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A Capitania Duartina Em março de 1534, o rei D. João III delimitou a Capitania de Pernambuco e doou-a a Duarte Coelho “Carta Foral” de Olinda Duarte Coelho, Fidalgo da Casa de El Rei Nosso Senhor, Capitão e Governador destas terras da Nova Lusitânia por El Rei Nosso Senhor etc. Faço saber a quantos esta minha carta de do­ação virem, que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de 1550 anos, aos 17 dias do mês de março do dito ano, a re­querimento dos Vereadores e Procurador do Concelho desta Vila de Olinda foi mandado tirar do livro do tombo e matrícula da carta de doação das cousas que ele dito Senhor Governador tinha dado a esta vila e moradores e povoadores dela, as quais foram dadas pelo dito Senhor Governador na era de 1537, as quais cou­ sas e dadas são as seguintes. No ano de 1537 deu e doou o Senhor Governador a esta sua vila de Olinda e para seu serviço e de todo seu povo, moradores e povoadores dela, as cousas seguintes: Os assentos deste monte e fraldas dele para casarias e vi­vendas dos ditos moradores e povoadores, as quais lhes dá livres forros e isentos de todo o direito para sempre, e as várzeas das vacas e a de Beberibe e as que vão pelo caminho que vai para o paço do Governador, e isto para os que não têm onde (sic) pastem (sic) os seus gados, e isto será nos capins para paçigo, que as re­boleiras dos matos para roças a quem o Conselho as arrendar que estava dos capins para o lagadiço e para os mangues com quem confinam as terras dadas a Rodrigo Álvares e outras pessoas. O rossio que está defronte da vila para o sul até o ribeiro, e do ribeiro até a lombada do monte que jaz para os mangues do Rio Beberibe, onde se ora faz o varadouro em que se carregou a ga­leota, porque da lombada para baixo, o qual o dito Senhor Gover­nador alimpou para sua feitoria e assento dela que é do montinho que está sobre o rio até o caminho do varadouro e daí para cima todo o alto da lombada para os mangues será para casas e as­sentos de feitorias até um pedaço de mato que deu a Bartolomeu Rodrigues, que está abaixo do caminho que vai para Todos os Santos.

O território que constituiu a primitiva Capi­ tania de Pernambuco foi estabelecido quando da doação feita por D. João III a Duarte Coelho Pereira, em l0 de março de 1534, e compreendia: Sessenta léguas de terra... as quais começarão no Rio São Francisco [...] e acabarão no rio que cerca em redondo toda Ilha de Itamaracá, ao qual ora nova­mente ponho nome Rio Santa Cruz ... e ficará com o dito Duarte Coelho a terra da banda Sul, e o dito rio onde Cristóvão Jacques fez a primeira casa de minha feitoria e a cinqüenta passos da dita casa da feitoria pelo rio adentro ao longo da praia se porá um padrão de minhas armas, e do dito padrão se lançará uma linha ao Oeste pela terra firme adentro e a terra da dita linha para o Sul será do dito Duarte Coelho, e do dito padrão pelo rio abaixo para a barra e mar, ficará assim mesmo com ele Duarte Coelho a metade do dito rio de Santa Cruz para a banda do Sul e assim en­ trará na dita terra e demarcação dela todo o dito Rio de São Francisco e a metade do Rio de Santa Cruz pela demarcação sobredita, pelos quais rios ele dará serventia aos vizinhos dele, de uma parte e da outra, e havendo na fronteira da dita demarcação al­gu­mas ilhas, hei por bem que sejam do dito Duarte Coelho, e anexar a esta sua capitania sendo as tais ilhas até dez léguas ao mar na frontaria da dita demarcação pela linha Leste, a qual linha se


A ribeira do mar até o Arrecife dos Navios com suas praias até o varadouro da galeota, subindo pelo rio Beberibe arriba até onde se faz um esteiro que está detrás da roça de Brás Pires, con­ junta com outra de Rodrigo Alves, tudo isto será para serviço da vila e povo até cinqüenta braças do rio para dentro para de­sembarcar e embarcar todo o serviço da vila e povo dela, onde diz cin­qüenta braças se entenda de largo e daí para arriba tudo o que puder ser de mais dos mangues pela várzea e pelo rio, arriba é da serventia do Concelho. Outrossim, dali mesmo do Varadouro rodeando pela praia ao lon­­go do mar, até onde sai o ribeiro de Val de Fontes todo o mato des­sa dita praia até cinqüenta braças a dentro da terra, tudo será serventia e para serventia da dita vila e povo, reservando que se não pode dar a pessoa alguma. E da dita ribeira sainte de Val de Fontes até o rio Doce, que se chama Paratibe, tudo será para serventia do povo e vila até as várzeas que serão pouco mais ou menos duzentas braças de largo. Da praia para dentro das várzeas, e porque do rio Doce para a banda do Norte fica com o termo de Santa Cruz outro tanto ao longo do mar duzentas braças pela terra dentro de arvoredo para madeira e lenha do povo da vila de Santa Cruz assim como atrás conteúdo é para a Vila de Olinda. O monte de Nossa Senhora do Monte águas vertentes para toda a parte, tudo será para serviço da vila e povo dela, tirando aquilo que se achar ser da casa de Nossa Senhora do Monte que é cem braças da casa ao redor de toda a parte, e assim o valinho que é da banda do norte e rodeia todo o Monte pelo pé até o caminho que vai da dita vila para Val de Fontes para o curral velho das vacas, que isto é da dita casa de Nossa Senhora do Monte. E por detrás do dito montinho onde há de fazer o Senhor Gover­nador a sua feitoria, ao varadouro da galeota e a se de abrir o rio Beberibe e lançar ao mar por entre as duas pontas das pe­dras como tem assentado o Senhor Governador, entre o dito rio lan­çado novamente e as roças da banda de riba a de Paio Corrêa e a da Senhora Dona Brites e o mato que está diante que ora é do Senhor Hierônimo de Albuquerque, que há de ir uma rua de ser­ventia ao longo do dito rio novo, para serventia do povo, de que se possa servir de carros, que será de cinco ou seis braças de largo e rodeará pelo pé do montinho até o varadouro da galeota. Todas as fontes e ribeiros ao redor desta vila dois tiros de besta são para serviço da dita vila e povo dela, fa-las-á o povo alimpar e carregar às suas custas. Todos os mangues o redor desta vila que estão ao longo do rio Beberibe assim para baixo como para cima até onde estiver terra de arvoredo de roças ou fazendas pelo Senhor Governador, todos os ditos mangues serão para serviço da dita vila e povo, e assim os do rio dos Cedros e ilha do porto dos navios. Os varadouros que estão dentro do Recife dos Navios e os que estiverem pelo rio arriba dos Cedros e do Beberibe e todo o outro varadouro que se achar ao redor da vila e termo dela será (sic) para serviço seu e de seu povo. Isto foi assim dado e assentado pelo dito Governador e man­ dado a mim escrivão que disto fizesse assento e foi assinado pelo dito Governador a 12 de março de 1537 anos. E assim hei por bem de lhe dar e confirmar para sempre, e assim mando que todo o povo se sirva e logre dos ditos matos, le­nhas e madeiras para casas, tirando fazer roças que não farão, e as­sim árvores de palmo e meio de testa, e daí para riba não cor­ tarão sem minha licença ou dos meus oficiais que por mim o cargo tiverem porque as tais árvores são para outras cousas de maior sustância em especial sob pena posta em meu regimento e assim resguardarão todas as madeiras e matos que estão ao redor de ri­beiros e fontes, a qual carta foi tirada do livro e matrícula do livro do tombo e terras dela que o Governador mandou fazer quando chegou a esta terra na era de 35 a nove de março do dito ano que

