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QUALQUER MANEIRA DE AMAR #170 ano XV • fev/15 • R$ 10,00
JÀ DÀ PRA SENTIR O CORAÇÃO AQUECENDO.
CONTINENTE
INSETOS GAFANHOTOS, LARVAS E BARATAS VÃO À MESA EM GRANDE ESTILO AUTORRETRATO DAS ORIGENS NA PINTURA À SELFIE FAMIGERADA
FEV 15
O verão chegou. E com ele, o sol. E com o sol, a luz chamando as pessoas pra que vivam as ruas, as praias e os parques. O coração do Recife bate em baque virado. Sinta sua cidade como o calor de um abraço apertado.
ARTISTAS E ATIVISTAS PÕEM EM DISCUSSÃO AS DEFINIÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE
CATALINA ESTRADA | BANDA DE IPANEMA | DAVID COPPERFIELD FLAIRA FERRO | TEATRO DE RUA | GRUPO DE PERCUSSÃO DO NORDESTE CAPA_fevereiro flag.indd 1
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PICNIC ON THE ESPLANADE/NAN GOLDIN/REPRODUÇÃO
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aos leitores A arte tem sido um excelente meio de observação das mudanças sociais, ela mesma com o poder de provocá-las. Dentro do assunto que nos mobiliza nesta edição, sexualidade e novas afirmações de gênero, os artistas que mencionamos são basilares, pois suas obras e experiências são indispensáveis à discussão. Aqui, estamos na companhia da fotógrafa norte-americana Nan Goldin que, embora seja cultuada no campo da arte, permanece ignorada ou malentendida fora desse segmento. Nos anos 1970, quando feministas e gays punham em xeque tradições que os oprimiam, Goldin vivia muitas das questões em debate, convivendo e fotografando pessoas postas à margem, como as travestis registradas na obra The other side, da qual foi reproduzida a foto acima, que bem pode nos remeter ao Almoço sobre a relva (1863), revolucionário em seu tempo, pelas mãos de Manet. Estamos na companhia, também, de gente como Jean Genet e Oscar Wilde, escritores cujas escolhas pessoais tiveram imensa repercussão social e política, levando a sociedade a discutir paradigmas, dentro e fora da literatura. Contemporaneamente, há o inquietante trabalho da artista
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baiana Virginia de Medeiros, que coloca suas experiências artísticas e de vida no mesmo patamar, o que podemos aferir em obras como Studio Butterfly, com instalação realizada a partir da convivência com travestis, e Jardim das torturas, em que registra o período no qual integrou uma família sadomasoquista. Hoje, ela pretende, como declarou à jornalista Luciana Veras, influir no próprio corpo, tomando testosterona, sendo guiada por um homem trans nesse processo. Para além do campo da representação artística, há a vida de pessoas que, no anonimato ou no ativismo político, requerem nosso olhar, nossa sensibilidade para as novas acepções de gênero e sexualidade. Na reportagem realizada por Chico Ludermir, defrontamo-nos com pessoas que não se reconhecem dentro das categorias binárias que resultam da definição de um corpo sexual: masculino e feminino. Elas militam hoje pelo reconhecimento de que esses são valores historicamente arraigados e que não correspondem à realidade dos desejos individuais. Militam pela liberdade de viver esses desejos no próprio corpo, sem serem violadas por isso.
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JIMMY PAULETTE ON DAVID’S BIKE (1991)/NAN GOLDIN/REPRODUÇÃO
EXPRESSÕES A potência da transformação na arte CON TI NEN TE
CAPA
A ampliação dos debates, na contemporaneidade, sobre identidades sexuais, liberdade de escolha e de atuação sobre o próprio corpo reflete-se claramente nas representações artísticas TEXTO Luciana Veras
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Em 2000, a filósofa espanhola Beatriz Preciado divulga, em Paris, a primeira edição de Manifiesto contrasexual, livro que, dois anos depois, seria publicado em seu país natal e que inscreveria seu lugar na teoria queer contemporânea e nos estudos de gênero. Nele, ela propõe um “contrato contrassexual”, em que as pessoas se reconheceriam não como “homens ou mulheres, e, sim, como corpos falantes”, trazendo em si “a possibilidade de acessar a todas as práticas significantes, assim como a todas as posições de enunciação dos sujeitos que a história determinara como masculinos, femininos ou perversos”. Por conseguinte, “renunciam a uma identidade sexual fechada e determinada naturalmente”. Sua tese é ratificada no artigo Cartografías quer: el flâneur preverso, la lesbíaca topofobica y la puta multicartográfica, compilado no livro Cartografias dissidentes, (2008). Partindo da noção de identidade sexual como “um feito natural ou biológico incontestável ou como o produto de um processo de construção histórica ou linguística que uma vez constituído funciona como um núcleo duro e invariável cuja trajetória pode ser traçada e descrita como a física de um sólido”, a autora discorre sobre uma cartografia que “começa por ser uma taxonomia de identidades sexuais e de gênero – masculinas ou femininas, heterossexuais ou homossexuais – que se apresentam como legíveis na medida em que são mutuamente excludentes”. Nessa perspectiva, o cartógrafo ideal seria alguém que abstrairia sua “própria posição identitária, aparecendo como neutro e capaz de registrar os movimentos das diferentes identidades sexuais e dos usos do espaço e das práticas urbanas ou artísticas que emanam destas”. O mundo, porém, mudou. Na arte, espelho/tradução/ recriação maior da vida, não haveria como ser diferente. “Não é difícil reconhecer que, até pouco tempo, a maioria das historiografias da arte moderna e contemporânea não eram senão cartografias identitárias dominantes que registravam práticas masculinas e heterossexuais como se estas, por si só, pudessem esgotar a geografia do visível”, prossegue Preciado. Surgem “detetives do invisível”, como ela própria e a fotógrafa norte-americana Nan Goldin, capazes de “jogar luz em CONTINENTE FEVEREIRO 2015 | 23
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CON CAPA TI NEN TE
REPRODUÇÃO
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Já nos anos 1970, a artista concentrouse no universo das travestis; The other side reúne imagens feitas entre 1972 e 1992
2 GIUSEPPE
CAMPUZANO
Artista peruano utilizou personagens transgêneros, transexuais, andróginos e intersexuais na crítica à história de seu país
3 VIVIANE
VERGUEIRO
Ativista e pesquisadora dedica-se aos estudos das identidades de corpos e gêneros sob o foco da pós-colonização
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geografias até agora ocultas embaixo do mapa dominante”. Já nos anos 1970, Goldin mergulhava no cotidiano de travestis em The other side, colocando, quando da publicação em livro em 1992, que “as imagens nesse livro não são de pessoas sofrendo de disforia de gênero, mas, sim, expressando euforia de gênero… Essas pessoas são verdadeiramente revolucionárias e venceram a batalha dos sexos porque desceram do ringue”. Não eram figuras esdrúxulas que ela ousava captar pelo exótico, eram companheiros seus.
“Em uma primeira aproximação, a obra de Nan Goldin pode ser entendida como um extenso diário ‘escrito’ por meio dos retratos que faz de seus amigos – que, desde quando frequentava uma escola comunitária e livre nas cercanias de Boston, são pessoas que, como ela, nunca se acomodaram às regras normatizadoras do comportamento individual, e para quem a liberdade de uso do próprio corpo é afirmação de alteridade (…) e que a fascinavam justamente por desclassificarem, com as próprias vidas, o conceito estanque de
gênero”, analisa o curador Moacir dos Anjos, em texto publicado em Fronteiras: arte, imagem e história (Azougue Editorial). Portanto, com o alargamento da discussão sobre identidades sexuais, liberdade de escolha e de atuação sobre o próprio corpo, ampliou-se o reflexo nas representações artísticas. Há outros caminhos perceptíveis, novas possibilidades de trazer o direito à (auto) afirmação, a independência para se (re) definir e os meios para compartilhar tudo que se questiona, se confunde e se legitima no zeitgeist – ideia de “espírito do
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tempo” cunhada pelo filósofo alemão Georg Hegel (1770-1831). Uma obra de arte, afinal, deglute e reprocessa o discurso social, enfatizando a necessidade de se ir além.
