"Biografias"

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#155 ano XIII • nov/13 • R$ 11,00

CONTINENTE

BIOGRAFIAS ESPECIAL

@curtapernambuco

Secretaria de Turismo

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A “BATALHA” ENTRE O DIREITO À PRIVACIDADE E O DIREITO À INFORMAÇÃO

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karina freitas

con ti nen te

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biografia Só fale de mim se eu permitir

Há um mês, instalou-se no Brasil uma complexa discussão sobre o direito dos artistas de não serem expostos em narrativas não autorizadas, em oposição à opinião de que suas vidas são um bem público, portanto, perscrutável texto Luciana Veras

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Em 10 de janeiro de 2002, no primeiro mês do último ano da segunda gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, inscreveu-se na história do Brasil a lei de número 10.406, que instituía o Código Civil Brasileiro. Em sua Parte Geral, o instrumento normativo que regula a vida de todos os cidadãos nascidos em solo pátrio abre com o Livro I – Das pessoas com o Título I – Das pessoas naturais. No Capítulo I – Da personalidade e da capacidade, estão os mais célebres dos 2.046 artigos que entraram em vigor em janeiro de 2003, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, após o período de vacatio legis, o hiato que decorre entre a promulgação e a concreta efetivação. Ei-los, os artigos 20 e 21, na proa de um debate que se iniciou em outubro e instalouse entre compositores, produtores, cineastas, jornalistas, escritores e advogados como uma discussão intensa, contraditória e nacionalizada.

Diz o artigo 20: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Seu parágrafo único: “Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”. O artigo 21 exprime que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Em novembro de 2011, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros criou a Associação Nacional dos Editores de

Livro (Anel) para submeter uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de derrubar o artigo 20. A ADI 4815 foi autuada no STF em 5 de julho de 2012 e distribuída, no dia seguinte, para a ministra Carmen Lúcia. Na petição, assinada pelo advogado carioca Gustavo Binenbojm, a Anel sustenta seu pleito enfatizando que os artigos em questão “em sua amplitude semântica, não se coadunam com a sistemática constitucional da liberdade de expressão e do direito à informação”. Vai além: “As pessoas cuja trajetória pessoal, profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública, gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita. Sua história de vida passa a confundir-se com a história coletiva, na medida da sua inserção em eventos de interesse público”. A argumentação sacramenta, ainda, que “exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus familiares, em caso de pessoa falecida) importa consagrar uma verdadeira censura privada à liberdade de expressão dos autores, historiadores e artistas em geral, e ao direito à informação de todos os cidadãos”. Uma audiência pública no STF sobre o assunto das “biografias não autorizadas” está marcada para os dias 21 e 22 deste mês. É possível, também, que a Câmara Federal vote o Projeto de Lei 383/2011, de autoria do deputado Newton Lima (PT/SP), que, na verdade, retomou noções apresentadas – porém nunca votadas – em legislaturas anteriores, ao propor uma alteração no mesmo artigo 20, com o intuito de “garantir a divulgação de imagens e informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública, cuja trajetória pessoal tenha dimensão pública ou cuja vida esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. Independentemente das datas em que o PL 383/2011 e a ADI 4815 sejam apreciados nas respectivas instâncias, a celeuma se disseminou nos círculos artísticos, políticos e midiáticos. De um lado, o grupo Procure Saber que, tão logo raiou outubro, assumiu uma postura contrária à ADI e que, presidida pela empresária e produtora Paula Lavigne, tem em suas fileiras artistas do quilate de Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano

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Veloso, Gilberto Gil, Erasmo Carlos, Djavan, entre outros. Eles se definem como “um grupo de autores, artistas e pessoas ligadas à música dedicado a estudar e informar os interessados e a população em geral sobre regras, leis e funcionamento da indústria da música no Brasil”. “Estamos no meio de um conflito entre gigantes, dois direitos fundamentais da Constituição: o da liberdade de informação e o direito à privacidade”, comentou Paula Lavigne, em programa exibido em um canal pago em 16 de outubro (procurada pela Continente, a Procure Saber não retornou as solicitações de entrevista). Chico Buarque defendeu o direito à privacidade, tomando como exemplo o autor de O divã, que, do alto do seu reinado, tirou de circulação Roberto Carlos em detalhes, biografia lançada por Paulo César de Araújo em 2006, pela editora Planeta, 22 mil exemplares vendidos antes do recolhimento a mando da 20ª Vara do Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. O compositor de Apesar de você, cuja carreira sofreu, em diversos momentos, a devassa da censura, enredou-se em constrangimento ao afirmar não ter sido entrevistado por Araújo, que logo divulgou foto e vídeo feitos durante encontro dos dois, em 1992. Dias depois, entrevistado por um jornal em Paris, Chico admitiu: “Posso

