Da sua estante para o toque na sua tela
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# 163
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#163 ano XIV • jul/14 • R$ 11,00
CONTINENTE
O ATO DE CRIAR COMO, QUANDO, ONDE E POR QUE ELE ACONTECE
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MAURICIO PLANEL
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CAPA
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PROCESSOS CRIATIVOS
Os caminhos que levam ao insight
Inerente à trajetória humana, a criatividade não é exclusiva do ambiente artístico, embora seja nele que reconheçamos sua evidência. Mas existe um modo de sabermos onde exatamente ela se desencadeia no nosso corpo? TEXTO Luciana Veras
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CON CAPA TI NEN TE
ROMULO FIALDINI/DIVULGAÇÃO
O escritor Milton Hatoum sempre
começa seus livros pelo fim. A estilista Adriana Barra registra as sensações que lhe aparecem em viagens. O pintor Bruno Vilela coleciona cadernos em que rabisca impressões e desenhos. A cantora e compositora Bárbara Eugênia usa sua vida como combustível para versos e melodias. O cineasta Beto Brant parte de uma matriz literária para iniciar uma viagem de corpo a corpo com o olhar. A fotógrafa e videasta Virgínia de Medeiros trabalha sozinha, sem equipe, e se envolve muito com seus personagens. O escritor Rodrigo Fresán não tem um sistema, horário ou disciplina. A atriz Marieta Severo se apossa de imagens e referências para lhe servir de munição. Eles são artistas. Destacam-se e ganham a vida com as obras a que se dedicam, alguns há mais tempo, outros de umas temporadas para cá, todos com afinco. São indivíduos que iluminam as acepções do verbo criar, cuja primeira aparição nos léxicos remonta ao ano de 1001, segundo o Dicionário Houaiss. A criatividade, decerto traduzida com mais nitidez na trajetória dos que imergem na carreira artística, acompanha a humanidade desde sempre. E a ciência tem procurado, continuamente, delinear como se dão os processos criativos no cérebro humano. Os estudos vêm se intensificando graças ao aprimoramento das tecnologias de mapeamento imagético do corpo humano. Neurocientistas, psicólogos e médicos tentam elucidar qual o caminho das ideias e das articulações criativas na rede de sinapses formada pelos neurônios, as células do cérebro. “Tipos diferentes de criatividade utilizam partes diferentes do cérebro. Nos meus estudos, comprovamos que cada um de nós precisa do trabalho conjunto dos dois hemisférios para um resultado criativo”, explica à Continente a neurocientista Lisa Aziz-Zadeh, doutora em Psicologia e professoraassistente do Brain and Creativity Institute (literalmente, Instituto do Cérebro e da Criatividade, coordenado pelo neurocientista português Antonio Damasio) e do departamento de Ciência Ocupacional da Universidade da Southern California, em Los Angeles. Ao hemisfério direito, por exemplo, cabem as funções de reconhecimento de rostos, melodias, notas musicais,
1 ADRIANA BARRA Para criar, a estilista toma nota de sensações que tem em viagens
sons ambientais, formas e padrões geométricos; o pensamento concreto; o senso de direção; a memória não verbal; e as emoções relacionadas à sensação de evitar algo, como o medo. À metade esquerda, por sua vez, estão reservadas a linguagem (letras, palavras, memória verbal, falar, ler, escrever), o ato de fazer contas, as resoluções lógicas, processuais e sistemáticas de problemas, análise, pensamento abstrato e as emoções ligadas à aceitação, como afeto. “É complicado generalizar no que se refere ao cérebro, mas, se formos ter uma vaga ideia de quais
regiões são comumente associadas aos processos criativos, geralmente teremos atividade no córtex pré-frontal, na ínsula, nas regiões motores e nas redes recompensatórias, que respondem por aquela sensação boa que você tem quando passa por um momento ‘aha!’”, acrescenta dra. Aziz-Zadeh. Em seu estudo mais recente, Aha! The neural correlates of verbal insight solutions (Aha! Os correlatos neurais de soluções verbais de insight), 12 participantes com idades entre 20 e 40 anos, seis homens e seis mulheres, todos destros, completaram 48 testes contendo anagramas, aplicados dentro de uma máquina de fMRI (ressonância funcional magnética). Ao solucionar o anagrama, eles tinham que apertar um botão para indicar se
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ADRIANA VICHI/DIVULGAÇÃO
MILTON HATOUM, escritor brasileiro A imaginação e a inspiração são o que há de mais poderoso na escrita literária. A literatura é um trabalho solitário que começa, na verdade, com a leitura. Não seria o escritor que sou hoje se não houvesse lido os romancistas que li. Não se domina a técnica de um romance sem uma leitura estudada, reflexiva, de Flaubert, por exemplo. Nunca conheci nenhum escritor que não tivesse sido um rato de biblioteca. E as obras pelas quais você tem empatia não estão separadas da vida; elas são a sua vida, elas te ajudam a construir personagens, te inspiram personagens. Mas a escrita não depende exclusivamente da leitura: nela entra tudo aquilo que nos constitui, como a memória, que é um outro nome da imaginação. O nosso cérebro é muito complexo. Às vezes, faço um gesto diferente ao acordar e isso desencadeia um sonho, uma lembrança, que desperta uma ideia. O processo de escrever, que para Manuel Bandeira era o “alumbramento”, um estado de espírito propício à poesia, carrega em si um pequeno milagre e alguns mistérios.
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Preparação, incubação, iluminação e verificação seriam estágios do processo criativo, de acordo com Shelley Carson
haviam chegado à solução como algo que simplesmente irrompeu na mente (“aha!”) ou se haviam procurado a resposta a partir de memórias e conhecimento prévios. Os resultados apontam a proeminência do córtex pré-frontal direito, área já associada à criatividade, e a utilização dos dois hemisférios em simultaneidade para atender demandas específicas, o que pode ser um componente importante para o insight. “Pode ser” é uma locução repetida ad nauseam nesse estudo e em artigos afins. O fato é que, no campo da criatividade e no seu percurso cerebral, para cada certeza há um sem-número de mistérios. “O cérebro sempre me fascinou, desde a minha primeira aula de
anatomia como estudante da graduação. Tudo ao nosso redor – dos edifícios onde vivemos aos carros e aviões que nos levam, das roupas que vestimos aos nossos smartphones e às músicas que ouvimos dentro deles – nasceu como apenas uma visão dentro de um cérebro humano. Meu objetivo, então, foi tentar entender os achados contraditórios da neurociência da criatividade, indo além da discordância em quais aspectos do cérebro eram mais importantes para os processos criativos”, diz Shelley Carson, psicóloga e professora da Universidade de Harvard, a respeito do seu livro Your creative brain – seven steps to maximize imagination, productivity and innovation in your life (O cérebro criativo – aprenda a aumentar a imaginação, melhorar a produtividade e
inovar em sua vida, na tradução da edição nacional publicada pela Best Seller, atualmente esgotada). Tanto ela como a dra. Lisa Aziz-Zadeh citam o exemplo do matemático grego Arquimedes e o fenômeno da “Eureca!”, palavra que o grego teria gritado ao correr nu pelas ruas de Siracusa após constatar, enquanto tomava banho, como poderia saber se a coroa de ouro do rei Hierão havia sido adulterada ou não (e vem daí a lei do empuxo que todos estudam na física). O mito da inspiração instantânea persiste, assim como a compreensão de que o processo criativo pode ser incrementado, se dividido, como prega e elabora Shelley Carson no seu livro, em quatro fases: preparação, incubação, iluminação – eureca! – e verificação. Contudo, a criação também possui seus enigmas. Nunca estanque, assume outros contornos a depender de quem com ela se confunde.