NO PRÓPRIO CORPO
“As expressões artísticas carregam uma potência muito grande de transformação social”, observa a ativista transfeminista e pesquisadora Viviane Vergueiro, mestranda no Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades da UFBA, em que estuda identidades de corpos e gêneros sob o foco da pós-colonização. “Preciado diz que vivemos numa era pós-sexual e que há contradição em estar nessa época e seguir vivendo com vários ‘circuitos de opressão, exclusão e normalização’. É difícil mensurar no calor do momento, até porque tudo tem andado rápido, mas fico feliz com esses fortalecimentos de um discurso como o dela para além da academia, embora ainda exista dificuldade em perceber o impacto disso em políticas públicas, nas instituições, por uma questão de rigidez das estruturas de poder para incorporálo”, sustenta. Paulistana de nascimento, Vergueiro é formada em Economia, há três anos mora em Salvador e defende um olhar mais agudo sobre imprescindibilidade da autonomia sobre corpos e gêneros: “No meu mestrado, utilizo estudos póscoloniais, feministas e queers e pessoas trans que escrevem academicamente para pensar na colonialidade além das relações estatais, de territórios, na dimensão cultural e em outras dimensões dominadas pela cultura eurocêntrica, que institui uma visão binária do corpo. Somos colonizados pelo sistema médico, pelo discurso que normatiza os corpos. A medicina é uma construção da colonização europeia, não é um sistema neutro. Outras sociedades possuem outras perspectivas de gênero. Na nossa, apenas homens ou mulheres. Por exemplo, o atendimento a pessoas trans no sistema de saúde está atrelado a uma ideia de transtorno mental. Isso é constrangimento. Quero falar do meu corpo como eu quiser, andar e construílo como eu quiser”. Esse desejo ganha força em trabalhos de artistas contemporâneos, ainda mais expressivos, quando reunidos em
“As expressões artísticas carregam uma potência muito grande de transformação social” Viviane Vergueiro mostras como a recente 31ª Bienal de São Paulo (2014) ou Perder la forma humana, ocorrida entre outubro/12 e março/13, no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madri, citadas pela curadora e pesquisadora pernambucana Cristiana Tejo. “Talvez pudéssemos localizar no cerne das próprias vanguardas históricas a tentativa de discutir questões de sexualidade, como no quadro A origem do mundo, de Courbet, ou mesmo Olympia, de Manet. Entretanto, a discussão fica mais adensada nos anos 1960 com a eclosão da contracultura e dos movimentos sociais, principalmente do feminismo e dos direitos dos homossexuais. Nesse momento, há o empoderamento das artistas mulheres de tratarem da questão usando seus próprios corpos, reivindicando um discurso e uma prática até então encabeçada pelos homens.” Assim, os artistas passaram a perseguir, na pele que habitavam ou em seus trabalhos, outras decodificações para o binômio “homem/mulher”. O peruano Giuseppe Campuzano (1969– 2013), filósofo e drag queen presente nas duas exposições mencionadas acima, fez do seu Museo Travesti del Perú, no qual
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interliga personagens transgêneros, transexuais, andróginos e intersexuais, uma irônica e crítica revisão da trajetória do seu país. Outra sul-americana a operar nessa interseção é a chilena Paz Errázuris, cujo La manzana de Adan, livro com imagens de travestis feitas entre 1982 e 1987, ainda sob a ditadura do general Augusto Pinochet, joga luz na sexualidade que teimava em florescer na clandestinidade. Na mesma época, Nan Goldin mostrava The ballad of sexual dependency pela primeira vez na Whitney Biennial, em 1985, conferindo status artístico a diversos tipos de “marginais” que orbitavam o submundo artístico de Nova York. Como o ensaio The other side, tornou-se influência imediata.
FORA DO PADRÃO
“Nomes como Paz Errázuris e Nan Goldin já surgem a partir dos anos 1980, num contexto complexificado pelo aparecimento da aids e o fim da Guerra Fria, quando grande parte da produção artística começa a lidar mais sistematicamente com noções de identidade, seja cultural ou sexual”, lembra Cristiana Tejo. No Brasil, ela pondera que a “tradição modernista” é um entrave para o aprofundamento da temática. “Há um certo receio no campo da arte brasileira de lidar com essas questões. Por isso, é importante destacar Virginia de Medeiros, uma artista mais jovem. Quando ela começou seu trabalho com as travestis de Salvador, pouquíssimos artistas lidavam com o tema. Ela era uma exceção em sua
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CON CAPA TI NEN TE EVERTON BALLARDIN/REPRODUÇÃO
geração”, pontua a curadora. Talvez essa baiana de Feira de Santana, de uma certa maneira, ainda o seja. Obras como Studio Butterfly (2004–2006), fruto de convivência intensa e mergulho no universo das travestis, e Jardim das torturas (2012–2013), imersão nos rituais de dominação e submissão de uma família sadomasoquista de Campinas, evidenciem o interesse de Virginia por tudo que está “fora da linearidade, da binariedade, do padrão normativo das sociedades patriarcais”, como resume em entrevista à Continente. “Foi muito espontâneo meu encontro com as travestis. Em 2000, quando as conheci, eram marginalizadas, mais do que hoje. Eu não estava levantando bandeira, não era uma ativista. Foi uma identificação no microuniverso, nesse lugar de transgressão, a partir de uma transgressão que eu estava vivendo comigo mesma, ao experimentar a atração por um corpo igual ao meu. Porque o corpo é político, é uma manifestação política. Aquilo foi me fortalecendo também. A partir da experiência que estava vivendo, sentia uma força semelhante a delas, esse impulso de experimentar o que estava fora do padrão heteronormativo. Não houve crise, me senti forte”, recorda. Vinda de uma família “católica, castradora, que negava o corpo”, ela tem buscado provocar sua própria constituição física e inseri-la em sua obra – atuando, assim, como personificação de ideias que a psicanalista Tania Rivera defende nos ensaios de O avesso do imaginário – arte contemporânea e psicanálise. “Ainda que diversas manifestações presenciais do artista possam pretender uma afirmação identitária com, por vezes, ressonâncias políticas, o essencial é que o corpo se dá a ver. ‘Toda carne’, escreve Merleau-Ponty, ‘e mesmo a do mundo, irradia-se fora de si mesma’”, deslinda. Alteridade é a palavra-chave, não apenas para Virginia, mas para artistas que repercutem essas questões em todas as linguagens. Ou, como também argumenta Rivera, “na performance, trata-se de ‘dar-se a ver’ ao Outro”.
SÉRIES DE TV
E quando o Outro são muitos? Como reverberar o debate sobre liberdade de gênero, emancipação do corpo e choque de normas vigentes em veículos
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IMAGENS: DIVULGAÇÃO
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4 JARDIM DAS TORTURAS
Na obra, Virgínia de Medeiros fez parte de rituais de dominação de famíla sadomasoquista 5 MODERN FAMILY Seriado traz um casal gay que adota um bebê e é aceito pela família 6 LADY GAGA Estrela pop propaga o discurso do “ame o feio”
sexo, muitas vezes pelas razões erradas. Lena Dunham, criadora da série e atriz principal, escapa dos padrões de beleza da televisão e do cinema. Orange is the new black traz um elenco majoritariamente feminino, em que muitas personagens têm relações entre si, dos mais diversos tipos. E Masters of sex trata a sexualidade feminina de forma mais moderna – e é Virginia Johnson, o personagem de Lizzy Caplan, que se posiciona como a mais liberada sexualmente, mesmo que a história se passe na década de 1950. O reprimido é o médico William Masters, vivido por Michael Sheen”, comenta Mariane, referindo-se, por último, à série exibida no Brasil no canal pago HBO, baseada na história real dos responsáveis pelo primeiro estudo científico sobre sexualidade humana. Décadas antes dos verdadeiros Masters e Johnson começarem a documentar atos sexuais e catalogar os estágios de excitação de homens e mulheres em um hospital em Saint Louis, no meio-oeste americano, testando em si os critérios adotados para avaliar os outros, um escritor britânico ascendia à posteridade por O retrato de Dorian Gray (1890) e por ser preso, acusado de manter relações homossexuais.
CASOS LITERÁRIOS
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pensados para atingir milhares, como o cinema e a televisão? “Essa abordagem tem ganhado força na televisão contemporânea americana, espaço audiovisual muito mais avançado do que o cinema de Hollywood. O país é grande, retrógrado e progressista ao mesmo tempo, mas creio que a televisão reflete o pensamento de boa parte dos americanos e sinto um desejo dos produtores de avançar nas discussões”, opina a jornalista Mariane Morisawa, colaboradora em Los Angeles de vários veículos brasileiros. “É na TV que há uma presença bem maior de personagens homossexuais de vários tipos, diferentemente do que geralmente se vê no Brasil, por exemplo, que tende a mostrar
gays com características parecidas: são ‘engraçados’, ‘fofoqueiros’, ‘espalhafatosos’. Na série Transparent, que acaba de ganhar dois Globos de Ouro, o pai de família é transgênero. Modern family também é importante por ser uma sitcom mainstream e trazer um casal gay, formado por dois homens de personalidades distintas, que adotam um bebê e são aceitos pela família”, acrescenta. Seriados como Girls (2012), Masters of sex (2013) e Orange is the new black (2013), para se ater a exemplos mais recentes, evocam mulheres de força e com poder decisório, contrariando a lógica machista. “Sex and the city foi um marco, na época, por trazer mulheres falando de sexo, mas Girls leva a premissa muito adiante – mostra as mulheres fazendo
“Afora o escândalo que Oscar Wilde protagonizou em 1895, o único livro dele que é explicitamente de temática homossexual é De profundis, uma carta dirigida ao lorde Douglas. Wilde coloca na ordem do dia a questão homossexual antes por suas ações, por sua orientação sexual e por infringir as leis inglesas, do que por meio da sua obra. O que a sua prisão pode ter suscitado, creio, foi colocar em discussão a criminalização ou não das orientações sexuais, foi mostrar que um respeitável pai de família e um escritor festejado da era vitoriana podiam ser gays. Ou seja: a moral vitoriana podia agir no campo das aparências, ao tentar construir uma imagem social de como as pessoas deviam pautar as suas vidas, mas não moldava a essência da natureza humana. Nesse ruído entre essência e aparência, calçava-se uma sociedade hipócrita, construída em cima da mentira e do medo, antes do que uma sociedade sadia e oxigenada”, contextualiza Anco Márcio Tenório Vieira, professor do Departamento de Letras, da UFPE.