“Pela lei, qualquer narrativa tem que ser autorizada pelo protagonista da história” Lira Neto ter me precipitado, mas eu acho e continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado. (..) O que a gente pretendia era deixar as coisas como estão, no sentido de se poder preservar a privacidade de qualquer cidadão. Repito: posso ter me enganado. Eu julgava que eu estava tendo uma posição sensata”. Lavigne, porta-voz do grupo, posicionou-se a favor de remuneração para os biografados e de pagamento de royalties para herdeiros, da mesma maneira que Djavan, em nota oficial, postulou que “editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação”. “Corremos o risco de estimular o aparecimento de biografias sensacionalistas, em um país em que a reparação pelo dano moral é ridícula”, disse a empresária. Sua motivação, no entanto, escancarou-se em outra declaração: “Se alguém quiser

escrever uma biografia e publicá-la na internet sem cobrar, tudo bem. O problema é lucrar com isso”. Do mesmo modo que seu ex-marido e parceiro profissional Caetano Veloso, em 5 de outubro, publicou no seu perfil no Twitter @caetanoveloso: “Querem fazer biografias sem autorização? Ok! Mas paguem ao biografado”. A frase foi apagada horas depois. Mas o jornalista e escritor cearense Lira Neto, biógrafo de José de Alencar, Padre Cícero, Maysa e, mais recentemente, de Getúlio Vargas, viu e replicou. “O que está em jogo não é um simples cabo de guerra entre biógrafos e celebridades, é mais sério e profundo. Isso transcende a questão das biografias e diz respeito aos historiadores, jornalistas, sociólogos. Pelo que está exposto, qualquer narrativa tem que ser autorizada pelo protagonista da história, o que nos legaria uma História única, oficial, contada com o aval do personagem principal. Isso é absolutamente inadmissível, surreal e vexatório dentro de uma perspectiva internacional”, expõe à Continente.

PECUNIÁRIO

Lira Neto conta que não teve problema algum para pesquisar e redigir os três volumes de Getúlio, que a Companhia das Letras vem publicando desde

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1 dominique dreyfus Biógrafa de Luiz Gonzaga e Baden Powell revela a omissão de fatos lira neto 2 Autor de Getúlio defende que a polêmica transcende biografias silvio tendler 3 Autor de várias cinebiografias, ele diz que “a censura é o inferno”

2012 (o último tomo sairá em agosto de 2014). “Sequer me preocupei em procurar a família dele pra pedir permissão, pois considero que a sua história não é propriedade privada de ninguém. Acontece que, depois do primeiro livro, a sua neta, Celina Vargas, escreveu nas redes sociais que estava gostando muito do primeiro volume. Motivado por isso, entrei em contato. Ela me recebeu de forma carinhosa, me forneceu documentos novos que não estavam incorporados ao acervo dele e me disse de forma sincera que tinha medo do segundo livro, mas que, como uma cientista social, compreendia que a biografia teria obrigação de tocar em assuntos que, para ela como neta, não seriam saborosos”, acrescenta. O seu questionamento sobre a posição adotada pelos membros do Procure Saber – artistas não podem ser biografados, mas políticos e outras figuras públicas, sim – é incisivo: “Não há sentido em artistas acharem que estão em um patamar superior, além dos mortais. Se essas pessoas têm a exata noção do que estão propondo, e se forem além do propósito pecuniário e financeiro, precisam saber que vão inviabilizar o conhecimento histórico. O Brasil seria um caso sui generis de uma democracia que vai proibir a própria narrativa da sua história”, vislumbra Lira Neto. O cineasta carioca Sílvio Tendler concorda e vai além. “É um absurdo que, pra fazer uma biografia, tenha que pedir autorização. É muito grave na literatura, no cinema, na história. Chico Buarque defende isso, mas já imaginou se o pai dele precisasse de autorização para contar a história do Brasil? E se Gilberto Freyre precisasse de autorização também?”, indaga o diretor de Glauber, o labirinto do Brasil (2003), Jango (1984), O mundo mágico dos Trapalhões (1981) e Os anos JK (1980). Tendler lembra à Continente que a

