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CONTRARREGRA

Na roda do mundo, mãos dadas aos homens, lá vai o menino rodando e cantando cantigas que façam o mundo mais manso cantigas que façam a vida mais justa, cantigas que façam os homens mais crianças.

Thiago de Mello, Cantiga quase de roda

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CONTRARREGRA

O OLHAR BÁRBARO DAS CRIANÇAS

por Raquel Zanini

Um mundo mais manso e uma vida mais justa compõem a cantiga das crianças, como nos ensina a perceber Thiago de Mello. Desde o princípio da vida social, os infantes desejam se relacionar com o outro e com os adultos, de modo igualitário, sendo reconhecidos como sujeitos. Seus passos iniciais nesse processo caracterizam o instante “um”, que o filósofo Walter Benjamin, em Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, vai indicar como aquele que se repete durante toda a vida. São esses primeiros passos nessa “cantiga quase de roda” que nos indicam a importância de escutar as crianças, de estarmos atentos às suas percepções, pois, para Benjamin, o processo de descoberta do mundo e da vida possui um caráter revolucionário, que pode proporcionar uma reorganização e identificação do mundo. A cognição das crianças traz essa marca revolucionária porque é tátil, o que sinaliza sua ligação com a ação.

Esse fato se evidencia quando compreendemos que na infância se conhece os objetos ao fazê-los e usá-los de modo criativo, não aceitando apenas o sentido já dado a eles. Essa é a relação que se instala também entre a infância e a história - e a possibilidade revolucionária desse encontro -, pois a confluência entre a consciência e a realidade tem seu próprio ethos, que nos leva à compreensão da revolução não como uma culminação dos processos de desenvolvimento humano ou um ponto de chegada, mas sim como um novo começo sempre em devir. É em busca desse olhar revolucionário que nos propomos, nas linhas a seguir, o exercício de ouvir o que as crianças têm a nos dizer sobre este momento histórico da pandemia do SARS-CoV-2, por meio das entrevistas realizadas com elas para o projeto “Escuta das Crianças”, da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI). Ao todo foram entrevistadas trinta e três crianças, de diversos estados do Brasil, como Piauí, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul. Essas entrevistas tiveram o intuito de saber como elas estão passando por esse momento, assim, refletiremos a partir dessas vozes e percepções. Mas, em um momento de pandemia que assola o mundo, para que ouvir as crianças? Não serão os adultos os mais aptos a darem pistas sobre como cuidar delas nesse momento, conduzir sua formação e entretenimento? Para alguns, certamente que sim, e não só nesse momento, mas em outros tantos! Primeiro, porque as crianças são consideradas ainda inexperientes, sem capacidade para decidir o que é melhor para suas vidas e, uma vez não adaptadas à ordem e às regras para o bom andamento social, normalmente divergem do comportamento esperado pelos adultos. Segundo, pois ao resgatarmos a origem do termo infância, que caracteriza socialmente essa fase do desenvolvimento humano, averiguamos historicamente que o vocábulo advém do latim infans, construído a partir do prefixo in, que indica negação, e do sufixo fante, que significa falar ou dizer, daí decorre que o infante é aquele que não fala, caracterizando a criança como aquela que não possui o direito ao discurso, como pessoa que não está autorizada pela sociedade a fazer uso da palavra. Se etimologicamente já está indicado seu silenciamento, por que problematizar a escuta e a compreensão de mundo das crianças? É justamente pelo fato de sua percepção da realidade ser dissonante, pela quebra de paradigmas e inadequação ao dado que apenas elas podem nos dar pistas de como veem esse momento e de como podemos auxiliá-las a passar por ele. É a infância, bárbara e com olhar revolucionário, tal como nos indica Walter Benjamin, que precisa ser ouvida, pois as crianças estão aí, o tempo todo se manifestando. Escutá-las é opor resistência ao que está dado, ao fluxo das coisas ordenado pelo mercado em detrimento do humano. E esse ato, segundo a fala delas, passa pela superação conjunta dessa pandemia, pela vacinação, como uma das crianças entrevistadas indica: “se fosse um vírus bem gigantesco tinha que usar muita vacina, bem grandona”. Ou seja, a vida está acima do mercado e dos interesses econômicos. Como define Andrés Felipe Bedoya, de 8 anos, no livro A Casa das Estrelas, organizado por Javier Naranjo, adulto é a “pessoa que, em toda coisa que fala, fala primeiro de si”. Na mesma obra, Carolina Álvarez, de 7 anos, afirma: criança é o “brinquedo de homens”. Essas definições são um alerta: precisamos fugir desse lugar de opressores e ouvi-las, permitindo-nos perceber através dos seus olhos como esse momento histórico nos indica novos modos de ser e estar. Mergulhando nos fluxos narrativos das entrevistas realizadas, percebemos que em nenhum dos questionamentos as crianças falam sobre consumo, sobre o desenvolvimento tecnológico, sobre quão boas têm sido as possibilidades on-line de dar sequência às suas atividades e estudos, por exemplo, mas indicam sempre o outro e suas relações como aquilo que mais lhes faz falta, evidenciam como sentem falta de seus familiares, amigos e colegas e falam sobre a dificuldade de se manterem distantes do outro:

tra”. “Uma pessoa não pode nem tocar a ou-

“Não posso mais sair, não posso mais brincar com meus coleguinhas”.

“Para mim, o coronavírus foi muito impactante, porque, normalmente, antes da pandemia, eu ia no parquinho no condomínio da minha vó e da minha mãe, só que daí, com o coronavírus, os dois fecharam. Agora a gente não pode mais, os lugares públicos tão mais restritos”.

As relações que se estabelecem entre a criança e o mundo, entre elas e seus pares, foram cerceadas por um vírus que elas têm tentado compreender, mas, na infância, estar em relação com o outro e o mundo é fundamental. Por isso, esses elementos aparecem nas falas de todas as entrevistadas, indicando suas dificuldades em lidar com este momento histórico.

Fica evidente nas respostas dadas pelas crianças que não são os aparatos técnicos e tecnológicos que garantirão a superação desse momento, mas, em especial, o contato com seus pares, o acesso aos espaços de socialização, pois, quando questionadas sobre o que mais querem que aconteça, elas respondem:

“Que o coronavírus acabe, porque eu não posso ir para a escola, não posso passear, visitar meus amigos”.

“Que acabe esse coronavírus, porque ele está matando as pessoas”.

Sendo a escola, na infância, o principal espaço de socialização, percebemos que o ensino, neste contexto, mediado pelo espaço virtual e estritamente conteudista, não cumpre com sua função social, pois as crianças relatam grande cansaço e dificuldade com o distanciamento das relações humanas:

“Eu queria poder brincar, estudar e poder parar de usar máscara”.

“Pra mim, essa história de coronavírus tá sendo chata, porque a gente fica muito tempo no computador pra fazer a aula. É difícil ficar muito tempo de frente com uma tela que a gente acaba se distraindo com qualquer coisinha. Mas também tá sendo legal porque a gente fica mais com a família”.

“Então, esses tempos em casa mudaram muitas coisas: as aulas on-line assim elas não são muito boas como as da escola, porque na escola a gente entende melhor”. “Eu tenho muita saudade sempre, eu sempre penso na aula, sempre amei fazer as coisas lá na aula, amei o recreio também, amei tudo lá na escola. Também amava a escola quando eu estudava lá, mas agora veio essa pandemia e ficou tudo embaralhado”.

“Eu queria poder abraçar meus professores também, que eu sinto muita falta deles”.

Esses sujeitos nos ensinam que não é o pragmatismo capitalista, limitador da educação a meros processos de instrução, que pode suprir suas necessidades imediatas. O aparato técnico apenas mascara a angústia que a ausência dos seus pares e a presença da morte no dia a dia geram nelas. Por isso, o desejo unânime das crianças é que o “coronavírus vai embora”:

“O que eu mais quero que aconteça? Eu quero que o coronavírus acabe, que eu tô longe. Não posso ir para escola, não ir passear, não posso visitar meus amigos”.