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CON CAPA TI NEN TE À luz da literatura moderna, outros autores possuem relevância na verbalização de afetos outrora proibidos. “Acredito que o primeiro grande escritor a expor a sexualidade humana por meio das suas pulsões mais recônditas foi o Marquês de Sade. Sua obra é um divisor de águas nesse campo, mas encerra um viés fortemente moralista. E se, em Wilde, o amor homossexual é aquele ‘que não ousa dizer o nome’, para o hoje quase esquecido André Gide, em Córidon (1911), uma defesa da pederastia grega, não só se deve dizer o seu nome, como deve ser defendido. Não podemos esquecer Alexis, ou o tratado do vão combate, de Marguerite Yourcenar, publicado em 1927, uma longa carta de despedida de um homem para a sua esposa, em uma espécie de autoanálise da sua condição homossexual”, aponta o professor da UFPE, que inclui a inglesa Virginia Woolf (1882-1941) e o francês Jean Genet (1910-1986) na lista dos pioneiros. “Ela trata do tema explorando certa ambivalência sexual, e o seu romance Orlando (1928) parece-nos o melhor exemplo disso. Genet é central, por trazer ao universo literário a marginalidade. Com ele, os submundos da sociedade entram na literatura não por meio do olhar de quem está no centro da sociedade — o burguês ou o pequeno-burguês —, mas pelo olhar de quem é sujeito desse universo. Ele expõe um submundo social até então ausente da literatura, que tinha como temática o universo gay. O que há em comum nesses autores é a ausência de palmatória, de julgamento moral — seja ele burguês ou religioso —, e a busca por naturalizar as orientações sexuais da natureza humana. Isso os diferencia dos autores do século 19”, situa o professor.
APARÊNCIAS DO POP
Tal “busca por naturalizar as orientações sexuais” é, hoje, combustível usado em larga escala na música, por exemplo. Prega-se a diversidade sexual em reality shows, cultua-se a androginia, apregoa-se a anulação das fronteiras entre gêneros. Contudo, não ocorre sem tensões a indexação de uma agenda de afirmação da liberdade sexual, da autonomia do corpo, por parte da indústria cultural. “A cultura pop é, em si, contraditória. Há espaço para artistas defenderem
REPRODUÇÃO
7 JEAN GENET Francês trouxe o submundo e a marginalidade para o universo da literatura 8 BEATRIZ PRECIADO A partir do seu Manifiesto contrasexual, Testo yonqui e Pornotopía, passou a se autodenominar Paul B. Preciado
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plataformas, mas como o pop está dentro dos sistemas econômicos e financeiros, isso cria uma ambiguidade. Até que ponto é marketing, ou um discurso para venda e consumo? Se pegarmos uma figura emblemática como Adam Lambert, vencedor do último American idol, vemos que ele está dentro dos padrões hegemônicos de beleza, que não foge, mesmo com seu visual andrógino, de uma normatividade heterossexual. Ou seja, a liberdade de expressão, da sexualidade, da escolha, atende a uma plataforma de marketing e posicionamento das indústrias atentas a esse zeitgeist, e mesmo vivendo um momento de reordenamento, não se trata de um debate exatamente novo. O que talvez esteja em jogo é uma pragmática desse discurso”, deduz o professor de Comunicação da UFPE Thiago Soares. É como se, no pop, não se verificasse a noção de queer preconizada por Judith Butler em Gênero em disputa: o feminismo e a subversão da identidade (1990), indispensável nos estudos feministas e de gênero. Lambert – como tantos outros – aparenta o desajuste, mas, na prática, não o vivencia. “O queer traz o conceito de corpo abjeto. O que é o queer? É o diferente, o estranho, o abjeto. Na cultura pop, temos os discursos que operam em cima
de padrões libertários, que pregam a fuga de modelo, mas que desaparecem quando vamos para a corporalidade, para as inscrições do corpo”, raciocina Soares, que ainda levanta restrições ao retrato de gays, lésbicas, transexuais, transgêneros e drag queens pintado em humorísticos televisivos. “O humor é ambíguo porque, ao se colocar no risível, há uma suspensão da realidade. Você acha que é inclusivo, mas muitas vezes contribui para perpetuar estereótipos. Por exemplo, as drags são vistas como os palhaços da cultura gay. E o que é o palhaço? Algo sem sexualidade. Sou reticente em relação a isso, pois, se elas são os palhaços, então o gay continua sendo o ‘estranho’, o ‘queer’, e assim se legitima a lógica da heteronormatividade”, compreende Soares. Essa visão é partilhada pela ativista transfeminista e pesquisadora Viviane Vergueiro. “Nesse processo, tudo é sujeito a cooptações. Não posso, por exemplo, pensar em avanços, e por isso não endosso o discurso governamental e nem me aproximo dessa retórica, quando pessoas trans são assassinadas com frequência no Brasil. Ao mesmo tempo, vejo o impacto da arte, mas é preciso cuidado para que não se crie um queer de butique. Como pode
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SEBASTIEN DOLIDON/DIVULGAÇÃO
um artista falar de subversão e, na sua prática política, referendar o discurso heteronormativo e binário?”, questiona a mestranda da UFBA. Para ela, vêm do funk de Valeska Popozuda e do baiano MC Xuxu atitudes que intrigam, embaralham e questionam. Para Thiago Soares, além de Lady Gaga (que difunde o discurso do “ame o feio”, se assume como mother monster dos seus fãs monstros e transparece, na pele, no corpo e nos gestos, toda inclusão que prega), é o universo brega que surpreende. “Faço minha leitura do brega como artefato queer e subversivo. No momento em que os programas de TV expõem os corpos das cantoras gordas, feias, de roupas estridentes, aquilo causa repulsa por romper com os padrões de representação hegemônica. Mas o que acontece quando MC Sheldon vai tocar para a classe média? Quando a Musa do Calypso e a banda Kitara começam a ser ouvidos pela adolescente que mora em Boa Viagem? O riso e o estranhamento, de repente, dão lugar à incorporação. Aquilo em que a menina branca via feiura passa a ser corporificado. O que antes gerava ojeriza, gera beleza. É o turning point, o ponto de virada de que fala a teoria dos afetos”, opina Thiago Soares.
A busca pela naturalização das orientações sexuais é hoje elemento bastante utilizado também na música BEATRIZ É PAUL
Na Espanha, em 18 de janeiro deste ano, o diretor/a do Programa de Estudos Independentes do MACBA/Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona divulgou um texto intitulado Catalunya trans. Nele, citava o atentado à sede do semanário Charlie Hebdo, em Paris, como um “assalto, uma batalha perdida, uma contrarrevolução, mas também quem sabe como uma possibilidade de construir alianças novas que protejam e acolham quem amamos”. E aproveitava a oportunidade para falar de si. “De minha parte, comecei o ano pedindo a meus amigos próximos, e também aos que não me conhecem, que troquem o nome feminino que me foi designado no nascimento por outro nome. Uma desconstrução, uma revolução, outro duelo. Beatriz é Paul”, comunicava o autor/a de Manifiesto contrasexual, Testo yonqui e Pornotopía. “O homem
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encontra sua casa num ponto situado no Outro além da imagem de que somos feitos”, define Lacan, citado por Tania Rivera, em O avesso do imaginário. Nasceu, assim, Paul B. Preciado, antes conhecido como Beatriz Preciado. No Brasil, em fevereiro de 2015, Virginia de Medeiros vislumbra a experimentação com testosterona, como Preciado fez antes de cambiar de gênero. “Jardim das torturas me abriu esse campo. Quando condensei no meu corpo a experiência vivida, foi muito potente. Como desdobramento, e influenciada demais por Paul/Beatriz, quero experimentar novamente, falar através do corpo. Como em todos os meus processos, não tenho nada ainda, não sei aonde vou chegar. Quero trabalhar a afirmação do corpo como espaço de experimentação; a sexualidade é levada pelo desejo, então sigo a política do desejo e sinto a densidade desse universo. E quero ser guiada por um homem trans para construir um lugar a partir desse encontro e fazer o trabalho, rompendo barreiras rumo a diferentes modos de existência”, antevê a artista. Dela, de todos os artistas que forjam, na carne, a luta pela autonomia de si, pela liberdade de ser quem se quer e se pode, e de todos os cidadãos, a vida quer mesmo é coragem, como dizia Guimarães Rosa.
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COMPORTAMENTO A multiplicidade dos gêneros e sexualidades
Ainda que continue como referência, a união heterossexual convive com relacionamentos que questionam o status quo, como os casamentos poligâmicos e transgêneros TEXTO Chico Ludermir
Caio não se identifica como ser
binário, Maria Clara é uma mulher transbissexual. Artur milita pela possibilidade de ser gay afeminado e Juliana tensiona lugares comumente ocupados por homens. Situações como essas indicam que certas categorias não são suficientes para classificar nossas preferências sexuais e identidades de gênero. No fértil terreno dos comportamentos humanos, não existe assunto mais inquietante do que a sexualidade. A
expressão sexual e as identidades de gênero são plurais, conflituosas, diversas e, ao mesmo tempo, fontes de prazer e sofrimento. Como algo intrínseco à nossa existência – e a de todos os animais –, o tema está posto e sempre presente. É verdade, no entanto, que as questões referentes ao sexo são fruto de um contexto histórico e social, assim como sua abordagem e teorias respectivas. A concepção moderna de sexualidade, segundo Michel Foucault, nos três volumes de A história da
sexualidade, designa uma série de fenômenos que englobam tanto os mecanismos biológicos da reprodução como as variantes individuais e sociais do comportamento. Da mesma forma, relaciona-se com a instauração de regras e normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas, e também com as mudanças no modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres e sonhos. Ao longo da história, a atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, por isso mesmo, submetida a normas de controle das suas práticas e de seus comportamentos. Como esses dispositivos são construídos com base nos valores e ideologias predominantes na sociedade, eles assumem formas diferentes, à medida que mudanças ocorrem. “Foucault nos mostra como o mecanismo da incitação ao discurso como a prática confessionária, por exemplo, é reformulada por várias instituições, como a ciência, a psiquiatria, a medicina, para controlar
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FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL
heterossexual e fora dele. O casamento entre pessoas de sexos opostos continua sendo referência importante, mas convive com outras formas de relacionamento conjugal – as uniões consensuais, os casamentos sem filhos e as uniões homossexuais, poligâmicas e transgêneras. Nesse processo de transformação da intimidade, dos valores e das mentalidades, a tendência da sociedade é tornar-se cada vez mais flexível para acolher essas novas configurações das relações amorosas. “A luta e a visibilidade da população LGBT é imprescindível para repensarmos as formas duais de pensamento que estão em vias de extinção. Nada é definitivo, tudo está em constante transformação, e a sexualidade humana não foge disso. Quem sabe, em um futuro breve, poderemos ter uma sociedade mais plural e igualitária em suas diferenças”, complementa a socióloga.
