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MARCELA CANTUÁRIA

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ANISH KAPOOR

ANISH KAPOOR

MARCELA,

cantuária

Tránsito, 2019. Foto: Vicente de Mello.Filhas do vulcão, Mamá Dolores y Mamá

AS PINTURAS PROVOCANTES DA CARIOCA MARCELA CANTUÁRIA VEM CHAMANDO ATENÇÃO POR SEUS TEMAS ESPINHOSOS E CORES VIBRANTES. COLOCANDO SUAS CONVICÇÕES POLÍTICAS EM PRIMEIRO PLANO, A INQUIETA ARTISTA MOSTRA PORQUE É CONSIDERADA UMA DAS GRANDES PROMESSAS DO MUNDO DA ARTE

POR LEANDRO FAZOLLA

Vestindo uma camisa com a imagem de uma favela estampada, Marielle Franco está sentada com um semblante sereno, mas forte, no rosto. A seus pés, uma pantera negra repousa. Na sua mão direita, uma espécie de lança apresenta na ponta a cabeça do governador (afastado) do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, o mesmo responsável por quebrar, durante sua campanha eleitoral de 2018, uma placa em homenagem à vereadora eleita pelo PSOL, assassinada no mesmo ano. Acima de Marielle, se lê a frase “un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro”. Esta obra, intitulada “Voltarei e Serei Milhões”, por si só já parece sintetizar um pouco da produção de Marcela Cantuária, artista do Rio de Janeiro que cada vez mais chama atenção e ganha espaço no circuito. Estão ali, nesta única tela, o combate, a História, as cores vibrantes e variadas referências a lutas político-sociais, elementos recorrentes na produção da artista.

Voltarei e serei milhões, 2018. Foto: Vicente de Mello.

Jovita Feitosa, 2018. Foto: Vicente de Mello

Formada em pintura na Escola de Belas Artes da UFRJ, Cantuária é uma artista que se relaciona intimamente com seu tempo, aliando sua produção com seu próprio engajamento político e transpondo para sua obra temas cada vez mais necessários de serem debatidos, como misoginia, machismo, disputa de narrativas e luta de classes. Suas pinturas figurativas e muitas vezes alegóricas, em cores fortes e potentes, criam impacto ao se aliarem predominantemente à História do Brasil e da América Latina como um todo. Na série "Mátria Livre”, a artista busca na História mulheres precursoras, combatentes, guerrilheiras, mas que muitas vezes são relegadas em detrimento de uma narrativa hegemônica patriarcal. Dentre as personalidades representadas, além da já citada Marielle, estão nomes como Jovita Feitosa, militar brasileira que atendeu à campanha de recrutamento para a Guerra do Paraguai; e Maria Bonita, primeira mulher a participar de um grupo de cangaceiros. Ao mesmo tempo em que faz certa reparação histórica ao colocar estas mulheres no centro da narrativa, a pintora também busca novos caminhos para a representação feminina na arte, após séculos de imagens relacionadas primordialmente ao corpo e à nudez da mulher. Atenta à sociedade como um todo,

À esquerda: Leila Lhaled. À direita: Deize Tigrona, 2020. Foto: Pedro Agilson.

e a lutas que se travam em diversas esferas, em sua produção há espaço para personalidades que vão de Leila Khaled, uma das maiores combatentes contra a ocupação israelense no território da Palestina; até a cantora Deize Tigrona, importante representante do funk carioca. A memória também é o assunto principal na série , na qual a artista reproduz imagens de protestos e fotos de pessoas desaparecidas na ditadura militar brasileira e similares. Ao tratar de eventos históricos, Marcela muitas vezes acumula fotos, corrompe o discurso corrente e sobrepõe fatos, parecendo evocar a máxima do “lembrar para não esquecer”, questão cada vez mais importante num país que flerta sistematicamente com o obscurantismo. Relacionando-se ao extremo com seu próprio tempo, a artista também busca na linguagem da internet referências para suas obras. Não apenas para sua pesquisa em si, que inclui uma série de colagens e imagens de fotografias históricas, junto a outras pinçadas de matérias jornalísticas, mas também em seu conceito, que inclui, por vezes, o acúmulo de

A tropa, 2017. Foto: Vicente de Mello.

informação, a sobreposição de diferentes temporalidades e fatos e, ainda, a falha! Em sua produção, a artista se apropria, como recurso simbólico, dos – “defeitos” que surgem em imagens digitais, quando há alguma alteração irregular nos códigos – que altera, corrompe a imagem, cria a impressão de erro, remetendo à ideia de que a própria história foi distorcida na maneira como é tratada pelos meios oficiais. Ao lançar mão desta proposta, a artista também acaba por fazer refletir sobre quem o sistema vigente considera a falha na sociedade, o indesejado que precisa ser corrigido.

Pág. 18 e 19: Dama de copas, 2018 e Nise da Silveira, 2020. Abaixo: Encher a ausência de presença, 2018 (série Futuro do Pretérito) À direita: Sônia Maria Lucia de Souza, 2019. Fotos: Vicente de Mello.

L’Orchestre, 1953. À direita: Le Lavandou, 1952. © Adagp, Paris Foto © Centre Pompidou, MNAM-CCI / Georges Meguerditchian / Dist. RMN-GP

Que se possa sonhar, 2020. Foto: Pedro Agilson.

Há um ditado africano que diz que enquanto a história da caça ao leão for contada pelos caçadores, os leões serão sempre perdedores. Parece que ainda há um caminho bem longo, mas já iniciado em diversas áreas, para que a História seja contada a partir de outra ótica, invertendo os polos e colocando no centro o oprimido, as chamadas (erroneamente, há de se ressaltar) “minorias”, e não mais o opressor camuflado de herói. Cantuária é uma dessas artistas ferozes que vão se tornando fundamentais ao se inserirem nesse processo, refletindo o próprio tempo,

tornando sua obra parte indissociável de sua luta, contando a história que a história não conta e dando fala (e rugidos) a leões, tigres, panteras...

Leandro Fazolla é ator, historiador e produtor cultural. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea. Bacharel em História da Arte. Ator e produtor da Cia. Cerne, com a qual foi contemplado no edital Rumos Itaú Cultural.

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