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Obra do escritor pernambucano alcança, aos 25 anos da sua morte, reconhecimento acadêmico inédito no Brasil Rodrigo Carrero
OSMAN LINS
A maldição do experimentalismo A primeira metade do século 20 foi uma época farta em lendas rurais, especialmente nos municípios da Zona da Mata nordestina. Repleta de municípios habitados por gente simples e crédula, em geral trabalhadores dos engenhos da cana-de-açúcar, a região virou palco de histórias rústicas e fantásticas, que envolviam entidades sobrenaturais (Comadre Florzinha), tesouros enterrados (as famosas “botijas”) e histórias do cangaço. Uma dessas lendas martelou a memória do escritor pernambucano Osman Lins desde criança. Nascido e criado em Vitória de Santo Antão, a 51 Km do Recife, Osman tinha ouvido várias vezes, impressionado, a história de uma cabeça de cangaceiro que teria sido exposta e negociada na estação de trem de Palmares. Na época (década de 1930), o cangaço era perseguido violentamente nos grotões nordestinos, e os policiais encarregados de persegui-los – a chamada Volante – freqüentemente voltava das “caçadas” com esses troféus macabros. Osman Lins decidiu, em 1976, transformar a história, que tanto o havia fascinado na infância, em romance. A decisão, aliás, nasceu de um pacto com o dramaturgo Hermilo Borba Filho, amigo de 22 anos e intelectual tão respeitado quanto Osman. Hermilo crescera em Palmares e também era fascinado pela lenda. Os dois decidiram, então, trabalhar paralelamente em romances que tivessem a tal fábula macabra no centro do enredo. Aí entra em cena, contudo, outra tradição nordestina de peso: as maldições. Corria, nos engenhos canavieiros de Palmares e Vitória, que a história da cabeça decepada jamais deveria ser narrada por escrito. Quis o destino que a profecia se cumprisse: Hermilo morreu em junho de 1976, sem ter iniciado o livro. Já Osman, que chegou
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10 ESPECIAL a planejar A Cabeça Levada em Triunfo e escrever 140 páginas datilografadas de uma versão inicial, sofreu de câncer generalizado e deixou o livro inacabado. Osman Lins, um dos escritores pernambucanos mais experimentais – e, talvez por isso, mais conhecido fora do Brasil do que na própria terra –, morreu em julho de 1978, há exatos 25 anos. Vítima de uma maldição (seja de uma cabeça ou da sina de todo escritor que se recusa a fazer concessões), Osman Lins deixou uma obra mais estudada e raramente lida, mas extremamente respeitada. O nome de um dos mais ilustres filhos de Vitória de Santo Antão ganha, a partir de agosto próximo, uma rara chance de obter reconhecimento popular, com o lançamento do filme Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes. Já apresentada no teatro e na TV, a peça, escrita por Osman em 1961, é um dos textos mais acessíveis do autor, chegado a experiências literárias tão sofisticadas que a própria crítica brasileira custou a compreender inteiramente. “Lisbela foi um recreio, uma maneira que papai encontrou de aproveitar várias ‘histórias de matuto’ que ele ouviu quando menino, mas não tem laços com a obra literária que ele deixou”, atesta Ângela Lins, filha do romancista, que cuida do espólio deixado por Osman, junto com as irmãs Litânia e Letícia. Ângela não sonha com o reconhecimento popular: “Quem está acostumado a ler Paulo Coelho jamais vai entender um livro de Osman Lins”, garante. A opinião de Ângela Lins é respaldada por grandes nomes da crítica e da literatura. Basta dizer que Avalovara (1973), um romance experimental que narra o envolvimento de um homem com três mulheres, deixou o argentino Júlio Cortázar impressionado. “Se eu tivesse escrito esse livro, poderia passar mais 20 anos sem fazer mais nada”, elogiou. A admiração, por
As características universais e experimentais dos livros de Osman, escritos após o ano de 1961, representam exatamente o motivo pelo qual o autor não é celebrado, no Brasil, com o devido respeito que merece
