, primeiro na forma de lojas de departamento e shopping centers, e depois na de complexos multifuncionais que agregam centros empresariais, culturais, convenções, hotéis, setores comerciais, serviços, estacionamentos e terminais intermodais de transporte. Construções cuja escala incomensurável problematiza a antiga distinção entre edifício e cidade, invalidando qualquer pretensão contextualista a um diálogo urbano. Absolutamente dependentes da artificialidade técnica — eletricidade, climatização, circulação mecânica — esses ―fat buildings‖ se contrapõem ao princípio reflexivo moderno de reciprocidade entre as fachadas e o interior do edifício, por exemplo. Nesses casos, não há legibilidade visual possível nem ativação regeneradora do entorno a partir de uma exemplaridade expansiva. O interior é um mundo à parte, desconectado, cuja complexidade de ―organismo‖ replica a experiência urbana sem com ela relacionar-se. De um ponto a outro, troca-se o paradigma comunicativo estruturalista pela indeterminação pósestruturalista, na qual o espaço é entendido como fluxo não modular, justaposição de corpos sem vínculos, limites ou hierarquia: unidade dobrada sobre si mesma. É nesse contexto que Koolhaas defende uma abordagem ―informe‖ da arquitetura. Não como explosão fragmentária da forma visando mimetizar o caos da experiência contemporânea, mas o seu exato contrário. Egresso do chamado desconstrutivismo, Koolhaas tornou-se crítico àquele movimento, denunciando o caráter nostálgico da aproximação literal entre geometrias


irregulares e a idéia de um mundo fraturado e sem valores fixos. É justamente na mão contrária dessa representação ainda visual, compositiva, ―formalista‖, e, em última instância, decorativa, que ele postula sua indiferença pela forma como codificação lingüística. Como observa Alejandro Zaera, seus projetos buscam a ―geração de um corpo unitário‖ mas ―desorganizado‖, distinto tanto da fragmentação pós-moderna quanto da composição estruturada de partes, fundamento clássico da arquitetura moderna. O seu projeto mais exemplar, nesse sentido, é um edifício cultural de escala colossal: a Biblioteca Nacional da França (1989), contendo uma área total de 250 mil metros quadrados. Concebida como uma ―biblioteca de babel‖ contemporânea, a BNF deveria abrigar cinco diferentes programas: biblioteca científica, referências, aquisições recentes, catálogos e cinemateca. Equação que parecia convidar, quase que espontaneamente, a uma simbolização formal, traduzida em variedade volumétrica. Contudo, a propósito de seus primeiros estudos, Koolhaas diz o seguinte: ―ficamos irritados em pensar que teríamos que imaginar as cinco bibliotecas diferentes como cinco formas: uma divertida, uma feia, outra bonita e assim por diante. Em outras palavras, estávamos cada vez mais resistentes às normas de uma arquitetura que resolve tudo pela invenção da forma. Buscávamos, pela primeira vez, realmente inventar arquitetonicamente.‖ A solução encontrada foi a reunião de todo o programa em um edifício único, um cubocontêiner atravessado por prumadas regulares de circulação vertical, e estruturado por paredesviga repetidas paralelamente em vãos pequenos (a cada doze metros e meio), passíveis, portanto, de serem rompidas aleatoriamente em suas zonas neutras de forma a gerar grandes espaços vazios em seu interior. Já que a maior parte do programa deveria abrigar depósitos de acervo — aproximadamente 75% —, o arquiteto definiu a volumetria total de maneira inversa ao raciocínio habitual: aqui, os espaços públicos surgem como ―ausências de edifício‖, vazios escavados na massa sólida de informação (livros, cds, microfilmes, computadores, arquivos etc). Como ―embriões em uma placenta tecnológica‖, ou seixos espalhados ao acaso, os volumes de auditórios, cinemas, salas de leitura, cafés, rampas, galerias de circulação, flutuam em meio a uma massa uniforme de acervo, tratados plasticamente como ―espaços negativos‖ descontínuos e irregulares: barras semi-cilíndricas, cones ovóides, amebóides, espirais em revolução etc. Magma sem coordenadas fixas, fundo ou moldura, em que não é mais possível restaurar o percurso narrativo humanista, baseado nas transições reconhecíveis em uma percepção fenomenológica do espaço.

