Continente #34 - Vinicius de Moraes

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O poeta da paixão No dia 19 deste mês Vinicius de Moraes estaria completando 90 anos e sua obra, muito citada, mas pouco lida, revela um homem habitado por muitos poetas José Castello

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uando um artista pinta um par de sapatos, uma fruteira, uma paisagem, é seu próprio retrato que está pintando. A prova disso é que dizemos um Cézanne, um Picasso, um Renoir, e não um par de sapatos, uma fruteira etc. A idéia, relatada por Jean Marais em Histórias da Minha Vida, se refere ao francês Jean Cocteau (1889-1963), um homem que jamais se contentou com uma só arte, tanto que foi poeta, romancista, dramaturgo, cineasta, pintor, coreógrafo e músico. Mas, se transportada para a figura do poeta e músico Vinicius de Moraes, continua impecável. O músico genial, fundador da Bossa-Nova, parceiro de Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell, Toquinho, Chico Buarque, Edu Lobo, entre tantos, todos conhecem. O poeta, a verdade é essa, quase ninguém. Sim, nós o recitamos na escola, e às vezes seus versos são usados nas provas de vestibular; e muitos erram as respostas. Sabemos vagamente que escreveu poemas como Operário em Construção e a Balada das Meninas de Bicicleta, que todos conhecem de nome, mas nem sempre de versos. E que são seus versos célebres como “as muito feias que me perdoem/ mas beleza é fundamental”, mas quase ninguém lembra o nome do poema em que eles estão. Sabemos ainda que Vinicus fez parte de um grupo de poetas brasileiros simplesmente geniais, que enobreceram nosso século 20, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Cecília Meirelles. Mas, quase sempre, é só o que sabemos. E, no entanto, tínhamos tudo para não esquecer. Primeiro porque, como Cocteau, Vinicius foi um artista inquieto, que escreveu poemas, letras de música, peças para teatro, crônicas, crítica de cinema e até um romance – Polichinelo, bastante sofrível, é verdade, e arquivado em seu “baú” na Fundação Casa de Rui Barbosa. Foi compositor e também cantor. Toda essa superexposição, contudo, em vez de ressaltar a imagem do poeta, parece tê-la esmagado. Depois, Vinicius, mais que qualquer outro, foi um Continente outubro 2003


16 CAPA poeta que jamais pretendeu se separar de sua poesia, afastar sua imagem pessoal da imagem escrita. Em vez disso, fez da poesia parte da própria vida e, para completar a estratégia, da vida parte essencial do poema. Jogou, portanto, a poesia no mundo – ela que, hoje, parece assunto de especialistas, de doutores da academia, de críticos e artistas, e quase nunca de leitores comuns. O músico engoliu o poeta. Sim, Vinicius teve sua obra poética relançada, de modo impecável, a partir dos anos 80, pela Companhia das Letras. Foi objeto, nos anos 90, de duas alentadas biografias. Tudo se fez para ressuscitar o poeta - mas quem se levantava das páginas dos livros, no lugar dele, era quase sempre o bon vivant, o show-man, o cantor, compositor, no máximo o letrista estupendo - raramente o poeta genial. Por quê? É claro, a poesia provoca muito menos interesse que a música popular; sonetos, baladas e versos longos são bem menos sedutores, para a maioria das pessoas, do que sambas, chorinhos e outras canções . É natural, se dirá. O mundo é assim mesmo: um músico, ainda mais um grande anjo gordo, com seu charme com as mulheres e seu incorrigível copinho de uísque, vale muito mais que um poeta, sujeito introspectivo, arredio, solitário – provavelmente um chato. Pode ser. Mas não é. Há uma recusa, grave, que escondeu e continua a esconder o poeta Vinicius de Moraes sob as asas inebriadas, as batas esvoaçantes, as piadas deliciosas, a sedução do músico, do grande músico, Vinicius de Moraes. Médico e monstro? Não, dois médicos; ou, pensando melhor, dois monstros, dois maravilhosos monstros. Na música popular brasileira, de fato, Vinicius teve um papel crucial, não só como letrista especialmente inspirado, e criativo, mas como mentor daquilo que já aconteceu de mais importante na história da MPB: a Bossa-Nova. Foi um grande letrista, talvez insuperável. Mas temos letristas estupendos na música brasileira moderna, tais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Torquato Neto, só para citar três, muito especiais, entre tanto letristas especiais. Não é que Vinicius tenha sido “melhor”, ou “superior” a eles; as coisas não devem ser medidas assim. Acontece que Vinicius veio antes deles, Vinicius os gerou – e, provavelmente, sem Vinicius eles não teriam sido o que são. Vinicius foi o grande pai de tudo o que temos de bom, hoje, em nossas letras de música. Estabeleceu padrões originais, para além das velhas regras da “dor de cotovelo”, que então predominavam em nosso cancioneiro, e agregou temas simples, tirados do cotidiano, quase banais, que Foto: Moacir Gomes/Reprodução