estenderá do meio da bar­ra do dito Rio de Santa Cruz, cortando de largo ao longo da costa, e entrarão na mesma largura pelo ser­tão e terra firme adentro, tanto, quanto poderem en­trar e for de minha conquista... A metade da barra Sul do canal de Itamaracá – que o rei D. João III denominou de “rio” de San­ta Cruz –, até cinqüenta passos além do local on­ de existira a primitiva feitoria de Cristóvão Jacques, de­marcava o limite Norte de Pernam­buco; ao Sul, o limite da capitania era o Rio São Francisco, em toda sua largura e extensão, in­cluin­do todas as suas ilhas da foz até a sua nascen­ te. Assim, o território da Ca­ pitania de Per­ nambuco infletia para o Sudoeste, a acom­ panhar o curso do rio, alcançando suas nascen­­tes no hoje Estado das Minas Gerais. Ao Nor­te, o Rei esta­beleceu o tra­çado de uma linha para o Oeste, por terra aden­tro, até os limites da sua con­quista; ou seja, os defi­ nidos pelo Tratado de Tor­ desilhas (1493), isto é, as terras situadas além das 370 léguas ao Oeste das ilhas do Cabo Verde. As fronteiras da Capitania Duartina, desse mo­­do, abrangiam todo o atual Estado das Ala­ goas e terminavam ao Sul, no Rio São Imagens: Reprodução

Navio que trouxe as primeiras mudas de cana para o Brasil


Francisco, fazendo fronteira com o atual Estado das Minas Ge­rais. Gra­ças à posse deste importante curso d'água, em toda sua extensão e largura, o território de Per­ nam­­ buco crescia na orientação Sudoeste, ultrapas­san­do na sua largura em muito as 60 léguas estabe­lecidas na carta de doação. Na observação de F. A. Varnha­gen, possuía a capitania de Duarte Coelho 12 mil léguas quadradas, constituindo-se na maior área ter­ ritorial entre todas que foram distribuídas pelo Rei D. João III. Chegando à Feitoria de Pernambuco, em 9 de mar­ço de 1535, Duarte Coelho fez-se acompanhar de sua mulher, Brites de Albuquerque, do seu

cu­nhado, Jerônimo de Albuquerque, e de algumas fa­mílias do norte de Portugal que vinham tentar a sorte no desenvolvimento da agroindústria canavieira. Coube a esse “fundador de nação” a implantação, de forma sistemática, das bases da agroindústria açu­ careira. Trouxe consigo, além de uma alentada paren­ tela, novas técnicas de fabrico do açúcar, com a vinda dos engenhos e dos mestres especializados da Ilha da Madeira e, sobretudo, da importação de capital judeu para o financiamento do empreendimento. Fixando a sede de sua capitania em Olinda, ele pas­sou a distribuir áreas de terras em sesmarias, vi­san­­do a implantação dos engenhos de açúcar,

tomou posse destas terras e Governança delas, jurisdições e liberdades pri­vilégios e alvarás de Sua Alteza dos ditos pri­vilégios e doações Foral que do dito Senhor tem para si e seus herdeiros e moradores e po­voadores delas conforme as ditas doações Foral e alvarás, a qual foi tirada a requerimento dos ditos vereadores e por mandado do dito Senhor Governador aos 17 dias do mês de março do ano de 1550 anos. Gaspar de Barros a fez dia, mês e era atrás, escrito em ausência de Bar­tolomeu Dias escrivão das dadas por mandado do dito Governador dia, mês e era atrás, escrito de 1550 anos, a qual é assinada pelo dito Senhor Governador e selada do seu selo de suas armas. Duarte Coelho. Pagou com nota trezentos réis, ao selo nove réis. Registrado no livro dos registos de El Rei Nosso Senhor em que manda que se registem todas as cartas de sesmarias e dadas das terras desta Capitania por mim Heitor Carvalho, escrivão da Fazenda de Sua Alteza nesta Capitania a folha 166 e folha 167 e folha 168 a requerimento de Simão Paes Pro­curador do Concelho desta Vila de Olinda. Aos quatro dias do mês de setembro ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1557 anos. Heitor Carvalho. Pagou cin­qüenta reis. Foi consertada com a própria que está na caixa da Câmara por mim Duarte de Sá escrivão dela com o tabelião abaixo assinado bem e fielmente com a entrelinhas que dizem arriba, rodeará seu porque se fez na verdade. Em Olinda a trinta de agosto de 1553 anos. Consertado por mim escrivão Duarte de Sá e comigo tabelião Antônio Lopes. A qual data e doação eu Baltasar Aranha de Araújo tabelião público do judicial e notas nesta Vila de Olinda e seu termo por Sua Alteza etc., fiz trasladar bem e fielmente da mesma data e doação que foi tirada do livro dos registos a que me reporto e com ela este conferi, subescrevi e assinei e consertei com outro oficial abaixo assinado e a dita data e doação tornei a entregar ao Padre Dom Abade do Convento de São Bento desta Vila Frei Francisco da Madalena que no-la apresentou, a qual doação certificamos ser muito verdadeira e está limpa, sem dúvida alguma e de como a recebeu se assinou aqui neste dito Convento dê São Bento aos 31 dias do mês de março de 1672 anos. E nos assinamos ao diante de nossos sinais costumados em dia, mês e ano atrás declarados. Baltazar Aranha de Araújo. Consertado com a mesma data que se tirou dos registos por mim Tabelião Baltasar Aranha de Araújo. E comigo Tabelião Francisco Barbosa Rego. Frei Francisco da Madalena Dom Abade // O qual instrumento e traslado nele inserto eu Antônio Soares Tabelião público do judicial e notas da vila de Olinda e seu termo Capitania dePernambuco por Sua Alteza, que Deus guarde, fiz fazer bem e fielmente do papel que me foi apre­sentado pelo Procurador do Concelho do Senado da Câmara desta dita vila, a quem a tor­nei a entregar e de seu recibo assinou a que me reporto em todo e por todo, com o qual e com o tabelião ao diante nomeado este instrumento conferi e consertei e vai na verdade, sem cousa que dúvida faça. Subscrevi ê assinei de meus sinais público e raso seguintes nesta dita vila aos 28 dias do mês de junho dê 1675 anos. Consertado por mim Tabelião (Sinal) Antônio Soares em fé da verdade Antônio Soares. E comigo Tabelião Diogo Rodrigues Pereira.

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espa­ lhados pelas várzeas dos rios Capibaribe, Beberibe, Ja­boatão e Una. Com tal providência, a Capitania Duartina viu florescer a Civilização do Açúcar, fonte da riqueza responsável pela construção de todo um patrimônio artístico e cultural ainda hoje presente em suas fronteiras. Os capitães donatários recebiam, quando da doa­ ção das terras no Brasil, um foral cuja função era o de reger a relação entre o donatário e o rei, definir suas responsabilidades perante a Coroa no tocante aos seus direitos políticos e rendas que lhe eram reservados, ou seja, direitos, foros e tributos devidos ao rei e ao capitão-governador.

