Arte insurrecta

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REGISTRO

Arte insurrecta

Dono de uma obra densa e consagrada porĂŠm insurgida, o desenhista Rodolfo Mesquita permanece desconhecido do pĂşblico Luiz Ernesto Mellet

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O ateliê do artista. No detalhe, Rodolfo Mesquita

ainda arborizada Quarenta e Oito, rua encraA vada no coração do Espinheiro, bairro do Recife,

FOTO: ELPÍDIO SUASSUNA

acabrunhada casa espremida entre espigões da

serve de residência e ateliê do desenhista pernambucano Rodolfo Mesquita. Três das cinco décadas vividas, ele passou debruçado sobre a prancheta onde, todas as manhãs, desafia a superfície branca do papel na construção de uma obra de intrigante linguagem gráfica, com mais de cem premiações conquistadas e que, apesar disso, continua completamente desconhecida do público. O isolamento no qual se vê imerso talvez se explique pela prolongada ausência do desenhista no

circuito das artes, desde que expôs pela última vez, em 1989. Soma-se a isso o peculiaríssimo estilo de complexo discernimento em que exibe o nonsense do cotidiano. Em seu trabalho, Mesquita reproduz fragmentos da realidade através da compilação de flagrantes, abordando uma teia de aspectos, sobretudo os mais escabrosos, que a maioria das pessoas finge não perceber, mas que estão em qualquer esquina e que se revelam a quem tenha a coragem de descer o vidro do carro e lançar um olhar em torno com devida atenção. As paredes e o chão da casa em que mora estão repletos desses desenhos que não são do tipo que Continente Multicultural 49


Acima, Sem Título, 2002, 38 x 55cm. Desenho em cor, técnica mista (nanquim e acrílica) Abaixo, Sem Título, Sem data. 35 x 46cm. Desenho em técnica mista (nanquim e acrílica)

qualquer um pendure na sala impunemente. Isso porque seus trabalhos exigem leitura aprumada e necessitam de algum repertório para que possam ser traduzidos. “O desenho de Rodolfo Mesquita é o trabalho que mais me emociona de toda a produção gráfica do Brasil. O grotesco de seu desenho não bebe o veneno da cólera, daí que seu olho seja mais terrível ao discernir com frieza os paralelismos entre o mundo real e suas alegorias autogeradas”, definiu o pintor João Câmara. A obra de Mesquita começou a ganhar projeção durante os anos 70, período mais profícuo da sua produção, quando a influência da pop art e a sátira política – representada na figura de sisudos generais – eram elementos constantes nos trabalhos. Essas características chamaram a atenção dos editores das publicações ditas de esquerda do país, que viram, equivocadamente, certo engajamento ideológico contido nos desenhos. Mesquita fez, então, algumas ilustrações para IstoÉ, Pasquim e até para a edição nacional de estréia da revista Rolling Stones. Ao mesmo tempo, freqüentava com assiduidade os salões e bienais, tendo sido selecionado em todos de que participou. Em 1976, o diretor do Museu de Arte de São Paulo, Pietro Maria Bardi, se empenhou pessoalmente na exposição do artista, quando o volume de desenhos intitulados Crítica do Horror Puro mereceu elogios da crítica especializada. Nesse ano, ele ganharia também uma viagem como prêmio e seguiria para a França, onde perambulou por dois anos por lá. Embora aparentemente nada de substancial tenha acrescido à sua obra, o período em que viveu na Europa serviu para acentuar ainda mais a sua veia circunspecta. Uma espécie de exílio estranhamente começaria a ganhar contornos após o retorno do desenhista ao Brasil. As premiações continuaram vindo, ao passo

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que as exposições se tornavam escassas. Certo dia, ao ver jogados num canto da casa medalhas, diplomas e certificados, achou que não deveria mais participar de salões e resolveu dar fim ao entulho. Uma dessas distinções, revestida num luxuoso estojo de veludo vermelho, foi parar nas mãos da dona de uma barraca na feira da Encruzilhada. “Ela ficou decepcionada ao abrir aquele troço bonito e encontrar, em vez de uma


FOTO: REPRODUÇÃO

jóia ou algo assim, uma placa de bronze gravada não sei o que sobre mim”, lembra. “Isso serviu para me mostrar que este tipo de coisa pouca ou nenhuma contribuição trouxe ao meu trabalho”. A partir daí, o desenhista se recolheu em casa na companhia de um rotteweiler. Com o passar do tempo, o jeito arredio e alheio às badalações que contaminam a atmosfera das vernissagens colaborou para distanciá-lo ainda mais do mundo artístico. Mesmo assim, consegue enxergar alguma vantagem na situação: “O lado positivo em não vender, ou me-

lhor, o único dele, é o de poder colecionar muitos trabalhos. A qualquer momento posso me reportar a um antigo e fazer um cover dele”, diz. A coleção de Mesquita reúne desenhos de várias fases, num experimento gráfico que sugere um ambiente impregnado de hiper-realismo. São esquemas técnicos, explicativos, bulas de objetos montáveis, planos de máquinas, plantas cartográficas, mecanismos gigantes e sinistros mal projetados, desenhos usados na propaganda e, sobretudo, figuras de gente, viva ou morta, que arrastam seus corpos pelas ruas. Traços, pontos e, até mesmo, impertinentes citações que produzem o efeito de um soco seco no estômago. Não se pode afirmar, contudo, que o trabalho de Mesquita reflita algum tipo de engajamento, mas também não se pode abrir mão disso, uma vez que seu estilo gráfico está intimamente identificado com a crítica social e segue a linha semelhante à encontrada na arte dessacralizadora e insubordinada de Marcel Duchamp e George Grosz. A originalidade contida na obra dele reside nos desenhos que parecem confabular uma história feita de factóides, espécie de simulacro da realidade que tenta é denunciar a sordidez dos excluídos e a estupidez daqueles que são os responsáveis maiores por esta exclusão. Exclusão que vitima também o próprio artista. Depois de anos, Mesquita decidiu voltar a participar dos salões. Recentemente, arrebatou o primeiro prêmio da Bienal de Desenho, promovida pelo Espaço Cultural da Paraíba. Talvez isso ajude a galvanizar o conhecimento do público a respeito do trabalho deste genial desenhista e sirva para libertá-lo da inconcebível proscrição em que se encontra. Porém, o mais provável é que – como nas vezes anteriores – este prêmio não signifique nada.

Acima, O Carnaval de Hamlet, Sem data. 38 x 55cm. Desenho em cor, técnica mista (nanquim e acrílica) Abaixo, Sem Título, 2002, 38 x 55cm. Desenho em cor, técnica mista (nanquim e acrílica)

Luiz Ernesto Mellet é jornalista

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