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Da esquerda para a direita – Carlos Drummond de Andrade, Vinicius, Manuel Bandeira, Mário Quintana e Paulo Mendes Campos Continente outubro 2003


CAPA 17 » Foto: Paulo C. Garcez/Reprodução

antes pareciam “antimusicais”, ou pouco dignos da arte da música. E, desse modo, aproximou os letristas da vida real. Mas, a pergunta retorna: por que essa figura ímpar, que além de letrista inspirado foi também um grande compositor – basta pensar em Ai Quem me Dera, em Pela Luz dos Olhos Teus –, por que ele não pôde, e ainda não pode, ser visto como poeta? Acontece, primeiro, que Vinicius não foi um só poeta: muitos poetas, de escolas, estilos e espíritos diferentes habitaram o cidadão Vinicius de Moraes. É inevitável recordar a piada que ele sempre repetia: “Se eu fosse um só, me chamaria Vinicio de Moral, e não Vinicius de Moraes”. Aluno de padres jesuítas, ele começou escrevendo longos e enroscados poemas metafísicos (como O Incriado), sonetos clássicos (como o Soneto da Madrugada e o Soneto do Amor Maior), poemas de longos versos e idéias sinuosas (como Solilóquio).

Sabemos ainda que Vinicus fez parte de um grupo de poetas brasileiros simplesmente geniais, que enobreceram nosso século 20, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Cecília Meirelles Para um menino tímido, atingido brutalmente pelas questões metafísicas e morais impostas pelo catolicismo, e ainda depois influenciado por amigos mais velhos ligados à ortodoxia do Vaticano, como o romancista Octávio de Faria, a poesia não podia ser outra coisa: devia ser, como foi a prosa para Octávio, quase que um subgênero da religião. Não é por outro motivo que a figura da mulher – que mais tarde tanta importância terá na vida e na arte de Vinicius – está quase que completamente borrada, ou “santificada”, nessa primeira fase. A mulher que o jovem poeta tem em mente é inacessível, de uma pureza absoluta; um ser perfeito, diante do qual o homem se torna um ser indigno, se não abjeto. Talvez um reflexo, humano, da própria Virgem Maria. Depois de se casar com Tati de Moraes, a primeira de suas nove mulheres oficiais, felizmente, essa idéia a respeito da mulher mudou completamente. Tati, a genial Tati, com sua formação feminista, suas idéias de esquerda e sua enorme força interior, empurrou Vinicius em direção ao cotidiano e à vida, aproximando-o, não só em sua relação íntima, mas através das idéias e dos versos, das questões carnais. Vinicius se casou em 1939, aos 26 anos de idade, e foi nesse mesmo ano que terminou de escrever as Cinco Elegias, cinco poemas extraordinários que já anunciavam o desaparecimento de um Vinicius e o nascimento urgente de outro. Elas estão entre os melhores poemas que ele escreveu. Delas, as quatro primeiras ainda foram escritas no sítio de Octávio de Faria, em Itatiaia, Tom Jobim e Edu Lobo, parceiros do Vinicius compositor e cantor