MODUS OPERANDI
Para Rodrigo Fresán, escritor argentino radicado em Barcelona, autor de O fundo do céu (2009), trata-se de uma experiência da qual ele prefere pouco
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“Com menos ou mais intensidade, o ato de criar está totalmente imbricado com o de viver” Hermes Azevedo
RODRIGO FRESÁN, escritor argentino Desde que tenho memória, sempre quis ser escritor. Nunca pensei em ser advogado ou dentista. Os escritores me interessavam como tema e espécie animal. Deles, gosto de ler biografias, cartas, diários... tenho uma atitude bastante fetichista. Os que mais aprecio são Proust, Cheever, Vonnegut, Nabokov e Philip K. Dick, que escrevem livros sobre livros ou que transcorrem dentro da cabeça de escritores. Em todos os meus livros há personagens escritores. O mais recente, La parte inventada, investiga como funciona a cabeça de um escritor enquanto ele está criando. Como se inventa uma história? Por que lugares ela passa? Como ocorrem as ideias? Para mim, o ofício de escrever passa pelo “durante”, não pelo “depois”. Sempre penso em vários livros ao mesmo tempo. Gosto de estar corrigindo e agregando coisas. Quando chego ao final (e só entrego nas últimas, para desespero dos meus editores), há uma sensação difícil de descrever: é o momento em que sinto que o livro já não é meu, que tem que ir. Então que se vá.
ou nada apreender. “Não tenho muita certeza sobre algumas coisas, tampouco me interessa tê-las como claras. Há dois tipos de atitude na vida e uso como exemplo um espetáculo de mágica: tem gente muito preocupada em saber como é o truque, enquanto outros apenas se deixam maravilhar pelo que o mágico faz. A mim, o terreno da criação e da escrita é o da surpresa. Não quero perder a perspectiva do leitor enquanto escrevo, até porque sou sempre o meu primeiro leitor. Não me interessa perder a capacidade de surpresa. Por isso, cada livro me impõe um tempo próprio e gera um método particular. Sem disciplina alguma”, compartilha com a Continente. É uma perspectiva distinta, por exemplo, da do escritor manauara
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2-3 BRUNO VILELA Anotações em cadernos e horário regular são parte de sua rotina 4 BETO BRANT Matriz criativa do cineasta é a literatura
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Milton Hatoum, de Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), entre outros. No início, quando ainda era professor universitário, ele não era muito rígido consigo mesmo por causa da escassez de horários. O tempo alterou sua metodologia. “Quando meu primeiro filho nasceu, em 2004, aluguei uma edícula para trabalhar. Não tenho fetiche algum de viver a reclusão do escritor, mas preciso estar sozinho e de silêncio para escrever”, conta. A prática de transformar em redações ficcionais “a memória, as inquietações, as mais
íntimas dúvidas que trazemos dentro de nós e componentes autobiográficos” deslinda outros cacoetes. “Escrevo sempre à mão, depois passo a limpo e vou corrigindo. Não sei escrever direto no computador. Também faço um plano como o arquiteto que nunca fui: comecei todos os meus romances pelo fim, para depois chegar ao caos. Se não souber onde vai terminar tudo, não tenho como descobrir o que virá antes”, revela. Curioso perceber que dois profissionais no mesmo âmbito de
atuação possuem modus operandi bemapartados. A criação, porém, respeita a subjetividade de cada ser e obedece a sentimentos e repertórios afetivos acumulados em toda existência. “Com menos ou mais intensidade, o ato de criar está totalmente imbricado com o de viver. Seja de forma mais sutil e simples, nos telhados de uma casa composta por garrafas pet cheias d’água para substituir a iluminação artificial, por exemplo, ou de forma mais espetacular e exposta em teorias ou exposições de arte, se o homem não cria, ele não vive. E essa sua criatividade é completamente entrelaçada com suas frustrações e problemas que povoam sua realidade. Criador e criatura são inseparáveis. Em outras palavras, a realidade objetiva, a realidade subjetiva, o eu objetivo e o eu subjetivo formam uma unidade dialética indissociável na hora de criar”, afirma Hermes Azevedo, presidente do Conselho Regional de Psicologia/Pernambuco. O “fenômeno da criatividade”, como o psicólogo coloca, unifica os homens: “Existe em alguém com pouco ou nenhum acesso ao conhecimento formal e também no cientista. É de tal forma democrático e onipresente, que, não raro, o homem mais simples – e menos comprometido com os métodos formais – consegue resolver problemas de forma mais criativa e original do que os de mente complexa. Contudo, ambos partilham da mesma capacidade de, frustrados, não se resignar e assim transpor os limites impostos pelo mundo objetivo e/ou suas interpretações da realidade”. A criatividade, então, age ora como uma ferramenta de catarse, ora como um catalisador do que o artista sente, sofre e anseia. Foram essas questões, inerentes ao que ele chama de “cosmogonia do pintor recifense Bruno Vilela”, que orientaram o diretor paulista Beto Brant quando veio ao Recife dirigir um dos documentários da série Se cria assim, com concepção e direção-geral do cineasta pernambucano Cláudio Assis.
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5-6 VIRGÍNIA DE MEDEIROS Artista diz que trabalha com a intimidade, com o tempo dado pelo acaso e pelo acontecimento
SE CRIA ASSIM
A série é composta por quatro filmes de 26 minutos de duração, a serem exibidos em canais fechados neste segundo semestre de 2014, cujo propósito é radiografar o decurso inventivo dos artistas visuais Rodrigo Braga, Marcelo Silveira, Paulo Bruscky e Bruno Vilela. Assis dirigiu os documentários sobre Braga e Silveira, o diretor de fotografia e cineasta Walter Carvalho acompanhou Bruscky e coube a Brant, de O invasor (2001) e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011), entre outros, a tarefa de enquadrar Vilela. “Ele é um artista que se alimenta do afeto e cria a mitologia dele ao mesmo tempo em que vai buscar fontes no mistério, no candomblé, na astronomia. Além disso, é extremamente técnico, fez quatro anos de estudo avançado de anatomia, mas não se deixa enclausurar pela habilidade. Nada é realista na
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MARIETA SEVERO, atriz brasileira Como atriz, não crio isoladamente. Sempre que recebo um personagem novo, começo uma vivência muito particular, num processo de criação abrangente. Mas nada é independente dos outros, do que o diretor quer, dos que meus companheiros de elenco estão fazendo. Sento com eles, observo seus passos durante os ensaios, vejo como eles fazem e sigo criando dentro desse todo. A melhor brincadeira para mim é estar vivendo um personagem. Não é que não goste de quem eu sou, nada disso; é que meu gosto por tudo aquilo que é inventado, pelo ficcional, é enorme. E os personagens exigem diferentes tipos de exercício. Dona Nenê, por exemplo, já está criada. São 14 anos de convivência. Já não caminho com ela diariamente, mas a busca é achar uma sutileza, um novo olhar, algo diferente, para emprestar a ela. É uma recriação constante e necessária, porque senão mecaniza tudo. Por isso, adoro dizer que vivo em um estado de criação. Às vezes, são dois, três, quatro personagens ao mesmo tempo. Mas é só o corpo que fica cansado; o resto está inteiro.
