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CAPA
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REVOLUÇÃO DE 1817 O ano em que o Brasil nasceu Aos 200 anos do levante que durou pouco mais de dois meses, estudiosos apontam a relevância do curto episódio, abafado pela historiografia oficial, mas fundamental para se entender o impulso democrático que mobilizava as gentes que viviam na província de Pernambuco TEXTO Luciana Veras
Pernambucanos, estais tranquilos, apareceis na capital, o povo está contente, já não há distinção entre brasileiros e europeus, todos se conhecem irmãos, descendentes da mesma origem, habitantes do mesmo país, professores da mesma religião. Um Governo Provisório iluminado, escolhido entre todas as ordens do estado, preside a vossa felicidade; confiai no seu zelo e no seu patriotismo. A providência que dirigiu a obra, a levará ao termo. Vós vereis consolidar-se a vossa fortuna, vós sereis livres do peso de enormes tributos que gravam sobre vós; o vosso e nosso país, subirá ao ponto de grandeza que há muito o espera e vós colhereis o fruto dos trabalhos e do zelo dos vossos cidadãos. Ajudai-os com os vossos conselhos, eles serão ouvidos; com os vossos braços, a pátria espera por eles; a vossa aplicação à agricultura, uma nação rica e uma nação poderosa. A pátria é a nossa mãe comum, vós sois seus olhos, sois descendentes dos valerosos lusos, sois portugueses, sois americanos, sois brasileiros, sois pernambucanos. Proclamação do Governo Provisório de Pernambuco, escrita pelo padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro.
Ufanistas e acolhedoras, as palavras transcritas ao lado foram escritas há dois séculos, impressas e divulgadas à população de Pernambuco como parte de uma carta de proclamação, a estabelecer os preceitos pelos quais se estruturava um governo inédito nos tempos de um Brasil colônia. Lidas em voz alta pelas ruas do Recife, ratificavam a insurgência de uma província que se revelava imersa no espírito do tempo, atravessada pelos ideais de independência e liberdade, igualdade e fraternidade que emanavam tanto dos Estados Unidos como da França. O movimento conhecido como Revolução de 1817 deflagrou novo rumo para a história do país “descoberto” por Portugal desde 1500. À luz do bicentenário, o episódio histórico de extrema importância para a nação ganha outros contornos. “A revolução de Pernambuco em 1817, se bem que muito pouco durasse, fará sempre época nos anais do Brasil; tempo virá, talvez, em que o dia 6 de março será para todos os brasileiros um dia de festa nacional”, escreve Francisco Muniz Tavares (1793–1875), CONTINENTE MARÇO 2017 | 21
no prefácio do seu História da Revolução em Pernambuco de 1817, publicado pela primeira vez em 1840 graças aos esforços intelectual e financeiro do próprio autor – que havia sido preso por participar do movimento. O livro é uma imprescindível fonte de informações para o estudo dos fatos que desembocaram na formação do Governo Provisório e ressurge, no bojo das celebrações dos 200 anos, em oportuna nova edição, idealizada e impressa pela Companhia Editora de Pernambuco – Cepe. Este volume traz o texto original de Muniz Tavares e as notas do historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima (1867–1928) acopladas à terceira edição, lançada em 1917 como esforço do então Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (hoje Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano) para marcar o centenário da Revolução de 1817 e, de certa forma, demarcar uma contraposição ao que a historiografia do século XIX havia determinado. Na narrativa “oficial” do Brasil, tudo que se relacionava a 1817 era minimizado.