Devoração e neutralização A noção de ―informe‖ reside na constatação de que o mundo não é dado por leis dedutíveis, portanto não pode ser reconstruído mentalmente como imagem, apenas sentido como experiência. A aproximação entre Koolhaas e Matta-Clark — para-além da similitude visual, e à parte suas inúmeras diferenças —, reside no caráter mais operativo do que lingüístico (formal) de


suas obras. Traço que, nos trabalhos de Matta-Clark, aparece na exploração do site specific e na crítica institucional. Mas isso não significa que a forma não jogue um papel decisivo em suas obras, haja vista a diferença fundamental entre o corte ao meio de uma casa em Splitting (1974) — rigoroso, equilibrado, ―mínimo‖ —, e os barrocos seccionamentos semi-circulares e espirais de lajes e paredes, como que a inscrever figuras geométricas vazias no interior de edifícios, em Office-Baroque (1977) e Circus — Caribbean Orange (1978). Se o resultado dessas obras leva a um embaralhamento na apreensão de profundidade, na dificuldade em entender coordenadas cartesianas no espaço, a operação visa uma restauração da experiência cognitiva desses espaços: a liberação de vazios interiores que dinamizem a percepção daquilo que se encontrava enrijecido, fragmentado. Nesse sentido, atua na direção contrária à do laconismo minimalista — que se restringe a agenciar a exterioridade visível dos objetos —, fazendo do próprio corpo do artista um instrumento determinante no balé coreográfico que estabelece com o edifício. A idéia de Circus, diz ele, é remeter-se à arena de um circo: ―um lugar para a atividade, um círculo para a ação." Ora, ao que tudo indica essa operação ainda fenomenológica seria hoje inoperante em confronto com o hiperespaço do ―bigness‖, com seu interior desprovido de coesão ou profundidade, feito de órgãos flutuantes: uma arquitetura que não se prestaria mais a ser ―atacada‖ pela arte no papel de um antagonista (seu antípoda material), uma vez que ela mesma se liquefaz. Estamos no ponto de dobra da vigência crítica dos paradigmas espaciais foucaultianos e benjaminianos: o ―olho do poder‖ panóptico, e a experiência individual afirmada em meio ao espaço da multidão na metrópole. Assim, quem se deixar errar pelas 1344 páginas de S, M, L, XL (Small, Medium, Large, Xtra-Large) — o próprio livro uma metáfora desse espaço enorme, labiríntico e não hierarquizado —, encontrará com surpresa referências esparsas a Hélio Oiticica e Lygia Clark, e perceberá, por exemplo, a ―devoração‖ criativa da fita de Moebius de Lygia (Caminhando, 1963) nos planos contínuos e dobrados de projetos como para a Biblioteca de Jussieu (1992), o Educatorium da Universidade de Utrecht (1997), e na rampa helicoidal da própria Biblioteca Nacional da França. Devoração que, no entanto, mantém uma relação ambígua com o sentido inscrito na obra desses artistas. Se, por um lado, as obras de Gordon Matta-Clark, Hélio Oiticica e Lygia Clark, entre outros, erodiram a visão da arte autônoma e compreendida segundo critérios formais, volumétricos e humanistas (axialidade, frontalidade, profundidade, separação entre interior e exterior, hierarquia de partes na composição), antecipando algumas características importantes do chamado ―hiperespaço‖ contemporâneo, elas, por outro lado, apontaram para uma necessidade de restauração da experiência cognitiva pessoal e corporal como fundamento da ação artística — tivessem elas fundo místico, catártico ou terapêutico. Fundamento este, que parece hoje neutralizado nesses ―hiperespaços‖ arquitetônicos que espelham a internacionalização do capital, as redes de comunicação e informação, a instabilidade da economia global, a incomensurabilidade de seus complexos edificados, e a abstração do sistema financeiro dito pós-industrial, tornando anacrônico o movimento de alçar a capacidade cognitiva


do indivíduo a instrumento privilegiado de emancipação artística e existencial, ou motor de regeneração do espaço genérico e difuso das cidades no capitalismo tardio. Anti-utópicas, e refratárias a qualquer suspeita de idealização nostálgica, as dobras e pregas da arquitetura de Rem Koolhaas e seus discípulos se colam a essa realidade multiforme e esquiva — o chamado ―espaço liso‖ deleuziano —, adaptando-se à sua condição variável e homogênea com um pragmatismo irônico que, como definiu Luis Fernández-Galiano, prefere o pacto acomodatício ao conflito, pois ―reconhece as forças sociais e econômicas que a conformam, e se faz flexível para adequar-se a elas: se dobra para não romper-se‖.


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