tela dele. Essa liberdade que tem no olhar me encanta”, discorre Brant. Talvez o alumbramento tenha se dado justamente porque, para Beto Brant, o cinema tem uma marcha peculiar: “Às vezes, você passa anos para viabilizar um filme. Um longa é uma obra construída, pensada; você precisa contratar 40 pessoas, depois tem que lidar com o incentivo fiscal, com a prestação de contas. Isso dá um excesso de pressão que o acanha. Mas aí faço uma videoarte, uma videodança, e é uma delícia, porque não tem o menor compromisso com o mercado.” A singularidade de sua jornada como autor é que ela se constitui, exclusivamente, de adaptação de obras literárias. “Gosto de ler, parto da literatura, meu principal parceiro, Marçal Aquino, é um escritor. Mesmo os meus filmes que não são dele, como Crime delicado (2005), que é de Sérgio Sant’anna, ou Cão sem dono (2007), do livro de Daniel Galera, partem do meu contato com a literatura. Mas o que faço com os livros é uma leitura, nunca uma adaptação. Minha viagem é recortar, é olhar em
“Em tese, o processo criativo não passa pela consciência, pela determinação de um efeito, um resultado” Luiz Camillo Osório 3D aquele material e dali construir uma imagem”, exemplifica. No seu episódio de Se cria assim, Bruno Vilela narra o dia a dia de quem decidiu, desde cedo, enveredar pelas searas da arte. Cursou Artes Plásticas na Universidade Federal de Pernambuco, mas não terminou, foi discípulo do desenhista japonês Sunichi Yamada e, há cinco anos, abandonou tudo para ser artista. Isso não implica o desapego à própria ordem interior. Enquanto guarda cadernetas que arruma, com zelo, em um dos móveis do seu ateliê (“São para descarregar a ansiedade, para guardar ideias, para começar desenhos”), ele conserva uma rotina espartana: “Trabalho diariamente, das 10h às 19h. Dois dias da semana, chego às 11h
porque levo meu filho para nadar. Pela manhã, respondo a meus e-mails, vejo mais as coisas administrativas, e à tarde fico pintando e produzindo. Sou artista, abracei o desapego para viver do que der, mas sempre com profissionalismo”. Grafites, tintas a óleo em centenas de tonalidades, pincéis e ferramentas o ladeiam, assim como telas das séries Voodoo drama, Animattack ou Mindscapes, cujas gêneses remontam ao que ele, concordando com Beto Brant, classifica como sua “visão de mundo”. Para atingir esse estado, o processo em si é tão essencial quanto a bagagem ou a pulsão que o desencadeia. “Em tese, o processo criativo não passa pela consciência, pela determinação de um efeito, de um resultado que possa ser previamente qualificado ou determinado como causado por uma intenção específica”, pontua Luiz Camillo Osório, crítico de arte, professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ e curador do Museu de Arte Moderna carioca. “De certa maneira, na ideia de criação de arte, o processo vai sendo constituído
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LISA AZIZ-ZADEH,
neurocientista norte-americana
Embora a criatividade seja talvez a mais importante ferramenta humana, sua base neural ainda é difícil de compreender. Mas a ciência e as tecnologias utilizadas para escanear o cérebro têm avançado e apontado para a constatação de que os dois hemisférios cerebrais são acionados nos processos ligados à criatividade. Completei dois estudos específicos sobre criatividade: um sobre o instante do insight, e outro sobre as correlações neurais da criatividade visual, que é um componente crucial para a fotografia, a pintura, a arquitetura e a escultura. Nos dois, quando induzimos uma situação para que surgisse uma ideia na pessoa dentro da máquina de ressonância magnética, foi possível capturar esse instante no cérebro. Encontramos padrões de atividade cerebral que são relacionados ao insight ou à criatividade visual. Os resultados desses estudos apontam que, mesmo em uma tarefa especializada de um hemisfério específico (por exemplo, o processamento de informações visuais e espaciais no hemisfério direito), uma robusta atividade paralela no hemisfério esquerdo auxilia o processo criativo.
e gerado na realização da própria obra. O artista não existe antes da obra; ele é constituído por ela. É o poema que constitui o poeta”, defende.
VIVÊNCIA
A baiana Virgínia de Medeiros se permite pensar, agir e criar por esse matiz. A artista visual estará presente na 31ª Bienal de São Paulo com o vídeo Sérgio e Simone (2009/2014), em que acompanha a transformação de um travesti negro, autointitulado “guardião” de uma fonte em uma degradada vizinhança do centro de Salvador, em um pastor evangélico – que por sua vez usa o registro feito por ela para corroborar sua conversão. Para abordar o universo dos travestis em Studio Butterfly (2003/2005), a oralidade sertaneja em Fala dos confins (2010) ou o ethos sadomasoquista em Jardim das torturas (2013), ela se imiscuiu na realização de tal modo, que a fundiu em um “processo de vivência”.