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solução idealizada pelo Procure Saber “só contempla os ricos”. “Tudo isso termina em acordos econômicos. O subtexto é dinheiro. Quero ver se vão querer proibir um filme sobre um operário ou grande artista que tenha significado na arte, mas não tenha expressão. O que estão tentando fazer é um crime contra a arte e a cultura. A censura é o inferno”, vaticina. Em todos os seus documentários biográficos, o único imbróglio enfrentado foi com a família de Glauber Rocha (1939-1981), que adiou por 19 anos o aval para que o filme fosse finalizado. “Mas tive um problema ao contrário com a viúva de Milton Santos. Pelas leis absolutamente idiotas, precisava de uma autorização da família para a Biblioteca Nacional. A viúva achava que não precisava me autorizar nada, porque o filme pertencia a mim. A família tem plena consciência de

que a biografia é livre. E me vem um artista que faz tudo pra alcançar a fama e, quando chega aos píncaros da glória, resolve não querer ser biografado... Brincadeira”, ironiza. Já o cineasta moçambicano Ruy Guerra, há muito radicado no Brasil, alerta para o “aproveitamento sensacionalista” da controvérsia e para a tentativa de desqualificação do caráter dos artistas que são contra a mudança no Código Civil. “Minha indignação é ao uso que está sendo feito de um debate sério e importante. Acusam de censores pessoas idôneas, artistas que merecem todo o respeito. É inaceitável, é uma atitude ignóbil. Há um debate mais profundo a ser feito, e não há nada resolvido no plano jurídico. No entanto, a mídia, vestal que nunca pode ser criticada, não reconhece a pluralidade de comportamentos. Que liberdade de expressão é essa que esses artistas, que têm filhos, famílias,

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uma ligação com a sociedade, não podem se expor sem ser acusados de praticar um atentado a essa mesma liberdade de expressão?”, questiona.

CONFESSOR

Há quem examine a polêmica por outro viés. “Uma pessoa pública, uma vez que ela assume esse posto, não pode recusar que sua história seja contada. Mas a censura que o biógrafo deve ter é a ética. O biógrafo é, muitas vezes, psicanalista e confessor. Cabe a ele ter a delicadeza de entender que está lidando com intimidade, com confiança”, situa a biógrafa francesa e doutora em Letras Dominique Dreyfus, autora de duas biografias sobre ícones do cancioneiro popular brasileiro (Vida de viajante – a saga de Luiz Gonzaga, de 1996, e O violão vadio de Baden Powell, de 1999). Não houve intrigas entre ela e os biografados. “Contei com o apoio, a ajuda e a colaboração dos dois. Não tive nenhuma restrição para falar do alcoolismo do Baden ou da paternidade de Gonzaguinha. Baden me perguntava se eu estava contando dos porres dele. Gonzaga me abriu a vida, o coração. Como o que me interessava contar era tudo aquilo que na história dos dois interferia em suas músicas, teve coisa que ficou de fora. E nem que me torturem eu vou contar”, ilustra.

4 humor Charge de Miguel, no Jornal do Commercio, refletiu o debate nacional

“A censura que o biógrafo deve ter é a ética”, afirma Dominique Dreyfus, biógrafa de Gonzagão e Baden Powell Para o jurista, advogado e escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, autor de Fernando Pessoa, uma quase autobiografia (30 viagens a Lisboa para sua confecção e 50 mil exemplares vendidos pela Record desde 2011), “não há um argumento digno para impedir biografias”. “Há que se pensar na dimensão pública do biografado e no interesse da coletividade. Mas há o direito de liberdade de expressão e a responsabilidade do exercício do direito de falar. E também não há argumento digno que impeça a indignação contra alguém que foi irresponsável ao publicar erros. A indenização tem que ser proporcional ao dano. E essa mesma indenização não se constitui censura. Essa é uma afirmação indecente”, contextualiza. Os direitos à privacidade e de liberdade de expressão, tão evocados ao longo do mês de outubro por

