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HEITORVIlla-lObOs Criador que foi além da estética nacionalista Morto há 50 anos, compositor erudito brasileiro de maior projeção internacional construiu uma obra universal a partir da transfiguração e reelaboração de elementos do folclore e da música popular do Brasil texto Carlos Eduardo Amaral
em 1919, quarenta anos antes
de Villa-Lobos falecer, Arthur Rubinstein (1887-1982) visitara o Rio de Janeiro e bem se impressionara com a turbulência criativa do genioso compositor, recomendando-lhe que fosse morar em Paris. Cerca de uma década mais tarde, bancado pelos irmãos Arnaldo e Carlos Guinle, o carioca nascido nas Laranjeiras havia seguido o conselho do pianista polonês e se tornado sinônimo de música clássica brasileira nas salas de concerto e nos círculos intelectuais europeus. Outra década e meia adiante, Villa-Lobos consolidara seu plano de educação musical no Brasil, sob os auspícios do Estado Novo, e passara a ser uma figura cult constante nos Estados Unidos, mesmo sem falar inglês. Desde então, tamanho foi o sucesso do músico em ambos os lados do Atlântico, temperado por uma personalidade geradora de um vasto memorial de mitos, anedotas e conquistas, que nenhum outro compositor tupiniquim logrou conquistar no imaginário dos fãs da música erudita.
No entanto, se a obra villalobiana construiu, com efeito, uma identidade nacional musical (ou se ela, em vez disso, chegou na frente para ocupar um topos brasileiro na música clássica), esse processo se deu através de fórmulas de assimilação bastante diversas, conforme exemplificado ao tomarmos um breve cânone de oito peças, que pode ser aceito com mínimas reservas: O trenzinho do caipira, da segunda Bachianas Brasileiras, a Cantilena, da quinta, e o Prelúdio, da quarta; os Choros de nº 1, 6 e 10; a Melodia sentimental, de A floresta do Amazonas, e a Valsa da dor. Tem-se aí, de trás para frente, uma amostra do repertório para piano solo, uma canção, uma peça coral-sinfônica, uma orquestral, uma para violão solo, uma para cordas, uma para voz solista e conjunto de câmara e, a última, para orquestra de câmara. Além de nenhuma semelhança na instrumentação, na estruturação e na duração (aspectos meramente formais), não há uma linha estética comum sequer a duas delas – e, no caso particular dessas oito, não se observa grande equivalência estilística com outras no catálogo de Villa-Lobos.
O corpus em questão abarca desde a incorporação direta da seresta (Melodia sentimental) e do chorinho (Choros nº 1) até a diluição de ambos em uma roupagem neobarroca (Cantilena) e romântica (Prelúdio), bem como a utilização desses gêneros dentro de uma linguagem orquestral próxima à dos franceses (Choros nº 6) e de Stravinsky (primeira parte do Choros nº 10). O ponto comum a todas essas peças está em um sentimentalismo melódico típico brasileiro – observado, por exemplo, em Pixinguinha e Anacleto de Medeiros – que se amoldou ainda, sem prejuízos, à escrita pianística francesa (Valsa da dor) e a experimentações timbrísticas derivadas do Futurismo (O trenzinho do caipira). Está também na ausência de marcas fortes do realismo socialista que tanto impregnou a música clássica brasileira desde a década de 1940 e remodelou as concepções estéticas musicais da própria nação.