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ALI KARAKAS/DIVULGAÇÃO
construir uma linguagem que dê conta de tudo que vivi, da complexidade daquele personagem. Por isso, gosto de trabalhar com a videoinstalação, que borra as fronteiras entre literatura, vídeo e fotografia e me dá liberdade e diferentes formas de contar uma história por completo”, ressalta. A noção de “fronteiras” nunca existiu para a estilista paranaense Adriana Barra – tanto aquelas pontilhadas que demarcam territórios de países adjacentes como as que podem ser transpostas com o desanuvio da mente. “Países, tribos, lugares, animais, plantas, cheiros, cores… tudo pode me servir. O processo de criação é livre, sem amarras”, sintetiza. Ao longo do tempo, ela diz ter aprendido a não se deixar intimidar pela “opressão da criatividade”. “Antes, eu acordava no meio da noite, ia escrever as ideias que tinham surgido
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“Trabalho muito com a intimidade, com o tempo dado pelo acaso, pelo acontecimento. Nessa vivência, somos eu, a câmera e o outro, uma relação que se estabelece e na qual me envolvo por completo. Antes, me via muito como mediadora, mas hoje entendo que também entro num estado performativo para fazer esse trabalho de arte, que fica num ponto de intersecção, na borda da prática e da reflexão. Enquanto faço, vou pensando, desenhando, formalizando a experiência, até porque, no começo, quando você tem apenas o projeto, aquilo é uma ficção, um abismo. Como tal, está aberto a sofrer todo tipo de transformação, a todo tipo de desvio, até chegar à instauração da obra. Meu processo criativo não é ponto de chegada, é ponto de partida para algo”, observa. É a força desse processo que a impele a escolher, por exemplo, o suporte a ser usado. “Sou obsessiva no afã de dar forma a tudo aquilo, de
De acordo com a neurociência, as áreas do cérebro mais exigidas por um tipo de atividade são mais desenvolvidas e não conseguia mais dormir. Trabalhava 20h por dia. A partir da experiência, soube que delegar, no meu caso, é tão importante quanto criar, e hoje não fico muito procurando a criação. A inspiração chega”, comenta Adriana, cujo trabalho se notabiliza por um apurado design de coloridas e chamativas estampas. Ela, que nunca desenhou, comanda uma equipe de nove pessoas e as orienta para concretizar em tecidos as imagens que a encantam. “Mas aprendi também que nem toda ideia pode ser aproveitada, que várias inspirações não são representáveis e assim não vão virar uma estampa. O que fica é o que o cérebro registrou. Se houve alguma ideia anterior e eu não lembrei, já não me preocupo”, admite. Indagada sobre se o tipo de trabalho que é feito – uma ideia para uma estampa, uma performance, uma pintura ou um livro – determina as regiões do cérebro afetadas por esta função, a neurocientista Lisa AzizZadeh ensina que o que se faz nas
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BÁRBARA EUGÊNIA
Compositora e cantora, ela diz que tudo entra na criação, de sua rotina ao conteúdo de uma foto, um filme
tentativas e nos ensaios, por exemplo, repercute imediatamente. “Os músicos possuem áreas mais amplas no cérebro que são dedicadas aos dedos que eles usam para tocar seus instrumentos, por exemplo. Os compositores e instrumentistas também processam a música de forma diferente de como um não músico recebe as informações musicais em seu cérebro”, elucida. Sons e palavras, portanto, são processados de jeitos particulares por uma compositora e uma atriz. Afinal, dedilhar um violão é hábito para Bárbara Eugênia; já para Marieta Severo, seria um passo no approach de um personagem. Cariocas, as duas possuem em comum uma certa solitude inicial na hora de evocar suas musas. Compositora e cantora, autora de Journal de Bad (2010) e É o que temos (2013), Bárbara escreve à mão, com lápis, em “um monte de caderninhos” que carrega na bolsa: “Anoto tudo e depois organizo as ideias num só, já pensando no nome das músicas e do disco. Assimilo muito melhor quando escrevo à mão. Esse processo tem uma textura que deixa a letra impressa na minha cabeça”. Para ela, a vida tem o mesmo peso de um filme, um álbum, uma fotografia. “No meu processo criativo, não adianta forçar a barra. Falo muito sobre as coisas que me acontecem, é tudo bastante pessoal. Tem as licenças poéticas, a inspiração de fora, mas é a minha vida e a das outras pessoas ao meu redor que caem no meu trabalho”, situa. Na atriz Marieta Severo, existe um permanente “estado de criação”. Nele, coabitam dona Nenê, que encarna há mais de 14 anos no seriado televisivo A grande família, e Nawal, a protagonista do espetáculo teatral Incêndios, em cartaz no Rio de Janeiro, ou qualquer personagem que vier a ocupá-la. “As palavras que me dão foram criadas por outra pessoa, mas isso não implica uma carga menor de criatividade”, avisa. “Por ser uma intérprete, primeiro preciso entender o que o criador fala. O processo se inicia assim: recebo o texto, passo a cavucar as ideias do autor, a me apropriar disso e fazer minha
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CON CAPA TI NEN TE MAURICIO PLANEL
A maior parte do esforço de escrever um romance para mim é tentar me manter fiel a esse zumbido, a esse ritmo. É um negócio altamente intuitivo”, conta. O autor de A trilogia de Nova York (1987), Leviatã (1992), A noite do oráculo (2004) e Sunset Park (2010), entre outros, começa a trabalhar às 9h, no escritório, e escreve à mão com uma Aurora, caneta tinteiro italiana, em um caderninho. “O parágrafo é a minha unidade natural de composição. O verso é a unidade do poema, o parágrafo, para mim, cumpre essa mesma função na prosa. Elaboro e reelaboro o parágrafo até que eu esteja razoavelmente satisfeito com ele, escrevendo e reescrevendo até que tenha a forma ideal, o balanço ideal, a música certa. Uma vez que pareça terminado, eu bato à máquina. Então, cada livro tem um manuscrito cursivo e um outro datilografado, ao lado”.
JOHN CASSAVETES
MODOS IDIOSSINCRASIAS DO MOMENTO DA CRIAÇÃO Cada artista tem o seu jeito de criar. É como DNA: pessoal e intransferível. Os processos criativos podem ser lapidados com a prática diária; ser lineares, no caso de escritores, que, em geral, iniciam a primeira frase e seguem a ordem cronológica até o final do livro; ou se assemelhar a uma epifania. Mas há milhões de nuances entre esses extremos da atividade.
WOLFGANG AMADEUS MOZART
Em The creative process: reflections on the invention in the arts and sciences (O processo criativo: reflexões sobre a invenção nas artes e nas ciências, em tradução livre), coleção de textos assinada por Brewster Ghiselin, aparece uma carta atribuída ao compositor austríaco, na qual se diz: “Quando estou complemente sozinho, em um bom humor – digamos, viajando em uma carruagem, ou passeando após um lauto almoço, ou durante uma noite em que não consigo dormir: é nessas ocasiões em que minhas ideias fluem mais e com melhor abundância. De onde e como elas surgem, eu não sei; nem posso forçá-las”.
PAUL AUSTER
Para o escritor nova-iorquino, todos os livros começam com “um zumbido na cabeça”. “É um tipo de música ou de ritmo, um tom.
Falecido aos 59 anos em 1989, o cineasta e ator é até hoje considerado o pai do cinema independente norte-americano. A partir de Sombras (1959), foi apurando um estilo que, embora emergisse de um roteiro amarrado, incentivava a improvisação dos atores no set. Há quem diga que a maestria apresentada em Faces (1968), Uma mulher sob influência (1974) e Noite de estreia (1977), entre outros, deu-se, também, porque seu gênio era abastecido por doses torrenciais de álcool – consumia a tal ponto que morreu de cirrose. No cérebro, o álcool induz a um estado de desinibição cognitiva que, apontam estudos, pode levar a uma recorrência de insights ou a níveis maiores de criatividade.