biógrafos, biografados, advogados e artistas, estão garantidos pela Constituição promulgada em 1988. O parágrafo X do artigo 5 reza que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Mas, talvez inspirados pelo parágrafo anterior – “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” –, Roberto Carlos, Gilberto Gil e Erasmo Carlos gravaram um vídeo sob a chancela do Procure Saber em que se dispõem a “afastar toda e qualquer hipótese de censura prévia”, mas exigindo garantias contra “ataques, insultos e aproveitadores”. Disponibilizado na internet em 29 de outubro, sinalizou um abrandamento da tese que eles construíram ao longo do mês. “Nunca quisemos exercer qualquer censura, ao contrário: o exercício do direito à intimidade é um fortalecimento do direito coletivo”, pronunciou Gil. “Não negamos que essa vontade em dado momento nos tenha levado a assumir uma posição mais radical”, reconheceu Roberto Carlos, que citou a necessidade de “conciliar o direito constitucional à privacidade com o direito fundamental à informação”. Refutando qualquer elo com a censura, os três artistas, peças-chave na historiografia da cultura nacional desde a década de 1960, adotaram uma tática para aplacar críticas e aparar arestas. “Não somos censores. Nós estamos onde sempre estivemos, pregando a liberdade”, apregoou o Rei, o mesmo cuja biografia se encontra banida há seis anos. As reações foram variadas: houve quem elogiasse a recuada ou quem classificasse o vídeo como uma tentativa de rebater os argumentos de quem atribuiu ao Procure Saber motivações monetárias. Transformações à vista? O certo é que a contenda, seja no Legislativo, no Judiciário, na surdina das negociações de venda de direitos ou na mídia, apenas principia.

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Entrevista

MÁRIO MAGALHÃES “PAGAR AO BIOGRAFADO EQUIVALE A PAGAR POR ENTREVISTA” Com Marighella – o guerrilheiro

que incendiou o mundo, uma extensa reportagem sobre o guerrilheiro e poeta Carlos Marighella (1911-1969), publicada pela Companhia das Letras em 2012, o jornalista Mário Magalhães ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes e, no mês passado, a mais importante honraria literária do país, o Jabuti. Em ambos os casos, na categoria de melhor biografia. Ironia ou acaso que ele, nascido no Rio de Janeiro na primeira semana de abril de 1964, quando o Brasil respirava o início da ditadura militar, tenha atingido o status de escritor premiado com a biografia de um dos mais temidos inimigos do regime que se estendeu até 1985? Tanto faz: o que importa é que Magalhães defende, com veemência, o direito dos jornalistas e biógrafos de continuarem investigando, reportando e escrevendo.

CONTINENTE Para você, autor de uma

biografia que acaba de receber o Prêmio Jabuti na categoria (e para a qual, como você escreveu em seu blog, os herdeiros de Marighella lhe deram total liberdade), qual é o principal dano

