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ÓCIOS
Clichê
Natalia Borges Polesso
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Comprei uma caixa de morangos no supermercado. Comprei uma caixa de amoras também. E duas cervejas.
Cheguei em casa, guardei as frutas na geladeira e bebi as duas cervejas. Às vezes penso se não é por vergonha que também compro as frutas. No outro dia, depois de jejum forçado por gastrite conjugal e falta de apetite, por obrigação, peguei os morangos.
Precisava comer algo saudável, algo que me alegrasse o estômago, o paladar e a alma. Puxei o invólucro de plástico da bandejinha também de plástico. Quanto plástico, pensei. Nem sei mais o gosto do morango ainda sujo de terra, de mijo de cachorro, do que fosse, só conheço o gosto das coisas plásticas. Quando terminei de abrir a bandeja, olhei os morangos ali tão vermelhos, pareciam ter asfixiado, estavam mofados. Era uma merda de um clichê intelectualoide sobre minha mesa. Um fracasso de prateleira e um sucesso de estante. Sobre a mesa, dois cotovelos encardidos, dois braços bronzeados, duas mãos ostentando dedos de unhas vermelhas apoiando uma cabeça pesada, cheia de mofo também, como os morangos. Como os morangos, soco goela abaixo, como prêmio de consolação. Penso nas coisas incompletas ou mal cuidadas. Um após o outro, os morangos. Uma após as outras, as coisas. Minhas unhas tão suculentas, bem mais vermelhas e eufóricas que aqueles morangos. Como as unhas também? Como a raiva? A audácia? A inércia? A própria pele? O próprio desagrado? É tempo de pensar o irreal. Comprei uma caixa para caber tudo o que fosse falso. Comecei pelos desencontros e todos os diamantes que guardava no cofre. Arrastei tudo com a mão, joguei tudo para dentro. Depois foi a vez da cabeça, em repetidos movimentos, para cima e para baixo. Em seguidos consentimentos, sim, sim, sim. Tudo caía, se desprendia sem esforço. Pensei se em algum momento aquilo tudo teria feito parte de mim. Transbordava a caixa. Eu ficando vazia.
Grandes lacunas entre todas as afirmações, sim sim sim. Pequenas ilhas de certeza boiando num vácuo oceânico de hesitações. Quando terminei, encarei os morangos. Eram angústias reais. Lembrei de um saco onde eu guardava medalhas, cartas, mechas de cabelo, desenhos e instruções. Minha mãe jogou fora, sem o meu consentimento, há muito tempo. Pensou que aquelas coisas não tinham valor. Hoje eu não sei dizer se tinham, elas não fazem diferença. Talvez elas pudessem preencher as lacunas em mim. Mas eu não sei, nem vou saber. É melhor ocupá-las com outra coisa, como morangos ou unhas vermelhas. Ou ainda com grandes clichês. Uma estante cheia de papel saturado de palavras, grandes nomes, grandes clássicos, pequenas dores. Pequenas epifanias.
Lembrei dela, não sei se era um arremedo de ideia ou um arremedo dela? Estava tão magra e espinhenta.
É inevitável, tu és a minha pequena epifania, aquilo que me faz descobrir mais em mim – não havia muito a ser descoberto – mais do que eu gosto e mais do que eu desaprovo em mim mesma. Tu és minha pele, meu conforto, meu conto favorito. As memórias soterradas pelo vazio de agora tinham um gosto distante. Pareciam novidades, descobertas, as velhas coisas que a paixão ou o engano fazem, distorcem, e faziam sentir os arrepios do primeiro beijo roubado – talvez não seja um arrepio, mas sim um mau pressentimento –, e a dor do último tapa – que não foi o último, posto que ainda houve tanta agressão/violência. Lembrei de uma chinelada que levei da minha avó. Com cinco anos de idade eu resolvi ir embora de casa.
Arrumei uma mochila com roupas velhas, viveria na rua, logo, na minha cabeça infantil, só poderia usar roupas rotas. Quando ia atravessando a quinta rua, levei um puxão de orelha e uma chinelada. Minha avó me agredia com todo aquele amor ressentido. Tapas e choro contidos e nunca mais faça isso. Gradearam a casa, dali em diante eu só brincava no pátio com portão trancado e sob o olhar magoado da minha avó. Ontem foi aniversário dela, liguei. Lembrei dos meus irmãos que já não eram os mesmos. Uma vez brincávamos num montinho de areia, numa construção ao lado de casa. Enterrados até os joelhos na areia, ríamos sem nos dar conta do quão rápido cresceríamos e perderíamos a vontade de brincar assim. E teríamos nojo de areia em construções. Somos tão diferentes apesar da mesma cara borges-polesso. Eu queria alargar as lacunas ainda mais, balancei a cabeça novamente. Erosão de lembranças, as distâncias mais simbólicas, as memórias menos tenazes, quase nas imediações do mito. Lembrei. Lembrei. Lembrei de algo que não era mais meu. Lembrei do gosto da tua boca depois de comer os morangos mofados.
Natalia Borges Polesso é escritora. (Do livro Recortes para álbum de fotografia sem gente, 2013)
[Natalia Borges Polesso é escritora e doutora em teoria da literatura. Dona de uma trajetória premiada, publicou os livros de contos Recortes para álbum de fotografia sem gente (2013), vencedor do Prêmio Açorianos, e Amora (2015), livro que explora as nuances das relações homoafetivas entre mulheres e que venceu o Prêmio Açorianos e o Prêmio Jabuti; Coração à corda (2015) e Pé atrás (2018) são suas incursões na poesia; Controle (2019) e Corpos Secos (2020), com Samir Machado de Machado, Marcelo Ferroni e Luisa Geisler, são seus trabalhos de romance. Selecionada para a coletânea Bogotá39, que reúne trinta e nove escritores da América Latina com menos de quarenta anos mais destacados do momento, a autora tem seu trabalho traduzido para o inglês e o espanhol e sua obra está publicada em diversos países. [
À ESPERA DE UM MILAGRE.
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