ANTÔNIO MELCOP/ DIVULGAÇÃO
Claquete
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SANGUE AZUL Quando o circo aporta na ilha
1 PROTAGONISTA Daniel de Oliveira interpreta o homem-bala que volta a seu lugar de origem para enfrentar “fantasmas” do passado
Quinto longa-metragem de Lírio Ferreira toca questões familiares com diversidade de personagens TEXTO Luciana Veras
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(2007) e O homem que engarrafava nuvens (2010), trata-se do retorno à ficção do diretor que, ao lado de Paulo Caldas, redesenhou a cartografia do audiovisual pernambucano – e brasileiro – com Baile perfumado, de 1996. Na trama, Daniel de Oliveira é Zolah, um homem-bala que é chamariz e maior estrela do circo Netuno. Quando a trupe comandada por Kaleb (Paulo Cesar Pereio) volta ao arquipélago de Fernando de Noronha e lá se instala para uma temporada, o espectador descobre que Zolah, na verdade, chamava-se Pedro e, ainda criança, fora banido da ilha pela própria mãe, Rosa (Sandra Corveloni), que temia uma relação intensa e carnal entre o filho mais velho e a caçula. Naquele momento, o astro circense reencontra a irmã Raquel (Caroline Abras), um novo estado de coisas e o mar, que o seduz e amedronta. Sangue azul traz diversos elementos presentes na obra de Lírio: o
Assim como em outros de seus filmes, como em Árido movie, diretor utiliza os deslocamentos para estruturar narrativa
“A primeira imagem do filme é
o personagem de Daniel vomitando no barco com a ilha ao fundo”, narra Lírio Ferreira, “e aquela era justamente a minha necessidade: voltar a dizer algo, ter gente se bulindo na minha frente depois de tanto tempo”, completa o cineasta pernambucano. Ele fala de Sangue azul, seu quinto longa-metragem, cujo périplo pelas mostras cinematográficas teve início em julho, no 6th Paulínia Film Festival, e segue em outubro pelo Festival do Rio. Depois de Cartola – música para ouvir
deslocamento, tema e forma de Árido movie (2005), o apreço pela imagem – ao contrário da maioria dos filmes nacionais recentes, esta é uma obra rodada em 35mm – e o olhar livre, como se o cinema fosse uma arquitetura que ele aprendesse a dominar pelo instinto. Em Paulínia, de onde saiu com os prêmios de figurino e fotografia (respectivamente, para os pernambucanos Juliana Prysthon e Mauro Pinheiro Jr.), o cineasta brincava com a necessidade de rótulos, evidenciada por jornalistas e críticos, em entrevistas e debates. “Acho que nesse filme o meu cinema está mais solto, talvez até mesmo mais arriscado. Mas, sobre o que é o filme, de onde ele vem? Pode vir da minha impossibilidade de amar, mas não quero deixar essa costura muito fechada, não…”, respondeu à Continente. A liberdade com que o cineasta manipula certezas a respeito do filme
transparece no modo como as filmagens transcorreram. Foram dois meses em que equipe e elenco moraram em Fernando de Noronha. “A ilha é nosso personagem. A temperatura dela está no nosso filme, era essencial para tudo. Para nós, fazer cinema é ser cinema”, resume o produtor Renato Ciasca, sócio do cineasta paulistano Beto Brant na Drama Filmes, empresa que abre os créditos do longa. O roteiro, escrito por Lírio, pelo parceiro habitual Sérgio Barbosa e pelo diretor carioca Fellipe Barbosa, era um guia, mas não uma amarra. “Quando chegamos à ilha, percebemos a força da natureza e fomos seguindo o fluxo. Foi tudo muito intuitivo. Lírio nos deixava à vontade para irmos em busca dos personagens”, recorda Caroline Abras, cuja incursão cinematográfica mais conhecida é seu papel como um transexual em Se nada mais der certo (2008), de José Eduardo Belmonte. “À vontade” parece ser a locução mais adequada no que se refere ao comportamento do elenco, tanto durante a produção – a julgar pelos relatos – como em cena. Matheus Nachtergaele, Milhem Cortaz, Brenda Lígia Miguel, Armando Babaioff, Laura Ramos, Ruy Guerra e o veterano Pereio passeiam com leveza na pele de seus personagens, ora estrelas distantes orbitando ao redor de Zolah, ora ilhéus inebriados pela presença do novo. Contudo, mesmo com a naturalidade das atuações, o subtexto dramático não está ausente de Sangue azul. “Chorei muito com aquelas galinhas lá, para descobrir quem era Rosa”, comenta a atriz Sandra Corveloni, melhor atriz no Festival de Cannes de 2008, por Linha de passe, de Walter Salles. “Que vida ela levava? Por que ela mandou o filho embora? Estar lá, plantando, dando comida às galinhas, da mesma forma que aparece no filme, dançando maracatu: tudo isso foi fundamental para que eu pusesse os pés no chão e fosse descobrir aquela mulher”, acrescenta. Em Sangue azul, como nos filmes anteriores de Lírio, os personagens tendem a obedecer a uma lógica determinista: estão prisioneiros dos impulsos, são reféns do ambiente que os cerca e vagam “à margem de tudo”, nas palavras de Caroline Abras. Porém,
