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Bill Halley (com a guitarra) e Elvis Presley, na década de 50
Permanência de um canto primal Os adultos rejeitam o rock por considerá-lo adolescente, espécie de Peter Pan musical, mas o gênero chegou à maturidade com Dylan, Beatles e outros José Teles
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ntre os milhões de discos existentes na gargantuesca Biblioteca do Congresso Americano há um 78 rpm com uma música chamada “Run Old Jeremiah”, que poderia bem ser reconhecida como o marco zero do Rock’n’Roll. Um canto e resposta, com uma batida acelerada, e cuja letra diz: “O my Lord/ O Lord/ Well, well, well/ I’ve gotta rock/ You gotta rock/ Wah wah ho/ Wah wah wah ho”. Parece fazer parte do onomatopaico repertório de um dos pais do rock, o esfuziante Little Richard. No entanto, “Run Old Jeremiah” é cantada por um grupo anônimo de negros, e foi registrada, numa área rural do Mississipi, pelos pesquisadores John e Alan Lomax, em 1934. É anterior 20 anos, pois, ao suposto surgimento oficial do Rock’n’Roll. Oficialmente ele teria sido criado em 1954, quando Elvis Presley, no intervalo de uma sessão de gravação na Sun Records, em Memphis, repentinamente, cantou “That’s All Right”, de Arthur Crudup, imitando os trejeitos e maneirismos vocais dos bluesmen. O guitarrista Scotty Moore, e o baixista Bill Black entraram na brincadeira. Na cabine de gravação, Sam Phillips, produtor e dono da Sun, entusiasmado com o que ouviu, pediu que eles repetissem, agora com o tape rodando. O episódio aconteceu em 5 de julho de 1954, data também fixada como a do nascimento do Rock’n’Roll, por ter sido, a “primeira” gravação do ex-chofer de caminhão Elvis Presley, o eterno Rei do Rock. Bem, não foi exatamente a primeira. Ele já havia gravado quatro faixas na mesma Sun Records. Duas por conta própria (em junho de 1953), e as demais fazendo um teste (em janeiro de 1954). Elvis tampouco foi o primeiro branquelo a soar como um preto. Sam Phillips vivia comentando que se encontrasse um branco que cantasse igual a um negro ficaria milionário. Encontrou alguém com este dom três anos antes de Elvis Aaron Presley. Seu nome: Harmonica Frank. Nascido Frank Floyd, em 1908, em Toccopola, Mississipi (pertinho de Tupelo, cidade natal de Elvis Presley) e falecido em 1973, Harmonica Frank hoje é uma nota no rodapé de página das enciclopédias de música popular (na maioria das vezes, nem isso). Tornou-se um pouco mais conhecido depois que o conceituado crítico americano Greil Marcus escreveu um ensaio sobre ele, no livro Mistery Train (considerado um clássico na literatura do Rock’n’Roll em particular, e da música americana no geral). Continente setembro 2004
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CAPA Harmonica Frank gravou pouco: cinco faixas na Sun e mais umas oito na Chess, de Chicago (em 1958, ele lançou um compacto independente). A música de Frank Floyd continha todos os principais ingredientes do Rock’n’Roll: “Harmonica Frank foi talvez o primeiro contorcionista vocal – tal Buddy Holly, Clarence Frogman Henry e Bob Dylan – cuja missão na vida parecia ser a destruição intencional da canção popular e do pacato e cômodo modo de vida que ela representava” (Mistery Train, Greil Marcus). Escutando-se “Howlin’ Tomcat”, de 1955, tem-se a nítida impressão de que é alguma canção perdida de Bob Dylan na época de “The Times They Are A-Changing”, de 1964. A mesma voz rouca, o violão e a gaita trafegando na contramão do canto limpo e comportado da época. Harmonica Frank, no entanto, não tinha a boa aparência, sex-appeal, nem a juventude de Elvis Presley. Começou a gravar aos 40 anos, a maior parte dos quais vividos na estrada. Era o que os americanos chamavam um hobo (aqueles vagabundos que se vêem nos filmes, que cruzam o país pegando carona em vagões de trem). Mas, embora tenha antecedido a forma de interpretar de Elvis ou Dylan, também não foi ele o inventor do rock. O gênero é uma colcha de retalhos de vários estilos musicais