Assim, o “Foral de Olinda”, no qual Duarte Co­elho fez doação de terras ao Conselho ou Câmara que criara na vila de Olinda em 1537, foi impropriamente chamado pelo donatário de “foral”, uma vez que não tinha a conotação do diploma que era concedido na época, no qual eram disciplinados direitos e deveres en­tre outorgante e outorgado. Mesmo assim, constituise o “Foral de Olinda” um documento de im­portância por ser o mais antigo com relação ao mu­nicípio e por ele ter sido feita doação de terras para o pa­trimônio da Câmara, para uso e serviço dos mo­radores e povoadores da vila. É mais propriamente uma “carta de doação” do patrimônio do Conselho.

Reprodução

O Rio São Francisco, Frans Post, 1638, óleo sobre tela, 62 x 95cm

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Engenho de açúcar, História Naturalis Brasilliae, Leiden, 1664

Foi o açúcar o grande impulsionador eco­nô­ mico dessas conquistas; açúcar que, em 1583, era pro­du­zido por 66 engenhos. A situação econômica da ca­pi­tania, no início do século 17 era, no dizer do frei Vicente do Salvador (c. 1564 – c. 163639), das me­lhores, com o porto mais freqüentado do Bra­­sil e uma renda de 20 mil cruzados, “afora o pau-brasil e dos direitos sobre o açúcar”. O crescente aumento do número de engenhos em Pernambuco é confirmado pelas narrativas dos primeiros anos: 23 em 1570 (Gândavo), 66 em 1583 (Cardim) e 77 em 1608 (Campos Moreno). O preço da arroba do açúcar branco em Lisboa pas­sou de 1$400 em 1570 para 2$020 em 1610 (Simonsen). Imagens: Reprodução

Cana-deaçúcar, segundo Zacarias Wagner

Tal riqueza já fora observada por Gabriel So­a­res de Sousa (1540-1591), em seu Tratado Descri­tivo do Brasil, em 1587, no qual relata possuir Per­ nambuco “mais de 100 homens que têm até cinco mil cru­zados de renda, e alguns até oito, 10 mil cruzados”. A vida religiosa da Capitania tinha como centro a Matriz do Salvador do Mundo, sendo ela, em to­ do século 16, a segunda igreja em importância da Amé­rica Portuguesa, depois da Sé da Bahia. O gran­de templo foi parcialmente concluído em 1540, apre­sentando-se com três naves, tendo em sua porta principal duas colunas geminadas. O padre Fernão Cardim assim o descreve em 1584: “uma formosa igre­ja matriz,


de três naves, com muitas capelas ao redor, e que acabada ficaria uma boa obra”. Matriz colegiada, a Igreja do Salvador do Mun­­do era dirigida por um pároco, trazido de Por­tugal pelo primeiro donatário, juntamente com o seu cor­po de auxiliares, constituído de um co­adjutor e qua­tro capelães, que recitavam o ofício divino e cele­bra­vam missa solene em comum. Preocupou-se o primeiro donatário não so­ men­ te com a implantação da agroindústria açucareira, mas também com a educação da juventude e, mui­ to par­ ticularmente, com a catequese dos indí­genas, tendo para isso entregue aos padres da Com­panhia de Je­sus, em 1551, a

ermida de Nossa Senhora da Graça, por ele construída na mais alta elevação da vila de Olinda. Coube aos padres Manoel da Nóbrega e Antônio Pires dirigir o nivelamento do terreno e nele iniciar a construção, junto à primitiva igreja, do edifício do Colégio de Olinda, obras estas que se prolongaram por toda a segunda metade do século 16, e de um Horto Botânico destinado à aclima­ tação das plantas exóticas que eram transportadas da Europa e do Oriente para Pernambuco. Também as ordens religiosas procuraram esta­ belecer os seus conventos em terras da nova Capi­ tania. Inicialmente, como já vimos, foram os Jesuí­ tas (1551), seguindo-se dos Franciscanos (1585), Carmelitas (1588) e Beneditinos (1592).

Engenho de Açúcar, Nicolau Vischer, 1630


Cidade Maurícia e Recife, Frans Post, óleo sobre tela

O Brasil Holandês

Interesses comerciais, visando principalmente à pro­dução de açúcar, levaram os holandeses a dominar Pernambuco por 24 anos

A importância do porto de Pernambuco, nas relações comer­ciais com o norte da Europa, é ressaltada em grande parte dos do­cumentos do século 16 e início do século 17, graças à im­portância do açúcar que passara de gênero de alto luxo a produto acessível às classes de menor poder aquisitivo. Tal riqueza despertou a co­biça dos piratas e corsários, tornando as caravelas (navios pe­que­nos e mal-armados), em presas fáceis. Informa K. R. Andrews que, entre 1589 e 1591, Portugal perdeu para corsários ingleses nada menos que 34 navios, em sua maioria procedentes dos portos de Pernambuco e da Bahia. Em 1589, segundo fonte je­suítica, num período de nove meses, foram apreendidos por in­gle­ses e franceses 73 navios carregados. Na primeira metade do século 17, a riqueza da Capitania de Per­nambuco, bem conhecida em todos os portos da Europa, veio despertar as atenções dos Países Baixos que, em guerra com a Es­panha, sob cuja coroa estava Portugal e suas colônias, necessitava de todo açúcar produzido no Brasil para suas refinarias (26 só em Amsterdam). Com o insucesso da invasão da Bahia (1624), onde permaneceram por um ano, mas com o valioso apoio de Isabel da Inglaterra e Henrique IV da França, rancorosos inimigos da Es­ pa­ nha, a Holanda, através da 10 Continente Documento


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Companhia das Índias Ocidentais, formada pela fusão de pequenas associações, em 1621, cujo capital elevara-se, em pouco tempo, a 7 milhões de florins, voltou o seu interesse para Pernambuco. A Vila de Olinda, uma das mais abastadas da América Portu­guesa, cujo fausto era comparado com Lisboa e Coimbra, do­ mi­ nava a paisagem, com seus quatro mosteiros, a Igreja do Salvador do Mun­do e o casario pin­tado de branco, construído em pedra e cal, colorido pelo verde do co­quei­ral que lhe proporcionava um clima ameno. Nas ruas, os seus ha­bitantes, aproveitando as festas pelo nascimento do herdeiro do trono de Es­­panha, vestiam seda e da­masco, montavam em garbosos cavalos aja­ezados em prata, com o som de suas cascavéis a chamar a atenção de sua passagem. A produção de 121 engenhos de açúcar, “correntes e moentes” no dizer de van der Dussen, viria a despertar a sede de riqueza dos diretores da Companhia, que armou uma formidável esquadra sob o comando do almirante Hendrick Corneliszoon Lonck, que, com 65 embarcações e 7.280 homens, apresentou-se nas costas de Pernambuco em 14 de feve­ reiro de 1630, iniciando assim a história do Brasil Holandês. Senhores da terra, os holandeses escolheram o Recife como sede dos seus domínios no Brasil, por ter nesta praça a segurança que não dis­ punham em Olinda, “por ser aberta por muitas partes e incapaz de de­fesa”, na observação de Diogo Lopes Santiago (História da Guerra de Per­nambuco). Na noite de 25 de novembro de 1631, resolveram os chefes ho­landeses pôr fogo na sede da Capitania de Pernambuco, “a infeliz vila de Olinda tão afamada por suas riquezas e nobres edifícios, arderam seus templos tão famosos, e casas que custaram tantos mil cruzados em se fazerem” (Santiago). A dominação flamenga prolongou-se por 24 anos, passando o Recife de simples porto de Olinda a capital da nova ordem.