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onde um grupo de rapazes tímidos e cheios de dúvidas se trancavam para debater filosofia e religião. Ainda assim, resultaram tensas e cheias de conflito, bastando pensar na terceira, e certamente a mais bela dentre elas, a Elegia Desesperada. O desespero, no caso, vem dos sentimentos e sonhos que nele afloravam, mas que, apesar disso, por culpa dos remorsos espirituais, ele ainda tratava de, sumariamente, censurar e afastar. “Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde/ E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...”, ele escreveu, deixando exposto não só o conflito, mas a angústia por ele gerada. O erotismo já o pressionava intensamente: “Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas/ De corpo hermético e coração patético”, escreve. Até que, no fim do poema, talvez exaurido por tantas preocupações com os outros, o Eu finalmente surge: “E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!” A partir daí, muitos poetas surgem do coração enfim aberto, destroçado mesmo, do poeta. Vinicius foi o poeta engajado que escreveu a Balada da Praia do Vidigal (Na sombra que aqui se inclina/ Do rochedo em miramar/ Eu soube te amar, menina...”), a Balada do Mangue (“Pobres flores gonocócicas/ Que à noite despetalais”), o pacifista A Rosa de Hiroxima (“Pensem nas crianças/ Mudas telepáticas”). E o mais célebre dentre eles, O Operário em Construção (“Era ele que erguia casas/ Onde antes só havia chão./ Como um pássaro sem asas/ Ele subia com as casas/ Que lhe brotavam da mão”). Escreveu ainda aquele que é, talvez, o mais belo, e o menos oficialista, poema já criado para a pátria brasileira, Pátria Minha (“A minha pátria é como se não fosse, é íntima/ Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo/ É a minha pátria”). Foi o poeta das baladas doces, como a Balada das Meninas de Bicicleta (“Meninas de bicicleta/ Que fagueiras pedalais/ Quero ser vosso poeta!”) e a genial Balada das Arquivistas (“Oh jovens anjos cativos/ Que as asas vos machucais/ Nos armários dos arquivos!”). Apesar do desprezo que os poetas de vanguarda sempre lhe destinaram, escreveu versos experimentais, como Azul e Branco, poema em louvor do prédio do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro (“Massas geométricas// Em pautas de música/ Plástica e silêncio/ Do espaço criado. Concha e cavalomarinho”). E, bem antes dele, A Última Elegia (“Greenish, newish roofs of Chelsea/ Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis”). Nunca abandonou inteiramente a herança gótica, vinda da formação com os padres jesuítas, um legado difícil de sustentar que aparece dolorosamente, por exemplo, na obscura Balada do Enterrado Vivo (“Na mais medonha das trevas/ Acabei de despertar/ Soterrado sob um túmulo”). Nem deixou de fazer da poesia, sem se preocupar com o que poderiam pensar disso, um veículo de confissão, do relato direto e quase despudorado das experiências do Eu. Como em Rosário, poema em que trata de sua primeira experiência sexual (“E eu que era um menino puro/ Não fui perder minha infância/ No mangue daquela carne!”). Escreveu para os amigos vivos ou mortos – como fez em Saudade de Manuel Bandeira (Lúcido, alto e ascético amigo/ De triste e claro coração/ Que sonhas tanto a sós contigo/ Poeta, pai, áspero irmão?”) e na Balada de Pedro Nava (“Meu amigo Pedro Nava/ Em que navio embarcou:/ A bordo do Westphalia/ ou a bordo do Lidador?”) Vinicius foi um poeta para quem o cotidiano, o presente e o real guardavam um caráter superior, e mesmo mágico, muito mais pujante do que a suposta grandeza da metafísica. Tal aspecto se expressa em poemas que são verdadeiras canções, por sua leveza e elegância, como é o caso do famoso O Dia da Criação (“Neste momento Continente outubro 2003

Vinicius foi um poeta para quem o cotidiano, o presente e o real guardavam um caráter superior, e mesmo mágico, muito mais pujante do que a suposta grandeza da metafísica


Ensaio do show Pobre Menina Rica com Carlinhos Lyra, Aloysio de Oliveira (diretor do show), Nara Leão e Vinicius, no Au Bon Gourmet, 1963

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há um casamento/ Porque hoje é sábado./ Há um divórcio e um violamento/ Porque hoje é sábado./ Há um homem rico que se mata/ Porque hoje é sábado.) E nunca, mas nunca, deixou de escrever sobre o amor, em todas as suas formas, com todos os seus excessos e derramamentos, todo o seu forte e extravagante lirismo. Basta pensar em A Paixão da Carne (“Envolto em toalhas/ Frias, pego ao colo/ O corpo escaldante”). Poesia e paixão lhe pareciam inseparáveis. Tanto que, uma vez, Vinicius disse: “Os poetas estão faltando porque estão faltando homens em geral. Eles estão com medo da vida”. Nessa guinada rumo à vida real, uma presença decisiva: a de Manuel Bandeira. “Ele me fez uma espécie de limpeza mental”, Vinicius relataria mais tarde. “Me desmistificou. Tive com ele uma amizade libertadora”. Quando tirou a cabeça das nuvens e passou a fincar os pés na terra, sem receios, sem pudores com a existência, a vida de Vinicius começou, ela também, a mudar. Já não era mais o jovem que, em viagem de estudos, passou seis meses em Oxford, vigiado por um tutor a quem devia apresentar um ensaio semanal, lendo Shakespeare, Blake, Keats, Shelley, Eliot. Conheceu Bandeira em 1936, aos 23 anos. Partiu para a Inglaterra em 1938, aos 25 anos. Voltou casado, por procuração, e o impacto da influência de Bandeira só se disseminaria nessa volta. E ele se tornou, para desprezo de alguns e delícia de muitos, o grande poeta do lirismo, um insolente e extraordinário poeta lírico, como nunca a língua portuguesa chegou a produzir. Vinicius foi um homem de pouquíssimos medos. Dizia, por exemplo, que tinha medo de fantasma, e que já estivera frente a frente a alguns, mas isso, se verdadeiro, foi uma exceção. Se há uma coisa de que efetivamente não teve medo algum, foi da pecha de poeta romântico, lírico e, quem sabe, deslocado de seu tempo. Escreveu a poesia que tinha que escrever, sem se preocupar com expectativas, cânones, ou críticas. Foi o mais independente e o mais livre de nossos poetas. E foi esse lirismo, derramado, exagerado, intenso, e às vezes tido como simplório, como “fácil” e “popular”, que o estigmatizou. Vinicius foi poeta em tempo integral. “Entre todos nós, ele foi o único que viveu como poeta”, disse Carlos Drummond, pensando numa geração de poetas exemplares como Cabral, Continente outubro 2003


