Revista Devires

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devires, belo horizonte, v.

4, n. 2, p. 1-176, jul/dez 2007 – issn: 1679-8503

periodicidade semestral


CONSELHO EDITORIAL Ana Luíza Carvalho (UFRGS) Cláudia Mesquita (UFSC) Cristina Melo Teixeira (UFPE) Consuelo Lins (UFRJ) Cornélia Eckert (UFRGS) Denilson Lopes (UFRJ) Eduardo Vargas (UFMG) Jair Tadeu Fonseca (UFSC) Jean-Louis Comolli (Paris VIII) João Luiz Vieira (UFF) José Benjamin Picado (UFBA) José Tavares Barros (UFMG) Ismail Xavier (USP) Leandro Saraiva (UFSCar) Maurício Lissovsky (UFRJ) Maurício Vasconcelos (USP) Márcio Serelle (PUC-MG) Marcius Freire (UNICAMP) Patrícia Franca (UFMG) Philippe Dubois (Paris III) Phillipe Lourdou (Paris X) Patricia Moran (UFMG) Réda Besmaïa (Brown University) Regina Helena Silva (UFMG) Renato Athias (UFPE) Ronaldo Noronha (UFMG) Sabrina Sedlmayer (UFMG) Silvana Rodrigues Lopes (Universidade Nova Lisboa) Stella Senra Susana Dobal (UnB) Sylvia Novaes (USP)

CAPA E PROJETO GRÁFICO Bruno Martins Carlos M. Camargos Mendonça

EDITORES Anna Karina Bartolomeu César Guimarães Carlos M. Camargos Mendonça Roberta Veiga Ruben Caixeta de Queiroz

APOIO Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência Fafich – UFMG

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Filipe Freitas COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Sílvia de Paiva ASSISTENTE DE PRODUÇÃO Bruno Fabri REVISÃO - PORTUGUÊS Irene Ernest Dias Paulo Andrade TRADUÇÃO DOS RESUMOS Alice Loyola (francês) Marco Aurélio Alves (inglês) CURADORIA DE IMAGENS Conceição Bicalho IMAGENS Aroldo Lacerda Elias Mol Juliana Ramos Maria do Céu Diel Marina Damasceno Mauro Henrique Rodrigo Freitas Rita Viana

IMPRESSÃO Segrac TIRAGEM 500

Publicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Avenida Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901 – Belo Horizonte – MG Fone: (31) 3499-5050

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DEVIRES – cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.4 n.2 (2007) – Semestral ISSN: 1679-8503 1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicação. 4. Filosofia. 5. Fotografia. 6. História. 7. Letras. I. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.


Sumário

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Apresentação César Guimarães e Roberta Veiga

Dossiê: Vestígios do real 12

Algumas notas em torno da montagem Jean-Louis Comolli

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Os signos do real no cinema de Eduardo Coutinho Fernando Andacht

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Corpos exemplares: a reencenação no neo-realismo Ivone Margulies

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Virtualidade e referência: um breve olhar sobre Ulisses Luiz Augusto Rezende Filho

102

Viagens na fronteira do Brasil e do cinema Andréa França

118

Tempo e dispositivo no documentário de Cao Guimarães Consuelo Lins

Fora-de-campo 130

Fotograma comentado - Olhem para ela: a primavera chegou Lucia Castello Branco

140

Entrevista - Eduardo Escorel e a montagem da história Oswaldo Teixeira e Pedro Aspahan

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Leni Riefenstahl: O monumental como imagem da ruína Liliane Heynemann

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Normas de publicação



imagem : elias mol e aroldo lacerda


Apresentação

1. COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004.

Prosseguindo com a proposta editorial de oferecer, a cada vez, uma discussão dedicada à obra de um diretor ou a uma questão teórica, este número da Devires traz o dossiê Vestígios do real. No momento em que o campo audiovisual se expande, multiplicando seus formatos e recursos expressivos, o cinema se vê implicado em um conjunto de problemas que desafiam sua potência criadora e seu porvir. Se, por um lado, as vídeoinstalações, vídeo-performances e experimentos em web-arte exploram a potencialidade dos suportes, seus deslocamentos e seus contextos de acesso, por outro, o aprimoramento tecnológico acelera a produção de imagens e, associado à máquina capitalista, intensifica a disseminação das formas padronizadas da televisão, da publicidade e do marketing. Porém, como tática de resistência às estratégias de espetacularização, alguns filmes recorrem a procedimentos que se contrapõem vivamente aos poderes da simulação e da imagem calculada, fazendo valer o mundo da experiência, da iniciação e da transmissão – numa palavra, aquilo que Jean-Louis Comolli nomeou inscrição verdadeira: presença indicial dos lugares (sociais e históricos), dos corpos, dos gestos e das vozes, apanhados no momento mesmo em que se constitui a relação entre quem filma e quem é filmado1. Superadas as pressuposições ingênuas quanto ao objetivismo desse vestígio que o mundo deixa impresso nas imagens, bem como reavaliada criticamente a supervalorização que autores como Bazin e Barthes um dia concederam àqueles signos que emanam do referente, hoje podemos reafirmar – em nova chave – o quanto “a força do cinema vem do que ele inventa a partir da hipótese indicial e de seus problemas” (segundo os termos de Ismail Xavier 2).

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apresentação

/ césar guimarães e roberta veiga


Desde Moi, un noir (Jean Rouch, 1959) até Iracema (Jorge Bodanski e Orlando Senna, 1974), o registro documental e a encenação convivem no cinema moderno. Contudo, em alguns filmes contemporâneos desponta uma nova inflexão na combinação entre a presença e o artifício, o espontâneo e o construído. Surge daí uma série de questões. Como conceber essas novas relações entre documentário e ficção? De quais recursos se valem os filmes para se abrir à duração dos eventos (corriqueiros ou grandiosos, ordinários ou extraordinários)? Quais as outras maneiras de se explorar esse “rastro empírico do mundo” no filme (Ismail Xavier), para além do recurso da entrevista? Como é possível, no documentário, a coexistência de elementos de natureza plástica com outros de natureza indicial? Tais perguntas, lançadas em nossa última chamada para apresentação de artigos, foram acolhidas pelos autores e ganharam conformações particulares, conferindo à revista um desenho que, se não é coeso, é coerente. Em “Algumas notas em torno da montagem”, Jean-Louis Comolli parte das operações e dos efeitos de sentido da montagem para diferenciar duas temporalidades que hoje marcam o cinema: a da escritura (ou da experiência) e a do espetáculo (ou do capital). Para além de um procedimento técnico, o jump cut surge como um modo de visibilidade próprio das formas do espetáculo (a tevê, os clipes, a publicidade). Ele é o procedimento pelo qual a ditadura do corte e do fragmento impõe a aceleração do olhar em detrimento da experiência da duração e da continuidade. A lógica do excesso de saltos e rupturas condena o espectador a se tornar um mero consumidor de efeitos visuais e sonoros, e o impede de vivenciar a ilusão que funda a relação mimética entre o cinema e o tempo vivido. No jump cut, a autonomia do tempo da inscrição, que ocorre na co-presença dos corpos e da câmera, é abandonada em favor do controle do cineasta sob o objeto filmado, que fica à sua disposição. Ao espectador é negada a liberdade “de entrar e durar no fragmento”, de “se interessar ou reter tal instante”, de encontrar “o outro como imprevisto”, pois foi privado da continuidade de onde a descontinuidade pode emergir. O tempo lento do mundo, o tempo do outro, lhe é roubado. Preocupado com o anti-realismo extremado a que podem conduzir os argumentos que enfatizam, ceticamente, a impossibilidade do documentário captar o real, Fernando Andacht, em “Os signos do real no cinema de Eduardo Coutinho”, com base

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2. XAVIER, Ismail. Iracema: o cinema-verdade vai ao teatro. Devires - Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004, p. 75.


na semiótica peirceana, defende a insistência dos componentes indiciais e fácticos no gênero documentário. Criticando o dualismo que opõe as qualidades e os fatos à dimensão simbólica, o autor reivindica que, em Edifício Master, a haecceidade dos personagens, surgida do encontro entre quem filma e quem é filmado, não é nem apagada nem diluída pelos procedimentos ficcionais ou autoreflexivos. O artigo de Ivone Margulies, “Corpos exemplares: a reencenação no neo-realismo”, também toca na questão do indicial, mas pelo seu avesso. Ao caracterizar a reencenação neo-realista como um procedimento mimético realista que funciona tanto como método terapêutico quanto tentativa de reparação social, a autora mostra que, se o valor indexical do acontecimento que deu origem à reencenação foi colocado à distância, repetido e duplicado, ele retorna na singularidade do corpo e da fala daquele que atua, à maneira de um happening ou de uma performance. Assim é que filmes como Amor de mãe (Zavattini e Maselli) e Tentativas de suicídio (Antonioni), como fábulas de redenção, concebem, cada um à sua maneira, formas de retornar ao neo-realismo ou de ultrapassá-lo. Sobre o filme de Antonioni, feito em 1953, a autora dirá que ele chega a antecipar o método de pôr a verdade em cena, inventado pelo cinéma-verité. Já em “Virtualidade e referência – um breve olhar sobre Ulisses, de Agnès Varda”, Luiz Augusto R. Filho desloca inteiramente o problema da referência no gênero documentário. A partir de Bergson e Deleuze, o autor dirige uma crítica à insuficiência da noção de representação, que, ao supor a existência de um objeto pré-existente (tomado como modelo a ser re-apresentado pelos signos), acaba por ignorar a dimensão virtual e problemática da realidade, concebida como um misto das circunstâncias imediatas e presentes (o real) e das virtualidades, daquilo que não está dado. A identificação da coalescência entre real e virtual faz da referência mais um efeito que incide sobre o espectador do que um traço intrínseco do documentário (sem negar, contudo, sua dimensão factual ou indicial primeira). Nesse sentido, o filme documentário seria menos uma representação que revela uma realidade do que um processo de criação que concede a um objeto virtual e complexo uma imagem atual, particular e circunstancial. Os dois textos que encerram o dossiê possuem uma natureza mais analítica. Ao investigar filmes documentários brasileiros

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apresentação

/ césar guimarães e roberta veiga


atuais, tais artigos descrevem a relação que o cinema tem mantido com outras formas de expressão, principalmente a fotografia, a video-arte e as instalações. Os artigos de Consuelo Lins (“O tempo e o dispositivo no documentário de Cao Guimarães”) e de Andréa França (“Viagens na fronteira do Brasil e do cinema”), discutem a convivência entre as formas cinematográficas de inscrição verdadeira, construções plásticas mais ousadas e intervenções videográficas, em um território no qual o cinema se mistura com outras práticas artísticas. Os artigos de temática livre foram incluídos na seção “Forade-campo”, que se inicia com o Fotograma comentado, assinado por Lucia Castello Branco. Recorrendo à psicanálise e à literatura, a autora explica porque este plano – no qual a protagonista de Mônica e o desejo (Ingmar Bergman, 1952) encara diretamente a câmera, mas sem olhar para lugar algum – é o “o plano mais triste da história do cinema” (como escreveu Godard). Em seguida, apresentamos uma entrevista (realizada por Pedro Aspahan e Oswaldo Teixeira) com o diretor e montador Eduardo Escorel, que fala sobre os atos de pensamento próprios da montagem e sua experiência de ter montado alguns filmes dos diretores mais representativos da história do cinema brasileiro (Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Júlio Bressane, Eduardo Coutinho e outros). Escorel também fala do seu método de criação como diretor e discorre acerca das relações entre o cinema e a história. No artigo que encerra esse número, “Leni Riefenstahl: o monumental como imagem da ruína”, Liliane Heynemann, com o apoio do documentário realizado por Ray Müller, Die Macht der Bilder: Leni Rienfenstahl (1993), descreve as operações fílmicas criadas pela cineasta em O triunfo da vontade (1935) e Olympia (1938). Escavando debaixo da estética do monumental que tanto fascinou as massas que apoiaram Hitler (que compartilhava com a burguesia o gosto pelo kitsch), a autora descobre outra massa (para a qual sempre faltarão imagens, mas não testemunhos): a dos milhares de mortos dos campos de concentração e de extermínio. Por fim – não poderíamos deixar de dizer – esperamos que os leitores apreciem as modificações no projeto gráfico da revista. César Guimarães Roberta Veiga

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Ve s t í g i o s


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imagem : juliana ramos


Algumas notas em torno da montagem jean - louis comolli Cineasta e te贸rico do cinema

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Resumo: O texto apresenta e comenta a jornada da oficina organizada por Marie-Pierre Duhamel-Muller e Jean-Louis Comolli no evento États Généraux du Documentaire de Lussas, em 2007, intitulada “Corta!”. Contrapondo os recursos expressivos utilizados na montagem de alguns clássicos da história do cinema àqueles postos em jogo nas atuais montagens espetaculares, como o jump cut e outras formas de abreviação do tempo, este texto coloca em evidência os efeitos políticos e as conseqüências de sentidos ligados a tais procedimentos (sobretudo, mas não apenas, no que diz respeito aos filmes documentários). Palavras-chave: Inscrição Verdadeira. Ilusão Cinematográfica. Pulsão Escópica. Jump Cut. Raccord Clássico.

Abstract: The paper presents and comments the atelier journey entitled “Corta!”, organized by Marie-Pierre Duhamel-Muller and Jean-Louis Comolli in the États Généraux du Documentaire de Lussas, an event held in 2007. Through the comparison of the expressive resources used in the montage of some of the classics of cinema history with those resources brought into play in current spectacular montages, such as jump cut and other ways of abbreviating time, this paper brings to light the political efects and the meaning consequences related to such procedures (above all, though not exclusively, in what concerns documentary films). Keywords: True Inscription. Cinematographic Illusion. Scopic Drive. Jump Cut. Classic Raccord.

Résumé: Le texte présente et commente la journée d’atelier organisaée par MariezPierre Duhamel-Muller et Jean-Louis Comolli à l’occasion des États Généraux du Documentaire de Lussas, le 20 août 2007, intitulée “Coupez!”. Mettant en opposition les ressources expressives utilisées dans le montage de quelques classiques de l’histoire du cinéma à celles mises en oeuvre dans les montages spectaculaires, comme jump cut et d’autres formes d’abréviation du temps, ce texte met en evidence les effets politiques et les conséquences de sens liées à telles procédures (surtourt, mais pas seulement, en ce qui concerne les filmes documentaires). Mots-clés: Inscription Vraie. Illusion Cinématographique. Pulsion Scopique. Jump Cut. Raccord Classique.


Apresentação da jornada A oficina que estamos iniciando se organiza em duas partes. Marie-Pierre Duhamel-Muller ficará a cargo da segunda parte (à tarde) e Jean-Louis Comolli se ocupará da primeira parte (de manhã). Nós certamente faremos intervenções, um e outro, na parte de cada um. Algumas palavras sobre nosso ponto de partida: queremos questionar algumas das figuras de articulação e de transição utilizadas na construção e montagem dos filmes documentários: raccords diversos, fusões em negro ou encadeadas, short cuts, jump cuts… Essas figuras serão estudas com base em exemplos tomados principalmente de filmes documentários. Trata-se, antes de tudo, de explorar os efeitos e conseqüências de sentidos ligados a formas que freqüentemente continuam impensadas. Para caracterizar numa fórmula o sistema de tantos filmes, dos quais Tiros em Columbine (Bowling for Columbine, Michael Moore, 2002) será o paradigma, poderíamos falar de zapping generalizado. Passar, partir, retornar, repassar. Não continuar no lugar, numa duração, numa cena, num cenário, numa idéia, num tema, num motivo, numa reflexão, num argumento, mas ir e vir, começar e terminar. Mas também: chocar com cortes repetidos, impor afirmações, multiplicar as imagens-choque, fragmentar as pequenas frases, fazer brilhar toda uma explosão de planos curtos, de planos-clipe, jogar com os efeitos de montagem como numa plataforma de jogo ultra-rápido. Permanente poeira nos olhos da montagem espetacular. O que vemos, o que ouvimos em Tiros em Columbine? Uma seqüência de planos rápidos em cujo elã se mesclam materiais, registros, estilos heterogêneos: lá e cá, gag e seriedade, hoje e ontem, drama e comédia, fotos e documentos, páthos e ironia, arquivos diversos, bugigangas e terror, publicidades televisivas, vídeos de segurança etc. Essa mistura é atraente. O jogo do heterogêneo num filme é sempre um desafio. Mas – e principalmente em um filme – nenhum jogo é gratuito. O sentido do jogo é, aqui, o de reduzir a alteridade (do mundo) à familiaridade (do espetáculo). Toda essa matéria abundante e de um polimorfismo em expansão é reduzida unicamente ao short cut. O efeito é de uma grande uniformidade. Tudo se equivale. O espetáculo está em toda parte; o real, em nenhuma.

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Tocar em tudo para não tocar em nada. Saltar é uma forma de evitar. O modelo dessa montagem seria o clipe publicitário ou musical, e o modelo do modelo, este está no gesto do zapeador. Impaciência, precipitação, febrilidade, fragmentação, quantificação, histerização do fragmento, fantasma de ubiqüidade e de volatilidade. No final das contas: migalhas. É pouco provável que se encontrem em Bowling… muitos planos de mais de vinte segundos, e a maior parte está abaixo dos dez segundos. Tomaremos como exemplo o prólogo do filme: 1 minuto e 43 segundos. É composto, se contei bem, de 19 planos. Duração média de um plano (apenas para ver): 5 segundos e 42 centésimos. Questionaremos a necessidade e a história (acelerada) dessa aceleração do olhar do espectador. Trata-se de impedir toda projeção mental. A fragmentação excessiva das durações, a diminuição sistemática, excita a pulsão escópica até a saturação. Mil fragmentos do visível dos quais nenhum nos cativará verdadeiramente. Outro caso: o jump cut, essa prática bastante generalizada atualmente, que leva a cortar na figura filmada, no corpo-fala filmados, a fim de selecionar os momentos de fala propostos ao espectador. Afirmação do poder absoluto da montagem, que nos oferece apenas trechos do que foi filmado: tais frases, tais mímicas, tais gestos, numa descontinuidade que não busca se dissimular por trás da ilusão do raccord cinematográfico (raccord de eixo e/ou de movimento). O efeito certamente é de uma denúncia da montagem por ela mesma e de um desvelamento de sua natureza lúdica: os cortes são vistos, saltam na imagem (não no som), se virtualizam, se aligeiram, se aceleram. Por outro lado, a repetição desses cortes, a pequena violência (mas sentida como tal) desses saltos na imagem é também sinal de uma desarticulação do gesto filmado, de uma trepidação do tempo, de um desencadeamento da cena, da irrupção de uma espécie de (frágil) caos no suposto contínuo espaço-temporal captado pela tomada. Assim, a montagem contradiz e reescreve a filmagem. A inscrição verdadeira é a tal ponto fragmentária que não revela mais grande coisa, e a “verdade” da relação registrada aparece apenas como uma cintilação volátil. Os jump cuts atacam diretamente a figuração do corpo humano na duração, a produção de uma fala na duração. Efeitos? A princípio, o de uma superfragmentação do conjunto

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algumas notas em torno da montagem

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filmado: os jump cuts aumentam o número de planos e reduzem sua duração. Em seguida, o jump cut sela a marca do controle absoluto do autor sobre seu filme. Leveza virtual de um lado, pressão de outro. O que poderia vir da pessoa filmada é assim limitado e refiltrado pelo autor. Se é verdade que uma montagem é sempre uma escolha do autor-realizador e/ou do montador, essa escolha organiza ou não um lugar de jogo para o espectador. É esta a questão. Repetidos como são aqui, esses cortes nos planos nos comunicam uma vontade de poder e de controle que nos é solicitado suportar para podermos gozar dos frutos da seleção dos “melhores pedaços”. Espectador colocado no lugar de degustador: é convidar o espectador a um prazer que o diminui. É fazê-lo aceitar que o corpo e a fala filmados estão às ordens. Fazê-lo renunciar ao surgimento do outro como imprevisto. Como não ver trabalhando nesse tipo de montagem algum desejo obscuro de privar de liberdade o outro filmado, assim como o espectador? *** Esta jornada não é uma lição, mas um convite a pensar junto, com a ajuda de trechos, de momentos e de saltos, as figuras da montagem em sua história, em sua persistência, assim como em seus desvios. Ela terminará com a projeção de um filme de ficção, La nouvelle babylone (1929), de Kosintsev e Trauberg. É que sem dúvida retornaremos às teorias e “regras” da montagem, cuja escolha, respeito, recusa, reinvenção, prática submissa ou rebelde atravessaram o documentário. Teremos reencontrado os anos 20, os da jovem União Soviética e da vanguarda européia, e (re)visto se desdobrarem as montagens soberanas, o ritmo e a musicalidade, a colisão lírica, a invenção dos espaços e dos tempos. Para melhor olhar os “efeitos” de hoje, as linhas que separam ou aproximam documentário e ficção, tempo do mudo e tempo do sonoro, corpo do ator e corpo da pessoa filmada, réplica e fala. Short cut, jump cut, fusões encadeadas e fusões em negro são quase centenários: buscaremos juntos o espectador que eles desejam. (Marie-Pierre Duhamel-Muller e Jean-Louis Comolli) ***

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1. Cf. “Fin du hors-champ?”, em Images Documentaires, n. 57-58 (2006). (“Fim do fora-de-campo?”, texto traduzido no Catálogo do 10o forumdoc.bh, 2006). Nesse texto, estudei Tiros em Columbine (Michael Moore) e O pesadelo de Darwin (Hubert Sauper, 2004). Por outro lado, trabalhando a partir de Close-up (1990), de Abbas Kiarostami, no IRI (Centre Pompidou), e com a ajuda do software Lignes de Temps, desenvolvido sob a direção de Bernard Stiegler por Xavier Sirven, comecei a estudar alguns raccords clássicos que operam na seqüência da prisão do impostor Sabzian. Este trabalho ainda não foi publicado. 2. Corte no plano: num mesmo plano, numa mesma tomada, cortar, quer dizer, fazer desaparecer uma porção mais ou menos importante de fotogramas ou, em vídeo, do que chamamos “imagens”. Ao mesmo tempo que a imagem, o som é cortado. As duas extremidades assim criadas no interior de uma continuidade espaço-temporal (a película) são unidas, o menos mal possível, numa resposta mais ou menos grosseira que exala o ar de uma catástrofe. O “raccord” torna-se, assim, salto no plano.

Pequenas causas, grandes efeitos (depois do jump cut e a propósito do raccord) O jump cut é apenas uma das modalidades – aliás, menor – do princípio de fragmentação geral que regula atualmente os padrões da indústria (cinema e televisão confundidos, ficção e documentário) como ontem regulava os clipes, os anúncios e a grande massa das publicidades. Zapping menos entre “programas” difundidos pela televisão do que no interior mesmo do programa, zapping como programa de visão. Insisti inúmeras vezes sobre os efeitos devastadores desse esfacelamento das durações e dos planos, que dispersa o próprio espectador, impede-lhe toda concentração, condena-o à repetição compulsiva do corte e do salto: tudo o que tende a fazer do espectador de cinema um consumidor de efeitos visuais e sonoros. Tentei descrever essa fragmentação tomando o exemplo maior Bowling for Columbine, de Michael Moore.1 A duração média de um plano desse filme gira em torno de quatro segundos. E me dizem que atualmente contratos de produções televisivas na França impõem um número mínimo de planos em um telefilme: não menos de 1.200 planos para um filme de 90 minutos, ou seja, uma duração média de quatro segundos e alguns décimos. Essa cintilação impede qualquer possibilidade de olhar. Triunfo do pulsional: restam apenas batimentos. Gostaria de retomar tudo isso isolando um dos modos de fragmentação, o jump cut, que opera no interior mesmo da unidade espaço-temporal da cena filmada, rompendo-a e deixando a marca desse rompimento. No cinema dito “documentário” e nos produtos de informação audiovisual (reportagens, revistas), o uso do jump cut2 aparece, a princípio, como resposta a uma coerção. Como cortar na cena, no corpo e na fala filmadas, para controlar tão bem a duração e o sentido, se nada na filmagem organizou a possibilidades desses cortes? No cinema dito de “ficção”, as coisas se passam de outro modo: a possibilidade de fazer e refazer as cenas e as tomadas, a capacidade prática de mobilizar o tempo dos atores, que estão à disposição, de construir ou de modificar os cenários, de sujeitar os corpos às exigências do enquadramento e da luz, sem esquecer o importante papel da script girl, que antecipa a montagem na filmagem, fazem do recurso à montagem em jump cut não uma “necessidade” prática, uma escolha forçada, mais ou

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menos catastrófica, mas uma escolha artística, um estilo, o sistema formal de uma seqüência (a cena do carro com Jean Seberg, em Acossado, 1959).3 Há outra coisa. Um traço da época. Uma preocupação de fazer ver obnubila nosso presente, talvez porque esse presente esteja saturado de telas, de publicidades, de simulacros, de “realidades virtuais”. Reversão: a fenda da ilusão-tela é que postularia a adequação da representação a um “real” cada vez mais ausente. Para os espectadores dos filmes Lumière – os primeiros cinespectadores –, era, ao contrário, a potência do representado que provocava a adesão, que fundava a crença na potência da representação. A tela era a superfície de projeção e de eficácia do “real”. Os tempos mudaram. É o que vamos questionar, principalmente através da figura do jump cut, confrontado com as outras formas de raccord. Pequenas causas, grandes efeitos. Por não poder fazer melhor, decido avançar momentaneamente apenas em ziguezague – pelo que apresento minhas desculpas ao leitor.4 Um. Todo corte é corte no tempo. Há a temporalidade do filme, há a temporalidade da consciência (como soma ativa das percepções, sensações e atenções do sujeito). As duas temporalidades se opõem e se compõem. Podemos nos perguntar: por que razão, no cinema, já desde o princípio, começando em Griffith (e desde então), o que se propõe com o raccord geralmente é atenuar ou mascarar a (relativa) violência do corte? (Violência devida à ruptura de proporções, pois se passa de um plano médio a um primeiro plano, de um eixo a um outro que lhe é mais ou menos perpendicular, de um gesto, de um olhar a um outro etc.). Os cortes são transições e não interrupções, os raccords, menos saltos do que trampolins para passar de um ponto ao outro do espaço ou do tempo, escamoteando o que há de incisivo nas rupturas. O raccord faz o papel de costura. E a montagem (conjunto ou sistema de raccords) tenta anular a fragmentação que não pode não existir, ao fazê-la passar por uma seqüência de impulsos, fluidez dinâmica. Sucesso da ilusão cinematográfica. O raccord se quer principalmente invisível – costura, precisamente, que religa dois pedaços de tecido e desaparece nessa ligação. Ele não deve ser notado, pois pretende assegurar uma impressão de continuidade, de completude, que vem recalcar, ao mesmo tempo, a

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3. Cortes e raccords que não são “cortes no plano” propriamente ditos, mas cortes e raccords na cena: no carro conversível, a nuca de Jean Seberg está sempre lá, uma seqüência de raccords opera a partir dela sobre ela mesma – mas em torno dela o cenário “salta”. Do mesmo percurso no carro (unidade de cena) diversos fragmentos são unidos, numa tensão entre mesmo (a posição de Jean Seberg) e outro (as porções de espaço unidas, no entanto extraídas de um mesmo espaço referencial: os ChampsÉlysées). Efeito de aceleração e de fragmentação, motivo do lúdico: a representação do espaço é um jogo de construção. Papéis cortados, películas, colagens: picturalização e ao mesmo tempo montagem rítmica do espaço. Em seu nascimento, como sabemos, o cinema se joga no espaço, e talvez ele tenha nascido para isso, saltar de um ponto ao outro do globo, quer dizer, de uma tela ou de um quadro ao outro. É o cinema que se movimenta, e não o espectador. Mas o lugar do espectador é o da ubiqüidade: não é o mundo que vem em minha direção numa tela, sou eu que me desloco imaginariamente passando pela “janela aberta sobre o mundo”. No entanto, subsiste nessa fragmentação alguma coisa do gesto raivoso de quem corta e não vê o objeto do corte desaparecer no corte, ao contrário. A cabeça de Jean Seberg aparece e reaparece, inalterada, de um lado e do outro do corte. Pensamos na “mulher sem/com cabeça”. Esse corte – cortar na figura – é agressão. Há o gesto de rasurar, de riscar, de partir o corpo representado. Esse gesto foi liberador. Atualmente, ele é – nos clipes, nas publicidades, nas revistas – o marcador estereotipado de uma “modernidade” convencional, um efeito retórico. É isso que é preciso questionar. De O homem da câmera a Bowling for Columbine, a fragmentação mudou de sentido. 4. Relendo este texto e corrigindoo 15 dias depois, percebo bem que este percurso ziguezagueante é problemático. Mas princi­palmente para mim mesmo. Digo-me que essas questões são – para mim, do interior da cinefilia – bem difíceis. Que a ambigüidade e a ambivalência ligadas


ontologicamente ao gesto cinematográfico, a tensão entre escritura e espetáculo etc. exigem uma leitura ela mesma movente e hesitante, um tatear frágil e por vezes contraditório. A análise do engodo cinematográfico demanda um pensamento paradoxal, capaz de ligar os contrários e de permanecer no entre-dois. Nada de seccionado; aproximações, reversibilidades. Devo agradecer a Marie-Pierre Duhamel-Muller por ter acompanhado essas releituras e reescrituras com atenção e paciência.

5. No original, “petite mort”, expressão que popularmente significa orgasmo; mantivemos a tradução literal para preservar a ressonância de sentidos estabelecida pelo autor com morte na frase seguinte e em outras passagens do texto. (N. T.)

6. Ver em Images Documentaires, n. 57-58 (2006) e 59-60 (2007), o texto “Analyse et synthèse”.

descontinuidade do tempo e do mundo (que preferimos ignorar) e o descontínuo (que ignoramos) do esqueleto fotogramático, assim como o programa narrativo ou a linguagem. Ritmo, respiração, a montagem então é supostamente dúctil, condutora; ela apazigua, ela acompanha, ela sustenta, ela desdobra ou redobra sem trincar (salvo exceções notáveis, de Stroheim a Eisenstein, deste a Welles etc.). A temporalidade fílmica se apresenta, então, como mais ou menos mimética da consciência banal de um tempo homogêneo e contínuo. A cena é naturalizada. O artifício disfarçado de natureza. Essa concepção do tempo vivido é, bem entendido, uma construção imaginária – e o fato de que o tempo cinematográfico vem de alguma forma confirmá-la, redobrá-la, apenas sublinha sua dimensão fantasmática: sem dúvida nós nos imaginamos ou nos sonhamos imersos em um tempo contínuo, um fluxo que nos carrega, nos atravessa, sem cortes, sem rupturas – êxtase, essa raridade, é justamente vivida e narrada como saída do fluxo temporal, suspensão do tempo, “pequena morte”.5 A postulação de unidade e de continuidade em jogo na consciência do tempo, o aparamento de qualquer efração, o preenchimento de qualquer fratura estão ligados ao mais poderoso dos fatores de recalque: a ruptura maior provocada pela morte. A análise está do lado da morte, a síntese, do lado da vida – é precisamente isso que a invenção do cinema vai demonstrar, é esse topos que ele vai por muito tempo validar, retomar, instalar nos sistemas de pensamento. Os jump cuts forçam, ao contrário, uma consciência da fragmentação: a temporalidade fílmica entra em conflito com a consciência subjetiva do tempo como fluxo. Dois. Naquilo em que recalca a análise fotogramática pela síntese do movimento (chave, à época de seu nascimento, de sua regulagem técnica e de sua visada ideológica),6 o cinematógrafo coincide quase idealmente com o sentimento “natural” da vida como movimento e da duração como contínua. A descontinuidade fotogramática é recalcada pela projeção, que sintetiza e unifica em uma mesma impressão de fluxo o que havia sido cortado pela filmagem (a impressão de continuidade é, aliás, uma das dimensões da impressão de realidade baziniana – Bazin que falava da “roupagem sem costura da realidade”). A análise, a fragmentação, a divisão, a separação dos traços, tudo isso, tornado tão obsessivo no mundo que é o nosso,

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é, no entanto, sempre o objeto de uma imensa negação: a tela da consciência unifica os traços e os instantes, cobre uns com os outros, os alisa. O sucesso do cinema demonstra, à sua maneira, que, se a síntese é ilusão, é essa ilusão que é desejada, que é preferida à percepção das descontinuidades, dos conflitos, dos rasgos de um mundo e de uma consciência em farrapos que a análise traz com ela. A análise desfaz, desconstrói, desloca, interrompe, separa, distende… Ela distingue, ela opõe, ela coloca em jogo a superfície movente das similitudes e das diferenças. A síntese unifica. Ora, há séculos, sem dúvida desde a invenção da cena ou da representação como momento separado, pedaço de mundo que olha o mundo e o imita, a síntese domina. Ao espectador, qualquer que seja o princípio de fragmentação que queiramos atualizar em cena, o que se propõe é a junção, a condensação, a unificação de elementos separados e heterogêneos (corpo, fala, palavra, gestos, músicas, sons, luzes) numa unidade artística dialética que supõe superar cada uma de suas partes, integrando-as e apagando sua disparidade inicial.7 O cinema apenas retomou e confirmou o trabalho unificador da cena teatral. Mas ele a dobrou sobre “a vida”, o que o teatro não faz. A síntese cinematográfica produz um efeito de natural. O movimento do cinema imita o movimento da vida. Sua mímesis é dinâmica e sintética. E o descontínuo parece provocar uma ruptura no vivo (o salto cortado/interrompido em Salve-se quem puder, a vida, 1980, de Godard). A dança macabra é ela mesma interrompida, como são fendidos e não ligados (descontínuos) os sobressaltos do esqueleto. Através do descontínuo, do trepidante, do fragmentado, do não ligado, é a morte que chega. Essa morte, que no entanto é sempre denegada no próprio acontecimento da fragmentação espetacular-mercantil do mundo, não é consciência da fragmentação. A redução das durações atormenta precisamente o tempo da consciência. O fragmento faz sentir o fragmento, o faz suportar, quebrar, destruir, ele não oferece os meios de o apreender, de nele entrar, ele até mesmo impede essa entrada, essa projeção, ele impede toda implicação. A pulsão escópica é preenchida de relâmpagos e clarões, ela não mais se engaja naquilo que contorna sua satisfação, que a coloca em perspectiva e a elabora. O mundo que nos é projetado não é mais uma superfície de projeção. Ele não nos promete mais uma interioridade mais

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7. Observação banal: a maior parte do que é pintado há séculos e séculos é feita de cores aplicadas sobre uma superfície: os pigmentos podem ter origens distintas (minerais, animais, vegetais), mas nem por isso têm capacidades colorísticas muito diferentes. Não é o caso da representação no teatro, que combina elementos fortemente heterogêneos.


8. Essa denegação é apagada em um certo número de filmes do cinema dito experimental. É o esqueleto que é mostrado, trabalhado enquanto tal. Penso no trabalho de Yervant Gianikian e Angela Lucchi-Ricci, em que acontece de o fotograma tornar-se o sujeito, o desafio, o traço heróico e derrisório, e que se joga entre algumas perfurações rasgadas, o destino frágil da imagem: por exemplo, Transparences, 8 min. (1998).

ou menos labiríntica, ele nem mesmo nos ameaça mais com um aprendizado perigoso – a floresta de Siegfried, a Jornada tétrica (Wind across the everglades, 1958, Nicholas Ray). Não há nada a lamentar: esse tempo desfeito não é mais aquele da subjetividade tateante, mas sim o do controle. Saída do cinema. Pois a potência do cinema é a ligação. O movimento cinematográfico representa a liga da vida. E a analogia religa, como a semelhança liga um ao outro o mundo e seu “reflexo” cinematográfico. Movimento e reflexo. O que é feito do corte, do raccord, nesse reino da ligação? Analogia, reprodução analógica do mundo, análogo: o cinema todo está aí, toda a sua invenção, todo o seu sistema, toda a sua potência imitativa e descritiva (ver adiante, § 11). Mas a imitação das formas não é nada sem a imitação do movimento. O que é vivo se move, e imitá-lo é reproduzir seu movimento pelo movimento. Ligado, alisado. A semelhança sem o movimento não produz a perfeição da ilusão: é toda a distância entre fotografia e cinema. Se tivéssemos que duvidar da continuidade de nossas sensações, da fluidez de nossos estados de consciência, o cinema estaria aí para representá-las para nós. No entanto, quando a fita de película primeiramente passa pelo grifo da câmera, e em seguida pelo do projetor, ela avança apenas por interrupções. Saltos, rupturas, ocultações (a cruz de Malta), interrupções caracterizam o transporte do filme nas tomadas assim como na projeção. O estado inicial do filme diz respeito ao mesmo tempo à descontinuidade, à fixidez dos fotogramas e ao movimento interrompido do esqueleto fotogramático, ao não ligado. Uma operação de denegação se põe a trabalhar no lugar do espectador,8 que nada vê da cadeia inerte dos fotogramas, da agitação trepidante da fita no projetor, que crê que o movimento das imagens é liso e contínuo “como a vida”. Sei muito bem, mas mesmo assim... O cinema é a vida, diz o slogan publicitário dos anos 80. E “a vida” é o movimento mais a ligação. O cinema confirma a vida como movimento da mesma forma que esta havia inicialmente confirmado o cinema. Looping. Suposição de uma coerência e de uma continuidade por oposição ao descontínuo, ao fragmentário, ao despedaçado, que passam por características do corpo morto. O que é denegado nessa analogia entre ilusão de sentidos e ilusão cinematográfica é o fato de que a máquina cinematográfica adiciona

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à realidade descontínua do mundo sua própria descontinuidade, a começar pela do quadro, que recorta na “roupagem sem costuras da realidade” fragmentos circunscritos, isolados, condensados, separados. À denegação subjetiva da descontinuidade, o cinema acrescenta uma denegação suplementar. Ou melhor: ele dá uma forma precisa à denegação do descontínuo própria a todas as ilusões (“O mundo é liso e sem contradições”). Três. A montagem por jump cut é uma montagem que se mostra. O corte não é mais mascarado pelo raccord. Ele é marcado como descontinuidade, fragmentação. Ele é renúncia à ilusão de continuidade e de plenitude construída pelo engodo cinematográfico, ele é mesmo a sua denegação. Por mais ínfimo que seja o salto entre dois fragmentos do mesmo plano, ele continua visível. O jump cut se vê. (Quem julga que ele pouco se deixa ver mente para si mesmo, ou então supõe um espectador desatento, distraído.) O corte produz uma fenda, uma brecha na unidade da cena; e a junção de duas extremidades sem outra forma de raccord sublinha esta dilatação, ao invés de superá-la. O corte é revelado em sua nudez. O jump cut atua, então, como exibição do corte. Este jogo é datado: é com a generalização da montagem rápida (os clipes, as publicidades, os planos curtos ou muito curtos) que se instala nas televisões uma estética da abreviação. O tempo é caro, o telespectador apressado é um peixe rápido que deve ser capturado ao primeiro golpe de arpão, deve ser imediatamente pego na armadilha, numa cintilação de aparências que logo vem barrar e substituir todo impulso de projeção subjetiva. Barrar o imaginário, dominá-lo, impor a ele um ritmo respiratório. A pulsão escópica é literalmente agitada num shaker de efeitos visuais (cf. acima, § 2). O mundo é muito lento, muito pesado, ele deve ser aligeirado, esvaziado, dessubstancializado. A imagem digital e o virtual ainda não estão inteiramente aí, mas as formas de imagem-tempo antecipam seus efeitos de aceleração e de virtualização. Não ignoro, mais uma vez, que a invenção do cinema traz consigo essa promessa de virtual. Aligeirar o mundo fazendo-o tornar-se imagem. Controlar as durações abreviando o tempo real da natureza, das coisas, dos seres vivos. Ver Paul Virilio.9 Mas eu diria que desde sua invenção o cinema abriga uma tensão entre o sonho (ou o fantasma) de uma virtualização do mundo e a inscrição de um traço material, resistente, durável:

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9. Seria preciso citar tudo do inventor da “dromologia”, que pensa as evoluções de velocidades na história. Cf. Vitesse et politique: essai de dromologie, Éd. Galilée, 1977; La machine de vision: essai sur les nouvelles techniques de représentation, Éd. Galilée, 1988.