Canhão de bronze utilizado pelos holandeses


Insatisfeitos com a administração do Bra­ sil Holandês, o Con­se­lho dos XIX da Companhia das Ín­dias Ocidentais resol­ve convidar para ocu­ par a função de Go­ver­nador-Geral um jo­vem coronel do exército da União, Conde João Maurício de NassauSiegen. Alemão, nascido em Dillen­burgo a 17 de junho de 1604, João Maurício era o filho primogênito do Conde João VII e de sua segunda esposa Margarida von Helstein-Soderborg, uma parente da família real da Dinamarca. Quando o Conde João Maurício de Nassau apor­ tou em Pernambuco, na qualidade de Governador do Brasil Holandês, em 23 de janeiro de 1637, trazia em sua comitiva não um exército, à moda dos colo­ niza­ dores de então, mas uma verdadeira missão científica que ainda hoje desperta as atenções dos estudiosos daquele período. Com trinta e três anos de idade, o conde fez-se acompanhar do latinista e poeta Franciscus Plante, do médico e naturalista Willem Piso, do astrônomo e natu­ralista George Marcgrave, dos pintores Frans Post e Albert Eckhout, do médico Willem van Milaenen, além de outros nomes. Durante o seu governo pôde ain­da contar com os serviços de outros

nomes de relevo, como o do humanista Elias Herckmans, dos cartó­grafos Cornelis Bastianszoon Golijath e Johannes Vingboons, do desenhista Gaspar Schmalkalden, do pintor Zacharias Wagener e do arquiteto Pieter Post, que vieram a se integrar em datas posteriores a esta missão de cientistas. Na administração de João Maurício de Nassau, (um surto) de progresso tomou conta do Brasil Ho­lan­dês, cujas fronteiras foram estabelecidas do Mara­nhão à foz do Rio São Francisco. O Recife, “coração dos espíritos de Pernambuco” na observação de Fran­cisco de Brito Freyre, veio a sofrer inúmeros melho­ramentos e testemunhar vários pioneirismos, como a instalação do primeiro observatório astronômico das Américas. Uma nova cidade veio a ser construída na ilha de Antônio Vaz, onde os franciscanos haviam esta­belecido, em 1606, o Con­ vento de Santo Antônio. A nova urbe, projetada por Pieter Post, um dos princi­pais representantes, ao lado de Jacob van Campen, do classicismo arquitetônico nos Países Baixos, veio a receber a denominação de Cidade Maurícia, em 17 de dezembro de 1639, a Maurits Stadt dos holandeses; cujos mapas, aspectos e panorama (94 x 63 cm) aparecem na obra de Gaspar Barlaeus, publicada em Amsterdam (1647), e em ou­tras produções artísticas de sua época. Aos melhoramentos urbanísticos, inclusive a cons­ trução dos palácios de Friburgo (conhecido popular­mente como Palácio das Torres) e a casa da Boa Vista, de um horto zoobotânico, de um segundo

Uma missão de artistas e cientistas Ao invés do exército, Maurício de Nassau desembarcou no Estado trazendo uma comitiva de cientistas e artistas 12 Continente Documento


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obser­ vatório astronômico, situado no Palácio de Friburgo, de canais e viveiros, a construção do templo dos calvi­nistas franceses, a instalação de duas pontes em gran­des dimensões, a primeira ligando o Recife à Mau­rícia (a nova cidade erguida na ilha de Antônio Vaz) e a outra ligando esta ao continente, vieram jun­tar-se os trabalhos dos artistas que faziam parte da comitiva. Uma intensa produção de uma arquitetura não reli­ giosa, de pinturas e desenhos documentando a paisa­gem, urbana e rural, retratos, figuras humanas e de animais, naturezas mortas, serviram para documentar e divulgar esta parte do Brasil em todo o mundo. Estudos sobre a flora, fauna, a medicina e os naturais da terra, bem como observações astronômicas e um detalhado levantamento cartográfico da região, dizem da importância da presença do conde João Maurício de Nassau à frente dos destinos do Brasil Holandês. Ainda no seu tempo, João Maurício de Nassau, “temeroso das represálias do Governo-Geral do Brasil Português, na Bahia, pelos incêndios lançados aos engenhos do Recôncavo pelos holandeses em maio e junho de 1640” (Gonsalves de Mello), resolve con­vocar uma Assembléia Geral de 27 de agosto a 4 de setembro daquele ano, com a participação de 56 luso-brasileiros, moradores especialmente eleitos de todas as freguesias das capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. Essa primeira Assembléia, proclamada por Oliveira Lima como legislativa e “a primeira da Amé­­rica do Sul”, no que não concorda José Antônio Gonsalves de Mello, veio a ser realizada em Mau­rícia, sob a presidência do Conde de Nassau, que conclamou na sessão de encerramento os agricul­tores a abandonar a monocultura da cana-deaçú­car em favor das chamadas especiarias orientais e a produção do algodão e do anil, sonhando ainda com a fundação de uma universidade e com a ins­ talação de uma tipografia. A estada do Conde João Maurício de Nassau em terras brasileiras prolonga-se até maio de 1644, tempo bastante para uma impressionante produção científica e artística dos membros de sua missão. Poucos dias an­tes de sua partida, comparece peran­te o Conselho do Recife, e lê uma longa carta na qual deixa expressas as suas recomendações para com o futuro da colônia. Por decisão do Conselho, assumiu o comando ge­ral do exército Henrique van Haus, capitão da

Cocos, Albert Eckhout, 90 x 90 cm

guar­ da do Conde, homem dotado das virtudes exigidas para um general. Ele já tinha servido em diversas províncias, robusto de corpo e de en­ge­nho, cauteloso, ponderado e perito na arte militar. Segundo Gaspar Barlaeus, “distribuída e orga­ niza­ da a milícia, Nassau transmitiu também aos con­se­lheiros, a pedido deles, uma norma do que cumpria fazer e, desta forma, aquele a quem tinham visto go­ver­nando pessoalmente e com sabedoria, esse mesmo, ausente, continuaria no futuro a guiá-los com os seus conselhos, e com o mesmo espírito com o qual ele ani­mara o grande corpo do Brasil, com esse mesmo espí­rito eles o sustentariam”. O Conde João Maurício de Nassau-Siegen retor­ nou aos Países Baixos em maio de 1644, após sete anos em terras brasileiras. Voltando a estabelecer-se na Haia, contratou o conhecido humanista Gaspar van Baerle ou, como veio a ser conhecido, Gaspar Barlaeus (1584-1648), professor do “Athaeneum Illustre” de Amster­dam, para escrever na Holanda a história dos oito anos do seu governo no Brasil. Assim produziu ele um dos mais belos livros já edi­tados sobre o Brasil, com descrições de regiões da Áfri­ca e um mapa do Chile (não numerado), cujas cópias foram presenteadas a diversas personalidades da época. As encadernações originais foram elabo­ra­ das em pergaminho, com ilustrações feitas por gra­ vuras em cobre,existindo,ainda,cópias com gravações em ouro e outras aquareladas. A produção científica do médico Willem Piso (1611-1678) e do naturalista George Marcgrave (1610-1644) aparece em 1648 quando da Continente Documento 13


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publicação da obra Historia naturalis Brasiliae etc., impressa em Amsterdam, no formato 38 cm x 35 cm por Elzevier. O Recife veio a exercer um fascínio todo especial sobre o conde João Maurício de Nassau, que passou a ser conhecido pelo apelido de “O Brasileiro”, que, ao regressar à Holanda, levou consigo, além de um mo­­biliário talhado em marfim, em Pernambuco, um apreciável acervo de móveis e obras-de-arte assinadas pelos artistas de sua comitiva. No seu último ano de vida, João Maurício, já recolhido em sua propriedade nos arredores de Cleve, demonstrando saudades do Brasil, solicitou, em carta datada de 26 de junho de 1679, a intervenção do representante dos Países Baixos junto à Corte do Rei da Dinamarca, Jacob le Maire, junto ao novo Rei, Cristiano V, no sentido de obter para si cópias dos 26 quadros, 23 dos quais pintados por Albert Eckhout, que ele houvera, anos antes, presenteado ao Rei Fre­ derico III, genitor do novo monarca. O Príncipe João Maurício de Nassau-Siegen veio a falecer nos arredores de Cleve (Alemanha), na sua propriedade rural, denominada Berg und Tal, a 20 de dezembro de 1679, cercado de lembranças e re­cor­dações do Brasil.