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20 CAPA Foto: Projeto Portinari/Reprodução

Retrato de Vinicius de Moraes, por Portinari (1938. Pintura a óleo/madeira, 56x46,5cm. Coleção particular – Rio de Janeiro)

Bandeira, Cecília Meirelles, Augusto Frederico Schmidt e ele mesmo. Alguns, como Cabral, não chegaram a compartilhar dessa posição. O autor de O Cão sem Plumas, certa vez, chegou a dizer: “Não fosse a música, e Vinicius teria sido o maior poeta da língua brasileira no século 20”. O lirismo, que era a base de tudo, podia se transformar também num estigma. Lentamente, Vinicius foi rompendo por completo a barreira de cristal entre poesia e vida, a um ponto em que a poesia chegou a parecer quase desnecessária – a poesia escrita, publicada em livro, bem entendido. E como isso incomodou os poetas de seu tempo. E sobretudo incomoda os de hoje, que em maioria nem chegaram a conhecêlo pessoalmente, grande parte deles vindos da universidade e do pensamento teórico, cheios de ressalvas, de regras, de senões – diria Vinicius, com doçura, cheios da “pose de poeta”. Esse lirismo teve duas direções: não só a poesia impregnando a vida, mas a vida impregnando a poesia. Foi nesse meio-caminho, entre a escrita e a realidade, que Vinicius de Moraes escolheu trafegar. Optou pelo caminho do meio, em que nada se desperdiçava. Com isso conferiu um novo status aos versos circunstanciais, fazendo da circunstância, sumo e essência, ponto de partida, com sua pena encharcada da experiência, e ponto de chegada, com seus versos úmidos. Vinicius, antes de tudo, poeta do momento. Casando-se pela terceira vez, com Lilá Boscoli, em 1951, mulher envolvida com a música e a noite, cresceu seu interesse pela música popular e se romperam os preconceitos que, ainda ali, e apesar de toda a paixão pela música, alimentava. Em 1956 que convidou o desconhecido Tom Jobim para trabalhar com ele na partitura do Orfeu da Conceição. A guinada mais radical se dá em 1970, quando, ao se casar com a atriz baiana Gesse Gessy, ligada aos hippies e artistas populares de Salvador, Vinicius se tornou ele também uma figura de aparência marginal. Passou a usar batas, chinelos com solas de pneu, colares exóticos; e a editar pequenos livros, em tiragens reduzidíssimas, hoje praticamente desaparecidos, imitando os métodos dos chamados poetas marginais – Cacaso, Ana C., Chacal , os poetas da geração do mimeógrafo, do improviso e, sobretudo, do cotidiano brutal. Vinicius, o homem sedutor, viril, mas sensível que, em 1971, numa entrevista, declarou: “Se houvesse reencarnação, para mim, eu gostaria mesmo era de voltar sendo mulher”. E justificou a afirmação: “As mulheres compreendem com a sensibilidade. Esse negócio de lidar com os fenômenos da inteligência não me interessa mais. Não dá em nada”. Não poderia haver declaração mais extrema, mais radical de seu intenso amor pela mulher. Algo que ultrapassava a carne e que chegava a ser, de certo modo, se não uma identificação, uma profunda compreensão. Uma cumplicidade. Em outra entrevista, ele reafirmava o elo decisivo entre poesia e vida, aliança que sempre o norteou. Vinicius diria: “A poesia é tão vital para mim que ela chega a ser o retrato de minha vida. E eu me considero um ser tão imperfeito”. E era dessa imperfeição, dessa inconstância e contínua incerteza, que surgiam os versos. Não para curá-las, como um elixir, ou para encobri-las, como um disfarce, mas para celebrar a fragilidade e beleza da vida. • José Castello é jornalista e autor do livro O Poeta da Paixão – Uma Biografia.

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Poemas belos e necessários Em Vinicius de Moraes a experiência com a palavra chega constantemente no limite em que ela parece dissolver-se noutra coisa Antonio Candido

Por isso, precisamos deles para ver e sentir melhor, e eles não dependem das modas nem O das escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinis poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles.

cius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou na circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos. Do que trouxe, lembro apenas: a peculiaríssima ligação que estabeleceu entre o amor e o mar, praia e a vida amorosa; mistura do vocabulário familiar com uma espécie de casto impudor; a invenção de um léxico de amor físico que abole qualquer diferença entre ele e o que é considerado não-físico. E mais um uso próprio do ritmo de romance popular, quem sabe inspirado inicialmente em Garcia Lorca. E uma reconstrução de soneto. E a transformação do versículo solene dos seus primeiros livros em ritmo suspenso entre verso e prosa, de modo a não haver mais verso nem prosa, mas prosa e/ou verso, em franca ida e volta. E a capacidade de dessolenizar as coisas solenes para guardar o que têm de sério no meio da pilhéria aparente. E a capacidade de se apegar às coisas pequenas e humildes para lhe dar uma gravidade que não vem do tom, mas da estrutura latente de paradoxo que enforma a sua poesia. Vinicius começou falando mais ou menos como outros. Os seus primeiros livros – Caminho Para a Distância (1933), Forma e Exegese (1935) – são afogados no longo verso retórico usado pelos poetas cristãos daquele tempo, com uma vontade quase cansativa de espichar o assunto e um certo Continente outubro 2003