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sinal, era recíproca: um dos amigos mais íntimos de Osman, o também escritor Gilvan Lemos, lembra que Osman praticamente o obrigou a ler O Jogo da Amarelinha, livro famoso do argentino. “Eu nunca tinha lido Cortázar, mas Osman estava entusiasmado com o livro. Li, achei bom, mas sinceramente Avalovara é melhor”, garante Gilvan. A comparação é justa, já que as duas obras são livros abertos, que podem ser iniciados de qualquer ponto que o leitor deseje. A diferença básica é que Avalovara foi erguido sobre o conceito do palíndromo, uma enigmática inscrição grega que pode ser lida em qualquer ordem e remonta ao século 1 d.C. Por isso, nas oito narrativas que compõem o livro, Osman Lins utiliza duas estruturas sobrepostas, um quadrado (representando os espaços físicos, um para cada uma das oito letras da inscrição – a ação vai da Roma antiga ao Recife, passando por Amsterdã) e um círculo em espiral (que representa o tempo, alinhavando as narrativas e entrecruzando-as). Sim, é um livro complicado, mas também delicioso. Pode ser lido com ou sem o rigor estético que impeliu o autor a definir o número de linhas de cada parágrafo antecipadamente (as aberturas de cada capítulos têm sempre 10 linhas). O próprio Osman, aliás, defendia enfaticamente a necessidade de uma relação aberta, lúdica, do leitor com a obra de arte. Todo esse rigor estético, portanto, não passou despercebido à crítica internacional. Quando terminou Avalovara, uma progressão lógica das experiências iniciadas no livro de contos Nove, Novena (1966), Osman Lins já tinha acertado a venda do livro para Itália e França. Seus livros possuem traduções nesses idiomas e também em espanhol, alemão e inglês. Nos Estados Unidos, aliás, Osman é tido como autor da mesma importância histórica de Cortázar. Paradoxalmente, e
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Osman Lins autografa na antiga Livro 7, no Recife, em 1976, ao lado das filhas Ângela e Letícia e do livreiro Tarcísio Pereira Acima, bilhete amoroso para as filhas Litânia, Letícia e Ângela Na página anterior, ao alto, desenho infantil do autor Ao lado, com Lygia Fagundes Telles e Herberto Salles, em São Paulo, 1962
apesar do reconhecimento de parte da crítica literária brasileira, o autor de Avalovara nunca atingiu um status sequer parecido com o qual o admirador portenho ou o italiano Ítalo Calvino – outro escritor a quem é freqüentemente comparado – são reconhecidos por aqui. O professor Lourival Holanda, do programa de pósgraduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), observa que as características universais e experimentais dos livros de Osman, escritos após o ano de 1961, representam exatamente o motivo pelo qual o autor não é celebrado, no Brasil, com o devido respeito que merece. “Após O Fiel e a Pedra, a literatura de Osman Lins distancia-se radicalmente dos estereótipos regionalistas. A temática de Osman não investia num sotaque tipicamente nordestino. E acho, pessoalmente, que isso é um grande mérito. Não gosto dessa visão hegemônica, que proclama o regional como exótico”, sentencia, com a experiência de quem coordena, há dois anos, um grupo de estudos acadêmicos dedicado exclusivamente à obra do pernambucano, o Sodalício Osman Lins, ou simplesmente SOL. Sodalício? “Significa reunião de camaradas, um espaço de debates despido de formalidades”, explica Lourival. O SOL representa, em Pernambuco, o interesse crescente da academia pela obra de Osman Lins. A doutoranda em Literatura Comparada, Maria Tereza Dias, da Universidade de São Paulo, garante que os estudos dos aspectos mais inovadores da obra do autor pernambucano vêm crescendo, a partir da segunda metade da década de 1980, em ritmo veloz. Ela conta seis livros publicados com estudos críticos de fôlego, a respeito de aspectos distintos da literatura de Osman Lins.
Em geral, são dissertações de mestrados ou teses de doutorados que foram transformadas em livros, e debruçam-se minuciosamente sobre aspectos específicos dos textos do autor. Um bom exemplo é Osman Lins: Uma Biografia Literária, de Regina Igel, publicado pela editora T.A. Queiroz. O estudo relaciona episódios e personagens da vida real de Osman com a obra que ele deixou (esse era um truque que Osman Lins adorava: na página 188 de A Rainha dos Cárceres da Grécia, seu quarto romance, ele narra brevemente o encontro da protagonista com o escritor e grande amigo Gilvan Lemos). Outro livro de destaque, que compõe a fortuna crítica ainda incipiente do autor no Brasil, é As Falas do Silêncio em O Fiel e a Pedra, de Marisa Simons. Nele, a autora realiza uma análise, baseada em teorias psicanalíticas e na própria Crítica Literária, do significado do silêncio no livro. De fato, Marisa relaciona o uso do silêncio, tanto dos personagens do livro quanto nas próprias vozes silenciosas que encontra, correndo paralelas à narrativa-mestra do romance, com uma forma de resistência. Osman Lins é, atualmente, um escritor bastante estudado nas universidades brasileiras. Somente no programa de pósgraduação em Teoria da Literatura da UFPE, duas dissertações foram defendidas em 2003 sobre a obra de Osman Lins: Paginário: A Imaginação Crítica em Osman Lins e Italo Calvino, de Cristina Almeida, e A ordem sinuosa, de Fábio Cavalcanti, ambos do SOL. Iniciativas como essas demonstram como Osman Lins vem sendo mais estudado nas universidades nacionais. Segundo Lourival Holanda, existem grupos de estudo da obra dele