10. Abordei este tema em Voir et pouvoir, Verdier, 2004, e especialmente na introdução ao seminário Varan: “Cinema contra espetáculo”, publicado no catálogo Forumdoc.bh.2001.

a materialidade do traço fílmico que inscreve uma duração como resistência. Mesmo o “minuto Lumière” dura muito tempo. No interior do mesmo filme, da mesma tomada, do mesmo plano, entram em combate a impaciência e a febrilidade do espectador, o apetite de ver, os “olhos cheios” do curioso, da feira, das atrações, de um lado, e, de outro, o mergulho em um olhar fascinado, uma imagem absorvente, uma duração penetrante, uma matéria estranhamente concretizada em sua própria imagem, uma figura que se dá o tempo de encarnar o corpo filmado – todas experiências que afetam o desdobramento do subjetivo. A história do cinema será a dessa luta entre frustração e satisfação do desejo de ver, entre escritura e espetáculo.10 O jump cut desempenha seu papel (menor) na panóplia das abreviações. Mas é a soma de todos esses gestos – corte, elipse, elisão, atalho, aceleração… – que exila a representação do mundo e das figuras humanas em um novo mundo desmaterializado, desrealizado, virtual. Talvez o que ocorra aí seja alguma coisa como uma fadiga humana diante do real (que sempre amedronta). Mas, também, a mercadoria se apossou da figura humana, da face humana, do rosto. A alma é caçada pelo modelo. A fotografia e o cinema são as armas dessa abordagem publicitária. A classificação se tornou a norma. A classificação abrevia, simplifica, classifica, indexa, reduz a real ambigüidade de qualquer rosto. Por muito tempo, o cinema jogou com a ambivalência dos corpos e das figuras que filmava. Ambivalência indecidível. Cary Grant? John Wayne? Essa ambivalência era uma qualidade flutuante, inapreensível, perturbadora, não assinalável e não calculável. Era redobrada, de alguma forma, pela ambigüidade intrínseca da analogia cinematográfica: com efeito, a semelhança é apreendida, mas sempre em uma duração que ao mesmo tempo a confirma e a desfaz, ao submetê-la à passagem do tempo, que é usura, modificação, alteração. O mesmo no cinema já está sempre em mudança. O mais fixo dos planos não é fixo: nele, o tempo circula. E eis que esse prodígio de complexidade na representação da figura humana que o cinema soube cumprir (digamos, Jules Berry em Le crime de monsieur Lange, 1936, de Renoir) tornase repentinamente problemático. O tempo da inscrição, que é também o da transformação, é julgado muito longo, demanda muita atenção (ou muito abertura) para ainda ser aceito. A

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ambigüidade fundamental da imagem cinematográfica (analogia mais duração) não pode senão esperar o gozo que demora a chegar, não instantâneo, diferido; a dúvida, o embaçado, o ambíguo, o desregramento, a perplexidade, o próprio suspense reclamam muito tempo de visão e de leitura. O modo de leitura da informação jornalística se impõe. Rápida, clara, objetiva, incontestável (tanto quanto possível). A mercadoria precisa do ato (da passagem ao ato). Vejo aumentar um cansaço do espectador (do neo-espectador) diante da representação da figura humana em sua ambigüidade, em sua dificuldade de se conformar à norma – um cansaço diante de um cinema não promocional, que não tem nada a vender porque seu desejo está alhures. Ele se traduz, esse cansaço, nas mídias, nos jogos televisivos, nas publicidades, por uma impaciência, uma pressa em maltratar a figura, em desfigurá-la. A figura humana tornou-se o objeto da raiva das imagens. Sabemos muito bem disso, e nossa indignação é apenas o sintoma; os corpos feridos, supliciados, assassinados, ofendidos são as esmolas das imagens propagadas pela mídia. À ofensa suportada pela figura se acrescenta a ofensa da figuração. Quatro. A automarcação do corte pode aparecer como reivindicação de “verdade”. O filme é um filme que o diz e o mostra. O jump cut designa o filme como artifício, operação de montagem. Nisso, é verdadeiro. Ele rompe com o sistema da ilusão. Essa ruptura funciona como efeito de verdade. Observo apenas que os efeitos de verdade e de desconstrução do engodo são, no cinema, da mesma ordem do engodo: o jogo da ilusão só pode ser denunciado do próprio interior da ilusão (teatro no teatro, livro no livro, filme no filme… ver Shakespeare, Borges etc. – mas também O homem da câmera, de Dziga Vertov).11 O efeito de continuidade e o efeito de descontinuidade pertencem, ambos, a uma retórica da ilusão. Ao menos o primeiro não se faz passar por uma marca de veracidade. Cinco. Retornemos à ilusão ligada à inscrição verdadeira. Para Bowling for Columbine, Charlton Heston e Michael Moore verdadeiramente se encontraram. O encontro foi filmado. Tudo isso é visível no cinema, lugar da ilusão. Na ilusão, há portanto um nó de verdade. É sobre a inscrição verdadeira que se apóia e se funda a cine-crença. O que vemos, no grau zero, é sempre inscrição verdadeira: houve – verdadeiramente – uma cena constituída pela presença simultânea dos corpos e das máquinas.

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11. Cf. “L’avenir de l’homme”. In Voir et pouvoir, op. cit.


12. No original, “Mises ensemble en scène”. O autor joga fonética e conceitualmente com a noção de mise en scène, fundamental para o seu pensamento, e que em francês comporta, pelo menos, uma tripla articulação de sentidos entre o que é encenado, quem encena e o próprio ato de encenar (diante e atrás da câmera). Remetemos ao verbete “Mise en scène” do Dicionário Teórico e Crítico do Cinema, de Jacques Aumont e Michel Marie (Ed. Papirus, 1999), para uma melhor compreensão da profusão de sentidos posta em jogo na utilização do termo. Nesse dicionário, “mise en scène” foi traduzida por “direção”. (N.T.)

13. Sobre esse lugar do espectador nas representações clássicas e a moral política dos séculos XVII e XVIII, leremos La souffrance à distance, de Luc Boltanski, Folio Essais, Gallimard, 2007 (1a ed. 1993).

Colocados juntos em cena.12 A tomada cinematográfica registrou essa co-presença. É ela que funda nossa crença na ilusão que todo filme fabrica: se isso foi filmado é porque havia, ao mesmo tempo, corpos e máquinas. Impossível pensar diferentemente, a não ser que passemos à imagem de síntese. A relação é um fato, a inscrição é seu modo de ser. A partir desse embasamento da inscrição verdadeira, a crença numa situação, nos personagens etc. pode se desenvolver. Quando se corta na representação dessa situação de conjunção ou de relação entre corpos e máquinas, ou esse corte não funciona como ruptura, mas como costura que mascara a descontinuidade carregada pela operação (é o raccord clássico), ou então esse corte provoca uma ruptura e essa ruptura é perceptível (mesmo se ela se quer ínfima), e a cena aparece então como frágil, de pouca resistência, de pouca consistência. Se ela não se presta a isso, ela não impede a alteração. Ela aparece, portanto, como decomponível, ajustável. “Corto, logo sou… e você, corpo filmado, cena filmada, você não é soberano(a), ou, antes, você está apenas à minha disposição”. Há um desvelamento da artificialidade cinematográfica da situação filmada, mas, ao mesmo tempo, há sua fragilização, sua desrealização. Com a confissão do artifício, aparece a manipulação como possível e legítima: o controle da situação. O espectador torna-se testemunha ou juiz, está menos implicado porque a ilusão faz como se ela não mais o fosse. Oscilação entre um lugar de implicação (ilusão) e um lugar de controle (confissão da fabricação). Seis. Ora, os cortes, as maneiras de cortar e de fazer raccord não são a-históricos. Seria preciso escrever uma história do “Corta!”. O que se pode dizer é que as sociedades organizadas em torno do capital mundializado entraram globalmente na era do controle (mas já: Mabuse, Fritz Lang, 1922). Entrevejo a possibilidade de uma convergência ou de uma coerência, em todo caso, uma sincronia entre a generalização dos procedimentos e das funções de controle nas sociedades contemporâneas e o exílio que força o espectador para fora de seu lugar de implicação, que o coloca num lugar de controlador, de onde ele pode julgar do exterior e não se encontrar ele mesmo em julgamento.13 Volto a dizer que esse exílio está ligado à redução dos dispositivos de representação à sua única dimensão espetacular, que supõe não implicar nada além da pulsão escópica, nada mais, e nada, por exemplo, de uma eventual elaboração imaginária.

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O raccord como negação do corte pertence a um momento histórico em que o cinema era plenamente para o espectador o encontro da ilusão, a colocação em jogo da crença. Sempre há ilusão, sempre há crença, mas os enunciados audiovisuais (sobretudo) e cinematográficos (da mesma forma) são mais trabalhados atualmente do que antes por uma obsessão do real, uma petição de realidade, como se houvesse exigência ou necessidade de validar a cine-crença por uma referência manifesta, explícita, denotada, indexada ao real. A ilusão não poderia mais funcionar, a não ser que se garantisse como uma realidade não simulada. É verdade que nosso tempo é o tempo dos grandes simulacros sociais: o espetáculo generalizado redefine o mundo como espetáculo, ilusão, mentira, não-realidade (cf. Baudrillard, baseado em Debord). Diante do qual as ficções trazidas pelos antigos sistemas (fábula, romance, teatro, cinema) aparecem bem fragilizadas, a ponto de deverem demandar ao documento, ao documentário, à atualidade, um reforço de credibilidade. É preciso, para que nela ainda acreditemos, administrar à ficção uma forte dose de realidade filmada (E a vida continua, 1992, de Abbas Kiarostami; mas antes dele, Alemanha ano zero, 1948, de Roberto Rossellini). Sete. O jump cut corta na continuidade do espaço-tempo da cena. Eu disse: todo ponto de montagem é um corte ao mesmo tempo no espaço-tempo da fita fílmica e no espaço-tempo da cena que ajusta à representação uma situação referencial (o profílmico).14 Podemos considerar a montagem clássica como a tentativa desesperada de impedir que as inevitáveis rupturas do tecido fílmico não rompam a continuidade do engodo necessário à continuidade da ação e da narrativa, à própria impressão de realidade. A cena profílmica permaneceria intacta (imaginariamente) em sua tradução filmada, ela mesma reduzida e redutora. Mas o que é alterado, ou negado, pelo jump cut é inicialmente a hipótese de que haveria um tempo autônomo da cena, que o encontro corpo-máquina se desenvolveria em uma temporalidade autônoma, que ela teria “sua” duração, duração específica, única, orgânica que, em seguida, a montagem deveria, de uma forma ou de outra, e mesmo reduzindo-a e reformulando-a, respeitar e refletir. O tempo “real” da ação é certamente quase sempre resumido no cinema.15 Mas essa aceleração, a não ser que seja

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14. No cinema dito documentário, em que a regra é não modificar e menos ainda inventar o cenário do lugar onde gravamos, em que se trata mesmo de mostrá-lo tal qual é (suplemento de verdade), tudo aquilo que aceita a chegada de um filme, de uma câmera, de uma equipe é profílmico. Não há mais diferença entre o observável e o profílmico. Existe, ao contrário, um salto entre profílmico e filmado, na própria medida em que aquilo que está “diante” da câmera vai reagir a essa presença da máquina. O profílmico é ativo, ele “profilma”. 15. “Filmar o trabalho” é sempre espetacularizá-lo, quer dizer, acelerá-lo ou elipsá-lo. O ceramista precisa de horas para tornear e cozer sua cerâmica, o sapateiro para fazer seu sapato, e nem o filme nem o espectador estão em condições de esperar tanto tempo. A narrativa abrevia.


16. O “senso comum” citado por Boltanski a propósito de Adam Smith, op. cit.

caricatural ou paródica (aceleramentos por trucagens), impõe-se como regra permanecer nas bordas do verossímil – quer dizer, da experiência das durações das quais todo espectador dispõe.16 Eu sei, nós sabemos, qual é o tempo necessário para subir uma escada, atravessar uma rua, abrir uma porta, visitar o museu do Louvre (Bande à part, 1964, de Godard) etc. (Sem falar da aprendizagem de uma língua, da influência de um luto, ou de uma gestação… todos esses, mais uma vez, tempos incompreensíveis, e que são representados pelo cinema apenas por abreviações.) Trata-se, portanto, de mentir para que possamos acreditar numa ilusão de tempo “verdadeiro”. Que o espectador se veja na ilusão de uma temporalidade referencial que ele não controla, na célula temporal da qual ele é o convidado. Sem poder perturbá-la. Dito de outra forma, que a autonomia e a liberdade temporais da cena, reconstruídas pela montagem, ofereçam ao espectador um sentimento de autonomia e de liberdade. O raccord clássico, salvando a ilusão de continuidade, salva também alguma coisa da liberdade do espectador, de sua hesitação, de sua possível errância. A temporalidade da cena filmada se impõe sem se impor. Ela apresenta o efeito de ser aberta, flutuante. Um plano que dura, por exemplo, pesa a princípio sobre mim como um constrangimento, e porque dura, esse plano se abre em seguida à minha presença e me deixa habitá-lo com minha fantasia, que pode ser também de dele sair imaginariamente, de dele me evadir. O filme fabrica uma célula que se abre se ela dura. Oito. O jump cut rompe, portanto, com a ilusão de uma realidade referencial da cena (que supostamente dispõe de uma autonomia e de uma temporalidade próprias). Essa ruptura é geralmente explicada (ou justificada) como resposta prática, pragmática, ao problema de uma (boa) gestão da duração e do sentido. É a dimensão de gestão (de gerência, diz Marie-Pierre Duhamel-Muller) do jump cut. Geramos a duração, geramos os corpos e as falas filmadas. Isso se aplica também às variantes do jump cut: breves planos negros, fusões, encadeamentos, soft cuts, com a importante nuance de que todas elas tentam restabelecer alguma coisa da doçura (softness) do raccord clássico, sempre mantendo o princípio de um controle visível enquanto tal. Compreendamos: toda montagem é controle. Como toda filmagem, mesmo “documentária”, é mise en scène, alteração, artificialização. Vimos quanto o raccord clássico trabalha para

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mascarar o corte que o sutura. Ora, este corte é a marca da escolha que foi operada, da rejeição ou da conservação de tal ou tal parte dos elementos significantes. A escolha foi feita, mas a operação que a efetuou é velada por um raccord. A onipotência do cineasta, a do produtor, do montador, a do próprio filme como organismo que tem suas exigências tornam-se pouco visíveis, aparecem apenas como encobertas, enterradas. O raccord clássico não atribui ao corte a carga da intenção. O corte não corta, a ruptura não rompe etc. Essa preocupação da ilusão me parece concernir ao próprio ser do cinema, à sua razão última. Se vejo um filme na ilusão de uma liberdade de escolha, de uma flutuação de significações, de uma errância das destinações, posso me enganar, ser enganado, sem dúvida, pois toda escolha é cálculo, controle, estratégia narrativa, mas esse próprio erro me dá a ilusão de que há liberdade no percurso do espectador. Se o raccord sem ilusão me indica que tal postura, tal seqüência de frases, tal momento de presença do corpo filmado, tal duração foram escolhidos não apenas para mim mas com a intenção de me fazer saber que o foram, de me fazer saber que me apresentam “o melhor” da coisa filmada, que se seleciona em meu nome e para me proteger de qualquer contrariedade (e, é claro, do mínimo passo adiante), que me poupam daquilo que um autor, um responsável, um controlador terá julgado não interessante, ou supérfluo, ou indigno de mim, não é apenas a matéria fílmica que me aparece manipulada (o que ela sempre é, volto a dizer), é meu livre-arbítrio de espectador. Alguém (quem?) escolheu no meu lugar. É claro que este é sempre o caso (quando o autor da obra não sou eu mesmo), mas nem sempre é o caso de me fazer saber disso, e dessa forma peremptória, pois o que me dizem ao significarem algo para mim com um signo sem ambigüidade (é isto o jump cut) é que já não tenho mais, de forma alguma, a possibilidade de escolher por conta própria, de me interessar ou de reter tal ou tal instante, que já não sou mais livre para escolher esse signo, essa forma, esse intervalo, na floresta da obra. Meu caminho é balizado. Basta apenas que eu siga o guia, o adestrador. Um destino de cão adestrado que faz por onde horrorizar o cinespectador. Sempre houve no cinema um combate entre vontade de controle e demanda de liberdade. Os poderes (de todas as ordens, a começar pelo do cineasta) se preocupam em controlar

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17. No original, “émissions audimatisées des télévisions”. O neologismo utilizado pelo autor se refere ao Audimat, um equipamento conectado à rede telefônica francesa que permite medir a audiência de diversos canais de televisão. No Brasil, o nome desse equipamento é menos conhecido do que o do serviço que o utiliza, daí a opção por abrasileirar a tradução, recorrendo a um termo já amplamente incorporado à nossa língua – ainda que mais como sinônimo de “grande audiência” do que de “medição (ou controle) de audiência”. (N.T.)

os espectadores, suas expectativas, seus benefícios afetivos ou simbólicos. Existe um marketing social da indústria do cinema, que culmina evidentemente nas emissões controladas pelo Ibope das televisões.17 E – para os espectadores – existem milhares de obstáculos a essa vontade de controle. O espectador é como a criança indisciplinada, que não quer escutar as convocações à ordem. A sessão de cinema, por sua própria duração, é sempre a floresta dos caminhos que não levam a parte alguma. Percorrer um ou outro desses caminhos sem finalidade, sem eficácia, é, com efeito, experimentar a conduta conhecida como tentativa e erro, que é uma conduta estranha, em que cada passo corre o risco de se distanciar dos caminhos construídos. A liberdade do espectador de cinema precisa se arriscar em formas que agem sem enclausurar, enquadramentos transbordantes, de durações que se dissolvam lentamente. Pequenas causas, grandes efeitos, eu dizia. A maneira de cortar e de unir dois pedaços de filme toca a questão da liberdade do espectador. Sei muito bem que essa montagem é a escolha de um outro (de um autor), mas mesmo assim posso desejar fazê-la minha, me apropriar dela, jogar com ela como um jogador lança de volta as cartas que recebeu. Isso supõe o encontro do jogo. Do jogo da ilusão. É claro que o jump cut desarticula o tempo referencial da cena, do encontro que se tem sob o signo da inscrição verdadeira. O tempo prescrito pelo jump cut se apresenta como um tempo adaptável, lábil, dobrável, conformável. À disposição do criador. Um tempo miraculosamente cômodo. Cômodo para gerar o tempo dos outros – ao representá-lo como redutível, comprimível, sujeito a todo tipo de uso e abuso. Na montagem por raccords clássicos, persiste a ilusão de que se constrói um em-si do tempo, certamente construído pela temporalidade da montagem fílmica, mas que se abre a um tempo da ficção, um tempo no qual se pode crer, no qual o espectador é considerado como crente. O corte no plano, narração em off, narrativa em off, sem delicadeza para com os corpos filmados, este corte ataca a hipótese de um tempo que a tudo englobasse, que nos acolhesse (e talvez nos engolisse). Com o jump cut, o tempo se mostra como uma variável ajustável. Já nos aparece significado como se tivéssemos domínio sobre ele. Menos medo, menos desconhecido, mais ficção científica. Evidentemente, em toda montagem entra um pouco, ou muito, de vontade de poder. Mas é da ordem dos poderes da vontade

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também saber nem sempre se mostrar. A prática cinematográfica nem sempre sublinha o registro da composição voluntária e consciente. Um filme é feito de brechas por onde sopra o vento do real, a corrente de ar do inconsciente. A ilusão não tem necessidade de ser denunciada para atingir seu fim, a irrupção de um real que a destrói e ao mesmo tempo a sacraliza. Poderíamos até nos perguntar – talvez – se a desconstrução da ilusão não tem por finalidade impedir ao espectador a possibilidade de tocar como reais os limites do engodo. É quando vemos que não vemos, quando escutamos que não escutamos. Essa situação não é simulável. Ela só é formadora porque surge de maneira involuntária (como a memória involuntária de Em busca do tempo perdido, não seria nada, nem existiria, se fosse calculada e comandada). Nove. A questão do tempo atravessa o gesto cinematográfico como atravessa a relação do espectador com o filme. Portanto, ainda é pouco pensável que a temporalidade artificial da obra anule e se substitua totalmente à temporalidade artificial do mundo. Ela se compõe com ela. Há sempre um traço ou um fantasma de temporalidade referencial nas representações, elas mesmas temporalizadas. O tempo do filme remete ao tempo do espectador, que remete ao tempo vivido fora das salas de cinema, do qual a cena representada sempre carrega um traço. É no que diz respeito às durações, mais do que às extensões, que seria preciso articular a noção de referente. O tratamento das durações fornece modelos, forma ou reforma maneiras de apreender o mundo. É diretamente político. Essa questão do tempo compartilhado entre filme e mundo, por um lado, espectador, personagens e narrador, por outro, tornou-se atualmente uma questão crucial. A guerra é no tempo. O pensamento do tempo e a gestão do tempo. Formas de tempo, modelos temporais se opõem uns aos outros. Nada de surpreendente que o inimigo dos mercados seja o tempo incontável. Tanto para os negócios quanto para a mídia. O tempo lento das metamorfoses (o morphing é sempre acelerado), dos amadurecimentos, dos apodrecimentos, o tempo orgânico, que é ao mesmo tempo infra e ultracontabilizável, eis que não é “gerável” nem pelo espetáculo (acelerações, fusões…) nem pela troca mercantil (redução e rotação dos estoques etc.) nem pela mídia (o factual). Mas o tempo subjetivo é também impossível

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de enquadrar, incomensurável – o tempo dos órgãos como o dos circuitos neuronais, o tempo do inconsciente (?) como o do pensamento ou da meditação. Essas temporalidades flutuantes, elásticas, invisíveis, na maioria das vezes de uma lentidão extrema, se opõem à temporalidade das trocas mercantis. Sem caricaturar, deveríamos poder opor dois slogans: Tempo é dinheiro e Tempo é experiência. Ora, cortar e unir é trabalhar a forma do tempo. É articular o tempo referencial (o ator atravessa uma rua, um terreno baldio, um deserto…) ao tempo cinematográfico: quantos segundos, minutos pode ou deve durar essa representação de uma travessia? Vê-se bem que se compõem dois registros temporais, sendo que um é a tradução sensível do outro. É raro que eu me detenha na beira de uma rua para ver as pessoas atravessarem. Ainda mais raro no caso de um deserto. Mas posso fazê-lo no cinema. Essa tradução de uma temporalidade em uma outra dá ao tempo filmado uma forma sensível que o espectador pode experimentar, na qual ele pode ser tomado, que ele pode vivenciar. Mas essa nova temporalidade, esse tempo traduzido cinematograficamente não é medido para abolir a temporalidade da situação referencial: evocála, sim, fazê-la sentir, transportar para ela o “clima”, o suspense, a forma, mas não riscá-la da própria experiência do espectador. O tempo vivido é um fantasma que assombra o tempo espetacular. O qual pode, ao contrário, partir a experiência, esmigalhá-la, desqualificá-la. É o que se passa com as reformulações temporais como as do zapping, planos hipercurtos (2, 3 segundos), do jump cut, do esfacelamento do espaço e dos pontos de vista... Uma parte maior das formas trazidas pelos fluxos audiovisuais. A televisão apenas difunde as formas, nos acostuma a elas, torna-as familiares para nós e como que naturais. E a mais poderosa dessas colocações em forma é a do tempo. Toda uma fragmentação/aceleração desmesurada tornouse o comum não apenas dos clipes, mas das ficções, cada vez mais, das revistas, dos jogos etc. A duração média de um plano de um filme padrão na indústria (cinema e televisão) passou, em alguns anos, de 7 segundos para 3-4 segundos. Já era curto, tornou-se flash. Corolário: o número de planos de um filme aumenta vertiginosamente. Nunca foi tão cortado. Há aí alguma coisa como um sintoma. Zapear furiosamente de um filme a outro, ou então ser zapeado pela montagem num mesmo filme,

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é evidentemente se condenar a nada encontrar; é então nada procurar, ou melhor, procurar sem nada considerar e não ser considerado por nada, o que é o mesmo que fazer da vontade de poder (“eu zapeio”) o objeto mesmo de um gozo tanatofílico (“eu sou zapeado: eu desapareço”). Quero que o jovem espectador veja “mais rápido” que o mais velho. Mas não será então para que tudo desapareça mais rápido? Dez. O cinematógrafo nasceu com o projeto de acelerar o mundo, de torná-lo mais leve, de virtualizá-lo. As primeiras projeções realizavam o antigo sonho de uma ubiqüidade perfeita: Moscou estava em Paris, Paris em Moscou. Projeções, em todos os sentidos. Projetava-se, nós nos projetávamos, nós éramos projetados. Explicitamente, e mesmo sem esperar Méliès, o cinema jogava com o mundo. A virtualização das matérias, dos corpos, dos espaços, que os tornava ao mesmo tempo reconhecíveis e manipuláveis, identificáveis e transformáveis, podia ser apenas uma das dimensões da operação cinematográfica, a mais lúdica – pois havia (se ouso dizer) a pressão da impressão de realidade. O espetáculo era acelerado, leve, sim, e o mundo como espetáculo. A parede demolida se erguia sozinha, certamente. Mas as folhas se mexiam nas árvores e era um milagre ainda maior. Até então, havia efeitos especiais nas cenas teatrais ou de cabarés. Mas nenhum mágico havia feito as árvores dos quadros ou das fotografias se mexerem. O cinematógrafo dos irmãos Lumière não triunfou como espetáculo fantasmagórico, mas como operação mimética. Contra o jogo de desmaterialização espetacular do mundo, o espectador, por sua vez, trazia uma exigência de referência a uma realidade, senão conhecida, ao menos suposta, imaginável, definitivamente aceitável. Antes de ser um estilo, uma estética, a noção de realismo no cinema remete diretamente à dimensão mimética, à analogia como tal. A coisa e a imagem da coisa se assemelham tanto mais quanto ambas estiverem em movimento. É por causa da semelhança que se pôde dizer (Barthes) que o representado não é o real. O cinespectador espera e deseja um lastro de real que funda a ilusão. Crer é, a princípio, crer no que é possível ou provável, depois no resto. A analogia cinematográfica trata sempre, num primeiro nível, do familiar e do comum: corpos e figuras humanas (imediatamente reconhecidas como tais pelos corpos espectadores), linguagens faladas, cenários, utensílios, animais, costumes etc. Ivan, o Terrível vive num palácio, ele tem

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olhos, braços, mãos... Cidadão Kane usa um bigode. Há uma banalidade ou uma ingenuidade antropológica no primeiro grau do cinema, que é bem precioso, que é essencial. Que assegura que possamos crer em tudo o que se segue, nos crimes de Ivan e no próprio Rosebud. Onze. A representação cinematográfica se distingue de todas as outras pela perfeição analógica de sua artificialidade. A imagem cinematográfica é uma imagem (não a cena teatral, por exemplo), mas ela se distingue de outras formas de imagem (pintura, fotografia) por sua potência analógica. É o movimento da vida que é representado. É a figura humana como viva. A questão da analogia é insistente. O cinema, arte da figura, arte figurativa, celebração do rosto (o close). Pode-se jogar com (deformações, transformações, desfigurações, máscaras, maquiagens, trucagens), mas a semelhança continua sendo a base da impressão de realidade e da figuração realista no cinema. Por trás do apagamento do rosto, flutua sempre o fantasma do rosto não deformado, quer dizer, semelhante, quer dizer, reconhecível. Por trás da máscara, o análogo. Concluo daí que em toda cena cinematográfica há uma tensão realista ligada à potência analógica. Podemos compreender essa tensão como a dificuldade dos corpos filmados em se deixarem virtualizar totalmente pelo cinema. O corpo e suas temporalidades, eu dizia; ele tem seus pesos, suas ligações e desligamentos, sua singularidade extrema, sua autonomia relativa, ele traz consigo sua liberdade. É, evidentemente, tudo isso que está em jogo no corpo filmado, e que continua em jogo no corpo filmado/montado. Há uma violência exercida sobre o corpo figurado quando o fragmentamos, quando o cortamos. O raccord clássico também serve para isto: para unir, quer dizer, costurar os pedaços de corpos separados pelas tomadas e pelo corte, mas que é preciso unir para dar a ilusão, sempre, de ter a ver com um corpo inteiro, não despedaçado, não fragmentado, não rachado. Essa preocupação da integridade do corpo não afetou a pintura, a escultura etc. Pensamos evidentemente em Picasso, mas antes dele em Goya etc. Por que essa diferença? Por que as Demoiselles d’Avignon, de Picasso, que sabemos terem escandalizado o olhar contemporâneo, bem poderiam ser ainda mais insuportáveis no cinema? Ou, em todo caso, mais estéreis? Tocamos aqui na

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questão da potência mesma da natureza analógica da imagem cinematográfica. Garantida pelo fato de que ela é produzida por uma máquina, essa analogia toma o poder e o guarda. O corpo filmado sempre se assemelhará a um corpo, ao corpo do espectador, todas as diferenças e singularidades subsumidas por um pertencimento e uma semelhança ligadas à percepção das formas de espécie. A figura humana é exemplarmente representada pelo cinema. Inquieta-nos que a figuração possa ir tão longe na semelhança, para o lado de um mais real, e não de um irreal ou de uma desrealização. O jump cut desfigura a figura. Ele intercala no centro do corpo (do rosto) uma brecha, um vazio, uma distância. Eu gostaria que essas figuras estivessem fundamentalmente em relação com a clivagem do sujeito, a esquizofrenia, a neurose... O problema é que elas estão, antes de qualquer outra significação, em relação com as modalidades dominantes de montagem dos estímulos em nossas sociedades mercantis (ver mais acima). A fratura tornou-se uma figura social. A desarticulação dos referentes, o esfacelamento das memórias são estratégias políticas.18 A colocação em (pequenas) peças substituiu a colocação em cena (mise-en-scène). A montagem ao mesmo tempo reflete e produz essa dissipação das relações, das formas, das durações, das experiências. Não é mais possível filmar, montar etc. sem tomar consciência e conhecimento das guerras em curso nas formas e na linguagem. Técnica e ideologia. As soluções, assim como as escolhas técnicas, dão sentido à história do cinema – que é a história do sentido que o cinema lê no mundo. Não é por mercê dos inventores que determinada fórmula técnica aparece, se difunde, se retira, mas em função de convergências, de interesses identificáveis. Trata-se (quase sempre) de desenvolver o mercado trabalhando conjuntamente no aperfeiçoamento do engodo e na amplificação do espetáculo. Foi preciso a obstinação de cineastas (Rouch e Brault) para forçar um fabricante de câmeras destinadas à ciência (Coutant) a desenvolver a 16 mm portátil sincronizável com um magnetofone; o conjunto, imagem e som sincronizados, para bobinas de 10 minutos, permitiu pela primeira vez filmar o corpo falante de não importa quem, não importa onde, não importa quando (nossa amiga Marceline Loridan, os armazéns de Paris, 1960, câmera na mão, travelling em marcha, som direto: Chronique d’un Été, 1961, Rouch e Morin). Hollywood

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18. Um exemplo: as deslocalizações (a ubiqüidade do capital e do trabalho) têm por objetivo, entre outros, fragmentar e dispersar essa memória operária, essa memória das lutas, que é essencial à consciência de si da classe operária. Quando as fábricas fecham, quando os operários se distanciam, quando as gerações não mais se cruzam nas lutas, apenas o cinema militante guarda a memória do que foi. É nos cinemas, nos cineclubes, nas projeções associativas, até mesmo nos festivais, que continuará se transmitindo alguma coisa da verdade do mundo.


19. Sabemos que a cinematografia da II Guerra Mundial foi feita com essas câmeras 16 mm não sincronizáveis com os gravadores sonoros. Ver Memory of the camps (1945), que coloca em cena a tomada do som direto no exterior com microfone fixo no tripé, e Let there be light, de John Huston (1946), em que o hospital militar foi, para algumas cenas apenas, equipado como estúdio. 20. Cf. “L’âge des aiguilles”. In Voir et pouvoir, 685-692.

21. Où est le passé, entrevistas com Michel Gribinski, Éd. de l’Olivier, 2007.

(ou Boulogne-Billancourt, ou Cinecittà) possuía todos os meios mas não havia vislumbrado nenhum motivo para fazê-lo: não era necessário filmar em 35 mm as ruas ou os campos reconstituídos em estúdio, com atores e figurantes. E a Bell Howell 16 mm à corda e com bobinas de 3 minutos atendia mais ou menos, ferramenta indestrutível, às necessidades dos cameramen de guerra.19 Obra de artesãos, o cinema direto inaugura uma revolução que não é técnica: filmar cada um em seu cenário, em sua fala etc.,20 eis o que confere sentido tanto à irresistível espetacularização das sociedades quanto à abertura da cena cinematográfica a todos, homens e mulheres comuns. Havia tudo isso na Éclair-Coutant. A cada momento, uma conjunção particular de técnicas e de formas (filmagem, montagem) permite utilizar o cinema como um sismógrafo de tensões ou de forças que trabalham o mundo, ou como um analisador de estados particulares do desejo de ver e ser visto, da necessidade de realidade ou de virtualidade. O cinema explora o tempo do cinema. Doze. A figuração do corpo humano pelo cinema implica sempre um contexto, um conjunto, um fora-de-campo. A figura humana está no meio. O corpo não é apenas uma forma, mas um centro, uma radiação. Filmar o corpo torna-se assumir a carga e, sem dúvida, também provocar ou fabricar essa radiação. O corpo filmado nunca está sozinho, mesmo que isolado na tela. Ele entra em conjunção com todos os outros corpos filmados e ausentes, mas também com os corpos filmantes e com os corpos espectadores. Há sempre corpos figurados no meio de corpos reais. A figura chama a relação, incita o fora-de-campo. Filmar o corpo é colocar em jogo todo um sistema de relações com outros corpos, reais ou imaginários, ausentes ou presentes. E cortar no corpo filmado é cortar em toda essa rede. “E como somos feitos de todos aqueles que, dia após dia, nos tornamos, como suas dores, suas perplexidades, suas expectativas são nossas, nunca acabamos de acertar contas com eles” (Pierre Bergounioux).21 Há, portanto, ao mesmo tempo, a forma da figura (sua dignidade, sua relação com as outras figuras, sua semelhança, sua particularidade) e o conjunto relacional como forma que engloba a forma corporal e lhe confere efeito e sentido. De um lado, desfigurar. De outro, desfazer. Desfazer o que foge. Que no momento em que o outro aceita ser filmado, se prepara, se dispõe, e assim, sem o saber,

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transforma a tomada em relação, que nesse momento mesmo em que se exerce a auto-mise en scène do corpo filmado, se manifeste também uma repugnância à onipotência do cinema, é essa contradição que é preciso pensar. Nós amamos o cinema documentário porque a permissão que nos é dada por aquela ou aquele que nós filmamos é livre. O jogo com o filme não significa nem submissão nem alienação. Mas essa dimensão de liberdade é anterior a qualquer acordo entre sujeitos, ela se inscreve no próprio corpo filmado no momento em que, filmado, ele ainda escapa da tomada. O corpo não é completamente enquadrável. Há ultrapassagem, desenquadramento. Apenas a duração da tomada autoriza o jogo fora do jogo do corpo filmado, sua plasticidade, seu movimento próprio, sua indisciplina. Cortar subitamente é cortar essa liberdade do corpo filmado de não estar completamente na tomada, no plano. A duração do plano é o que acolhe a fantasia ou o desequilíbrio do corpo filmado. Relação de forças. O corpo quando é filmado se transforma, é enquadrado, reduzido, aumentado, desproporcionado, retemporalizado, em suma, reescrito. Não sem incidentes nem resistências. São essas asperezas registradas pela máquina que dão todo o valor das tomadas, da inscrição verdadeira, a ponto de nenhuma tomada se parecer com outra. O corpo filmado tem a ver com acidente. O corpo é contradição, subversão. O cinema deve domesticá-lo. Esse adestramento nunca é desprovido de resíduo. Há tensão, degradação, excesso. E a forma maior desse excesso – a que também chamo de autonomia do corpo filmado em relação ao enquadramento regulado pela máquina – diz respeito à constituição de uma área de jogo, de extensão, que lhe seria própria. É porque há liberdade no corpo filmado. Autonomia quer dizer que tanto os gestos quanto as palavras do personagem parecem obedecer ao seu livre-arbítrio, à sua fantasia, ao seu inconsciente. A intervenção de um cortador que faz saltar a imagem e o corpo na imagem é então imediatamente legível como violência, até mesmo como violação: algo da colocação espontânea de um espaço-tempo e de uma formapalavra próprias a esse corpo filmado é destruído pelo gesto de corte que marca a pregnância de uma vontade exterior agindo no interior da cena. O que o jump cut faz é afirmar que há uma vontade superior à vontade do corpo filmado, ou ao que resta de vontade independente nele, à sua ordem como à sua desordem.