que pode advir do veto ao gênero? O seu lento abandono? Ou a perspectiva do monopólio de histórias “oficiais”? MÁRIO MAGALHÃES Uma questão conceitual: sei que muitos biógrafos jornalistas julgam que as biografias constituem um gênero jornalístico ou literário. Para mim, são reportagens. Com características singulares, pois contam vidas. A reportagem, sim, é um gênero do jornalismo, o mais fascinante. A legislação em vigor permite impor a exclusividade de biografias laudatórias. No limite, haveria um monopólio da verdade, expresso em biografias chapas-brancas, com a chancela da lei, o Código Civil. Seria uma tragédia, cujos indícios já surgem. Existem livros proibidos, projetos biográficos cancelados e numerosos autores tentados a abandonar as biografias enquanto a norma obscurantista que autoriza a censura prévia se mantiver. Eu desisti: enquanto a lei não mudar, não escreverei biografias. CONTINENTE E o que mais o surpreende: a ideia de que os herdeiros poderão reprimir as biografias ou a noção, defendida por alguns artistas, de que o biógrafo capitaliza e faz fortuna com seu trabalho? Seu balanço financeiro, digamos assim, não foi lá para cima com a imersão na vida de Marighella, não foi mesmo? MÁRIO MAGALHÃES O verbo deve ser conjugado no presente. Os biografados e seus herdeiros já “podem” proibir biografias, amparados pela lei. Têm feito isso. Não sou contra biógrafo e biografado compartilharem os direitos autorais de um livro. O inaceitável é impor essa regra. Porque uma biografia não autorizada, como a que escrevi, tem caráter jornalístico. Uma das características do jornalismo é a sua condição de serviço público. Pagar ao biografado equivale a pagar por entrevista. Isto é, desvirtua a natureza do jornalismo independente. No caso, da biografia não autorizada. Cinema é outra coisa. Trata-se de entretenimento, showbiz. Jornalismo é serviço público, mesmo quando exercido por empresa privada. Pelos livros vendidos e a cessão dos direitos da biografia para o cinema, receberei meros 15% do total de salários de que abri mão nos 69 meses em que me dediquei exclusivamente a Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo. Empenhar-se em uma biografia,

como me empenhei, é um péssimo negócio financeiro, mas um gratificante empreendimento de vida. CONTINENTE Algumas pessoas, entre elas profissionais que ouvimos para a matéria que estamos publicando agora, têm argumentado que a discussão está sendo feita de forma açodada e que é preciso um debate mais amplo sobre a questão. Você concorda? MÁRIO MAGALHÃES Incrível é que muitos que falam agora em discussão açodada não pronunciaram uma sílaba quando o Código Civil foi aprovado com dois artigos, o 20 e o 21, escancaradamente inconstitucionais, ao prever a censura prévia. Há muitos tresloucados e açodados, como temos visto. Mas a discussão tarda, era para anteontem. Ou viver sob censura é legítimo? E outros têm insistido em que não se trata de censura, e, sim, de preservar o direito à privacidade. O que você pensa sobre isso, ainda mais se levarmos em consideração que um outro direito, o da liberdade de expressão, está garantido na Constituição? O direito à privacidade é assegurado legalmente. Bem como o de não ser alvo de calúnia e difamação. Mas não é porque a lei prevê punição para homicidas que os assassinatos acabaram. Quem comete crimes como os de difamação e calúnia e viola a privacidade deve ser processado e punido com rapidez e dureza. A propósito: o que isso tudo tem a ver com censura prévia em plena democracia? O Código Civil não fala em biografias, seu alvo é muito mais amplo. Atinge toda a produção jornalística e cultural. Com base nessa lei, a revista Continente pode ser obrigada a pedir autorização a um perfilado que tema por sua “boa fama”. Já pensou? CONTINENTE Imaginamos que a experiência de Marighella lhe dê subsídios para tecer comparações com o exercício jornalístico e literário da biografia praticado em outros países. Que diferenças lhe são mais sintomáticas, nesse caso? MÁRIO MAGALHÃES Biógrafos brasileiros, como Ruy Castro e Fernando Morais, estão entre os melhores do planeta. Nada devem aos britânicos e norte-americanos. A maior diferença hoje é que o Brasil configura a única grande democracia a impor censura prévia para biografias.

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TEXTO Relato vital sobre uma pessoa

As biografias se situam entre história, jornalismo e literatura. O narrador reconstrói episódios a partir de documentos, cartas, livros e depoimentos

5 MITOs Embora o gênero só tenha se definido no século 17, a narrativa dos deuses tem caráter biográfico 6-7 medievo No período, eram frequentes as hagiografias, ou biografias de santos, como Francisco e Joana D’Arc

