PEDRO SOTERO/ DIVULGAÇÃO
CASA-GRANDE Sobre como sair da bolha social no Brasil
Longa do carioca Fellipe Barbosa aborda os conflitos sociais e pessoais que uma pessoa de classe alta vive, ao se dar conta das desigualdades em que está imersa TEXTO Luciana Veras
Há uma cena no meio de Casa-
grande, destaque da programação da Première Brasil (uma das principais mostras do Festival do Rio), que é uma súmula do que a trama dirigida por Fellipe Barbosa se propõe a discutir: num churrasco na mansão da família de Jean (Thales Cavalcanti), há o antagonismo entre sua namorada, a jovem negra Luiza (Bruna Amaya), e seus pais (interpretados por Marcello Novaes e Suzana Pires), quando irrompe um acirrado debate sobre cotas raciais nas universidades públicas. A tensão entre classes, o desconforto do racismo velado e o choque entre duas das muitas realidades de um país essencialmente
contraditório convergem naquele momento, um dos ápices dramáticos do longa-metragem. E não somente nele. Todo o enredo de Casa-grande se lastreia na assimetria entre o modo como o adolescente Jean vê seu mundo – que inclui uma gigantesca residência na Barra da Tijuca, na Zona Sul carioca, com quatro carros na garagem, duas empregadas e um motorista – e o mundo como ele é: seu pai está prestes a falir, embora não queira admitir; ele se interessa pela fogosa doméstica Rita (a pernambucana Clarissa Pinheiro), mesmo sem compreender direito a oposição de forças entre ela, a governanta e sua
mãe; e logo vai descobrir uma nova cidade, quando for obrigado a andar de ônibus e a “sair da bolha”, como pontua Fellipe Barbosa. A jornada de autodescoberta de Jean traz ecos da própria vida de Fellipe. Suas memórias foram o combustível para a confecção do roteiro, coassinado por Karen Sztajnberg. No trajeto de sete anos entre a ideia e as filmagens (ocorridas em 2013 e possibilitadas com R$ 900 mil, via Fundo Setorial de Cinema, e R$ 400 mil, via RioFilme), o diretor foi atrás do elenco no lugar de onde saiu: o secular Colégio de São Bento, voltado exclusivamente para meninos. “Durante quatro anos, frequentei aulas do 3º ano. Passava dias filmando turmas de até 60 alunos, para pegar o cotidiano do colégio. Até que comecei a filmar a turma do Thales. Eles eram músicos, havia um carisma natural, uma conexão com a ideia de performance. Todos já eram amigos, estudavam juntos há 11 anos. Essa intimidade foi ideal para o filme”, pontua Fellipe Barbosa. Em julho, no 6th Paulínia Film Festival, dois dos quatro prêmios que Casa-grande levou foram para o elenco: Marcello Novaes e Clarissa Pinheiro saíram de lá como os melhores coadjuvantes, enquanto
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Entrevista
FELLIPE BARBOSA “O DRAMA É O LUGAR DA EXCEÇÃO, DO EXAGERO” Ele despontou no cenário audiovisual com Beijo de sal (2006), curtametragem que já evidenciava seu talento em forjar diálogos e dirigir atores. Oito anos depois, e com o documentário Laura (2011) no meio do caminho, Fellipe Barbosa circula por festivais nacionais e estrangeiros com Casa-grande. Eis algumas de suas reflexões sobre essa ficção com vários aspectos autobiográficos, cuja estreia deve ocorrer no início de 2015, com distribuição pela Imovision.