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O jump cut enquadra o sentido. Ele orienta, seleciona, escolhe, guia. O espectador, é claro. Mas também, em última instância, o próprio corpo filmado, pouco ou não “controlado” na filmagem e corrigido à mão na montagem. Montagem como revanche. É certamente no que diz respeito à palavra filmada cortada que tudo o que precede assume os prejuízos mais graves. A partir do momento em que percebo que a palavra montada foi triada no fluxo das falas filmadas, que certas passagens foram selecionadas, outras censuradas, e que a montagem me faz saber disso, não posso mais acreditar na ficção de uma autonomia do locutor, em sua dimensão de personagem; num instante desaparece o encanto misterioso ligado ao encadeamento de uma palavra a outra e de uma frase a outra, o que a psicologia chamou de associação livre. (Liberdade, ainda.) Ou a palavra representada (montada) me provoca a impressão de ser governada apenas pelo livre-arbítrio – e o inconsciente – do personagem, ou ela me faz saber que é controlada de fora da palavra por um montador que deixou vestígios. Não é a mesma coisa. No primeiro caso, mentira. Mas mentira fértil, que engana, sim, mas que ao mesmo tempo trabalha uma ilusão de espontaneidade e de liberdade com a qual podemos jogar, pela qual podemos fingir sermos tomados (“eu sei muito bem, mas mesmo assim...”). Não é isso o que esperamos de um ator, nas ficções cinematográficas, que ele nos faça acreditar que é ele que inventa seu diálogo, seus gestos, seus movimentos? No segundo caso, verdade estéril que diz o fato, e não o fazer. Sempre essa oposição entre o mundo do cinema (a ilusão, o engodo, a liberdade de errar) e o da informação (a verdade, o peso dos fatos, das palavras, das instruções). Dito isso, subsiste no interior da esfera cinema uma diferença maior entre a face “documentária” e a contraface “ficcional”. Compreendemos: os cortes e os raccords não têm de forma alguma o mesmo sentido num registro e no outro. Há uma convocação do referente no gesto documentário, uma implicação, um endereçamento que excede o que se passa em ficção. Os corpos reais e as identidades de referência continuam existindo fora dos filmes. Os destinos individuais, por mais transcendidos e exaltados que possam ter sido pela operação cinematográfica, persistem em continuar no mundo “real”. Esse mundo, sem dúvida ele mesmo informado pelo cinema (a começar pela ficção), se caracteriza ainda (e por um longo tempo) pelo fato de que as sanções, as

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feridas, a morte não são aí virtuais. “Corta!”, sim, mas com conseqüências do lado do sentido que engajam nossa consciência. Se fazemos filmes é porque eles circulam entre os homens deste tempo, alguns dos quais circulam em nossos filmes. Tradução: Oswaldo Teixeira Revisão: Irene Ernest Dias

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Referências BARTHES, Roland. BOLTANSKI, Luc. La souffrance à distance. Paris: Folio Essais/Gallimard, 2007 (1a. ed. 1993). COMOLLI, Jean-Louis. Analyse et synthèse. Images documentaries, n. 57-58 (2006) e n. 59-60 (2007). COMOLLI, Jean-Louis. Voir et povoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004. VIRILIO, Paul. Vitesse et politique: essai de dromologie. Paris: Galilée, 1977. VIRILIO, Paul. La machine de vision: essai sur les nouvelles techniques de représentation. Paris: Galilée, 1988.

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imagem : maria do cĂŠu diel


Os signos do real no cinema de Eduardo Coutinho fernando andacht Doutor em Filosofia pela University of Bergen, Noruega Professor associado do Departamento de Comunicação da University of Ottawa Professor colaborador no Programa de Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná

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Resumo: O trabalho aborda um paradoxo tão antigo como o próprio gênero documentário: é real a realidade depois de ser registrada em imagens e sons, e, mais ainda, depois de ser interpretada pelo realizador? Um profundo ceticismo sobre o sucesso do projeto estético cuja razão de ser é capturar de modo fiel a evidência material do “real afílmico” (Souriau) já virou lugar-comum entre críticos e diretores. Para ilustrar minha abordagem desse dilema, vou considerar em detalhes um exemplo da obra do respeitado diretor Eduardo Coutinho, Edifício Master (Brasil, 2002). Em seu filme, e na poética que pode ser construída a partir dele e dos comentários perspicazes do cineasta sobre os limites e possibilidades do gênero documentário, há uma tensão entre o que eu descrevo como index appeal dos encontros filmados e a certeza da impossibilidade de captar o real. Por meio da análise semiótica procuro demonstrar o efeito estético dos signos de existência ou índices no gênero, sem minimizar a subjetividade do olhar criativo. Palavras-chave: Documentário Reflexivo. Representação do Real. Estética Indicial.

Abstract: The paper revisits a paradox that seems as old as the cinematic documentary genre itself: how real is reality once it is recorded in images and sounds, and, more importantly, once it is interpreted by the filmmaker? Widespread skepticism on the success of an artistic enterprise whose very raison d’être consists in capturing as faithfully as possible material evidence from ‘the afilmic real’ (Souriau) has become a commonplace among practitioners and critics of this film genre. In order to illustrate my own approach to this dilemmatic situation, I will consider in some detail an example from the work of the highly regarded Brazilian documentarist Eduardo Coutinho, namely, Edifício Master (Brazil, 2002). In Coutinho’s films and in the poetics which can be reconstructed from the pithy and self-reflexive published statements of the director on the limits and possibilities of the documentary genre, there is a stark tension between what I describe as the index appeal of his filmed encounters, and his certainty of the impossibility of capturing reality in his work. Through a semiotic analysis I attempt to show the esthetic effect of the signs of existence or indexes in this film genre, without minimizing the subjectivity of the creative gaze. Keywords: Reflexive Documentary. Representation of the Real. Indexical Aesthetic.

Résumé: Le texte aborde un paradoxe aussi vieux que le genre documentaire: est-ce que la réalité est réelle après qu’elle a été enregistrée en images et sons, et davantage après avoir été interprétée par le réalisateur? Un profond scepticisme sur le succès du projet esthétique dont la raison d’être est capturer de façon fidèle l’évidence matérielle du “réel a-filmique” (Souriau) est devenu déjà un lieu commun parmi les critiques et les réalisateurs. Pour illustrer mon abordage de ce dilèmne, je vais détailler un exemple de l’œuvre du réalisateur Eduardo Coutinho, son Edifício Master (Brésil, 2002). Dans le film, et dans la poétique basée sur ce documentaire et sur les commentaires perspicaces du créateur sur les limites et possibilités du genre documentaire, il y a une tension entre ce que je décris comme l’index appeal des rencontres filmées, et la certitude de l’impossibilité de capturer le réel. À travers l’analyse sémiotique nous essayons de démontrer l’effet esthétique des signes d’existence ou indices dans ce genre, sans ignorer la subjectivité du regard créatif. Mots-clés: Documentaire Réflexif. Représentation du Réel. Esthétique Indicielle.


Capturar ou não capturar o real, eis o dilema do documentarista. Considerarei neste artigo um episódio de Edifício Master (2002), documentário de um dos melhores diretores do gênero no Brasil, e levarei em conta também as influentes visões do criador, suas considerações e sua autocrítica lúcida como parte de sua arte audiovisual. Em outro texto (ANDACHT, 2007), argumentei que a poesia oral da representação do real é inseparável dos filmes auto-reflexivos de Eduardo Coutinho; seu discurso público é um interpretante, isto é, um signo mais desenvolvido de seus filmes terminados como artefatos estéticos. Este é um exemplo do processo de signos artísticos: há um aspecto de acabado aparente, o qual se refere ao trabalho material, terminado, que contemplamos, porém há também uma busca interminável que é inseparável, como se fosse sua sombra, poderíamos dizer, que se relaciona ao crescimento do seu significado, da complexidade da criação estética. Meu objetivo é descrever uma tensão dupla. Por um lado, aquela que existe entre a seqüência do filme que analiso e alguns interpretantes que se desenvolvem, que tornam explícito o sentido daquele fragmento da realidade, o qual foi representado por Coutinho em Edifício Master. Por outro lado, considero que há uma tensão ontológica/epistemológica entre o significado do gênero desse filme propriamente dito e aquilo que criadores, como o diretor brasileiro mencionado, ou o ex-editor de Cahiers du Cinéma e também documentarista Jean-Louis Comolli (1995), descrevem como limitações intrínsecas, inclusive como a falha do gênero, qual seja, a impossibilidade epistêmica de transmitir o real. Vou descrever esse paradoxo como “o toque de Midas” desses criadores; em outras palavras, cada vez que eles filmam algo que estava no ambiente, que não foi especialmente criado, inventado ou escrito para ser filmado, este objeto que foi representado perde a sua condição, deixa de ser real e passa a ser mera ficção, não muito diferente em seu estatuto ontológico do material profílmico (SOURIAU, 1953) que foi elaborado para ser filmado em cenários, com personagens, atores e um roteiro. Utilizando o modelo triádico do significado de Peirce, argumentarei em prol de uma possível transmissão de significado sem maior perda de objetividade ou indicialidade. O fato de existir um propósito estético no documentário não necessariamente reduz, e menos ainda elimina o componente fáctico ou indicial deste

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1. Um argumento similar é apresentado de forma convincente por Carroll (1996: 224-252), de um ponto de vista da teoria cinematográfica.

2. Sigo a convenção de citar Peirce com a notação “CP, x.xxx” referindo-se ao volume e parágrafo em The collected papers of Charles S. Peirce (1936-1958).

gênero. Manter tal afirmação, como têm feito tradicionalmente os defensores do cinéma-vérité, implica argumentar implicitamente a favor de uma concepção dualística do significado, de um modelo no qual existe apenas o componente simbólico contraposto às qualidades e aos fatos. Estes perdem seu aspecto distintivo pela supremacia do inteligível, por causa da vocação interpretativa inexaurível do cineasta e também do público.1 Em oposição a essa visão cética, no que diz respeito aos elementos fácticos, quando estes são representados audiovisualmente por este gênero fílmico, argumento a favor da realidade irrevogável das relações – por exemplo, aquelas que existem, mas que também possuem um significado, e que Coutinho denomina “encontros”. Este é o termo que o diretor utiliza para descrever um componente-chave de sua poética, e que ele contrasta com as entrevistas padronizadas da televisão. O gênero documentário não está destinado a interferir no outro, nem a distorcer o real contaminando-o com subjetividade. Como qualquer outro signo, o que o documentário representa é a natureza relacional da ação dos signos. Esse processo criador de sentido opera desse modo tanto na vida quanto na arte. Não há mais profunda ou mais sólida realidade ou identidade além daquela que se desenvolve numa rede evolutiva de relações, nem existe uma autenticidade absoluta das pessoas que falam com o diretor perante a câmera, uma suposta condição ontológica de pureza que surgiria somente quando não há ninguém filmando essas pessoas. Afirmações verdadeiras e também mentiras acontecem sempre que há atividade sígnica, e isso não depende primariamente do fato de a interação estar sendo filmada ou não. Sobre um real que supostamente falha: o ceticismo de excelentes documentaristas Um documentário, na medida em que pertence a este gênero, é um filme cujo caráter distintivo resulta da prevalência de signos cuja função não é nem descrever (qualidades), nem explicar de modo geral (conceitos), mas simplesmente “forçar nossa atenção nisso” (CP, 3.434)2 como “uma experiência bipolar” (DiLEO, 2003: 93). Em termos técnicos, essa classe de representação audiovisual do real impõe ao espectador sua “agressiva obstinação isolada e sua realidade individual” (CP, 1.405) ou haecceity (CP, 6.318), a noção medieval do filósofo Duns Scotus – haecceitas – que

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foi recuperada por Peirce e transformada em uma de suas três categorias fundamentais de análise da experiência, qual seja, a segundidade. Esta categoria corresponde ao signo indicial, aquele que se encontra em uma relação física de contigüidade com seu objeto, a única classe de ação sígnica cujo modo de ser é a pura existência, em vez de uma possibilidade abstrata de ser, isto é, uma semelhança possível, imaginável (ícone), ou um regra geral de significado (símbolo). É claro, qualquer documentarista vai reivindicar, e com toda razão, que seu filme faz muito mais que simplesmente “denotar” ou referir-se aos seus objetos. Assim surge o debate clássico sobre a condição do real exibido nas representações audiovisuais. E será acaso o documentário uma construção ilusória, uma representação involuntariamente enviesada, inclusive um enganoso chamariz das coisas tais como elas realmente são, ou, pelo contrário, um registro fiel delas? Sem colocar em questão a afirmação dos documentaristas com respeito à presença de sua subjetividade em sua obra, argumento de que o objetivo de todo documentário genuíno, seu intuito institucional, é capturar a singularidade, a individualidade de seu objeto, de seu assunto. Tal função não é afetada pela ambição do filme de transformar seu objeto em uma reflexão sociopsicológica – Capturing the Friedmans (Andrew Jarecki, 2003) –, em um tipo local e tradicional – Nanook of the north (Robert Flaherty, 1922), Shoah (Claude Lanzmann, 1985) –, em uma reflexão poética – Janelas da alma (João Jardim e Walter Carvalho, 2001) –, ou em um manifesto de propaganda política no estilo dos filmes de Michael Moore. No centro da falácia que percebo nas reflexões dos documentaristas sobre sua própria arte, na sua poética do registro da factualidade, há uma confusão de algo que é diferenciado com nitidez na semiótica de Peirce, qual seja, a diferença entre “existência” e “realidade”, uma distinção que DiLeo (2003: 93) explica nestes termos: “Assim, para Peirce a haecceidade não é conhecida somente através da experiência, seu próprio ser é determinado pela experiência. A existência, conforme Peirce, é a totalidade daquilo que é factual, e tudo aquilo que existe é individual, já que a existência (mas não a realidade) e individualidade são essencialmente a mesma coisa” (CP, 3.613).

Alguns anos atrás, uma publicidade televisiva da marca francesa de tênis, Le Coq Sportif, usou o slogan “Le chant du corps” (O canto do corpo). Eu gostaria de parafrasear essa expressão e

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falar do canto indicial, para assim dar conta da especificidade semiótica dos melhores documentários, desses cuidadosos retratos da vida cotidiana, e da apresentação do si próprio que é feita através deles. Trata-se da música do índice. É possível postular um paralelo entre este empreendimento artístico e a pesquisa científica; nos dois casos, na ciência e no documentário, acontece uma atividade semelhante à caça (RANSDELL, 1979), uma procura obstinada do objeto, e nenhum esforço é poupado para encontrar a presa, que, neste caso, é a verdade. Nenhuma construção ou invenção vai satisfazer o caçador de índices cinematográficos, à exceção do melhor modo possível de capturar a transpiração semiótica do mundo afílmico, tal como este mundo acontece perante a câmera e o microfone. O paradoxo consiste em que alguns bem-sucedidos caçadores da realidade filmada, que conseguiram capturar sua presa, depois declaram, não sem amargura, ou com tom melancólico, que aquilo que eles caçaram não é aquilo que procuravam, que o objeto desejado fugiu no momento mesmo em que ligaram suas câmeras e começaram a interagir – ou como eles costumam expressá-lo, a “interferir” – com o mundo real. Chamo essa crença de “o toque de Midas” dos documentaristas: sua procura pelo realmente real parece estar condenada a obter apenas um pobre substituto fabricado, uma ficção ou simulação do que eles mais queriam representar, isto é, a vida tal como ela é, e não para o dispositivo técnico que a captura, mas para a vida mesma, quando a câmera não está presente. Este tipo de idéia neokantiana foi descrita por Souriau (1953) como o “afílmico”. Meu argumento é que bons documentários, como Edifício Master, têm sucesso em representar o real. Esta operação supõe a produção de uma relação, mas como escrevi acima, tudo o que alguma vez conseguiremos saber sobre o real, na tela ou fora dela, é relacional em sua natureza. Este fato é expresso metaforicamente por Peirce quando afirma o que, no início, aparenta ser um princípio idealista, mas na verdade trata-se da concepção semiótica e triádica de todo fenômeno: “Segue-se de nossa própria existência (que é provada pela ocorrência da ignorância e do erro) que tudo o que é presente para nós é uma manifestação fenomênica de nós mesmos. Isto não impede que isso seja um fenômeno de algo externo a nós, assim como um arco-íris é tanto uma manifestação do sol quanto da chuva” (C.P, 5.283).

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Conforme essa metáfora, todo signo é uma manifestação de dois elementos, de uma pessoa e também da resistência causada pela alteridade do mundo; o fato de o signo estar relacionado com a mente do emissor e a do intérprete não o impede de estar relacionado com o mundo que está fora da mente. Este é o princípio de percepção direta e mediada da semiótica triádica de Peirce. A música desolada do signo indicial perdido, exprimida por esses admiráveis criadores de filmes, é a conseqüência de manter uma concepção dualística e, portanto, reducionista da realidade, sejam eles conscientes disso ou não. Essa doutrina teórica é oposta ao realismo semiótico, e foi formulada por um pensador familiarizado com a teoria de Peirce, mas cuja análise da representação nunca teria sido aceita pelo semiótico: “Podemos vislumbrar [a realidade], mas nunca a alcançamos; o que alcançamos é sempre algum substituto dela, o qual algum pensamento anterior peptonizou3 e cozinhou para nosso consumo. Se uma expressão tão vulgar nos fosse permitida, poderíamos dizer que onde quer que a encontremos, ela já foi falsificada” (JAMES, 1963 [1906]: 109, grifos do original).

Não sustento a existência de algum tipo de influência direta da pragmática de William James nesses documentaristas, o que afirmo é que a classe de auto-questionamento dos seguidores do cinémavérité exibe mais do que uma leve semelhança de família, como a afinidade que há entre os jogos de linguagem de Wittgenstein, com respeito a essa tese da representação, que poderia ser descrita como um construtivismo radical. Esta posição teórica está relacionada ao anti-realismo epistemológico implícito na poética do documentário. De acordo com Saunders (1992: 63-82 apud TURRISI, 2002: 127), “o construtivismo pode ser definido como aquela posição filosófica que sustenta que qualquer assim chamada realidade é, no seu sentido mais imediato e concreto, a construção mental daqueles que acreditam que a descobriram e a pesquisaram”. Basta substituir “mental” por “fílmico”, e “pesquisado” por “gravado”, e temos o miolo da poética dos filmes factuais. Além de sua execução artística, considero mais exato descrever a arte do documentário não como uma invenção, mas como uma descoberta criativa, uma tentativa de juntar e organizar materiais indiciais, para fazer alusão, em termos semióticos, à clássica definição do gênero proposta por John Grierson em 1932. Isso é o fundamental a se levar em conta sobre o documentário enquanto signo, a sua forma de representar o que representa.

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3. Peptonizar significa dissolver a comida por meio (através) de uma enzima destrutora das proteínas, submeter o alimento a ação da pepsina ou de outros agentes capazes de digerir as proteínas.


O toque do rei Midas dos realizadores de documentários A seguinte frase de Jean-Louis Comolli (1995: 54) sobre a ausência de realidade do real uma vez que este foi representado é típica da auto-reflexividade deste gênero; é uma visão cética e anti-objetivista: “O cinema realmente produz a realidade que, por uma artimanha, parece mostrar. Porém é um engodo, a mordida da ficção, a isca da ficção... no documentário, a crença do espectador está garantida, de alguma forma, pela idéia de que a realidade existe”. Em uma das várias coincidências que tem com as idéias de Coutinho, Comolli (1995: 78) afirma que é seu “ouvir que constitui o centro do filme”, e propõe uma classe de autoconhecimento diferente, mais radical, como sendo o resultado natural do gênero documentário reflexivo: “O que acho interessante nas pessoas é que elas me trazem não só o que me atraiu nelas, mas também aquilo que eu ainda não sabia, aquilo que eu vou descobrir filmando-as e que é também sua própria forma de pensar o filme. (…) O filme funciona sempre como um tipo de agência reveladora [une sorte de révélateur]. O cinema não é uma imagem das coisas, ele cria outra imagem, diferente daquela que tínhamos. Isso é o que acontece com as pessoas que se viram e ouviram a si mesmas como nunca antes haviam se observado” (COMOLLI, 1995: 66, 70).

4. Todas as citações que seguem provêm desta excelente reportagem, salvo indicação em contrário, por isso apenas as páginas serão indicadas.

De forma análoga, o diretor de Edifício Master define o documentário como “o questionamento dessa objetividade de dar conta do real” (in FIGUEROA et al., 2003: 215).4 O seguinte comentário de Coutinho (216-217) salienta a importância da haecceidade nos seus próprios filmes, mas também introduz o fundamento de seu anti-realismo epistemológico: “Estamos sempre filmando encontros (...) É o ato verbal que é extraordinário. Um ato verbal que foi provocado, catalisado, pelo momento da filmagem, sem que houvesse uma deliberação consciente nem minha nem dela. Filmar (...) é provocar, é catalisar esse momento. Na interação que se dá no processo de filmagem é que nasce um grande personagem.”

Embora de aparência inocente, o uso do termo personagem revela uma pressuposição central da arte de Coutinho: filmar pessoas reais em circunstâncias reais não pode senão ficcionalizar as pessoas, fazer com que elas alterem sua história para um relato em um argumento factual filmado. E é na seguinte afirmação de Coutinho (215) que a concepção da representação como uma força peptonizante de William James aparece ainda com mais

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clareza, a pedra de toque da poética reflexiva, cética, da arte do documentário: “Uma reportagem (televisiva) se esforça para parecer objetiva e pretensamente mostrar o ‘real’. O documentário, ao contrário, se pauta pelo questionamento dessa objetividade, dessa possibilidade de dar conta do real. O grande documentário não apenas é baseado nesse pressuposto, como também tematiza essa própria impossibilidade de dar conta do que quer que se chame de real. Frente a esse ‘real’, todo documentário, no fundo, é precário, é incompleto, é imperfeito, e é justamente dessa imperfeição que nasce sua perfeição. O documentário é uma visão subjetiva sempre. O documentário é o próprio ato de documentar.”

Como pode uma das experiências humanas de maior proximidade com o outro, qual seja, a interação face a face, o “encontro” que é o cerne dos filmes deste diretor, não ser uma experiência do real? É verdadeiramente o real algo que está condenado a permanecer fora de qualquer representação sua? Será que o destino da realidade externa é ser peptonizada pelas suas representações, ser fortemente alterada, de modo que nossa única esperança seja atingir uma versão fabricada do real (mesmo tendo sido feita com ótimas intenções)? Pela sua importância para a poética do documentário autocrítico, proponho analisar a noção de “encontro” através de seus efeitos de sentido ou interpretantes, tanto os verbais – as reflexões dos criadores desses filmes – quanto os audiovisuais – algumas cenas do filme. Os interpretantes do “encontro” o concebem como uma influência decisiva. Baseado no resultado ético de documentar o real, distingo dois tipos de encontro. Um interpretante é avaliado negativamente: trata-se de uma repercussão surpreendente da noção de James da representação como o ato de peptonizar o real. Esta é a visão do documentário como uma influência fundamentalmente negativa, encontro é o efeito de uma presença estranha que de modo marcante altera o ambiente, quer dizer, o material “profílmico” (SOURIAU, 1953) do documentário. Pensa-se e teme-se que a filmagem do real, e assim sua representação, vai inevitavelmente peptonizá-lo, dissolvêlo – e assim o real não poderá mais ser alcançado tal como ele realmente é. Este é o triste resultado de filmar um documentário, conforme a tradição autocrítica, sem se importar com o quão honesto e respeitoso em relação ao Outro o diretor possa ser. Essa representação fílmica é concebida como uma construção,

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uma substituição frustrante do real, que o documentário apenas aparenta mostrar de forma objetiva, mas que só pode falsificar, segundo James afirmou há um século. Divertido, Coutinho (in CALDEIRA, 2001) evoca o comentário cético de uma espectadora ingênua, depois de assistir a um dos seus filmes, em sua presença. Ela aproximou-se dele e lhe disse que estava gostando do seu filme até o momento em que viu, no próprio filme, que as pessoas que apareceram nele eram pagas. Foi então que ela pensou: “era tudo encenação”. A resposta do diretor foi razoável e indicial: “Eu disse ‘se eu conseguisse gente que, por dinheiro, dissesse aquilo eu seria um gênio!’”. É irônico, não obstante sintomático de nossa época audiovisual e indicial, que esse tipo de suspeita faça convergir a reflexividade autocrítica levada a sério pelos documentários e a muito leve, engraçada reflexividade dos reality shows da televisão. Uma típica suspeita com respeito ao que acontece na tele-realidade é que tudo aquilo que ocorre nesse universo midiático é baseado em um roteiro secreto, previamente combinado. Assim, nada do que é falado ou feito nessa morada transparente pode ser compreendido como a coisa real. Os diretores de documentários encontraram uma forma de fugir do dilema reflexivo desse gênero: o essencial da questão não é uma escolha entre uma representação falsificada do real e os fatos puros lá fora. É a dedicação intensa ao Outro; isso supõe o esforço real para se tornar o protetor do si próprio dos Outros. Tal atitude distingue os índices gravados num filme reflexivo autocrítico daqueles que são recolhidos pela observação eletrônica ininterrupta da tele-realidade: “No momento em que estou lá gravando, que estou completamente disponível, as pessoas sentem que, finalmente, vão ser escutadas. Veja bem, elas não sabem sequer quem eu sou... Quando me olham, elas vêem apenas alguém ali que tem olhos e ouvidos para elas” (COUTINHO in FIGUEROA et al., 2003: 226).

Meu argumento é que o medo de alterar a realidade que o documentário pretende representar, peptonizando-a ou falsificando-a, é infundado. Não há contato mais confiável, embora falível com o mundo exterior, do que aquele que atingimos nas representações verdadeiras do mesmo. As pessoas que observamos e ouvimos, no momento em que estão sendo ouvidas de forma absorta nos filmes de Coutinho ou de Comolli, não se tornam, em conseqüência, personagens, ou seja, seres

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ficcionais somente pelo fato de aparecerem em um documentário. Este tipo de representação é apenas mais uma relação, ainda que especial, na qual o si próprio desenvolve-se e revela alguns de seus aspectos. Tal como acontece nas nossas relações cotidianas, nossa interminável tarefa é conferir autenticidade aos signos. Uma teoria medieval da singularidade revisitada pelo viés do documentário Considerarei agora, em detalhe, uma seqüência do primeiro documentário que Coutinho realizou e que não o levou, junto com sua equipe, até às margens da sociedade brasileira. Para filmar Edifício Master, eles decidiram se encontrar e conversar com os moradores de um prédio de classe média modesta em Copacabana, o qual deu nome ao filme. As reflexões analíticas que farei a respeito de uma das conversações gravadas no filme pode ser estendida à totalidade do documentário e, com algumas mudanças, à arte documentária deste diretor e, inclusive, a outros filmes do gênero. Do mesmo modo que a existência individual manifesta-se através de sua persistência cega e obstinada, isto é, através da haecceidade da vida, contemplamos uma irrupção de cada um dos moradores que aceitaram ser filmados enquanto conversavam com uma pessoa que nunca tinham visto antes. De fato, há duas conversas: primeiro há uma com os membros da equipe, no estágio de preparação da produção, e depois, pela primeira e única vez, com o diretor Coutinho. Vamos agora rever de que modo a categoria da segundidade de Peirce – a qual serve para analisar a experiência factual – manifesta-se em fenômenos que atraem de forma poderosa nossa atenção: “um fato luta para chegar à existência; pois este existe em virtude das oposições que ele implica” (CP, 1.432). Sem esse ingresso forçado dentro de nossa percepção, sem este choque do real, não haveria nenhuma factualidade na nossa empreitada interpretativa do sentido. E esse mecanismo está bem ilustrado no episódio de Antônio Carlos em Edifício Master, o qual analiso na próxima seção. Na edição dupla do DVD de Edifício Master, que foi lançado dois anos depois da exibição do filme,5 podemos ver como, no encontro preparatório, ele é um homem gago e um tímido confesso, que fala de modo insistente sobre esta sua característica, a saber, seu acanhamento. Ele chega ao ponto de dizer que esse defeito de

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5. Edifício Master, DVD duplo, Videofilmes, 2005.


sua personalidade vai fazer com que sua filmagem seja bastante problemática, se não supérflua. Também o vemos na conversação que ele tem com Coutinho depois. É a última, claro, que fará parte do filme editado que foi mostrado nos cinemas. Durante o encontro que Antônio Carlos tem com Coutinho, o único, claro, que foi exibido no cinema, esse homem discreto introduz na sua fala uma aparentemente pequena e insignificante lembrança. Porém, acredito que é através dessa narração minuciosa de uma memória corriqueira, que parece ser um incidente burocrático envolvendo seu chefe, que um precioso grão de haecceidade irrompe no documentário de Coutinho. Por tal motivo, escolhi este episódio de Edifício Master para analisar o impacto estético e lógico da singularidade que constitui um indivíduo, a pura resistência da existência, que é um componente de todo processo sígnico. Uma modesta epifania acontece no encontro com Antônio Carlos A atmosfera do apartamento é barulhenta e desorganizada; vemos de forma fugaz alguns dos outros moradores, mas o que captamos é principalmente a conversa desconexa e o olhar errante de um homem sentado que sorri envergonhado. Chama a atenção sua pequena peruca temerariamente colocada no topo da cabeça. Nada do que olhamos ou ouvimos nos permite, como espectadores, antecipar o encontro fascinante que está por acontecer: um evento filmado que é, ao mesmo tempo, discreto e memorável. A convicção de que o que acontece durante esse encontro filmado deve-se, principalmente, ao fato de a câmera estar presente é tanto verdadeira quanto imprecisa. É verdade no sentido mais óbvio e leve que essas conversas entre Coutinho e os moradores do prédio de Copacabana não teriam acontecido sem o projeto estético de filmar algumas conversas nesse lugar de Rio de Janeiro. Porém, no sentido construcionista jamesiano de compreensão da cena de Edifício Master como uma representação que peptoniza a realidade, essa convicção é muito imprecisa. Como espectadores do documentário, temos a impressão de que, através da conversa e da presença atenta do diretor, esse homem singelo chamado Antônio Carlos revela algo que emerge na relação com a câmera e que é incontestavelmente real. Isso possui uma existência firme e obstinada que se encontra muito

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além da circunstância cinematográfica. É durante os dois minutos finais da conversa que o embate forte com o indicial acontece. Perto do fim do encontro, ouvimos Coutinho perguntar, fora da câmera, a Antônio Carlos por que ele acha que não gaguejou durante toda a conversa. O homem, que estranhamente permaneceu de pé na sala de sua própria casa durante todo o diálogo, como se estivesse se dirigindo a uma congregação invisível, responde, evidentemente comovido, que foi o dom de Deus o fato dele ter podido falar desse modo: “EC – Explique para mim como você não deu nenhuma gaguejada durante essa conversa. AC – Não sei, foi Deus quem falou por mim. Foi maravilhoso!”

Ele, então, tenta explicar o que quis dizer. Esse homem de aparência solene conta sobre sua difícil infância, passada nas margens da sociedade, sobre seus esforços para ultrapassar alguns obstáculos como as drogas e o álcool. O contraste entre o si próprio enquanto processo interpretativo de crescimento e uma identidade particular e individual, que é apenas um componente histórico de quem somos, é bem ilustrado pela resposta deste homem ao diretor. Sem o menor sinal do que está por vir, o espectador dá um salto enorme da conversa banal e esquecível que aconteceu anteriormente, para ingressar em uma experiência quase mística. Era pouco previsível que esse homem tão tímido fosse descrever o que aconteceu durante a interação com o diretor como uma iluminação, uma experiência epifânica sobre o significado de sua existência. As seguintes palavras desse morador vêm por meio de um close-up; o rosto de Antônio Carlos ocupa toda a tela, vemos então como seus olhos se tornam úmidos e avermelhados pela emoção: “Não tenho nada que pese sobre meus ombros, tenho a convicção de que fui um bom filho, minha mãezinha morreu no meu colo em Brasília... eu saía daqui, ia para Brasília para vê-la, e às vezes nem podia sair porque tinha voltado de férias.”

Surpreendentemente, não é a narração desse episódio de luto pela sua falecida mãe o que vai fazer com que esse homem chore abertamente diante da câmera, mas sim uma espécie de coda da sua narrativa. O clímax emocional é atingido quando ele conta uma história na qual um acontecimento absolutamente corriqueiro se torna um momento quase sagrado e entranhável para ele.

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“Eu falava para o gerente: ‘Eu preciso ver a minha mãe, que está pior’. Eu falei para ele: ‘Olha, Pedro – até o nome dele é Pietro, ele é italiano –, nas férias eu compenso esses dias.’ Eu precisava desses dias.”

Assim, com detalhes pormenorizados, o homem da pequena peruca evoca como foi exatamente aquele momento em que ele pediu para se ausentar, logo após ter retornado a seu trabalho, e seu chefe lhe disse algo que mudou sua vida para sempre, que modificou seu conceito de si mesmo. Ao meu ver, é crucial que primeiro Antônio Carlos lembre o nome do seu chefe como sendo Pedro, mas depois, com a maior seriedade, ele se corrija, explicando que, na verdade, o nome do homem era Pietro, porque ele era italiano. Esse relato tem a significação de um ritual, de uma prática que tem que ser realizada com os gestos e os movimentos corretos, exatos, por sua condição de ato sagrado. As palavras que seu chefe lhe disse naquele momento preciso, quando lhe agradeceu pela autorização, foram: “Você não precisa me agradecer – eu não esqueço essas palavras –, você não precisa me agradecer porque você não foi porque precisava, você foi porque merecia”. É neste ponto da história de Antônio Carlos que nos tornamos testemunhas de um depoimento vibrante, apesar da natureza abertamente insignificante do episódio evocado, qual seja, um intercâmbio entre o chefe e seu empregado sobre uma permissão para se ausentar. Porém, é difícil não ficar cativado por esses índices, pelos úmidos e avermelhados olhos, pela voz chorosa, pela postura comovida de alguém que sente que está falando para a posteridade, fazendo um duradouro legado neste instante. Antônio Carlos diz quão emocionado ficou, pois percebeu, através desse incidente, que ele era uma pessoa de muito valor aos olhos de Pietro/Pedro, seu chefe. A partir desse momento ele vai não somente contar uma história, mas encenar um instante único, um instante no qual a haecceidade do passado, daquele momento que nunca vai se repetir, torna-se quase inseparável da encenação dramática e natural do aqui e agora do filme, a haecceidade que constitui a substância do documentário como gênero: “‘Eu lhe agradeço por ter me liberado’. ‘Você não precisa me agradecer’. Não esqueço essas palavras, ‘você não precisa me agradecer porque você não foi porque precisava, você foi porque merecia’. Fiquei muito feliz. Eu não sabia que ele tinha por mim, como funcionário, uma consideração tão grande. Trabalhei com ele quinze anos.”

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É somente depois de narrar a modesta apoteose de sua vida aparentemente pouco notável que Antônio Carlos percebe, num après-coup ou descoberta inopinada, conforme Freud, que ele vence seus medos e supera os obstáculos, para se tornar o homem satisfeito que é. Depois dessa afirmação, o si próprio como um mecanismo interpretativo lhe permite experimentar uma atitude de reconciliação consigo mesmo, a de um homem que já não gagueja, cujo discurso é um decorrer fluente, que salta sobre os obstáculos e lhe permite expressar-se livremente. É como se durante toda sua vida Antônio Carlos tivesse esperado para contar essa lembrança particular de como o seu valor como pessoa foi reconhecido. Ele descobriu que era percebido como alguém digno de estima, de consideração especial por parte de Pietro, seu chefe, na ocasião da doença de sua mãe. Essa elevada consideração é reiterada no presente pela atenção que o documentário lhe confere, ao contemplá-lo como alguém valioso para a atenção do outro. Este é um exemplo de uma prolongada anagnorise, isto é, o instante de reconhecimento do herói na literatura clássica. Uma vez terminado o relato, chegam cálidas palavras de gratidão, dirigidas desta vez a Coutinho, pelo homem que acaba de contar uma história aparentemente trivial, mas que é tão intensa quanto uma revelação de um momento de reconhecimento ético. Dessa vez, Antônio Carlos agradece ao diretor porque lhe concedeu “mais uma vez a oportunidade de passar ao público minha infância”. É tentador encontrar nesta espécie de instantânea muito detalhada, que exibe uma tristeza jubilosa misturada com melancolia, a irrupção do punctum teorizado por Barthes (1981). É o poderoso efeito estético de um detalhe aparentemente insignificante que, apesar disso, nos alfineta, consegue saltar para fora da foto, ou do filme, e tocar o espectador. Em uma perspectiva semiótica, sustento que nisto consiste o “index appeal” (ANDACHT, 2004) de um documentário como Edifício Master: uma seqüência na qual o trabalho dos signos da existência ou índices torna-se explícito, até palpável. Tanto o punctum quanto o index appeal analisam o efeito estético desse momento único representado no filme, pressupondo a ausência de uma intencionalidade no criador, quer numa fotografia quer num documentário. Essa instância de segundidade deve simplesmente acontecer, tal como ocorre um acidente, ou como a irrupção de

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um fato bruto que nos empurra pela sua haecceidade resistente. Isso se torna evidente quando Antônio Carlos oferece uma glosa do verdadeiro nome (e da identidade) de seu anterior chefe, Pietro. Nesse detalhe aparentemente insignificante com respeito à verdadeira nacionalidade daquele homem que está inserida, em uma história trivial, o que emerge de forma mais vívida é o cuidado especial que Pietro teve com o protagonista desse encontro filmado, na hora de seu sofrimento, pela perda da mãe. Durante toda a narrativa de Antônio Carlos, não há sequer uma referência ao pai; podemos, então, supor que aquela mulher era talvez uma mãe solteira, tal como o homem da pequena peruca conta para a equipe de Coutinho que ele mesmo é um pai solteiro. O punctum/index appeal da seqüência é o ponto existencial de ancoragem para uma ausência simbólica que é preenchida por essa figura paterna, por Pedro/Pietro, o homem que uma vez reconheceu a importância desse homem emotivo que enfrenta agora a câmera. É com a menção do nome do pai (imaginário), que o patético (de páthos) da cena atinge seu ápice: Antônio Carlos não chora quando conta para Coutinho como sua mãe morreu em seus braços, mas chora quando lembra esse momento aparentemente menor de seu chefe, que mudou sua vida para sempre. Ele foi atingido por isso, como nós, os espectadores de Edifício Master, somos tocados pela irrupção da haecceidade do punctum, neste momento narrativo preciso da fala discreta desse homem. Foi Pietro, e não Pedro, quem lhe mostrou o significado do seu si próprio. Como uma espécie de epílogo, Coutinho parece estar buscando um fechamento para essa interação tocante inesperadamente comovedora, então ele afirma algo que é óbvio, mas novamente descobre algo precioso. O comentário mais do que redundante do diretor faz surgir outro instante indicial memorável no documentário Edifício Master: “EC – Você é uma pessoa muito emotiva. AC – Eu sou meio frouxo. EC – Isso é bom ou ruim? AC – Eu não me escondo. Eu sou esse.”

Como numa variante da afirmação tautológica do Antigo Testamento, eu sou aquele que sou, esse homem expressou em termos singelos um aspecto-chave do mistério da existência, de nossa pouco notável mas fascinante singularidade, a haecceidade de nossas vidas individuais.