CLAUDE MONET
Um dos criadores do Impressionismo na pintura, Monet (1840-1926) se dizia “freneticamente levado pela necessidade de reportar o que eu vivencio”. Principalmente na última fase do seu trabalho, quando retratou os lírios d’água dos jardins de sua casa, em Giverny, sua insatisfação consigo mesmo e suas constantes alterações de humor contrastavam com o método lento e perfeccionista de observar a luz, as cores e as formas. “Trabalhando tão devagar eu me sinto desesperado, mas quanto mais longe eu vou, mais eu vejo que é preciso trabalhar muito para suceder em representar aquilo que procuro”, escreveu. Suas pinturas mais famosas, como a série das ninfeias ou os lírios d’água, feitas ao cabo de dias e meses de observação diária de uma mesma paisagem, ficaram prontas quando ele já estava acometido de catarata nos dois olhos e, portanto, praticamente cego. Ele queria captar o transcendental: “A paisagem, o objeto, é insignificante para mim: o que quero representar é o que está entre mim e o objeto”.
própria criação. O começo é solitário. Começo a me apossar de imagens para compor aquele personagem, a pensar em um olhar diferente e só fico focada nisso. Tudo, aliás, na minha vida se volta para isso. É avassalador.” Os estágios seguintes ampliam o escopo das relações – nos ensaios, Marieta interage com os companheiros de elenco e aí coletiviza a criação até então restrita –, mas mantêm a atriz em uma vigilância perene. “Todos os personagens me consomem muito. Viver um personagem é o que mais gosto de fazer na minha vida. Na verdade, gosto mais da ficção, prefiro entrar em um cenário a entrar em uma casa. Durante o processo criativo, a realidade fica desfocada e todo o resto se volta para a ficção. Até porque eu preciso criar um alguém em que as pessoas não enxerguem Marieta, ao me verem em cena, e, sim, a dona Nenê, por exemplo. E quanto mais diferentes eles forem, mais elasticidade me derem, melhor para mim”, afirma a atriz de cinema (Carlota Joaquina, 1994), teatro (A dona da história, de 2000, entre outros) e TV (Catarina, de Vereda tropical, de 1984).
EVOLUÇÃO
Novos personagens, canções, livros, instalações, pinturas, filmes, estampas... Uma miríade de possibilidades pode irromper com o que se engendra nos cérebros daqueles que se devotam à criação artística. E também nos circuitos criativos das mentes das pessoas comuns. “A criatividade foi um recurso fundamental na evolução da espécie humana. Nossa engenharia biológica é delicada; talvez sejamos uma das mais frágeis espécies do ponto de vista biomecânico. Tivemos que ser criativos para sobreviver. Ao nos depararmos com obstáculos, rompemos com as limitações. Graças à faculdade de criar soluções, fruto do inconformismo que mais nos tipifica, fomos capazes de vencer as fragilidades e desenvolver a criatividade de forma inusitada e singular. Assim criamos a ciência, que é o patrimônio intelectual da sociedade humana”, teoriza o psicólogo Hermes Azevedo. “Viver é solucionar uma série de problemas a cada instante. Quanto mais criativos formos ao fazer isso, mais contribuiremos para nossos irmãos e para nosso futuro”, defende a neurocientista norte-americana Lisa Aziz-Zadeh.
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Entrevista
SHELLEY CARSON “AS PESSOAS PODEM ‘PENSAR FORA DA CAIXA’ COM UM POUCO DE PRÁTICA” Doutora em Psicologia pela Universidade de Harvard, Shelley Carson é autora de Your creative brain – seven steps to maximize imagination, productivity and innovation in your life (O cérebro criativo – aprenda a aumentar a imaginação, melhorar a produtividade e inovar em sua vida, cuja edição nacional está esgotada). Lançado em 2010, pela editora Jossey-Bass, o livro sintetiza o trabalho que a psicóloga desenvolve nas áreas de criatividade e psicopatologia. Uma das teses que defende na tradicional instituição de ensino norte-americana é a de que é possível, sim, exercitar a criatividade. “A capacidade de pegar pedaços de informação e combinálos e recombiná-los de formas que sejam novas, originais e ainda úteis ou adaptáveis a outras situações se chama criatividade. Se você for atrás de mais ‘pedacinhos de informação’, maior será o material que você terá para combinar de maneiras originais”, diz na entrevista concedida por e-mail à Continente, no intervalo de uma das suas aulas no campus em Boston, Massachusets.
CONTINENTE No seu livro, você afirma que não há um centro criativo no cérebro, mas várias partes afetadas pela criatividade. Como traduzir esse processo complexo para um leitor comum? SHELLEY CARSON Em Your creative brain, descrevo vários estados de ativação cerebral, que chamo de brainsets. Cada um desses estados cerebrais pode ser apropriado para diferentes estágios do processo criativo. Por exemplo, quando você está gerando ideias criativas, não quer ficar preso em um estado cerebral em que você está meticulosamente avaliando dados. Você deseja estar em um estado mais desfocado, mais aberto. A ideia principal é que os diferentes estados cerebrais são associados com diferentes meios de usar a nossa percepção, a nossa memória e nossa estrutura mental para resolver problemas. Eu sugiro, portanto, que aprender a entrar em variados estados cerebrais e a passear com flexibilidade entre eles vai aperfeiçoar a criatividade. CONTINENTE Que áreas do cérebro são cruciais para um músico, um escritor ou um cineasta? SHELLEY CARSON O cérebro é complexo e opera mais como um conjunto de redes ou sistemas do que localidades específicas acionadas por tarefas exclusivas. Portanto, enquanto um cineasta pode precisar acionar os aspectos de detecção de movimento do sistema visual (localizados nos lobos parietais) mais frequentemente do que um artista que pinta natureza-morta, por exemplo, cada ato de criatividade possui diversos estágios e requer diferentes ativações de redes neurais específicas em cada uma dessas fases. Pesquisadores ainda estão trabalhando para identificar essas complexas sequências de ativação cerebral.
uma sinfonia”. Então, podemos distinguir duas tarefas relativamente diferentes ao olhar para as partes do cérebro que estão ativas nas pessoas que foram demandadas para executar tais tarefas. Por outro lado, ainda não conseguimos dizer a qualquer uma que esteja se submetendo a uma ressonância que faça algo e depois determinar o que é tal coisa apenas a partir da observação daquela atividade cerebral. CONTINENTE Você acredita que a correria da vida cotidiana suprimiu ou mesmo enterrou a habilidade de um indivíduo comum de “pensar fora da caixa” ou de trazer mais imaginação e inovação para dentro de sua existência? SHELLEY CARSON Creio que muitas pessoas se sentem confortáveis em pensar de maneiras lineares e sequenciais, porque foi isso que eles aprenderam a fazer na escola. Esse tipo de pensamento é eficiente para resolver várias tarefas diárias, do tipo decidir se devemos primeiro pegar as roupas na lavanderia ou ir ao supermercado. Então, sim, a rotina da vida cotidiana provavelmente mantém as pessoas “pensando dentro da caixa”. Entretanto, a maioria das pessoas pode “pensar fora da caixa” com um pouco de encorajamento e prática. Quando alguém começa a fazer isso, logo se surpreende como o quão mais interessante pode ser tornar a rotina diária.