CON CAPA TI NEN TE Autor de História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal, Francisco Adolfo Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816–1878) e historiador oficial do Império, recebera de Pedro II a missão de narrar a trajetória brasileira para o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil; ao fazê-lo, nos volumes publicados entre 1854 e 1857, não incluiu o movimento nordestino entre os predecessores da Independência de 1822. É compreensível, portanto, que até hoje se ensine e se difunda mais sobre Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e a Inconfidência Mineira de 1789 do que sobre Domingos José Martins, padre João Ribeiro, Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, ou Domingos Teotônio Jorge – todos esses componentes do Governo Provisório instaurado em março de 1817. E é justamente por causa disso que se torna mais necessário revisitá-los. “Duzentos anos depois, a grande lição é tomar consciência da contribuição que Pernambuco deu ao Brasil. O que era o Brasil naquela época? Uma simples colônia, sofrendo o peso e a extorsão de uma Coroa que havia aqui se instalado, após a pior das humilhações – a fuga de Dom João VI. 1817 foi fundamental para o conceito de pátria, nação e liberdade. A semente do Brasil nasceu duas vezes em Pernambuco – uma no século XVI, com a expulsão dos invasores holandeses e a restauração, e outra no século XIX. Devemos aproveitar o ensejo do bicentenário para voltar a ler, a ouvir, a contar, a cantar e a nos encantar com a história de 1817, contra aquele silêncio que uma história nacional impingiu sobre os fatos relacionados à revolução”, sustenta o professor Antônio Jorge Siqueira, do departamento de Sociologia e da pósgraduação em História da UFPE. Ao lado dos professores Antônio Paulo Rezende e Flávio Weinstein Teixeira, ele é um dos organizadores de 1817 e outros ensaios, compilação de 10 textos a ser lançada ainda neste semestre pela Cepe. O interessante do livro é a oferta de análises sobre diversos aspectos do movimento, como a participação de negros e índios nas hostes revolucionárias e do papel crucial desempenhado por padres católicos.
Não é megalomania pernambucana afirmar, como o faz o embaixador cearense Gonçalo de Barros Carvalho Mello Mourão, no ensaio Seis de março, data nacional, que “a Revolução de 1817 suscitou entre nós o poder do apelo à liberdade como despertar da consciência nacional. Representou, em suma, o surgimento da ideia de um Brasil brasileiro, através daquilo que o sublimado padre Dias Martins chamou de busca do ideal de ‘Pátria e o amor da Liberdade’. A Revolução durou parcos 76 dias, 11 semanas, dois meses e meio. Foi pouco, mas foi o suficiente para fazer nascer o Brasil”.
DIREITOS CIVIS E LIBERDADE
Corriam os primeiros dias de março de 1817 e o capitão-geral da província de Pernambuco (cargo equivalente ao de governador) era Caetano Pinto. O Recife só se tornaria cidade em 1823, porém, já era uma babel. Antônio Jorge
“A grande lição é que 1817 foi fundamental para o conceito de pátria, nação e liberdade” Antônio Jorge Siqueira Siqueira utiliza os dados levantados pelo professor pernambucano Luiz Geraldo Silva, da UFPR, em um dos ensaios da coletânea 1817 e outros ensaios, para contextualizar o panorama da época. “Em 1762, no século XVIII, o Recife tinha uma população de 90 mil habitantes, dos quais 25% eram escravos. Dada a importância do cultivo da cana-deaçúcar, percebem-se os escravos como segmento importante para alimentar a indústria canavieira. Em 1810, dois anos após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, e sete anos antes da revolução, a população de Pernambuco era de 392 mil habitantes, dos quais 28% eram brancos, 26,2% eram escravos, 3,2% índios e 42% eram afrodescendentes, livres ou libertos. Ou seja, o panorama era favorável à busca pelos direitos civis e pela liberdade”, indica Siqueira. Autor de Os padres e a teologia da ilustração – Pernambuco 1817 (Editora Universitária UFPE, 2009), em que