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Conclusão: os documentários não peptonizam o real, eles introduzem o kairos da vida Em que consiste, finalmente, o efeito estético e semiótico do documentário? Seja o que for, definitivamente não é uma ação peptonizante (James), que degrada ou ofusca o real. Antes, um documentário de qualidade como Edifício Master funciona como um catalisador semiótico do kairos, o antigo termo grego que denota um instante memorável, “um ponto no tempo repleto de relevância”, quando podemos transcender a mera “passagem do tempo”, o chronos da existência (KERMODE, 1971: 47). Através do kairos, do resgate de um momento duradouro, os seres humanos conseguimos evitar a contínua ação de extermínio do esquecimento. Instâncias do kairos documentário como a que descrevi acima em detalhe, no episódio de Antônio Carlos, estão baseadas na ação dos índices; é sua manifestação única, singular, a que produz um efeito quase hipnótico no espectador, o tipo de experiência que encontramos na explicação de Peirce sobre a função do indicial no raciocínio humano: “Uma das classes (de signos) é o índice, que como um dedo que aponta exerce uma força fisiológica real sobre a atenção, como o poder de um mesmerizador, e a dirige para um objeto específico de sentido” (CP, 8.41). A visão desse homem humilde chamado Antônio Carlos contando-nos uma história de redenção pessoal e de vitória contra a tristeza atinge seu ponto culminante com sua descoberta de que seu valor como ser humano foi reconhecido por uma pessoa que ele respeitava, seu chefe Pietro. Assim, viramos testemunhas da metamorfose de um acontecimento cotidiano e corriqueiro em uma imagem que revela a enorme complexidade da existência, a verdadeira visão de um ser humano simples e complexo. O momento kairos ou tempo redimido emerge na nossa percepção de imagens e sons de Edifício Master de um modo semelhante ao efeito do punctum proposto por Barthes para a fotografia. Tratase de uma classe de conhecimento íntimo, agudo, produzido por um elemento que não foi concebido pelo artista para produzir esse ou algum outro efeito no espectador. Porém, talvez por esse mesmo motivo, ele produz em nós um choque de reconhecimento do Outro, da vida que bate lá fora, em toda sua extraordinária e singela haecceidade, a música indicial que chamei de index appeal do gênero documentário.

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os signos do real no cinema de eduardo coutinho

/ fernando andacht



imagem : rita viana


Corpos exemplares: a reencenação no neo-realismo ivone margulies Doutoranda em Cinema Studies pela Universidade de Nova York Professora associada no Departamento de Mídia e Cinema da Universidade de Nova York

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Resumo: Este ensaio aborda um gênero realista, o filme de reencenação, por meio da análise de dois episódios clássicos do neo-realismo italiano, integrantes do filme L’amore in città (O amor na cidade, 1953): A história de Caterina (Cesare Zavattini, Francesco Maselli) e Tentativa de suicídio (Michelangelo Antonioni). Em filmes de reencenação, protagonistas reais representam acontecimentos de sua própria história para a câmera. Estes filmes têm como função conferir caráter exemplar à revisão do passado, através de uma representação de fundo ritualístico, psicodramático e moral. Palavras-chave: Reencenação. Dramatização. Neo-realismo Italiano. Exemplaridade.

Abstract: This essay deals with a realist genre, the reenactment film, through the analysis of two classic neorealist episodes from the film L’amore in città (1953): Storia de Caterina (Cesare Zavattini, Francesco Maselli) and Tentato suicidio (Michelangelo Antonioni). In reenactment films, real protagonists represent events from their own lives to the camera. These films grant an exemplary character to the revision of the past, through a ritual, psychodramatic or moral representation. Keywords: Reenactment. Dramatization. Italian Neorealism. Exemplarity.

Résumé: Cet essai aborde le genre réaliste du film de remise-en-scène par l’analyse de deux épisodes classiques du film Néo-réaliste italien L’amore in città (1953): Storia de Caterina (Cesare Zavattini, Francesco Maselli) et Tentato suicidio (Michelangelo Antonioni). Dans ces films les protagonistes réels représentent les actions de leurs propres histoires devant le caméra. Ces films provoquent d’une manière exemplaire la révision du passé par le moyen d’une représentation à fond rituel, psychodramatique et moral. Mots-clés: Remise-en-scène. Dramatisation. Néo-réalisme Italien.


As pessoas entendem bem mais a si mesmas do que a sociedade; e verem-se na tela, em seus atos cotidianos – levando em conta que ao nos vermos nos distanciamos de nós mesmos, como quando escutamos nossa própria voz no rádio –, pode ajudá-las a preencher uma lacuna, uma falta em seu conhecimento da realidade. Cesare Zavattini1

O grande achado de Cesare Zavattini em seu projeto de cinema social é a reencenação fílmica, prática em que pessoas repetem, para a câmera, acontecimentos de sua própria vida. A reencenação assemelha-se à dramatização (por atores ou substitutos) em documentários e filmes etnográficos, e em reality shows de TV. Nos filmes etnográficos, é comum que comportamentos de gerações passadas substituam, anacronicamente, práticas atuais para garantir, assim, um resultado que se conforme a uma imagem idealizada (Man of Aran, 1934, e Nanook of the north, 1922, de Robert Flaherty, por exemplo). Acontecimentos que a câmera deixou de filmar também são reencenados para telejornais e reality shows. A diferença principal entre essa forma de atuação substitutiva e a reencenação (ou autodramatização) é que nesta última um parente ou pessoa do mesmo grupo social pode substituir o ator original. No caso de reencenações, nem a verossimilhança nem a tipicidade importam. Se a identidade do protagonista é relevante em outros gêneros referenciais, como relatos de viagem (travelogues) ou filmes biográficos, o que difere na reencenação fílmica é a sobredeterminação da repetição do passado. Os filmes de reencenação almejam um despertar de consciência, por meio de uma dinâmica que fica entre a repetição e o distanciamento. A sua proposta é de que, ao tornar públicos os acontecimentos passados, não só o ator-indivíduo, mas também outros, aprendam a partir de seus erros.2 A projeção da vida na tela cria um espelho corretivo ou um modelo para a ação social (BREWSTER, 1977: 52).3 Filmes de reencenação combinam repetição com revisão moral, e sua principal meta é a exemplaridade. Na sua produção de The lady of the dugout (1919), Al Jennings, o famoso bandido de Oklahoma, e seu irmão revivem, seletiva e retrospectivamente, os eventos que fizeram deles uma lenda. Eles se filmam assaltando bancos, mas também lances heróicos em que ajudam uma pobre mãe e sua filha famintas. Como na maior parte das biografias, e em especial as exemplares,

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1. O artigo “Alcune idee sul cinema” foi originalmente publicado como prefácio ao roteiro de Umberto D na Rivista del Cinema Italiano, dez. 1952.

2. Veja “Che Cos’è Il film lampo” e “Film-lampo: sviluppo del Neorealismo” em Argentieri (1979: 86-88; 89-91). O termo “filme-lampo” ou “filmerelâmpago” conota o caráter imediato da reportagem. 3. Esta função de advertência tinha sido prevista por Bertolt Brecht, que havia imaginado extrair imagens de filmes e aplicálas em diferentes contextos sociais.


4. Em Victims for victims: the story of Theresa Saldana (Karen Arthur, 1984), a atriz Theresa Saldana revive a história do brutal ataque do qual foi vítima. Ao final do filme, ela expõe o seu engajamento em uma organização de apoio a vítimas de violência, a Victims for victims.

as reencenações fílmicas são cuidadosamente depuradas. Ao reinterpretar um acontecimento, acabam por criar imagens que se situam entre o registro factual e o seu retoque para consumo público. “Acertar” vira uma questão de reproduzir em frente à câmera um comportamento indevido do passado, que pode, a partir de então, ser julgado pela narrativa. O ativismo comunitário é típico de narrativas reencenadas, criando uma simetria entre a provação traumática e a redenção social.4 Em It’s all true (É tudo verdade, 1942), o filme inacabado de Orson Welles, quatro pescadores reencenam a sua heróica viagem em jangadas ao longo do Nordeste brasileiro, empreendida para reivindicar benefícios sociais. Refazer o percurso de dois terços do litoral brasileiro torna-se uma forma de pagar uma promessa religiosa, na qual a superação dos obstáculos é devidamente premiada se o crente demonstra sua fé. Durante a filmagem, Jacaré, um dos pescadores, morre afogado, e Welles, que começara a filmagem com a chegada ao Rio, tem de continuar o filme com outro pescador tomando o lugar do protagonista – prova comovente dos limites do cinema e da reencenação em reverter o rumo do tempo. Se o filme de Welles exclui a sua mais inesperada e temida eventualidade – a morte do ator principal –, é para que a história ganhe uma dimensão de exemplo. Em reencenações como The J­ackie Robinson story (Alfred E. G­reen, 1950) ou Muhammad Ali: the greatest (William Klein, 1969), a descrição de uma vida se transforma em biografia-modelo e, em geral, inclui uma cena em que se assiste à conversão de um comportamento desviante em um outro, mais virtuoso. Essa conversão de interesses individuais em coletivos deve ser enfatizada. É uma característica que aproxima os filmes de reencenação do despertar de consciência proposto pelos documentários militantes, nos quais a referência ao passado estabelece um contraste com a lucidez do indivíduo no presente. Nos Estados Unidos, documentários feministas dos anos 70 reencenam situações e imagens com uma função política e pedagógica. As dramatizações assumem um duplo valor: exemplo do que se passou e modelo para uma ação futura. Destacadas da textura geral do filme, por intermédio de câmera lenta ou de freeze-frame, essas reencenações parciais manifestam uma clara intenção de servir como modelos idealizados.

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Exemplaridade no cinema Ao trazer a noção de exemplaridade para discutir a reencenação no cinema, devem ser examinados os múltiplos sentidos de que o termo “exemplo” se reveste em filmes militantes ou pedagógicos: uma ação ou conduta considerada como objeto de imitação; um recurso a casos precedentes que autorizem uma ação; um caso exemplar de castigo com efeito preventivo, de advertência (cf. LYONS, 1989, e GELLEY, 1995). Exemplos são também casos concretos usados para reforçar um comentário geral, um meio, de acordo com Aristóteles, de produzir crença através de indução. Aristóteles fala de dois tipos de exemplos: “um que consiste no relato de coisas que aconteceram antes, e outro que a própria pessoa inventa” (ARISTÓTELES, 1926: 273). Na retórica antiga, atribuía-se aos exemplos um poder mimético considerável: “o exemplo não só retrata, ele também provoca uma imitação por parte da audiência” (LYONS, 1989: 8).5 Como observa John Lyons em Exemplum, há uma tendência acentuada para “fundir” ou mesmo para “confundir” as funções cognitivas/ retóricas do exemplo com as suas funções doutrinais e prescritivas (o exemplum).6 No vernáculo, exemplum significa uma “narrativa curta usada para ilustrar uma questão moral”. A referência constante em sermões ao exemplo-mor, aos feitos e à vida de Cristo, estabelece o papel do exemplum como modelo de imitação. Através desse círculo que se autolegitima, o exemplum ganha um sentido de modelo a ser copiado e de cópia ou representação de um modelo – o exemplar (GELLEY, 1995: 3). April Alliston chama a atenção, no entanto, para uma importante distinção, na literatura do século XIX, entre exemplum e exemplo. Ela nos mostra como o “realismo exemplar” de meados do século XVIII se transforma num realismo mimético. No “realismo exemplar”, afirma ela, “a condição de exemplum do texto precede a sua condição de representação (…) o texto pede para ser lido como um exemplo capaz de gerar ações reais através da imitação, em vez de reproduzir uma ação real [como mimese]” (ALLISTON, 1995: 13). Por outro lado, os “personagens do realismo mimético não se apresentam mais como modelos de imitação, mas servem como exemplo no sentido de comprovação: são casos particulares que provam uma máxima ou preceito; neste caso, uma afirmação de verdade geral sobre a realidade, representando-a” (ALLISTON, 1995: 14).

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5. Lyons (1989: 8) comenta que “um exemplo do passado provavelmente contém um padrão pertinente à situação sendo deliberada”. E Gelley (1995: 03) acrescenta que é o potencial do exemplo “para ocorrência posterior ou repetição que autoriza seu uso retórico”. 6. O termo exemplum, freqüentemente associado à literatura medieval, denota uma narrativa usada em sermão.


Devido à sua lógica expositiva, as cenas de reencenação parcial em documentários fazem parte de um realismo mimético. Intercaladas com entrevistas ou justapostas a comentários em v­oice-over, essas cenas representam o geral por intermédio do caso concreto. Filmes inteiramente reencenados, por sua vez, prescindem de uma estrutura demonstrativa, e seu efeito de autenticação ultrapassa em muito as necessidades da uma representação mimética; o que era puramente demonstrativo torna-se exemplar. Devemos proceder com cautela, no entanto, ao transpor para o cinema a exemplaridade literária ou verbal. Se a passagem de uma exemplaridade descritiva e mimética para uma modelar é essencial para se entender a reencenação, esta se mostra uma maneira radical, por sua vez, de repensar a indexicalidade. O valor de prova da reencenação depende de estarmos a par do fato de que esses pés já andaram por esses mesmos degraus. Mas é o retraçar (e o retrospecto) ficcional e intencional que, reatualizado, empresta a essas faces e lugares um valor de autenticidade. O valor indexical da reencenação está presente, mas só é ativado através dessa duplicação, uma repetição que põe em evidência as particularidades mais significativas de um acontecimento. E a singularidade mais singular promovida pela reencenação é a própria identidade de uma pessoa, corpo e face com nome e sobrenome. O que sustenta essa função de modelo é o potencial conversor da repetição. As narrativas em questão evocam uma dinâmica moral, na qual a repetição ganha relevância própria. Não porque copie uma situação original, fornecendo sua mais perfeita ilustração, mas porque ao repetir produz uma versão melhorada do acontecimento. Ao assumir uma crença psicodramática ou litúrgica nos efeitos corretivos de uma repetição literal, a reencenação cria, performativamente, outro corpo, lugar e tempo. O que está em questão é uma identidade que possa se referir ao evento original e, ao mesmo tempo, simbolicamente reformá-lo. Filmes de reencenação devem ser considerados como lições modernas de moralidade, e sua questão maior é como conferir uma dimensão exemplar ao indivíduo na tela. Exemplos contemporâneos do filme de reencenação – Close-up (Abbas Kiarostami, 1990), em que um indivíduo que havia se feito passar por um famoso diretor de cinema reencena, posteriormente, junto às suas vítimas, sua impostura e julgamento; ou Sons (Zhang

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Yuan, 1998), no qual uma família inteira reproduz os dez dias que precederam a hospitalização do pai por alcoolismo – sugerem o interesse desse gênero em discussões sobre as relações entre corpo, identidade e a lição moral no cinema. A análise da retórica da exemplaridade irá se restringir aqui a dois filmes clássicos da escola realista do cinema, os episódios de Cesare Zavattini e Francesco Maselli, e o de Michelangelo A­ntonioni no filme O amor na cidade (L’amore in città, 1953). Reencenação zavattiniana: penitência e redenção em A história de Caterina “Neo-realismo – como eu o entendo – requer que cada um atue como si próprio” (ZAVATTINI, 1966: 227). O amor na cidade, um filme em episódios de Alberto La­­­­t­tuada, Federico Fellini, Cesare Zavattini e Francesco Maselli, Michelangelo Antonioni, Carlo Lizzani e Dino Risi, foi o primeiro e único filme de uma série projetada de cine-revistas, intitulada O espectador.7 O prólogo em voice-over define sua meta: “pessoas anônimas vão representar a si próprias, a realidade será imitada de perto, sem nenhuma roupagem fictícia (…). Cada evento, fielmente reconstituído, encarna a sua própria lição, se não por outro motivo, porque aconteceu mesmo” (L’AVANT SCÈNE CINÉMA, 1982: 62).

Encarregado de provar que o neo-realismo está vivo, O amor na cidade é um filme-manifesto, um esforço rigoroso de aplicação da teoria zavattiniana de “pedinamento”, uma imitação do cotidiano visto bem de perto.8 Zavattini soube do relato de A história de Caterina – a história de uma certa Caterina Rigoglioso, que, incapaz de sustentar seu filho, primeiro o abandona, e depois volta a recuperá-lo por meio da lente sensacionalista do jornalismo. “Hoje a Itália inteira sabe o que ela fez e por que, poucos não terão se emocionado com a notícia”, salienta o anúncio de A história de Caterina, alardeando tanto a fonte de informação do filme – uma notícia de jornal – quanto sua missão última – torná-la pública. Após ter abandonado seu filho, Caterina lê a manchete do jornal: “Mãe desnaturada abandona seu filho”, enche-se de remorso e vira enfermeira no orfanato para onde o menino havia sido levado. Lá ela passa a tomar conta não apenas de seu filho, mas também de outras crianças. Numa reviravolta típica em projetos de reencenação, A história de Caterina se encerra com a integração social da

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7. A idéia para O espectador foi iniciada por Marco Ferreri e R­iccardo Ghione em sua revista de vida curta Documento Mensile. Citado em L’Avant Scène Cinéma (1982: 62).

8. A teoria de pedinamento pode ser resumida da seguinte forma: “Deveríamos poder ver na tela uma forma de documentário de fatos privados e públicos com o rigor e o caráter imediato de um espelho e a dimensão analítica do cinema que revela todas as dimensões espaciais e temporais desses fatos” (ARGENTIERI, 1979: 75).


protagonista, e pode então servir como história modelar. Ao tomar conta de outras crianças, ela torna literal a proposta de Zavattini de que a reencenação sirva para compartilhar nossas dificuldades com a coletividade. Em seus textos, Zavattini sublinha o potencial do cinema em reformar através da repetição. A reencenação ganha um status de “segunda chance”. Ao reviver sua própria experiência por meio de uma “espécie de ritual”, e através de “uma reconstrução quase científica”, a pessoa rompe com aquele “embaraço que é sempre anticoletivo, que preserva em demasia o individualismo do fato”. É assim que se pode “adquirir consciência do destino coletivo de nossos atos, o seu ‘tornar-se’ público” (ZAVATTINI, 1966: 90). Para Zavattini, o reencenar deve produzir uma forma de comunhão – uma repetição que distancie, mas também reanime (GRANDE, 1992: 194). Em Lessico zavattiniano, na categoria “Atores”, Maurizio Grande sugere: “Tanto o ator não profissional quanto aquele que revive sua experiência para a câmera o fazem principalmente para interpretar seu papel humano na sociedade. O ator que reproduz sua própria experiência passa de protagonista a ‘oficiante’” (GRANDE, 1992: 32).

A história de Caterina tem ambições litúrgicas óbvias. Ao retomar o percurso literal da Via Dolorosa de Caterina, o filme sugere sua homologia com uma trajetória cristã. Suas atribulações e dificuldades concretas são enfatizadas, como quando ela procura e não encontra trabalho, quando busca encontrar quem cuide de seu filho. Imagens de tenacidade física e psicológica – cenas de Caterina andando, subindo escadas e esperando – constituem a maior parte do filme. Esses momentos não dramáticos, nos quais o literal e o encenado mostram-se indistintos, e são, por isso mesmo, os mais bem-sucedidos numa dimensão ritualística. Quando, porém, ela abandona a criança, o contrário ocorre. Os movimentos circulares de grua sobre Caterina, que chora, são tentativas óbvias de emprestar colorido melodramático ao acontecimento. Essas cenas são, no entanto, incapazes de provocar emoção, mesmo que este seja seu maior intento. A performance descorada de Caterina Rigoglioso e o tratamento fílmico que Maselli confere a cada situação resultam desinteressantes e acabam por involuntariamente distanciar o espectador. Sempre atento à problemática realista, André Bazin, em “Le Néoréalisme se retourne”, sua resenha crítica a O amor na cidade,

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assinala as contradições do projeto zavattiniano: “se essa história é apropriada como roteiro, uma fidelidade exata só pode sabotar a construção dramática, e somente uma sorte incrível poderia predestinar a protagonista real a trabalhar no filme” (BAZIN, 1957: 46). Na verdade, até Zavattini ficara desapontado com a performance inverossímil de Caterina. “Caterina não parece dar para o cinema. Mas não era ela ‘Caterina’?” (BAZIN, 1957: 46). A reencenação dramatizada põe em relevo o dilema maior da procura de exemplaridade pela reencenação. Assim que Caterina se torna o que não é – uma atriz –, sua identidade – o princípio que autoriza a exemplaridade – torna-se problemática. Se Caterina falha ao representar Caterina, como pode o filme cumprir sua missão de tornar público? Fica claro aqui que não é a identidade original do protagonista o que garante uma narrativa exemplar. “Sabemos”, diz Bazin, que “o assassino não se parece necessariamente com um criminoso. Temos de reconhecer que a realidade vai além das cautelas da arte. Não porque o testemunho, em sua brutal realidade, torne a arte irrisória, mas, ao contrário, porque com esse roteiro (real ou não) não há interpretação ou mise-en-scène que possa mostrar seu melhor valor” (BAZIN, 1957: 46).

A observação de Bazin enfatiza o fato de que o poder de prova da reencenação não depende de semelhança ou de boa atuação. Que este tipo de história (mesmo que ficcional) dependa da reencenação literal sugere a dependência entre a presença do corpo e modelos narrativos específicos. O modelo dos contos de erro-e-penitência é o que melhor convém à reencenação. A escolha de Bazin da metáfora do criminoso nos alerta para a relação, implícita em toda a retórica de Zavattini, entre reencenação e expiação. Em Zavattini: sequences from a cinematic life, o roteirista descreve uma das idéias que teve para filmes em 1944. Ele se propõe a viajar num caminhão com Lattuada, Fabbri, Monicelli e parar numa cidadezinha destruída onde, aos poucos, as pessoas recomeçam suas vidas entre as ruínas da guerra. “Falamos com eles na praça; eu digo que sou culpado disto e daquilo e, a princípio, eles vão me considerar um monstro, mas esta é a única maneira pela qual eu poderei atuar também como juiz e atribuir a cada um suas responsabilidades (…) estaremos constantemente dramatizando. Alguns vão tentar se justificar, mas eles não entendem que lhes estou oferecendo uma chance de se confessarem (...) Armamos uma tela (…) no

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centro da praça e mostramos partes de filmes (…) o narrador tenta fazer as pessoas na praça entenderem que outros também choram, morrem, matam, e fogem (…) os espectadores se cansam e dizem ao moralista para ir para aquele lugar (…) a voz de Mussolini surge das ruínas e ouvimos aplausos vindo daquele homem fumando seu cachimbo (…) todos gostariam de calar aquela voz do alto-falante, mas não sabem o que fazer.” (ZAVATTINI, 1970: 10-11)

Em 1949, Zavattini ambiciona fazer um filme para ser “projetado contra o céu, visível ao mesmo tempo em todas as partes da terra”. Esse “Juízo Final doméstico, iniciado através de nossos filmes após a guerra, não pode ser interrompido” (ZAVATTINI, 1970: 26). É um cinema de acerto de contas, um programa de catarse política e histórica, compatível com o neo-realismo, visto consensualmente como front antifascista. Esse cinema projeta uma consciência vigilante do pós-guerra, para a qual qualquer “fuga da realidade é uma traição” (ZAVATTINI apud VOLLARO, 1954: 25). Essas declarações, carregadas com a urgência de reparação social e nacional, provêem a matriz ideológica da reencenação. Reencenação é um “remake moral”: é “a intenção cognitiva do cinema que dá força moral para o remake anti-espetacular de uma ‘primeira-vez’” (GRANDE, 1992: 194). Quando Zavattini postula o cinema como promoção de um quadro comparativo e humanista, quando arroga a si mesmo a posição de narrador e padre confessor, quando propõe sua teoria da câmera indiscreta (pedinamento) – com suas perturbadoras conotações detetivescas –, ele cria um roteiro básico para sua intervenção e para a relevância de seus métodos. “Tornar público” pressupõe uma realidade social que anseia por redenção. As expressões de indiciamento moral que prevalecem no discurso de Zavattini mostram o quanto a superioridade ética assegurada pela Resistência durante a Segunda Guerra é constantemente mobilizada pela retórica neo-realista, principalmente no início dos anos 50. Durante esse momento de definição e sobrevivência para a indústria do cinema italiano, a agenda social e as credenciais estéticas do neo-realismo passam a ser questionadas à direita e à esquerda (cf. BRUNETTA, 1982: 147-152). Dois debates ideológicos e estéticos se superpõem. O primeiro, que parte da crítica de esquerda e do Partido Comunista, tem a ver com a adoção do realismo social como modelo (BRUNETTA, 1982: 152-153). O segundo defende a

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transição do neo-realismo para o realismo. A revista Cinema Nuovo, de Guido Aristarco, é a principal voz de apoio às teorias da literatura realista de Lukács a serem aplicadas ao cinema. “Crônica, documento, denúncia. Isto é meramente o prólogo do verdadeiro realismo, que por natureza só pode ser crítico, histórico” (ARISTARCO, 1980: 82). A doxa lukacsiana afirma que o registro imediato do cotidiano é uma versão defeituosa e insuficiente de realismo. Com freqüência, os projetos de Zavattini serão criticados por seu naturalismo, por serem incapazes de dizer mais do que simplesmente algo sobre “esta ou aquela pessoa, esta ou aquela situação” (BONELLI, 1954: 75). O amor na cidade é citado, invariavelmente, como experiência extrema e falha. Senso (1953), de Luchino Visconti, exemplifica, ao contrário, o verdadeiro realismo épico, no qual os personagens encarnam forças históricas mais complexas (cf. ARISTARCO, 1980: 85-87, 90-98). Em Il cinema italiano, Carlo Lizzani declara que, “por volta de 1953, todos os grupos queriam opinar a respeito do realismo” (LIZZANNI, 1982: 165). “A Primeira Convenção de Parma, naquele dezembro, dedica-se a uma avaliação crítica do neorealismo. Houve um nítido esforço de mascarar a falta de unidade entre as várias posições, com um espetáculo de unanimidade e voluntarismo” (FERRERO, 1975: 219). A resistência a um modelo único para o neo-realismo (evidente na obra de Fellini, Rosselini e Visconti) foi reprimida com a tentativa de Zavattini de equacionar os dilemas do neo-realismo com uma vocação moral (FERRERO, 1975: 245-246). Zavattini compara o cinema, em termos dramáticos, a um aparato de expiação, dirigindo-se, na Convenção de Parma, àqueles que ousam declarar morto o neo-realismo. A defesa do neo-realismo retorna ao tema-chave do debate do imediato pósguerra: o intelectual alienado e a necessidade de “ultrapassar esta condição herdada do idealismo [da época fascista] através de um contato direto com uma realidade popular, proletária e urbana” (BRUNETTA, 1982: 137). Para Zavattini, a reencenação é uma maneira de restabelecer o neo-realismo como barômetro social, e, ao focalizar uma sociedade mais difusa e socialmente complexa, fazer o movimento retornar à sua vocação do pós-guerra, socialmente consciente. Ao se basear em um corpo específico,

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9. Sobre o positivismo de Zavattini veja Petraglia (1975). Veja também “Attore” (GRANDE, 1992: 36).

10. Sobre a visão apostólica de Zavattini, ver Vollaro (1954: 38-39).

11. Em “The road beyond Neorealism”, Federico Fellini defende a inclusão de outras formas de realidade além da crônica objetiva do dia-a-dia, da agenda neo-realista (MACCANN, 1966: 377-384).

com nome e sobrenome, a reencenação torna-se um método de reparação social, um instrumento de redistribuição social da atenção. “Devemos lembrar que no registro todos temos nomes, e que, portanto, somos todos dignos de interesse” (VOLLARO, 1954: 36). A reencenação serve também para libertar o roteirista Zavattini de sua própria habilidade em contar histórias e criar dramas. Lembremos que ele dirigiu apenas este filme, sendo famoso, principalmente, por ter seus roteiros dirigidos por Vittorio De Sica. Suas sugestões para que se elimine o roteiro, e para cada vez mais aproximar o filme da realidade (“fazer um buraco no teto, viver na casa defronte, fingir também ser um trabalhador etc.”) são esforços para evitar uma mediação artística e intelectual que ele associa com um ponto de vista burguês.9 Depois do sucesso crítico de Umberto D (1952), ele insiste em que “a pessoa mesma que viveu uma situação, e não o roteiro, conte sua história” (Z­AVATTINI, 1954: 20). Sua ênfase na dramatização literal aponta para a dimensão transformadora do happening e da experiência física, talvez num esforço de instalar a arte diretamente no corpo social. Essa dimensão ritual performativa é, no entanto, continuamente comprometida pelo talento de Zavattini em criar histórias com uma moral social. Como nota Sam Rohdie (1990), o sentido da representação em tempo real não é tão diferente em A história de Caterina ou em Umberto D. Ambos os filmes usam elipses radicais para compensar os planos longos representando o dia-a-dia. Como fábulas de redenção, ambos os filmes dependem inteiramente da representação de provações materiais e físicas. Somente a repetição detalhada de gestos, diálogo e estados de ânimo pode fornecer a conotação cristã que sustenta a moralidade de Zav­attini.10 A atitude paternalista do narrador em O amor na cidade revela o vínculo entre a esquerda italiana e o catolicismo. O fio implícito ligando a história de Caterina Rigoglioso às histórias em Tentativa de suicídio, de Antonioni, é o perdão por meio da confissão pública. Para ambos os cineastas, o filme é um processo de expiação de erros e de conversão do sujeito. Cada um deles difere, entretanto, na sua via para além do (ou de volta ao) neorealismo.11

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Tentativa de suicídio: o impasse do literal e a voz singular em Antonioni Tentativa de suicídio é uma reencenação psicodramática que revela o interesse de Antonioni em abordar a alienação social por meio do impasse de crises individuais. A tentativa de suicídio, assim como a morte, é um caso-limite de reencenação, dada a impossibilidade de uma repetição literal. Espetáculo exibicionista, a tentativa de suicídio é uma performance sem desenlace. Sua única prova de boa-fé é a própria morte do indivíduo. Uma tentativa de suicídio – e esta é a posição de Antonioni sobre o assunto – sugere mais um desejo de efeito do que de substância, especialmente se é por desespero feminino. Em cada um dos casos apresentados, o suicídio define uma crise de representação. Num dos episódios, uma mulher passeia silenciosa enquanto uma narração relata seu caso. À medida que a narrativa se encaminha para o clímax, ela se detém à beira de um rio, volta-se para a câmera, aponta para a água e diz, “Foi aí que eu tentei [me matar]”. A transição de representação para apresentação, para um discurso frontal, coincide com a problemática repetição de seus atos. O cineasta representa a tentativa de suicídio por meio de um plano das águas do rio. O afogamento se torna abstrato e, ao mesmo tempo, sugere o ponto de vista da suicida. Em outra história, a de Donatella, a passagem para a fala direta é dramatizada por meio de um expediente simples – um plano próximo inserido entre as ações dramatizadas da mulher. Depois que o narrador descreve seu desapontamento no amor, Donatella reproduz, em plano médio, o gesto de cortar os pulsos. Um plano próximo mostra as marcas do suicídio tentado anteriormente. Essa imagem é inserida na continuidade do filme através de uma edição fluida. Entretanto, num claro movimento de demonstração, a mulher vira seu pulso para a câmera, duplicando o aspecto denotativo de um plano fílmico. É como se o close-up dissesse: “Aqui está a representação de uma tentativa de suicídio”, quase como que zombando da pretensão de autodramatização. Esse plano resume os limites da reencenação: a lâmina não pode retraçar a mesma cicatriz sem produzir, literalmente, um corte. Depois desse plano, Donatella vira-se para a câmera. Ela está deitada; um corte na ação mostra o seu pulso. Ela segura a lâmina, contando-nos, então, o que se passou. Quando perguntada por que concordou em reencenar esse acontecimento, ela revela

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o significado de uma reencenação bem-sucedida: “o sentimento de estar mais aberta a respeito do que aconteceu, uma segunda chance”. Finalmente, Donatella confessa que a única coisa que ela quer fazer é ser “uma atriz, não por concurso, mas seriamente, entrando na academia”. Essa seqüência introduz uma vertigem representativa, que torna explícito o projeto terapêutico do filme. A dramatização do comportamento passado é interrompida subitamente. E, em vez de uma ação perigosa, o filme propõe o trabalho de cura por meio da palavra. Tanto Breuer quanto Freud atribuem uma força catártica à expressão verbal, sugerindo que “a linguagem serve como um substituto à ação (...) e (…) falar é em si um reflexo adequado quando, por exemplo, é uma lamentação, ou (…) uma confissão” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1973: 61). Ao substituir a repetição por uma enunciação verbal, essa cena funciona como prova do poder regenerador da auto-dramatização. A tolice de repetir um gesto desse tipo é reconhecida, e uma reflexão verbal substitui a ação. A impossibilidade de repetição literal é o que conduz a repetições seguras e até criativas: contar uma história ou até se tornar uma atriz. Tornar público significa atuar, mas atuar é a aporia da reencenação, pois qualquer movimento que indique teatralidade põe em questão a autenticidade do gesto. É quando Caterina atua que sua identidade se torna suspeita. Antonioni se arrisca na escolha de tema. Ele desconfia do exibicionismo das suicidas. As mulheres – e somente mulheres relatam seus casos nesse filme – são dispostas contra o fundo neutro e abstrato do estúdio, como se estivessem numa fila de suspeitos numa delegacia. A mise en scène de Antonioni indicia essas cidadãs e, ao mesmo tempo, sugere a sua incomunicabilidade urbana. Sob a direção de Antonioni, os personagens são julgados (cf. BOLZONI, 1954). O tratamento fílmico do suicídio em Antonioni expõe ainda outra questão. A mudança da representação para apresentação – a passagem da encenação para descrição verbal ou confissão – deve ser vista, na verdade, como uma transição no cinema de Antonioni, e no cinema realista em geral. A pessoa não só ilustra uma condição geral, mas é também ouvida. As mulheres dão voz a seus motivos privados. “Estes eram casos que tinham a ver com a psicologia, não com a moralidade”, afirma o diretor ao defender sua ênfase nas causas

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privadas, psicológicas, do suicídio. Numa carta a Aristarco sobre Tentativa de suicídio, ele cuidadosamente considera psicologia e moralidade, reconhecendo o desafio desse tema. “Eu não consigo acreditar, como tantos outros, que se alguém se mata, a culpa, de alguma forma, é de todos. Suicídio é um gesto tão enigmático (…). É verdade que o suicídio tem um significado moral e que a psicologia não pode ignorar atitudes morais, mas também é verdade que a moralidade não pode ignorar os ensinamentos da psicologia (…) não é possível deixar de lado causas especiais (…) o especial é o domínio próprio da psicologia.” (ANTONIONI, 1996: 72).12

O filme de Antonioni interessa por sua lúcida renegociação de um realismo representativo. Quase que para compensar o seu foco em “causas especiais”, o filme se esforça para encaminhar a representação da consciência pessoal para um bem comum. “Elas concordaram em vir ao nosso estúdio só porque sentiram que esse momento de sinceridade, esse exame através do olhar de outros, daquele único gesto irreparável na vida de uma pessoa seria útil para elas e para outros”, comenta o narrador (ANTONIONI, 1996: 73). No final, há um retorno ao estúdio. O grupo de mulheres e homens alienados uns dos outros sai agora conversando, numa prova visível dos efeitos da reencenação – uma comunhão de interesses e um compartilhar de problemas comuns. Ao recrutar corpos e opiniões excessivamente singulares, A história de Caterina e Tentativa de suicídio introduzem, em 1953, questões fundamentais para a representação realista, questões que se tornam progressivamente mais óbvias com a prática do cinema-verdade nos anos 60 e, mais tarde, nos documentários militantes feministas dos anos 70. A principal característica do neo-realismo, a atenção ao mais particular e cotidiano da pessoa, radicaliza-se na reencenação por meio da presença de corpos que vivenciaram os acontecimentos originais. Uma procura similar de uma voz autêntica (dirigida à câmera ou de registro direto) leva o cinema-verdade a se concentrar em narrativas privadas. Ao misturar livremente entrevista, comentário e encenação, o episódio de Antonioni antecipa, em seu discurso misto, o método do cinéma-vérité francês de pôr em cena a verdade.13 Chronique d’un été (Crônica de um verão, de Jean Rouch e Edgar Morin, 1961), por exemplo, apresenta a dramatização silenciosa da rotina diária de um

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12. “Suicidi in città” foi publicado inicialmente em Cinema Nuovo 31 (fev. 1954).

13. Em “Cinéma direct et réalité”, Antonioni (1964) expressa sua suspeita em relação à noção de câmera objetiva.


trabalhador da fábrica Renault junto a outros participantes que revivem verbalmente seus traumas ou dificuldades passadas. Em sua vocação social, as dramatizações neo-realistas assemelham-se, principalmente, aos filmes americanos de despertar-de-consciência feminista. Como sugere Bill Nichols, as vozes com som sincronizado do cinema-verdade conduziram a um foco intenso no âmbito da esfera privada, mas com uma perda paralela de contexto. A necessidade de criar ramificações coletivas para declarações pessoais levou ao uso da narração em voice-over nos documentários dos anos 70 (NICHOLS, 1985). Nos episódios neo-realistas, a narração em voice-over é generalizada. A qualidade subordinada do exemplo, a sua função estrutural como ilustração de preceitos mais gerais, torna-se evidente. Enquadradas por comentários moralistas, essas narrativas exemplares devolvem a vida a seu proprietário, mas retificada. O comentário funciona como censura, ao passo que os corpos confessionais das mulheres servem como exemplos negativos. Com uma consistência assombrosa, projetos de reencenação repetem um “antes e depois” numa alegoria de mudança e melhoria. Essa função é tão central que rupturas na representação – a má atuação de Caterina Rigoglioso ou as trocas óbvias entre atores e pessoas que atuam como si mesmas – não são vistas como problemáticas no gênero. Tais diferenças são interpretadas como equivalentes às mudanças graduais em direção a um ser mais consciente e estável. Esse conto de auto-construção é o resíduo positivo de uma perda: a percepção de que a reencenação produz inevitavelmente uma nova imagem. Quanto mais se parece com o original, mais ela se distancia dele. É essa impossibilidade que confere à reencenação um valor pedagógico. Projetos de reencenação só se realizam como versões distópicas de Back to the future (De volta para o futuro, Robert Zemeckis, 1987): é só quando a mudança do passado se mostra impossível que os filmes podem propagar suas lições e advertências. No filme de Antonioni, a cicatriz estabelece os limites da reencenação. Através desse impasse corpóreo, a realidade põe à prova o realismo: a cicatriz atesta que a reencenação não pode afetar a realidade, não pode reverter o tempo. O potencial pedagógico da reencenação depende da irreversibilidade do tempo. Chamemos esse método de dar exemplo uma “condenação à

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repetição”. O fato de não se poder mudar o passado – mas, apenas, e se tanto, reproduzir a sua aparência – é o drama implícito da reencenação, e sua explícita moralidade.