CONTINENTE Que conselho você daria para alguém interessado na oferta de possibilidades criativas dentro do cérebro? SHELLEY CARSON O primeiro passo para se tornar mais criativo e aprender mais sobre o processo criativo é ler muito. Pessoas interessadas em aumentar a própria criatividade devem sempre ampliar o aprendizado, pesquisando e mantendo um olhar curioso sobre CONTINENTE É possível mapear vários assuntos. Um segundo conselho cientificamente o processo de alguém que compõe seria o de desligar o censor do seu uma sinfonia ou que escreve uma lista de compras cérebro. Passe um tempo pensando em para a feira? soluções sem julgar seus pensamentos. SHELLEY CARSON Se você colocar duas Você chegará a algumas ideias bem pessoas em uma máquina de ressonância estranhas, e talvez algumas delas sejam magnética e disser a uma delas para absurdas ou impraticáveis, mas outras pensar na lista de feira e à outra para podem ser bastante criativas. Julgar começar a compor uma sinfonia, é e descartar ideias antes mesmo que possível apontar quem está fazendo o elas tenham a oportunidade de brotar quê. No entanto, não sabemos o bastante completamente limita seu modo de para olhar uma imagem cerebral aleatória pensar. Para que a criatividade floresça, e afirmar “essa pessoa está escrevendo é necessário superar esses limites. (LV)
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GÊNIOS Cérebros privilegiados
Para os neurocientistas, é possível reconhecer o cérebro de uma pessoa superdotada. Os sociólogos trabalham a partir de referências contextuais
Albert Einstein. Alfred Hitchcock. Bob Dylan. James Joyce. Ludwig van Beethoven. Pablo Picasso. Stanley Kubrick. Stephen Hawking. Vincent van Gogh. William Shakespeare. Wolfgang Amadeus Mozart. Em um hipotético certame criativo mundial, essa poderia se tratar de uma seleção de gênios. Ei-los, os seres de uma existência que paira acima de todas as outras. Suas capacidades de articulação de ideias acarretam impressionantes resultados; a partir das faíscas de inspiração que seus cérebros operam, florescem
descobertas científicas ou magníficas obras de arte. Em alguns casos, a eles são atribuídos, até, a conceituação da vida e seus meandros. Em Shakespeare – a invenção do humano, o crítico literário norte-americano Harold Bloom vaticina: “Será que podemos nos conceber sem Shakespeare? Não incluo aqui apenas atores, diretores, professores e críticos, mas também o presente leitor e todas as pessoas de seu relacionamento”. Na ótica fisiológica, existem, sim, as mentes diferenciadas, como lembra a neurocientista norte-americana Lisa
Aziz-Zadeh, professora do Brain and Creativity Institute da Universidade da Southern California. “É absolutamente possível identificar o cérebro de alguém tido como genial. Por exemplo, existem muitos estudos sobre o cérebro de Einstein. Se qualquer um ler, vai constatar que ele era único. Na perspectiva das pesquisas, talvez seja a mente mais explorada até hoje. No meu instituto, atualmente, estão sendo explorados os cérebros de famosos artistas e músicos, mas o estudo ainda não está concluído”, afirma. Em The corpus callosum of Albert Einstein’s brain: another clue to his high intelligence? (O corpo caloso do cérebro de Albert Einstein: outra pista para a sua alta inteligência?), publicado em setembro de 2013, na Brain, revista virtual da Universidade de Oxford, no Reino Unido, dedicada à neurologia, uma equipe de pesquisadores chineses, liderada pela dra. Weiwei Men, do Departamento de Física da East China Normal University, explana a seguinte teoria: a interconectividade entre os dois hemisférios cerebrais do autor da teoria da relatividade era muito maior do que em outras pessoas. Essa ligação cabe ao
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“Os artistas começam a dessacralizar o gênio e a reivindicar a obra no contexto do cotidiano” Paulo Marcondes corpo caloso, uma estrutura cuja função é, justamente, servir de elo entre as metades do órgão supremo do corpo humano; o de Einstein era muito mais desenvolvido do que normal. No estudo, foram usadas imagens de ressonância magnética de cerca de 70 homens, cotejadas com as fotografias do cérebro de Einstein, removido sete horas após sua morte, aos 76 anos, em 1955. Se, por um lado, são incontestáveis os achados científicos relacionados à anatomia cerebral de uma mente extraordinária, por outro, o conceito de gênio é reexaminado em outras esferas do conhecimento. “O grande esforço da Sociologia é entender como uma determinada obra pode causar estranhamento e provocar reações
IMAGENS: REPRODUÇÃO
NOTÓRIOS
Einstein, Shakespeare, Joyce e van Gogh estão entre os que deixaram um legado incontestável à humanidade
no meio em que ocorre e qual é o ambiente em que o artista e essa obra estão acontecendo. Sob esse ponto de vista, a ideia de gênio é profundamente questionável e frágil, sobretudo quando se toma a dimensão histórica em que se construiu”, sustenta Paulo Marcondes, professor de Sociologia da Arte na graduação, no mestrado e no doutorado no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Ele recupera Mozart – sociologia de um gênio, escrito pelo sociólogo alemão Norbert Elias, para ilustrar seu argumento: “A ideologia do gênio está diretamente relacionada a visões idealistas e românticas da arte. Na história da arte moderna, remonta ao Renascimento e aos mestres criadores. Naquele momento, quando o artista assinava uma obra, gerava com isso uma característica de distinção; ele se tornava alguém acima do gênero comum, que fazia uma obra de um belo transcendente que as pessoas comuns não alcançavam. Mas quando Elias fala de Mozart não reassume ou traz a ideologia renascentista, mas mostra como Mozart surgiu na corte em que ele vivia, as adversidades que enfrentou e como conseguiu produzir essa obra de características tão renovadoras, que a tudo influenciou posteriormente. Ele faz uma análise relacional entre a obra, o artista e o meio”. A romantização do artista-gênio, prossegue ele, é implodida com as vanguardas históricas que anunciam o século 20. “Os novos artistas começam a dessacralizar o gênio e a reivindicar a necessidade da obra de manifestarse no contexto da vida cotidiana. Dadaístas, cubistas, surrealistas traziam o objeto mundano para o contexto da obra, que assumia um modo mais performático, ready made. Um iconoclasta absoluto como Marcel Duchamp provocou um nível de estranhamento que se tornou um paradigma em relação à arte contemporânea. Uma visão mais idealista poderia tomá-lo como gênio, mas nunca os que defendiam um olhar mais purista da arte. Com a arte contemporânea, tem-se uma relação com elementos do cotidiano, com a