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e regular as atividades sexuais dos indivíduos”, explica a socióloga Fernanda Ribeiro (UVA–CE), que tem a sexualidade e o gênero como objetos de pesquisa. Ela diz que essa incitação ao discurso do sexo cria mecanismos cada vez mais sutis do poder, em que sexo, corpo e prazer se tornam constitutivos da subjetividade dos indivíduos. “O poder não está nas mãos de um ou mais indivíduos e de uma ou mais instituições; o poder está difuso pela sociedade e é nela em que as relações pelo poder têm lugar. Nas palavras de Foucault, onde há poder, há resistência”, completa Ribeiro. A história da sexualidade, vista como uma construção social, aponta mudanças importantes tanto no comportamento sexual como no significado que lhe atribuímos. Por isso não se pode explicar suas formas e variações sem examinar o contexto em que se formaram. A construção de relações amorosas e sexuais mais democráticas e igualitárias é uma conquista que tem permitido o surgimento de outras formas de relacionamento amoroso, no contexto
Caminhando lado a lado com as discussões de sexualidade, a temática do gênero levanta outra gama de reflexões – em especial, evidencia as possibilidades de desnaturalização das masculinidades e feminilidades hegemônicas. Segundo Denise Silva Braga, autora da tese em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Novos/outros corpos, gêneros e sexualidades: experiências de lésbicas, gays e transgêneros no currículo escolar, trabalhar com a categoria gênero implica rever sua gênese no movimento feminista, principalmente no final da década de 1960, quando elas incorporaram às discussões políticas e sociais as primeiras construções teóricas nas quais seria forjado o conceito de gênero. “Partindo da denúncia da segregação social e política a que as mulheres estavam submetidas, estudiosas, docentes e pesquisadoras feministas enunciaram em seus trabalhos no campo acadêmico a ausência das mulheres como sujeitos ativos da história”, contextualiza. A proposição desse conceito, a partir das ativistas das décadas de 1960-1970, realçava que o gênero não poderia ser restrito a uma ligação direta com o sexo biológico, mas com aquilo que socialmente se construiu e representou sobre os sexos. Nesse
sentido, centrava-se em pensar os sujeitos – masculinos e femininos – como produtores dos processos históricos. A rigidez dos “papéis” de homem e de mulher, ainda presente na sociedade, fixou essa oposição binária entre um e outro. Portanto, desconstruir o gênero impõe rever os conceitos de masculinidade e de feminilidade. “A estratégia adotada por Foucault e Judith Butler problematiza as construções identitárias binárias, colocando em relevância o poder e as normas sociais na constituição da subjetividade dos indivíduos na sociedade atual”, explica Fernanda Ribeiro. Quando tinha 6 anos, Caio de Oliveira (nome fictício) costumava usar, escondido no banheiro, as roupas e maquiagens da mãe. Certa vez, pintou as unhas de esmalte vermelho e, sem saber como tirar, foi flagrado por ela. Ao encontrar o filho chorando, a mãe perguntou se ele gostava de meninos ou meninas. “Eu lembro que percebi na hora que não era sobre isso. Ela estava confundindo minhas questões de gênero com minhas questões de sexualidade”, relata. A confusão da mãe de Caio é bastante comum. Mesclar gênero e sexualidade talvez seja dos enganos mais recorrentes. Por isso, cabe uma explicação. A sexualidade se refere à atração sexual. Se gostamos de alguém de um gênero diferente, somos heterossexuais; se gostamos de alguém de gênero semelhante, somos homossexuais. Se gostamos dos dois, somos bissexuais. Já em relação à identidade de gênero, o que importa é com qual gênero nos identificamos: com o feminino, mulheres; com o masculino, homens. Se a autoidentificação de gênero entra em confronto com o que o sexo representa socialmente, a pessoa é trans, podendo se identificar com o gênero oposto ou com nenhum (neste caso, trans não binária). Se a pessoa se identifica com o gênero designado quando nasceu, é cisgênera. Caio tem 23 anos e já se relacionou com pessoas de vários gêneros (ele acredita que existem mais do que os instituídos). Além de bissexual, definese como uma pessoa trans não binária, o que significa dizer que não se vê encaixado em nenhum dos gêneros preconcebidos. “É frequente escutar que nós somos uma comunidade indecisa,
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CON CAPA TI NEN TE FOTOS: CHICO LUDERMIR
que temos vergonha de sermos gays, que somos uma população promíscua, mas não é isso. Acredito que a sexualidade é mais complexa que o momento presente que estamos vivendo”, afirma. Para ele, viver sem rótulos é uma forma de viver com “fluidez” e “intensidade”. Maria Clara é mulher trans e se relaciona com mulheres e homens. Aos 18 anos, combina diversas questões em sua existência. Por vivenciar o amor sem padrões estabelecidos, já protagonizou, por exemplo, relações com homens trans – o que se configura como uma relação heterossexual – e poderia, portanto, engravidar o parceiro. “Não interessa com quem eu me relaciono, sou uma mulher e quero ser tratada e respeitada como tal”, exige ela, que sempre se viu como menina. A mudança, que já estava na sua cabeça, se deu no seu corpo aos 16, quando mudou seu nome no Facebook e começou a tomar hormônios femininos.
AFEMINADOS E MASCULINAS
Quando, em 2014, o produtor cultural cearense Thomas Saunders, 25, voltou a paquerar depois de um ano e meio de relacionamento, reconheceu uma nova cena gay – a dos que gritam aos quatro ventos que não são e nem curtem afeminados. Em conversa com amigos, Thomas percebeu que o preconceito entre os próprios homossexuais contra os afeminados, como ele, estava mais forte do que nunca. “Nos aplicativos de encontro, é sempre aquele texto de perfil: ‘não fico com afeminado’.” Incomodado com a situação, o produtor cultural postou no Facebook: “Sou afeminado, sim, curto afeminado, sim. Mas, além de tudo, sou humano”. Ao fazer o protesto na rede social, Thomas descobriu que não estava sozinho. Outros gays partilhavam o mesmo sentimento. Além de receber muitos comentários, o post foi compartilhado 367 vezes, o que deu início a uma página na mesma rede social. “Sou/Curto Afeminados”, iniciada em abril daquele ano, hoje conta mais de 7 mil seguidores. Artur Maia, recifense de 19 anos, não é um dos curtidores da página, mas também se sente incomodado com esse preconceito que os afeminados sofrem. Aluno da Faculdade de Direito do Recife e militante do Coletivo LGBT Toda Forma
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A atividade sexual sempre foi objeto de preocupação moral e, por isso, submetida a normas de controle das suas práticas
e do Movimento Zoada, acredita que a discriminação tenha uma herança muito forte no patriarcado e no poder do homem na nossa sociedade. “O conceito de masculino está atrelado à virilidade, à negação e à inferiorização do feminino. Por isso, ‘dar pinta’ seria um ato político e contra-hegemônico, no momento em que nega o masculino padrão. Isso tem um potencial combativo, revolucionário e de desconstrução da hierarquia de gêneros”, defende. Ele acrescenta que a opressão de gênero incide também no campo das práticas sexuais. No caso do homem, especificamente, isso resulta no que chama de “castração anal”, “uma lógica que proíbe e abomina o prazer anal, por estar relacionado à submissão, sendo esta uma característica do feminino”. No blog Os entendidos, referência internética na discussão de assuntos de sexualidade, o autor Fabrício Longo adiciona alguns elementos que
ajudam a compreender a inaceitação do afeminado, mesmo entre homossexuais. “Que ‘gosto’ é esse, que se molda em uma cultura de opressão?”, questiona retoricamente, preparando suas hipóteses. Segundo ele, a busca por “machões, bem-dotados, dominadores” faz jus à criação dos homens. “Somos criados para continuar comandando o mundo. Da mamãe que faz questão de estender a toalha largada na cama, passando pela educação sexual que manda ‘pegar geral’. Pelo salário superior no mercado de trabalho, até o ‘direito’ de reagir violentamente, quando suas vontades ou crenças são desafiadas. Tudo gira em torno do macho.” A construção da masculinidade segue padrões rígidos que, segundo ele, vão da primeira roupinha azul até a obsessão pelo tamanho do pênis. O problema é que essa construção é frágil, ameaçada por qualquer demonstração de “fraqueza”. E nesse idioma, o afeto – e qualquer coisa que seja lida como “feminina” – vira sinal de fragilidade ou emasculação. “É por isso que o papel da ‘bicha’ é tão ‘baixo’ e tão ofensivo. É como se a bicha desafiasse a estrutura de poder somente por existir”, argumenta. Também desafiando as normas, Juliana Carvalho se deparou com
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Página anterior 1 MOBILIZAÇÃO
A luta LGBT dá cada vez mais visibilidade às suas demandas, com alguns avanços concretizados
Nestas páginas 2 ANDROGINIA
A socióloga Cristiana Cavalcanti transita por identidade híbrida
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a resistência de homens ao seu comportamento. Desde pequena, a estudante adorava ir a estádios de futebol e fazia parte de torcidas organizadas. Relacionava-se com meninos e era vista apenas como acompanhante deles, jamais como torcedora de fato. A partir do momento em que passou a ir aos jogos sozinha, não era tratada com respeito. “Ficavam me olhando como se eu só estivesse ali para paquerar.” Mas Juliana insistiu em fazer parte do grupo. Quis tocar bombo na banda da Torcida Brava da Ilha do Sport Clube do Recife e teve que “falar grosso” para poder ser escutada. “Me mostrei extremamente masculina e, só assim, consegui permanecer. Ainda hoje, em certos lugares, só homens são aceitos.” Passando na rua, a socióloga Cristiana Cavalcanti atrai olhares. Por transitar numa identidade híbrida, é muitas vezes confundida com homens, mesmo não se percebendo encaixada nesse papel. “Não quero ser menino, nem estou em processo de transformação. Apenas transito nessa androginia que talvez ainda não tenha um nome ou categoria definida”, diz. Ela tampouco se incomoda com a confusão que causa em alguns. Militante do movimento feminista, acredita no corpo como agente político no processo de aceitação de cada um como é. “As
A rigidez dos papéis de homem e de mulher fixou a oposição binária entre o masculino e o feminino posições de gênero e de sexualidade são múltiplas. É impossível lidar com elas, apoiadas em sistemas binários. O lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira”, diz. Apesar de não se referir diretamente às mulheres, o blogueiro Fabrício Londo expressa uma preocupação comum a todos os gêneros: para ser “aceito” como homossexual, ainda é necessário encaixar-se em um padrão. “Reprimir trejeitos, não fazer alarde e jamais ofender a sociedade com demonstrações públicas de afeto”, ironiza. Segundo ele, a homofobia é a culpada por privar os sujeitos de sua identidade. “Ninguém foi educado para aceitar o diferente. Fomos educados para temer e reprimir – às vezes com violência – o que ameaça a nossa zona de conforto. É por isso que nem os próprios gays aceitam sua diversidade. Acontece que nós somos muitos, todos diferentes.”
