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ARTE E CINEMA
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FUNDAÇÃO HERMITAGE, SUIÇA, EXPLORA A MODERNIDADE ARTÍSTICA, FOCALIZANDO OS VÍNCULOS ENTRE AS ARTES PLÁSTICAS E UMA DAS GRANDES REVOLUÇÕES VISUAIS DO SÉCULO 20: O CINEMA. A EXPOSIÇÃO ILUSTRA AS TROCAS E INFLUÊNCIAS RECÍPROCAS ENTRE CINEASTAS E ARTISTAS VISUAIS, DA PRIMEIROS FILMES DO FINAL DO SÉCULO 19 ATÉ A NEW WAVE
POR NICHOLAS ANDUEZA
ARTE E CINEMA: CRUZAMENTOS E ENTREVISÕES
A Fondation de l’Hermitage, junto à Cinémathèque Française e ao grupo Réunion des Musées Métropolitains Rouen Normandie, inauguraram, em setembro, a exposição , aberta até janeiro de 2021. Com curadoria de Aurélie Couvreur (Hermitage) e Dominique Païni (Cinémathèque), a exibição explora pontos de encontro entre o cinema e as artes plásticas. O grande desafio aqui é contribuir para a expansão das sensibilidades do visitante não em uma, mas em duas direções: tanto nas artes como no cinema. O que os cruzamentos entre um e outro podem nos contar sobre ambos? É necessário começar com uma precisão: a mostra não trata da arte e do cinema “em geral”, mas muito especificamente da arte moderna e do cinema feitos na Europa, especialmente na França – poucos nomes norte-americanos são as exceções. Além disso, a exposição traz um recorte cronológico que dá a impressão de se encerrar cedo, com a Nouvelle Vague francesa e o contexto do Maio de 68, sem seguir pelo final do século 20 rumo às duas décadas do século 21. Mas se suspeita que essas questões só apareçam como “faltas” devido ao título da exposição, que não
Cena de Stalker, 1979, de Tarkovsky.
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Yves Klein, Anthropométrie sans titre, (ANT 174), 1960 Foto: Cyril de Plater. © Succession Yves Klein/2020, ProLitteris, Zurich
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Jean-Luc Godard, Pierrot le Fou, 1965 © 1962 Studiocanal / Société nouvelle de cinématographie / Dino de Laurentis Cinematographica, S.P.A. (Rome). All rights reserved
especifica o recorte. É evidente que não há nada de errado em se fazer um recorte, aliás, é impossível não o fazer; o ponto é que ele deve ficar claro, pois sabemos que o cinema e as artes transcendem a primeira metade do século 20 europeu. Desse modo, propôs-se nos inventar a nós mesmos, de modo lúdico, um subtítulo para explicitar a proposta da curadoria: “Arte e cinema – cruzamentos visuais no Hemisfério Norte, do pré-cinema ao Maio de 68”. Criou-se o subtítulo, não só para localizar a mostra, mas principalmente para identificar seu ponto forte: o foco nos cruzamentos. Ou seja, não se trata precisamente nem das artes nem do cinema, mas dos entrelugares, dos pontos de encontro que os convocam ambos, arte e cinema, a coabitarem um mesmo instante. São esses cruzamentos que nos animam a atravessar com interesse as seções temáticas da exposição: 1) Antes do Cinema; 2) Os irmãos Lumière e o Impressionismo; 3) Chaplin e o Cubismo; 4) Ritmos formais; 5) Expressionismo alemão; 6) Expressionismo russo; 7) Surrealismo; 8) Filmando a arte; 9) Vagas modernas; 10) Cinema político. Nesse sentido dos cruzamentos, a abordagem cronológica deixa de ser uma opção meramente convencional e tem sua função valorizada: ela demonstra quasi-empiricamente influências mútuas e contextuais entre as artes e o cinema. Mas essas interseções não vêm só no sentido de quais quadros influenciaram quais filmes e vice-versa, algo em si importante e bastante explorado ao longo da mostra. Elas vêm também em um sentido muito concreto e localizado: por um lado, com artistas que efetivamente trabalharam presencialmente em filmes, fizeram cartazes publicitários, como o grande Alexandre Rodchenko, ao promover obras de Sergei Eisenstein e Dziga Vertov; por outro lado, com filmes que citam explicitamente obras ou estilos específicos, como é o caso de Jean-Luc Godard, que citava Yves Klein diretamente ao fazer o protagonista de pintar o rosto de azul.
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Cena de Barry Lyndon, 1975 de Santley Kubrick À esquerda: John Constable, Malvern Hall, 1871.