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Avalovara, um romance experimental de 1973, deixou o argentino Júlio Cortázar impressionado. “Se eu tivesse escrito esse livro, poderia passar mais 20 anos sem fazer mais nada”, elogiou
em atuação em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ângela Lins, por sua vez, guarda em casa quinze dissertações, defendidas em várias universidades brasileiras, sobre a obra do pai. Ângela, que também mantém boa parte dos manuscritos deixados por Osman, está organizando todo o material de que dispõe – e isso inclui uma série de contos infantis inéditos, que o escritor pernambucano fazia especialmente para as filhas, quando crianças – em um cômodo, na sua casa, para facilitar as pesquisas sobre vida e obra do pai. Osman viveu em Vitória até os 16 anos, quando se mudou para o Recife (das lembranças dessa fase saíram Lisbela e o romance inacabado, por exemplo). Casou com uma prima de 2º grau, em 1947, e teve três filhas, na época em que começou a trabalhar no Banco do Brasil e, simultaneamente, a escrever. O Visitante saiu em 1955, e o livro de contos Os Gestos, dois anos depois; cada um recebeu três prêmios literários. Mudou-se para São Paulo em 1962, logo após a publicação de O Fiel e a Pedra – o livro que considerava um marco divisório. “Esse livro é o ponto para o qual converge tudo o que eu fiz antes e o ponto de onde parte o que vim a fazer depois. É uma plataforma de chegada e de saída”, costumava dizer. Todos os grandes especialistas na obra que escreveu, incluindo os críticos Antônio Cândido (que prefaciou Avalovara e tinha Osman como autor da mesma estatura de Guimarães Rosa e Machado de Assis), João Alexandre Barbosa e José Paulo Paes, concordam com ele. Paes, inclusive, vai mais longe: “Não sei de ninguém, salvo Guimarães Rosa, que tivesse, como ele, um projeto criativo tão rico, tão vigoroso e tão coerentemente realizado”, escreveu. Em São Paulo, Osman Lins divorciou-se e casou com Julieta de Godoy Ladeira, também escritora, que o acompanhou pelo resto da vida. Ao todo, o vitoriense deixou 20 livros publicados, entre contos, romances, peças teatrais e até episódios de casos especiais para a televisão, como A Ilha do Espaço, um dos três únicos livros que levam sua assinatura e continuam em catálogo (nesse caso, pela Editora Moderna). Os outros dois são suas maiores obras, Nove, Novena e Avalovara, ambos publicados pela Companhia das Letras. A editora Planeta do Brasil já fechou acordo com os herdeiros para lançar Lisbela, simultaneamente com o filme, e está interessada em reeditar todo o catálogo da lavra de Osman. “Estamos negociando também com outras editoras”, informa Ângela Lins. • odrigo Carrero é jorna Rodrigo Carrero é jornalista. Continente julho 2003
Inédito: um conto Historinha manuscrita por Osman Lins para suas filhas meninas
Ilustrações: Leugim
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vez um homem que não servia para “E ranada.umaNem mesmo para mentir: suas histórias eram sem graça, inventadas com tanta falta de jeito, que aborreciam todo mundo. Então, como era preciso conseguir-lhe alguma serventia, começaram a lhe pregar na roupa as fitas e medalhas que eram encontradas nas gavetas. E que, como o tal homem, também não serviam para nada. Depois de algum tempo, o homem parecia uma loja de miudezas, um armarinho. Até nas pernas tinha penduricalhos, santinhos, medalhinhas, medalhões. Foi aí que as próprias pessoas que, como esse homem, para nada serviam, tinham pendurado nele essas coisas, começaram a respeitá-lo. Os que chegavam de fora e visitavam a cidade, vendo aquela figura cheia de medalhas, pensavam que era um grande herói. Tiravam o chapéu diante dele e se curvavam, afastando-se para dar-lhe passagem. Quanto ao Vale-nada, vendo-se tão glorificado, passou a considerar-se um Rei. Passou a dar ordens, cada vez mais cruéis. As pessoas, com pavor do tirano que, por brincadeira ou fastio, haviam criado, fugiram. O homem ficou sozinho na cidade. Sem coragem de trabalhar, não plantava nem criava. Um dia, não tendo mais o que comer, comeu as próprias medalhas e morreu engasgado”. •