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o filme recebeu ainda os troféus de melhor roteiro e o prêmio especial do júri. A surpresa do público ao ver Novaes, ator recorrente em folhetins televisivos, esbanjar segurança no papel do pai falido e orgulhoso (Fellipe compara sua performance à de Burt Reynolds em Boogie nights, de Paul Thomas Anderson), só não foi maior do que o agradável espanto com a aparição de Clarissa, descoberta pelo diretor na Escola Darcy Ribeiro. Detalhe crucial: formada em Jornalismo pela Unicap, ela havia atuado apenas “de brincadeira” em projetos de amigos. Cursava Cinema e seu professor de direção cinematográfica era justamente aquele que viria a ser seu condutor no primeiro longa-metragem. “Durante cinco anos, a personagem da Rita nem existia”, confessa Fellipe, que enxergou potencial em Clarissa e convidou-a para um teste. A personagem, defendida com frescor, naturalidade e bom humor pela pernambucana, é um dos propulsores da saída de Jean da redoma de sua casa-grande. “Resgatei muito as empregadas que passaram pela minha casa”, recorda Clarissa, “e de quem eu terminava ficando amiga. Juntei com um lado fogoso meu e o resto foi
1 CLARISSA PINHEIRO Pernambucana destaca-se como atriz coadjuvante
construção mesmo. Acho interessante que Fellipe quis brincar com estereótipos: a empregada é branca, a namorada de Jean é negra, numa inversão que remete à escravidão”, acrescenta a atriz. Outros profissionais pernambucanos na equipe foram o diretor de fotografia Pedro Sotero e a preparadora de elenco Amanda Gabriel. E o filme, apesar de ambientado no Rio de Janeiro, poderia ser sobre Pernambuco, São Paulo, Bahia ou Paraná, pois reflete o Brasil de hoje, de ascensão das classes C e D e do jogo de aparências de uma elite disposta a manter a disparidade preconizada pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, no clássico livro Casa-grande e senzala. Mesmo tão brasileiro, há nele uma universalidade que justifica a carreira internacional iniciada em janeiro, no Festival de Rotterdam. De lá para cá, passou pela França, Argentina, Dinamarca, Coreia de Sul, Polônia, Austrália, Taiwan, Canadá e Espanha, entre outros. Até dezembro, festivais na Inglaterra, Egito, Eslovênia, Portugal, Estados Unidos e República da Geórgia receberão Casa-grande.
CONTINENTE De que maneira sua vida se desvela em Casa-grande? FELLIPE BARBOSA Eu estudei no São Bento a minha vida inteira. Minha mãe era professora de francês de lá. Em 2003, quando estava começando meu mestrado em Nova York, descobri que meu pai tinha escondido de mim e da minha família essa situação de falência. Na época, foi muito duro, mas de uma forma também positiva, pois nos tornou mais próximos. O roteiro, então, foi justamente essa terapia, essa tentativa de corrigir a minha ausência: uma construção fabular, uma fantasia de como teria sido, se eu tivesse vivido isso tudo. CONTINENTE Há muito de você no protagonista Jean? FELLIPE BARBOSA Sim, mas o drama é o lugar da exceção, do exagero. Eu, por exemplo, peguei ônibus para ir e vir da escola muito antes do Jean. Há nele características minhas, do meu irmão, mas eu sei muito do que sou e do que não sou e do que, principalmente, não caberia no personagem. Mesmo assim, foi difícil decidir o que seria somente dele. Também não me sentia confortável em ser um dos dois mais ricos da minha turma do São Bento. O grande desafio de criá-lo era transformá-lo
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INDICAÇÕES MARIO MIRANDA FILHO/ DIVULGAÇÃO
FICÇÃO
O CONGRESSO FUTURISTA
Dirigido por Ari Folman Com Robin Wright e Paul Giamatti Imovision
O cineasta isralense Ari Folman funde animação e live action e embaralha conceitos de realidade e ficção nesta preciosidade que merece ser descoberta em DVD. Na trama, a atriz Robin Wright (interpretada por ela mesma!), enfrentando o ocaso da idade e o ostracismo em Hollywood, recebe a proposta de se deixar escanear e assim perpetuar sua imagem. Depois do impactante Valsa com Bashir (2008), Folman brilha mais uma vez.