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É aqui, nesses cruzamentos concretos e presenciais, que está o tesouro da exposição. E os curadores o sabem. Isso se nota particularmente na seção que me parece a mais precisa de todas, a qual poderíamos tomar como o coração da mostra: “Filmando a Arte”. Nela, assistimos a filmes feitos no pós-guerra por François Campaux, Henri-Georges Clouzot e Hans Namuth, que registram e documentam os processos artísticos de nomes como Matisse, Picasso e Pollock, acompanhando-os em seus ateliês enquanto produziam. Convenhamos: não é qualquer dia que podemos assistir às pinceladas de um Matisse sendo executadas em câmera lenta, diante de nossos olhos! Ali está o artista! Ali está o “aqui e agora” da obra, como diria Walter Benjamin. É o instante da arte, presente no mesmo espaço-tempo que a câmera que o registra. E sentimos essa presença não só pelo conteúdo, mas também pela forma: a desaceleração da imagem é um procedimento cinematográfico , impossível a qualquer outro meio artístico, e ele é usado por Campaux para iluminar o gesto pictórico , a pincelada (no caso, de Matisse). Aí está: na forma e no conteúdo, um cruzamento – um ponto único, preciso e singular que, no entanto, concentra e ilumina duas direções diversas, a das artes e a do cinema. Logo, é preciso alterar o subtítulo que havíamos criado. Fiquemos com este: “Arte e cinema – cruzamento de visões e presenças no Hemisfério Norte, do pré-cinema ao Maio de 68”. Porque, quando notamos a de um elemento fílmico no território das artes e vice-versa, assistimos à de dois mundos em um único ponto. E, distribuídas ao longo da exposição, as figuras que concentram em si esse elemento mágico, co-presencial, do cruzamento são os cartazistas e os diretores de arte dos filmes – são eles que caminham sobre a finura do ponto de contato entre as artes plásticas e o cinema.
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Vladmir Tatlin, Relevo de Canto, 1915 e Dziga Vertov, O homem com a câmera, 1929.
De fato, apesar de menos célebres que os artistas e os realizadores fílmicos, os cartazistas e os diretores de arte são as figuras mediúnicas desta mostra. “Mediúnicas” tanto por estarem “no meio”, “entre”, materializando os pontos de encontro entre arte e cinema, quanto por precisarem ser “videntes”, “visionárias”, para catalisarem um encontro que, ao juntar esses dois mundos, crie não um pastiche de ambos, mas uma terceira forma, inédita, específica, imprevista, que por sua vez influencie tanto as artes como o cinema. Eis a força de um cartaz, ou de um cenário de filme. É o caso da cenografia que Robert Herlth concebeu para os filmes de F. W. Murnau, um dos grandes diretores do expressionismo alemão. Também é o caso de Guido Augusts, artista que converteu sua experiência de Pop-Art em cartazes para filmes de Jean-Luc Godard. Desse modo, a curadoria tem o mérito de insistir nesses nomes e obras “menos célebres”, mas que formam a espinha dorsal do assunto “arte-cinema” – assim, nem “arte”, nem “cinema”: estamos diante do próprio “-”. Para encerrar, contudo, duas críticas importantes, uma mais específica, outra mais abrangente. Faço-as tranquilo, em diálogo franco, sem querer parecer mais esperto que ninguém. A primeira. Como pesquisador de cinema, soa-me estranho o posicionamento de nomes russos como Eisenstein, Vertov e Rodchenko no campo do “expressionismo”. O expressionismo é esteticamente calcado na crise de uma subjetividade angustiada diante dos excessos (especialmente dos excessos maquínicos) da modernidade; os referidos russos, por sua vez, produzem uma arte não subjetivista (plenamente socialista, aliás), aplicando, à sua maneira, o elogio à máquina dos futuristas, o interesse pelo fragmento dos cubistas, a psicologia behaviorista de Pavlov, a biomecânica de Meyerhold. Esses russos são muito mais próximos do construtivismo de Tatlin (ausente na mostra). Suas técnicas de montagem fílmica são justamente descritas como “construtivistas”, por serem baseadas não na continuidade subserviente à narrativa, mas no conflito formal que produziria a obra em si. No limite, , de Vertov, é como uma versão cinematográfica de um , de Tatlin.
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Acima, poster de A Chinesa, 1967 de Jean-Luc Godard. Abaixo: Cena de Nosferatu, 1922 de Friedrich Wilhelm Murnay (Expressionismo alemão).
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Abaixo: Cena de Tramas do entardecer, 1949 de Maya Deren. À direita: La Coquille et le clergyman, 1928 de Germaine Dulac
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A segunda crítica é mais abrangente: a quase ausência de nomes femininos ao longo da mostra. Sim, é importante insistir neste ponto, é uma questão de responsabilidade histórica e representativa. No campo do cinema (e respeitando o recorte espaço-temporal da exposição), poderíamos falar, por exemplo, de Germaine Dulac, que figurou entre impressionistas e surrealistas do cinema, de Maya Deren, que mistura surrealismo, filme e performance na década de 1940, e de Agnès Varda, que em 1955 antecipou muitos elementos dos filmes da , cinco anos antes da chegada de um Godard ou de um Truffaut às telas. No campo das artes, Natalia Goncharova, influenciada pelo futurismo e cofundadora do raionismo russo, e Sonia Delaunay, co-fundadora do orfismo (junto a Robert Delaunay, que figura entre os artistas expostos), poderiam constar na seção intitulada “Ritmos Formais”, por exemplo. Citam-se estes e os outros nomes para tornar a crítica construtiva e propositiva. Uma pesquisa aprofundada certamente revelaria outros tantos nomes, alguns ainda mais apropriados.
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Mesmo com as limitações expostas neste texto (é meu dever fazê-lo), a exposição organiza um corpo de obras valioso, trazendo às claras cruzamentos que em outras situações poderiam passar despercebidos. E esse foco nos cruzamentos, como vimos, é aqui a grande potência.
Nicholas Andueza é doutorando em Comunicação e Cultura/UFRJ, com especialização em cinema, corpo e imagem de arquivo. Mestre em Comunicação Social/PUC-Rio(2016). ART AND CINEMA • FONDATION L’HERMITAGE • SUIÇA • 4/9/2020 A 3/01/2021