Tradução: Jussara Quadros Revisão: Benjamin Albagli Neto

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imagem : marina damasceno


Virtualidade e referência: um breve olhar sobre Ulisses luiz augusto rezende filho Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ Professor adjunto do Nutes-UFRJ (Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde)

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Resumo: Este artigo discute questões relativas ao problema da referência no documentário por meio de alguns conceitos de Bergson e Deleuze. A partir da análise do curta-metragem Ulisses (Varda, 1982), procuramos mostrar como a virtualização é um processo constitutivo da criação documentária tanto quanto dos seus “objetos”, como mistos de dimensões reais e virtuais. Sugerimos que a compreensão dessa dualidade nos permitiria adotar uma perspectiva de análise do problema da referência como fundamentalmente uma questão de recepção e reconhecimento. Palavras-chave: Virtual. Referência ao real. Agnès Varda.

Abstract: This article discusses some questions related to the problem of reference in documentary film in the light of Bergson’s and Deleuze’s concepts. Starting with the analysis of Varda’s short film Ulysses (Varda, 1982), it intends to show how virtualization is a process that constitutes documentary creation as much as its “objects”, mixtures as they are of real and virtual dimensions. It is suggested that the comprehension of this duality allows the adoption of a perspective of the reference problem as fundamentally a question of reception and recognition. Keywords: Virtual. Reference to the real. Agnès Varda.

Résumé: Cet article discute des questions relatives au problème de la référence dans le documentaire au moyen des quelques concepts de Bergson et Deleuze. A partir de l’analyse du court-métrage Ulysse (Varda, 1982), nous avons l’intention d’expliciter comment la virtualisation est un processus constitutif de la création documentaire ainsi que des “objects”, en tant que mélanges de dimensions réeles et virtuelles. Nous suggérons que la comprehension de cette dualité permettra d’adoter une perspective du problème de la référence comme fondamentalement une question de reception et reconnaissance. Mots-clés: Virtuel. Référence au réel. Agnès Varda.


O problema da referência parece ser um dos mais resistentes e insolúveis da teoria e da crítica do documentário, como atestaria qualquer revisão sobre o tema, nas mais diversas linhas teóricas. Neste texto, procuramos abordar esta questão a partir de uma mudança de perspectiva. Por meio de algumas noções do filósofo francês Henri Bergson, relidas por Gilles Deleuze, tais como as de virtual, “misto mal analisado” e “falsos problemas”, entre outras, nos aproximamos da análise do curta-metragem Ulisses (Agnès Varda, 1982), com o intuito de mostrar como este pequeno filme, ao tematizar a virtualização como processo de criação documentária, explicita a dupla dimensão real e virtual de todo “objeto” documentário, mesmo quando este é “apenas” a simples fotografia, produzida há muitos anos, que Varda utiliza como elemento motivador de seu filme. Para chegarmos lá, precisaremos, antes, entender em que sentido Bergson define a realidade como um “misto” de elementos reais e virtuais para, em seguida, tentarmos perceber como a compreensão do problema da referência no documentário se modifica no momento em que passamos a considerar a existência de virtualidades em perpétua diferenciação de si mesmas na duração de todo objeto fílmico. Segundo Bergson, memória, duração e coexistência definem a dimensão virtual daquilo a que chamamos “realidade”. Como dimensão particular da vida, o virtual mantém suas particularidades em relação ao real, ou seja, não se confunde com ele, apesar de ambos estarem em coalescência. Por esse motivo, a especificidade do virtual, sua dinâmica particular e sua forma própria de participar do movimento do mundo não deveriam ser reduzidas a uma mera “modalidade” do real, porque implicam uma maneira bastante diversa de existir, de “estar no mundo”. O que há é interdependência entre real e virtual, e não qualquer proeminência de um sobre o outro. O problema é que, quando nos propomos a considerar aquilo que correntemente chamamos “realidade”, geralmente são a dimensão virtual, as virtualidades que compõem essa “realidade” que ficam obscurecidos. Não só costumamos chamar de “real” o que o é efetivamente, mas também incorporamos virtualidades a essa designação. Tomamos virtualidades por realidades, sem levar totalmente em conta as diferenças entre ser real e ser virtual. Quando falamos em “realidade”, tendemos, portanto, a subsumir a “dimensão virtual” dos objetos, acontecimentos

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e situações ao que pretendemos considerar “real” em um documentário. A preeminência de uma certa “retórica do real” na avaliação que, principalmente, o senso comum faz do documentário colabora tanto com essa subsunção do virtual ao real quanto com o obscurecimento da percepção de virtualidades naquilo que nos acostumamos a chamar “realidade”. Nesse sentido, a maior fonte de dificuldades está no fato de que o que denominamos realidade é, apropriando-me de uma noção bergsoniana, um misto, ou seja, uma mistura do real e do virtual, daquilo que está dado (real/atual) nas circunstâncias imediatas e presentes de nossas vidas, e do que não está (virtual). A matéria, por exemplo, é um misto de matéria e duração; a percepção, de percepção e memória; a objetividade e a subjetividade são mistos do objeto e do sujeito. Não há qualquer problema em haver mistos – a própria experiência, como vemos, só nos propicia mistos (DELEUZE, 1999: 14). O problema, no entanto, é que, freqüentemente, os mistos são, usando mais uma expressão bergsoniana, “mal analisados”. Não os percebemos como tais, já que só podemos vê-los e experimentá-los de um ponto de vista em que “nada difere de nada” (DELEUZE, 1999: 99), em que as gradações e as diferenças que nos levam de uma a outra tendência do misto são “imperceptíveis”. O que denominamos percepção nos propicia, por exemplo, um misto de percepção e memória, mas como não sabemos distinguir claramente o que, neste misto, cabe à percepção e o que cabe à memória, compreendemos mal a mistura do misto (DELEUZE, 1999: 14-15). Tendemos, assim, a minimizar a participação ou a importância da memória no ato perceptivo, tomando a lembrança-imagem apenas como uma percepção enfraquecida. Tal simplificação nos faz levar em consideração apenas uma das tendências que compõem o misto, o que significa, no caso da maior parte das teorias do documentário, ver apenas realidade na “realidade”. O “prejuízo” fica, assim, por conta da dimensão virtual e das virtualidades do misto a que chamamos realidade, já que tendemos a ignorar que real e virtual estão em estrita coalescência, e a fundi-los, em razão das necessidades imediatas. Tendemos, por isso, a ignorar que o que designamos como “realidade” diz respeito não só à existência material e particular dos seres no mundo, mas também às suas formas particulares de durar e de participar da duração, não só ao espaço como repetição da matéria, mas

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também à sobrevivência do passado no presente sob as formas da memória e da duração. Essa “análise mal feita” do misto “realidade” acaba sendo fonte de alguns problemas. O primeiro deles é não perceber como o virtual participa do misto, e conseqüentemente, compreender mal a natureza da referência no documentário. É preciso “decompor” o misto nas tendências que o formam e repensar o papel que as virtualidades aí desempenham. Em segundo lugar, o virtual não pode ser confundido com uma forma do “possível”, ou seja, o problema da referência se encontra pautado por uma confusão entre o “problemático” (da ordem do virtual) e o “hipotético” (da ordem do possível). No que diz respeito às teorias do documentário, esses dois problemas encontram ressonância no uso que se faz da noção de representação (REZENDE FILHO, 2006). A noção de representação é indiferente às implicações desses problemas, uma vez que ela tende a reduzir o virtual a algo real e representável, como se este fosse um objeto prévia e completamente dado. Supõe-se que no processo que vai do objeto suposto à sua “representação” haja somente o movimento de realização de algo que já estava inteiramente construído, reduzindo-se, assim, o virtual a um possível. Daí uma “má formulação” da questão da referência, já que, por se supor o objeto como dado, deixa-se à sombra o conjunto de virtualidades que também o moldam e que tornam mais complexa qualquer forma de referência. Confundir o virtual com o possível traria o inconveniente de conduzir, freqüentemente, àquilo que Bergson denomina “falsos problemas” – formas empobrecidas e “despotencializadas” de analisar os mistos. Segundo Deleuze, a própria noção de possível é um falso problema. Ao pensar certas questões em termos de real e possível, há como que uma “projeção retrospectiva” do real sobre o possível: “esperou-se que o real acontecesse com seus próprios meios para ‘retroprojetar’ dele uma imagem fictícia e, com isso, pretender que ele fosse, a todo momento, possível antes mesmo de acontecer” (DELEUZE, 1999: 79)

A suposição de que o real se assemelha ao possível implica também a suposição de um real já preexistente, já todo contido como possível, sendo, portanto, não problemático e formado apenas por hipóteses – como se o real já estivesse “destinado” a existir da maneira exata como ele acabou existindo. É esta a questão que Deleuze coloca ao estabelecer a distinção entre o

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problemático, como delimitação do conjunto de virtualidades de uma idéia, questão ou situação, e o hipotético, como representação de um modelo pré-formado que se decalca sobre o real. O hipotético é da ordem da determinação de probabilidades, de hipóteses previamente representadas (se chover..., se não chover..., então...), que em nada se modificam ao se realizarem. Trata-se mesmo de um “exercício de representação”, já que, ao formular a hipótese, estabelece-se uma possível identidade entre esta e a sua efetivação, entre o objeto-acontecimento hipotético e a sua realização. Já para o que se apresenta como “problemático”, não se trata de representação, pois não há identidade entre a “formulação do problema” e a sua “solução”, assim como não há semelhança entre o virtual e o atual que lhe (cor)respondem. Falar do possível é, assim, falar sobre hipóteses e condicionamentos factícios. É falar do que “não existe”, nem realmente, nem virtualmente. Falar do virtual, ao contrário, é falar de algo que existe, mas não está dado. Daquilo que se formula como um problema à medida que o não dado insiste para ser finalmente dado como uma forma, colocando-se como um novo problema em um outro nível. Esse tipo de “confusão” é o que acontece, por exemplo, quando se usa a noção de representação para analisar o documentário. A noção de representação exige a suposição da preexistência de um objeto dado que é representado. Não importa, neste caso, se a representação é tomada como verdadeira (“realista”) ou “problemática”, “incerta”, “duvidosa”, em relação a seu objeto suposto. Importa, no entanto, que, em ambos os casos – mesmo quando se critica toda representação como manipulação ou simulação – supõe-se sempre um objeto preexistente, como possível ou como hipotético, ou não haveria condições para avaliar (positiva ou negativamente) a sua adequação à suposta “representação”. Esse objeto, supostamente preexistente, funciona como um modelo, um parâmetro para o julgamento da adequação da representação. Tal como o “possível” é uma espécie de “imagem fictícia” que espera o real se realizar para decalcar-se dele, a noção de representação também implica uma suposição de que o objeto, tal como o vemos atualmente “representado”, já teria existido como uma possibilidade dada para a representação, e que o movimento da representação se limitou apenas a “realizá-lo”. Quando Deleuze diz, por exemplo, que a representação “se efetua na recoleção do objeto pensado e na

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sua recognição por um sujeito que pensa” (DELEUZE, 1988: 310), ele está falando desse gesto em que o “objeto representado” tem que “esperar” sua representação se efetuar (a “recoleção” como “apreensão/registro” do objeto) para que, retrospectivamente, um sujeito (produtor/espectador) reconheça, ou não, o objeto na representação (recognição/reconhecimento do objeto). Nesse sentido, a noção de representação não cria muitos problemas para se pensar, por exemplo, a pintura de natureza-morta ou modelo vivo (pelo menos no âmbito da arte clássica), ou qualquer outra forma de expressão em que a dimensão real e material do objeto é, geralmente, tudo a que o pintor/artista tem para se ater, é tudo o que lhe “interessa”. Em outros campos, como o do documentário, no entanto, essa noção cria “falsos problemas”, pois se espera que o objeto se atualize pelos meios que lhe são próprios para “retroprojetar” essa sua imagem atual, instanciada num aqui-agora, em sua suposta realidade/possibilidade precedente. Com isso, pretendese que a forma que ele detém atualmente fosse desde sempre e previamente possível antes mesmo de acontecer. Pensando dessa maneira, perde-se o processo que vai do objeto como virtualidade à sua imagem atual que responde, de maneira particular, a um problema: dar a essa virtualidade uma forma atual que a resolva circunstancialmente. Por ignorar as virtualidades presentes nos mistos “objeto” ou “realidade”, ou seja, por tomá-los como prévia e inteiramente dados, a noção de representação é insuficiente para pensar processos como a criação documentária. Para o documentarista, o que inicialmente se delimita como “objeto” ou “realidade” se distende de tal forma em uma dimensão virtual (sua duração, sua memória, a coexistência de seu passado com seu presente etc.) que esta acaba sendo tão importante quanto a dimensão real de sua materialidade física ou circunstâncias concretas de existência no momento da filmagem. A materialidade dos objetos, da “realidade”, que muitas vezes se supõe ser o cerne da prática documentária, é, na verdade, apenas uma dimensão do misto em coalescência com tudo aquilo que o virtual, a “memória” dos objetos, lhe acrescenta ou retira. A noção de representação nos faz perder a reflexão sobre essa dimensão virtual dos objetos, acontecimentos e situações. Ela nos mantém presos à suposição de que o “objeto” se estabelece independentemente das virtualidades que participam de sua constituição. Como se ele se tornasse visível

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independentemente dos processos de virtualização/atualização que lhe conferem uma forma determinada em uma circunstância idem. Tratar o documentário como representação é, então, fonte de dificuldades para uma teoria que busque pensar a natureza da referência no documentário para além tanto das pressuposições ingênuas da objetividade ou do realismo quanto das restrições formais da crítica da manipulação e da simulação. Restituir à “realidade” a sua dimensão virtual é um primeiro passo para reformular a questão da referência no documentário pela reafirmação do “objeto documental” como não previamente dado. Para uma teoria da virtualização no documentário não pode existir objeto prévio, pois, se há virtualidades em qualquer “objeto” considerado, isto implica que este esteja, a todo e a cada momento, em constante diferenciação de si como algo que “dura” de uma determinada maneira. Ele não pode deixar de fazer dessa duração a reatualização de um conjunto de virtualidades, se compreendermos essa reatualização como uma “medição” momentânea do real, um estado particular virtual do devir. É a sobrevivência do passado do “objeto” no seu presente que expande a sua “realidade” (sua existência) em um campo de virtualidades que o torna, justamente, indeterminado demais para alguma coisa que se supõe previamente dada. É isto que faz do “objeto” um virtual e um complexo problemático: o fato de coexistirem suas atualidades (como medições momentâneas do real), sua realidade (como aquilo que se repete em sua matéria a cada momento) e suas dimensões virtuais dessemelhantes. As virtualidades de Ulisses A virtualidade de todo “objeto” aparece de forma bastante explícita no curta-metragem Ulisses (Agnès Varda, 1982). Neste filme, Varda analisa uma foto, produzida 28 anos antes (em 1954), quando ela era fotógrafa, na qual figuram, numa praia deserta, um homem, uma criança (o “Ulisses” que dá nome ao filme) e uma cabra. No alto e à esquerda da foto, estão o homem e a criança, nus ao fundo do quadro; abaixo e à direita, a cabra morta, em primeiro plano. Poderíamos dizer que, a princípio, a foto é, efetivamente, o “objeto” do filme. A partir da foto, apresentada no primeiro plano do filme, Varda faz o que parece ser, inicialmente, uma investigação sobre a foto, em diversas etapas sucessivas.

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Philippe Dubois (1995: 65) identifica essas etapas da seguinte maneira: na primeira, haveria uma apresentação e descrição da “foto-objeto” – uma descrição de seus elementos reais/atuais. Na segunda, haveria o primeiro movimento propriamente dito de “investigação”, em que Varda vai tentar reencontrar os “protagonistas” da foto (o homem, a criança e a cabra, 28 anos depois), e fazê-los lembrar da experiência que foi tirá-la. Para Dubois, o resultado dessa primeira onda de “interrogatório” e pesquisa é “praticamente nulo”: “O homem (Fouli Elia, o egípcio, era manequim na época, depois tornou-se responsável pela fotografia na revista Elle) não quer mais se lembrar: a criança, hoje adulta (e livreiro no bairro do Marais), fica incapaz de formular um efeito de memória (é sua mãe, Bienvenida, presente por ocasião da tomada, que ‘sobe’ atrás dele e chega a se lembrar em seu lugar com emoção, falando com Varda da doença de seu filho e do trabalho-amizade que, na época, as ligava); e a cabra morta, mesmo que reencarnada em uma de suas semelhantes, fica reduzida a devorar a sua própria imagem em silêncio. Nada, ou quase nada, de lembrança.” (DUBOIS, 1995: 69, grifos do autor).

Como forma de dar continuidade à investigação, uma vez que as primeiras tentativas não teriam surtido efeito como instrumento de rememoração, Varda tenta mais algumas estratégias, entrevistando crianças que tinham, na época da produção do filme, a mesma idade que Ulisses na da foto. Ela pede a essas crianças que comparem a sua foto a um desenho feito por Ulisses – uma versão (infantil e colorida) da foto. A resposta obtida das crianças – “a foto é mais real do que o desenho” – leva a diretora a se indagar sobre o que há de “mais real” em sua foto. De maneira um tanto irônica, Varda vai, então, buscar esse “real” não mais nos próprios elementos reais/atuais visíveis na foto (a praia, o homem, a criança, a cabra), mas num “real” que está apenas virtualmente, e não “realmente”, presente como memória. Articula-se a partir daí uma percepção-questão presente – o “mais real” da foto – a um determinado nível de distensão da sua memória – o contexto histórico, o que acontecia naquele dia 9 de maio de 1954, data da foto. O filme passa, então, a mostrar atualidades políticas, sociais e culturais da época, em notícias de jornais da época, trechos de material de arquivo e de cinejornais (aquilo que, segundo uma certa convenção, era considerado “real” pela sociedade, pelos meios de comunicação etc.), combinados ao

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comentário irônico, bem-humorado e poético da própria Varda. O filme se conclui retornando à foto e indicando, por fim, a imaterialidade da própria foto como “objeto real”: “uma imagem, a gente vê nela o que bem quiser”, assinala Varda. Desde o início, Varda procura “expandir a realidade” de sua foto-objeto apontando e valendo-se de suas virtualidades. Em primeiro lugar, trata-se de evocar a “memória da foto”, a sua forma particular de durar ou de distender os 28 anos decorridos a partir do instante reatualizado da tomada da foto. Evocar a sobrevivência no presente (1982) do passado (1954) da foto e de determinados personagens – sejam os protagonistas diretos e visíveis na foto (o homem, o garoto, a cabra), sejam os indiretos ou invisíveis (a mãe de Ulisses, a própria Varda) –, e “forçar” esse passado, essa memória, a se atualizar. Lidar diretamente com a virtualidade da memória, tomada, a princípio, como tema ou como objeto, mas afirmando e valorizando essa virtualidade como indicação da indeterminação do próprio objeto. A foto é, certamente, algo de material, de concreto. Mas é também um objeto virtual, porque é indeterminado, como problema e como processo (a investigação realizada pela diretora), por sua memória e por sua maneira particular de durar no tempo, mas também pela duração e pela memória dos seus protagonistas diretos e indiretos – cujos esquemas sensório-motores se encontram, eventualmente, rompidos (a incapacidade de lembrar ou de reagir a um estímulo). Trata-se também de empreender um processo de virtualização por meio da foto, e estabelecer-lhe um campo problemático de questões a que seus elementos (suas circunstâncias, seus personagens) se relacionam, virtualizando-os e fazendo-os mudar em direção às questões propostas. Buscar uma “resposta” a um problema que não está contida no objeto, que não se encontra escondida, nem espera ser revelada, descoberta, pelo cineasta, mas que, ao contrário, precisa ser criada, produzida. Assim, quando Varda passa a levantar o contexto histórico de sua foto (as imagens e os acontecimentos próximos à data de sua produção), ela a está virtualizando em direção a uma questão específica (“o que há de real em minha foto?”). Por sua vez, as “respostas”, que eventualmente se atualizarem, serão contingentes à especificidade da questão levantada, e não o conteúdo latente pré-formado, e simplesmente possível, do objeto. A foto-objeto se desdobra em

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uma nova aparência, uma aparência que também lhe pertence, que é parte da totalidade de seu passado se projetando sobre sua atualidade (sua apresentação cinematográfica), para responder de alguma forma à questão que lhe foi relacionada. Esta nova aparência, esta resposta que surge, não estava pré-contida no objeto, na questão, e só poderia ser pressentida muito vagamente como hipótese. Após ter ido buscar o “real” da foto no seu contexto histórico – procedimento, até certo ponto, padrão de investigação histórica ou jornalística –, Varda conclui que sua foto-objeto poderia ter sido feita há dez anos em vez de trinta ou quarenta, pois não há nada nela que a ligue ao momento, à data, de sua realização. Nada de tudo aquilo – os acontecimentos e personagens históricos – aparece na foto, diz Varda. A única coisa que liga, então, a foto, como realidade, a seu contexto histórico são as suas virtualidades, a dimensão virtual do objeto, a totalidade de sua memória e a de todos os seus elementos – as recordações de Varda, do homem, da criança, da cabra – e de suas circunstâncias. A realidade da fotoobjeto se esgota muito rapidamente diante de suas virtualidades, e é apenas desenvolvendo essas virtualidades, e forçando-as a uma série de atualizações particulares, que Varda consegue traçar um trajeto para o filme. Este trajeto é, deliberadamente, o da exploração dessas virtualidades (as lembranças, as questões), operando como uma estratégia específica de virtualização, entre tantas outras. Nesse sentido, a “investigação” que Varda promove a partir de sua foto não é senão uma “pseudo-investigação”. Em nenhum momento pode-se acreditar que a diretora considere seriamente a foto como um “objeto” de análise plena e previamente construído. É por isso que se pode dizer que o filme toma a virtualização como seu próprio “tema”. Não é verdadeiramente importante que o salto no passado/memória da foto e de seus personagens tentado pelo filme tenha produzido poucas ou nenhuma lembrança-imagem. Nem que o filme tenha sido incapaz de “oferecer à imagem a explicação que lhe daria toda sua consistência, que preencheria o vazio que parece oferecer”, ou de conferir “uma espessura semântica”, como sugere Dubois (1995: 69), em sua análise. A foto não “dirá” nada, enquanto não deixar de “dizer” virtualmente tudo. Enquanto não estabelecer uma parcialidade que é a da resposta particular que o filme busca à sua questão determinada. Essa parcialidade é, por

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sua vez, a própria questão que alimenta o processo de virtualização e que extrai, de uma “totalidade virtual” problemática, uma atualização, que confere ao filme certos índices de parcialidade assimiláveis pelo espectador, tais como valor, significado, sentido, referência à realidade, ambigüidade, ironia etc. O empreendimento de Varda vai, então, muito mais no sentido de evidenciar essa parcialidade do objeto e de afirmar o trajeto a partir do qual este, por seus próprios meios, se constitui (e se enriquece de atualizações e virtualidades), do que de tomar a sério um projeto de decifração imparcial e completa da fotoobjeto, considerando-a como algo que conteria guardadas em si as respostas. No caso de Ulisses, trata-se mesmo de conceber o próprio “objeto” não como alguma coisa inteira ou parcialmente pré-contida num projeto que se busca realizar o mais fielmente, mas como “idêntico” apenas ao trajeto que ele percorre e em que ele se forma por meio do filme e em função de seus processos de virtualização. Não se poderia alterar ou dividir o trajeto sem que se alterasse e se dividisse ao mesmo tempo o “objeto”. Assim, o que ocorre de decisivo entre a primeira apresentação da foto-objeto (o primeiro plano do filme) e a última (o último plano do filme) não é a concretização de um “pseudoprojeto” de decifração ou elucidação do sentido da foto, mas, justamente, esse trajeto-filme que foi necessário para constituir um certo “objeto” e para poder “passar do primeiro ao último plano” (DUBOIS, 1995: 70). O que há de especial em Ulisses não é apenas o fato de o filme empreender uma contração-distensão ou uma “exploração” das virtualidades de seu “objeto”. Todo filme, todo documentário, empreende, de alguma forma, um processo de virtualização/atualização similar. A especificidade do filme de Varda está, como dissemos, em tematizar, de maneira evidente, a própria virtualização, o próprio caráter virtual do “objeto”. Esse caráter virtual não se mostra de forma tão evidente em todos os filmes. O filme de Varda, como alguns outros, é uma exceção. Muitos filmes, inclusive documentários sobre personagens e acontecimentos históricos, podem muitas vezes ignorar ou esconder as virtualidades com que trabalham. Mas isso não significa que os “objetos” tratados nesses filmes não tenham alguma dimensão virtual. Esse dado essencial de uma virtualidade do objeto, que se acrescenta e se sobrepõe à sua realidade/atualidade, é importante também para pensarmos diferentemente a natureza

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da referência que o documentário pode estabelecer com o misto a que chamamos realidade. Por ser um misto, deveríamos pensar a referência ao “real” de uma outra forma. Se, como vimos, a “realidade” e os “objetos” que nela encontramos são mistos de elementos e tendências reais e virtuais, poderíamos compreender a referência também como uma virtualidade. A referência ao “real” não deve ser entendida, então, como uma forma de adequação ou de analogia entre o “objeto” (a realidade) e o documentário (a imagem, a “representação”). Enunciar dessa maneira a questão é enunciá-la de uma forma insolúvel, já que se imagina uma relação entre coisa e imagem “em que cada um desses dois termos possui, por definição, o que falta ao outro” (BERGSON, 1990: 28). À coisa sempre faltará a possibilidade de se “reproduzir idealmente” e de suprimir a sua ausência eventual ou necessária. À imagem sempre faltará a dimensão completa e complexa da realidade/virtualidade simultaneamente presentes na coisa. Bergson sugere que coloquemos o problema em termos de imagens, de relações entre imagens, já que “só apreendemos as coisas sob forma de imagens”, sem que seja totalmente necessário que se faça a distinção entre a existência da coisa e a sua aparência (BERGSON, 1990: 16). Considerar, portanto, o misto realidade antes da dissociação – consagrada, em grande medida, pela noção de representação – entre sua existência e sua imagem. Quando, no entanto, não se traz a reflexão para o campo das virtualidades, a dificuldade maior é que só se poderia falar de correspondência ou analogia entre dois termos supondo-se que um deles preexista à própria analogia (representação). Mas, como vimos, se o “objeto” se distende em virtualidades (ou seja, existe também virtualmente), ele não pode desempenhar o papel de “modelo”, já que, por princípio, as suas virtualidades impedem a existência de qualquer modelo, de qualquer cópia – mesmo quando se deseja profundamente copiar. Ao durar, o objeto se diferencia de si mesmo: a toda nova atualização que sofre, ele muda em direção a uma questão, a um campo problemático. Como falar em identidade ou correspondência entre dois elementos (o “representado” e a “representação”), se a produção de qualquer documentário não pode se fazer a não ser por meio da criação de diferenças, de soluções e configurações novas e não preexistentes? Aceitar ou não a criação dessas diferenças, torná-las claras para o espectador, é um dos fatores que distingue, de forma geral,

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os filmes entre si. O filme de Agnès Varda é exemplar nesse sentido. Tanto porque ele evidencia seu caráter de virtualização, quanto porque ele mostra como o “objeto-tema” só se dá a ver à medida que percorre um trajeto (em sua imensa virtualidade) concretizado pelo filme. A produção de qualquer documentário não pode consistir simplesmente, portanto, na realização de uma correspondência adequada entre “realidade” e imagem (indevidamente colocados em oposição), mas na atualização de determinadas virtualidades dentro de determinadas condições reais, certamente. Nesta perspectiva, a questão da referência muda seus contornos. Um primeiro problema da reflexão tradicional sobre a “referência ao real” no documentário vem, justamente, do fato de se ignorarem essas virtualidades (do “objeto”, do “sujeito”, das condições de produção, do próprio documentário como instituição) que integram o processo do filme. Um segundo problema origina-se da suposição de que nada é criado no trajeto que vai do ponto de partida do documentário – uma idéia inicial, uma série de imagens captadas ou mesmo um roteiro definido – à sua forma final: como se o problema central do documentarista fosse apenas recolher dados preexistentes no mundo e realizar uma correspondência entre a existência real e prévia destes dados e sua forma audiovisual. Mas o “problema” do documentarista não é apenas “recolher e mostrar”. É criar uma forma atual e ainda inexistente a partir de um emaranhado disforme de virtualidades e realidades materialmente condicionadas. É também virtualizar determinadas referências, fatos, acontecimentos, informações e circunstâncias. Para se fazer, por exemplo, um documentário sobre um personagem histórico, é preciso fazer tal “personagemobjeto” atravessar, em um movimento de virtualização, um campo de questões de todo tipo (históricas, metodológicas, subjetivas, discursivas, epistemológicas) que a pura “realidade existencial” do personagem é insuficiente para resolver. Um tema, um personagem, um depoimento ou um conjunto de informações, sejam quais forem, se apresentam, substancialmente, como virtualidades: conjuntos a priori indefinidos de elementos múltiplos, variabilidades, contingências e idéias não inteiramente formadas ou distintas. Mesmo que esses “objetos” a que se busca fazer referência, sendo reais, possam falar, agir, reagir, enfim, viver independentemente da vontade dos realizadores do filme,

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sua forma, sua apresentação e aparência documentais não existem antes de passarem pelo processo de virtualizações/atualizações que os constitui como “objetos” e que constitui o documentário como tal. É, inclusive, em função desse caráter virtual que pode haver uma multiplicidade de versões documentárias de um “mesmo” tema ou objeto,1 supondo que, é claro, nunca será o mesmo objeto, pois virtualidades diferentes (níveis de contração e distensão diversas da memória, associados a questões particulares) percorrerão, a cada filme, um trajeto diferente, constituindo também um objeto diferente. O curta-metragem Ulisses, de Varda, pode, mais uma vez, servir de elemento para uma reflexão sobre a “virtualidade” da referência no documentário. Por meio de sua argumentação, Varda encontra um estrato de referência da foto que, a princípio, existia somente como virtualidade. A referência estabelecida entre a foto e o contexto histórico – criada não a partir da presença atual do referente na imagem, mas a partir da virtualização da foto, ou seja, da proposição de um campo problemático ao qual a foto se relaciona e que a faz mudar em direção a este problema, redefinindo-a – explora essa virtualidade constitutiva de qualquer imagem. O sentido convencional em que a referência é notada restringe sua existência aos elementos presentes na imagem, sem nos fazer notar que toda referência ao real vem também da virtualização da imagem (e outros elementos) e das relações virtualmente nela presentes, produzidas pela proposição de uma interrogação que se relaciona ao conjunto, e atualizadas por argumentações, associações, justaposições ou seqüenciações específicas. O valor indicativo da referência vem do campo problemático virtual ao qual a imagem é submetida. Apesar de ser “real” e “verdadeira”, mesmo essa proximidade histórica (como dado exterior à imagem) pode ser revertida, como em Ulisses, em função de seu caráter virtual. Essa ligação – que é a própria referência – só pode ser feita a partir de informações e dados que são exteriores à imagem, que compõem a sua memória como imagem, e não como “realidade”. Mesmo no caso das imagens em que se considera haver uma referência histórica mais “evidente” (como as que Varda usa para caracterizar o contexto histórico francês de meados dos anos 50), são apenas um conhecimento ou uma explicação vindos de fora da imagem que podem atualizar a sua referência ao real, indicando a identidade do personagem ou

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1. Segundo Bergson, “não há realidade concreta em relação à qual não se possa ter ao mesmo tempo duas visões opostas” (BERGSON apud DELEUZE, 1999: 34).


acontecimento histórico. A validação desta indicação depende de um sujeito exterior que observa e avalia a sua “adequação” e seu contexto. A referência é, portanto, um problema de reconhecimento, de recognição, e não apenas ou principalmente um problema da epistemologia da criação documentária. É claro que, neste caso, não nos referimos à atestação perceptiva do tipo “isso se deu nessa ocasião sob essas circunstâncias” ou “esse indivíduo é Fulano de Tal e declarou isto neste momento” etc. Precisamos ultrapassar esse nível “barthesiano” da discussão sobre a referência, que, na maior parte das vezes, só interessa secundariamente às questões relativas ao documentário. A referência não se limita a esse nível “factual” da identidade do personagem ou do contexto do acontecimento. Ela envolve relações intrincadas entre discursos, saberes, perspectivas e, inegavelmente, identidades. Mas é justamente essa complexidade que a faz alguma coisa que precisa ser “completada” por elementos não atuais da imagem, como nos mostra Varda. A referência no documentário é uma potência, uma virtualidade que não se atualiza sem que se coloque em jogo um esforço deliberado para que uma determinada perspectivaobjeto se constitua em meio a outras. A referência ao real, no documentário, só se constitui efetivamente no momento em que o olhar de um espectador, dentro de suas próprias condições (também virtuais), se confronta com o filme. Ela não é, assim, apenas um dado prévio atestável pelo “conteúdo” da imagem independentemente das condições daquele que olha. Assim, levando-se em consideração as virtualidades envolvidas num filme documentário, pode-se entender a referência mais como um “efeito” (no sentido de que este se encontra mais em quem observa) de certas modalidades de virtualização/atualização, do que como um dado intrínseco da imagem documentária. Mas não se pretende, com tudo isso, negar a realidade das coisas tangíveis ou a existência de referência no nível “factual” ou “imediato”, que acima denominávamos “barthesiano”. Trata-se de reconhecer a referência como problema de múltiplas faces, complexificado pelo caráter “misto” do que comumente chamamos “realidade” num documentário. Trata-se, exatamente, de rever as oposições entre real e imagem. Se o problema da referência ao real se coloca tão insistentemente, é muito mais em função de uma tradição à qual interessava afirmar a capacidade “intrínseca” do documentário de

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“espelhar” o real, capacidade essa que o distinguiria fortemente da ficção cinematográfica. Reproduzia-se, assim, a dicotomia simplista entre real (o que existe) e ficcional (o que é inventado), para promover o documentário como uma forma cinematográfica absolutamente oposta e “superior” à ficção dominante. A questão da referência é, portanto, tipicamente uma questão de representação, formulada e fundamentada pela sua lógica. O filme de Varda e vários outros mostram isso muito bem, já que, ao buscar e destacar dimensões virtuais de seus “objetos”, incita o espectador a questionar o documentário como representação, e não apenas a colocar sob suspeita o nexo indicativo suposto pela imagem – como postulava grande parte dos defensores do documentário auto-reflexivo. Mostra, neste ponto, diferenças nas maneiras como um documentário pode nos fazer perceber realidades e virtualidades das imagens e sons que nos oferecem. No valor dessas diferenças, se encontraria, justamente, a questão principal para uma teoria ou uma crítica da virtualização no documentário.

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Referências BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990. REZENDE FILHO, Luiz Augusto C.. O uso da noção de representação na teoria do documentário. In: MACHADO JR., R.; SOARES, R.; ARAÚJO, L. (Orgs.). Estudos de cinema Socine VII. São Paulo: Annablume, 2006. DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999. DUBOIS, Philippe. A “foto-autobiografia”: a fotografia como imagem-memória no cinema documental moderno. Revista Imagens, n. 4, abr. 1995.

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imagem : rodrigo freitas


Viagens na fronteira do Brasil e do cinema andréa frança Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola da Comunicação da UFRJ Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC/RJ

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Resumo: Análise do projeto Viagens na Fronteira, realizado pelo Itaú Cultural (1998), com ênfase nos trabalhos em vídeo de Carlos Nader, Sandra Kogut, Roberto Moreira, Marcello Dantas e Lucas Bambozzi. Entre o Brasil e a América Latina, entre cinema e vídeo, entre campo do documentário e arte contemporânea, as imagens da série, no seu inacabamento, assumem o Brasil e o cinema como domínios a serem reinventados e liberados do espectro identitário. Palavras-chave: Vídeo. Cinema Documentário. Arte Contemporânea.

Abstract: This essay discusses the Viagens na Fronteira Project, developed by Itaú Cultural (1998), focusing on the video works of Carlos Nader, Sandra Kogut, Roberto Moreira, Marcello Dantas and Lucas Bambozzi. The unfinishd aspect of these images – between Brazil and Latin America, video and cinema, documentary and contemporary art – depicts Brazil and cinema as territories to be reinvented and liberated from the indentitarian stygma. Keywords: Video. Documentary Film. Contemporary Art.

Résumé: Analyse du Projet Viagens na Fronteira, réalisé au sein du programme Itaú Cultural (1998), mettant en relief les travaux en vidéo de Carlos Nader, Sandra Kogut, Roberto Moreira, Marcello Dantas et Lucas Bambozzi. Entre le Brésil et l’Amérique Latine, entre la vidéo et le cinéma, entre le domaine du documentaire et de l’ art contemporain, les images de cette série, dans leur inachèvement, mettent en évidence le Brésil et le cinéma comme des domaines qui doivent être réinventés et libérés du spectre identitaire. Mots-clés: Vidéo. Cinéma Documentaire. Art Contemporain.


Viagens na fronteira é o título da série de cinco vídeos, realizada pelo Itaú Cultural em 1998, que teve como tema “fronteiras”. Trata-se de um projeto amplo que emerge junto com o convite feito a fotógrafos, escultores e artistas plásticos para participar de uma ação coletiva com o objetivo de propiciar um espaço de criação fora dos espaços tradicionais de exposição de arte, como galerias e museus. Artistas plásticos como Waltercio Caldas, Artur Barrio, Ângelo Venosa, entre outros, instalaram seus trabalhos em diferentes regiões da imensa fronteira brasileira, fixando novos e inusitados marcos geográficos nas divisas do país. No âmbito do audiovisual, foram convidados os artistas Carlos Nader,1 Lucas Bambozzi,2 Marcello Dantas,3 Roberto Moreira4 e Sandra Kogut.5 A proposta era percorrer diversas regiões fronteiriças do Brasil, de Norte a Sul, registrando situações, conversas, encontros e desencontros, construindo histórias com o formato de um diário de viagem, com tempo máximo de cinco minutos cada. Os cinco trabalhos têm, portanto, curtíssima duração, e neles a sensação de efemeridade é brutal. Há em comum a tentativa de pensar as fronteiras geográficas e humanas do país como espaço do imponderável, possibilidade de experiências novas, limiar entre o conhecido e o que resta conhecer, marco entre o mundo cotidiano e aquele sonhado e, ainda, modo de explorar as próprias fronteiras estilísticas do campo do cinema documentário. A imagem da fronteira institui e promove uma discussão sobre a(s) fronteira(s) da imagem e do audiovisual. Podemos nos perguntar sobre o interesse por esse projeto: o que teria para suscitar o desejo de partilhar uma percepção do sensível em comum? Primeiramente, a idéia de um inacabamento que, reiterado em cada vídeo, faz escorrer modos de vida fragmentados, sem a marca do pertencimento a grupos, agremiações ou classes sociais; em segundo lugar, a possibilidade, trazida pela série, de explorar formas variadas de exibição e de circulação de imagens: nas salas de cinema, na televisão, em espaços públicos, em galerias ou museus; como se a arte contemporânea encontrasse na imagem em movimento não simplesmente um novo suporte, mas novas formas de linguagem, criando obras híbridas, videoplásticas, que podem circular e ser vistas em diferentes espaços, públicos ou privados; e, por fim, a proposta do projeto de pensar o Brasil e a América como invenção nossa em que colaboram cineastas, artistas plásticos, fotógrafos, poetas.