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CON CAPA TI NEN TE dimensão do corpo, da sexualidade, e vamos deixando de falar em ‘obra de arte’ para falar em manifestação artística, movimento artístico. Abandonamos certas tendências convencionais de lidar com a arte. Isso gera circuitos e redes dentro de um processo novo. Nele, a ideia de gênio tem se inclinado a ser algo arrefecido, não mais evocado ou creditado”, comenta o professor da UFPE. Para o professor de Filosofia da PUC-RJ, crítico de arte e curador do MAM-RJ, Luiz Camillo Osório, a ideia de genialidade tal qual foi postulada por Kant no século 18, configurada por uma “perspectiva de subjetividade original”, diluiu-se ante o novo cenário de produção, fruição e visibilidade artísticas. “Não se decide e nem se pode querer ser um gênio. A genialidade acontece. O problema é que a ideia de gênio terminou se tornando consumida pelo próprio mercado, que fica alimentando a criação de gênios momentâneos, provisórios, de 15 minutos. Sempre foi difícil demarcar a excepcionalidade que caracteriza a dimensão genial, mas hoje tudo tende à banalização, inclusive o que seria ‘genial’. Se todo mundo virar gênio, ninguém o é”, assinala. No contexto do efêmero e da trivialização, como verificar os merecedores de um rótulo que, mesmo revisto, não caduca? “Van Gogh, Rimbaud e Baudelaire são exemplos de artistas que eram reconhecidos entre seus pares, mas cujas obras ficavam à margem do próprio mercado. Hoje, são vistos como gênios. Hélio Oiticica, Andy Warhol, Lygia Clark e Artur Barrio são outros que, de alguma maneira, têm a posteridade garantida com obras que, ao longo do tempo, foram produzindo uma interpretação, uma ativação da própria criação e da própria criatividade no público. Mas a história é necessariamente lenta nessa definição. O artista é o primeiro público da sua obra, porém não se basta. De alguma maneira, tem que disseminá-la e, para isso,vai precisar do acolhimento, da recepção do público e da posteridade. A obra genial é aquela que produz o seu público e esse público vai se renovando com o passar do tempo. Ela tem a capacidade de transcender seu tempo e seu espaço, de despertar no público uma outra obra criativa”, afirma Luiz Camillo Osório. (LV)
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Entrevista
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA “NÃO TEMOS MAIS LUGAR PARA OS GÊNIOS” Professor livre-docente de Teoria
Literária na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Márcio Seligmann-Silva possui formação em História, com mestrado em Letras e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität de Berlim. Prolífico autor, com extensa lista de publicações nos meios acadêmicos, é também tradutor e escritor premiado: seus livros Walter Benjamin: Romantismo e crítica poética (1999) e O local da diferença – ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (2005) venceram, respectivamente, o prêmio Mario de Andrade de ensaio literário da Biblioteca Nacional, em 2000, e o Jabuti de melhor livro de teoria/ crítica literária, em 2006. Autoridade
em romantismo alemão e em Teoria Estética dos séculos 18, 19 e 20, entre outros temas em que atua, ele falou à Continente sobre a noção de “gênio” no âmbito da contemporaneidade. CONTINENTE Você afirma que o conceito do “artista-gênio” segue em reconfiguração, até por conta das novas técnicas de mapeamento do cérebro. Hoje, à luz da História da Arte e da Literatura, que são seus campos de maior atuação, como se enquadraria a noção de “gênio”? MÁRCIO SELIGMANN-SILVA Na verdade, esse conceito de gênio e, mais especificamente, de artistagênio, foi sendo deixado de lado ao longo dos séculos 19 e 20. O auge dessa noção foi a segunda metade do século 18 e início do século seguinte. Essa época coincide com a fundação tanto da Teoria Estética (com Baumgarten e Kant) como a da História da Arte (com Winckelmann). O Romantismo foi o paroxismo desse conceito. Depois, passa-se a falar mais em intuição, criatividade, fantasia ou, em termos da filosofia de Peirce, em abdução. Um termo do qual não conseguimos ainda nos livrar é o de “originalidade”,
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a veneração dos clássicos, ainda dominante na sua época (o final do século 18), com uma valorização da potência “genial” do artista. Se este não podia mais ser visto como simples imitador, restava a ele aprender com as grandes obras a transformar-se ele mesmo em um “original”, digno de admiração. Mas o paradoxo é que esse artista-gênio que se torna um original também será imitado. Portanto, não existe uma obra absolutamente original e a famosa angústia da influência, teorizada por Harold Bloom, é um mal dos artistas até hoje. Essa busca da “originalidade absoluta” é ilusória e reflete, na verdade, angústias do indivíduo moderno e de sua constante crise de identidade. Por mais que em nossa era tenhamos aprendido a valorizar uma série de gêneros e figuras do discurso que desconstroem o culto da originalidade, como o pastiche, a imitação, a ironia, a colagem e que tem relações claras com a noção de “gênio artístico”. Todas essas categorias projetam no artista uma capacidade intelectual (e sensível) que está além da razão e da lógica do tipo cartesiano. Hoje, tentamos perseguir essa capacidade singular dos artistas (incluindo aí os escritores) com o auxílio de máquinas que escaneiam nosso cérebro em funcionamento. A bem da verdade, do que já pude ler dessas pesquisas, não me parece que elas estão aportando novidades, mas apenas confirmando o que já sabíamos com base, justamente nos tratados de estética desde o século 18. A única diferença é que agora associamos àquele saber belos gráficos coloridos de nosso cérebro pulsante. CONTINENTE Um dos seus artigos traz o seguinte pensamento de Kant: “O artista deve descobrir em si a própria originalidade ao admirar a obra do artista-gênio”. Como se encaixaria aí o “gênio contemporâneo”? Um “gênio” seria o criador a partir do qual surgiriam as imitações, releituras ou ressignificações, para usar termos caros aos tempos de hoje? MÁRCIO SELIGMANN-SILVA A questão, para Kant, era como conciliar
“A busca da ‘originalidade absoluta’ é ilusória e reflete angústias do indivíduo moderno e suas crises” mesmo a cópia e a tradução, ainda não nos livramos totalmente desse paradigma e continuamos a valorizar a assim chamada “originalidade” artística. Consideramos um artista original quando ele nos abre novos caminhos para pensar a própria arte. Esse caminho passa a ser frequentado e transforma nossa imagem da própria história da arte e da literatura. Figuras originais, nesse sentido, foram Van Gogh, Picasso, Duchamp, Kafka, Joyce ou o nosso Guimarães Rosa. Eles mudaram seu presente, o futuro e nossa imagem do passado das artes. CONTINENTE No contexto da criação literária atual, incluindo aí a profusão de novos autores e mecanismos de recepção/fruição, como os e-books, há espaço para mentes geniais ou para uma concreta originalidade?