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FOTOS: MARIO MIRANDA FILHO/DIVULGAÇÃO
Depoimento
LÍRIO FERREIRA
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diante “daquela paisagem vulcânica e insular”, como adiciona Daniel de Oliveira, vão se metamorfoseando aos poucos; logo, assumem as rédeas de si. “O interessante de Zolah é que ele é um pop star, o cara que chega com o circo, que quer pegar todas as mulheres. As pessoas na ilha vão se fascinando por ele, mas ele é que está ali se redescobrindo, naquele lugar mágico”, filosofa o ator de notória versatilidade – foi Cazuza na cinebiografia de Sandra Werneck e Walter Carvalho (2004), foi Stuart em Zuzu Angel, de Sérgio Resende (2005) e foi Santinho em A festa da menina morta, dirigido em 2008 pelo seu companheiro de elenco Matheus Nachtergaele. Aliás, essa obra em particular, que versa sobre os poderes espirituais de um jovem em uma longínqua comunidade ribeirinha do Amazonas, é tomada como parâmetro pelo intérprete. “Os dois filmes têm um tema pesado, que é o incesto, e trabalham o sexo de maneira natural, como tem que ser. Para o ator, isso é fundamental”, argumenta Daniel de Oliveira, que chegou a considerar a possibilidade de ir do Recife até Fernando de Noronha de barco – “seria incrível chegar lá da mesma maneira que o Zolah”, vislumbra. Ele e Caroline Abras intensificaram a cumplicidade com cursos de
1 SANDRA CORVELONI Atriz interpreta a mãe do protagonista, que o havia expulso da ilha
mergulho e tardes contemplativas. “A gente conversou muito sobre essa coisa do incesto, sobre como passar isso sem distanciar os personagens do público e sem cair naquele tabu, naquele peso todo. Foi o tempo de ir maturando a relação entre os irmãos e entre nós mesmos”, reforça Caroline Abras. Distanciamento, de fato, não é a proposta de Lírio Ferreira. Do momento em que o enjôo de Zolah é enquadrado, ainda em preto e branco, à sequência em que o cântico a Iemanjá é retratado com o fervor da fé e a força das ondas, o filme convida o espectador a se permitir o embarque numa jornada de mitologia própria: circo, oceano, irmãos, amor, ilusão, vida, morte. A estreia comercial de Sangue azul está prevista apenas para fevereiro de 2015. Até lá, os festivais funcionam como a janela para investigar os mistérios do filme. “Sem pressa, porque, para mim, cinema, se for como um road movie, não é simplesmente pegar a BR e ir direto: é ir parando nos caminhozinhos de barro, em cada estrada pequena, para curtir”, arremata Lírio Ferreira.
“Meu cinema tem uma fixação com a geografia. Em Baile perfumado, a natureza era luxuriante, tinha a força da caatinga. Em Árido movie, a vegetação era seca; já Sangue azul traz a beleza vulcânica de Fernando de Noronha. O roteiro surge como um guia. Quando eu chego à locação, me organizo para fazer essa troca com a natureza, organizo o set de filmagem para estar preenchido desse sentimento. No caso específico de Sangue azul, a ideia de filmar dentro de uma ilha veio como uma aventura. Nasceu independente de gênero, porque o barato da aventura é ter uma certa surpresa. Eu queria uma ilha, que podia ser a de Marajó, a do Mel ou de Itamaracá, queria o circo, que, por si só, é uma ilha, e queria falar do cinema também. Quando visitamos Noronha, e eu comecei a escrever o roteiro já com aquela paisagem na cabeça, veio um certo receio de estar filmando um paraíso. Não queria um cartão-postal. Daí, veio a ideia de fazer o trecho inicial em preto e branco, como se fosse uma brincadeira com o que é documentário e o que é ficção, que traduzia o momento que eu estava vivendo: voltar a dirigir uma ficção depois de dois documentários musicais em que trabalhei basicamente com imagens de arquivo de mestres já falecidos. Na montagem, comecei o processo de descontrução, o jogo em que buscava o sentido de tudo que estava no roteiro. O primeiro corte de Sangue azul tinha 3h45. Tive a felicidade e o desapego de ir tirando as barrigas do filme, ir lembrando Sganzerla, Bressane, Welles, Eisenstein... Foi na montagem, por exemplo, que aconteceu a divisão do filme em capítulos, com títulos que remetem aos livros de Graciliano Ramos. Prefiro não explicar isso: acho que a montagem é uma sala de recepção dos espíritos, dos caboclos que, não sei como nem de onde, mas que baixam, baixam. Isso é cinema para mim. ”
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