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1. Diretor, produtor, videoartista. Realizou, além de instalações e videoperformances, filmes como O beijoqueiro (1992), Trovoada (1995), Território do invisível (1994, com Marcello Dantas), Carlos Nader (1998), Preto e branco (2004), entre outros. 2. Documentarista, videoartista. Tem obras em vídeo, filme, instalações, Internet etc. Realizou filmes como o longa-metragem O fim do sem fim (2001), Aqui de novo (2002, 6 min.), Eu não posso imaginar (de 1999, 22 min.), Ali é um lugar que não conheço (1997, 7 min.), entre outros. 3. Diretor de TV, vídeo, cinema. Curador de inúmeras exposições (Bill Viola, Peter Greenaway) que têm em comum o encontro entre arte e tecnologia. 4. Diretor, roteirista, consultor do Itaú Cultural. 5. Videoartista, documentarista, realizadora de videoinstalações, videoperformances. Entre as obras importantes, destacam-se Videocabines são caixas pretas (1990, 5 min.), Parabolic people (1991), Lá e cá (1995, 25 min.), Um passaporte húngaro (2001, longa-metragem).


A imagem inacabada e a palavra experiência Ponta Porã, Pedro Caballero, Foz do Iguaçu (8 min., Marcello Dantas), São Gabriel da Cachoeira – San Felipe (7 min., Carlos Nader), Oiapoque – L’Oiapoque (11 min., Lucas Bambozzi), Chuí, Lecy e Humberto nos campos neutrais (8 min., Sandra Kogut) e Bonfim – Lethen (6 min., Roberto Moreira) são filmes que tematizam a experiência de estar, habitar ou passar pelas fronteiras do país. Exibem, de formas variadas, um excesso de horizontes e de possibilidades, a percepção de um país imenso, de dimensões continentais, distante da experiência histórica de limites conquistados no conflito com outras nações e culturas. Aqui, a experiência de estar na fronteira é entremeada por tempos mortos, longas esperas, relatos de vida às vezes improváveis, conversas, seduções, situações arriscadas e imprevistas, encenações de tramas imaginadas que não só desempenham uma função dramática, caso do vídeo de Sandra Kogut, como endossam e dão densidade narrativa a um cotidiano marcado pela perda do “lugar” em que se sente protegido. Em Ponta Porã, Pedro Caballero, Foz do Iguaçu, Marcello Dantas se concentra na fronteira das cidades geminadas de Ponta Porã (Mato Grosso do Sul) e Pedro Juan Caballero (Paraguai). Dantas divide a tela em três para cada vez que a costureira, o índio ou o auxiliar de bombeiro narra suas experiências de vida. Os personagens sempre ocupam o centro da imagem enquanto as bordas são preenchidas pela paisagem do rio Iguaçu, das cataratas. Como não há divisas, acidentes geográficos que separem os territórios, é o filme que inscreve graficamente a linha, dividindo a tela, incrustando a conjunção como um modo de dialogar com o que é dito. Em São Gabriel da Cachoeira – San Felipe, Carlos Nader relata uma viagem com o poeta Waly Salomão até a Cabeça do Cachorro, região onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia, também conhecida como “garganta do Rio Negro”. Aqui, o poeta, filho de pai sírio e mãe brasileira, banha-se na correnteza das águas do rio enquanto declama poemas para a câmera; o ato de banhar-se funciona como um ritual que parece ativar uma memória do corpo: envolvido, protegido, banhado no líquido que dá origem à vida. A imagem de Nader registra repetidamente a performance do corpo do poeta dentro do rio, como se intuísse uma cerimônia de indistinção dos limites, de gestação.

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viagens na fronteira do brasil e do cinema

/ andréa frança


Lucas Bambozzi, com Oiapoque – L’Oiapoque, vira sua câmera para o rio Oiapoque, que separa o Brasil da Guiana Francesa, para explorar de que modo o outro lado do rio evoca, para os brasileiros que estão no Amapá, todo um imaginário da diferença e de melhores condições de vida. Nessa zona de intersecção, para muitos, abrem-se as portas de uma nova vida em território francês. Obstinados, insatisfeitos e desesperançados com as condições que a Amazônia lhes proporciona, as pessoas documentadas procuram, acima de tudo, a consolidação de um sonho vago, tênue e incerto. Para dar mais força dramática às cenas e aos desejos expressados, o filme manipula sutilmente o tempo e a textura das imagens: há dissoluções do figurativo, grafismos, imagens em super-8, flashes de rostos desamparados, de barcos solitários, de uma bandeira do Brasil flanando sem as palavras “ordem e progresso”. Em Chuí, Lecy e Humberto nos campos neutrais, de Sandra Kogut, a fronteira entre o Brasil e o Uruguai dissolve os limites entre ficção e documentário. A imagem é aqui uma escritura múltipla, uma trama saturada e complexa de depoimentos, ruídos, vozes, melodias, granulações. Muito distante da idéia de que o cinema deva se contentar em contar ou registrar modos de vida, a imagem de Kogut transforma o fazer cinema em matéria bruta para a ficção, em uma experiência infinitamente dobrada, desdobrada e complicada; a encenação de folclores da região e de cantigas de desencontro e solidão adensa ainda mais a trama ficcional, produzindo uma habilidosa interferência do cinema na vida e da vida no cinema. E, finalmente, Bonfim – Lethen, de Roberto Moreira, em que os depoimentos do garimpeiro idoso e do jovem habitante de Lethen nos falam de territórios idealizados e maravilhosos, contíguos e ao mesmo tempo distantes. Para além da dimensão representativa presente nestes filmes e da diversidade de propostas e metodologias, outros elementos chamam a atenção. Primeiramente, o fato de que todos estes trabalhos “transpiram o vídeo”, e isso não porque foram filmados em vídeo simplesmente, mas porque são marcados por uma estética do fragmento, da não-obra, marcados pela inscrição forte do risco de que não haja “filme” (DUBOIS, 2004: 164); isso posto, são também o lugar da palavra e o meio para um contato personalizado, na modalidade cúmplice da interpelação direta. Em Marcello Dantas, existe uma dimensão telejornalística que está presente desde a voz off no início:

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“sou Marcello Dantas e estamos indo com a equipe para a linha de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, entre os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul. A proposta é produzir a imagem geográfica da linha e o significado disso para as pessoas que vivem em torno dela”

Mas há também a incrustação da linha na imagem que desenha um outro espaço, digitalizado, dialogando e reexperimentando o potencial gráfico e sonoro do que é dito pelos personagens e distanciando-se da outra grande mídia da palavra, a televisão. Na tentativa de exprimir uma sensibilidade que seja íntima e cúmplice dos entrevistados, Dantas propõe uma conversa em vídeo em que a linha é o contraponto da palavra, a escuta para um limite geográfico que é inexistente para aqueles que vivem na região. As imagens, portanto, são menos um relato de experiências vividas, preocupadas com a dimensão representativa, do que um jogo entre paisagens imaginadas, fragmentos de memória e de sonho, retomados e explorados em cada vídeo. Em Sandra Kogut, por exemplo, a fronteira com o Uruguai se transforma em uma máquina de fabulação que inventa uma trama complexa de mundos inconclusos e etéreos, memórias de desencontro e melancolia encenadas pelas feiras, ruas e esquinas da região. Trata-se de todo um trabalho de desfiguração, de esgarçamento das ações narrativas em prol de situações em aberto, residuais, de superfície. Há nestes trabalhos uma rejeição a qualquer tipo de representação totalizadora, bem de acordo, aliás, com as diversas gerações de videastas brasileiros que deixavam “patente nas obras as suas próprias dúvidas e a parcialidade de sua intervenção, ao mesmo tempo que se interrogavam sobre os limites de seu gesto enunciador e sobre sua capacidade de conhecer realmente e outro” (MACHADO, 2003: 29).

6. Na sinopse do projeto de filme de Lucas Bambozzi, cedida pelo realizador à autora, podemos ler: “trata-se de uma viagem aos limites do Brasil, que busca explorar uma área indefinida onde permutam-se identidades e incertezas, em um ambiente permeado por atividades ilícitas e temporárias”.

Se essas imagens propõem um diálogo com o campo do cinema documentário, como veremos, e os próprios realizadores não negam o valor político do projeto como abrigo e produtor de representações culturais, históricas e sociais,6 elas são também lugar de uma outra experiência sensível, em que a tela muitas vezes se transfigura, desmaterializada, dissolvida, devolvida à sua condição precária de linhas e pontos luminosos em uma superfície. No projeto, a representação das fronteiras do Brasil se traduz em uma zona híbrida, instável e obscura, permitindo a

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fruição da imagem em movimento não na perspectiva única e exclusiva de uma profundidade de campo que permitiria compor modos diversos de referencialidade e densidade dramática (a imagem-cinema de André Bazin), mas na perspectiva de uma espessura da imagem, cujos compartimentos se fazem na própria imagem e não em um mundo designado por ela. Há em comum um senso constante de experimentação, de ensaio, de pesquisa, em que a modalidade videoplástica, presença forte no trabalho de Lucas Bambozzi, se mistura constantemente com o campo do documentário, modalidade que fundamenta toda a série. Em Carlos Nader, as palavras versadas de Waly Salomão contaminam corpo e imagem, convocando uma memória coletiva do corpo e criando espaços à deriva por meio da reverberação errante da voz poética. Em Lucas Bambozzi, a imagem inacabada se traduz nas relações instáveis e fugidias da região amazônica, no seu diálogo com situações de vida provisórias e efêmeras; embora organizada em tempos determinados – a espera, a ida e a volta –, a narrativa se abre para as relações imperceptíveis que constituem o “mundo” em torno do rio Oiapoque; os deslizamentos da forma e do sentido, promovidos pelas incrustações na imagem das palavras “entrée – entrada”, “incident – incidente”, traduzem esse desejo de ultrapassar a forma, o sentido das palavras, a percepção das coisas. Em Roberto Moreira, as imagens iniciais têm uma resolução bastante baixa, explorando nos planos os binômios vazio/cheio, escuridão/luz, determinado/indeterminado, na tentativa de exprimir uma sensibilidade em sintonia com as falas e o estado de espírito dos indivíduos entrevistados: ciência, astronomia e espiritualidade se misturam, ofuscando o princípio de credibilidade que cerca os depoimentos do velho garimpeiro e do jovem morador de Lethen. A incrustação da linha na tela, as dissoluções do figurativo, os espaços à deriva, entre outras alterações na imagem, constroem uma mise-en-scène da fronteira, do intervalo, dos corpos e das palavras, enfim, toda uma lógica de intervenção suscitada pela necessidade “de respeitar a palavra filmada”, ao invés de triturá-la, comprimi-la, manipulá-la, prática comum nas mídias de massa, cujo funcionamento é garantido pela comunicação total, pela retórica do convencimento (COMOLLI, 2004: 268). Em suma, os cinco trabalhos evidenciam de que maneira formas visuais e formas sonoras, tão atuantes desde a arte moderna, não nos dão a ver e a ouvir simplesmente palavras e

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coisas, não nos asseguram um lugar estável em uma narrativa de feitos, mas antes produzem uma sensibilidade para fora do próprio território de realização em que estas imagens se inscrevem. Imagens documentais e arte contemporânea Ainda na perspectiva de inacabamento que marca essas imagens, destacaria a dimensão do cinema documentário que está presente nos cinco trabalhos e que dá à palavra do outro um papel essencial na invenção de formas visuais para além do mero registro. Não se trata de artistas fazendo telejornal, reportagem, preocupados com a urgência do momento a captar ou com o sentido produzido; a dimensão documental aparece porque a palavra do outro tem um papel essencial na pesquisa audiovisual, porque está inserida na imagem como interface: o olho do artista é um “olho da escuta”. O vídeo de Sandra Kogut explora todo um material fabulatório – cantado, narrado – em que a palavra do outro é a palavra do mundo, itinerante e nômade; a fronteira é o lugar de encontros e desencontros, partidas e chegadas, e este olho da escuta traduz o sentimento de errância através de imagens corriqueiras, feitas em super-8, de ruas, portos, cais, barracas de feira, estradas: há uma saturação do tempo longo, da contemplação de histórias de desventura e saudade. Em Bambozzi, as bordas escurecidas da imagem sugerem que a percepção é também uma experiência de opacidade, que há qualquer coisa de obtuso e incerto no desejo de ultrapassar a fronteira, assim como as pulsações e a velocidade vertiginosa de algumas cenas parecem provocar uma transmutação da matéria, uma perda da capacidade de identificar objetos, pessoas, histórias. Marcello Dantas cria dispositivos tecno-estéticos para mostrar a inscrição da linha na imagem, a divisa que, nas falas dos personagens, parece dispersa ou mesmo inexistente. Os cinco artistas querem estabelecer uma ponte com pessoas reais, e é desse material bruto que eles extraem suas imagens frágeis e incompletas: o cineasta de um lado da câmera, pessoas reais do outro, pessoas que aceitam o convite para fazer parte de um filme ou de um projeto de filme, tornando-se portanto “personagens” do documentário. Existe também uma dimensão relacional que, manifesta mais em uns que em outros, exibe as alterações produzidas pela presença da câmera na realidade que se mostra diante dela. Em Bambozzi, por exemplo, as crianças gritam, antes de mergulhar no rio, “bonjour, bonsoir”, olhando

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para a câmera na contraluz enquanto dão boas risadas. Tratase de uma interação, entre equipe e personagem, exposta, reivindicada, assumida. Se de fato a dimensão relacional está na base dessa forma de fazer cinema, é bem verdade que ela permaneceu velada nos filmes até os anos 50. Era como se não tivesse havido nenhum encontro e a relação com o outro fosse rarefeita, quase inexistente, feita apenas de projeções e desejos de mundo já conhecidos. Ao potencializar a intervenção do cineasta na imagem (ao invés de dissimular ou mesmo evitar), Jean Rouch desloca essa tradição, assumindo que não se trata apenas de demonstrar realidades pressupostas, objetivas e imanentes, mas de fazer emergir aspectos inextrincáveis extraídos dos processos de interação transubjetivos, aspectos que colocam em xeque a crença na “boa representação do real”. Essa série sinaliza para uma prática que tem se tornado cada vez mais comum, isto é, a circulação entre domínios que, até bem pouco tempo, eram distantes entre si: a arte contemporânea e a imagem em movimento, mais especificamente, o cinema documentário; aponta para o movimento de cineastas que trabalhavam prioritariamente no documentário e que agora criam videoperformances e videoinstalações para serem exibidas em galerias ao mesmo tempo que artistas remoldam suas criações para o campo da imagem documental.7 Das videoinstalações de Maurício Dias e Walter Riedveg, passando por Sandra Kogut, Eder Santos, Lucas Bambozzi, entre outros, o que vemos são obras que fornecem outras maneiras de se relacionar com as imagens em movimento, redesenhando espaços de troca, exibição, temporalidade, formas narrativas, leitura e o corpo do espectador. Se a relação entre esses dois campos não é nova, e a história do cinema exibe vários momentos em que artes plásticas e documentário se misturaram para produzir obras importantes, no Brasil essa relação é mais recente, e provavelmente foi a obra de Arthur Omar que impôs, de maneira mais avassaladora, um forte movimento de descondicionamento do olho pela decomposição da imagem em movimento e do som no espaço e sua inserção em outros campos perceptivos, sensoriais, cognitivos (ver LINS, 2006). A série Viagens na fronteira foi também um projeto de arte pública e videoinstalação realizado, depois das gravações, nas fronteiras das cinco cidades gêmeas registradas pelos documentários. As instalações sempre exibiam um almoço,

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7. Remeto ao oportuno artigo de Consuelo Lins, “Rua de Mão Dupla: documentário e arte contemporânea”, 2006 (inédito). A autora discute as múltiplas interfaces do documentário e da arte contemporânea, enfatizando, com base na leitura de Michel Foucault, a noção de dispositivo artístico. No início de 2007, Consuelo Lins e eu organizamos o evento Documentário e Arte Contemporânea, na PUC-Rio e na ECO/UFRJ, com o objetivo de discutir essas conexões em um âmbito mais amplo, com a presença de artistas, críticos de arte e pesquisadores.


8. As instalações funcionavam com monitores de 29 polegadas que mostravam os diferentes vídeos de cada região feito pelos videomakers. Foram exibidas durante o período aproximado de 60 dias. Agradeço a Daniela Capelato, curadora do projeto junto com Roberto Moreira, por essas informações, assim como a Ricardo Ribenboim, na época diretor do Itaú Cultural.

9. IX Festival de Cinema e Vídeo do Ceará, VI Mostra Internacional do Filme Etnográfico, XXVI Jornada Internacional de Cinema da Bahia, 28° Festival Internacional Nouveau Cinéma Nouveau Médias (Montreal/ Canadá), entre muitos outros.

indivíduos se alimentando, em ambos os lados das divisas envolvidas no projeto.8 A idéia dessa ação demarcatória está igualmente presente nos trabalhos dos artistas plásticos envolvidos, já citados no início, pois tais intervenções deveriam não só fixar novos marcos geográficos nas fronteiras do Brasil, mas implantar obras de arte contemporânea em espaços públicos e comunidades distantes dos grandes centros culturais. Trata-se, pois, de viver a cidade como uma experiência sensível e estética, a partir de ações que corroboram um compromisso com a vida pública e que exploram os novos dispositivos técnicos e artísticos para além dos espaços institucionais da arte. Posteriormente, os cincos vídeos foram exibidos juntos na TV Cultura, em 1998, e fizeram parte da I Mostra Itinerante do Itaú Cultural, circulando por várias cidades brasileiras no ano de 1999, com curadoria de mexicanos, norte-americanos e brasileiros. Foram exibidos em inúmeros festivais de cinema nacionais e internacionais,9 juntos ou isolados, como foi o caso do trabalho de Nader, São Gabriel da Cachoeira – San Felipe, apresentado em Locarno na mostra Nouvelles écritures pour le cinéma et la télévision, em 1999. Em 2005, Bambozzi transforma as imagens de Oiapoque – L’Oiapoque em uma instalação que foi exibida no festival Rencontres Parallèles, na França, e é a partir dessas imagens inacabadas que o artista decide levar o projeto das fronteiras adiante, realizando alguns anos mais tarde o longametragem Do outro lado do rio, com produção de Daniela Capelato, curadora da série Viagens na fronteira. Trata-se, pois, de todo um projeto em que as imagens se utilizam de uma “profundidade de superfícies”, de forma a apostar no desvio e na contaminação de procedimentos estéticos variados como forma de invenção e intervenção audiovisual: a imagem em movimento desliza por diferentes possibilidades expressivas e se expande por meio de diferentes práticas técnicas, cognitivas e artísticas. Ao explorar alternativas variadas de circulação e exibição das imagens, esta série inevitavelmente amplia e perpetua o cinema como novidade absoluta, diversificando suas formas de existência e extrapolando seus limites. Se a arte do cinema se expressa em um amor incondicional ao presente, segundo Serge Daney, é sua afirmação constante de uma adesão ao movimento do mundo que garante uma relação justa tanto com o passado como com o futuro. “O cinema, arte do presente, arte de uma presença no

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mundo” (DANEY, 1983: 17). Arte que, ao circular em diferentes espaços e contextos, conduz a outros sentidos e imprime “novas leituras à pele do filme” e ao mundo (MARKS, 2000: 20).10 Imagens atópicas de um Brasil Por fim, creio que estes vídeos têm uma contribuição a dar a toda discussão sobre fronteiras culturais, porque, ao criarem imagens inacabadas (em termos narrativos) e porosas (em termos de exibição e circulação), eles obrigam o espectador a partir de outros referenciais para pensar o tema da identidade – nacional, lingüística, cultural. Os personagens – seja da costureira, seja do garimpeiro, da prostituta, do bombeiro etc. – não suscitam piedade ou compaixão e tampouco o sentimento do extravagante ou do “fantástico” (identidade/alteridade); são indivíduos que, por meio do cinema, ganham simplesmente uma sobrevida arrancada dos espectros da identidade porque engendrada nas lacunas, nos vazios, nas dissoluções do figurativo, em uma duração exígua. Na linha da imagem cinematográfica brasileira, sobretudo a partir dos anos 90, o problema da migração é um dos seus aspectos mais reveladores e que expressa um deslocamento com relação ao cinema dos anos 60, quando este se apressava “em interligar ser social, economia e caráter, colocando no centro a questão da ideologia” (XAVIER, 2000: 104), e o cineasta se via como portador de um mandato que se concebia como vindo do próprio “tecido da nação, suposto muito mais coeso e já constituído do que, em seguida, a realidade veio mostrar” (XAVIER, 2000: 99). Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), O quatrilho (Fábio Barreto, 1995), Como nascem os anjos (Murilo Salles, 1997), Os matadores (Beto Brant, 1997), Baile perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), Estorvo (Ruy Guerra, 2000), entre outros, configuram e ilustram esse novo momento. Se é certo que há uma atualidade neste tema da fronteira – falar de um país inserido em uma rede global de relações econômicas, sociais, políticas e culturais, junto com o questionamento dos centros hegemônicos e a entrada em cena da “periferia” do mundo –, o que se vê comumente são filmes em que há uma distinção clara entre imagem de si e imagem do outro, filmes que estimulam o auto-reconhecimento e a construção do sentimento de comunidade e de alteridade. Mais raro é ter acesso a possibilidades expressivas diversas para o imaginário da fronteira, modalidades

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10. Em The skin of the film, Laura Marks analisa trabalhos em vídeo cuja existência e circulação é garantida por uma rede de trocas e por um circuito alternativo de exibição, como galpões, centro comunitários, Internet, universidades, galerias de arte etc. Ela discute a efemeridade desses trabalhos ao ressaltar a fragilidade dessa rede de trocas, o fato de que todos têm menos de uma hora de duração e um tratamento bastante experimental. Na introdução, explica que o livro quer celebrar a existência fortuita e o “breve desabrochar” de cada um.


11. Segundo Maurice Blanchot (1987), a “palavra bruta” encena o ideal verista, enquanto a “palavra essencial” suspende e recusa esse ideal na forma de uma resistência poética: de um lado, os discursos cotidianos da mídia de massa sob a égide da produção e do consumo de informação total e de comunicação universal; de outro, o desejo de arte como negação do tempo e do espaço cotidiano, criador de acontecimento e de uma “eternidade que passa”.

estas em que a linha pela qual um território se transforma em outro é uma zona de indiscernibilidade que nos interpela com sua estranheza. A potência das imagens inacabadas da série Viagens na fronteira emerge da impossibilidade (temporal, narrativa, dramatúrgica) de conferir uma identidade estável e reconhecível a cada personagem ou situação, uma impossibilidade que permite a expansão do sentido e o poder de fabulação e revelação. Como entender que países geograficamente próximos vivam em obstinada distância cultural na América? Estes vídeos não pretendem e nem poderiam responder a essa questão. Se as fronteiras existem para resguardar idealmente os que se congregam para realizar projetos comuns, neste conjunto de trabalhos a fronteira – cultural, geográfica, artística – é artefato, artifício, desenhada e redesenhada pela mão e pelo olho do artista, mobilizando o espectador enquanto pesquisa audiovisual, interpelação política e estética. No trabalho de Marcello Dantas, há um índio, último personagem do vídeo, que nasceu, viveu, fez família e mora até hoje exatamente na divisa geográfica com o Paraguai, em plena mata. Ele diz o que significa a fronteira pra ele: “é a divisa. Como não me convidaram pra passar pro lado de lá, eu nunca passei...”. O índio fala de uma distância intransponível implicada na idéia da passagem, de uma diferença irredutível que funciona como uma espécie de horizonte de todo o projeto: trata-se da dimensão de um corpo estranho incrustado nas formas cotidianas e dominantes de nos reconhecermos (brasileiros, paraguaios, bolivianos, venezuelanos, uruguaios etc.), daquilo que atenta contra o sentido da aglutinação e homogeneização. As palavras do índio – no seu caráter intrinsecamente atópico – sugerem uma comunidade perdida, apontando para a exigência e a impossibilidade do sonho gregário e fusional, para aquilo que “se cala e recua” diante da brutalidade do discurso sempre pronto para explicar e significar o mundo.11 Essas palavras, essenciais naquilo que têm de poesia selvagem, aberrante e paradoxal, falam de uma impossibilidade de passar para o outro lado, seja ele qual for, e o que formulam não é da ordem de uma mera alucinação ou de um delírio, mas da ordem das visibilidades fora do olhar, daquilo “que, embora perfeitamente presente, não se ouve nem se vê” (DELEUZE, 1985: 27).

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Se as imagens da série têm um imenso poder de sugestão, é porque sinalizam para a possibilidade de falar do Brasil e da América como um domínio a ser inventado, questão cara à história do cinema brasileiro, cujo pensamento crítico, artístico e político foi e é marcadamente social.12 Viagens na fronteira, em sua estética do inacabamento, abre espaço para outros percursos visuais, sensíveis, sonoros, corporais. Histórias que exploram fragmentariamente a idéia de fronteira – seja do Brasil com o Paraguai, com a Guiana Francesa, com Portugal, com Cuba –, para que a divisa não apareça apenas como um limite duro, intransponível, ou ainda como forma vazada, maleável, na qual se pode “entrar” e “sair” sem tensões e resistências. Neste projeto, o limite se coloca acima de tudo como indagação essencial e interminável, exigindo a experiência do sujeito espectador no seu exame atento da dinâmica da obra, de sua força singularizante. O depoimento do índio habita o lugar de passagem em que reside o sentido de todo o projeto. Da dimensão sociocultural para uma outra, estético-poética, em que o sentido está entre a cena e a sala, entre a tela e a praça pública, um ator para um espectador, personagens para sujeitos, um corpo para um outro; as imagens passam de um suporte a outro, de um tipo de exibição a outro, circulam em diferentes festivais e instituições culturais pouco preocupadas com o que são “realmente”; o projeto, ao assumir a dificuldade de identificar um espaço único de atuação de uma obra, explicita a dificuldade de caracterizar de forma precisa o que se passa no campo audiovisual contemporâneo, em que inúmeros trabalhos são atravessados por diferentes procedimentos, práticas artísticas e dispositivos técnicos. Em tal contexto, a força dos cinco vídeos está não só em explorar de diferentes modos o imaginário da fronteira – cultural, geográfica, nacional, artística –, mas na forma com que arrancam os personagens do estigma das identidades (comunitárias, ideológicas) que os recobrem e, ainda, dos espetáculos da mídia de massa que os instrumentalizam com vistas à produção de atualidade. Viagens na fronteira retoma e reafirma a precariedade dos processos de representação da identidade e, no mesmo movimento, aposta no desvio e contaminação de procedimentos estéticos variados, buscando a articulação entre circuitos de exibição e campos criativos como forma de invenção audiovisual e de um outro pensamento de Brasil.

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12. Basta lembrarmos dos textos clássicos – Revisão crítica do cinema brasileiro, de Glauber Rocha, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, de Paulo Emilio, e Brasil em tempo de cinema, de Jean-Claude Bernardet –, ensaios de fundação de um pensamento cinematográficosocial do Brasil.


Referências BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir. L’Innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Paris: Éditions Verdier, 2004. DANEY, Serge. La rampe. Paris: Éditions Gallimard, 1983. DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. FRANÇA, Andréa. Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo. Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj, 2003. LINS, Consuelo. Rua de Mão Dupla: documentário e arte contemporânea. In: MACIEL, Kátia (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006 (no prelo). MACHADO, Arlindo. As linhas de força do vídeo brasileiro. In: MACHADO, Arlindo (Org.). Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaú Cultural, 2003. MARKS, Laura. The skin of the film. Durham and London: Duke University Press, 2000. XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro dos anos 90. Revista Praga – estudos marxistas, n. 9, jun. 2000.

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imagem : mauro henrique


Tempo e dispositivo no documentário de Cao Guimarães consuelo lins Doutora em Cinema e Audiovisual pela Universidade de Paris III Professora da Escola de Comunicação da UFRJ

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Resumo: O trabalho do artista Cao Guimarães é marcado por um hibridismo estético produzido por elementos retomados de vários campos artísticos. Este artigo se atém aos cinco filmes de longa-metragem do cineasta mineiro e identifica nessas obras misturas e contaminações de procedimentos caros à tradição do documentário com instrumentos de práticas artísticas contemporâneas. É particularmente por meio desses instrumentos que o artista se confronta com estéticas e éticas do documentário para extrair diferentes métodos de filmar o “outro”, um dos pilares da tradição documental. Palavras-chave: Documentário. Dispositivo. Arte Contemporânea.

Abstract: The work of the artist Cao Guimarães is characterized by an aesthetic hybridism produced by elements retaken from the various arts. The paper restricts itself to the five full-length films made by the filmmaker from Minas Gerais, Brazil, identifying in these works a contamination or mixture of procedures well known in documentary film-making with intruments of contemporary art practices. It is particularly by means of these instuments that the artist faces the aesthetics and ethics of documentary film in order to extract different methods of filming the “other”, one of the great pillars of documentary tradition. Keywords: Documentary Film. Dispositive. Contemporary Art.

Résumé: L’oeuvre de l’artiste Cao Guimarães est traversée par un hybridisme esthétique produit par des éléments repris de différents champs artistiques. Cet article est consacré à l’analyse des cinq long-métrages du cinéaste de Minas Gerais et y identifie des mélanges et des contaminations des procédures chères à la tradition du cinéma documentaire avec des instruments des pratiques artistiques contemporaines. C’est particulièrement à travers ces instruments que l’artiste fait face aux esthétiques et aux éthiques du domaine du documentaire afin de créer des nouvelles méthodes de filmer “l’autre”. Mots-clés: Documentaire. Dispositif. Art Contemporain.


Os filmes de Cao Guimarães expressam de forma exemplar um cruzamento e uma circulação cada vez mais intensos entre domínios até pouco tempo distantes, e mesmo hostis entre si: documentário e arte contemporânea. Cineastas que trabalham prioritariamente no documentário criam instalações para serem expostas em museus e galerias ao mesmo tempo que artistas expandem suas criações para o campo das imagens documentais. Os cinco longas-metragens de Cao Guimarães são fortemente marcados pela fotografia, filmes experimentais e videoinstalações que o artista realiza desde o início dos anos 90. O fato de Andarilho, seu documentário mais recente, ter sido escolhido para a abertura da 27a Bienal de São Paulo (2006) é mais um indício da fértil porosidade das fronteiras entre esses dois campos artísticos. Dois aspectos se destacam na passagem do artista de um campo a outro: primeiro, a observação silenciosa do mundo praticada na fotografia e em filmes experimentais e tão bem retomada pelo cineasta ao filmar trabalhadores de ofícios em vias de extinção (O fim do sem fim, 2001), um ermitão (A alma do osso, 2003), três andarilhos (Andarilho, 2007) ou ainda o tempo que passa nas pequenas cidades mineiras (Acidente, 2005); em seguida, a invenção de dispositivos para produzir uma obra, operação utilizada em certos curtas-metragens e instalações e recuperada para realizar filmes como Acidente e Rua de mão dupla (2003). É particularmente por meio desses procedimentos que o artista mineiro se confronta com estéticas, éticas e metodologias do documentário para filmar personagens solitários, a maioria deles à margem da modernidade capitalista, mas atravessados por ela; em outras palavras, para filmar o “outro”, questão central da tradição documental. E encontra assim, a seu modo e por conta própria, um certo cinema contemporâneo feito de planosseqüência que duram, realizado por cineastas que acreditam que, mais do que de imagens, o cinema se constitui de blocos de espaço-tempo (Gus Van Sant, Abbas Kiarostami, Alexandre Soukourov, Mercedes Alvarez, entre outros). As construções temporais contidas nesses filmes privilegiam a acuidade sensorial do espectador, propõem novas experiências sensíveis e imprimem mudanças em nossa percepção de mundo.

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O tempo como matéria do filme Em O fim do sem fim, A alma do osso e Andarilho, Cao Guimarães fabrica, através de longos planos-seqüência, imagens que perturbam as definições, habituais no cinema, de imagens “objetivas”, registradas do ponto de vista da câmera e portanto do diretor, e imagens “subjetivas”, atribuídas aos personagens. Alterações que o cineasta obtém a partir de enquadramentos fotográficos precisos nos quais ele insufla tempo; imagens de texturas diferentes, fruto da mistura de suportes (vídeo, super-8, 16 mm) presente em quase todos os seus filmes. São planos menos ligados às temáticas do filme, mais poéticos, livres, frágeis. Em Andarilho, por exemplo, o cineasta faz uso desse procedimento, levando-o ao limite. Extrai das estradas pelas quais perambulam os andarilhos efetivas visões: imagens explicitamente objetivas – capturadas com a câmera fixa em um tripé durante longos momentos – transformam-se pouco a pouco, ganhando uma estranha subjetividade, a ponto de adquirirem um caráter alucinatório que dissolve distinções. É como se as imagens, inicialmente capturadas do ponto de vista do diretor, contraíssem gradualmente a visão do personagem até o momento em que não pertencessem mais nem a um nem a outro, transformando ao mesmo tempo a própria experiência do espectador. Objetivo e subjetivo, real e imaginário, ficção e documentário perdem o sentido em imagens à beira da abstração: caminhões e motos afundando na imagem, plantas evanescentes, estradas fumegantes, seres em dissolução. Trata-se de um procedimento que favorece uma atenção inédita e concentrada às pequenas coisas do mundo, aos seres, movimentos, gestos, sons, ruídos, conversas, utilizado desde o primeiro documentário, O fim do sem fim, dirigido em parceria com Lucas Bambozzi e Beto Magalhães. Só que de forma atenuada: os planos-seqüência deste filme são distribuídos entre os depoimentos de muitos personagens dispersos em todo o Brasil. Em A alma do osso, Cao Guimarães realiza uma espécie de depuração das opções éticas e estéticas do primeiro filme. Reduz personagens, situações, locações, e amplia o uso de longos planos para acompanhar o ermitão. O filme nos desvela pouco a pouco que mesmo existências aparentemente isoladas são perpassadas por questões centrais do mundo atual, tais como a mídia, o dinheiro e a lógica do espetáculo: depois de testemunharmos a solidão

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durante boa parte do filme, vemos que o ermitão é também ponto turístico. É como se não fosse mais possível uma ruptura com o “social”: o espetáculo constitui o mundo, e o próprio filme não deixa de fazer parte dessa lógica, mesmo se a desloca – o ermitão torna-se imagem e passa, assim, a circular pelo mundo. Dispositivo e jogo Os filmes Rua de mão dupla, concebido inicialmente como videoinstalação para a 25ª Bienal Internacional de São Paulo, em 2002, e Acidente, realizado em parceria com Pablo Lobato, são produzidos com base na idéia de dispositivo. No primeiro filme, Cao Guimarães convidou seis pessoas pertencentes às camadas médias da população de Belo Horizonte para participar de uma experiência inusitada: divididos em duplas, eles trocariam de casa por 24 horas e, munidos de uma pequena câmera digital, filmariam o que bem lhes aprouvesse em casa alheia, tentando “elaborar uma ‘imagem mental’ do outro(a) através da convivência com seus objetos pessoais e seu universo domiciliar”.1 Ao final, dariam um depoimento para a câmera, contando como imaginaram esse “outro”. Portanto, o diretor não filma nem dirige, mas concebe um jogo, distribui cartas, determina regras, escolhe jogadores, fornece câmeras, transporte, comida. Provê o necessário e sai de campo. Trata-se de uma maquinação que implica a ausência de controle do diretor sobre o material filmado, propiciando uma espécie de “retirada estética” não propriamente do filme – afinal o dispositivo é dele, assim como a montagem do filme –, mas das imagens e sons que seu filme vai conter, atribuindo a seis outros indivíduos a tarefa de filmar e se autodirigir. O dispositivo que “dispara” a filmagem de Acidente é, de certa maneira, mais conceitual. Não há, inicialmente, nenhum interesse particular dos cineastas por um aspecto concreto da realidade. É como se houvesse, antes de tudo, pairando no ar, uma questão imensa, questão de vida, em que os cineastas se perguntassem como se relacionar com o mundo diante de tantas possibilidades, de tantos filmes já feitos, de tantas imagens prontas, sem sucumbir nem ao caos nem aos clichês. Ou, como diria Jean-Louis Comolli, “como fazer para que haja filme?” (COMOLLI, 2001: 99). Cao Guimarães e Pablo Lobato decidem se apegar às palavras: criam um dispositivo-poema e, de posse dele, começam a filmar. Mas

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1. Cao Guimarães, no texto na contracapa do vídeo Rua de Mão Dupla.


não são palavras quaisquer retiradas do dicionário – poderiam ser, mas seria outro filme. São nomes de cidades mineiras cuja lista eles pesquisaram na internet. Selecionaram cem e as imprimiram. Espalharam os papéis sobre a mesa e começaram a brincar com as palavras. Sonoridades, sentidos, materialidades, ressonâncias: foi isso que contou para os cineastas, e não um conhecimento prévio da realidade das cidades, das quais aliás eles ignoravam tudo. Chegam a um poema com vinte nomes que evoca uma fábula de amor e dor: Heliodora, Virgem da Lapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’Água. Entre Folhas, Ferros, Palma, Caldas, Vazante, Passos. Pai Pedro Abre Campo, Fervedouro Descoberto, Tiros, Tombos, Planura, Águas Vermelhas, Dores de Campos. O dispositivo-poema torna-se, portanto, uma máquina de produzir imagem e adquire, como todo dispositivo, um certo poder sobre os cineastas. Decide por eles onde vão filmar; retira deles o direito de recusar uma cidade caso não gostassem dela, porque nesse caso o poema deixaria de funcionar. Diminui o excesso de intencionalidade. É um jogo, que tem suas regras, às quais eles devem se submeter. Não se trata em absoluto de adaptar palavras às coisas, nomes às cidades, mas de construir uma forma de se confrontar com o caos do mundo sem submergir, de imprimir uma direção inicial, abrindo ao mesmo tempo o filme aos acasos, imprevistos e imponderáveis do real. Os documentários que resultaram desses dispositivos são profundamente distintos entre si. Acidente possui traços em comum com os filmes constituídos de planos-seqüência, mas não há propriamente personagens nem temas. São blocos de espaço-tempo que capturam a duração, em várias camadas, nas cidades do interior de Minas, e nos fazem ver e sentir “um pouco de tempo em estado puro” (DELEUZE, 2006), à maneira de Ozu. Onde Acidente mais parece se aproximar da imagem estática da fotografia é justamente onde mais se distancia, em função da duração, mostrando assim que o movimento não é o que há de mais inerente ao cinema, mas o tempo. Na cidade de Entre Folhas, por exemplo, vemos o cair da tarde do balcão de um bar onde praticamente nada acontece, a não ser os movimentos infra-ordinários do seu proprietário ou a rara circulação de carros e pessoas do lado de fora. Na cidade de Palma, o filme se atém a uma ladeira em que os tempos mortos se alternam com microacontecimentos.