TEXto Eduardo Cesar Maia

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Muito tem-se falado a respeito

de direitos e deveres do biógrafo. Nas últimas semanas, jornais, revistas, programas de televisão e mesmo as pessoas comuns, nas mídias sociais, têm apresentado a questão sob as mais distintas perspectivas, com maior ou menor coerência e pertinência em cada caso. A “Batalha das Biografias” brasileira, portanto, teve como ponto bastante positivo o fato de ter gerado um intenso debate público sobre temas como direito à privacidade, liberdade de expressão e censura; coisas que, numa democracia liberal, nunca devem cessar de ser problematizadas. Não se trata de apresentar um juízo de valor em relação ao que têm dito personalidades como Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso e outras figuras de nossa música popular. O leitor encontrará aqui simplesmente algumas informações e breves reflexões sobre o gênero biográfico e seu desenvolvimento. A palavra “biografia” (do grego bio, “vida” e grafos, “escrever”) – se observarmos a variação em seu uso durante a história – não permite uma compreensão unívoca e definitiva. O termo foi estabelecido

Durante o Romantismo, o aprofundamento da vida psicológica dos personagens ganha relevo somente no século 17 e foi utilizado, retrospectivamente, para se referir a um gênero autônomo desenvolvido desde a Antiguidade, conhecido então como vita (vida). Primordialmente, desde as Vidas paralelas, de Plutarco, ou dos textos de Cornelio Nepote, o gênero se baseava num desígnio moralizante, edificante e didático, ainda que existam importantes exceções, como a notável Vida dos doze césares, de Suetônio. Esse propósito ético e pedagógico prosseguiu durante a época medieval, com as hagiografias (biografias de santos), que teve como figura principal Giacomo da Varazze, autor de Legenda áurea, uma espécie de crônica das vidas santas. Os trovadores provençais também cultivaram, à sua maneira, os relatos de caráter biográfico, tanto religiosos como referentes à nobreza e famílias importantes.

O antropocentrismo renascentista, posteriormente, levou o gênero a uma importante reformulação. O estudo da vida e do pensamento de pessoas ilustres se opôs ao modelo teocêntrico das vidas dos santos, colocando em primeiro plano personagens de destaque na vida civil, militar e artística. A revisão da herança clássica restaurou a fé central no homem, no indivíduo. A fama, o prestígio, as conquistas, o dinheiro, as façanhas, o poder e o gozo material e sensual da vida passaram a ser admirados, e não mais desprezados. Plutarco volta a ser o modelo imitado por todos; e o padrão moral já não pode ser somente o da rigidez cristã. Já durante o Romantismo, o aprofundamento da vida psicológica dos personagens ganha relevo, juntamente com a preocupação, por parte dos biógrafos, em tornar a leitura da obra mais amena e estimulante, muitas vezes em detrimento da verdade factual. As metodologias positivistas, no século 19, também contribuíram com o desenvolvimento do gênero, principalmente no que diz respeito ao rigor documental e ao detalhamento minucioso do contexto histórico e cultural.

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RELEVÂNCIA PÚBLICA

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Como se vê, ao longo do tempo, escritores e pensadores de diferentes origens estabeleceram variadas expressões para descrever os diversos procedimentos, estilos e modelos do gênero biográfico. Talvez por isso contemos hoje com uma série de expressões e palavras, muitas vezes redundantes ou polissêmicas, para nos referirmos a esse tipo de narrativa – o que pode gerar ambiguidades. Escutamos com frequência os termos biografia, autobiografia, história pessoal, narração biográfica, perfil biográfico, relato biográfico, biografia intelectual... Ao invés de nos atermos aos rigores das diferenciações, às particularidades e definições a respeito de cada uma dessas formas de abordagem, podemos nos propor algo mais simples: mostrar o que existe de comum entre elas.

Com a “sociedade de massas”, surgiu uma leva de mitos culturais surgidos da música, do cinema e dos esportes

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Em qualquer acepção que propusermos para um relato de tipo biográfico encontraremos, na prática, um tipo de trabalho orientado a narrar total ou parcialmente a trajetória vital de uma pessoa que desperte algum interesse social, comumente personagens históricos e de relevância pública, que tenham contribuído nos âmbitos da política, da ciência ou da arte. Nos últimos tempos, no entanto, a ideia de relevância pública, como se sabe, transformou-se bastante. Com o advento da chamada “sociedade de massas” e com a estonteante explosão do consumo cultural e midiático, foi se estabelecendo uma nova hierarquia de mitos culturais surgidos fundamentalmente dos campos da música popular, do cinema e do esporte. As biografias – e não poderia ser diferente – seguiram o caminho das novas demandas, e