americanos, swing, boogie-woogie, country and western e, sobretudo o blues. Porém, há mais que isso. O espírito libertário do Rock’n’Roll é fruto da Guerra Fria, e conseqüente paranóia dos americanos pela constante ameaça da bomba pairando sobre suas cabeças. A incerteza sobre o futuro gerou na sociedade dos EUA o que Norman Mailer, num ensaio brilhante, chamou de “o negro branco”. Mailer, grosso modo, apontava que a euforia e urgência do jazz só poderiam ter surgido entre os negros (assim como o maxixe e as diversas manifestações do samba brasileiro). Comendo da banda podre de uma sociedade racista, o negro não tinha certeza de que estaria vivo no dia seguinte, daí o hedonismo que culminou na extrema liberdade estética do bebop de Charlie Parker e do rock lisérgico de Jimi Hendrix. O branco ameaçado pela destruição iminente do planeta, tal e qual o negro, passou a viver para o aqui e agora. Daí surgiram os beatniks, na segunda metade dos anos 40, que deu no hipster, dos anos 50, que desaguou no hippie dos 60. Enfim, sem a bomba, talvez gerações diferentes houvessem continuado compartilhando por mais alguns anos a mesma música e modus vivendi dos pais e tios. Até tornar-se apenas rock, em meados dos anos 60, o que tornava uma canção Rock’n’Roll era a forma como a cantavam (assim como se tornava bossa-nova um samba-canção interpretado por João Gilberto). Uma prova disto são alguns rocks de Elvis Presley. O compacto que iniciou sua carreira profissional, lançado pela Sun, em 19 de julho de 1954, traz duas músicas gravadas originalmente na década de 40. “That’s All Right” saiu em disco, com seu autor, Arthur “Bigboy” Crudup em 1946, mesmo ano de “Blue Moon of Kentucky” (o lado B), na voz de Bill Monroe. Já “Good Rockin Universal Music/Divulgação
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Jimi Hendrix, gênio de guitarra incendiária
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Neal Preston/Corbis
Tonight” foi sucesso regional em 1947, com Roy Brown. Ou seja, o que se convencionou rotular de Rock’n’Roll existia bem antes do seu futuro rei passar a cantá-lo. Um derradeiro, e definitivo, exemplo. “Mistery Train”, considerada a melhor gravação de Elvis Presley na Sun Records, foi disco da Carter Family, em 1930 (cinco anos antes de Elvis nascer).
Led Zeppelin: rock pesado
Coroa rebelde – Apesar de passado meio século, desde que os requebros de Elvis Presley foram censurados na TV dos EUA, e 34 anos do fim dos Beatles, o rock ainda é visto com reservas, tanto por pessoas da mesma faixa etária que ele, ou por jovens intelectuais conservadores, que ainda o vêem como uma antimúsica barulhenta, vulgar, e que põe em perigo a cultura autóctone dos seus países. Isto, da China comunista até o Brasil, sobretudo na época da ditadura militar, quando músicos do porte de Elis Regina ou Gilberto Gil saíram pelas ruas do Rio, em passeata, contra a guitarra elétrica, símbolo do rock invasor e alienante. Baden Powell chegou a estigmatizar o rock como “a Aids da música”. E o rock cinqüentão faz por onde provocar cismas em pleno século 21. Ao contrário de muitos outros gêneros e subgêneros, é uma música que nunca parou de desenvolver-se, de absorver influências e expandir-se. Como um vírus poderoso, ele se infiltrou em todos os recantos do planeta, de forma que, já nos anos 70, no Brasil, elementos de rock podiam ser detectados tanto na música de Milton Nascimento (“Fé Cega, Faca Amolada”, um clássico da MPB, é um rock, pois não?), quanto na do sambista-maior Paulinho da Viola (que se vale das ferramentas do rock, baixo elétrico, bateria, e até guitarras ao lado de cavaquinho, violão e repenique, sem perder a pureza jamais). O que provavelmente leva a grande maioria dos adultos a afirmar que detesta rock (embora o consuma inadvertidamente), é o gênero ser eternamente visto como uma manifestação cultural adolescente, uma espécie de Peter Pan, que se recusa a crescer. Quando um desses adultos ouve no rádio do carro Gal Costa cantando “Negro Amor”, ou Geraldo Azevedo, “O Amanhã é tão Distante”, provavelmente não se dá conta de que essas duas canções são de Bob Dylan, um dos responsáveis pelo rock chegar à idade adulta. “Negro Amor” é Continente setembro 2004