contenDas nacionalistas
O embate entre correntes que assimilavam tendências estrangeiras
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concerto nº 5
Getúlio Vargas recebe o maestro numa recepção no Itamaraty, na década de 1950 o compositor entre um grupo de jovens na inauguração do Conservatório VillaLobos, em 1957
Na regência, acompanhado por Felicja Blumental e a orquestra Sinfônica de Viena, em 1955
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e as que defendiam manifestações “genuinamente nacionais” agitou a música popular brasileira dentro de um espaço de 12 anos, de 1958 a 1970, especialmente através de quatro movimentos artísticos: da Jovem Guarda, num extremo dessa polarização, ao Armorial (que englobava também a música erudita),
tendo a Bossa-Nova e o Tropicalismo como meios-termos. A apologia ao “nacional” contava com ferrenhos expoentes de orientação esquerdista (como também muitos dos opositores), a exemplo de José Ramos Tinhorão e Ariano Suassuna, que, em maior ou menor grau, beberam em Mario de Andrade. Sem o escritor
paulista – quem, por sinal, primeiro disseminou no país as orientações estéticas musicais do realismo socialista, mescladas às suas pessoais –, as divergências estéticas talvez tivessem demorado mais a se revestir de conotações políticas no Brasil. Graças a Mario de Andrade, pela atuação como professor de música e estética, as celeumas que atiçaram a música popular nos anos 1950 e 1960 reverberaram primeiro na música clássica, nos anos 1930. Ele preconizou, no Ensaio sobre a música brasileira (1928), que os compositores deveriam atingir um estágio de inconsciência nacional – quer dizer, um encontro com uma “brasilidade essencial” – depois de aproveitarem temas folclóricos em suas obras (estágio de tese nacional) e elaborarem melodias próprias orientados por um tino folclórico (sentimento nacional). Villa-Lobos partiu do folclore ao conceber algumas de suas obras, mas não visava necessariamente a algo como tal “inconsciência nacional”. Às vezes, a brasilidade era uma ponte para o que o compositor
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considerava universal. Segundo relato do musicólogo Adhemar Nóbrega, em 1970, Villa-Lobos discernia suas obras entre as que tinham influência folclórica direta ou indireta, as que apresentavam “transfiguração folclórica”, algumas impregnadas por um “ambiente bachiano”, e as que representavam “pleno domínio do universalismo”, ou seja, sem (ou quase sem) resquícios nacionais. Compositores mais novos que VillaLobos e que conheceram Mario de Andrade ou o leram (Claudio Santoro, César Guerra-Peixe, José Siqueira e Camargo Guarnieri, entre outros) aderiram à teleologia nacionalista andradiana nos fins dos anos 1940 – Santoro e Guerra-Peixe com mais virulência, depois de abraçarem e rejeitarem o serialismo, a mais significativa influência estrangeira de então; Camargo Guarnieri e Siqueira, por um natural processo de maturação começado 20 anos antes.
DiRetRiZes JDanoVistas
Para chegar àquela teleologia, a “inconsciência nacional”, os compositores “andradianos” guiaramse pelas diretrizes realistas socialistas, na década de 1950, cujo principal mandamento era “escapar ao extremo subjetivismo e exprimir os sentimentos
em algumas de suas obras, a brasilidade era uma ponte para o que Villalobos considerava universal e altas concepções progressistas das massas populares”, protegendo a cultura nacional das “falsas tendências cosmopolitas”, como o serialismo. Esse preceito, descontada a demagogia patente, era caro a Villa-Lobos desde os anos 1920 e 1930, sem que ele tivesse ouvido falar de Andrei Jdanov (18961948), o temível controlador das artes no stalinismo. Esse fato não diz nada em si, posto que o nacionalismo nas Américas veio importado da Europa, sem componentes de unificação política (vide Itália e Alemanha) ou de libertação imperialista (Boêmia ou Finlândia). O nacionalismo americano desejava sobretudo dar feições estilísticas à música erudita aprendida dos grandes centros europeus (objetivo da Espanha e da Inglaterra já no Romantismo) e nesse ponto recorreu à mesma estratégia de lá: beber na música folclórica e na língua pátria.
O problema número um do jdanovismo estava na submissão às determinações estatais, dentro da União Soviética, que escondiam o gosto pessoal de Jdanov e Stálin e implicavam em censura oficial a quem se desviasse delas. Se houve intuitos nobres, tal qual a educação musical em larga escala (abraçada por Villa-Lobos, mas também antes do jdanovismo), é certo que o realismo socialista na música não tardou a caducar e já havia se tornado démodé no início da Guerra Fria, no Brasil e no mundo. De 1945 para frente, Villa-Lobos triangulava pelo Rio, por Paris e, principalmente, Nova York; tinha regido e gravado suas obras mais importantes e escrevia dentro de uma linguagem mais universalista, por vezes neorromântica, onde os elementos nacionais se apaziguaram, mas não desapareceram por completo – e Arthur Rubinstein continuava a tocar a Prole do bebê nº 1 (1918), simbolicamente lembrando que o compositor dessa obra chegara à França, em 1923, deixando bem claro: “Vim aqui para ensinar, não para aprender”.