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Receita de mulher complexo de antena, ou seja, o esforço de captar algo misterioso, fora da órbita normal. Mas Vinicius capitalizou essa falação para transformá-la num sentimento muito pessoal das coisas inexplicáveis, que acabou por dessacralizar, tirando-as da metafísica para criar uma física extremante humana e comunicativa. Os anos de 1937 a 1945 são fundamentais neste sentido. Neles se firma a fisionomia do poeta que conhecemos e que, sem perder a experiência anterior, renovou essencialmente a sua linguagem e a sua orientação. Novos Poemas (1938) ainda é meio solene, mas já mostra a capacidade de variar os ritmos, fazer verso curto e jogar com as formas fixas, inclusive o soneto, instrumento rígido e fechado que ele haveria de abrir em estruturas livres. Nalgumas das suas páginas, como O Falso Mendigo, está pronto o Vinicius renovado. Em 1943 surge as Cinco Elegias, poemas densos, escritos entre 1937 e 1939, nos quais a pesquisa metafísica dos primeiros tempos foi canalizada para representar a naturalidade do amor, a inquietação relacionada à experiência corrente, o mistério traduzido em familiaridade e temperado com uma espécie de humor sem agressão – traços que nunca mais sairiam de suas receitas. É notável o sentido experimental da linguagem, que o levou a jogar com os aspectos visuais, tão em moda atualmente. Poemas, Sonetos e Baladas (1946) talvez seja o momento de síntese da sua capacidade e ritmos. Nele encontramos Vinicius inteiro, o de antes e o de depois; o que apela para a transcendência e o que realiza o verso correndo os dedos pelo violão. Numa tarde de domingo ele nos leu inteiro o livro ainda inédito: e aliás teria sido preciso vê-lo naquele tempo, na flor dos vinte e tantos anos ou dos primeiros trintas, corretamente vestido de escuro, mas sem sombra de convencionalismo; extremamente polido e sereno, com uma boa vontade fraterna e universal, não se espantando de nada e fazendo da sua poesia um espanto permanente com tudo. Era capaz de passar a noite devagar, com o copo de uísque perto da cadeira, o violão no colo, olhos postos nalguma coisa distante, cantando com voz curta e abafada, escorregando para bate-papo, inserindo comentários, voltando ao canContinente outubro 2003

As muito feias que me perdoem

Mas beleza é fundamental. É preciso Que haja coisa de flor em tudo isso Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular chinesa). Não há meio-termo possível. É preciso Que tudo seja belo. É preciso que súbito Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços Alguma coisa além da carne: que se os toque Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas No enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras É como um rio sem pontes. Indispensável Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida A mulher se alteie em cálice, e que seus seios Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral


Ilustração: Reprodução

Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem No entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!). Preferíveis sem dúvida os pescoços longos De forma que a cabeça dê por vezes a impressão De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior A 37 graus centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos Ao abri-los ela não mais estará presente Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber O fel da dúvida. Oh, sobretudo Que ele não perca nunca, não importa em que mundo Não importa em que circunstâncias, a sua infinitiva volubilidade De pássaro, e que acariciada no fundo de si mesma Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre O impossível perfume; e destile sempre O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

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to. Vinham canções inglesas, modinhas antigas, valsas cariocas, um poema de Bilac cuja melodia só ele conhecia, porque seu pai lhe ensinava, poemas seus que já então punha em música, porque a sua poesia sempre resvalou para ela. É o caso da Balada a Pedro Nava, típica do seu processo de tomar um pensamento de amizade ou ternura, uma anedota, uma alusão ao dia-a-dia, uma complacência consigo mesmo – e de repente abrir as asas. Por isso, o Vinicius de agora parece conseqüente e necessário, como se toda a sua vida e a sua poesia tivessem confluído no bom caminho. Para os moços, ele é de certo modo incompreensível sem a bossa-nova, Tom Jobim, Chico Buarque de Holanda; incompreensível sem os festivais da canção e essa vasta musicalização da poesia, que é uma das faces que ela mostra ao nosso tempo, transformando os poetas em letristas e cantores. Mas, para os mais velhos, ele é o Vinicius de sempre, apascentando a sua constelação fraternal de recursos e gêneros – crônicas de jornal, conversa, notícia, confissão, indignação política, discurso de amizade, declaração sempre pronta de amor. Um dos seus feitos foi trazer para a casa da poesia, dando-lhe um arranjo próprio, essa matéria que anda dispersa noutras formas – na prosa de Rubem Braga, nalgum lamento de Orlando Silva, no gesto simples de cada um. Com ar de quem conversa ocasionalmente (como já dedilhava o violão em nosso tempo de rapazes), Vinicius vai transformando tudo em estilo, num espaço poético vasto e arejado. E criando alguns dos poemas mais belos e necessários do nosso tempo. Infância na praia, familiaridade com as coisas do mar, geografia fantástica do corpo feminino dissolvida na sua história pessoal, procura do sentido da vida, infinita paciência e compreensão do outro, experiência com a palavra no limite constante em que ela parece dissolver-se noutra coisa, milagrosa capacidade de achados, malabarismo que na verdade é encarnação do necessário, superação de qualquer preconceito que separe verso e prosa. Vinicius diverso e sempre o mesmo. • Antonio Candido é professor aposentado de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Continente outubro 2003