CAPA versão de “It’s all Over Now, Baby Blue”, e “O Amanhã é tão Distante” no original chama-se “Tomorrow is a Long Time”. A primeira é de 1965, a segunda, de 1963. Dez anos depois de Elvis Presley gravar “That’s All Right”, os Beatles invadiram os Estados Unidos e, em seguida, o resto do mundo. Se, no início, sua música celebrava a “adolescidade, idade de pedra e paz” (apud Caetano Veloso em “Acrílico”), em 1965, o quarteto inglês rumava para o experimentalismo de estúdio, e de linguagem musical. A partir do álbum Rubber Soul o rock perderia definitivamente o and roll. Composições como “In My Life” ou “Norwegian Wood” não eram exatamente o tipo de canção feita para acalmar adolescentes com problemas de desordem hormonal. “Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan, lançada no mesmo ano de “Rubber Soul”, punha uma pedra sobre qualquer resquício de juvenilidade no rock. Porém, os (como diria Nelson Rodrigues) idiotas da obje-
tividade, só enxergavam nele a guitarra elétrica e os cabelos longos dos intérpretes (por ironia, Edu Lobo, Elis Regina e Gilberto Gil, que encabeçaram a tal passeata contra a guitarra elétrica, estariam servindose do odiado instrumento poucos anos mais tarde). 1967 foi tão fundamental para o rock quanto o emblemático 1954. Com o lançamento de Sargent Pepper’s Lonely Heart Club Band, os Beatles ensinaram que não havia limites para a imaginação. No rastro deste álbummonolito negro da cultura pop vieram o rock psicodélico, o progressivo, o jazz-rock, (a reação dialética do) punk, a música disco, o techno, o DJ e, reafirmando a aldeia global preconizada por McLuhan, a música juju e a african beat nigerianas, o reggae, o tropicalismo. Tudo isto e demais sons e ruídos que zoam na Terra atualmente são aparentados, trazem na sua formação traços genéticos daquele canto primal: “O my Lord/ O Lord/ Well, well, well/ I’ve gotta rock/ You gotta rock/ Wah wah ho/ Wah wah wah ho”. •
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Beatles, melhor banda de rock de todos os tempos
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Lynn Goldsmith/Corbis
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O Rock dá a volta no relógio O rock, como fenômeno musical e, sobretudo, comportamental, dá sinais de esgotamento, mas sua trajetória tem importância inegável para a história do século 20 Daniel Piza
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O rock chegou fora de forma aos 50 anos. Desde que ele arrebatou as rádios e as vitrolas com o primeiro compacto de Elvis Presley, em julho de 1954, nunca teve o espaço tão disputado quanto agora. A juventude passa muito mais tempo chacoalhando ao ritmo hipnótico da música eletrônica e venerando DJs que apenas eventualmente usam o rock em suas colagens e distorções; a TV está dominada por clips de um pop pasteurizado, de sub-Madonnas que chamam mais a atenção pelo swing do corpo que da música; o hip hop é a voz da comunidade negra e, devidamente amaciado, cai no gosto da classe média branca; no Brasil, outros gêneros como o sertanejo (ou popnejo) e o funk (dos mais grosseiros) também dividem a lista dos sucessos. O rock deixou de ser mainstream, especialmente a partir dos anos 90: não é mais a fonte central de hits e ídolos; não é mais quem dita os comportamentos. Um fã do rock diria então: o rock nunca vai morrer; e se ele saiu da moda, tanto melhor. Mas o fato é que, mesmo “alternativas”, as bandas de rock diminuem em qualidade média também. Não por acaso alguns dos melhores discos que ainda podem ser chamados de Rock’n’Roll – ou seja, uma mistura de batida e balada, em que a articulação vigorosa entre ritmo e melodia predomina sobre a harmonia – são hoje feitos por veteranos, por nomes como Lou Reed, David Bowie e Neil Young,
Ensaio dos Rolling Stones. Nos posters, Elvis e Buddy Holly