Retrato de Maurício de Nassau, Johannes de Baen, 1665


Vila de Igarassu, segunda gravura de Frans Post, 1645

A Insurreição Pernambucana Um ano depois da partida de Nassau, a dominação holandesa começa a ruir com o início das batalhas no Monte das Tabocas e no Monte Guararapes Durou pouco a presença holandesa a partir da retirada do Conde de Nassau. Um ano após, em ju­nho de 1645, sob a liderança dos senhores de en­ge­ nho, capitaneados por João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, surgiu na Várzea do Ca­pibaribe uma verdadeira guerra de origem reli­giosa, em que pelejavam católicos romanos contra calvinistas, mo­ vimento então denominado de Insur­ reição Pernam­bucana que, após as batalhas dos Mon­tes das Tabocas, da Casa Forte e do Pontal de Nazaré (Cabo), sitiaram o Recife e passaram a dominar todo o interior. O golpe de misericórdia, porém, aconteceria mais tarde, quan­do das duas batalhas dos Montes Gua­­rarapes (1648 e 1649), onde as perdas holandesas superaram a mais de 1.559 mortos. Após a primeira Batalha dos Montes Gua­rarapes, travada em 19 de abril de 1649, fo­ram en­contradas no campo da batalha, 33 ban­deiras e estandartes, duas peças de artilharia em bronze, ar­mas das mais diver­ sas, muita pólvora, cunhetes de balas, alfaias, animais domésticos, al­gemas e gri­lhões diversos, uma grande quantidade de moedas em ouro, mantimentos e até uma sortida farmácia.

Carta Testamento de Maurício de Nassau Tereis de governar, disse ele, três classes de homens, assim portugueses como holandeses: militares, comerciantes e cidadãos em geral. E também tríplice a divisão do governo: civil, eclesiástico e militar. Quanto a este, aplicai-vos a que os soldados, propensos ao pior, julguem bem de vós: obedeçam-vos espontãneamente como a dignos de obediência e não sejam forçados a esta por homens indignos de ser obedecidos. Com o desejo das virtudes, supri a veneração que não podeis obter pelo brilho de vossa fa­ mília ou pelo fulgor de vossa linhagem, se bem sois de nascimento honrado, a fim de merecerdes o favor dos soldados, que se ganha mal com a largueza e a indulgência. Atendei-lhes prontamente aos pedidos, evitando delongas, para que não se agastem, impa­ cien­ tes, com inútil demora, e não maquinem depois, em conciliábulos, traições, deserções ou violências contra os cidadãos, o que no Brasil é comum e fácil de acontecer, por causa da vizinhança dos inimigos, das quadrilhas de ladrões e dos esconderijos dos crimi­nosos. Tende conta em pagar os soldos mormente os dos coman­ dantes : nada provoca tanto a desobediência dos soldados ou lhes impõe a necessidade de delinqüir, quanto a penúria. Sem músculos não andam os homens, nem têm eles resistência para a guerra sem dinheiro e sem mantimento: com estas duas cousas são eficazes as armas, as quais a miséria torna sem vigor. Dei a maior atenção a este mal, tanto mais quanto vários se inquietam pouco com ele. Na punição dos militares aconselharia mais a severidade que a clemência. Vivem no meio da barbárie, onde os vícios não têm medida, e pelo trato quotidiano com os bárbaros peca-se pelo exemplo, e, por mais belos que julguem os nomes das vir­tudes, são muitos os


Soldado holandês, estilização sobre gravura de época

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que, entre selvagens, se descuidam da própria honestidade. É verdade antiga que a impunidade é negaça para o pecado, e que os maus se corrigem com o castigo e o temor. Descansareis de puni-los, se eles descansarem das faltas: estas serão mais raras, se eliminardes a indigência, causa de se insurgirem eles contra vós. Recomendarei para com os comandantes benignidade, polidez e afabilidade, contanto que isto não diminua a autoridade. É raríssimo serem respeitados os superiores por aqueles com os quais tenham vivido mais familiarmente. Acreditai num experimentado os chefes de es­tado devem ser pouco acatados e até perderão valia, com a sua contínua presença e conversação. Alheios de qualquer ódio ou favor, conferi aos mais merecedores os prêmios dos postos militares. Guardai igualdade em relação aqueles que na guerra são iguais em bravura e fidelidade: se sofrerem injus­tiça, tentarão as piores cousas. E sinal de estar corrom­pidís­sima uma república, se nela são venais as honras militares ou se, por intercessão de amigos, são para elas preferidos os ini­doneos. Quando se dá aos valorosos a devida recompensa, tor­ nam-se mais valorosos, e crescem a fidelidade, a dedi­cação, a obediência, e, no caso contrário, languecem e se extinguem estas poderosíssimas virtudes. Diligenciai seria­ men­ te que os soldados não molestem os colonos e lavrador. É este um mal familiar ao Brasil, resultante da penúria quoti­diana do sustento, e daí a contumácia, a desdenhosa recusa de obediência, a violência, os agravos contra os súditos. Onde não há disto, eles toleram com paciência os encargos que se lhes impõem, ainda que pesados. E os senhores de engenho receiam estes males mais em tempo de paz que de guerra : esta aconselha o trabalho, aquela a ociosidade, da ociosidade nasce a intemperança e a petulância. Penso que se devem atar a nós, com agrados e promessas liberais, e reservar-se para conversações mais secretas uns tantos portugueses, que me­ recem dos seus firme confiança, a fim de conhecerdes as for­ças as maquinações dos inimigos. Devem esses tais simular ódio à nossa gente e dissimular o seu amor a ela para gozarem de crédito. Os mais capazes desses artifícios são os ecle­siás­ticos, porque, senhores de todos os segredos, seu ministério sagrado os põe acima de qualquer suspeita. Não se deve tam­pouco acreditar facilmente em populares que não têm critério nem verdade : julgam e anunciam quase tudo segundo opinião preconcebida, misturando o falso e o duvidoso com o ver­da­deiro, por precipitação e temeridade, conforme o sentimento que os domina. Não possuindo riquezas, invejam aos ricos, odeiam tudo quanto é antigo e buscam novidades, desejosos de mudar tudo, premidos pela estreiteza do seu patrimônio. Além disso, para agradarem aos mais poderosos, rejubilam-se, por um mau sentimento, com os perigos e danos alheios. Assim, dão por averiguado o que ouvem eo enganam os crédulos com exagerar tudo. Esperai nar­rações e denúncias verídicas e sérias dos mais distintos, nem há mister muitos delatores, mas apenas um ou dois de boa fama e merecedores de maior fé. Devem rece­ber-se tais delações com cautela, sendo bastante sa­be­rem-nas os governadores para não ser nocivo o ignorarem-nas. De modo algum desejaria que se levassem tais cousas as outras Câmaras, não só pelas discussões freqüentes e longas que susci­tam, mas também porque, entre diversos, elas se divulgam. Conformai-vos com que incumba somente a vós o investigá-las. Habituei-me a proceder assim com ótimo resultado. Tende por suspeita a credi­ bili­ dade dos trânsfugas: gostam de