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Plano de romance de A Cabeça Levada em Triunfo Osman Lins deixou seu sexto romance inacabado. Continente reproduz trechos inéditos do detalhado planejamento do livro gira em torno da luta pela cabeça de um homem. “O livro No caso, um cangaceiro: João Isidoro ou Antônio
Isidoro. O fato está relatado no romance de Hermilo, À Margem das Lembranças. Resolvido, porém, insatisfatoriamente. O próprio Hermilo tencionava voltar ao assunto, escrever um romance, tendo-o como tema central. (...) Para mim, o incidente, para começo de conversa, deve ser enunciado mediante uma dicção completamente diversa. Em Hermilo, os soldados chegam e no espaço de três ou quatro horas estão vencidos. Não. A cidade deverá anoitecer com aquela cabeça e aquele homem ali. É durante a noite que o problema se intensifica. As sombras. As fogueiras. Os fachos. As velas. Os sons. O velório ao ausente, numa das casas. A cabeça de Isidoro numa barrica e um caixão vazio em certa casa, com as pessoas em redor, como se ali houvesse um morto, o morto. Depois, insinua-se todo o significado simbólico de cabeça e corpo. (...) Depois problemas sérios: o tempo e o espaço. Em que época se passa? Não sei bem. 1932, 33, 34, talvez até antes. A cidade? Palmares. Igual a tantas outras cidades do Nordeste. Inventar uma topografia. (...) O tempo será duplo e infletirá sobre si mesmo. Este é o problema mais delicado e, talvez, mais difícil do livro. Estará ligado estreitamente à fábula. Só poderei assentá-lo definitivamente quando estiver clara a evolução dos eventos. Que eventos? Tudo se passará em um dia. Sim. Mas haverá, simultaneamente, dois tempos, dois espaços. Digamos: 1933 e 1951. O narrador, do seu ponto fixo – e paralítico –, vê a pasmaceira da cidade. Fulano que passa, em paletó de pijama, o vendedor tal, o lojista qual palitando os dentes, etc. E projeta sobre isso os acontecimentos heróicos. Mas não apenas porque a cidade hoje é parada, morta, porque o que ele vê é uma cena burguesa. Ele é perseguido por esses fatos. Atenção!!! Nada de: “nos últimos dias, tenho recordado, as lembranças voltam constantemente, etc.”. Não. Ele viu um soldado postado lá “naquele mesmo lugar” e, ou-
tro dia, ouviu “as mesmas cantigas”, outra vez chegou mesmo a ver “ali, ao sol, a barrica...”. Ele não recorda, propriamente. As coisas voltam. Já vem daí, em parte, o mistério da narrativa. Bem. De repente, aparece aquela figura que ele detesta: essa figura é ele próprio. Mas ninguém sabe disso, durante quase toda a história. Há um enigma em torno dessa figura. Algo que atormenta o narrador. Uma traição? De qualquer modo, esse cara levou um tiro e é por isso que está ali, paralítico. (...) O narrador tem conhecimento de que A.F. morreu na véspera e que será enterrado nesse dia. Ou de que morreu nesse dia (o paralelismo então é mais perfeito) e será sepultado no dia seguinte. Posso ocultar a identidade do narrador apenas eliminando o parentesco entre ele e A.F. Ele fala em X (o nome dele) e A.F. sempre na terceira pessoa. Depois que a cabeça é levada é que A.F. irrompe. É aí que o narrador revela, mediante uma simples troca de pronome, que ele e X são o mesmo. Essa manobra, aliás, talvez até seja dispensável. A identificação (o reconhecimento) opera-se através do tiro na coluna e da paralisia do personagem. (...) Os soldados da força volante. Descrevê-los assim: fulano, tal e qual. Dando, de todos, os mesmos traços. Mudando apenas o número de dentes. Uma descrição que se repete. A alusão aos dentes mudando de número e de lugar dentro do clichê. Então, a fábula já fica mais ou menos definida. (...) Vêm os soldados com a cabeça. Conciliábulos. Embaixada. Anoitece. Atacam a tropa. Tomam a cabeça. O comandante e mais uns dois soldados fogem. X é ferido na coluna e carregado para a casa do pai. A cabeça é recusada em vários lugares. Aparece o comandante, de madrugada, e negocia a cabeça com o pai do narrador. O velho, atraiçoando todos, entrega-a. Para X, que mais de uma vez pensara em atraiçoar os tomadores da cabeça, informando ao comandante, essa concessão do pai é sua. Tudo continua enigmático”. • Continente julho 2003
Da pintura à literatura feminina Os textos osmanianos apresentam-se ao leitor como objetos artesanais que trazem em si características sinestésicas. São como corpos artísticos, dotados de características femininas Ermelinda Ferreira