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CAPA Bob Dylan, em desenho psicodélico de Milton Glaser
Imagens: Reprodução
que já estão na estrada faz tempo. E que grandes ídolos do passado, como Paul McCartney e Rolling Stones, continuam a atrair multidões – para ouvir seus “clássicos”, não suas composições mais recentes. Ou que exroqueiros como Elvis Costello (“Painted from Memory”) e Tom Waits (“Alice”) estejam no auge justamente por terem se aproximado do jazz e da grande canção americana da primeira metade do século 20, o universo de Cole Porter, Gershwin e tantos mais. É claro que há boa música de rock, ou pop-rock, sendo feita por bandas novíssimas como White Stripes, Strokes, The Hives, Yeah Yeah Yeahs e Franz Ferdinand; por outras que já surgiram há algum tempo, o britpop (pop britânico) de Oasis, Blur, Coldplay; e por gente que usa o rock como um de seus elementos de estilo, a exemplo de Beck, Radiohead e Ben Harper. Mas repare no próprio nome das bandas e escute suas canções mais conhecidas: as referências à era de ouro do rock – a Beatles e, digamos, todos aqueles que dominaram o mercado musical entre 1962 e 1972 – são muitas e óbvias. Nem mesmo com o poprock, já inferior, dos anos 80, de gente como U2, REM, Smiths, Prince e Nick Cave, todos ainda sobrevivendo, aquela atual geração pode ser comparada em frescor e frisson. A única exceção é o Radiohead, cujo último CD Hail to the Thief tem a sofisticação e a inquietude de um Sargent Pepper’s – mas justamente por unir experimentalismo eletrônico, melodia triste e riffs viris. Não é difícil determinar a causa. O rock surgido com Elvis, que era o primeiro a dizer que não o inventou, veio do rhythm & blues dos negros, com pitada do country dos brancos e, assim, pegou na veia de todo o mundo – especialmente da juventude que naquele pós-guerra pródigo buscava formas mais espontâneas e informais de existência, em oposição ao moralismo e ao puritanismo de seus pais. Como uma espécie de jazz acelerado, tomou a América nos anos 50 como seu antecessor a tomara nos anos 20, com três diferenças essenciais: 1) seu impacto era sobretudo físico, porque o ritmo marcado e veloz esquenta o sangue e dá compulsão de mexer e cantar (ou rebolar e gritar, twist and shout); 2) esse impacto foi amplificado por uma indústria fonográfica e radiofônica de escala muito maior e, principalmente, pela ascensão da TV como veículo número um da sociedade (Elvis, um branco bonito com voz de negro, ia ao programa de Ed Sullivan e requebrava a pélvis como num ato sexual, a tal ponto que, no começo, só o filmavam da cintura para cima); 3) a América de depois da Segunda Guerra Mundial (1939-45) se consolidou como a maior potência econômica e cultural do globo cada vez mais globalizado. O rock, portanto, surgiu num contexto histórico e comportamental único; se fez tanto sucesso, foi porque trouxe algo novo e ao mesmo tempo imediato. À medida que a comunicação de massa adquiria alcance e poder, trazendo a força do instantâneo que modificaria as modas e as artes (pense na pop art de Andy Warhol fazendo o elogio – que depois pretendeu irônico – da repetição, dos ícones de consumo e celebridades), o rock cresceu e virou o negócio hegemônico das gravadoras. A partir de 1962, quando os Beatles emplacaram com o refrão She loves you/ yeah, yeah, yeah e quase puseram de escanteio astros como Frank Sinatra (que por um tempo se tornaria música de velho, não de jovem – um tempo que felizmente já passou, pois Sinatra hoje é eterno), o rock deu as cartas quase sozinho. Janis Joplin: voz rascante e alucinada