@ continenteonline Ouça algumas composições de Heitor Villa-Lobos no site www.revistacontinente.com.br
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CONCERTOs as óperas esquecidas do maior compositor brasileiro Villa-Lobos tem obras executadas no mundo todo em 2009, com direito a resgate da parte mais negligenciada de seu catálogo, as criações operísticas texto Irineu Franco Perpétuo
não é exagero dizer que orquestras e artistas do mundo inteiro têm homenageado o cinquentenário de falecimento de Villa-Lobos. A data exata da efeméride é 17 de novembro, e, para dar uma ideia da amplitude das comemorações, vamos listar os principais eventos que acontecem no Brasil neste mês. Ao longo de novembro, o Quarteto Radamés Ganttali toca, no Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, na íntegra, os 17 quartetos de cordas do compositor. Em Brasília, a Orquestra
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A menina das nuvens foi resgatada e ganhou encenação em setembro deste ano, em Belo Horizonte o musical escrito para a Broadway, no final da década de 1940, também ganhou montagem no Brasil em 2003
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Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro executa as Bachianas brasileiras nº 1, 5 e 6 no dia 10, enquanto em São Paulo, nos dias 19, 20 e 21, Alondra de la Parra dirige a Osesp na Bachianas brasileiras nº 7 e, em Belo Horizonte, Fabio Mechetti lidera a Filarmônica de Minas Gerais no bailado Uirapuru, dia 24. Fora daqui, Paul Hillier rege a versão coral da Bachianas brasileiras nº 9 no dia 8, enquanto, no dia seguinte, Cristina Ortiz inclui várias obras do compositor no recital solo que dá no Queen Elizabeth Hall, em Londres. Em Varsóvia, a
Sinfônica de Torun, regida por Wojcieh Rodek, faz um programa completamente dedicado a Villa-Lobos nos dias 20 e 26, enquanto a Israel Camerata Jerusalem executa a Suíte para cordas em uma série de apresentações em seu país. A verdade é que, a partir de 3 de janeiro de 2009 (quando Alex Klein regeu a Bachianas brasileiras nº 4 no Porto, em Portugal), praticamente não houve dia sem que, em algum canto do planeta, uma obra do compositor tivesse sido tocada. Entre os destaques internacionais, vale mencionar as Bachianas brasileiras (na íntegra) que Roberto Minczuk regeu no Japão, com a Filarmônica de Tóquio, em 22 de agosto. E a arrebatadora execução do Choros nº 10 que David Robertson dirigiu, com a Sinfônica da BBC e os BBC Singers, em 12 de setembro, no encerramento de um dos principais festivais de música da Europa, o Proms, em Londres. No Brasil, não há como não destacar a produção acontecida entre 20 e 26 de setembro, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, que resgatou uma partitura olvidada do compositor: a ópera A menina das nuvens. Ópera de Villa-Lobos? Pois é. VillaLobos compôs centenas de obras, em todos os gêneros, da sinfonia ao quarteto de cordas, de obras para piano solo a trilhas sonoras para filmes e balés de instrumentação luxuriante, de canções a concertos para diversos instrumentos – sem falar nas formas que ele mesmo criou, como as Bachianas brasileiras. No meio de uma produção tão vasta, ainda há muito a conhecer e avaliar. E a
faceta de compositor para o teatro talvez seja a mais esquecida e negligenciada de nosso Villa. Um fato intrigante, se levarmos em conta de que Villa-Lobos foi um dos músicos brasileiros que melhor escreveram para a voz – como testemunham, por exemplo, suas Serestas e as quatro canções da Floresta do Amazonas. Não custa lembrar que sua mais célebre partitura, a Bachianas brasileiras nº 5, é um solo de soprano cujo melodismo nada deixa a dever à melhor veia de Puccini. O catálogo do Museu Villa-Lobos traz elencadas nada menos do que 10 obras do gênero de sua lavra. Contudo, de muitas delas não há notícia de performance, nem qualquer vestígio de partitura. E, no meio da lista, aparece um musical escrito para a Broadway, de nome Magdalena, que já foi até gravado pelo selo Sony, e encenado na sétima edição do Festival Amazonas de Ópera, em 2003, em Manaus. De ópera propriamente dita, a primeira foi Izaht, que só subiu ao palco em 1958, embora teoricamente tivesse sido escrita entre 1912 e 1914, e resultasse de uma fusão de dois outros trabalhos anteriores de VillaLobos, chamados Aglaia e Elisa, dos quais, contudo, nunca ninguém viu traço. Em 1920, o compositor teria feito outra ópera chamada Zoé, da qual, contudo, só existe o bailado do primeiro ato. Villa-Lobos já era um autor consagrado quando recebeu uma encomenda da Ópera de Santa Fé, nos EUA, e, entre 1955 e 1956, compôs sua ópera mais ambiciosa: Yerma, sobre texto
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@ continenteonline Ouça a execução do Choros nº 10 que David Robertson dirigiu com a Sinfônica da BBC e os BBC Singers no site www.revistacontinente.com.br
Artigo