Nas baixas do exército holandês, figuravam 523 feridos e 515 outros, entre mortos e prisioneiros, dos quais 46 oficiais. No confronto perderam as vidas os coronéis Hendrick van Haus, Cornelis van Elst e Ser­vaes Carpentier, ficando feridos o general van Schkoppe e coronel Guilherme Houthain. O coronel Pedro Keerweer que sucedera o coronel Carpentier, fora da­do por desaparecido nos relatórios holandeses, muito embora, na verdade, se encontrava como prisioneiro de João Fernandes Vieira. Na segunda batalha dos Montes Guararapes (1649), o fracasso ainda foi mais avassalador para os exércitos holandeses. Enquanto as perdas do lado luso-brasileiro foram computadas em 47 mortos e 200 feridos, do lado holandês perderam a vida o coman­ dante geral, Tenente General Johan van den Brincken, o Vice-Almirante Giesseling e 101 outros oficiais que, somados as demais perdas, perfaziam um total de 1.044 mortos e mais de 500 feridos. Quase cinco anos depois, vendo-se sitiado no Re­ci­fe e em Maurícia,o Governo do Brasil Ho­landês re­sol­ve enviar embaixada que se encontrou com os nos­sos às 9 horas do dia 24 de janeiro de 1654, com as con­dições de rendição que, após apreciadas pelo Alto Comando do Mestre de Campo João Fernandes Viei­ra e André Vidal de Negreiros, com assistência de dois teólogos, fi­ze­ram os necessários acréscimos e as de­volveram aos chefes holandeses no domingo 25 de janeiro.


Detalhe do mural Batalha dos Guararapes, Francisco Brennand, 1961/1962

O Governo do Brasil Holandês, tendo a frente o General Sigmund von Schkoppe, resolveu capitular na noite de 26 de janeiro de 1654, após negociações que tiveram 62 horas de duração. No documento de rendição, comprometia-se a en­tregar o Recife, Maurícia e de todas as fortalezas em poder dos holandeses no Brasil, com suas peças de artilharia e munições; rendição de 1.200 soldados da guar­­nição com honras militares, devendo poste­rior­

mente embarcar livremente para a Holanda com seus bens móveis e provisões para viagem; anistiar os por­ tugueses e judeus que se encontravam do lado dos inva­sores, anistiar os negros em igual condição e liber­ dade para os holandeses que preferissem se estabelecer em Pernambuco. Segundo bem demonstra José Antônio Gonsalves de Mello, o texto final com os artigos referentes aos ju­deus, índios, como as “condições

falar ao paladar dos comandantes. Não recomendo muito as tor­ tu­ras: com elas extorquireis tanto verdades como falsidades, e não somente sujeitareis inocentes à suspeita. mas também os perdereis. DAS CONSTRUÇÕES: Cumpre revistarem-se mais amiúde as fortalezas que de­fendem todo o Brasil, para que, arruinando-se pela inércia, não fi­ quem expostas às ciladas dos inimigos. Provei-as de man­ ti­ mentos, armas, guarnições para que possam sustentar a demora de um cer­co. E quando os seus fossos ficam secos em razão do solo arenoso e são por isso protegidos de estacadas, deve-se velar sempre não atraiam estas o inimigo por se acharem abertas e estragadas pelo tempo. É de alta importância que o parque de Friburgo e os viveiros de peixes a ele adjacentes sejam vossos e permaneçam em vosso poder, porque, em ocasiões muito difíceis, são vantajosos aos nos­ sos para o abastecimento de água, a qual, rebentando guerras, bus­ careis não sem grande risco em outras partes. Examinai também se não será útil fortificardes com um reduto a ponte da Boa-Vista, na margem de lá, a fim de não se franquear um caminho seguro para Várzea. Não é menos importante defender-se a ponte que liga o Recife com a ilha de Antonio Vaz, não só em atenção a utili­dade dos que vão e vêm diariamente por ela e do rendimento dos direitos que se cobram por isso, mas também para que, comu­nicando-se entre si a ilha e o Recife, prestem-se mútumente um como auxílio suplementar, se alguma vez apertar a necessidade da guerra. Aprendemos por experiência, quando ainda não se

havia lançado a ponte, que o Recife quasi sucumbiu por falta de socorros, varando na areia e nos mangues, durante o refluxo, as embarcações que conduziam as forças auxiliares. Convém ainda ter-se diligen­temente em conta a mata de corte e os campos que se estendem na margem citerior do rio, entre o forte do Brum e o das Cinco Pontas, visto como deste lado é o Recife exposto a ciladas, já tendo sido várias vezes atacado com estratagemas . DAS RELAÇÕES COM OS PORTUGUESES: Não aconselho que se moleste sem razão o governador da Baía de Todos os Santos, nem que, estando ele em paz, se lhe dêem ocasiões de guerra. A nação lusitana deseja muito seja ele tratado cortesmente. Não ignorais a quantos danos e cala­mi­dades estão sujeitas as nossas possessões, quanto lhe é fácil espalhar batalhões de soldados em nosso território e excitar, à sua vontade, a ferocidade e as armas dos indígenas. É a severidade o remédio mais eficaz contra os portugueses con­ven­ cidos de rebelião e além disso cúm­ plices de crimes atrozes: pela expe­ riência se tornou manifesto que nes­tes casos ela é preferível à mise­ricórdia e que é mais salutar não que­ brá-la por nenhuma indulgência. Se os delitos permitirem pena mais bran­da, tenha lugar a

Abaixo, João Fernandes Vieira, Reynaldo Fonseca, 1993, óleo sobre tela, 0,70 x 0,50cm

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Batalha dos Guararapes (detalhe), Victor Meirelles, 1872

sobre a milícia e cousas tocantes a ela...”, veio a ser assinado, na campanha do Taborda, às 11 horas da noite do dia 26 de janeiro de 1654. O local da rendição foi iden­tificado pelo mesmo autor como sendo a Porta Sul de Maurícia, a Porta de Santo Antônio dos documentos portugueses, localizada nas proximidades da atual igreja do Divino Espírito Santo. Ao ocupar, na mesma noite, a cidade Maurícia e o Recife, João Fernandes Vieira recebeu a rendição das tropas holandesas, recolhendo todo armamento aos ar­mazéns, ficando de posse das 73 chaves, no teste­munho de Diogo Lopes Santiago, que vieram a ser entregues ao General Francisco Barreto de Menezes após a sua entrada triunfal no Recife, na tarde do dia 28, quando fora recebido com todas as honras pelo comandante holandês Sigismundo van Schkoppe. Com esta capitulação, foram entregues pelos ho­ lan­ deses não somente as praças do Recife e Maurícia, mas todos os redutos até então ocupados na Ilha de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, rendição definida pelo Barão do Rio Branco “como a mais importante que registra a História Militar na América do Sul”. O comportamento exemplar do general Fran­ cisco Barreto, quando da rendição dos holandeses