É impressionante, porém, pensar em como se transformou já em seu primeiro decênio. Como fenômeno histórico, acompanhou os tempos e fez coro com a contracultura (liberação sexual, movimento pacifista, exaltação juvenil): já em 1967 os Beatles trocaram o estilo pseudo-ingênuo dos álbuns iniciais por um bem mais elaborado e ousado, cheio de sons dissonantes, imagens surreais e crítica social, como faria também Bob Dylan, vindo do popular folk americano. Grupos mais agressivos, com uma sonoridade e uma atitude muito marcantes, como os Rolling Stones, foram tomando espaço. Janis Joplin gravou o standard “Summertime” em versão rascante e alucinada. Jimi Hendrix, vindo do blues, deu em 1970 o famoso show em Berkeley, fazendo literalmente o diabo com a guitarra. (A ascensão da guitarra, por sinal, é parte integrante da ascensão do rock. Nada melhor para encantar agredindo ou agredir encantando do que esse instrumento elétrico de seis cordas que se encaixa ao corpo como outro corpo.) Então o rock se multiplicou ou se dividiu: vieram os movimentos – punk, metal, progressivo etc. – e, embora quase toda banda de rock “pesado” tenha feito algumas baladas lentas e lindas ou mesmo canções violentas, mas densas (Led Zeppelin, The Doors, Pink Floyd, Velvet Underground, The Clash), a sutileza foi sumindo do mapa. Nos anos 80 é que se começou a falar mais ostensivamente em pop para designar a música comercial pós-rock, normalmente estruturada em bandas jovens compostas de guitarra, bateria, baixo e vocal, que nasciam como cogumelos em garagens do mundo inteiro. Alguns grupos, como Queen e The Who, que recorreram até à ópera, reacenderam o rock e sua popularidade. Mas o pop rock já então não era o mesmo: estava adocicado, industrializado, no topo do establishment da indústria do entretenimento, ao lado dos filmes de Hollywood. Mesmo no Brasil, o chamado “roquinho nacional” – Paralamas, Titãs, Barão Vermelho, Lulu Santos – parecia mais uma mistura de pop americano com MPB. Nos anos 90, apesar de sucessos como o Nirvana (cujo vocalista, Kurt Cobain, morreu em 1994 como morriam os ídolos de rock antigamente, cometendo suicídio depois de deixar um bilhete em que se queixava de não poder recuperar o paraíso sensorial da infância), o rock saiu do primeiro plano. De certo modo, o que dizia a música do bom Neil Young, “Hey, hey, my, my/ Rock’n’Roll will never die”, é verdadeiro: o rock nunca vai morrer, porque será sempre uma referência de juventude e porque já deixou um bom número de canções – de entrelaçamentos de letras e notas que podem captar um espírito de época como numa polaroid afetiva e injetar um amor pela vida intensa, em contraposição ao futuro sempre adiado em que tantas pessoas sobrevivem. Mas, se você considerar o barulho que fez e a quantidade de “artistas” que lançou num semestre para sumir no seguinte, muito tempo da vida do rock foi vivido em vão, o que é uma contradição e tanto. Rock around the clock... •
Kurt Cobain teve destino trágico, como muitos ídolos do rock
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O som das tribos O Rock’n’ Roll entrou no ano 2000 como música universal, mas sem deixar margem à rebeldia. Mas, aqui e acolá, há bolsões de criatividade
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m mundo até então preto e branco que passou a ser colorido”, assim Keith Richards sintetiza o que significou o surgimento do Rock’n’Roll na vida dele, e de milhões de adolescentes, em meados dos anos 50. Claro que o mundo não passou a ser policromático de uma hora para outra. Desde a segunda metade da década de 40, novas tonalidades foram adicionando-se até chegarem a essa coloração final. A turma da geração beat, por exemplo, carregou nas tintas. Outsiders por opção, espécies de novos românticos, os beats adotaram padrões da cultura negra americana (o jive talking, ou gíria negra, e o bebop, entre outras coisas), em busca de um vigor e honestidade estética que não existiam mais na cultura branca, vítima de um comercialismo desvairado. O establishment (termo usado ad nauseam até os anos 70) não tardou a reprocessar a rebeldia beat, tornando-a mais um produto de consumo. Filmes, livros baratos, serviços de pronta-entrega (sic) para festinhas temáticas beat, e cafés para beats de fim-de-semana surgiram quando a beat generation ganhou a mídia e virou mais um modismo nos EUA. Até os anos 60 os beat ainda eram produtos de consumo. Vide o seriado televisivo Route 66 (aqui, Rota 66), que banalizava o clássico On the Road, de Jack Kerouac.