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investiga a atuação dos religiosos no levante, o professor recorda que a abertura dos portos, um dos primeiros atos de Dom João ao chegar ao Brasil, não só acarretou uma nova dinâmica comercial, como também desaguou em uma maior circulação de ideias. “Produtos, comércio e ideias formam a tríade que se complementa nesse momento de desarrumação”, aponta Antônio Jorge Siqueira. No ensaio Entre banquetes e batuques: a visão dos viajantes sobre o Recife em tempos de revolução, a historiadora Sylvia Costa Couceiro trabalha com os relatos de quatro forasteiros – o francês Louis de Tollenare e os ingleses Henry Koster, James Henderson e Maria Graham – para compor o quadro de uma vila em ebulição. “Como funcionava o Recife? Lanço uma série de perguntas a partir das reflexões que esses viajantes faziam. Além do que aconteceu durante a revolução, eles falam, com ênfase, da ideia de mestiçagem. O Recife de 1817 era, como o Recife de 2017 ainda é, uma cidade híbrida, mestiça e de profundas diferenças. A vila do Recife compreendia o Bairro do Recife, Santo Antônio, São José e algumas casas na Boa Vista. Locais como Apipucos, Monteiro, Várzea e Poço da Panela eram os destinos para onde as elites iam em momentos de lazer, tomar banhos de rio. Quando a revolução eclodiu, parte da população fugiu para essas casas de veraneio, deixando a área central deserta”, situa à Continente a pesquisadora titular da Fundação Joaquim Nabuco. Os gatilhos da Revolução de 1817 não podem ser percebidos como isolados. Havia o fluxo de produtos e ideias, decorrente da abertura dos portos, havia a herança da França, dos Estados Unidos e das lutas pela independência da América espanhola e havia as noções libertárias discutidas nas casas de maçonaria. Domingos José Martins, capixaba que chegara ao Recife em 1815, vindo de Londres, era adepto e entusiasta de tais ideais disseminados entre os maçons. “Entre os amantes de República, figuravam alguns maçons ou pedreiros livres. Esta sociedade secreta, respeitada por ser misteriosa, e condenada cegamente como tal, diz-se que em tempo assaz remoto fora instituída com o louvável
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Artista pintou Tropas pernambucanas cercam o Forte do Brum a partir dos relatos do ocorrido
Ao lado 2 RENATO VALLE
Desenho Suicídio do Padre João Ribeiro no Engenho Paulista narra visualmente a morte dramática
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fim de confraternizar os homens, e incitá-los à prática das virtudes morais, concedendo aos seus membros plena garantia de pensar, oferecendo mútua comunicação de ideias e socorros”, aponta Muniz Tavares, em História da Revolução em Pernambuco de 1817. “Os maçons – como se a lei de sangue que os prescrevia tivesse sido ab-rogada – congregavam-se quase em público, banqueteavam-se frequentemente de fé. Em seus banquetes ouviam-se brindes acompanhados de expressões que revelavam generosos desígnios.”
“VIVA A PÁTRIA”
Consta que, ao ser alertado sobre possíveis conspirações, o capitão-geral Caetano Pinto dissera: “Os maçons divertem-se: nada farão”. Contudo, resolve agir ao receber uma denúncia do “negociante abastado Manoel de Carvalho Medeiros”. Em O Recife da revolução republicana de 1817: cenários, cenas e atores, concebido especialmente para 1817 e outros ensaios, o arquiteto José Luiz da Mota Menezes esmiúça o desenrolar dos acontecimentos. No dia 5 de março, Pinto “manda prender 70 implicados”.
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“No dia 6 de março, às 11 horas, o governador iniciou as prisões. Foram denunciados os seguintes militares: três capitães de artilharia Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, José de Barros Lima e Pedro da Silva Pedroso, tenente, secretário do mesmo Corpo, José Mariano de Albuquerque e o ajudante de infantaria Manoel de Sousa Teixeira. Preso o negociante Domingos José Martins e recolhido, por ser civil, à cadeia (provavelmente a da atual Rua do Imperador, antes da Rua da Cadeia Nova)”, relata Mota Menezes.
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Quando o general de brigada Manoel Joaquim Barbosa de Castro se dirigiu ao quartel da artilharia (localizado no Bairro de Santo Antônio, entre o que hoje são as avenidas Guararapes e Dantas Barreto) para efetuar as prisões dos militares, deu-se o estopim. Domingos Teotônio foi preso, mas José de Barros Lima, o Leão Coroado, desembainhou a espada e matou o oficial português. Ninguém protestou, como descreveu Muniz Tavares: “Entre tantos oficiais presentes, não houve um só que se opusesse à perpetração do delito; os que eram brasileiros, maquinalmente desembainharam as espadas, e como se fossem feridos por um golpe apoplético, permaneceram inertes espectadores. Dois portugueses, um que era sobrinho do morto, o capitão José Luiz, temendo igual sorte, saltou pela janela e escondeu-se; outro por nome Luiz Deodato, fugiu deixando a barretina e a espada”. Os gritos de “Viva a Pátria” e “Mata marinheiro”, como os portugueses eram chamados, ecoaram nas ruas. Houve conflitos, mortes, “arruaça” e “confusão”, como transparece nos relatos do francês Tollenare (suas Notas dominicais foram publicadas pela Secretaria de Educação e Cultura do governo de Pernambuco em 1978) e nas memórias de Muniz Tavares, que serviram de base para inúmeras revisões. Uma delas, 1817, foi escrita pelo professor Denis Antônio Bernardes para o livro Revolta, motins, revoluções. Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX, lançado em 2011 pela Alamada, e incluída em 1817 e outros ensaios, como uma homenagem ao historiador, falecido em 2013. Sua recapitulação dos fatos: “A resistência da tropa portuguesa e de alguns marinheiros de nada adiantou. No dia 7 de março, o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro aceitou assinar sua capitulação e deixar a capitania acompanhado da família e dos oficiais e familiares que o quisessem seguir rumo ao Rio de Janeiro. No mesmo dia foi eleito um governo provisório, com representantes dos diversos corpos sociais, refletindo a divisão estamental da sociedade:
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Ao ser deflagrado o motim, ouviramse gritos de “Viva a Pátria”, houve mortes, “arruaça” e “confusão”
pelo clero, o padre João Ribeiro Pessoa de Mello Montenegro, pelos militares, o capitão Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa, pela magistratura, o advogado José Luís de Mendonça, pelo comércio, Domingos José Martins e, pela agricultura, o senhor de engenho e coronel de milícias Manoel Correia de Araújo. Cessava, com este ato de eleição de um governo provisório saído de uma rebelião militar, a soberania do príncipe regente D. João sobre Pernambuco. Não tardou que, inclusive pelo envio de emissários, a notícia da instalação de um governo republicano e patriótico em Pernambuco logo se espalhasse pelas províncias da Paraíba, Rio Grande
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do Norte, Ceará e pela comarca das Alagoas, ainda território pertencente à província de Pernambuco”.
ECOS PARA O FUTURO
O “tempo da Pátria” foi breve, porém intenso. Incluiu a viagem de um emissário até os Estados Unidos e a conexão com levantes bonapartistas, como detalha a pesquisadora da Fundação Rui Barbosa, Isabel Lustosa, em artigo publicado adiante, na página 26. Deixou, no cotidiano da capital pernambucana, nomes de ruas, como Padre Roma e Gervásio Pires. Foi, para centenas de escravos, o primeiro vislumbre de liberdade – os negros foram alforriados pelos senhores para lutar pela revolução. Com a debelação da insurgência, voltaram à senzala, mas o ideal de liberdade se consolidava no horizonte. “A abolição da escravatura só se deu em 1889, mas um negro que ficou livre para lutar, ao voltar a ser escravo, não era o mesmo. Apesar da repressão violenta ao movimento e das punições exemplares aos envolvidos, o término da Revolução de 1817 não
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3 HERÓI Domingos José Martins é um dos mártires da Revolução 4-5 DOCUMENTO Francisco Muniz Tavares escreveu obra monumental sobre o acontecimento 6 INSURREIÇÃO Pintura de Antônio Parreiras, Benção das Bandeiras da Revolução de 1817, retrata instauração da República de Pernambuco
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fez com que a sociedade voltasse a ser o que era antes. As experiências deixaram marcas para novas atuações libertárias”, pontua a pesquisadora Sylvia Costa Couceiro, da Fundação Joaquim Nabuco. O próprio Joaquim do Amor Divino Rabelo, o frei Caneca, foi um dos grandes envolvidos em 1817. Preso ao lado de Muniz Tavares na Bahia, virou líder da Confederação do Equador em 1824. “Na prática e na História, com a restauração brasileira dos Guararapes, no século XVII, com
a Guerra dos Mascates, a Revolução de 1817 e o movimento de 1824, Pernambuco tem um papel deveras importante para contribuir com a semente de pátria, nação, liberdade, direitos e constituição. Esses ideais não morreriam com o sacrifício dos cabeças revolucionários. Aqueles que foram para as masmorras na Bahia voltaram e continuaram com um ideal de luta. Tudo isso foi corroborado nas revoltas subsequentes, como a Praieira”, reforça o professor e historiador Antônio Jorge Siqueira, da UFPE.
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“Viva a Pátria, vivam os patriotas e acabe para sempre a tirania real”, bradavam os revolucionários, nas ruas e nos documentos que servem de esteio para reviver e repensar a Revolução de 1817. Dois séculos depois, a tirania ainda persiste e há de se olhar para o passado para reposicionar, na história da nação, o pioneiro movimento que uniu brancos, negros, pardos, índios, militares, comerciantes, padres e maçons e seu incontornável legado de luta.
