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LENTE DE AUMENTO

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AGOUROS DA ÁGORA

AGOUROS DA ÁGORA

Ilustração de Naara Oliveira da Silva

LENTE DE AUMENTO

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“DIA DE PRETO”:

REFLEXÕES SOBRE FERIADOS, DATAS COMEMORATIVAS E RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL

por Felipe Comitre

Ao observar o calendário no Brasil, percebe-se uma elevada quantidade de feriados e datas comemorativas relacionadas a perspectivas históricas, afirmativas e mercadológicas. O mês de novembro, por exemplo, caracteriza-se pela existência de vários desses eventos: 02 de novembro: dia de Finados; 15 de novembro: Proclamação da República; 20 de novembro: dia da Consciência Negra; sexta-feira após o Dia da Ação de Graças: Black Friday. Indaga-se a possível relação entre os eventos mencionados com algumas características marcantes da sociedade brasileira contemporânea, especialmente o racismo estrutural. Como sabemos, os feriados e datas comemorativas são criados para gerar memórias coletivas sobre determinados acontecimentos relevantes para a história de um país, Estado ou município. Entretanto, poucas vezes buscamos uma compreensão mais contextualizada sobre os motivos para a sua existência, tornando-se comum associar o feriado com um dia de não trabalho e de descanso. Mas é preciso entender o que está em jogo nessa aparente trivialidade. A Proclamação da República no Brasil, ocorrida no dia 15 de novembro de 1889, precisa ser entendida como um fenômeno nada revolucionário. Apesar da mudança da forma de governo da monarquia para a República, o processo foi marcado pela manutenção de interesses de membros do próprio Estado e de elites que ocupavam cargos de destaque anteriormente. O baixo envolvimento da sociedade pode ser observado por meio da análise de Aristides Lobo, citado na obra Os Bestializados, de José Murilo de Carvalho: “O povo assistiu a tudo bestializado”. O que chama a atenção é que movimentos pró-República já existiam na década de 1870, mas com poucos participantes adeptos, sendo que foi o cenário da década seguinte que influenciou diretamente na implantação da República. A Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, estabeleceu a abolição da escravidão no Brasil e ocasionou descontentamentos entre determinados grupos sociais, especialmente os fazendeiros que eram contrários ao trabalho livre. Paradoxalmente, esse grupo passou a apoiar a República, mesmo reconhecendo os seus ideais abolicionistas. Ascendeu-se, então, os chamados republicanos de última hora. A breve contextualização da origem da República proporciona o estabelecimento de um elo com a questão da escravidão no Brasil. A República se originou tendo como cenário as disputas relacionadas com a permanência ou extinção da escravidão no país. Os quase quatro séculos de trabalho escravo no Brasil, último país da América a pôr fim a esse modelo, nortearam transformações da esfera política, contudo, não nos aspectos socioeconômicos, que ainda estão diretamente

associados ao período da escravidão, haja vista a situação dos negros nos dias de hoje. Silvio Almeida explica que a condição de vida dos negros no Brasil reforça o que ele denomina de Racismo Estrutural. Para o autor, o racismo não se caracteriza como um fenômeno conjuntural, mas sim como algo normalizado que afeta a estrutura social e as relações cotidianas. Os aspectos econômicos, políticos e subjetivos são pontos que ele define como estruturais, sendo que tais esferas geram constantes constrangimentos e dificuldades para os negros, especialmente às mulheres negras, desenvolverem suas vidas, já que convivem com baixos salários, em situação de vulnerabilidade social, sofrendo diversos tipos de violência e, além disso, não possuem representatividade em esferas políticas e econômicas de destaque. A existência do racismo estrutural amplia a necessidade de se promover a Consciência Negra para além de um dia. Apesar da escolha simbólica da data (em 20 de novembro de 1695 morreu o líder do Quilombo dos Palmares, Zumbi dos Palmares), a reflexão sobre a situação do negro no Brasil precisa estar presente em ações políticas, sociais, econômicas e culturais de forma cotidiana. Para isso, torna-se essencial transcender os clichês, como as famosas hashtags disseminadas em redes sociais que esvaziam a data.