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CAPA Platéia do último show dos Beatles, no Shea Stadium, USA, 1965
Fundamental para a mudança de comportamento da juventude americana (e por tabela, mundial) foi a opulência econômica dos EUA do pós-guerra. Os adolescentes entraram para o clube dos consumidores. Passaram a ter permissão de chegar mais tarde em casa e dirigir o automóveis do pai no sábado à noite. Iam dos prom (bailes) para as lanchonetes de fast-food, onde degustavam os hambúrgueres e refrigerantes sem precisar sair do carro. O drive-in disseminou-se no país, a partir da Califórnia. Careciam, no entanto de uma trilha sonora que refletisse seu novo modus vivendi. A música pop que consumiam era família demais. Não tinha distinção de faixa etária. Pais, filhos, tios, avós, todos “curtiam os mesmos sons”. Isto começou a acabar em 1955, quando o já trintão Bill Halley abriu uma fenda entre as gerações com o megasucesso “Rock Around the Clock”, música-tema do filmes Sementes da Violência (Blackboard Jungle), e Ao Balanço das Horas (Rock Around the Clock). Fenda que seria alargada, no ano seguinte, com “Heartbreak Hotel”, o primeiro sucesso nacional de Elvis Presley. “Heartbreak Hotel” alcançou o topo do paradão da Billboard, quando as músicas mais pedidas nas jukeboxes americanas eram “Memory Are Made of This”, com Dean Martin, “Jukebox Baby”, com Perry Como, e “Lisboa Antiqua”, com a orquestra de Nelson Riddle. Convenhamos, este não era o fundo musical ideal para garotos e garotas com “grana” no bolso, o pé no acelerador e a adrenalina saindo pelo ladrão. Um legítimo white trash (termo empregado para brancos pobres do sul dos EUA), Elvis Presley não tinha cultura nem educação formais suficientes para se regular pelos padrões de bom gosto da afluente classe média branca. Roupas escandalosamente coloridas, costeletas, cabelos mais longos do que se permitia ao sexo masculino, e com performances de um apelo erótico inédito em um ídolo pop. Foi o sujeito certo na hora certa. Sua era já fora anunciada pelos “profetas” James Dean, com topete caindo na testa e eterno ar de tédio, e Marlon Brando, que fez do jeans e t-shirt uma resposta da Continente setembro 2004
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CAPA Sid Vicious, do Sex Pistols: punk rock
juventude aos ternos e gravatas dos “coroas”. Elvis (como aponta o citado Greil Marcus no livro Mistery Train) punha em prática uma liberdade que, até então, não passava de um fantasia dentro do sonho americano. (É certo que nunca passou de uma fantasia. Quatro anos mais tarde o cantor estaria totalmente enquadrado pelo sistema.) Adolescente virou uma marca. Passou-se a produzir exclusivamente para este público consumidor. Da erupção inicial com Elvis Presley e a primeira geração de roqueiros dos anos 50, os laivos de rebeldia foram acontecendo periodicamente, e indefectivelmente sendo absorvidos pelo sistema. Os jovens (um termo que passou a ser usado nos anos 60, marcando uma faixa etéria que ia da adolescência aos 20 e poucos anos) estavam irremediavelmente entregues ao Rock’n’Roll, seu passatempo preferido. Entenda-se por Rock’n’Roll um amálgama de vários estilos musicais, em contínuo desenvolvimento. O elo entre esses estilos é o direcionamento para o consumidor jovem (classificação hoje estendida até os 35 anos). Nos primeiros anos da década de 60, o rock, unindo-se à música folk, assumia uma nova forma de rebeldia. Não se pretendia mais criar um universo alternativo ao dos adultos, mas transformar o mundo. Bob Dylan é o nome mais conhecido dessa fase. Logo em seguida, os Beatles, sem o cerebralismo dylaniano, foram catalisadores da maior mudança de hábitos e costumes acontecida no século passado. No