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tempo e dispositivo no documentário de cao guimarães

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O filme inteiro é capturado por uma espécie de inação, que contamina personagens e cineastas. O espectador também é envolvido nesse circuito em que as conexões entre palavras e coisas, nomes e cidades, acontecimentos e personagens são tênues, frágeis e, finalmente, de pouca importância. Trata-se de um filme em que a dimensão propositiva se mistura a uma dimensão mais plástica, contemplativa e formal, mesclando em um só tempo dois movimentos que Cao Guimarães identifica em sua trajetória, em trabalhos diferentes. Quanto a Rua de mão dupla, a grande invenção do filme, responsável pela solidez da proposta, é a solicitação do diretor de que os “outros” em questão, os participantes do filme, se interessem por outros e não por eles mesmos, atitude que redireciona o desejo da “besta da confissão” (FOUCAULT, 1984) em que nos transformamos a partir do momento em que uma câmera é postada diante de nós. Cao Guimarães não quer que eles se voltem para si, que falem de suas vidas, que se revelem para a câmera; pede, antes, que falem de pessoas desconhecidas e filmem casas alheias. A mudança do foco do “eu” para o “outro” faz com que os personagens fiquem menos atentos a autocontroles, censuras e filtros que normalmente acionamos para oferecer a imagem que desejamos de nós mesmos. A maneira como se relacionam com o espaço alheio, o que escolhem filmar, o que dizem, como falam, palavras, sintaxes, entonações que colocam em cena, tudo isso revela muito mais deles mesmos do que poderíamos esperar. São imagens do outro fortemente embebidas da visão de mundo e dos afetos daquele que filma. O que o filme mostra de modo cristalino é o quão encharcado de memórias e afecções corporais é nosso olhar sobre o mundo, o quão arraigados somos a determinadas maneiras de ver e sentir, o quanto ignoramos nossos preconceitos, o tanto de impossibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, de aceitá-lo na sua diferença e singularidade. Em suma, nos mostra que “estamos” onde menos esperamos, não especialmente no “conteúdo” do que dizemos ou pensamos de forma consciente, tampouco em uma “interioridade” prévia, já dada, mas em “toneladas de subjetividades” (PELBART, 2003: 20) que se constituem e se expressam na nossa relação com o mundo e com o outro. Por meio de um gesto à primeira vista pequeno – alterar a direção do que se solicita aos personagens em grande parte dos documentários baseados em conversas –,

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o cineasta imprime um estrondoso deslocamento em relação a todas as querelas em torno da “voz do outro” que atravessam a história do documentário. *** Nos últimos anos, os trabalhos de Cao Guimarães têm sido selecionados e premiados nos principais festivais internacionais de documentário e vídeo experimental e exibidos em diversas manifestações artísticas mundo afora. O diretor não tem formação em cinema, nunca fez escola nem trabalhou no meio cinematográfico. A “sério”, estudou filosofia e fotografia; cinema, ele começou em casa, quando morava em Londres, com super-8, fazendo uma espécie de diário filmado, “um pequeno exercício de observação solitária do mundo”, em uma “ampliação natural das possibilidades de expressão”, diz. Sua cinefilia é “digital e rizomática” (JOUSSE, 2003), própria a uma forma contemporânea de se relacionar com o cinema que não passa, necessariamente, por filiações, mas que não deixa de ser atravessada por uma paixão e de reencontrar um certo espírito do cinema, o da experimentação. Atitude que se confronta tanto com uma postura conservadora que vê o cinema como “patrimônio”, objeto de saber e reverência, quanto com o cinema como mercado. E faz filmes libertadores, que inventam narrativas, dispositivos e novas percepções do real, sugerindo, nesse movimento, que o cinema tem muito a ganhar associando-se ao que lhe é, de certa forma, “exterior”. Tal como é hoje dominantemente produzido (mercado, marketing, leis, lobbies, projetos intermináveis, distribuição, exibição), o cinema tem poucas chances de se renovar; essa engrenagem o engessa e fossiliza, corroendo do interior suas possibilidades de criação.

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Referências COMOLLI, Jean-Louis. Sob o risco do real. In: CATÁLOGO do 5º Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Belo Horizonte, nov. 2001. COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir. L’innocence perdue: cinéma, télévision, fiction, documentaire. Lagrasse: Verdier, 2004. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1, A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984. JOUSSE, Thierry. Pendant les travaux, le cinéma continue. Paris: Les Cahiers du Cinéma, 2003. PELBART, Peter Pál. Vida capital, ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

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Fo r a - d e


- c a m p o



f oto g r a m a co m e n ta d o

Olhem para ela: a primavera chegou (notas sobre M么nica e o desejo, de Ingmar Bergman) lucia castello branco Doutora em Estudos Liter谩rios pela UFMG Professora da Faculdade de Letras da UFMG

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O olhar encontra naquilo que o torna possível o poder que o centraliza, que não o suspende nem o detém mas, pelo contrário, impede-o de jamais terminar, corta-o de todo o começo, faz dele um clarão neutro extraviado que não se extingue, que não ilumina, o círculo, fechado sobre si mesmo, do olhar. Temos aqui uma expressão imediata dessa inversão que é a essência da solidão.

Maurice Blanchot

Ela se chama Mônica. Disso sabemos e pouco mais. Disso sabemos, antes mesmo que o filme se inicie e que sejamos, já de início, arrebatados pela paisagem aquática que ali se descortina. Águas paradas. Navios solitários. Cais desérticos. Ao longe, a cidade. O que nos aguarda nesse filme que tem nome de mulher? Dele sabemos que tem algum fogo. Mas que é preciso tentar algumas vezes para que a chama se acenda e se mantenha acesa, a ponto de acender o cigarro que ela lhe estende, enquanto lhe faz o convite: “– Vamo-nos embora e não voltamos! Vamos ver o mundo...”. Que mundo é esse que o jovem rapaz é convidado a ver? “O raio do rapaz está sempre a escapulir-se” – diz um dos senhores, seu colega de trabalho. “Acho que afinal a primavera está aí” – já havia dito o outro, da mesa ao lado, no bar em que Mônica e o rapaz haviam se encontrado. Trata-se de uma alusão irônica à breve conversação que se travara entre os dois, quando ambos se põem a fumar: “A primavera chegou” – diz ela. “Já reparaste?” “Já” – ele responde. Estamos nos primeiros minutos de Mônica e o desejo, de Ingmar Bergman. Pouco sabemos dessa moça irrequieta que nos rouba o olhar. Mas dele sabemos já quase tudo – o rapaz, este que está sempre a escapulir-se, já não escapole ao amor: o rapaz está apaixonado. Mais tarde, um pouco mais tarde, viremos a saber um pouco da estória desses dois: que ela tem irmãos menores, e mãe, e um pai bêbado; que ele vive só com o pai doente e que seu pai tem um barco. Dali partem os dois para ver o mundo. Ela, sempre irrequieta. Ele, o que está sempre a escapulir-se, escapulido de amor. Assim vão-se embora os dois, à deriva: um barco cheirando a lodo, poucas provisões de viagem, águas mansas, vastas paisagens.

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Longos planos-seqüência nos mostram que os dias passam e que as águas permanecem calmas. Breves momentos de intimidade dos corpos. Mas há os olhares: o dele, sempre dirigido a ela. O dela, sempre dirigido aonde? Uns pássaros, um fundo de rio, gotas de chuva sobre as águas mansas. Até que pousemos nossos olhos nesses olhos de Mônica, que miram, pela primeira vez, a objetiva. Deles, Ingmar Bergman teria dito: “pela primeira vez na história do cinema se estabelece um contato despudorado e direto com o espectador” (BERGMAN apud AGAMBEN, 2005: 116). Ao que Godard, mais tarde, acrescentaria: “É o plano mais triste da história do cinema”. (GODARD, 1988: 137) Acontece que esses olhos que miram a objetiva não nos olham. E aí, nesses 24 segundos de nenhum olhar, somos atingidos, como o jovem rapaz, mais que pela tristeza, pelo desamparo do amor sem reciprocidade que o casal encerra: um homem, uma mulher. “Olhem para ela” – parece querer dizer Lacan, diante da representação de Santa Teresa de Ávila, na famosa escultura de Bernini. “Basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida. E do que é que ela goza?” (LACAN, 1985: 103). Na representação de Bernini, Santa Teresa tem os olhos semifechados. Nos 24 segundos do plano que mostra o rosto de Mônica a mirar a objetiva, a mulher permanece com os olhos bem abertos. No entanto, as duas, os dois olhares, apontam para um outro lugar. Não exatamente o do amante, o do parceiro sexual, como observa Agamben, ao referir-se à banalização desse procedimento mais tarde apropriado pela pornografia: “As pornostars, no próprio acto de desempenharem as suas carícias mais íntimas, olham agora decididamente a objetiva, mostrando interessar-se mais no espectador que nos seus partners” (AGAMBEN, 2005: 116). Acontece que, nesse filme de Bergman, também nós, espectadores, não somos alvo desse olhar. Os olhos de Mônica, assim como os de Santa Teresa de Bernini, parecem olhar para um outro ponto, enquanto miram a objetiva. E talvez nisso, nesse irremediável desencontro, resida a sua (a nossa) tristeza. Em “Deus e o gozo d’A Mulher”, ao buscar desenvolver dois de seus mais famosos aforismos – “Não há relação sexual” e “Não há A Mulher” –, Jacques Lacan procurará demonstrar que entre o homem e a mulher não há uma proporção (uma relação, no

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sentido matemático do termo), o que fará do encontro amoroso entre os sexos um irremediável desencontro. Mais que isso, Lacan busca demonstrar nesse seminário que, arrebatadas por um gozo outro, um gozo suplementar, as mulheres não só não correspondem, ponto por ponto, aos homens, como “são elas que possuem os homens” (LACAN, 1985: 99) Já no Seminário 8, ao retomar o mito grego de Poros e Penia, Lacan havia introduzido o paradoxo fundamental do encontro amoroso entre os sexos, trazido pelo relato de Diotima, no Banquete de Platão: “Poros, o autor cuja tradução tenho à minha frente, simplesmente por estar diante do texto, o traduz, não sem pertinência, por Expediente. Se isso significa Recurso, certamente é uma tradução válida. Astúcia também, já que Poros é filho de Metis, que é mais a invenção que a sabedoria. Diante dele, temos a personagem feminina que vai ser a mãe do amor, Penia, a saber, Pobreza, ou mesmo Miséria. Ela é caracterizada no texto como aporia, a saber, sem recursos. É isso o que ela sabe sobre si mesma: recursos, não os tem. O termo aporia, vocês o reconhecem, é aquele que nos serve com referência ao processo filosófico. É um impasse, aquilo frente a que entregamos os pontos, ficamos sem recursos. Eis, portanto, a Aporia fêmea diante do Poros, o Expediente, o que parece bastante esclarecedor. O que é muito bonito nesse mito é a maneira pela qual a Aporia engendra Amor com Poros. No momento em que isso se deu, era Aporia quem velava, quem tinha os olhos bem abertos. Contam-nos que ela viera para os festejos do nascimento de Afrodite, e como qualquer Aporia que se preze, nessa época hierárquica, permaneceu nos degraus, próximo da porta. Por ser Aporia, isto é, por nada ter a oferecer, não entrou na sala do festim. Mas a felicidade das festas é que justamente acontecem coisas ali que invertem a ordem comum. Poros adormece. Adormece porque estava embriagado, e é isso o que permite a Aporia fazer-se emprenhar por ele, e ter esse filhote que se chama o Amor e cuja data da concepção vai coincidir, portanto, com o nascimento de Afrodite. É por isso mesmo, nos explicam, que o amor terá sempre alguma relação obscura com o belo, aquilo que vai se tratar, com efeito, no desenvolvimento de Diotima. Isso está ligado ao fato de que Afrodite é uma deusa bela. Aí estão as coisas ditas claramente: é o masculino que é desejável, é o feminino que é ativo. Pelo menos, é assim que as coisas se passam no momento do nascimento do Amor”. (LACAN, 1992: 125).

No filme de Ingmar Bergman, não são poucos os momentos em que Mônica se queixa de nada possuir. Como Penia, Mônica encarna a pobreza, a penúria. Mas é ela também quem faz o

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amor, fazendo valer a máxima lacaniana extraída do discurso de Diotima: “amar é dar o que não se tem”. E o que não se tem, nesse filme de Bergman? Mais que a riqueza, o conforto, a comida – tudo isso tão bem condensado na cena em que Mônica rouba um assado da ceia de uma família burguesa –, o que não temos, nesse filme, são os momentos de sexo do casal. Deliberadamente tomadas como citações cinematográficas – como a cena do beijo entre Mônica e o rapaz, que reproduz a cena do filme Song of love, visto pelo casal no início do namoro (situação que, aliás, já demarca o desencontro entre os dois: enquanto ela chora, ele boceja) –, as cenas de sexo se reduzem ao beijo ou aos corpos e rostos solitários, em primeiro plano. E são, recorrentemente, atravessadas pela paisagem: águas calmas, navios abandonados, um pálido sol sobre as águas, gotas de chuva, nuvens. E mesmo a cena do banho de Mônica, na piscina das águas cercadas por rochedos, é tomada em sua dimensão de paisagem. Em Onde vais, drama-poesia?, a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, no trecho intitulado “A boa nova anunciada à natureza”, nos oferece elementos para pensarmos a paisagem como uma das expressões do corpo e do sexo, ou, como ela prefere, como uma das expressões do corp’a’screver e do sexo de ler. Diz Llansol: “‘A boa nova anunciada à natureza’ é o escândalo que a minha época não aceita. O Ser existe como beleza, mas nós perdêmolo e percorremos toda uma órbita excêntrica para o voltar a encontrar. A Boa Nova dirige-se à Terra no seu todo: não só porque nesta se desenvolveram entidades irredutíveis mas também porque é no seu todo que está ameaçada. Deixou de se formar a partir da Beleza. A idéia de que tudo o que não é humano tem, tal como o humano, necessidade de redenção, é vital para a nossa continuação aqui, ou noutro lugar. No momento da posse, no poema de 11 de Junho (poema que nunca foi encontrado), tudo participa das diversas partes: a boca, a copa frondosa, o cogumelo, a falésia, o mar, a erva rasteira, a leve aragem, os corpos dos amantes. Os três sexos que movimentam a dança do vivo: a mulher, o homem, a paisagem. A paisagem não tem um sexo simples. Nem o homem, nem a mulher”(LLANSOL, 2000: 44).

Ao admitirmos, com Llansol, que a paisagem constitui um outro sexo – o terceiro sexo – tão complexo quanto o do homem e o da mulher, podemos, então, retomar um dos primeiros

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pronunciamentos de Mônica, aliando-o às imagens que abrem o filme e que o atravessam: “A primavera chegou”. E, ao final do filme, quando o rapaz é abandonado com sua filha nos braços e se põe a recordar Mônica – Mônica e a paisagem do amor –, podemos, então, concluir: sim, a primavera chegou para esse moço de poucas paisagens. Por fim, talvez possamos dizer, com Bergman e Lacan, não apenas que são elas, as mulheres, que possuem os homens, mas que são elas, as que não têm nada a dar, que fazem o amor. E como “fazer o amor, como o nome o indica, é poesia” (LACAN, 1985: 98), talvez seja mesmo nesse ponto de p da poesia –1 a paisagem – que o filme, o amor e a mulher se encontrem em Mônica e o desejo. Por isso, talvez, esses 24 segundos de um olhar que não nos vê não mereçam ser vistos apenas como tristes. Mais que tristes, menos que “testemunhas do desprezo por si mesma”, como interpreta Godard (1988: 137), esses olhos de Mônica – a solitária (ANDRADE, 1994: 97) – descortinam a “impossibilidade de não ver”:2 águas paradas, cais desérticos, navios. Nuas paisagens. E o amor, como o encontro impossível dos absolutamente sós.

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1. A esse respeito ver BRANCO, Lucia Castello. Palavra em ponto de p. In: BRANCO, Lucia Castello. Os absolutamente sós: Llansol, a letra, Lacan. Belo Horizonte: Autêntica/FALE-UFMG, 2000. p. 19-33.

2. A esse respeito ver BLANCHOT, Maurice. A imagem. In: BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 23.


Referências AGAMBEN, Giorgio. Le visage. In: AGAMBEN, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Payot & Rivages, 2002. AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2005. ANDRADE, Janete de. Étimo dos nomes próprios. São Paulo: Editora Thirê, 1994. GODARD, J. L. Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard. v. 1. 1950-1984. Ed. par Alain Bergala. Paris: Cahiers du Cinéma, 1988. LACAN, Jacques. Deus e o gozo d’A Mulher. In: ­­­­­ LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. 2ª ed. Rio de Janeiro:Zahar, 1985. LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 8. A transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, drama-poesia? Lisboa: Relógio D’Água, 2000.

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foto : eliane coster


e n t r e v i s ta

Eduardo Escorel e a montagem da história oswaldo teixeira Doutorando em Comunicação Social pela UFMG

pedro aspahan Mestrando em Comunicação Social pela UFMG

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Compreender a história talvez seja em princípio um exercício de pôr em relação diferentes períodos de tempo, um exercício de montagem. E a montagem certamente marca o trabalho de Eduardo Escorel, que se tornou o mais importante montador do Cinema Novo e do documentário brasileiro. Terra em transe (1967), Macunaíma (1969) e Cabra marcado para morrer (1984) são apenas alguns dos filmes que ajudou a realizar. Em 2006, Escorel esteve em Belo Horizonte a convite do forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte, que, além de exibir uma ampla retrospectiva de sua obra, chamou-o para realizar uma curadoria intitulada “Cânone Íntimo” – ou apenas um pretexto para iniciar uma conversa sobre a montagem cinematográfica... Entre uma sessão e outra, chamamos Escorel para uma dessas conversas. Era também, por acaso, o intervalo entre uma chuva e outra. E a conversa se deu então ao ar livre, no fora-de-campo. Plano único (e complexo): Escorel sentado à nossa frente; nós, com um pequeno gravador. Falando calma e pausadamente, Escorel nos recebe como companheiros de trabalho, embora seja o primeiro a notar a diferença entre as gerações. Num ambiente que muitas vezes descreve como hostil, e no qual as vaidades às vezes se sobrepõem às discussões, ele parece contente em poder expor algumas de suas idéias sobre cinema e montagem, e contar um pouco de sua importante participação na história do cinema brasileiro. Pedro – Escorel, pra começar, como você começou a fazer cinema? Escorel – Há várias possibilidades de contar essa história, mas uma maneira de começar seria: eu tinha 17 anos em 1962, quando veio ao Brasil o cineasta sueco Arne Sücksdorf dar um curso no Rio, entre novembro de 1962 e fevereiro de 1963. E eu fiz esse curso com algumas pessoas que depois se profissionalizaram no cinema. O curso teve uma primeira parte com projeção de filmes e debates, e o Sücksdorf tinha seu próprio equipamento pessoal de filmagem, câmera, gravador, luz, e conseguiu uma mesa de montagem para o curso que era a última palavra em termos de montagem. Então pudemos ter contato com o equipamento. Além dessa experiência do curso, do contato que isso propiciou com a primeira geração do Cinema Novo que tinha acabado de fazer seus

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primeiros filmes, o curso abriu essa perspectiva pelo aprendizado técnico. Eu comecei a fazer algumas gravações de som ambiente para vários filmes nessa época, entre 1962 e 1963. Fiz algumas assistências de montagem, mas o primeiro trabalho profissional foi em 1965, como assistente de direção de Joaquim Pedro [de Andrade], em O padre e a moça (1966), filmado em Diamantina, em São Gonçalo do Rio das Pedras e na Gruta de Maquiné. Depois montei o filme com ele, a quatro mãos. Foi o primeiro filme de longa-metragem que eu montei. Tinha antes uma relação com o cinema no ambiente familiar. O cinema na família era uma coisa valorizada e levada a sério, digamos assim. Meus pais viam cinema e discutiam cinema, tinham amigos que gostavam de cinema. A partir dos 15 anos eu comecei a acompanhar as grandes retrospectivas que se fizeram em São Paulo e no Rio. A cada ano uma grande retrospectiva do cinema americano, do cinema italiano, do cinema francês, do cinema soviético. Foi uma oportunidade para um grupo de pessoas ter uma visão do conjunto da produção cinematográfica numa época em que o acesso aos filmes era muito mais difícil do que hoje em dia. Nessa época também comecei a escrever um pouco, publiquei um artigo sobre Cinco vezes favela em 1963 ainda, numa revista chamada Práxis. Pedro – A primeira montagem profissional que você fez então foi do filme O padre e a moça, mas já tinha trabalhado antes com a moviola? Escorel – Naquele tempo era muito diferente de hoje, acho que pode ser difícil para vocês avaliarem. Havia um grupo de pessoas que estava dirigindo seus primeiros filmes, mas em geral trabalhando com profissionais de outra geração, pessoas mais velhas do que eles. Havia alguns diretores de fotografia da mesma geração, mas não havia equipes, técnicos. Eu aprendi no curso do Sücksdorf a ligar um Nagra e virei técnico de som no dia seguinte. Aprendi a ligar a mesa de montagem e pôr o filme e virei montador, era um pouco assim... Então, eu montei O padre e a moça com o Joaquim Pedro, que era uma pessoa mais experiente do que eu. Ele já tinha feito Couro de gato (1961), O poeta do castelo (1959), sobre Manuel

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Bandeira, tinha estudado fora, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos. A montagem foi pra mim o início de um aprendizado. E a partir daí começou. No ano seguinte, montei Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), eu tinha 21 anos quando o Glauber fez essa loucura de me telefonar convidando para montar o filme com ele. Aí eu virei, de certa forma, o montador oficial do Cinema Novo pelo fato de ter montado o Terra em transe. Todo mundo queria que o montador do Terra em transe montasse o seu filme, e eu de uma certa maneira me beneficiei disso. E durante mais ou menos dez anos, de 1965 a 1975, quando eu dirigi meu primeiro longa-metragem de ficção (Lição de amor, 1975), trabalhei principalmente como montador, embora a partir de 1966, quando fiz com o Júlio Bressane o filme sobre a Bethânia (Bethânia bem de perto, 1966), eu tenha realizado alguns documentários: o Visão de Juazeiro (1969-70) e depois, em 1971-72, um filme sobre Santos Dumont (O que eu vi, o que nós veremos). Eu vim fazendo documentários, mas minha atividade profissional principal – eu ganhei a vida com isso – foi como montador. Cheguei a fazer a loucura de montar três filmes de longa-metragem ao mesmo tempo. Houve um determinado período em que eu estava montando o Dragão da maldade contra o santo guerreiro (Glauber Rocha, 1969), o Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e Os herdeiros (Cacá Diegues, 1970) ao mesmo tempo. Ia passando de um filme pra outro, acabando um e começando outro, mas houve um mês em que eu estava trabalhando nos três ao mesmo tempo. Oswaldo – Você poderia falar um pouco de como se dá a relação entre o montador e cada um desses cineastas? Você montou pelo menos três dos filmes que eu considero os mais importantes da história do cinema brasileiro: Terra em transe, Macunaíma, Cabra marcado para morrer... Como se dava então essa relação entre a turma? Vocês eram uma turma de amigos antes da relação profissional, ou as coisas foram acontecendo ao mesmo tempo? Escorel – Olha, essa primeira geração de diretores, que são pessoas um pouco mais velhas do que eu, começou a fazer filmes quando eu tinha 15, 16 anos. Eles eram muito próximos uns dos outros ou foram muito próximos, muito amigos, durante algum tempo, porque rapidamente começaram a aparecer as diferenças.

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O cinema é muito perverso, estimula muito a competição entre as pessoas, os ciúmes, as invejas, quem faz mais sucesso, quem faz menos, quem é escolhido para ser exibido num festival, quem não é, e depois, a partir de 64, isso se agravou porque o clima geral de interdições, de problemas com censura, de repressão pesava muito nas pessoas. Então, rapidamente começam a aparecer pequenos núcleos, pequenos rachas, pequenas brigas, era muito freqüente as festas acabarem em pancadaria, brigas físicas, inimizades eternas que às vezes duravam 48 horas. Então, não foi assim uma coisa tão harmoniosa quanto retrospectivamente pode parecer. Houve um período, mais ou menos entre 1958-1959 e 19621963, em que as pessoas ainda estavam com o projeto de fazer um cinema. Isso as aproximava muito, e elas dependiam umas das outras. O apoio, a solidariedade, a aprovação do que era feito reforçava muito esse sentimento de grupo. Agora, trabalhar com essas pessoas não tinha, durante algum tempo, complicação maior. Começou a se complicar quando comecei a realizar o projeto do meu primeiro filme como diretor. Aí esses mesmos problemas surgem, essas diferenças de concepção, esses ciúmes, vaidades, competições. Mas de 1965, quando montei O padre e a moça, até o início da década de 1970, quando fiz o Lição de amor, eu montei filmes de várias pessoas muito diferentes, projetos muito diferentes. E é um papel de quem monta se adaptar ao filme e ao diretor. São todos projetos que têm um cunho autoral muito forte, são todos projetos em que os diretores acompanharam a montagem o tempo todo, um trabalho de colaboração, e sempre considerei que a função do montador é interpretar o filme que o diretor está querendo fazer e conseguir extrair do material o melhor que você pode extrair para realizar o projeto que o diretor quer realizar. Depois desses dez anos eu passei a montar muito menos, mas de vez em quando ainda monto alguns filmes. Acho que a montagem é, na realização de um filme, a melhor área para você tentar aprender a fazer cinema, o que é uma coisa muito difícil. E, ao trabalhar com pessoas muito diferentes, há a possibilidade de se reciclar e de rever as coisas que você achava que sabia e descobrir que muitas destas coisas na verdade você não sabia. O trabalho da montagem tem sido um pouco assim.

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Oswaldo – A montagem parece ser um importante momento de diálogo não só do realizador com o filme que ele quer fazer, mas também entre a equipe que se confronta com o material no exercício de montar. É o momento de discussão do filme, é ali que o filme vai virar filme, na sala de montagem. Como se dava esse diálogo com diretores como Glauber Rocha, Eduardo Coutinho ou Joaquim Pedro de Andrade? Escorel – Isso variava muito. Acho que, grosso modo, você tem dois tipos de situação. Tem a situação em que o projeto vai se afunilando: você parte de uma idéia às vezes meio imprecisa e no roteiro você começa a estabelecer certos parâmetros, fazer certas escolhas. Aí vai afunilando. Na filmagem você apura mais, define mais, e então na montagem, em grande parte, a forma final do filme está de alguma maneira já indicada. Acho que você pode acertar mais ou menos na montagem, a maneira de dar essa forma final, mas de certa maneira ela está contida nesse processo. E há outros filmes menos comuns, como é o caso de alguns filmes do Glauber, como Terra em transe por exemplo, em que o filme vai sendo reinventado em cada etapa. Em Terra em transe, que teve vários roteiros, os roteiros são muito diferentes uns dos outros. E o material bruto é diferente do roteiro que foi filmado e a montagem é diferente... O Glauber tinha naquele momento essa inquietação de reinventar o filme em cada etapa, depois ele retomou isso mais adiante. Muito diferente do Joaquim Pedro e do Leon Hirszman, por exemplo, em que o filme final, de certa maneira, é semelhante ao projeto original, o que é a experiência mais comum. São pessoas que têm um desejo de controle sobre a forma final. O Joaquim e o Leon eram realizadores que tinham muito isso, o Joaquim depois talvez tenha modulado isso um pouco e o próprio Leon já no final também, mas em grande parte da carreira eles tinham essa necessidade de ter controle, e de filmar prevendo como ia ser montado. O Glauber filmava e não tinha a menor preocupação de como aquilo ia ser montado. Isso que se diz, “será que monta, será que não monta?”, era uma coisa que não passava na cabeça dele. Pra ele tudo montava. Ele tinha essa confiança que de alguma maneira tudo montaria, mesmo que ele não soubesse como. Mas isso não foi sempre assim. Há uma diferença enorme entre o Terra em transe e o Dragão da maldade, por exemplo. Há

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também outros fatores que influenciam. Por exemplo, o fato dele estar trabalhando no Dragão da maldade pela primeira vez em som direto, com uma câmera muito pesada que contribui para uma encenação mais teatralizada, de planos mais longos. Só depois, quando as câmeras blimpadas passaram a ser mais leves, é que ele recuperou um pouco da agilidade na maneira de filmar. Isso é muito variável, e variado. E acho que a boa montagem é aquela que é capaz de decifrar alguma coisa que está contida no material e que vem desde o momento em que o projeto é concebido, mesmo que o realizador não tenha deliberadamente pensado daquela forma. De alguma maneira acredito que a montagem está contida no material. Eu tenho divergências com pessoas que são muito próximas de mim com quem discuto essas idéias. Mas eu acredito nisso, no fato de que o trabalho de montagem é em grande parte um trabalho de decifrar o material. Eu desconfio um pouco da idéia de que você pode impor uma montagem ao material e de que o material possa ser montado de qualquer maneira. É claro que concretamente pode, mas eu desconfio que esta seja a maneira de tirar o melhor partido possível do material. Acho que o melhor partido que você pode tirar de um material é quando você consegue decifrar o que está contido nele, o que às vezes é difícil, e o que muitas vezes não está evidente. Pedro – Mas, então, qual seria o seu método de trabalho? Partindo dessa idéia de que a montagem, de alguma maneira, está contida na filmagem e no material, como você trabalha? Escorel – Vendo o material. Vendo o material bruto mais de uma vez. O que na mesa de montagem era mais fácil. Hoje é mais difícil porque aumentou muito a quantidade de material. E você não está constantemente vendo e revendo o material quando ele está no HD. Isso é uma coisa que o Walter Murch (2004) diz em seu livro, e acho que ele tem razão. Na mesa de montagem, cada vez que você tinha que buscar uma imagem, você pegava aquele rolo de filme, punha, e mesmo que em alta velocidade, você passava o material todo pra frente. Então você estava constantemente vendo o material, e às vezes você rebobinava o material, e você via ele de trás pra frente de novo. Então você via e revia o material muito mais vezes do que hoje em dia.

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Hoje você pega o material bruto, digamos, cem horas de gravação, entrega para o seu assistente e ele digitaliza. Teoricamente você ainda não viu o material. Então você começa a trabalhar por partes. Se não tomar cuidado, você nunca tem uma visão geral do que é o material como um todo. Por isso o Walter Murch, ao editar, imprime um frame de cada plano e faz um grande painel na sala de edição pra poder visualizar, memorizar e saber do que ele dispõe. Há outros métodos pra fazer isso. Pode-se fazer cópias do material e dedicar um bom tempo a ver, rever e repensar o material. É uma questão importante e difícil de resolver hoje em dia. Pedro – Tendo em vista esse enorme volume de material com que o montador se depara, como você analisa a montagem no cinema feito hoje em dia? Escorel – É difícil de administrar essa questão. Quando você tem duzentas horas de material, a não ser que você realmente possa dedicar seis meses, oito meses, um ano, é difícil você gerir mentalmente. Pense um pouco, pra assistir duzentas horas de material, quantos dias você vai levar pra assistir uma vez? Digamos que se assistir seis horas por dia, façam a conta.1 Quando você acaba de assistir as duzentas horas, já não lembra a primeira hora que você viu. Grande parte da montagem hoje em dia tem a ver com isso. A capacidade de gerenciar mentalmente essa quantidade de material. Daí a tendência, em certas produções fora do Brasil, mas a gente vai acabar chegando nisso também, de ter vários editores trabalhando no filme. Há filmes em que trabalham o diretor e o montador numa ilha recebendo de outros editores, em outras ilhas, versões, às vezes da mesma seqüência, pré-editadas. Oswaldo – Foi assim que vocês montaram o Vocação do poder (Eduardo Escorel e José Joffily, 2005)? Escorel – Na verdade, durante a gravação do Vocação tivemos duas equipes, e nós mandávamos o material gravado para uma montadora, a Jordana Berg, que nos cinco dias da semana em que gravávamos organizava sozinha o material. Então, no sexto dia nós sentávamos com ela pra assistir e discutir o que tinha resultado da gravação. Mas quando o filme acabou ficamos, a Fernanda Rondon, o José Joffily e eu, numa ilha só, os três sentados ali, nesse confronto com o material.

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1. Aproximadamente 33 dias seguidos.


2. Lançado em dezembro de 2006 no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, o filme foi montado por Escorel.

Pedro – Você poderia falar um pouco sobre essa relação do pensamento com a montagem e das regras que o diretor ou montador se impõe para organizar o pensamento de acordo com a materialidade do filme? Escorel – A grande diferença, e talvez o grande fascínio e o perigo da montagem, é que em princípio, no momento da montagem, você tem domínio total sobre aquele material que está na sua frente. Você tem apenas algumas restrições, há sempre um prazo, há sempre um orçamento. Na montagem você não tem liberdade absoluta, mas de certa maneira você tem um poder muito grande sobre o material. Você pode fazer o que quiser com ele. Você tem controle. Hoje em dia você está numa sala, com ar condicionado, na penumbra, com poucas pessoas, talvez duas ou três. É uma situação relativamente confortável, em que você tem a possibilidade de fazer e refazer. No filme de ficção, dentro dos limites do orçamento, você tem a possibilidade de refilmar ou regravar. No documentário, em tese, você também poderia refazer, embora na prática raramente exista essa possibilidade. O conjunto de circunstâncias que estão em jogo no momento da filmagem está muito além do seu controle. Na montagem, essas circunstâncias estão sob o seu domínio. Santiago2 (2007) do João Moreira Salles é um filme muito particular, pois discute a própria natureza da sua realização. É um filme em que essas questões estão muito presentes. É um filme que ele começou a filmar em 1992, ficou sem ser montado durante 14, 15 anos, por uma certa dificuldade que ele teve de lidar com o material. Até que no ano passado ele teve uma idéia de como seria possível fazê-lo. De certa maneira nos colocamos uma série de obstruções. Montamos o filme com o espírito de que estávamos aprendendo a montar um filme, e que tudo aquilo que se considera a maneira certa de montar um filme não valia. A maneira mais usual de unir dois planos, tentávamos não fazer. A maneira usual de começar uma música, nós não fazíamos. Então os recursos que podemos chamar de mais ou menos convencionais do cinema estavam interditados. Isso porque é um filme muito particular, não está sendo proposto como regra a ser seguida em outros filmes. Não acredito que se deva adotar como regra as convenções nem também se impor arbitrariamente, em abstrato, maneiras de fazer: “eu vou fazer um filme e todos os planos vão ser em

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travelling”. Ou então: “vou fazer um filme com todos os planos gerais, fixos”. Acho que são decisões prévias, arbitrárias e teóricas que não contribuem muito para o filme. Acredito que existe um jogo de interação entre uma idéia e uma concepção que deve tentar ser descoberta, percebida e explorada no momento da filmagem, tanto na ficção quanto no documentário. Quem são os atores com quem você está trabalhando? Como eles respondem àquilo que foi concebido? Talvez a maneira como você imaginou filmar aquele ator não seja adequada para ele. Você deve buscar outras formas. O diretor de fotografia com quem você está trabalhando tem sua história como diretor de fotografia, tem sua maneira de iluminar, de trabalhar com a câmera. O Renoir escreveu uma frase que eu acho muito boa. Ele diz que o diretor de cinema é um parteiro, no sentido de que uma das funções mais importantes do diretor é fazer vir à luz, nas pessoas da equipe, aquilo que elas têm de melhor, e não impor às pessoas da equipe uma concepção pronta que ele traz para o projeto. Os melhores filmes são aqueles em que os diretores conseguem extrair dos técnicos, dos atores as contribuições mais ricas que eles têm a dar para esse projeto. Pedro – Encontrar os limites e transformá-los em fator criativo do processo de filmagem é uma tarefa importante para o cinema, saber transformar a escassez de recurso em invenção... Escorel – Mesmo se você tiver muitos recursos. Você pode ter cem milhões de dólares pra fazer um filme, se você estourar o orçamento... Às vezes, independentemente do dinheiro que você tem, as coisas se reduzem a “eu tenho duas horas para filmar esse plano aqui, dele sentado no banco”. E aí você pode ter cem milhões de dólares pra fazer o filme, mas só tem duas horas pra fazer esse plano. É o seu limite. Você tem que fazer o melhor que for capaz no tempo designado pra fazer aquele plano. E fazer um filme é isso, um filme de ficção é feito da soma dessas pequenas coisas. Você quer filmar num horário determinado, porque a luz... “Eu tenho das cinco e meia da manhã às seis e meia pra fazer um plano.” É um limite que você criou pra tirar um partido criativo da luz, e você tem que tirar o melhor partido possível daquilo. Às vezes o ator vai viajar no dia seguinte e só vai voltar daqui a seis meses, é a

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última chance que você tem pra fazer um plano com ele e a luz está acabando... Fazer um filme é isso, é lidar com os limites que você cria ou que lhe são criados. Em geral lhe são criados mais do que você cria... Pedro – Sobre montagem, parece haver uma proximidade entre o pensamento que há na música e um pensamento de montagem. A música não é feita apenas de um conjunto de notas sucessivas, assim como o filme não é feito apenas de um conjunto de planos sucessivos. Há sempre uma relação constituída entre uma pequena melodia que se relaciona com uma outra melodia por semelhanças ou diferenças. Da mesma forma como existe um plano que está em relação com o plano seguinte e com o anterior, formando uma unidade, uma seqüência que se relaciona com as próximas seqüências, e o todo do filme se faz das relações entre as partes. O que você pensa sobre essas relações? Escorel – Há várias analogias possíveis para a linguagem audiovisual, para a linguagem do cinema. Uma das melhores é com a música, sem dúvida nenhuma, mas há outras. Há uma analogia possível com a cozinha que é muito interessante. Você pode pensar no cinema como sendo uma questão de escolher os ingredientes corretos e de combiná-los de uma boa maneira e de fazer um bom prato. No fundo, na música acontece isso também. Todas as linguagens se reduzem a isso, um processo de seleção e combinação de elementos diferentes, podem ser alimentos, podem ser notas, podem ser planos, e cada um desses elementos tem graus de complexidade interna diferentes. Uma nota tem um grau de complexidade x, o plano tem um outro grau. Mas no fundo é tão simples quanto isso. Fazer um filme é tão simples quanto isso. Escolher e combinar. Você pode perder o ponto, assim como no doce. Há o ponto certo de cozimento, e o filme também tem o ponto certo, pode passar do ponto, pode estragar o doce, pode azedar. Há outras analogias possíveis, a analogia da construção, do projeto arquitetônico. Não sei se vocês leram ou lembram do livro de memórias do Buñuel, em que ele e o Carrière descrevem o prazer de fazer um drinque, um dry martini. Essencialmente é isso, são pouquíssimos elementos: o gim, a gota de angustura, o copo, o gelo, a gota de vermute, e como combinar quatro ou cinco elementos e fazer uma coisa que é inebriante como um filme.