Enquanto o racismo estrutural se perpetua no Brasil, outro feriado existente em novembro parece fazer mais sentido para a população negra: o Dia de Finados. Os constantes casos de violência contra negros – independentemente da idade – revelam sua situação em nosso país: são seres matáveis, definidos como homines sacri – termo utilizado por Agamben para analisar os indivíduos que perdem seu direito político (bios), restando-lhes apenas a sua vida biológica (zoé). A mera existência biológica do indivíduo lhe confere a imposição de uma vida nua, destituída de direitos básicos, o que caracteriza a emergência do estado de exceção, onde a sua morte não significa um crime ou sacrilégio. O caráter matável do negro pode ser compreendido a partir da análise de dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020: das vítimas de violência letal no Brasil, homicídios e latrocínios, 74,4% são negros; das vítimas de intervenções policiais, 79,1% são negros. Ainda na esfera da atuação policial e violência, dos policiais assassinados no país, 65,1% são negros. Este último caso pode ser entendido pela reflexão do coronel Íbis Pereira que, resumidamente, afirma que a busca por se reduzir o comércio de tráfico de drogas, que o mundo vazio dos dias de hoje alimenta, faz com que negros e pobres fardados sejam empurrados para as periferias pobres, ocupadas majoritariamente por negros. Como não pensar na perpetuação da lógica do capitão do mato em que escravos viravam capitães e passavam a perseguir os negros com a adoção de práticas extremamente violentas? Marcelo Yuka, na música Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, descreve que “é mole de ver / que em qualquer dura / o tempo passa mais lento pro negão / quem segurava com a força a chibata / agora usa a farda / engatilha a macaca / escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista”. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública salientam a banalização da morte de negros por uma sociedade que naturaliza o seu extermínio. Os Racionais MC’s sintetizam a situação com os versos da música Negro Drama: “Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”. Enquanto a lógica perversa do racismo estrutural legitima o caráter matável dos negros, outra data comemorativa de novembro se ascende para a análise: a Black Friday. Esse evento escancara a dependência cultural do Brasil, devido à importação de costumes dos EUA, e evidencia o poder do consumo como estratégia de alienação em uma sociedade desigual. As contradições sociais são camufladas pela distração efêmera ligada à lógica do consumo simbolizada pela Black Friday. A existência de uma data com grandes descontos em produtos de diversas empresas ocasiona uma verdadeira euforia entre os consumidores, permitindo-se fazer uma reflexão com o que Milton Santos explica ser a ascensão do “consumidor mais que perfeito”, em detrimento da cidadania. O indivíduo consumidor, e não cidadão, passa a acreditar no poder do consumo para o seu desenvolvimento social, alienando-se de bases do processo histórico de formação do povo brasileiro.

A Black Friday cria a fábula de que o indivíduo, independentemente de sua raça ou grupo social, faz parte das maravilhas advindas do capitalismo atual, esquecendo-se dos pontos estruturais que o constrangem cotidianamente. A perversidade dessa lógica, contudo, impõe-se quando nos deparamos com casos de violência contra pessoas

pertencentes a grupos não aceitos e/ou perseguidos em determinados locais, mesmo como consumidores, como o caso de João Alberto, assassinado por seguranças no supermercado Carrefour no ano passado. Na verdade, a grande Black Friday, o que está em promoção, de fato, é a população negra no Brasil, que se encontra reduzida a uma mercadoria descartável, mal remunerada em seus postos de trabalho, que convive com a vulnerabilidade social e diversos tipos de violações de direitos. Dessa forma, Proclamação da República, Consciência Negra, Finados, Black Friday e outras datas comemorativas convergem para um modelo que, politicamente, economicamente e subjetivamente, corrobora o que canta Elza Soares: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Entretanto, a concepção de racismo estrutural pode nortear a compreensão da racionalidade desigual e violenta destinada aos negros e, a partir daí, orientar práticas cotidianas que se voltem para a mudança dessa estrutura. A transformação pode ser inspirada pelos versos recentes da própria Elza Soares, na música Não tá mais de graça, do álbum Planeta Fome, de 2019: “A carne mais barata do mercado não ‘tá mais de graça / O que não valia nada agora vale uma tonelada / A carne mais barata do mercado não ‘tá mais de graça / Não tem bala perdida, tem seu nome, é bala autografada”.

Felipe Comitre é professor do Instituto Federal do Paraná - Campus Pinhais.

>>> Indicações de Leitura

Racismo estrutural, de Silvio Almeida

Escrito por Silvio Almeida, doutor em Direito pela USP, o livro apresenta dados e reflexões sobre o impacto do racismo na estrutura econômica, política e subjetiva da sociedade brasileira.

Os bestializados, de José Murilo de Carvalho

Neste livro, o autor faz uma análise sobre o processo de proclamação da República, a partir da análise das relações estabelecidas na recém capital da República, a cidade do Rio de Janeiro.

Estado de exceção: homo sacer, II, I, de Giorgio Agamben

A obra instiga a reflexão sobre a atuação do Estado e as relações de poder na formação do que o autor define como estado de exceção. Para isso, são analisadas leis e normas que legitimam a violência e a suspensão de direitos, o que ocasiona a disseminação de seres matáveis (homo sacer).

O espaço do cidadão, de Milton Santos

O autor faz uma análise da influência da desigualdade social em sua distribuição no espaço urbano. Nesse contexto, a obra se direciona para a reflexão sobre a cidadania em um espaço caracterizado pelo paradigma da reprodução do capital.

>>> Indicação de álbum musical

Planeta Fome,Elza Soares

Lançado em 2019, Planeta Fome é um álbum inspirador desde a sua capa, criada pela cartunista Laerte Coutinho, passando pelas faixas que expressam sentimento de revolta, mas, principalmente, de esperança por um mundo mais justo. Logo na primeira faixa, Libertação, depara-se com o verso “Eu não vou sucumbir”. E assim segue a incansável, crítica e mulher negra Elza Soares, sem se vergar às imposições do sistema.

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