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ARTUR MAIA
Estudante se incomoda com o preconceito que os afeminados sofrem entre os próprios gays
A não aceitação das diferenças coloca o Brasil no ranking dos países que mais matam lésbicas, gays, travestis e transexuais no mundo. O relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), de 2013/2014, revela que um LGBT é assassinado a cada 28 horas, no país. Pernambuco lidera, ao lado de São Paulo, a lista dos estados onde mais LGBTs foram assassinados. É nesse contexto que se insere a discussão de políticas públicas voltadas para tal segmento da população. Ao lado das demandas afirmativas, como o casamento igualitário, a aceitação do nome social de travestis e transgêneros e uma série de inovações propostas pela prefeitura de São Paulo – que incluem, por exemplo, bolsas para travestis voltarem a estudar e inserção de gays expostos a situação de violência e travestis moradoras de albergues nas prioridades programa Minha Casa Minha Vida – está a questão da criminalização da homofobia. A lei ainda não foi sancionada, mas já tem apoio declarado da presidenta Dilma Roussef. Se, de um lado, existe uma corrente conservadora empenhada em negar direitos aos homossexuais, do lado da militância LGBT, dois grupos se diferenciam. Um defende que a punição pode atenuar o problema, o outro acredita que muito se gasta e pouco se resolve com essa estratégia. Esses são alguns dos embates que ocorrem neste momento histórico, em que as várias representatividades de gênero e sexualidade ocidentais põem em xeque valores há muito arraigados.
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CON CAPA TI NEN TE
Artigo
ARTE SOBRE REPRODUÇÃO DE JORNAIS
RHEMO GUEDES CRIMINALIZAR PARA SALVAR VIDAS Diante do bárbaro legado cultural,
machista e discriminatório, que oprime e incita o ódio em razão da orientação sexual e identidade de gênero, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) são vítimas de intenso preconceito e violência. Isso faz da homo-lesbotransfobia uma das realidades que resistem e desafiam a Justiça e os Direitos Humanos na atualidade. As mortes do jovem Kaique Augusto Batista dos Santos1 e Alexandre Ivo2 revelam a dimensão da discriminação experimentada por homossexuais na tradição brasileira, através de sucessivos e cruéis crimes. Essas histórias têm em comum com as situações de discriminação vivenciadas no dia a dia dessa população o discurso fundamentalista e conservador. O preconceito contribui para a vulnerabilidade social LGBT. São muitas as mortes com um padrão de ódio motivado por crenças culturais ou preconceitos, como um caso em que a vítima foi assassinada com 24 tiros, sendo a maioria na região das nádegas e um disparo identificado no ânus. Vinte e quatro é um número que representa a homossexualidade para o senso comum – referente ao “veado”, no jogo do bicho. Assim, o princípio da igualdade, por mais amplo que seja, não garante, por si só, a cidadania material da população LGBT. A lei é esvaziada pela invisibilidade do direito à livre orientação sexual no imaginário da sociedade. A ausência de uma postura afirmativa da lei brasileira perante esse direito tem contribuído para que a homo-lesbo-transfobia não seja reconhecidamente proibida pela sociedade e, muitas vezes, sequer considerada uma forma de violência. Sabe-se que a reprodução das tradições judaico-cristãs pelo mundo ocidental também fundamentou
codificações repletas de valores morais religiosos e heteronormativos. A Constituição Brasileira seguiu essa tendência. Portanto, não é suficiente afirmar que “todos são iguais perante a lei” para o combate efetivo do preconceito e da discriminação. O (re)conhecimento detalhado dos assassinatos contra LGBTs é um instrumento para o estabelecimento de indicativos da aprovação de um dispositivo legal que criminalize esses atos violentos no país. A reflexão aqui proposta tem como base os 122 casos de assassinatos contra LGBTs que foram registrados pelo Movimento Gay Leões do Norte (20022010). A pesquisa considerou matérias dos principais jornais de Pernambuco e outros meios de comunicação, destacando-se, entre as múltiplas faces da homo-lesbo-transfobia, aquela em que se chega a matar. No âmbito nacional, pesquisa equivalente é realizada pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Segundo o Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais no Brasil (LGBT), relativo a 2013, escrito pela entidade, “o Brasil é campeão internacional de homicídios de gays, travestis e lésbicas. Em 2013, foram registrados 312 assassinatos, incluindo uma transexual brasileira morta no Reino
Unido e um gay morto na Espanha. Um assassinato a cada 28 horas”. Está aí o grande desafio para o enfrentamento da vulnerabilidade social LGBT no Brasil: quanto mais o país estiver imunizado contra a interferência fundamentalista e conservadora, mais preparados estaremos para responder ao preconceito e à discriminação. 1. Adolescente de 16 anos que foi encontrado morto na madrugada do dia 11 de janeiro de 2014 (sábado), na Avenida 9 de Julho, região central de São Paulo-SP. Segundo pessoas da família de Kaique, que fizeram o reconhecimento do corpo, não havia dentes na boca do garoto, que tinha sinais de tortura, como uma barra de ferro dentro da perna. Dados disponíveis em <http://jornaldehoje.com.br/adolescente-gaye-achado-morto-e-desfigurado-apos-se-perderem-festa/>. Acessado em 21 de janeiro de 2014. 2. Alexandre Ivo Rajão, de 14 anos, morreu no dia 21/06/2010, depois de participar de uma festa. Ele voltava para casa sozinho, quando desapareceu. O corpo foi encontrado horas depois num terreno baldio, com marcas de espancamento e tortura. No laudo pericial, consta que ele foi morto por asfixia mecânica, enforcado com sua própria camisa, com graves lesões no crânio, provavelmente causadas por agressões com pedras, pedaços de madeira e ferro. Dados disponíveis em <http://www.gay1.com.br/2011/06/ um-ano-sem-alexandre-ivo-jovem-de-14.html#. UuCIj9JTtkg>. Acessado em 21 de janeiro de 2014.