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Cada uma desses ingredientes tem um ponto certo, tem uma dosagem certa, tem uma maneira de combinar certa. A culinária é uma atividade bastante complexa, mas talvez a música seja ainda mais complexa que a culinária, talvez seja até mais complexa que o cinema, porque o cinema de alguma maneira lida com valores menos abstratos que os da música. Mas o princípio é basicamente o mesmo. O princípio de combinar, de harmonizar, de criar... Isso está presente na montagem. É da essência da linguagem do cinema, da linguagem audiovisual. Mas ao invés de ter um repertório fixo de notas, a analogia se complica um pouco porque no cinema você não tem um repertório fixo. Você vai criar esses elementos, e ao criá-los eles podem ser mais ou menos complexos, isto é, se eu filmo uma mochila, talvez seja menos complexo do que se eu filmar um plano de nós três aqui sentados conversando. Que valor expressivo tem o plano da mochila e que valor expressivo tem um plano de três pessoas sentadas em um parque conversando? Oswaldo – O pensamento da montagem parece se revelar, muitas vezes, na fissura que há entre os planos. A montagem, normalmente, não acontece em um único plano, mas na relação que se estabelece entre os planos que compõem o filme... Escorel – Isso varia muito. Você tem ao longo da história a idéia de que o sentido nasce da justaposição, que vem das formulações do Eisenstein e do cinema soviético clássico, a idéia de que A + B gera C. Mas na verdade, a linguagem dominante convencional foi numa outra direção. Foi na direção que costuma ser chamada da linguagem transparente, em que a passagem de um plano a outro é imperceptível, e o sentido não está nascendo necessariamente do confronto entre imagens. Mas você tem razão em dizer que, na essência, a maneira de pensar a montagem é a maneira de justapor elementos. Desta justaposição, quando se passa de um plano geral para um plano próximo, há sempre alguma razão, você quer enfatizar um detalhe. O close nasce um pouco disso, a linguagem do cinema vai se constituindo nesse mesmo processo. Oswaldo – Mas voltando a essa idéia da culinária. Muitos filmes são feitos balanceando os ingredientes, mas nem todo bom filme é fácil de digerir. O Terra em transe, por exemplo, é um filme em que os ingredientes estão ali, todos bem colocados, mas não é um

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filme que qualquer espectador queira experimentar, porque ele revela uma situação política e social do Brasil que não é fácil de digerir. Talvez por isso muitas pessoas critiquem exageradamente e com uma certa virulência filmes como esse, porque seu sabor pode, muitas vezes, ser amargo. Cada diretor tem seu próprio método de trabalho, sua forma de trabalhar, mas como dosar isso? O que é difícil de digerir no Terra em transe parece ser o trabalho de associar um plano a outro, o trabalho da montagem. O espectador, por sua vez, não deveria simplesmente tentar decifrar o segredo da montagem, mas trabalhar por si para remontar o filme. Como pensar esse intervalo entre as imagens, esses espaços que se inserem para instigar o espectador a experimentar um novo sabor? Escorel – É, mas há a questão do sabor... (risos). Há quem goste de McDonald’s e há quem prefira javali com castanhas... Existem projetos diferentes, variados, concepções diferentes. Filmes que têm a ambição, que eu acho legítima, de serem saborosos para um número maior de pessoas, e filmes que sabem, no fundo, que se forem apreciados, serão apreciados por um número menor de pessoas. No caso de Os inconfidentes (1972), em nenhum momento o Joaquim Pedro se iludiu de que pudesse ser consumido no McDonald’s. Aí são circunstâncias históricas, biográficas que determinam o rumo dos projetos, a não ser num contexto de uma produção mais industrializada em que os filmes sejam mais padronizados – a institucionalização do modo de representar. É perfeitamente compreensível que menos pessoas assistam aos filmes da Chantal Akerman do que aos filmes do Michael Moore. Mas acredito que a trincheira a defender é a de que existam possibilidades de preservar dentro do cinema esses diferentes âmbitos. Eu não tenho nada contra a produção de determinados tipos de filme, o que acho que a gente deve ser contra é que só se produza um determinado tipo de filme. Oswaldo – Esse projeto que se inaugurou com o Cinema Novo e depois se dispersou, como você falou, de acordo com o interesse dos diretores... Mas existia um projeto que talvez perpassasse todos aqueles filmes, um projeto político muito forte. Você citou Os inconfidentes, esse filme até hoje é crítico em relação à situação política do Brasil. Parece que o Joaquim Pedro conseguiu enxergar

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e desvelar um traço da nossa história que se conserva no filme. Quando vemos nesse filme o Tancredo Neves aproveitando-se, não sem um certo pudor, da imagem de um mártir, o cinema parece nos abrir a possibilidade de ver ali o que está acontecendo hoje, no nosso presente. Penso, por exemplo, em seu neto, Aécio Neves... Talvez o Joaquim Pedro soubesse que o filme não seria visto por muita gente naquela época, mas ao longo dos anos ele será visto, e sempre, porque as mudanças na sociedade às vezes precisam de muito tempo para acontecer. Escorel – É muito difícil falar disso porque não existe uma explicação única pra isso. Os inconfidentes foi integralmente produzido pela televisão italiana, assim ele pôde ser feito naquele momento sem a preocupação de ser rentável, pôde ser bastante radical na sua concepção e na sua forma de tratar o texto sem prestar contas a ninguém dentro do Brasil. Costumamos dizer entre nós, ou pelo menos entre os sobreviventes, que o Cinema Novo tinha o modesto projeto de querer mudar o mundo com os filmes, modestíssimo projeto. Na verdade foi um projeto de curta duração, isso é uma coisa que às vezes se esquece. A partir de 1964, com o golpe militar, esse projeto ficou inviabilizado. Na verdade, o Cinema Novo, como foi concebido originalmente, como foi debatido e discutido, só existiu durante dois anos, entre 1962, que em geral é considerado o da primeira leva de filmes, e 1964. Ele tem uma sobrevida porque o cinema não tem essa sincronia absoluta com a história e os filmes que aparecem entre 1964 e 1968 são filmes que já vinham sendo concebidos antes. Mas a partir de 1968 as coisas ficam muito mais complicadas. Então um filme como Os inconfidentes é possível porque a RAI vem e produz, mas a partir de 1968 ou você cai no desespero, aquilo que se chamou de underground, do cinema da boca do lixo, fruto de um tipo de desespero, ou você tenta fazer um cinema, que, é preciso assumir, é um cinema de conciliação, é uma tentativa de conquistar o mercado, de dialogar com o público. O Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), o Garota de Ipanema (Leon Hirszman, 1967) caminham nesse sentido. Os filmes passam a ser coloridos. E de alguma maneira o cinema sobreviveu, manteve um certo grau de atrito, de conflito, enfrentou censura, como é o caso de São Bernardo (Leon Hirszman, 1973) e de muitos outros.

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É um processo complexo, mas eu diria que a partir de 1964 ninguém tinha mais essa idéia de que o cinema iria ajudar a mudar o Brasil. Na Argentina começa a surgir um cinema militante, no Uruguai, mas no Brasil teve muito pouco ou quase nada disso. Talvez porque as pessoas já estivessem vacinadas contra essa expectativa de que o cinema pudesse ser um fator de transformação. Por outro lado, é um mérito do cinema brasileiro, que foi muito menos dogmático do que o cinema militante, do que o primeiro cinema de Fernando Solanos, por exemplo, do que muita coisa que se fez em Cuba e nos países que ainda estavam muito vinculados a uma postura mais militante. Em função disso, o cinema brasileiro foi muito criticado no âmbito latino-americano e acabou perdendo espaço inclusive na Europa, onde a expectativa era a de um cinema mais militante. Pedro – No seu processo como realizador, o que você marcaria como algo característico do seu trabalho, que vem sendo aperfeiçoado? Escorel – Eu guardo ainda um certo interesse, uma certa afeição pelo Chico Antônio, o herói com caráter (Eduardo Escorel, 1983). É um filme que resultou de um conjunto de circunstâncias absolutamente casuais, nunca foi um projeto meu. E também com um documentário mais simples como a Primeira página (Eduardo Escorel, 1981). É muito tempo, e a relação com o cinema... Durante muitos anos eu participava um pouco da idéia de que quem faz um filme tem algo a ensinar. Acho que os primeiros filmes que eu fiz, alguns deles documentários, e mesmo na ficção, tinham por trás um pouco a idéia de que o filme tem algo a ensinar às pessoas. Isso mudou muito pra mim. Eu hoje em dia tendo a achar que o filme não tem nada a ensinar a ninguém e não deve ter essa pretensão, nem essa ambição. Oswaldo – A última pergunta: por que você faz cinema, se não é pra ensinar? Escorel – É pra aprender (risos). É pra satisfazer uma curiosidade, pra não ter que estar presente no momento da projeção. Se eu fizesse teatro, se fosse ator de teatro... Cinema é bom porque você faz, aí passa e você não precisa estar lá. Essa é uma pergunta difícil. Acho que, na origem, meu interesse por cinema era uma forma de me aproximar do país, porque eu fui criado fora do

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Brasil na infância, até o princípio da adolescência. É a idéia de encontrar uma raiz. Eu sempre digo para certos amigos que nasceram no sertão ou que foram criados no interior de Minas que eu os invejo porque eles têm um patrimônio sobre o qual eles podem sacar. Meu patrimônio é um pouco perdido pelo mundo e eu tive que criá-lo, e criei-o um pouco no cinema, viajando muito pelo país, mesmo fazendo certos trabalhos institucionais. Mas é difícil responder essa pergunta. Difícil saber por quê... Talvez porque eu não tenho talento pra mais nada, também não sei se tenho talento pra isso, é difícil responder. Eu não gosto muito da atividade. Tenho duas filhas e acho que um dos maiores orgulhos que eu tenho como pai é que nenhuma das duas tem nada a ver com cinema. Acho que foi uma das minhas grandes vitórias como pai. Acho que fazer cinema no Brasil é uma coisa penosa. Digo sempre para os meus alunos que um dos meus objetivos em cada curso é desestimulá-los, que eu espero que no final do curso eles mudem de área. Tenho uma série de aulas que se chama “O pesadelo”. É uma série sobre grandes cineastas que não conseguiram realizar o que obviamente eles seriam capazes de realizar. Começo por Stroheim, passo por Eisenstein, por Mário Peixoto, Orson Welles, cujas vidas em última análise são pesadelos no confronto com o cinema. Eu acho uma tarefa muito ingrata fazer cinema.

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Referências ESCOREL, Eduardo. Adivinhadores de água: pensando no cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2005. MURCH, Walter. Num piscar de olhos: a edição de filmes sob a ótica de um mestre. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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imagem : maria do cĂŠu diel


Leni Riefenstahl: o monumental como imagem da ruína liliane heynemann Doutora em Comunicação e Cultura pela Eco/UFRJ Professora do Departamento de Cinema e Vídeo da UFF

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Resumo: O ensaio aborda as relações entre cinema e política com base no exame das imagens da propaganda nazista nos filmes realizados por Leni Riefenstahl, detém-se sobre o documentário de Ray Müller sobre a cineasta e comenta o revisionismo histórico contemporâneo. O esforço central do texto consiste em articular as operações fílmicas de Riefenstahl, notadamente as que resultam em uma monumentalidade das imagens, ao projeto nazista: sua arquitetura, sua estética antimodernista e, sobretudo, o Holocausto. Nesse sentido, a análise busca objetivar a relação entre arte e história, voltando-se para uma noção de ética ancorada nas concepções radicais do filósofo Emmanuel Lévinas. Palavras-chave: Cinema. Documentário. História. Política. Ética.

Abstract: The essay tells of the relationships between cinema and politics from the exam of the images of Nazi propaganda in the movies made by Leni Riefensthal, as well as from the exam of Ray Müller’s documentary about the filmmaker, commenting the current historical reviewing. The central effort of the text lies in linking the filming operations of Riefensthal, in particular the ones that resulted in the construction of monumental images, with the Nazi project: its architecture, its anti-modernist aesthetic, and, especially, the Holocaust. In this sense, the analysis focuses on the relationship between Art and History, pointing to a notion of ethics based on the radical conceptions of the philosopher Emmanuel Lévinas. Keywords: Cinema. Documentary. History. Politics. Ethics.

Résumé: L’essai aborde les relations entre cinéma et la politique à partir de l’analyse des images de la propagande nazie dans les films réalisés par Leni Riefensthal, et envisageant aussi le documentaire de Ray Müller sur la cineáste et le révisionnisme historique contemporain. Le texte se focalise sur l’articulation des techniques cinémathographiques de Riefensthal, notament celles qui montrent la monumentalité des images, avec le projet nazi: l’architecture, l’esthétique antimoderniste et surtout, l’Holocaust. Dans ce sens, l’article analyse la relation entre art et histoire, et la notion d’éthique dans les conceptions radicales du philosophe Emmannuel Lévinas. Mots-clés: Cinéma. Documentaire. Histoire. Politique. Éthique.


O escritor judeu Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, descreveu em seu romance A trégua a chegada da primeira patrulha russa ao campo de extermínio (Lager) de Buna-Monowitz, em janeiro de 1945. Os quatro soldados a cavalo do Exército Vermelho, que observavam com embaraço as valas repletas de cadáveres e os poucos vivos, pareciam “sufocados pelo ultraje” e por uma vergonha peculiar, que nas palavras de Levi consistia “naquela que os alemães não conheceram, a vergonha que o justo experimenta ante a culpa cometida por outrem, e se aflige que persista, que tenha sido introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas que existem”. É interessante observar que a descrição de “vergonha” em Primo Levi encontra correspondências importantes na idéia de ética tal como a formula o filósofo Emmanuel Lévinas, fundada na possibilidade radical de sentir a dor de outrem: “o outro me concerne sem aparecer”, eis a injunção de Lévinas, que torna a responsabilidade ética algo da ordem de um inescapável. Em A trégua (Francesco Rosi, 1997), que foi adaptado para o cinema, a démarche de Lévinas parece realizar-se pelo viés da literatura. Dessa forma, os múltiplos sentidos desses primeiros momentos da libertação ressoam inequivocamente no plano geral que o escritor nos induz a ver: a imagem em perspectiva dos quatro cavaleiros contra o fundo de barracões arruinados oferece uma forma encarnada do tempo, um devir dado como visibilidade. De seu privilegiado ponto de vista, o espectador e narrador de si vê e relata: “Pareciam-nos admiravelmente corpóreos e reais, suspensos (a estrada era mais alta que o campo) em seus enormes cavalos, entre o cinza da neve e o cinza do céu (...) Parecia-nos, e assim era, que o nada atravessado de morte, no qual vagávamos como astros esbatidos, tinha encontrado o seu próprio centro sólido, um núcleo de condensação” (LEVI, 1997: 11).

O escritor, então, fala de um realismo da imagem (discussão que, sob diferentes chaves, atravessa os estudos sobre imagem, notadamente a de cinema) e da verdade que esta faz emergir de forma radical. E a imagem verdadeira, nos ensina o cineasta Tarkovski, edifica-se sobre um conflito. O conflito, aqui, pode ser capturado na configuração paradoxal desses soldados que surgem simultaneamente como espectros, na fantasmagoria dos tons de cinza que igualam o céu e a terra, e como corpos, materialidade. Surge entre os mortos e os vivos, assumindo a indiscernibilidade desses estados num lugar/não-lugar em que mais do que em

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qualquer outro eram de fato pouco reconhecíveis. Em nenhum outro lugar, porém, fazer essa diferença, a cada presente, foi tarefa mais essencial. Se o escritor aparentemente abandona nessa passagem a linguagem, que pertenceria ao domínio tradicional do literário, não o faz, pensamos, como inscrição no estilo cinematográfico, de que o romance americano das décadas de 1930 e 1940 foi o exemplo mais notável. Esse deslocamento narrativo possui outras determinações, sugerindo, a exemplo do filme Shoah, de Claude Lanzmann (1985), que é preciso comparecer à presença daquele lugar e respeitar o tempo real do testemunho. De modo singularmente literário, se é ainda possível demarcá-lo assim, o autor nos convoca à cena do indizível. E como nos ensinou Adorno (1993), se a arte não pode “dizer o indizível”, deve “dizer que não pode dizê-lo”. Agora, impõe Primo Levi, trata-se de ver. Ao obedecer à sua ordem, no entanto, longe de quedarmos submissos, também participamos em larga medida daquele trabalho vital e problemático que consistia, como vimos, em resistir à indiferenciação. Pois esta é, literalmente, uma questão de vida ou morte que os artistas não cessaram de nos colocar. A arte nos possibilita, sabemos, a experiência da multiplicidade: sujeitos-autores, sujeitos-políticos, outros de si mesmo. São inúmeras as formas de operar a matéria artística capazes de engendrar tal conhecimento. A este não se opõe, contudo, sua ausência, o desconhecimento, mas a suspensão da potência de pensar, assim como o que se opõe à arte não é da ordem de um irrealizado, e sim do próprio registro do estético quando este se converte na satisfação no nível perceptivo, de um desejo primitivo de regularidade rítmica, na monumentalidade (como um ponto máximo de naturalismo), na adequação entre imagem e discurso, em um princípio de identidade generalizante. Essa experiência encontraria um lugar privilegiado de atualização na estética fascista, notadamente o filme de propaganda nazista – que, a despeito dos que assim o postulam (ao exaltar em certos filmes um suposto heroísmo desbravador da técnica), não se inscreve no amplo espectro de invenções formais das vanguardas das primeiras décadas do século, ainda que estas, em algumas de suas manifestações, corroborem seus elementos. Ao contrário, a estetização da propaganda nazista produz, em sua intencionalidade, em sua feição programática,

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uma incomensurável distância do gesto artístico: distância tão mais eloqüente quanto a tentativa de mimetizar seus traços. É nessa direção que compreendemos a necessidade de examinar tal corpus como um estudo de caso. Die macht der bilder, Leni Riefenstahl, de Ray Müller (1993), documentário sobre a diretora, busca elaborar os termos da discussão sobre a responsabilidade ética do artista, por meio do confronto entre o depoimento de Riefenstahl e fragmentos dos filmes que realizou como cineasta oficial do regime nazista. São exibidas ainda “cenas da guerra”, cartas de Riefenstahl a Hitler (cumprimentando-o pela invasão de Paris, ou, a primeira, após assistir a uma manifestação nazista, em que declara sua admiração, que resultaria nos futuros contatos), discursos de Hitler e Goebbels etc. A princípio, não extraímos qualquer interesse particular das declarações de Riefenstahl acerca de suas relações com o nazismo. Talvez porque tais declarações sejam semelhantes às que fizeram os demais envolvidos após a derrota da Alemanha, que consistiam, em síntese, na tentativa de dissociar ação e política. Desse ponto de vista, os diversos níveis de comprometimento com o extermínio dos judeus (decisão tomada por Hitler em setembro de 1939, após a invasão da Polônia) implicariam uma ação mecânica, inevitável, da qual o pensamento estaria excluído, e que nos remete a “essa ausência absoluta de pensamento” de que fala Hannah Arendt ao analisar o caso Eichmann. Essa perspectiva, que afirma uma impossibilidade de escolha (quando aquele era de fato o espaço por excelência da escolha), busca deslocar o problema ético – que aqui consideramos na acepção dada por Alain Badiou, a de uma “ética das verdades” –, ancorado exatamente na fidelidade a um evento-escolha, para um lugar indiferenciado, de profundo silêncio, ou, como formula Lyotard (1994: 32) sobre a ausência do extermínio no pensamento de Heidegger: “essa não-questão, esse fechamento, essa oclusão”. Assinalamos ainda que as declarações de Riefenstahl corroboram fielmente uma das formas contemporâneas mais potentes de anti-semitismo, centrada nas teses revisionistas de negação do Holocausto ou na trivialização dos crimes perpetrados pelos nazistas e seus colaboradores. Em dois extraordinários ensaios sobre o niilismo contemporâneo, “Os enunciados do fim e do nada” (1995) e “A

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1. Em “Representação e mímesis”, Luiz Costa Lima analisa o revisionismo histórico como “conseqüência imprevista”, a partir da década de 1970, da renovação da escrita da história através de sua aproximação com a problemática “das construções narrativas que têm por matériaprima a linguagem”. O autor, em sua instigante reflexão, parte do exame do Metahistory de Hayden White (LIMA, 2000: 227-286).

política em sua era niilista” (1996), Jacques Rancière interroga o funcionamento político do que denomina “existências inexistentes”, categoria que irá estruturar o campo de uma política do acontecimento. Seu projeto, o de “desatar o nó revisionista do possível”, postula uma mudança de campo pela adoção de três axiomas: “o tempo é sem relação com a verdade, o acontecimento é sem relação com o possível e o real é sem relação com o realismo”. Os temas do fim da política, ou do fim da história, teriam duas versões principais: a versão “hegeliano-escoteira” popularizada pela obra de Fukuyama, na qual o fim da história se daria como triunfo planetário da democracia, e outra, oposta, a versão “realista fim-de-século”. Aqui, o fim é ausência radical de todo fim, ou seja, “fim das políticas do telos e da promessa, das metapolíticas da verdade da história que trazem o advento do real oculto da política” (RANCIÈRE, 1995: 235). Rancière mostra a incapacidade do realismo em opor réplica ao argumento de inexistência do real formulado pelo revisionismo, dando a ver principalmente que a radicalização das categorias da crença historiadora – ou da crença do saber social em sua segunda era – irá constituir a síndrome revisionista (LIMA, 2000).1 Em outras palavras, a renúncia à história dos acontecimentos (cujo marco notável é a Escola dos Anais) não é capaz de responder ao revisionismo, sobretudo quando este incide sobre seu objeto primordial, o processo nazista de extermínio dos judeus: “A ciência histórica pode dar todos os elementos de refutação do revisionismo sem desarraigá-lo como modo de pensamento, porque, como modo de pensamento, ele pertence à racionalidade que produz a crença histórica erudita. Ele pertence à época que declara encerrado o tempo dos acontecimentos” (RANCIÈRE, 1995: 243).

E aquilo que se opõe à história dos acontecimentos é a história das mentalidades, segundo a qual a vida é manifestação de seus modos, o que exclui desde sempre a diferença da vida em relação a ela mesma. Essa impossibilidade de enfrentar o revisionismo, que atinge não só “sólidos racionalistas” (RANCIÈRE, 1995: 242), mas também historiadores que professam uma filosofia de extração nietzschiana, é ancorada, portanto, no “programa do possível, do tempo do possível” (RANCIÈRE, 1995: 242) que desencadeia a noção de que a existência do inacreditável é impossível.

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Como lugar de confluência dessas antinomias, o Holocausto engendra sua posteridade em um corpus incontrolável e complexo de imagens, narrativas e edificações que potencializa, na multiplicidade de abordagens que integra, a violenta alteridade subsumida na existência judaica2 e seu impacto no Ocidente cristão (considerando, contudo a precariedade totalizadora contida na noção de “um Ocidente”) (BHABHA, 1998: 65),3 hoje em sua feição globalizada. Nessa perspectiva, o Holocausto vem se constituindo, na cena contemporânea, como o impasse fundamental que desafia a “boa vontade de pensar”:4 desafio à temporalidade fragmentada, mas também ao retorno à narrativa, desafio ainda à ética fundada nos direitos humanos que vem legitimando, por meio de modalidades do revisionismo, aquilo que Emmanuel Lévinas chamará de “ato final que se realiza hoje, na contestação póstuma deste fato pelos pretensos revisores da história”. História que é “dor na sua malignidade sem mistura, sofrimento por nada” (LÉVINAS, 1997: 136-140).5 Trata-se agora, em larga medida, daquilo que Rancière chamará, em sua interlocução com Lyotard, de “complexidade do jogo de um impensável”. Para Lyotard, toda reflexão sobre o Holocausto deveria “pensar a especificidade do projeto de exterminar o povo judeu enquanto povo testemunha de uma dívida primeira do homem para com o Outro, de uma impotência natal do pensamento cujo testemunho o judaísmo carrega e que a civilização greco-romana sempre se empenhou em esquecer. A identidade ‘filosófica’ do refém-testemunha é a identidade da testemunha da impotência do pensamento, que a lógica de uma civilização manda esquecer” (LYOTARD apud RANCIÈRE, 1996: 133).

Como já afirmamos, as declarações de Riefenstahl concernentes à sua colaboração com o nazismo inscrevem-se na linha de argumentação do revisionismo histórico. É assim que, confrontada com as provas materiais de adesão (inclusive com o fato de que vários artistas abandonaram a Alemanha em oposição aberta ao nazismo), Riefenstahl se defende com uma curiosa e sintomática “alegação ótica”: a de que só teria visualizado do nazismo seus fragmentos neutros, amorfos, inofensivos. A noite dos cristais, o auto-de-fé em que livros de “inimigos do Reich” queimaram na fogueira de Goebbels, a própria figura de Hitler, descrita por ela como detentora de suave simplicidade, aparecem como elementos desfocados numa paisagem dispersiva.

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2. Sobre a figura do judeu como “o outro do Ocidente”, ver Lyotard (1994). 3. Em O local da cultura, Homi Bhabha (1998: 81) adverte que “nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu com o Outro”. 4. Os textos de Zygmunt Bauman sobre o Holocausto, notadamente Modernidade e Holocausto (1998), se inscrevem, em nossa perspectiva, em uma vertente revisionista que utiliza um tom condescendente em seu programa de apaziguamento do Holocausto e de abjeção das vítimas. 5. Assinalamos que, embora o pensamento de Lévinas postule uma ética radical “das diferenças”, é na própria radicalidade que essa categoria assume em sua obra, em seu apelo a uma exterioridade absoluta, ao “Neutro” (que o aproxima de Blanchot), que se dá seu afastamento da “ética das diferenças” contemporânea, com seu apelo diluidor aos direitos humanos e o particularismo que este paradoxalmente integra. Sobre a distinção entre a ética em Lévinas e a “ética das diferenças”, ver Ética, um ensaio sobre a consciência do mal (BADIOU, 1995).


Da leitura de Mein Kampf afirma ter registrado apenas as passagens que não tratavam das teorias raciais de Hitler, assim como na escuta de seus discursos às massas as convocações ao extermínio teriam sofrido um lapso (alegação idêntica, por exemplo, à de Speer). Trata-se, desse modo, de um complexo exercício perceptivo: o de apagar as marcas distintivas de um discurso que se afirmou precisamente pela radical visibilidade do projeto que elaborava. Em Leni Riefenstahl, as recorrentes alegações de desconhecimento e não-participação adquirem relevância e especificidade, para além do que enunciam e buscam eludir, por se estenderem a duas ordens principais de questões: as diferenças entre os domínios da arte e os da propaganda (que Riefenstahl problematiza, ao procurar incluir seus filmes no primeiro, por meio das noções de História, verdade e realismo da imagem) e, como decorrência, uma autonomia artística de tal magnitude que tornaria possível realizar filmes nazistas, sem no entanto fazê-lo. Pois em última análise, aquilo que Leni Riefenstahl reitera a cada seqüência do filme de Ray Müller é que os filmes de propaganda realizados para o Estado nazista, ainda que reunissem todas as características da estética que lhes é peculiar, resultariam em documentários, em filmes históricos. Sobre O triunfo da vontade, realizado em 1935, Riefenstahl afirma: “Esse filme não contém nenhuma cena reconstituída. Tudo é verdade. E ele não contém nenhum comentário tendencioso, pela boa razão de que não contém absolutamente comentários. É a História. Um puro filme histórico, mais exatamente um filme verdade. Ele reflete a verdade, sendo portanto um documentário e não um filme de propaganda” (VERNET; GERKE, 1995: 22).

O triunfo da vontade, o mais bem realizado filme de propaganda nazista (no sentido mesmo de adequação estética aos pressupostos do discurso hitlerista), sobre os participantes do Congresso de Nuremberg, com os membros do Partido Nacional-Socialista, exibe, com a grandiosidade da mise-en-scène, o desfile das tropas e grandes planos de Hitler (os primeiros já feitos) discursando. Foram utilizadas diversas câmeras móveis para a produção de múltiplos ângulos, em oposição aos pontos de vista fixos, recursos que imprimiram à montagem um considerável dinamismo. Do mesmo modo que Riefenstahl irá postular uma imagem fílmica que “nada comenta”, uma imagem que não constituiria um

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pensamento, isenta de dobras, dirá também que a montagem não produz ou concentra instâncias políticas. A montagem, assim como os demais procedimentos que integram a realização de um filme, seria, dessa forma, uma operação técnica, no sentido de constituir uma realização mecânica, que independe de quem a executa. A sincronia entre a música militar e a imagem, os movimentos de câmera e as angulações que mostram circularmente a figura do Führer, a oposição entre as gigantescas massas humanas e os planos frontais de Hitler seriam, em sua perspectiva, a própria História. Para Riefenstahl, portanto, a História é uma verdade sem tensões ou comentários, passível de ser mostrada por uma câmera neutra que a revela em sua monumentalidade ou em sua insignificância, de acordo com a face que apresenta. Ao cineasta caberia um papel paradoxal, no qual a liberdade coincidiria com o estrito cumprimento de ordens: ordens da História, que é esta, mostrada, ordens dos que fazem essa História e a querem como imagem. É importante ressaltar que, como assinala Marc Ferro, “os nazistas foram os únicos dirigentes do século XX cujo imaginário mergulhava essencialmente no mundo da imagem” (1992: 73). Torna-se supérflua, pela própria evidência, a análise da visão historicista de Riefenstahl. Mas é surpreendente que a forma que assume sua justificativa formule uma auto-acusação cuja literalidade dispensaria toda a longa entrevista de Ray Müller. Pois se O triunfo da vontade reproduz a verdade da História e as operações fílmicas realizadas por Leni Riefenstahl convertem, segundo suas próprias afirmações, do modo mais habilidoso e fiel essa verdade em imagem, somos levados a considerar que, mais do que todos, Riefenstahl acreditou na monumentalidade do Reich e na onipotência do projeto nazista expressa no discurso de Hitler: “Um só povo, um só Führer, um só Reich: a Alemanha”. Filmou, enfim, tal como a via, como verdade, a história, que consistia aos seus olhos na grandiosidade da Alemanha anunciada por Hitler, inseparável da guerra e do extermínio. Em seu discurso sobre a imagem e a história, Riefenstahl reproduz, a exemplo de seus filmes, o próprio pensamento exaustivamente enunciado por Hitler: a verdade é o nazismo, ela não contém comentários, só atualizações. Norbert Elias irá descrever em O colapso da civilização a relação entre a exacerbação dos padrões autocráticos de consciência, característicos da nação alemã, e a formação de um

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“nós-ideal que sujeitou o futuro a uma imagem onírica de um passado maior” (ELIAS, 1997: 97). É assim que: “A peculiaridade do processo alemão consistiu no grau em que os hábitos e imagens da autocracia se integraram – sem contra-imagens – no código nacional e na auto-imagem nacional, e no caráter sobremaneira exigente, incondicional e, nesse sentido particularmente opressivo da tradição de Estado autoritário que encontrou expressão no nós-ideal da nação alemã” (ELIAS, 1997: 303).

É na idéia de atualização dessa imagem onírica de um passado glorioso que compreendemos o monumental presente na escrita fílmica de Leni Riefenstahl e o alcance que essas imagens, a mais perfeita tradução da idéia de um Reich milenar que interpretasse o papel imperial da Alemanha, obtiveram. O nós-ideal, de que fala Norbert Elias, atualização coletiva da tensão entre essa miragem retirada de um passado e a autoimagem em processo de declínio, aparece quase didaticamente em O triunfo da vontade e em Olympia (Os deuses do estádio), filme de 1938 sobre os jogos olímpicos de Berlim, realizados em 1936, com atletas, membros do Partido Nacional-Socialista e oficiais do Comitê Olímpico Internacional. Olympia, para cuja realização o Ministério de propaganda nazista concedeu recursos quase ilimitados, converte os atletas em figuras míticas, por meio sobretudo das tomadas em contreplongé permitidas pela situação das câmeras em declive. Esses corpos predispostos ao culto, que reapareceriam nos filmes sobre os Noubas que Riefenstahl realizou entre 1956 e 1973, nos quais muitos críticos identificariam elementos de uma estética fascista, estariam de acordo com sua inspiração inicial: “Quando me perguntei se poderia ou não realizar esse filme, se isso seria interessante, estava inteiramente tomada pela imagem dos estádios olímpicos da Grécia Antiga, e não somente estes lugares, mas toda a civilização grega, os templos, as estátuas. A passagem da Antigüidade ao presente era tão dramatúrgica que tornava-se mais simples exprimi-la não através de uma ação, mas de modo puramente ótico” (V­ERNET; GERKE, 1995: 65).

Se é irrelevante destacar a obviedade da imagem que associa jogos olímpicos a estádios gregos, imagem que irá inspirar Riefenstahl, é interessante, por outro lado, observar as correspondências entre a escrita de corpos e lugares daí resultante e a arquitetura nazista. Em diversos sentidos, Olympia remete aos

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projetos arquitetônicos de Hitler, relatados por Speer, o arquiteto nazista, em seu livro. Elias Canetti, no vigoroso ensaio “Hitler, por Speer”, analisa essas edificações monumentais, verdadeiros cenários nos quais a proximidade entre as noções de construção e destruição atinge um ponto máximo de idealidade: “A volúpia de construir e a destruição são prementes em Hitler, e atuam lado a lado” (CANETTI, 1990: 176). Canetti assinala que Hitler, um “empirista da massa, como poucos”, conhecia a facilidade com que as massas, cujo engendramento o levou ao poder, tendem à desagregação. Além da guerra, implícita, desde o início, em seus projetos de construção, existiriam somente dois meios de evitar tal desagregação: a repetição regular e o crescimento. Para possibilitar essas instâncias seriam necessários locais cuja extensão sugerisse à massa a possibilidade de crescer, edificações de caráter cultual que se prestassem à repetição regular, cujo modelo é dado pelas catedrais (o Kuppelberg, projetado para Berlim, é exemplar nesse sentido). Outro modelo ainda é fornecido pelos estádios onde na massa, disposta em círculos, pode-se ver a forma de organização que provém da Antigüidade romana. Canetti destaca uma outra forma assumida pela massa, que caracteriza como “vagarosa”: procissões, paradas, desfiles que nos projetos arquitetônicos nazistas seriam contemplados com uma rua de cinco quilômetros de extensão. Ao projetar espaços grandiosos, permanentes “como já não se fazem há quatro milênios”, Hitler estaria pensando nas pirâmides egípcias, símbolo de “uma massa que não mais se desagrega”, pois a permanência em Hitler vincula-se à idéia de sua presença perpetuamente reatualizada: a compulsão de superar, reflete Canetti, converte seus projetos em “sobrepujamentos”. O Arco do Triunfo, esboçado em 1925, em homenagem aos alemães mortos na Primeira Guerra (derrota, portanto, transformada em vitória), constitui desse modo o projeto-síntese de Hitler. Nele estão atualizados os elementos estéticos e históricos que lhe são mais caros. Esse monumento, que deveria ser feito da pedra mais resistente (lembremos da repulsa de Hitler por materiais como o vidro) e atingir a altura de 120 metros (duas vezes maior que o Arc de Triomphe de Napoleão), traria em granito os nomes de 1,8 milhão de mortos: “O sentimento em relação à massa dos mortos é decisivo em Hitler. Essa é a sua verdadeira massa. Sem esse sentimento

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não é absolutamente possível entendê-lo: nem seu início, nem seu poder, nem aquilo que empreendeu com esse poder, nem a que conduziram seus empreendimentos. Sua obsessão, cuja vitalidade mostrou-se sinistra, são esses mortos” (CANETTI, 1990: 184). 6. A “monumentalidade” da imagem já aparecia em filmes alemães anteriores à guerra, por exemplo nos numerosos filmes que tinham como tema recorrente a montanha (um deles realizado e protagonizado por Riefenstahl). Sobre esses filmes e sua relação com o nazismo, ver o clássico ensaio de Kracauer, De Caligari a Hitler (1988).

A monumentalidade do projeto hitlerista (KRACAUER, 1988),6 para além de sua feição kitsch – que em larga medida define as afinidades estilísticas entre Hitler e a pequena burguesia alemã (ROSENFELD, 1993) – contém, inscrita em sua literalidade, a massa dos mortos. Outra natureza de morte e de permanência estaria, no entanto, virtualmente contida nas imagens – e à revelia delas – dos filmes de propaganda que Leni Riefenstahl realizou: filmes em que a monumentalidade, como nos ensina Ismail Xavier, corresponderia a um apogeu naturalista, intensamente retórico, produtor de alegorias que, ancoradas numa “espetacular precisão”, produziriam “modelos exemplares” sob “um fundo de verdade absoluta” (XAVIER, 1977: 32). A essa espetacular precisão, podemos contrapor a enunciação de Terry Eagleton, pela via de Adorno em A arte depois de Auschwitz: “É o deslizamento ou o hiato interior da obra de arte, sua impossibilidade de coincidir exatamente consigo mesma, que fornece a fonte mesma de seu poder crítico, num mundo em que os objetos estão petrificados em seu ser monotonamente idênticos, condenados ao inferno de não ser senão eles mesmos” (EAGLETON, 1993: 253).

Nesse sentido, para Adorno, “a obra de arte suspenderia a identidade sem cancelá-la, apontando-a e rompendo-a simultaneamente, recusando-se ao mesmo tempo a suportar o antagonismo e a oferecer uma falsa consolação” (1993: 251), instância cuja grande realização literária seria a obra de Beckett, em cujas criaturas esqueléticas, apartadas da humanidade, veria a “única imagem do corpo que é mais que uma mentira blasfema” (1993: 249). Em Riefenstahl temos um projeto que sucumbe ao peso de sua auto-identidade, não decerto pela intervenção da cineasta, que, ao contrário, o supunha um sistema inviolável de verdade entre coisa mostrada e sentido. A fissura, aqui, encontra suas condições de possibilidade no escárnio que a monumentalidade subsume, como se toda uma política do corpo, esse corpo em estado de fatal diferença e permanente catástrofe, em um ataque guerrilheiro sobre

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o inarticulável, para usar a expressão de Eagleton, se fabulasse na própria ausência de crise que se queria em umas tais imagens, se fizesse nas malhas de seu tecido morto. Morte e permanência da morte, como traição a essas imagens, engendrando uma duração que em tudo as ultrapassa, um modo próprio do presente, no sentido em que Walter Benjamin (1989) o formula: presente suspenso, arrancado à fixidez do tempo homogêneo e vazio. E já estavam lá, na supérflua potência que a escrita esteticista dos corpos em Olympia busca impor, os corpos do extermínio. No que consiste a escrita dessas cinzas, como significá-la? A ruína presentificou-se na monumentalidade das massas em O triunfo da vontade, nos lugares de eternidade do projeto arquitetônico do nazismo. Essas imagens são em si a ruína. O que nos dão a ver? Imagens de corpos, imagens de lugares, imagens de nomes de lugares: Treblinka, Theresienstadt, Auschwitz, Birkenau, Sobibor. Constituem nas imagens de Riefenstahl e nas palavras de seu testemunho, mais de meio século depois, o que Lyotard, referindo-se a Heidegger, denomina memória da exclusão e que seria “aquilo que lhe falta, a sua carência, e cuja falta lhe falta”.

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