clemência, e con­tentai-vos com o castigo mais leve ou com o arre­pendimento do inculpado. Gosto de que se temperem estas virtudes umas com as outras, e, assim como não é possível cederem só a clemência todas as outras virtudes – a prudência, a justiça, o amor dos súditos e dos semelhantes –, assim também seria tirânico e de suma im­prudência nunca ceder à severidade a clemência. É pernicioso a nossa gente exacerbar os portugueses com injúrias e contumélias. Deve ter-se o mais diligente cuidado em que isto não se verifique, principalmente por parte dos sol­dados. Se tal acontecer, periclita a república, e não será fácil reprimir uma sedição promovida por desesperados, porque eles julgam o desprezo dos perigos e a ousadia o remédio dos males presentes Não reputeis colocada nos castelos e forti­ficações a cidadela da dominação, mas sim onde habita a cora­gem, nem penseis que a verdadeira grandeza e potência dos reinos se mede pela sua extensão e latifúndios, mas sim pela fidelidade, benevolência e respeito dos súditos. Não quero amon­toar razões para provar isto, pois fomos ensinados, pe­los recentes exemplos da África, do Maranhão e do Ceara, que não é diuturno um poderio odiado. Olhai também que não seja permitido a todos indistintamente o porte de armas. Eu o permiti, mediante autorização por mim assinada, aos ho­ landeses, a alguns franceses e ingleses, aos que têm de fre­qüentar o campo para cobrar as suas dívidas, e bem assim aos portugueses que habitam em moradas esparsas e insuladas e têm de lutar não somente com os ladrões e salteadores, mas também com a ferocidade de animais bravios e das onças. É realmente cousa perigosa que um povo, divergindo de outro nos costumes, nacionalidade, religião, prevaleça nas armas e se torne temível. É razoável tirar as forças a um povo hostil, que nos havia de castigar de modo pior, se pudesse. PASSANDO A TRATAR DE ASSUNTOS CIVIS, seria útil que tantas e tão várias petições não fossem despachadas pelo Conselho todo, em vista do grande número delas e da de­mora das deliberações. Aconselharia, porém, que se escolhessem uns poucos pa­ra decidirem as causas menos importantes, afim de que não suportem todos o ódio suscitado pelas decisões. Tratando-se mais brandamente os portugueses, obe­de­ cem facilmente; mas se forem tratados mais duramente, se­rão refractários e semelhantes a cobras no meio de nós. Mais de uma vez observei que os anima e contenta mais o mostrar-selhes honrosa estima do que a esperança de riqueza. Acreditai com reserva nos depoimentos de holandeses contra eles, porque os odeiam e por isso hão de querer-lhes a perdição, e sobretudo nos depoimentos dos militares, os quais, indignando-se de serem pobres, e de serem ricos os por­tugueses, desejam que os mais opulentos sejam con­dena­ dos para fazerem eles presa. É incrível o poder que tem nos ouvidos do vulgo para provocar tumultos a palavra áspera – TRIBUTOS. Se os im­pos­tos são velhos e recebidos, não os aumenteis, nem mesmo quando se exigem para resgatar uma dívida pública. Não imponhais também novos tributos às pro­víncias: eles per­tur­bam a paz dos súditos mais pela cobiça dos exatores do que pela relutância daqueles em obedecer Se forem de todo neces­sários, degustai apenas, mas não devoreis as riquezas; tosquiai, mas não esfoleis este rebanho, porquanto ele é do­tado de razão, e com estas demasias se torna turbulento e feroz. Quando se inflama, despreza varões gravíssimos pelo pa­trio­tismo e serviços, e aterroriza aqueles a quem deveria temer. Não deixeis sair numerário das províncias, nem trans­ portar-se por mar para outras partes: sem ele são fracos o

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mercador e o soldado. Necessitam de reforma os negócios fo­ren­ses e os juízos inferiores. E' preciso refrear a ganância dos advogados, procuradores, tabeliães, escreventes, legu­ leios e meirinhos, mal a que se deve por cobro, assim como as procrastinações das demandas. Cumpre obedecer reli­ giosamente as decisões dos diretores da Companhia, até onde convier serem elas observadas. Quando, porém, pare­ cem prejudiciais por haverem mudado as circunstâncias, pre­ feriria eu não observá-las. Em geral, a grande distância dos lugares e a incerteza dos acontecimentos fazem que no Brasil sejam tidas por inconvenientes providências que pareciam vantajosas na Holanda, e desta sorte se executariam aqui imprudentemente cousas prudentemente resolvidas noutra parte. Sempre que tiverdes negócios com a nossa gente, não lhe toqueis nos bens, como se fossem cousas sagradas. São homens tais que preferem sofrer dano na vida a sofrê-la na fazenda: esta é para eles mais cara que a menina dos olhos. De­pois de perderem, por ofendidos, o respeito, odeiam hos­ tilmente aos que tinham acatado servilmente. E porque são compatriotas dos governadores, julgam assaz iníquo sujeitálos as mesmas leis a que se sujeitam os outros. Nada execram tanto os portugueses quanto as extorsões quotidianas dos es­cul­tetos nas províncias, praticadas sob color de direito, e com as quais esfolam o povo além da contribuição devida. 0 re­médio para isso será abolirem-se as penas dos delitos leves e várias leis, salvas aquelas com as quais se reprimem os crimes graves. Privados, assim, estes grilos e sanguessugas dos nomes de tantas multas, se escravizariam menos ao seu ganho ou satisfariam menos a sua insaciável cobiça. Além disso, conviria entregar estas funções somente aos mais conceituados, afas­ tando-se delas os ladrões, que como Geriões (352), vão arre­batar o alheio com seis mãos. E do interesse público punirem-se com o maior rigor os duelos e os homicídios deliberados, sem se ter em conta a condição das pessoas. Não são, porém, de punir aqueles que são imperados por uma ira cega ou uma justa dor. COBRAI escrupulosamente o dinheiro devido à Com­ panhia. São tenazes as mãos dos mercadores, e mais depressa arrancaríeis a clava a Hércules do que o dinheiro a eles. Con­ sideram lucros todas as moratórias que obtiverem. Além dis­ so, elevam os seus cabedais ao triplo ou ao quádruplo com os bens a eles confiados pela Companhia, preocupando-se mais com que artes hão de transferir para outros os seus débitos do que com o pagar aos administradores da Companhia o que a ela devem. A demasiada facilidade do ganho e os prazos longos para os pagamentos aumentam estes males. Acon­ selho, entretanto, que se tratem mais moderadamente os se­nho­res de engenhos em atenção as incertezas da safra, a qual as vezes lhes engana a expectativa. Não desejaria que se ten­ tassem medidas extremas contra eles, a ponto de se em­bargarem os próprios bois, instrumentos dos trabalhos, de­pois as terras, e em seguida prender-se o devedor. Ao assumirdes a república, é da maior importância sejam bem agoirados os inícios do vosso governo. Se-lo-ão, se o povo o aplaudir; aplaudi-lo-á, se vos dispuserdes a ganhar fa­ma de clemência. Deste modo, cobrarão os súditos vigor e ânimo, e tudo será para os governantes risonho e feliz. Portanto, é necessário comunicar a minha partida aos di­re­ tores das províncias e declarar-lhes que toda a autoridade es­tará doravante em vossas mãos; cassar as penas impostas por decretos anteriores; conceder perdão das infrações co­me­tidas antes; condenar os abusos dos escultetos e cercear-lhes as faltas e os pretextos de delinqüirem; haver para todos libérrima apelação para vós da improbidade deles; abrirem-se fáceis. os ouvidos dos Conselheiros as queixas, para se dar a cada um o