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Artigo
DIEGO JOSÉ SOUSA LEMOS CRIMINALIZAR NÃO É A SOLUÇÃO! A criminologia crítica denuncia a deslegitimação estrutural do sistema penal. As funções declaradas que o sistema promete garantir, como a igual proteção dos cidadãos e a punição, prevenção e ressocialização de criminosos, não são cumpridas. Em seu lugar, são desempenhadas, em silêncio, funções reais de construção seletiva da criminalidade (alguns, como negros e pobres, são mais “criminalizáveis” do que os brancos e ricos) e proteção do patrimônio e do status quo. A inoperância do sistema é geral. Ele atua sobre um número reduzido de casos, deixando claro que a regra não é a punição, mas a impunidade. A partir dessa fundamentação, a contrariedade à criminalização da LGBTfobia se impõe. O grave problema da rejeição individual e da hostilidade geral contra pessoas LGBTs não será solucionado pela
criminalização do fenômeno, que é excessiva ou simbólica. Digo isso porque os dois projetos criminalizadores da LGBTfobia, o PL 122/2006 e o mais recente PL 7.582/2014, protocolado pela Deputada Maria do Rosário (PT/ RS), trazem inovações penais que poderiam ser melhor tratadas por outros ramos do Direito, ou criminalizam coisas que já são sancionadas penalmente, apenas lhes atribuindo qualificadoras ou causas de aumento de pena. Há, nos projetos, neocriminalizações para situações de preconceito em contexto trabalhista, de lazer, da escola e do comércio em geral. Situações que poderiam ser abarcadas com mais eficiência e menor dano por outros ramos do Direito, como o Trabalhista, o Cível e o Consumerista, e não com uma nova lei penal. Já as situações que envolvem violência real (homicídios e lesões corporais), tradicionalmente apropriadas pelo movimento LGBT para lastrear suas demandas criminalizadoras, já são passíveis de punição. Daí vem o simbolismo que está ao lado do excesso penal retratado acima. Ora, se a existência do tipo penal que pune o homicídio
no art. 121 do seu respectivo código não impede alguém de cometer um homicídio LGBTfóbico, não será um simbólico aumento de pena que dissuadirá o agressor. Acreditar que o instrumento penal pode ter, nesses casos, um efeito simbólico virtuoso, é paradoxal, tendo em conta o caráter marcadamente machista, racista e LGBTfóbico desse mesmo instrumento. Precisamos deixar de pensar a criminalização da LGBTfobia e nos concentrar no que realmente interessa: a proteção das pessoas LGBT. A Lei do Racismo, que seria ampliada pela PL 122/06, nunca protegeu negros e negras da violência racial. Ela se preocupou, então, com o simbolismo da criminalização de condutas e se esqueceu de proteger as pessoas. É necessário que politizemos a LGBTfobia, em lugar de policializála. Para ser incluída na pauta da segurança, uma conduta não precisa ser classificada como criminal. Precisamos pensar no problema não reativa e incidentalmente, mas de forma preventiva e global. Por exemplo: se a escola é um tradicional ambiente de bullying LGBTfóbico, melhor do que criminalizar os agressores e/ou seus responsáveis seria garantir o estudo de gênero e sexualidade nas escolas, atuação preventiva e coordenada. O movimento LGBT e a luta contra a LGBTfobia devem deixar de lado os imediatismos que requerem a criminalização e reacender os ideais transformadores sobre os quais foram erigidos. A busca por reconhecimento de direitos via sistema penal é um equívoco e está fadada a fracassar, tendo em vista que esse sistema é, em si, também um fracasso. Com imaginação e muito debate, encontraremos os meios compatíveis com os fins. O primeiro passo é, como diz Maria Lúcia Karam,“estabelecer os compromissos e deles não se afastar”. O segundo é “não hesitar em desejar o que pode parecer impossível”.
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CON CAPA TI NEN TE
RELATOS Eles só queriam ser elas Segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB) de 2013-2014, o Brasil
é o país que mais mata travestis e transexuais do mundo. Considerando a violência nos assassinatos, a pesquisa não deixa dúvidas de que as mortes estão relacionadas à intolerância e transfobia. O preconceito revela uma aversão àqueles com os quais não nos identificamos. “Eles acham que somos coisas. Que não sentimos dor. Que se bater não sangra, não mata e nem faz falta”, relata Brenda Bazante, em entrevista para o livro A história incompleta de Brenda e de outras mulheres, que Chico Ludermir pretende lançar neste semestre, com a história de 10 mulheres. O fotógrafo e jornalista preparou para a Continente uma síntese do que ouviu no encontro com essas pessoas.
FOTOS: CHICO LUDERMIR
BRENDA Atracaram o navio da marinha para um serviço de sondagem na entrada do Porto de Aracaju. A embarcação enorme chamava a atenção na cidade e sua chegada tinha sido até noticiada no jornal local. Dia de domingo era quando o navio ficava aberto para visitação. Dentre diversos visitantes, um casal e uma filha, que rodaram por todo o navio e fixaram os olhos especialmente no marinheiro Bazante. Aproximaram-se do capitão do navio para tirar algumas dúvidas. – É que minha filha tem muita vontade de entrar na marinha. Ela tem 16 anos e está interessada em servir no navio com vocês. – Sua filha será muito bem-vinda em terra, mas acontece que em navios só servem os homens, respondeu o capitão Gomes. – Ah é? – perguntou a mãe, quase que indignada. – E como eu vi uma marinheira de fuzil ali atrás? – completou a filha. O capitão empalideceu. E tentou explicar, com uma gagueira, o que nem sabia nominar. Brenda, que não estava na hora, ouviu o relato do capitão com todo o orgulho que podia. Tinha sido confundida com uma mulher. O que, para ela, era sinal de que estava no caminho certo. Para o capitão, era a prova que faltava para determinar a saída imediata de Brenda do navio e, posteriormente, da Marinha Brasileira.
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FRANCINE “Se vingar, vai carregar meu nome pelo resto da vida”, disse o pai, assim que viu seu filho recém-nascido. Francisco vingou. Mas carregou o nome do pai apenas por 18 anos. A partir daí, só apareceu nos documentos e assinaturas e, mesmo assim, a contragosto. Não combinava mais com a imagem afeminada pelos hormônios que Francine injetava.“Não quero viado em casa!”, disse seu pai. “Filho viado eu não crio!” E não adiantaram os apelos. A partir desse dia, aos 13 anos, deixou de ser filho. Para visitar a família, só na ausência do pai. Nem na mesma calçada andaram os Franciscos, durante 20 anos.
LUCIANA Luciana estava presa por “vadiagem”. Prestes a ser liberada, sentiu uma mão que a forçava. Procurava o zíper de sua calça com brutalidade, virava-lhe de costas, e obrigava que sua mão tocasse o que não gostaria. Resistiu, gritou, mas não adiantou. Apelou para um recurso que já se tornara hábito entre as travestis em desespero. Buscou o primeiro objeto cortante que encontrou e, com a gilete que recebera para se barbear, cortou-se na altura dos pulsos. Se alguém tinha que machucá-la, que fosse ela mesma. Com o sangue pulsando para fora, livrou-se. Salva, mas não sã.
MARIA CLARA As primeiras lembranças da vida estão povoadas de nãos: era interditado brincar com as meninas, constrangedor usar o banheiro dos meninos, e até a cor de roupa azul o incomodava. Tinha que trabalhar, ter namorada, jogar bola. Quando os irmãos iam para um lado e as irmãs para o outro, Roberval sentia que seu lado era nenhum. Por tudo isso, escolhia ficar só. Brincava de ser mulher em quadrilhas e no teatro. Mas cansou de brincar e foi para João Pessoa, longe de tudo – do que era e não queria ser. Aos 25 anos, Roberval implodiu. Maria Clara escolheu seu próprio nome. Talvez pelo hábito, um paradoxo com sua pele.
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FOTOS: CHICO LUDERMIR
MARIANA Era tardinha, e Dinho brincava de pai e mãe com um colega de bairro. Como sempre, assumia a figura materna. Na fantasia, cuidava de suas irmãs como uma mãe e beijava o coleguinha como marido. Como no Alto da Brasileira nada se esconde, antes anoitecer, seu Edson já estava sabendo que “Dinho tava brincando de viado”. Dinho também já sabia o que estava por vir. Quando chegou em casa, seu pai o esperava com um cipó arrancado do pé de araçá. Sem dizer nada além de xingamentos, bateulhe até deixá-lo em brasa. Em seguida, levou o filho para bacia de água de sal. Os gritos se ouviram em todo o bairro. Dinho só tinha seis anos.
DEUSA Deusa tem quase 17 anos, reclama das espinhas e do tamanho do corpo, que acha desproporcional. No dia da entrevista, descreve o que andou fazendo: saiu do curso profissionalizante no começo da noite, comprou um litro de vinho Carreteiro, bebeu todo para se preparar; encontrou-se com um cliente, fez sexo em um motel, comeu, cochilou, acordou, fez sexo outra vez. Recebeu R$ 50. Voltou para casa. Comprou outro litro de vinho, dessa vez para se limpar. À noite, quando sai sem destino, anda com medo de reencontrar algum cliente que já roubou. Mas o medo não lhe paralisa. Morrer para ela é só mais uma experiência de transformação.
WANESSA De um ângulo, nada do que vive Wanessa está subordinado à sua escolha de virar mulher. Não conhecer o pai e não ter escolaridade não são singularidades de ninguém. Querer ser feliz e ter um amor são desejos unânimes. Mas existe, sim, outro ângulo que segrega. Ela se defronta com a dureza de gente que não reconhece o universal e que exclui, violenta, mata. Um terceiro ângulo mostra Wanessa única. Só ela tem aquele tom de vermelho no cabelo, só ela tem aquele sorriso estridente, só Wanessa fez tantas mudanças de casa e de corpo, que nos lembram o quanto é necessário mudarmos também.