Ao final da entrevista, ao serem interpeladas sobre o que querem que aconteça depois da pandemia, é imperativo o desejo pelo encontro com seus pares, suas famílias, e que tenhamos um mundo mais acolhedor e amoroso:

“Depois do coronavírus eu queria que mudasse o mundo e só cabesse amor dentro dele”.

“Eu ia fazer as pessoas entender que todo mundo é igual todo mundo”. “O que eu mais quero que aconteça depois do coronavírus é que eu possa encontrar todos os meus amigos e que todo mundo esteja bem. Todo mundo esteja bem, com boa saúde”.

“Eu quero que as pessoas fiquem bem”.

Como não considerar como bárbaros aqueles que não estão atentos às necessidades de manutenção da normalidade e da economia neste contexto? Que estão mais presos às relações, ao outro, que à engrenagem social que precisa funcionar normalmente, a despeito das quase 400 mil vidas perdidas no momento em que escrevemos esse artigo? Registros como este realizado pela Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) são fundamentais para desvelarmos que as crianças, povo bárbaro, nos apontam caminhos que devemos seguir. Se não lhes possibilitarmos esse espaço de exposição dos seus modos de ver o momento, ficarão apenas os registros dos “vencedores”, daqueles que “inovaram” ao lançar inúmeros produtos virtuais destinados às crianças, que perdurarão na história, seja para a área educacional ou cultural, e que serão considerados aquilo que possibilitou a elas a “superação desse momento”. Ouvindo seus relatos, a despeito de ser um corpus limitado de entrevistados, podemos ter contato com o modo como elas têm vivenciado esse momento e problematizar, pois, em que medida o processo de criação de ambientes virtuais para elas foi mais opressivo e cerceador da sua condição de sujeitos. O silenciamento e opressão passam por aquilo que evidencia Eduardo Galeano em seu mundo às avessas, do livro De pernas pro ar:

Dia a dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças.

Há muito a educação e a produção cultural para crianças têm se confrontado com a necessidade de escuta, elas precisam ser ouvidas, pois têm mais pistas a nos dar, que nós, adultos, caminhos a impor a elas. Não há nada mais poderoso que a palavra certeira delas, que aniquila nossa arrogância e prepotência de querer saber, mais que o sujeito da situação, como passar por um dado momento.

Raquel Zanini é pedagoga da Rede Municipal de Curitiba e da Rede Estadual do Paraná.

*Agradeço à Rede Nacional Primeira Infância (RNPI) pelo belíssimo projeto. Mais informações disponíveis em: http:// primeirainfancia.org.br/escuta-das-criancas-ciranda-de-acoes-2/ >>> Indicações de Leitura

A hora das crianças: Narrativas radiofônicas, de Walter Benjamin.

A obra traz conferências, resenhas de livros e histórias apresentadas por Walter Benjamin em programas de rádio de Berlim e Frankfurt, que tinham as crianças como público-alvo.

A casa das estrelas: O universo contado pelas crianças, organizado por Javier Naranjo

Durante mais de dez anos, o professor Javier Naranjo guardou as definições que seus alunos do curso primário (entre 3 e 10 anos) davam para palavras, objetos, pessoas e, principalmente, sentimentos, em suas aulas de espanhol. Algumas destas definições, poéticas, engraçadas e muitas vezes melancólicas, estão reunidas neste livro.

Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, de Walter Benjamin.

O livro traz diversos ensaios do autor a respeito da educação.

De pernas pro ar: A escola do mundo ao avesso, de Eduardo Galeano.

Como é próprio do autor, abordando eventos históricos e fatos jornalísticos, com muita ironia e sensibilidade, a obra propõe inúmeras reflexões sobre justiça, liberdade e educação.

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