O
sman Lins nasceu em Vitória de Santo Antão, a 5 de julho de 1924, filho do alfaiate Teófanes da Costa Lins e da jovem Maria da Paz de Mello Lins, que morreu de complicações após o parto. Foi criado pela avó paterna, Joana Carolina, e pela tia Laura. Casou-se duas vezes, teve três filhas. Foi um homem apaixonado. As mulheres de sua vida o marcariam para sempre, e ele transformaria a sua paixão por elas numa incrível paixão pela palavra. Precocemente falecido, a 8 de julho de 1978, deixou uma obra rica, original e variada. Escritor profundamente autobiográfico, Osman Lins homenageou parentes e amigos através de seus livros, em histórias cujos cenários invariavelmente refletem os lugares onde viveu, sobretudo o interior de Pernambuco e as cidades do Recife e de Olinda, que aparecem humanizadas como mulheres, no estilo utilizado por Ítalo Calvino em seu livro Cidades Invisíveis. Pode-se dizer que a mulher é a grande personagem osmaniana. Talvez porque, como ele mesmo confessou, escrever foi um modo de preencher aquela ausência original da mãe: “O traço fundamental da minha vida é que, 16 dias depois que nasci, perdi minha mãe. Como ela não deixou fotografia, fiquei com esta espécie de claro atrás de mim. Isso configura a minha vida como escritor, pois parece que o trabalho do escritor, metaforicamente, seria construir com a imaginação um rosto que não existe”. Para muitos estudiosos, a literatura é tradicionalmente ligada ao verbo, ao tempo, à ação: ao masculino; enquanto a pintura é ligada ao silêncio, ao espaço, à passividade: ao feminino. Um texto é dito feminino quando é produzido por uma mulher ou quando tematiza a mulher, seja no corpo da história, seja na forma da escrita. Osman Lins é um dos melhores exemplos em língua portuguesa de um escritor do sexo masculino capaz de criar com sutileza textos femininos. Hábeis na captura da alma da mulher, em complexos enredos repletos de personagens femininas, seus textos transferem essa alma para a superfície da própria palavra. Por isso, não é só no campo da representação que esse autor reflete o feminino. É, sobretudo, na elaboração da linguagem: para ele, o aspecto mais importante de um texto ficcional. A linguagem osmaniana é, portanto, profundamente feminina: plástica, decorativa, ornamental, silenciosa. O silêncio na sua obra, principalmente na segunda fase de sua produção – que inclui as narrativas de Nove, Novena, e os romances Avalovara e A Rainha dos Cárceres da Grécia – é importante porque parece buscar, ao longo de textos paradoxalmente prolixos, a eloqüência muda da imagem. Mas o autor vai mais longe na pesquisa de motivos femininos. As próprias obras de arte que escolhe como modelos prendem-se a períodos anteriores ao Renascimento, como o estilo medieval ou gótico; ou imediatamente posteriores, como o estilo barroco. Percebe-se, nessa escolha, um deliberado questionamento da estética renascentista e de seus principais elementos: a perspectiva, o cálculo, a precisão, a razão
Ilustrações: Reprodução
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Adão e Eva, Ticiano, 1550, Museu do Prado, Madrid Na página anterior, O Paraíso Cristão, Hieronymus Bosch, 1500, Museu do Prado, Madrid
cartesiana, enfim, produto de uma mentalidade que se poderia dizer masculina, e que influencia fortemente a concepção da estrutura de seus textos, em geral muito elaborados. Essa busca febril por motivos e técnicas de criação muito antigos torna-se um contraponto da extrema modernidade e da novidade que insere em seus livros. O preciosismo de suas narrativas reflete de maneira crítica e criativa sobre as peculiaridades da cultura nordestina – que ainda hoje revela traços do medievalismo –, enquanto reciclam, à maneira contemporânea, elementos dos períodos medieval e barroco, o que acaba conferindo originalidade e beleza à sua escritura. Podese dizer que Osman Lins realiza um exercício de copista, uma oficina moderna de recriação de temas e de técnicas artísticas medievais ou afins, fazendo convergir para a página elementos tão díspares quanto vitrais, tapeçarias, retábulos e iluminuras. Assim, o espaço em suas histórias nos remete aos ambientes exuberantes de famosas reproduções do Paraíso cristão, dos séculos 15 e 16 – como O Jardim das Delícias, de Hieronymus Bosch, ou Adão e Eva, de Ticiano -, um tema recorrente no romance Avalovara. Já as personagens de suas histórias, concebidas como seres heterogêneos e compósitos, nos remetem muitas vezes às figuras