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LUANA Não foi fácil para Altair amar Luana, depois de ter amado oito anos Andinho. Sentia como se formassem um novo casal. E eram. Não mais dois homens. Um homem e uma mulher. Apesar do apoio e do companheirismo, as mudanças físicas de Luana trouxeram novidades. Se já era uma pessoa extremamente sensível, os hormônios, somados a toda pressão interna de renascer aos 30, fizeram dela uma mulher numa constante tensão pré-menstrual. Chorava diariamente, fosse vendo a novela, em discussões bobas, por nada, por tudo. Só haviam se passado três meses desde a retomada da hormonização. Mas ela já sabia que, dentre as outras tantas intensas mudanças, uma das mais importantes era como ficaria o futuro do seu casamento. Altair nunca havia se relacionado com nenhuma mulher, nem trans, nem cis. Deixaram de gozar juntos porque Luana demorava mais. O centro do sexo não era mais o pênis dela, que até tinha mudado de forma e tamanho. Ao ser penetrada, sentia orgasmos mesmo sem ejaculação. “Ele dizia que me amava, mas me amava enquanto menino. Quando fazia sexo comigo, parecia que estava com nojo.”
CHRISTIANE FALCÃO “Você é o amor da minha vida, mas nunca vai poder me dar um filho”, dizia Maílson em tom agridoce. Mas, incrivelmente, a barriga cresceu. Dos peitos dela saía leite. Chris estava grávida! E ficou plena por saber que por dentro existia uma mulher completa. Para ter certeza, investigou, viu que não era parasita, vírus ou bactéria. Era, sim, gravidez. Psicológica. A mulher interna era tão forte, que proporcionou uma das maiores alegrias de sua vida, por poucas semanas. Das maiores tristezas por quase toda a vida. O parto não teve dor física, só emocional. “Nenhuma travesti é feliz”, confidencia, com sofrimento que se sente no ar. “Sempre viveremos em conflito. Sempre me faltará alguma coisa.”
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FOTOS: CHICO LUDERMIR
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RELIGIÃO Deus é amor
Igrejas inclusivas, como a Comunidade Cristã Nova Esperança, têm acolhido grupos LGBT, propondo diferente interpretação dos textos bíblicos
Era noite de domingo e Rayanne
fazia recepção na porta de uma casa no início da Avenida Caxangá, zona oeste do Recife. Calça jeans colada às pernas, blusa branca estilo bata e um colete azul por cima. Estava do lado de fora da porta de vidro de um imóvel que em nada se destacava dos vizinhos, numa das vias mais movimentadas da cidade. Obreira da Comunidade Cristã Nova Esperança, tinha como missão dar boas-vindas a todos aqueles que, como ela, não eram aceitos nas igrejas cristãs convencionais.
Foi por amor ao ex-marido, Rafael, que Rayanne entrou pela primeira vez na CCNE. Quando ele a chamou, achou o convite ridículo e riu, imaginando padres vestidos de batina rosa, coral com danças escandalosas. O estereótipo, no entanto, se desfez, logo que percebeu que lá era aceita. Simplesmente aceita. Desde então, a transexual se filiou à igreja porque, junto a outros 85 fiéis – em sua maioria gays e lésbicas –, sentiu-se acolhida. Rafael deixou de frequentar a igreja, assim como também deixou de ver Rayanne, quando teve
que optar entre viver um casamento sem esconderijos ou permanecer num falso heteronormatismo. Até então, mantinha em sigilo para a família que Rayanne tinha nascido Henrique. Enquanto a jovem recebia as pessoas na porta da igreja, na sacristia, o presbítero Hillario organizava os envelopes que seriam distribuídos aos fiéis para a doação. Mesmo sem precisar, repassava mentalmente as palavras que usaria para pedir às pessoas a contribuição para manter o templo. “Irmãos, é com a graça de Deus que conseguimos manter esta casa. Mas somos todos voluntários e precisamos pagar o aluguel e as contas da igreja. Portanto, contamos com a colaboração de todos aqueles que puderem. Amém.” Recebeu um coro de améns de volta e recolheu um a um os envelopes que ajudariam a manter viva a instituição. Hillario está na congregação há aproximadamente dois anos e já entrou como presbítero por ter experiência – ocupara o mesmo cargo em uma igreja não inclusiva, a poucos passos da CCNE. Durante quatro anos, dedicava quase todo o seu tempo livre à organização
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1-3 COMUNIDADE
Reunidos na CCNE, Berg (esq.), Rayanne (dir.) e Hillario (à frente, na foto abaixo) podem viver sua religiosidade sem os interditos impostos pela maioria das congregações
dos eventos do templo vizinho. A maré mudou, quando ele conheceu aquele que seria seu primeiro namorado. Ciente de que sua sexualidade e o cargo de presbítero eram incompatíveis, pediu para se desfiliar de suas funções e da instituição. Conversou com a pastora e, ao contrário do que imaginava, a saída se deu de forma tranquila. Hillario ainda tem vários amigos em sua antiga congregação e cruza com eles muitas vezes, quando vai à CCNE. A Comunidade Cristã e a vizinha Renascer convivem cordialmente e, mediante as diferenças, se respeitam. Num domingo, os cultos ocorrem simultaneamente e encontros fortuitos acontecem na entrada e na saída dos dois lugares. Em uma visão panorâmica, não se percebem diferenças físicas entre os fiéis. São homens, mulheres e crianças que vão juntos louvar o Senhor. A tolerância mútua foi acordada após um incidente: em um desses finais de culto, os dois grupos se encontraram e, assim que passou um casal da CCNE, duas seguidoras da Renascer debocharam dele, gesticulando caricaturalmente, em rebolado e trejeitos escandalosos. O resultado foi uma retaliação imediata e uma conversa entre os pastores das duas congregações. “Todos somos cristãos e devemos nos respeitar”, argumentou Wandeberg Torres – ou apenas Berg –, da igreja inclusiva. E recebeu do pastor da Renascer um pedido de desculpas e a garantia de que essa não era uma prática estimulada por ele. “Todos somos cristãos e devemos nos respeitar”, concordou. Esse não foi o pior dos episódios de intolerância que viveu a CCNE, em seis anos de funcionamento no Recife. Assim que chegou a Pernambuco, em 2008, a Comunidade Cristã recebeu diversas ameaças e tentativas de interdição. Uma delas veio em forma de um cartaz colado em sua porta: “Deus não ama vocês”. Quando a sede ainda era no Cordeiro, chegaram a ouvir ofensas de diversas pessoas. “Acham que vão para o céu?”, resmungou uma senhora de meia-idade,
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O conceito de igreja inclusiva surgiu nos Estado Unidos, na década de 1960, durante as revoluções feminista e sexual enquanto puxava o neto para longe. “Jesus não está aí”, ouviu-se outra vez, vindo de um rapaz que gritou de dentro de um carro. “O trabalho é gradual”, explica Berg, que, além de pastor, é também aluno de Teologia na Faculdade Metodista. “Começamos muito pequenos, na casa de um pastor em São Paulo, e hoje temos sedes nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste e células em Londres, Buenos Aires e Pisa, na Itália.” O conceito de igreja inclusiva surgiu nos Estados Unidos, na década de 1960, no contexto das revoluções feminista e sexual. Tido como criador desse tipo de congregação, o reverendo americano advindo da Igreja Apostólica Romana, Troy Perry, incluiu pessoas
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que até então não eram aceitas em sua congregação: mulheres divorciadas, adúlteras, negros e homossexuais. A Comunidade Metropolitana (ICM) nasceu em 1968, na cidade de Los Angeles, e serviu como propulsora para o nascimento de outras instituições de igual natureza no mundo ocidental. Perry e seus seguidores buscaram na Bíblia a justificativa para a aceitação irrestrita. “Deus é amor” (João 4.16) inicia qualquer explicação da inclusão dos homossexuais no cristianismo. Outras passagens compõem o vasto repertório dessa tese. “Porque Deus tanto amou o mundo, que deu o seu Filho Unigênito para que todo que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). Sendo assim, o fato de serem homossexuais é irrelevante, diante de uma premissa maior, que seria a própria crença nesse Deus. No mesmo caminho indutivo, recorrem à citação do livro dos Romanos 8.1 – “Nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” – e Atos 10.34, que diz: “Então Pedro, tomando a palavra, disse: na verdade reconheço que Deus não faz acepção
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CON CAPA TI NEN TE de pessoas; mas que lhe é aceitável aquele que, em qualquer nação, o teme e pratica o que é justo”. No caminho inverso, rebatem acusações das igrejas convencionais sobre Sodoma e Gomorra, além de versículos do Levítico. “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. Isso é abominável” (Levítico 18.22). “De fato, está escrito na Bíblia. Mas ler qualquer afirmação fora de contexto é pretexto”, argumenta o pastor Berg, completando que é preciso situar historicamente o texto sagrado. “Existem outras 629 regras no mesmo livro que incluem a proibição de comer mariscos e crustáceos, de raspar a barba, de tocar em carne de porco e de tocar (não apenas ter relação sexual) em qualquer mulher que esteja no período menstrual.”