lEONaRdO maRTINEllI VIlla-lObOs E a IdEIa dE bRasIl exatamente no mesmo ano em que o compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) falecia no Rio de Janeiro, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) publicava seu fundamental Visão do paraíso: Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Nesta obra, tida como um dos marcos da historiografia brasileira, Holanda se debruça sobre os motivos edênicos presentes em diferentes fontes históricas compreendidas entre os séculos 15 e 18. Neste contexto, o “descobrimento” das Américas e o seu processo de colonização foram o ponto de partida para a ideia do Novo Mundo enquanto materialização terrena do Jardim do Éden bíblico. Focando seus estudos no Brasil, Holanda analisa de que forma o país desempenhou papel central na consolidação desta ideia. Viajantes, religiosos e toda uma sorte de cronistas europeus são, em maior ou menor medida, unânimes em atribuir à exuberância e “virgindade” de nossa terra – ainda livre dos vícios do Velho Mundo – os pré-requisitos para sua eleição enquanto paraíso terreno. Se o elemento nacional foi desde seus primórdios presença constante na obra de Villa-Lobos, é importante notar que isto não ocorreu de uma única maneira. Ainda que a musicologia e a análise estética modernas estejam por lançar um olhar mais meticuloso no conjunto de sua obra, podemos nos arriscar em dividi-la em três grandes blocos que – a despeito de uma série de características comuns que integram o que se pode chamar de “estilo villalobiano” – refletem diferentes momentos de sua atividade criativa. Entretanto, apesar das diferenças inerentes à produção de Villa-Lobos ao longo de carreira, um importante fator mostra-se relativamente constante: a ideia de Brasil que o
compositor procura conferir em suas partituras e, desta forma, difundi-la pelo mundo. Neste sentido, Villa-Lobos fez coro aos seus contemporâneos americanos que também se valeram da poética Neoclássica como base de sua atividade artística. Paradoxalmente, se em sua matriz europeia o uso do elemento musical regionalista ou estrangeiro (tal como uma melodia folclórica, um padrão rítmico etc.) foi utilizado como um tempero exótico – quando não, francamente caricato –, as escolas nacionalistas americanas, em geral, apenas desenvolveram esses estereótipos regionais, no que podemos entender como um processo de apuramento do olhar
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propósitos das estruturas de poder que sustentavam a carreira do compositor. Desta forma, os pilares da obra do compositor não deixam de ser um extenso catálogo de ilustrações musicais de paisagens e passagens pitorescas do Brasil. Obras como Amazonas, Uirapuru, os ciclos de Choros e Bachianas brasileiras, as suítes do Descobrimento do Brasil e várias de suas peças de câmara e para piano solo são apenas alguns exemplos que reforçam a tese de que a estereotipia da cultura brasileira foi, neste sentido, o principal fundamentador estético de Villa-Lobos. Como se sabe, hoje em dia, muitas das paisagens e passagens evocadas por Villa-Lobos originam-se de estereótipos pré-existentes que sua obra apenas reforça. Para o homem que afirmava que “o folclore sou eu!”, a ideia que se quer passar do país é mais importante do que saber como ele realmente é. Entretanto, é importante ressaltar que a constatação desta visão edênicoufanista na poética musical de VillaLobos em momento algum põe em cheque o valor musical de sua obra, a
Deparamo-nos com Villa-lobos incorporando os diversos cronistas e viajantes europeus que visitaram o Brasil estrangeiro frente à cultura natal, e não como um olhar novo e interno para com sua tradição musical. Assim, deparamo-nos com VillaLobos incorporando os diversos cronistas e viajantes europeus que visitaram o Brasil (Staden, Martius, Spix e Rugendas, por exemplo) e que difundiram a ideia do país como paraíso terreno por conta de suas virtudes naturais e geograficamente intrínsecas. Estas “virtudes” da terra se materializam de diversas maneiras na obra do compositor. Porém, é nos títulos de suas peças que a ideia de “Brasil-Éden” tornase explícita, sendo este inclusive o fator que determina as escolhas e os procedimentos a serem utilizados no
campo da escritura musical. Tal como um viajante estrangeiro, o compositor elege como tema para suas obras não apenas do elemento nacional, mas necessariamente aquele de forte apelo exótico, cuja singularidade – ou mesmo bizarrice, como na peça para piano Feijoada sem perigo – é o elemento que garantirá a plena aceitação da obra por uma audiência internacional, que no caso de VillaLobos, se remete principalmente à sociedade parisiense do entreguerras, e somente após o término da II Guerra Mundial, parcialmente aos EUA. Além disto, esta visão paradisíaca era-lhe também muito conveniente no Brasil, mostrandose perfeitamente alinhada aos
maestria de seu métier e sua importância na história da música brasileira. Suas opções estético-ideológicas são apenas o produto do somatório de fatores políticos, culturais e musicais, à época também presentes em outros compositores brasileiros e americanos. Mas o que talvez chame a atenção no caso de Villa-Lobos é a sistematicidade com a qual se valeu destes recursos, aliado à sua controversa ligação com o Estado Novo e à ditadura de Getúlio Vargas em meio a um contexto global em que, em vários países, a ascensão dos movimentos nacionalistas teve como consequência na esfera política a consolidação de regimes autoritários e fascistas, não raro valendo-se da arte como seu cartão-de-visita.
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