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Artigo
ISABEL LUSTOSA O FRUSTRADO RESGATE DE NAPOLEÃO BONAPARTE EM 1817 Depois da sensacional volta de
Napoleão Bonaparte da Ilha de Elba e de seu reinado de 100 dias e com a certeza de que havia ainda um contingente respeitável de admiradores seus que se mobilizaria ao primeiro chamado do imperador deposto, as monarquias europeias mais do que escaldadas, resolveram tomar providências drásticas. Napoleão esperava ou fingiu que esperava ficar na Inglaterra como hóspede da Coroa inglesa. Sua decepção foi grande, quando lhe informaram que ele ficaria prisioneiro para sempre em uma pequena ilha, quase inexpugnável, no meio do Atlântico. E, de fato, viveria na Ilha de Santa Helena até morrer em 1821, doente e deprimido, desejando antes ter sido executado do que definhar naquele lugar nenhum. No entanto, durante os seis anos em que viveu ali, mesmo sob a maior vigilância, Napoleão e seus admiradores encontraram meios de se corresponder e até mesmo de tramar um possível resgate. Um desses projetos envolveu brasileiros e um momento importante da História do Brasil: a Revolução Pernambucana de 1817.
A CONSPIRAÇÃO
Os Estados Unidos da América, única democracia de fato que então havia no mundo, era um grande atrativo para os antigos oficiais do império francês. Humilhados com a exclusão do exército e com a perspectiva de viver a meio-soldo, poucos meses depois de Waterloo, cerca de mil oficiais franceses de várias patentes tinham partido para os EUA. Além de buscar novas oportunidades, boa parte dessa gente continuava a sonhar com a volta do imperador, nem que fosse para reinar em algum pedaço das Américas. O malogrado rei de Espanha, José Bonaparte, irmão
mais velho de Napoleão, também se estabelecera nos Estados Unidos e era um verdadeiro ímã a atrair toda a sorte de conspiradores com planos para o resgate do ex-imperador. Assim, quando tiveram notícia de que uma revolução republicana estourara em Pernambuco, o ponto da costa americana mais próximo de Santa Helena, as esperanças dos bonapartistas foram renovadas. A notícia dessa revolução que pretendia instalar no nordeste brasileiro uma república chegou aos jornais americanos por intermédio de um de seus líderes, Antônio Gonçalves da Cruz, mais conhecido como Cabugá. Ele promovera em sua casa muitas das reuniões que impulsionaram a rebelião que eclodiria em 6 de março de 1817. Poucos dias depois, em 25 de março, ele embarcava para os EUA como embaixador do governo revolucionário junto às
Rebelados de 1817 tramaram com os EUA o resgate do imperador francês deposto na ilha em que acabaria seus dias autoridades daquele país. Tal como para os mineiros de 1789, para os revolucionários de Pernambuco, os EUA representavam o modelo ideal de nação. Ainda mais naquele momento em que as monarquias da Europa tentavam destruir a herança da Revolução Francesa e voltar às práticas do Antigo Regime. Se o ministro dos Negócios Estrangeiros, Richard Rush, que recebeu Cabugá em caráter informal, não prometeu que seu governo daria suporte aos revolucionários, também não impediu suas idas e vindas. Sob o pretexto das leis liberais e democráticas que regiam a vida no país, o governo norte-americano fez ouvidos moucos aos rogos do embaixador de Portugal, o padre José Correia da Serra, para que Cabugá fosse impedido de comprar armas, fretar navios e contratar homens para levar ao Recife.