Padre Antônio Vieira

em Per­nambuco, é exaltado por todas as fontes ho­lan­desas con­sultadas, em particular o tratamento por ele dispensado à comunidade judaica do Recife, “que mais do que qualquer outra tinha razões para temer a reconquista portuguesa, e não poderia esperar qualquer consideração da parte dos católicos-ro­manos fanáticos”. No depoimento da época, escrito pelo rabino Saul Levy Mortera, sob o título, Providencia de Dios com Ysrael y Verdad y Eternidad de la Ley de Moseh y Nulidad de los demais Leys, a retidão da­quele general é exaltada: Proibiu aquele governador que se tocasse ou molestasse qualquer pessoa pertencente à nação hebraica, estabelecendo castigos severos para os que infligissem essa proibição. E não ficou nisso, pois permitiu que os judeus vendessem as suas mercadorias e embarcassem para a Holanda mais de seiscentas pessoas de nossa nacionalidade, que ali se achavam presentes. Perante as novas gerações da Holanda, a rendição do Recife marca o início do declínio da idade de ouro da expansão colonial holandesa, ini­ciada em 1619 com a fundação de Batávia por Jan Pieterszoon Coen, no lugar em que se situava a Jacatra dos javaneses: “Na antiga Jacatra começou a vitória, / Na conquista do Recife a derrocada”. No dizer do padre Antônio Vieira, o mesmo que aconselhara a D. João IV a desistir de Continente Documento 19


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Pernambuco, deixando o Nordeste do Brasil na posse definitiva da Holanda, “pelejando só as relíquias dos per­ nam­ buca­ nos com toda Nova Holanda, defendida e presidida com 19 fortes reais, a venceram toda de Norte a Sul e de cabo a cabo, reconquistando em dois dias tanta ter­ra quanta se não podia andar a bom passo em quatro meses” (Sermões, v. XIV, p. 253-254). É do mesmo padre Antônio Vieira, em sua His­tória do Futuro (Lisboa 1976,2 v.),este comentário: “Após uma aventura que lhe custara apenas sobres­ saltos, eis que o Rei de Portugal se vê presenteado com três cidades, oito vilas, catorze fortalezas, quatro capi­tanias, trezentas léguas de costa e lhe desafogaram o Brasil, franquearam seus portos e mares, libertaram seus comércios e seguraram seus tesouros”. que é seu, o que é a-suprema regra da justiça. Cumpre não mitigar, nem diferir as penas contra os ladrões e sa­queadores de fazendas e lavouras, para que essa misericórdia não se converta em miséria. São eles inimigos do gênero humano e da salvação pública, ha­vendo interesse em escarmentá-los com suplí­cio mais rigoroso para não arruinarem toda a fortuna do povo. Nem pode haver crueldade em se punir a atrocidade de tamanhos cri­mes. Aprendei dos portugueses os melhores meios de apanhar es­ses criminosos. Aponto dois : a impunidade de alguns e as recom­pensas para as delações. Concedei perdão aos próprios celerados, se denun­ciarem os companheiros, pois não exter­mi­nareis melhor esses malfeitores do que por meio de seus parceiros no crime. De feito, quando uns desconfiarem dos outros, terão receio de se as­so­­ciarem para o delito, a fim de não serem traídos pelos sabedores dele. Suspeitando-se a deslealdade de alguns e aplicando-se cada uni de per si ao mal, se dispersarão pela inutilidade dos esforços. Prometei prêmios e dai-os. Vereis que se tem de correr perigos e de se empregar trabalho naquilo de que se esperam vantagens, NA ADMINISTRAÇÃO DAS COUSAS DIVINAS e dos negócios ecle­siásticos, deve-se usar aqui no Brasil a mesma moderação que em qual­quer outra parte. E não obstante desejar-se que todos acei­tem e professem a mesma religião que vós, todavia é pre­ferível tole­rar­des com ânimo sereno os dissidentes a ser a repú­ blica agitada por tumulto maior. Considerai as circunstâncias, as quais sabem às mais prudentes que devem obedecer. É de melhor aviso deixar as opi­niões inveteradas do que tornar-se público que vós quereis proibir aquilo cuja proibição não sois capazes de efetivar. Nada é mais peri­goso que um remédio intempestivo para erros medrados e arrai­gados: cada qual ama a religião que bebeu em tenros anos, e se afer­ra a ela. Se resistirdes, ser-vos-á oposta a contumácia, e assim é melhor fechar os olhos do que, com alvitres imprudentes e in­ tem­ pestivos, extinguir essa chama sagrada. Por­tan­to não apro­varia que vos ingerísseis muito com a religião dos portugueses ou que os coagísseis a se habituarem com o nosso culto e cerimônias. Con­servem os seus sacerdotes e o governo da Igreja que receberam dos seus antepassados. Discerni os facciosos dos moderados. Re­pri­mi ou afastai aqueles e retende

Francisco Barreto de Menezes, Restaurador de Pernambuco

estes para não parecer que vos irais contra uma classe, mas só contra indi­ víduos. Assim serão os vossos atos recebidos sem malquerença, e se apagarão os ódios nos ânimos. Pensa a nação portuguesa ser abusivo e de mau costu­me intrometerem-se os seculares nos negócios eclesiásticos e con­fundirem-se as cousas profanas com as sagradas. Nada move mais eficazmente os portugueses que a autoridade dos seus sacerdotes, e aqui no Brasil é imprudente e arriscado abrir contra eles devassa mais rigorosa. Não deis demasiada atenção às acusações e queixas dos homens da nossa religião: quer cada um que seja de todos a fé que abraçou, e que, sob o mesmo céu e o mesmo governador, te­nham todos a mesma crença. Daí os ódios contra os dissidentes, as invectivas contra os dogmas e artigos da fé, os exílios, cadeias, cárceres e penas capitais. Atendei mais à tranqüilidade de muitos do que ao fanatismo e ao zelo exagerado de poucos. Assim ven­cereis as situações difíceis, e reinará a paz. E não me terão por dis­si­dente aqueles que julgam ser necessário coibir com castigo a inso­lência dos que insultam a fé alheia e o culto público dos por­tugueses e que- lhes atacam a religião e os ministros com motejos e palavras ultrajantes. ales, com isso, ficam mais irritados e amam, com mais veemente preconceito, as cousas desprezadas pelos adver­sários. Examinai o que aconselha a firmeza da república e a própria piedade. Parece-me ter-vos já exposto o que eu quis fosse a norma dos meus atos e que desejaria fosse também a dos vossos. Com este modo de proceder, alcancei segurança para o império, favor e boa fama para mim na pátria e fora dela. Não permitais nada venal, nada acessível mediante dádivas. Guardai o caminho da hones­ti­ dade: não se abram as vossas portas a cobiça para vos maculardes, nem a lisonja para perderdes os bens. Temendo mais a conciência do que a opinião, oponde uma virtude constante e inquebrantável aos maus conselhos e as calúnias. Talvez pareçam à primeira vista mais belos os conselhos de outros: achei, porém, estes meus melhores pela experiência. Acu­ se quem quiser esta benevolência e brandura ínsita ao meu caráter, uma vez que não me arrependo dela e espero que o mesmo acon­tecerá a vós.


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