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24 CAPA Foto: Reprodução

Violonista recifense, que participou do surgimento da Bossa-Nova e tocou no célebre concerto do Carnegie Hall, tem duas músicas inéditas com letras de Vinicius de Moraes Normando, com o violão, ladeado por Chico Feitosa e Tom Jobim (à direita)

Mariana Oliveira

Um pernambucano na onda da Bossa de Janeiro, fins dos anos 50: as festas nos apartamentos de Copacabana, um cantinho, um R ioviolão. Surgia a Bossa-Nova. Um grupo de jovens começava a dar os primeiros acordes

daquele ritmo que, pouco tempo depois, seria referência mundial da música brasileira. Faziam parte da turma cariocas da gema, como Antônio Carlos Jobim, Carlinhos Lyra, Vinicius de Moraes, Nara leão, Ronaldo Bôscoli, o baiano João Gilberto e Normando, um pernambucano pouco conhecido, que participou ativamente do despertar daquela nova onda. Moleque do bairro da Madalena, no Recife, começou cantando na Rádio Jornal do Commercio, mas logo seguiu para o Rio de Janeiro, prometendo à mãe que não cantaria mais em rádios. No curso noturno do Colégio Mallet Soares, Normando Santos conheceu Roberto Menescal que o levou à casa da Nara Leão, onde Bôscoli e Chico Feitosa já se iniciavam na música. A partir daí, Normando ingressou na turma e conheceu os “papas” Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto. Os encontros nos apartamentos dos amigos eram comuns. Durante o início da década de 60, Normando costumava passar as tardes na casa de Vinicius, no bairro das Laranjeiras. O programa era sempre o mesmo: tocar, cantar e compor. “Essa foi a época mais feliz da minha vida. Nós éramos um grupo unido com uma mesma meta, fazer música por prazer, para nós. Depois, o clube privado saiu para o grande público e explodiu”, conta. Para o poeta o programa musical era regado a scotch, enquanto o pernambucano não passava do guaraná. “Eu mostrava a melodia e ele resolvia desenvolver”, recorda Normando. A parceria foi concretizada em duas músicas inéditas. Em uma dessas reuniões, Vinicius fez as letras de Aconteceu e Lamento do Adeus. “O motivo pelo qual essas duas canções ainda estão inéditas é que eu nunca quis utilizar o nome do Vinicius para me promover. Somente depois da morte dele é que resolvi pensar em gravá-las”, explica. Segundo ele, apesar de ter mais idade que a maioria dos integrantes da turma da Bossa-Nova, o poeta tinha o mesmo entusiasmo e disposição. E sua participação deu mais respaldo ao movimento, afinal ele já era um escritor consagrado. Enquanto o novo ritmo dava seus primeiros passos, Normando foi se tornando um dos professores de violão mais procurados na cidade, junto com Carlinhos Lyra e Roberto Menescal. Na época, todo mundo queria aprender a tocar violão. Até as mães incentivavam as filhas. Normando tinha cerca de 50 alunos, alguns indicados por Tom e Vinicius. Um dos seus alunos ilustres foi o Continente outubro 2003