rastro dos Beatles surgiram dezenas de minirrevoluções: estéticas, comportamentais etc. Curioso é que os roqueiros insurgiam-se contra os pais e a sociedade, mas nunca contra a indústria que fazia de sua revolta objeto de consumo, transformando rebeldia em estilo. Desta regra não escapou nenhuma manifestação roqueira: hippies, punks, góticos, todos viraram objeto de consumo. Os músicos até chegaram a ter um certo domínio sobre a indústria, nos anos 60. Por algum tempo estiveram no controle dos estúdios, impondo sua música à indústria. As cifras, no entanto, soaram mais alto do que os decibéis dos amplificadores. O rock tornou-se um negócio muito importante para ser deixado aos roqueiros. Em The Sociology of Rock, o jornalista e sociólogo Simon Frith cita estatísticas de 1974. Naquele ano, a indústria fonográfica americana faturava US$4 bilhões. A música, ou seja, o rock, era o principal lazer da juventude, responsável por 80% do consumo de discos. Em 1955, produziram-se 60 milhões de discos. Duas décadas depois, estes números chegaram a 160 milhões. Depois que Michael Jackson bateu recordes com 25 milhões de cópias vendidas do álbum Thriller, não dava mais para permitir experiências que não resultassem em retorno rápido. E mais, as diversas indústrias de consumo passaram a trabalhar em conjunto (surgiram os megaconglomerados de lazer, que vendem música, filmes e livros). O Rock’n’Roll entrou no ano 2000 como música universal, mas sem deixar margem à rebeldia. Nos principais mercados consumidores de disco, a música da vez vem em ondas como o mar, na grande maioria, propagadas pela indústria. Aqui, acolá, há bolsões de criatividade. Com a pulverização do mercado discográfico, patrocinada pela Internet, pela pirataria, e pelas facilidades tecnológicas, o rock volta, ainda que timidamente, a ser autoral, a desafiar limites, a manter a integridade artística, mas é cada vez menos fenômeno de massas. Na aldeia global do som nas caixas, cada tribo tem seus hábitos de consumo particulares, e curte a música que tem a ver com o que pensa, gosta e é. • (JT)
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CAPA
A trilha da contracultura
Ao lado, símbolo do flower power Abaixo, folha de cannabis sativa, a maconha
Imagens: Reprodução
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rock foi a trilha sonora da contracultura, que se insurgiu contra costumes e conceitos vistos pelos jovens como superados. A pílula anticoncepcional liberou as mulheres para o sexo não procriativo. A minissaia simbolizava a nova liberdade feminina. O uso de drogas “leves” como a maconha e mais “pesadas”como o LSD influíram num comportamento mais pacífico e contemplativo. Surgiam os hippies, cuja filosofia de “paz e amor” levava também à dissolução da família tradicional, integrando-a em comunidades rurais de economia comunista. Tudo era de todos, inclusive os parceiros sexuais. Os hiperasseados norte-americanos, que usavam desodorante até nas partes pudendas, passaram a abominar o banho, a fim de sentir o próprio cheiro. Os homens deixaram os cabelos e as barbas crescerem, começaram a usar roupas coloridas, colares, braceletes e brincos. Surgiu a moda unisex. A auto-estima cresceu entre os negros, com o slogan Black is Beautiful. Era o black power ao lado do flower power. Orientalismo, macrobiótica, naturalismo se disseminaram entre os jovens. E a manifestação ruidosa de festivais como o de Woodstock, deixou mitos jovens com a ilusão de que iam mudar o mundo. Tudo em vão. Quase todas as manifestações da contracultura foram incorporadas pelo consumo e a rotina do tradicional se reimpôs. Foi quando John Lennon anunciou: The dream is over. •
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