ambíguas de Giuseppe Arcimboldo, artista italiano do século 16, autor das famosas Cabeças Compostas. Também há indícios de que os motivos da tapeçaria, em torno da qual essa história se organiza, viriam de certos painéis do século 15 que ficaram conhecidos como La Dame à la Licorne, expostos no Museu de Cluny, em Paris. Diz-se que, no seu conjunto, representam uma alegoria dos cinco sentidos, sendo sugestiva a existência de um sexto painel, correspondente ao misterioso “sexto sentido”, popularmente conhecido como um atributo feminino, místico ou sobre-humano. Também é curioso observar como a própria página escrita de seus livros muitas vezes se elabora como uma surpreendente recriação do estilo dos manuscritos medievais, onde o conteúdo sacro do texto era ornamentado de maneira exuberante pelas iluminuras e pelas ilustrações das margens, freqüentemente profanas, cômicas e carnavalizadoras da palavra emoldurada. É o que acontece com as narrativas de Nove, Novena,
cujo texto mais importante, dedicado à avó do autor, Joana Carolina, também se constrói como um retábulo, modalidade cara ao período medieval, por ser uma obra de arte específica dos altares das igrejas cristãs. Em A Rainha dos Cárceres da Grécia, se o modelo composicional não é diretamente plástico, é, no entanto, francamente medieval e feminino, uma vez que a protagonista do romance fictício escrito por Julia Marquezim Enone e analisado por um professor de literatura, homenageia, em seu nome, uma das primeiras vozes femininas da literatura francesa do século 12: Maria de França. Autora dos Lais (gênero de poemas narrativos curtos, para serem cantados ao som de harpa) e das Fábulas, Maria de França era uma mulher culta, falava línguas, conhecia o latim e lera os clássicos. Participava de um universo povoado de mulheres brilhantes, cujo poder e inteligência imprimiram novos rumos à cultura da Europa. No romance osmaniano, esse nome exerce um papel irônico, já que a pobre personagem nordestina, analfabeta e destituída de bens e de dons de toda a sorte, esgota a sua vida buscando obter uma pensão por invalidez do INSS. Em resumo: os textos osmanianos apresentam-se ao leitor como objetos artesanais que trazem em si características sinestésicas: embora configurando-se como narrativas, impressionam os olhos com a sua serenidade de pintura medieval, os ouvidos com os seus acordes de antiga caixinha de música, e sobretudo as mãos, como se as asperezas e suavidades das palavras neles impressas fossem coisas palpáveis, como se os dedos pudessem correr lentamente pelas bordas da página e sentir as ranhuras de uma velha moldura, ou tocar as saliências e reentrâncias das camadas de delicadas tintas sobre a superfície de uma tela de grosseiro e rústico tecido. São como corpos artísticos, dotados de características femininas. Porque escrever, para Osman Lins, sempre foi um ato de amor. • Ermelinda Ferreira é doutora em Letras pela PUC-Rio e Universidade de Lisboa e professora da UFPE e da Fafire. É autora de Cabeças Compostas - A Personagem Feminina na Narrativa de Osman Lins- 2000. Continente julho 2003
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Fotos: Divulgação
Diretor Guel Arraes finaliza produção de Lisbela e o Prisioneiro, baseado num texto despretensioso do escritor mas com todos os ingredientes de uma boa comédia, a estrear em agosto nos cinemas Ernesto Barros
Um Osman lúdico nas telas Débora-Lisbela: personagem fascinada pelo cinema Abaixo, Marco Nanini é o único a participar de duas versões
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uando a versão cinematográfica de Lisbela e o Prisioneiro chegar às telas dos cinemas em agosto, um ciclo vai estar se fechando na vida do diretor pernambucano Guel Arraes. Nos últimos 10 anos, ele esteve envolvido com o texto de Osman Lins por três vezes: em 1993, a peça foi adaptada para a TV na estréia da série Clássicos Brasileiros; em 2000, Lisbela e o Prisioneiro voltou às origens teatrais, para, finalmente, ser traduzida para a linguagem do cinema. “Na verdade foram temporadas dentro desses dez anos: três meses para o especial de tevê, três ou quatro para a peça, sete ou oito para o filme”, contabiliza o cineasta. “As duas primeiras montagens (especial e peça), embora com uma produção pequena, tiveram uma ótima resposta do público, o que fez com que Virginia Cavendish e Paula Lavigne, mentoras do projeto, me animassem a levar a história para o cinema”. Com formação de cineasta, Guel Arraes trouxe para a TV, a partir do programa Armação Ilimitada, na metade dos anos 80, referências da cultura pop e um estilo visual que o diferenciavam do anonimato a que são relegados os profissionais da telinha. Somente depois da experiência bemsucedida de O Auto da Compadecida e Caramuru – A Invenção do Brasil, duas minisséries televisivas que foram lançadas nos cinemas como filmes, é que ele partiu para um projeto eminentemente cinematográfico. “Considero que meus primeiros filmes foram seriados e especiais de tevê e Lisbela e o Prisioneiro é um desenvolvimento destes trabalhos. Mas posso diContinente julho 2003