8-10 m ercado editorial

iografias estão entre os títulos B de maior vendagem no Brasil

passaram também a atuar em serviço da publicidade, muitas vezes através de abordagens polemistas desses mesmos novos mitos. Em sua forma mais tradicional e reconhecível, portanto, a biografia nos apresenta um personagem famoso, e tenta explicar suas escolhas, ideias e atos em conformidade com suas circunstâncias particulares, com sua época e com o arranjo político, cultural e social no qual estava inserido, traçando uma espécie de pintura de sua personalidade e pensamento. Assim, podemos partir, com alguma segurança, da ideia de que as biografias constituem um gênero situado entre a história, o jornalismo e a literatura (o predomínio ou o equilíbrio entre essas três disciplinas numa biografia vai depender da perspectiva e das preferências do biógrafo), no qual um pesquisadornarrador tenta reconstruir ou costurar certos episódios da vida de um indivíduo a partir da consulta a documentos, cartas, livros, depoimentos orais etc., a fim de compor um painel que, de certa maneira, forneça ao leitor um sentido geral para aquela trajetória (lembrome do narrador Casmurro tentando “atar as duas pontas da vida” para explicá-la a si mesmo). Daí o caráter de conhecimento humanístico atribuído ao gênero e a necessidade de se preservar a liberdade de atuação dos biógrafos: diferentemente das formulações sistematizáveis e abstratas das ciências “duras”, no campo das ciências do homem, precisamos narrar para entender. As biografias servem ao conhecimento assim como a História: como exemplo das possibilidades infinitas que brindam a existência humana e a capacidade que temos para aprender moralmente a partir da experiência de outros.

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arte sobre reprodução

CENSURA Calabar, a peça como paradigma do veto

A prática da interdição a atividades culturais oficializou-se no Brasil em 1934, mas foi nos anos 1970, sob golpe militar, que recrudesceu TEXto Luciana Veras

Um dos episódios mais emblemáticos da censura artística no Brasil deuse em 1973, com a proibição, às vésperas da estreia, do espetáculo Calabar - o elogio da traição. A direção era de Fernando Peixoto (19372012) e o texto tinha assinatura do cineasta moçambicano Ruy Guerra e do cantor e compositor Chico Buarque, cujo nome àquela época já era recorrente nos documentos dos órgãos de repressão da ditadura. Sua peça Roda-viva (1967) havia sido acusada de não respeitar “a formação moral do espectador, ferindo de modo contundente todos os princípios de ensinamento moral e de religião herdados dos nossos antepassados”, de acordo com

parecer da censura disponível para consulta no Arquivo Nacional. A rigor, a prática da interdição de quaisquer atividades culturais foi oficializada em 1934, com a criação da Censura Federal, ligada à Diretoria Geral de Publicidade, Comunicações e Transportes. Em 1939, no primeiro governo de Getúlio Vargas, a “censura teatral e de diversões públicas” é transferida para o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP); seis anos depois, surgia o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), que se reportava ao Departamento Federal de Segurança Pública. “A censura sempre existiu. Antes era uma censura basicamente de costumes, um pouco moral, e muito ideológica”, afirma o

advogado e jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, ex-secretáriogeral do Ministério da Justiça, quando comandado por Fernando Lyra (19382013), entre 1985 e 1986, durante o governo José Sarney. Com o golpe que instaura o regime militar, sob o qual o Brasil viveu entre 1964 e 1985, a legislação vira refém do autoritarismo. “A ditadura fez 42.514 leis. Dessas, 39 eram textos sobre a censura”, aponta Cavalcanti Filho. Com o subsequente recrudescimento nas forças de repressão proveniente do Ato Institucional nº 5, em 1969, a censura ganha mais poder e legitimidade. No caso de Calabar – o elogio da traição, por exemplo, adotouse a tática da procrastinação. Em abril de 1973, Chico Buarque requisitou análise para liberação do texto; o derradeiro juízo emitido pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, vinculada ao Departamento da Polícia Federal, ligado ao Ministério da Justiça (Alfredo Buzaid era o ministro, o presidente era o general Emílio Garrastazu Médici), só viria em janeiro de 1974. Negativo, claro. Assim, “a paródia baseada em fatos reais, o escracho, o sarcasmo na representação do poder”, nas palavras do próprio Ruy Guerra, foram afastados da apreciação pública na montagem