Na ilustração, as duas músicas inéditas de Vinicius de Moraes e Normando

produtor Nelson Motta. “Recomendado por Ronaldo, Normando Santos foi um professor paciente, me ensinando semanal e penosamente os primeiros acordes e as músicas de João Gilberto e da Bossa-Nova.”, escreve Nelson Motta no livro Noites Tropicais. Para Normando, foi o show realizado na Faculdade de Arquitetura, em 1960, que chamou a atenção da mídia para a música que os bossanovistas estavam produzindo. Os dois mil lugares do anfiteatro estavam lotados. João Gilberto lançava seu segundo LP O Amor, o Sorriso e a Flor e o pernambucano subiu ao palco para cantar a composição Jura de Pombo, primeira parceria de Menescal e Bôscoli. Em novembro de 1962, aconteceu o 1º Festival de BossaNova, no Carnegie Hall, em Nova Iorque. Normando estava lá e cantou. “Foi uma coisa muito boa e muito ruim”, define. A nova música brasileira apareceu para o mundo naquele momento, mas a organização não foi satisfatória. Como estava sendo feita a gravação de um disco, havia muitos microfones e aparelhos de som o que, de acordo com Normando, atrapalhou um pouco a atuação dos brasileiros. A parafernália eletrônica não se adequava muito ao modo intimista, o cantar baixinho, da Bossa. Nesse período, João Gilberto já demonstrava suas habituais exigências. Ele foi bastante assediado por empresários americanos que queriam marcar shows, gravar discos, enfim... “Quando aqueles empresários americanos chegavam bebendo e fumando charutos para falar com o João, ele os expulsava.

Mandava apagar o cigarro para poder falar com ele”, conta , lembrando que o baiano tinha aversão ao fumo e à bebida. Para ele, nem bombom com álcool. De volta ao Brasil, Normando gravou um disco pela Odeon e partiu para Paris em 1964 com o intuito de substituir Baden Powell nos shows do primeiro bar brasileiro na capital francesa A Feijoada. O cantor e compositor, denominado Sinatra da Bossa-Nova, terminou ficando por lá até hoje. “Aprendi a viver sem gravação, sempre foi de show”, revela, destacando que difundiu a música brasileira por toda Europa. Os dois discos que fez lá tiveram problemas. Era complicado, no início dos anos 70, encontrar músicos que soubessem entrar no ritmo da Bossa. “No primeiro disco que fui gravar colocaram um baterista de jazz para me acompanhar. Enquanto eu fazia “chachacha”, ele fazia jazz “chichichi”, lembra. O disco terminou ficando pronto, mas não houve divulgação. “ Minha experiência de disco é nula”, considera. Hoje em dia, quando vem ao Brasil, Normando costuma ligar para seus velhos amigos. “Quando todo mundo virou profissional, foi-se o encanto”, lamenta. O grupo foi desfeito e o que resta é uma grande saudade. Mas o pernambucano tem planos de gravar um disco no Brasil e organizar uma temporada de shows, começando pelo Recife, provavelmente em 2004. “Eu queria deixar alguma coisa, uma passagem. Afinal, sou o único representante de Pernambuco na Bossa-Nova”, comenta. • Marina Oliveira é jornalista.

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26 LITERATURA

Em outubro de 1913, o escritor e jornalista norte-americano Ambrose Bierce desapareceu no deserto do México Heloisa Seixas

O terror dos biógrafos

E

le nunca possuiu um cavalo, nem uma carruagem ou carro. Nunca foi dono da casa onde morava. Vivia de aluguel. Era um homem móvel. Tão móvel que, em outubro de 1913 – há 90 anos –, montou num cavalo alugado e se embrenhou pelo deserto do México atrás do revolucionário Pancho Villa. Tinha então 71 anos. Alcoólatra, doente, amargo e odiado por muita gente, escreveu uma carta para a sobrinha Lora e, com sua ironia habitual, comentou que ser um gringo no México revolucionário era “a mesma coisa que eutanásia.” E nunca mais foi visto. Assim como muitos personagens de suas histórias de terror, desapareceu sem deixar rastro. Seu nome era Ambrose Bierce, escritor e jornalista que foi um dos mais polêmicos cidadãos americanos de todos os tempos.

Nascimento, vida, morte - tudo nele é controverso. Em vida, foi a língua mais ferina da imprensa dos Estados Unidos, pior até do que a de seu sucessor mais famoso, H. L. Mencken. E depois de morto continuou suscitando discussões, já que há nove décadas surgem teorias as mais diversas – nenhuma comprovada – sobre a causa e as circunstâncias de seu sumiço. Mais recentemente, veio a polêmica sobre o local de seu nascimento: no ano passado, quando já havia sido criada uma coContinente outubro 2003

missão para mandar erguer no Condado de Meigs, em Ohio, um monumento em sua homenagem, surgiu a teoria de que ele nascera em Akron. Os planos chegaram a ser suspensos, mas no fim a situação foi contornada e o projeto original mantido. Quer dizer, até segunda ordem – porque, quando se trata Bierce, nunca se sabe. Além da ironia e do deboche, uma das marcas de Bierce era não fazer nunca o esperado. Ao escrever o Dicionário do Diabo para a revista Wasp, de São Francisco (só muito depois sairia completo, em livro), apresentando o mundo através de verbetes demolidores e cínicos, Bierce não começou pela letra A e sim pela letra P. O inesperado surge também em muitos de seus contos de terror, quando ele parece fazer uma auto-sabotagem, inserindo comentários irônicos num momento de tensão máxima e quebrando por completo o clima de suspense, como se quisesse debochar do leitor. Também na vida pessoal era um homem instável, tão multifacetado que pode ser considerado o terror dos biógrafos. Louro, alto e bonitão, tinha uma fala mansa, envolvente, mas quando o interlocutor menos esperava, ele começava a destilar seu veneno. Dizem que quanto mais furioso ficava, mais se mostrava doce. Três pesquisadores americanos que, tendo convivido com Bierce, escreveram sobre ele –