ESPECIAL 17 »
Heloisa Perissé e Selton Mello numa cena de Lisbela e o Prisioneiro
zer que Lisbela é a minha primeira produção de cinema. Tivemos mais tempo para elaborar o roteiro e finalizar o filme, mais folga para produzi-lo”. Com um orçamento de R$ 6 milhões, a produção de Lisbela e o Prisioneiro teve as cenas externas rodadas em Pernambuco. O Pátio de Santa Cruz, no bairro da Boa Vista, no Recife, as cidades de Igarassu e Paudalho, na zona da mata, e a Praia de Porto de Galinhas, no litoral sul do Estado, são os palcos principais para as estripulias dos personagens do filme. Encenada pela primeira vez em 1961, no Rio de Janeiro, pela Companhia Tônia-Ceci-Autran, Lisbela e o Prisioneiro era para Osman Lins um simples entretenimento, com pouca semelhança com a obra literária que seria desenvolvida posteriormente, como os romances Avalovara e A Rainha dos Cárceres da Grécia. Guel Arraes conta que descobriu o texto de Osman Lins quando estava procurando histórias para a realização da série Clássicos Brasileiros. Foi o especial da tevê que lhe deu coragem e estímulo para filmar O Auto da Compadecida, adaptado da obra de Ariano Susssuna. “Trabalhar com a prosódia, o humor e temas nordestinos teve para mim um gosto particular”, confessa. “Costumo dizer que com esses dois trabalhos virei pernambucano de novo”.
Para o diretor, Lisbela e o Prisioneiro e O Auto da Compadecida apresentam a versão nordestina de alguns personagens da história universal, como os valentões, a assanhada e os sabidos, entre outros, apesar das diferenças entre os protagonistas das duas peças. “João Grilo é um personagem mais ligado à tradição clássica do criado, do picaresco e se tornou um dos personagens mais ricos da dramaturgia brasileira. Leléu me parece um tipo híbrido: entre a tradição e a modernidade, meio cômico, meio galã”, esclarece. No filme Lisbela e o Prisioneiro, quem interpreta o malandro Leléu é Selton Mello, o ator fetiche de Guel Arraes, que já esteve presente em O Auto da Compadecida e Caramuru – A Invenção do Brasil. A trama conta as aventuras desse caixeiroviajante que, de dentro da boléia de um caminhão ultrakitsch, vive uma persona em cada lugar que chega. Uma das paradas é Vitória de Santo Antão, terra natal de Osman Lins, uma cidade que simboliza todos os vilarejos nordestinos. É lá que ele se apaixona por Lisbela (Débora Falabella, que trabalha pela primeira vez com o diretor), uma jovem que sonha de olhos abertos com os galãs das telas dos cinemas. Noiva de Douglas (Bruno Garcia) e filha do tenente Guedes (André Matos), o delegado da cidade, Lisbela se envolve Continente julho 2003
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A partida
Paulo Autran, no filme de Sandra Ribeiro: difícil adeus
Curta com roteiro baseado em conto de Osman tem Autran e Geninha no elenco
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delicada despedida entre um neto e sua avó, nos confins do sertão pernambucano, é o ponto inicial do vídeo A Partida. O curta metragem (15 min.) da cineasta pernambucana Sandra Ribeiro foi inspirado no conto homônimo de Osman Lins. O elenco é formado por nomes de peso – como Paulo Autran e Geninha da Rosa Borges, além do estreante Marcelo Lacerda – que tentam interpretar o difícil adeus. O roteiro do filme percorreu um longo trajeto até ser executado. Tudo começou quando a cineasta era estudante de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco e, dentro das aulas de televisão, teve que transformar um conto em um roteiro. Era a primeira vez que o conto A Partida de Osman Lins chegava às mãos de Sandra Ribeiro. Depois de tirar dez no exercício, ela deixou o roteiro na gaveta. Porém, filmes e vídeos começaram a fazer, cada vez mais, parte do seu cotidiano. No projeto de conclusão de curso, a cineasta produziu um vídeo sobre Valdemar de Oliveira e começou a se envolver com a sétima arte. Outros vídeos começaram a sair