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA No nosso universo da hiperinformação e da hipermnésia, ou seja, de uma memória gigantesca que permite que diferentes gêneros, estilos e modas convivam paralelamente, tornou-se difícil de se estabelecer quem seriam esses “gênios”, ou artistas originais que estariam apontando para novas direções. De certa maneira, podemos pensar que, apesar de ainda tendermos a pensar com uma cabeça romântica e a valorizar o artista “original”, essa categoria já se esgotou ou está se esgotando. Ela foi esmagada pela revolução midiática. Mesmo a noção de autoria entrou em crise: quem é o autor de uma fotografia, por exemplo: quem clica, quem a manipula eletronicamente, o engenheiro que inventou o software ou o que criou o dispositivo captador de imagens? Estamos falando de milhares de técnicos e de técnicas, vinculadas à sintetização dessas imagens. Também textos, ao entrarem na web, são imediatamente engolidos, cortados, reproduzidos e transformados. Temos que desenvolver conceitos para lidar com essa nova produção. Nossa era exige que pensemos a arte na sua profunda relação com a técnica e com a ciência. CONTINENTE Para terminar: na sua opinião, que escritores mereceram/ merecem o epíteto de “gênio”? Por quê? MÁRCIO SELIGMANN-SILVA Como disse, hoje não podemos ver alguém que consiga elevar-se a tal ponto, no cenário cultural, para ser chamado de “gênio”, de um “original”. A massificação da produção das artes gera uma democratização dessa capacidade de se abrir sendas. Os movimentos são agora mais sutis. Não temos mais lugar para o “artistagênio” que, de uma tacada, muda os rumos da sua arte. Da mesma forma, nas ciências, também o saber se dispersa em uma enorme cadeia de produtores. Estamos em uma era pós-autoral e, portanto, para o bem e para o mal, não temos mais lugar para os gênios. (LV)
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SONHOS Apropriações daquilo que é intangível e tão presente Artistas contam como os estados de inconsciência contribuem à criação, enquanto psicólogo afirma a relevância desses estados para a realização artística
Em A interpretação dos sonhos,
publicado em 1900, Sigmund Freud propunha uma revisão de toda a literatura disponível acerca dos devaneios oníricos que invadem a mente durante o sono e oferecia o inédito enfoque de analisá-los à luz da incipiente ciência que ele havia fundado. “Eu me disponho a
mostrar que os sonhos são capazes de interpretação”, escreveu o neurologista e pai da psicanálise no segundo capítulo da obra, cujas primeiras 600 cópias demoraram oito anos para serem vendidas. Contrapondo-se à quase totalidade de avaliações existentes à época em que compilou os escritos no livro, ele defendia que os sonhos
iam além de aspectos demoníacos ou divinos atribuídos a eles desde a antiguidade, ou de meras profecias de um futuro ainda obnubilado pelo inconsciente, e que neles havia, sim, material para colher significados. “Fui forçado a perceber que aqui, mais uma vez, temos um daqueles não tão incomuns casos em que uma antiga e teimosa crença popular parece estar mais perto da verdade do que a opinião da ciência moderna. Devo insistir que o sonho, de verdade, possui um significado e que é possível um método científico de interpretá-lo”, reforçou Freud, mais interessado nas narrativas que seus pacientes faziam dos sonhos do que em quaisquer resquícios deles. Ainda assim, embora o foco de suas descobertas fossem as neuroses desveladas pelos sonhos e não eles próprios, é certo que seu projeto de investigação os inseriu em um outro patamar. Se não para todos, pelo menos
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para os que deles se apropriam para criar. A artista visual baiana Virgínia de Medeiros define como um “grande work in progress” todas as suas incursões – sejam elas instalações, vídeos ou fotografias de moradores de ruas recriadas a partir de como eles gostariam de se ver retratados, a exemplo de Fábula do olhar, obra de 2013, exposta recentemente no Recife, na mostra Cães sem plumas. “Vou colhendo relatos e catalogando tudo em um diário de bordo que me acompanha. Escrevo, me aproprio de outros textos, objetos, retratos, dos resultados das filmagens. Quando engato num processo criativo, é como se fosse uma espécie de portal”, vislumbra. Para ela, esse caminho incorpora também tudo aquilo que não é tangível, mas que se sente quando o corpo descansa e a mente vagueia. “Estabeleço uma conexão muito sutil quando estou imersa nesse processo. Quando adentro o mundo dos sonhos,
me vejo sempre em situações que o projeto me traz. O que acontece? Decido coisas pelo sonho. Meus sonhos antecipam momentos que vou vivenciar. Como tenho o hábito de anotá-los, comecei a ver que eles passavam a fazer parte da realidade. Tem uma passagem em que Gilberto Gil fala de uma ‘paranormalidade’, que seria algo como o milagre de uma impessoalidade ou transpessoalidade que você atinge quando cria. Acredito mesmo que é quase uma paranormalidade. Entre os sonhos e o processo de vivência que desenvolvo e me toma por completo, sei que existe uma comunicação sutil. E vou seguindo os sinais”, revela Virgínia. Há os que trafegam na via oposta. A compositora carioca Bárbara Eugênia vem metamorfoseando o jeito de incitar a criatividade, mas longe de quaisquer influências das fantasias ora incoerentes, ora utópicas dos profundos estágios do sono. “Estou começando a experimentar novas formas no processo da escrita e na criação das melodias. Meus horizontes criativos estão se ampliando, inclusive no ato de cantar, pois tenho buscado explorar novas nuances da voz, vozes dentro da voz. Acho que é uma segurança que foi sendo adquirida com o trabalho. Mas, para a inspiração em si, não trago nada dos sonhos. Sei que sonho bastante, sim, mas não me lembro de nada.” Independentemente das memórias (ou da ausência delas), os sonhos desempenham função primordial na criação, na opinião do psicólogo e presidente do Conselho Regional de Psicologia/PE Hermes Azevedo. “Muitos autores, pintores, escritores e cientistas afirmam que foi durante seus sonos e sonhos que processos de criação foram desencadeados, ideias inovadoras foram-lhes reveladas e apareceram soluções para grandes problemas. Isso porque, de uma forma geral, sonhos são fragmentos de situações conflituosas e/ ou inacabadas da história e do dia a dia do sonhador. Não raro, ajudam-no a finalizar tais situações que o afligem, pois as preocupações e defesas naturalmente erguidas para o enfrentamento da rotina diária se ‘afrouxam’ e cedem espaço a um pensar mais livre das regras, normas e demandas sociais mais rígidas”, afirma. Tal relaxamento tem lastros fisiológicos. O sonho é o produto da fase REM do sono – REM significa “rapid eye
movement”, ou movimento rápido dos olhos, um dos sintomas físicos desse estágio em que o cérebro corre, enquanto o corpo repousa. Quando ele acontece, a serotonina, substância neuromoduladora responsável pelo controle da memória, se ausenta. Isso justifica, por exemplo, a tendência a recordar apenas os trechos finais das maratonas oníricas, pois é na derradeira fase do REM em que reaparece a serotonina. Entre as áreas do cérebro afetadas por esse mecanismo tão fantástico quanto misterioso, estão o córtex occipital, o pons e o sistema límbico – este último composto pelo tálamo, pelo hipocampo e pelas amígdalas, que, por sua vez, armazenam as sensações de medo, ansiedade e as memórias afetivas e emocionais. Em 2004, em artigo publicado no Annals of neurology da Associação Americana de Neurologia, o neurologista Cláudio Bassetti, da Universidade Hospital de Zurique, na Suíça, descreveu o caso de uma senhora de 73 anos que, após um derrame, perdeu a habilidade de sonhar. Classificado como Síndrome Charcot-Willbrand, que denota a perda de sonhos como consequência de um dano cerebral em uma área específica (e chamada assim por causa de dois proeminentes neurologistas do século 19, cujas pesquisas teóricas foram revisadas por Freud em A interpretação dos sonhos), o episódio trouxe o pioneirismo de associar os sonhos à região do lobo occipital, localizada na parte traseira do cérebro e severamente prejudicada na paciente em questão. O pintor recifense Bruno Vilela tem certeza de que sonhar é elemento indispensável em seu cotidiano criativo. “Acordo e anoto as sensações, as imagens que me vieram, as cores. Tento pintar o que vi e vivenciei, pois o sonho é um mergulho no inconsciente”, resume. Ele compara os insights derivados dos sonhos com os estados alterados de consciência oriundos do consumo de bebidas alcóolicas ou da imersão meditativa provocada pela audição repetida de um álbum – em seu caso, uma caixa de Miles Davis: “Isso me joga, hoje, dentro de mim mesmo, me ajuda a evocar os ancestrais, os espíritos, as entidades da natureza, da umbanda. Quando entro nesse lugar sagrado, me concentro naquilo que estou criando e esqueço as contas a pagar”. (LV)
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