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O PLANO
Os bonapartistas franceses viram na revolução pernambucana a situação ideal para finalmente ter uma base de apoio próxima de Santa Helena. O plano fora concebido por José Bonaparte e dele teria conhecimento o próprio Napoleão, que enviara cartas geográficas detalhadas da ilha. Um milhão de dólares estariam reservados para as despesas da expedição que teria como base Fernando de Noronha. Ali se reuniriam duas escunas com aproximadamente 80 oficiais franceses e 700 marinheiros americanos, além de um navio armado pelo almirante Cochrane, tendo a bordo 800 marinheiros e 200 oficiais. Os navios seguiriam com destino à Santa Helena, atacariam a ilha por vários lados e resgatariam Napoleão. Não é preciso dizer que Cochrane, que nada tinha de bonapartista, só estava nessa pelo dinheiro. Como os planos e os recursos comparativamente modestos de Cabugá se casavam com os dos franceses, é um ponto que permanece obscuro. De qualquer maneira, um dos navios fretados por ele, o Paragon, saiu da Filadélfia no dia 15 de junho de 1817, trazendo um grupo formado pelo coronel Paul-Albert-Marie de Latapie, Louis-Adolph Le Doulcet – futuro conde de Pontécoulant – e pelos soldados Artong e Raulet. Ao chegarem a Natal e descobrirem que a revolução pernambucana tinha sido subjugada, traçaram um plano B. Eles sabiam que poderiam contar com o novo cônsul dos Estados Unidos no Recife, o comerciante Joseph Ray, perfeitamente informado da conspiração. O conde de Pontécoulant apresentou-se em Natal como naturalista e, sendo homem refinado, de vasta cultura e de grande charme pessoal, logo estabeleceu amizade com o governador daquela província, obtendo passaporte para poder circular livremente por todo o Brasil. Seus companheiros que preferiram seguir para a Paraíba não tiveram a mesma sorte e, quando ali chegaram, foram logo detidos e enviados para o Recife. As notícias de possíveis conspirações bonapartistas associadas a Cabugá já tinham chegado à região através das desesperadas cartas do padre
NAPOLEON BONAPARTE, DE BENJAMIN ROBERT HAYDON/ACERVO NATIONAL PORTRAIT GALLERY, LONDON
1 NAPOLEÃO Dos muitos retratos do imperador, este evoca o estado de exílio aqui referido
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Correia da Serra que, não encontrando apoio do governo norte-americano, concentrara seus esforços em alertar o governador de Pernambuco sobre os movimentos de Cabugá.
O PAPEL DO CÔNSUL
Apesar das suspeitas, o governador Luis do Rego Barreto não viu irregularidades nos documentos dos franceses e os liberou, mantendo-os, no entanto, sob rigorosa vigilância. Todos se reuniram na casa de Joseph Ray, à espera de Pontécoulant, que já chegava de Natal. Dois dias depois, por iniciativa própria, o coronel Latapie foi ao governador e relatou os verdadeiros motivos de sua viagem: ele e seus companheiros tinham vindo ao Nordeste por ordem de José Bonaparte, para estudar o terreno e averiguar as possibilidades de, dali, procederem ao sempre sonhado resgate de Napoleão. Luis do Rego sugeriu, então, que o próprio
coronel fosse ao Rio de Janeiro contar essa história às autoridades. A atitude de Latapie deixou em maus lençóis os companheiros que continuaram no Recife. A proteção que lhes deu do cônsul americano foi decisiva para que se mantivessem em liberdade. No entanto, em fevereiro de 1818, chegava à costa da Paraíba o segundo navio contratado por Cabugá, o Pengouin, trazendo uma carga de pesados armamentos. A situação se complicou para Joseph Ray, que teve a casa revistada e viu seu secretário, que não tinha imunidades diplomáticas, ser submetido a interrogatórios bastante reveladores. Artong tinha acompanhado Lapatie ao Rio de Janeiro, de onde partiram para a Europa. Raulet foi preso, e só com a ajuda de Joseph Ray conseguiu fugir da Fortaleza de Brun. Foi para o Rio de Janeiro e, percebendo que ali também teria dificuldades, seguiu para Buenos Aires,
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de onde participou com destaque nas campanhas pela independência da América espanhola, morrendo no Peru em 1829. Pontécoulant nada sofreu, mas também teve que deixar o Brasil, fazendo depois, na França, uma longa e bem-sucedida carreira de autor de livros sobre música e sobre a fabricação de instrumentos musicais. Da documentação existente a respeito desse episódio, ressalta o cuidado maior das autoridades portuguesas com os suspeitos estrangeiros, especialmente os de mais elevada patente como Pontécoulant e o general Latapie. O governador Luís do Rego Barreto, em seu relatório final, concluiu que a presença de bonapartistas franceses no Recife fora mais uma questão de oportunidade do que de real comprometimento com os improvisados revolucionários pernambucanos, a seu ver. Isso se comprovava pelo fato de que os contatos internacionais para buscar apoio só foram iniciados depois do 6 de março. As dúvidas de Luís do Rego se concentravam, na verdade, sobre o verdadeiro papel que o cônsul dos Estados Unidos tivera no desenrolar dos acontecimentos. Na verdade, ele desconfiava das reais intenções dos norte-americanos com relação ao Recife. Mas era grande o receio das autoridades brasileiras de contrariar, de qualquer forma que fosse, o governo dos Estados Unidos, e nada foi feito contra Joseph Ray, que continuou no posto até 1820. Posto que voltaria sintomaticamente a ocupar entre 1836 e 1842, últimos anos da Regência e primeiros depois da Maioridade. Período igualmente agitado. Na verdade, se, oficialmente, não interessava ao governo dos EUA se meter com os assuntos do governo português, com o qual tinha bons contratos comerciais, também não lhe cairia mal ter na América do Sul uma república amiga que lhe acenara com a abertura total de seu mercado. Manter na praça do Recife um agente que pudesse informar a seu governo sobre as reais oportunidades que se apresentassem era uma situação muito conveniente para os interesses dos EUA.