do papel, como Ai d'eu Sodade, que foi premiado no Festival de Tóquio. O roteiro de A Partida continuava no fundo da gaveta, um tanto empoeirado. Foi um calendário da cidade de Buíque que relembrou à diretora seu antigo trabalho de universidade. “Quando eu vi as fotos daquela cidade, resolvi fazer um vídeo que tivesse aquele ambiente como cenário”, explica. Nesse momento, ela lembrou do seu velho roteiro, o qual sempre quis colocar em prática. Ela recuperou o roteiro e começou a adaptá-lo. Desde o início a cineasta já sabia que Buíque e a Serra do Catimbau seriam suas locações. “Como eu estava esperando uma oportunidade de mostrar essa terra, o roteiro foi adaptado para realizar-se no sertão”, comenta. No conto, Osman Lins narra o momento em que ele saiu Continente julho 2003
da casa de sua avó. Como a mãe do escritor morreu no parto, ele foi criado por ela. Forçado a partir pela pobreza e pela desilusão com o futuro no interior, o personagem sofre por querer ir embora e ter que abandonar sua avó. A ansiedade para partir e a saudade antecipada deixam um clima tenso e angustiante no ar. No texto, Lins recorda, anos mais tarde, os últimos momentos, os últimos olhares e os últimos gestos que antecederam sua partida. No filme, Paulo Autran faz essa narração, enquanto Geninha da Rosa Borges e Marcelo Lacerda ilustram A Partida, sem trocar uma só palavra. Segundo Sandra Ribeiro, Geninha da Rosa Borges foi a primeira a ser escolhida, o papel da avó foi reservado para ela. “Depois, eu pensei em Paulo Autran, mas não sabia se ele ia aceitar. Como ele é primo de Geninha e eles sempre quiseram trabalhar juntos, consegui convencê-lo”, revela. Como o personagem de Autran é o narrador da história, anos depois dela ter acontecido, era preciso encontrar “um jovem Paulo Au-tran”. Assim que Sandra se deparou com Marcelo Lacerda, ela percebeu que ele era o seu jovem Autran. Para Geninha da Rosa Borges essa experiência foi muito gratificante porque ela pôde trabalhar, mesmo que à distância, com seu primo Paulo Autran. Ela e Marcelo gravaram em Buíque, enquanto Autran filmou em São Paulo. Além disso, a atriz também homenageou seu antigo amigo Osman Lins. A amizade nasceu em Paris, quando ambos estavam estudando na França. “Foi Osman quem alugou um lugar para eu ficar enquanto fazia o estágio, em Paris’, lembra Geninha. Autran também teve uma boa aproximação com Lins. A primeira montagem de Lisbela e o Prisioneiro foi feita nos anos 60, no Teatro Mesbla, pela companhia de teatro de Tônia Carreiro, Adolpho Celi e Paulo Autran. (Mariana Oliveira) •
ESPECIAL 19
Guel Arraes no set, dirigindo Lisbela: repernambucanização
com Leléu, que está sendo procurado pelo matador profissional Frederico Evandro (Marco Nanini) por ter-se metido com a mulher dele, Inaura (Vírginia Cavendish). A maior parte do elenco do filme saiu da encenação teatral, mas alguns atores trocaram de personagens. Os atores pernambucanos Bruno Garcia e Virgínia Cavendish, por exemplo, interpretaram o casal Leléu e Lisbela na peça. Entre todos, Marco Nanini é o único ator a ter trabalhado na adaptação para a TV. Para Guel Arraes, o fato de ter adaptado o texto de Osman Lins para a TV e o teatro foi uma experiência que acrescentou muitas vantagens na elaboração do roteiro de Lisbela e o Prisioneiro, desenvolvido por ele, Jorge Furtado e Pedro Cardoso. “Pude elaborar e testar o resultado de um roteiro em duas etapas e dois veículos (tevê e teatro) diferentes. Pude formar uma pequena trupe de atores que passou meses representando o texto no palco e, portanto, ensaiando para o filme, pude observar a platéia de centenas de apresentações da peça”. Assim como no especial da tevê, o fascínio pelo cinema é uma das marcas da personagem Lisbela. Na época, Guel utilizou pequenos trechos de filmes em preto e branco que se misturavam às cenas vividas pelos personagens da peça, além dos que passavam no cinema freqüentado por Lisbela, local onde ela é cortejada por Leléu. Desta vez, o recurso foi usado com mais requinte. “Os trechinhos de filmes a que ela assiste, diferentemente do especial e da peça, foram produzidos por nós, parodiando diversos gêneros de cinema americano”. Agora, é só esperar agosto chegar e conferir Lisbela e o Prisioneiro na tela do cinema. • Ernesto Barros é jornalista e crítico de cinema.
O diretor descobriu o texto de Osman Lins quando procurava histórias para a série Clássicos Brasileiros da TV Globo
Selton integra o elenco dos três filmes do diretor Continente julho 2003