Foto: Corbis

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28 LITERATURA Foto: Reprodução

Outra de suas características marcantes era a enorme capacidade de fazer inimigos. Desancava todo mundo, não poupando nem escritores conceituados, como Oscar Wilde, Henry James e Jack London Gregory Peck e Jane Fonda em cena do filme Gringo Viejo, baseado na vida de Bierce

Adolphe de Castro, George Sterling e Walter Neale –, traçaram perfis tão díspares que não pareciam estar falando da mesma pessoa. Outra de suas características marcantes era a enorme capacidade de fazer inimigos. Desancava todo mundo, não poupando nem escritores conceituados, como Oscar Wilde, Henry James e Jack London. Mas talvez seu maior desafeto fosse ele mesmo: alcoólatra e asmático, não se tratava e parecia empenhado em maltratar o próprio corpo até o limite. Além das inúmeras batalhas da Guerra Civil americana, em que lutou como soldado – sendo ferido gravemente na cabeça em uma delas –, Bierce vivia procurando aventuras perigosas, como cruzar o território dos índios Sioux para fazer um mapeamento do Velho Oeste americano ou tentar a sorte numa mina de ouro. Em família, teve uma vida cercada de tragédias. Foi infeliz no casamento e seus dois filhos homens (tinha também uma filha) morreram jovens. Um deles, Day Bierce, aos 17 anos se envolveu em um triângulo amoroso e, depois de assassinar o rival, se matou (ou foi morto, há controvérsias). O outro, Leigh Bierce, morreu aos 26 anos, de pneumonia, depois de se expor ao frio durante uma bebedeira. Como o pai, era alcoólatra. Embora tenha escrito muita ficção, Ambrose Bierce foi acima de tudo um jornalista, tendo passado quase a vida toda trabalhando para William Randolph Hearst (o inspirador de Cidadão Kane) – a quem detestava. E foi como jornalista que ele seguiu para o México em 1913, para nunca mais ser visto. Embora oficialmente se dissesse interessado em cobrir a revolução – na qual veria semelhanças com a Guerra Civil americana –, muitos estudiosos acham que Continente outubro 2003

o que ele queria mesmo era morrer. Por trás do misantropo, havia uma alma desiludida com a humanidade, cuja amargura (seu apelido era the bitter Bierce, o amargo Bierce) só fizera crescer com a velhice. As versões sobre seu desaparecimento são inúmeras, indo desde a morte por pneumonia até o fuzilamento por ordens pessoais de Pancho Villa, sob a alegação de que Bierce “bebia tequila demais”. Mas, talvez a mais curiosa (ao menos para nós) seja aquela segundo a qual Bierce não foi para o México, e sim, para a América do Sul, onde acabou prisioneiro de uma tribo de índios brasileiros. Foram 90 anos de versões – todas meramente especulativas. Por tudo isso, a lenda se tornou mais forte do que o homem e sua obra. Bierce foi um dos mais importantes expoentes do jornalismo americano e também um grande autor de ficção, mas nada do que escreveu supera sua própria e enigmática vida. Em inúmeras de suas histórias de terror, ele descrevia um homem caminhando por um lugar deserto, que de repente desaparecia como se tragado por outra dimensão e cujo corpo jamais era encontrado. Um escritor com tendências auto-destrutivas pode passar a vida escrevendo sobre suicídio e, por fim, se matar. Mas como é possível alguém, depois de morto, fazer desaparecer o próprio corpo? Voluntária ou involuntariamente, esta foi a última ironia de Bierce, sua cartada final contra a humanidade que desprezava. Ambrose Gwinett Bierce, esse homem que ninguém sabe ao certo onde nasceu nem onde morreu, foi seu próprio e maior personagem. • Heloisa Seixas, escritora e jornalista, organizou e traduziu o livro Visões da Noite, com contos de terror de Ambrose Bierce.

Alguns verbetes do Dicionário do Diabo, que começou pela letra P: Paciência – Forma menor de desespero, disfarçada como virtude. Panteísmo – A doutrina segundo a qual tudo é Deus, em contradição à doutrina de que Deus é tudo. Pantomima – Uma peça na qual a história é contada sem violentar a linguagem. É a menos desagradável das formas de ação dramática. Paz – No cenário internacional, o período de conversa fiada entre duas guerras. Piano – Móvel de sala feito para subjugar as visitas inocentes. É operado pela pressão das teclas da máquina e também pela pressão sobre o espírito da audiência. Pintura – A arte de proteger as superfícies lisas da ação do tempo e também de expô-las aos críticos.


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