CONTINENTE E como você analisa seu filme? FELLIPE BARBOSA Em Casa-grande, falo da minha casa, que é um lugar íntimo e pessoal, e, a partir daí, da cidade e do Brasil. Uma dúvida que sempre me acompanhou, e que eu compartilhava com cineastas amigos meus, CONTINENTE Como se deu o era a seguinte: por que processo de concepção do roteiro? não nos incluímos nos FELLIPE BARBOSA Comecei nossos filmes? No meu a escrever em 2006. Estava caso, quis falar de uma sempre reescrevendo o classe alta e, ao mesmo roteiro. Foram cinco, seis tempo, mostrar a jornada anos para conseguir o do Jean, sua tomada de dinheiro. Antes, o projeto consciência, sua percepção se chamava Cotas, que era das contradições internas um título horrível, admito, de casa e externas da cidade e também pretensioso. e do país. Nesse sentido, Mudei para Casa-grande, e grandes mestres franceses depois comecei a pensar em como Louis Malle, François um plano de abertura que Truffaut e Maurice Pialat e legitimasse o título. Veio num o cinema latino-americano sonho. Como lidei com a de Lucrecia Martel, Alfonso rejeição em diversos editais, Cuáron, Jorge Gaggero e participei com liberdade Sebástian Silva, em especial do laboratório do Festival de os filmes A menina santa, Sundance. Lá, recebi muitas E sua mãe também, Cama críticas, inclusive do próprio adentro e A criada, me deram Robert Redford, que foi meu força, principalmente, mentor. Penso que toda crítica por tratarem de guarda uma preocupação histórias pequenas, legítima. Assim, assimilei de amadurecimento algumas delas e reescrevi pessoal, e também de seus várias vezes o roteiro. respectivos países.
CURTA
VAZIO
Dirigido por Luciano Coelho Com Mazé Portugal e Marat Descartes Linha Fria Filmes
Um homem, uma mulher, um bar e uma noite qualquer: o cenário, que poderia ser reproduzido em qualquer metrópole do planeta, é ponto de partida para que o roteirista e diretor Luciano Coelho desenvolva Vazio, curta-metragem lançado em junho e atualmente circulando por festivais. O questionamento existencial é aprofundado pela entrega dos dois protagonistas, Mazé Portugal e Marat Descartes (de Quando eu era vivo e Trabalhar cansa).
numa tela que seria colorida por quem quer que viesse a interpretá-lo. Como roteirista, quis partir das minhas memórias para transformar um momento de crise em oportunidade para contar essa história, e também falar dessa casa-grande que, de uma certa forma, ainda existe.
AVENTURA
X-MEN: DIAS DE UM FUTURO ESQUECIDO Dirigido por Bryan Singer Com Hugh Jackman, Ian McKellen e Michael Fassbender Fox Home Entertainment
Onze anos após X-Men 2, Bryan Singer volta a dirigir um filme da franquia. Dessa vez, a trama sai do futuro: com os mutantes à beira da aniquilação, os poucos que restam - professor Xavier (Patrick Stewart) à frente - mandam a consciência de Wolverine (Hugh Jackman) para uma odisséia no tempo. Nos anos 1970, ele, no corpo do Logan da época, precisa rastrear os jovens Xavier e Magneto (Michael Fassbender) para que imaginem alguma solução.
DRAMA
PLANETA SOLITÁRIO Dirigido por Julia Loktev Com Gael García Bernal e Hani Furstenberg Lume Filmes
Da série “filmes que mal entram em circuito no Brasil”: jovem casal resolve sair de férias pela Geórgia, no extremo oriente da Europa, encarando a aridez da Cordilheira do Cáucaso como uma espécie de prova para estreitar (ou apartar) os elos entre si. Se, por um lado, os diálogos e mesmo o desenvolvimento dos personagens deixam um pouco a desejar, por outro, a diretora Julia Loktev extrai poesia da paisagem, ao atribuir à imagem o maior peso de sua construção narrativa.
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