1817 Uma Revolução quadro a quadro
Leia a seguir, em primeira mão, as páginas iniciais do álbum de quadrinhos 1817 - Amor e revolução, ilustrado por Pedro Zenival, que levou um ano para ser concluído, sendo o primeiro do gênero a ser lançado pela Cepe Editora CON TI NEN TE
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Por trás da Revolução de 1817, dos arroubos libertários e da luta pela democracia que Pernambuco capitaneou, paira um romance que, como muitos detalhes desse singular episódio republicano, permanece à margem da história oficial. “É o nosso Romeu e Julieta. Domingos José Martins passou quatro anos namorando escondido com Maria Teodora da Costa e decidiu fazer uma revolução para casar com ela”, explica o jornalista e escritor pernambucano Paulo Santos de Oliveira, autor do roteiro da história em quadrinhos 1817 - Amor e revolução, um dos lançamentos da Companhia Editora de Pernambuco – Cepe para celebrar o bicentenário do movimento. A novela gráfica é uma adaptação de A noiva da revolução, escrito por Paulo e publicado em 2007. Com ilustrações de Pedro Zenival Ramos Ferraz, traz uma síntese dos acontecimentos que, a partir de 6 de março de 1817, provocam a erupção da insurgência. Porém, o foco reside na história de amor entre Domingos, 36 anos, um dos líderes da rebelião contra a Coroa Portuguesa, e Teodora, 17, filha de Bento da Costa, um abastado português. Depois de negar a mão da filha por diversas vezes, Bento resolve aceitar o pedido de casamento no dia 8 de março, quando Domingos
já era um dos integrantes do governo provisório de Pernambuco. “Foi o casamento politicamente mais importante da história do Brasil”, observa Paulo Santos de Oliveira. “Apesar de ele ser galã e rico, o pai da moça não permitia antes porque ele era brasileiro. Essa derrubada de preconceito foi importante. Diferente de outros estados, como Bahia e Rio de Janeiro, em Pernambuco, os brasileiros e os portugueses viviam brigando. A união de um pernambucano com a filha de um português rico ajudou a promover uma pacificação. Quando o casamento ocorreu, o povo foi às ruas para comemorar”, completa o escritor. Para Pedro Zenival, o trabalho de um ano na transposição da linguagem literária foi meticuloso e de extrema dedicação. “Fiz uma pesquisa visual nos livros ilustrados relacionados à época, em especial nos registros da era napoleônica, que condizia com a moda e as vestimentas do Recife daquele momento”, comenta o ilustrador, um dos mais prolíficos colaboradores da Cepe, onde trabalha desde 1987. O resultado é de um apuro imenso e faz de 1817 - Amor e revolução uma leitura obrigatória nesse contexto de resgate de um acontecimento sem comparação na história do Brasil. LUCIANA VERAS
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QUADRINHOS
PAULO SANTOS E PEDRO ZENIVAL 1817 - Amor e Revolução Cepe Editora
Baseada no livro A noiva da Revolução, a novela gráfica (104 p.) conta os bastidores do movimento, a partir do romance entre o brasileiro e líder revolucionário Domingos Martins e Maria Teodora da Costa, filha de português abastado, que se casam em plena luta libertária, um acontecimento semelhante ao amor de Romeu e Julieta.
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