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que resgatava a figura de Domingos Fernandes Calabar (1609-1635), que lutou pelos portugueses e depois se aliou aos invasores holandeses, nas batalhas travadas na capitania de Pernambuco, no século 17 (herdando a pecha secular de “traidor da pátria”). Os produtores Fernando Torres e Fernanda Montenegro haviam investido US$ 30 mil; o elenco estava pronto, as músicas ensaiadas, figurino e coreografias finalizados. O texto, entretanto, só seria liberado seis anos depois. “A peça fala de traições sucessivas e contínuas, que existiam e continuam existindo, e de uma época em que o conceito de nacionalidade era confuso. Calabar talvez seja o mais visível e mais representativo paradigma da

Segundo o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, a ditadura fez 42.514 leis. Dessas, 39 eram textos sobre a censura censura teatral no Brasil”, Guerra diz à Continente. Ele dirigirá uma nova montagem, que deve estrear no primeiro semestre de 2014, e garante que fará jus “ao mito de Calabar”. “Há a importância dos 40 anos do texto e pensamos em fazer um grande espetáculo, à altura sob o aspecto da visualidade, da musicalidade, da miseen-scène. Uma resposta, ainda que tardia, à censura”, completa Ruy Guerra. Chico Buarque, hoje envolvido na querela das biografias, não integra o projeto do novo Calabar. Lembra o jurista José Paulo Cavalcanti Filho que o mais famoso herdeiro de Sérgio Buarque de Holanda era um dos membros do Conselho de Defesa da Liberdade de Expressão, um dos primeiros atos do ministro Fernando Lyra para extinguir a censura. “Criamos essa comissão para redigir como isso funcionaria. Chamávamos os maiores especialistas brasileiros para escrever. Nunca houve uma recusa. No caso do conselho, presidido por Antonio Houaiss, eram Chico, a cineasta Ana Carolina, o dramaturgo Dias Gomes, o senador e jornalista Pompeu de

11 Ruy guerra O cineasta moçambicano vai dirigir uma nova montagem de Calabar, com estreia prevista para 2014 12 chico buarque O compositor foi taxado de “subversivo” pela coautoria de Calabar 13 Cavalcanti filho Jurista afirma que a censura, sempre presente, já teve caráter mais moral e ideológico

Souza, o cartunista Ziraldo e Terezinha Martins, representante da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil”, recorda Cavalcanti Filho. O jurista considera que o dano maior da censura é imensurável: “Aconteceu no Brasil o mesmo que no Portugal pós-Revolução dos Cravos, em 1974. Pensava-se que a censura impediria o surgimento de grandes obrasprimas, mas os efeitos são ainda mais danosos porque incidem no próprio processo de criação. Não é que se impeça uma obra-prima de ser dada a conhecer; impede-se que as pessoas a escrevam, porque a censura lhes tira o substrato anímico, a disposição de criar”. Para Ruy Guerra, as restrições da atualidade são de outra ordem. “Sofremos uma censura diferente, não tão violenta quanto na ditadura, não oficial, mas muito delicada, que é a censura econômica. A produção de cinema é absolutamente castrada. Estou há seis anos lutando para filmar Quase memória, da obra do Carlos Heitor Cony, mas os meios de expressão de massa e de produção são submetidos ao interesse do capital”, lamenta. Uma situação de adversidade oposta à experimentada com Os fuzis, seu longa-metragem de 1964, ano em que João Goulart (1919-1976) foi deposto. “Antes de Calabar, não cheguei a ter problemas com a censura porque, quando Os fuzis foi lançado, coincidiu com o momento do golpe. Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos estavam em Cannes, falando mal dos militares e, para verificar se meu filme poderia ir ou não a Berlim, formou-se uma comissão de generais para vê-lo”, relembra Ruy Guerra. O resultado ilustra que a censura também se filiava a critérios subjetivos, que iam além de subversão ou provocação políticas. “Os generais chegaram à conclusão de que se tratava de um filme de macho. Assim, ninguém quis censurar porque pegaria mal para eles”, comenta o cineasta.

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