RECONCILIAÇÃO
No Brasil, o conceito inclusivo só chegou em 1982, quando, em São Paulo, teve início a ICM. As congregações, segundo o sociólogo Carlos Lacerda, em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de Alagoas, já somam mais de 40 denominações diferentes. No Recife, a CCNE é a única em atuação. Também surgida na capital paulista, em 2005, a Comunidade Cristã Nova Esperança foi criada, da mesma forma que a ICM, por um religioso vindo de uma congregação tradicional. Divorciado de um casamento heterossexual e pai de dois filhos, Justino Luiz começou recebendo os fiéis em seu próprio apartamento, até que, com mais 40 frequentadores, o espaço se tornou pequeno. O nome, segundo o fundador, vem de um trecho do livro de Romanos 12.12: “Alegrai-vos na Esperança, sede paciente na tribulação e perseverai em oração”. Berg complementa: “Aqui temos alegria, temos comunhão, aqui não há hipocrisia, é o lugar que o próprio Deus separou para nos reconciliar com Ele mesmo”. Para o pastor Berg, a descoberta da igreja inclusiva foi uma reconciliação sua com Deus. Como a maioria dos outros pastores e fiéis da CCNE, ele também tinha vivido experiências nas congregações convencionais e entrado em conflito com seus desejos e escolhas. Aos 14 anos, começou a namorar
FOTOS: CHICO LUDERMIR
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A CCNE tomou para si a função de militância e incluiu momentos para reflexão sobre a temática LGBT
uma companheira da igreja batista. Casou-se e manteve o relacionamento até os 22 anos, fazendo todo tipo de concessão à sua sexualidade. Quando, aos oito meses de casado, expôs na igreja que tinha desejo por outros homens, foi recebido de braços abertos para a libertação e o exorcismo daquele demônio que, segundo seus companheiros de congregação, estaria no seu corpo. “Ficava no meio de uma roda e os pastores liam a Bíblia, enquanto faziam imposição de mãos sobre a minha cabeça. Em nome de Cristo pediam que aquele espírito saísse do meu corpo” – descreve Berg o seu processo de sofrimento intenso. Chegou a fazer jejuns, sete orações diárias por sete semanas. Durante anos, acreditou que estava possesso, frustrando seus sonhos de felicidade. Mas, apesar de os pastores prometerem, a suposta libertação não acontecia. Ano após ano, durante cinco anos e meio, o desejo pelo mesmo sexo não desaparecia ou diminuía. Até que se pôs um dilema: ou o nome de Cristo não tinha poder – tese em que jamais acreditou – ou
não havia demônio nenhum para ser libertado. Qualquer uma das respostas revelaria uma incompatibilidade entre Berg e sua antiga congregação. “Fizeram-me acreditar que aquilo que eu estava vivendo era algo demoníaco. Quando cheguei à fase adulta, pude perceber que não era nada de demônio, era a minha essência que eu precisava e queria viver e não esconder mais de ninguém.” Sentenciou o pastor da batista: “Não podemos manter uma pessoa homossexual. Não é de Deus”. Ele passou alguns anos longe dos templos. Circulou por bares e boates, achando que poderia vir daí sua aceitação. Não veio. Nunca conseguiu beijar alguém em uma balada, e voltava para casa sentindo falta do seu espaço religioso de origem. Conheceu a CCNE assim que ela estabeleceu sede no Recife, em maio de 2008. Emocionouse ao entrar em contato com a cartilha explicativa da igreja. Pensou que, enfim, encontrara seu Deus, o inclusivo. Desde 2009, é líder da congregação em Pernambuco. Trabalha como pastor em dois cultos semanais, sem receber salário. Assim como ele, todos os obreiros são voluntários.
O RITUAL
Rayanne, que recebeu os fiéis na porta da Igreja, e o presbítero Hillario só conseguiram se acomodar quando Berg já ocupava o púlpito. Sentaram-se lado a lado no culto daquele domingo. Na fileira de três cadeiras, a última era ocupada por uma jovem senhora
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CULTOS Como em outros templos pentecostais, os fiéis reúnem-se semanalmente para adorações
loura de óculos. “Quando eu tinha 12 anos”, começou Berg, “Jesus me curou de uma enfermidade no coração, decorrente da febre reumática. Parei de tomar os remédios e minha fé me salvou, não foi mãe?”, perguntou, olhando do altar para a mulher loura. Obteve um sim e um sorriso como confirmação. “Se Deus me curou dessa doença, por que ele não me curaria da homossexualidade, se doença fosse?”, questionou, retoricamente. Afora alguns poucos momentos de referência a temas especificamente do mundo LGBT, o resto do culto é seguido exatamente como ocorre em qualquer igreja pentecostal. No coral, pessoas de vozes afinadas cantando os hinos de louvor e uma solista de talento. Diversas passagens bíblicas do Antigo Testamento e um fervor que contagiava as mais de 60 pessoas. Na plateia, gritos de “Glória a Deus”, “Amém” e “Aleluia”, além de alguns dizeres intraduzíveis, no que se chama de “línguas” – palavras faladas em uma espécie de transe de contato direto com Deus, próprio das igrejas
pentecostais, que acreditam nos dons espirituais de cura e em profecias. Questionado sobre o ritual que reproduz literalmente a liturgia das mesmas igrejas que oprimem e renegam os homossexuais, Berg retruca com segurança. “Não é a liturgia que oprime, mas, sim, a forma como se interpreta a palavra de Deus. A gente só se sente dentro de um culto, se tiver liturgia. Se não houver uma regra de sequência, não.” O ritual inclui uma oração inicial e momentos de louvor, palavra e ofertório. Há cerca de um ano, a CCNE tomou para si a função de militância e incluiu momentos para reflexão através de textos e, especialmente, vídeos ligados à temática LGBT. Naquele domingo, os fiéis assistiram a um vídeo em que o médico Drauzio Varella explicava a homossexualidade, um depoimento de um gay para a novela Amor à vida (Rede Globo) e uma reportagem sobre a transexual Rafaela. “Trabalhamos uma cartilha porque as pessoas chegam aqui ainda muito oprimidas. Somos uma igreja cristã, sim. Mas não só isso. Somos uma igreja cristã homossexual.” Essa afirmação fica evidente durante o culto. O pastor não tem ressalvas para usar até mesmo um linguajar queer, que se aproxima do mundo real de muitos gays, lésbicas e trans. Mas isso não significa que haja permissividade, como já foi veiculado na imprensa – o que causou indignação na comunidade. “O que não pode?”, pergunta o pastor. “Não pode não amar a Deus, não respeitar as diferenças. Não pode não amar o próximo e nem ferir ou denegrir a imagem de outra pessoa.” CHICO LUDERMIR
TOLERÂNCIA AVANÇOS EM OUTRAS RELIGIÕES O Papa Francisco fez os católicos voltarem a falar do tema da intolerância sexual, tão evitado. Depois do papado conservador de Bento XVI, em seu primeiro ano no cargo, Francisco não fugiu do tema da sexualidade. Na viagem de volta de sua visita ao Rio de Janeiro, em julho de 2013, onde foi realizada a 28ª Jornada Mundial da Juventude, o papa concedeu a primeira entrevista coletiva a jornalistas de veículos de todo o mundo. “Se uma pessoa é homossexual e procura Deus e a boa vontade divina, quem sou eu para julgá-la? Os homossexuais não devem ser marginalizados por causa de o serem, mas devem ser integrados à sociedade”, afirmou. Em setembro do mesmo ano, Francisco voltou a surpreender, quando se declarou outra vez aberto aos homossexuais, assim como aos divorciados e às mulheres que realizaram aborto. Em entrevista à revista italiana La Civiltá Cattolica, declarou que “a religião tem o direito de exprimir sua opinião própria a serviço das pessoas, mas Deus, na criação, nos fez livres: a ingerência espiritual na vida das pessoas não é possível”. Segundo Frei Betto, ativista e assessor de movimentos sociais, “nunca antes na história da Igreja um papa ousou colocar a sexualidade no centro do debate eclesial”. Em seu comentário semanal na Rádio Brasil Atual, o sacerdote afirmou: “quem há muito transita na esfera eclesiástica sabe que é significativo o número de gays entre seminaristas, padres e bispos. Por que eles não gozam, no seio da Igreja, do mesmo direito dos heterossexuais de se assumirem como tal? Será que é justo que permaneçam ‘no armário’, vitimizados pela Igreja e supostamente por Deus, por uma culpa que não têm?”. Frei Betto sugere a necessidade de se reler o evangelho pela ótica homossexual, assim como foi feito, nos últimos anos, pelo prisma feminino. Ele ressalta que a unidade na diversidade é uma característica da igreja católica e diz que “basta lembrar que são quatro os evangelhos, e não um só, ou seja, quatro enfoques distintos sobre o mesmo Jesus. A igreja católica não pode de maneira alguma continuar cúmplice desse mundo homofóbico, dessas tendências violentas de discriminação daqueles que não seguem uma orientação heterossexual”. CANDOMBLÉ Diferentemente das religiões cristãs, os rituais de matriz africana têm uma tradição de aceitação das diferentes orientações sexuais e identidades de gênero. Como uma religião que não orienta sua prática no sentido do “pecado”, o candomblé tampouco mantém leis de discriminação de homossexuais e transgêneros. “Se comparado a outras crenças, o candomblé tem se mostrado mais aberto aos homossexuais, permitindolhes ocupar todos os postos previstos na hierarquia ritual”, explica Milton Silva dos Santos, no artigo Sexo, gênero e homossexualidade, desdobramento de sua dissertação de mestrado no Departamento de Antropologia da PUC–RJ. Não é possível provar, no entanto, que as devoções afrobrasileiras são as mais procuradas pelos homossexuais. Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, com participantes da Parada do Orgulho Gay de São Paulo, em 2005, revela que, do total de 303 entrevistados (apenas gays e lésbicas), 36% se disseram católicos; 19% espíritas; 18% sem religião; 4% evangélicos pentecostais. Juntos, candomblé, umbanda e “outras devoções afro-brasileiras” totalizaram 6% dos participantes. (C.L.)
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