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devires, belo horizonte, v.
8, n. 1, p. 01-198, jan/jun 2011 – issn: 1679-8503
periodicidade semestral
Organização dossiê fotografia e cinema Anna Karina Bartolomeu Mauricio Lissovsky Conselho Editorial Ana Luíza Carvalho da Rocha (UFRGS) Cristina Teixeira Vieira de Melo (UFPE) Consuelo Lins (UFRJ) Cornélia Eckert (UFRGS) Denilson Lopes (UFRJ) Eduardo Vargas (UFMG) Ismail Xavier (USP) Jair Tadeu da Fonseca (UFSC) Jean-Louis Comolli (Paris VIII) João Luiz Vieira (UFF) José Benjamim Picado (UFF) Marcius Freire (Unicamp) Marcelo Serelle (PUC-MG) Mauricio Lissovsky (UFRJ) Mauricio Vasconcelos (USP) Patricia Franca (UFMG) Patricia Moran (USP) Phillipe Dubois (Paris III) Phillipe Lourdou (Paris X) Réda Bensmaïa (Brown University) Regina Helena da Silva (UFMG) Renato Athias (UFPE) Ronaldo Noronha (UFMG) Sabrina Sedlmayer (UFMG) Silvina Rodrigues Lopes (Universidade Nova de Lisboa) Stella Senra Susana Dobal (UnB) Sylvia Novaes (USP)
Prussiana Fernandes Leonardo Ruas Coordenação de produção Prussiana Fernandes curadoria de imagens Conceição Bicalho imagens Anna Karina Bartolomeu (págs. 04-05, 30) Marina RB e Hortência Abreu (pág. 14) Aroldo Lacerda (pág. 48) Mauro Henrique Tavares Portela (pág. 48) Lucas Martins Fernandes (págs. 90, 118, 178) Elias Mol (pág. 160) Apoio Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência Fafich – UFMG
Editores Anna Karina Bartolomeu André Brasil César Guimarães Carlos M. Camargos Mendonça Mateus Araújo Silva Roberta Veiga Ruben Caixeta de Queiroz capa e Projeto gráfico Bruno Martins Carlos M. Camargos Mendonça Editoração eletrônica Publicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Programa de Pós-Graduação em Comunicação Programa de Pós-Graduação em Antropologia Avenida Antônio Carlos, 6627 – Pampulha 31270-901 – Belo Horizonte – MG Fone: (31) 3409-5050 D 495
DEVIRES – cinema e humanidades / Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.8 n.1 (2011) – Semestral ISSN: 1679-8503 1. Antropologia. 2. Cinema. 3. Comunicação. 4. Filosofia. 5. Fotografia. 6. História. 7. Letras. I. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Sumário
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Apresentação Anna Karina Bartolomeu e Mauricio Lissovsky Dossiê: Fotografia & Cinema
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Arret sur l’image: cuando el tren de sombras se detiene Antonio Weinrichter
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Poiética da queima, figuras em sobrevivência Samuel de Jesus
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Imagens entre a pausa e a espera Suzana Klipp e Cybeli Moraes
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Signos da ação na fotografia: linearização e temporalização do instante no fotojornalismo Benjamin Picado
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Fotograma comentado - Por uma presença ética do fotógrafo Monise Nicodemos
90
Formação do estado, tecnologia visual e espectatorialidade: visões da modernidade no Brasil e na Argentina Jens Andermann
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A Boca do Lixo nas fotografias de Ozualdo Candeias Fábio Uchôa
136
Investigação sobre uma imagem (Carta a Jane) Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin Fora de campo
160
A incestuosa gemeidade: notas sobre A Zed and Two Noughts, de Peter Greenaway Débora Breder
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Maria Antonieta: melancolia, política, tempo André Antônio Barbosa
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Normas de publicação
Anna Karina Bartolomeu
Apresentação
Fotografia e cinema sempre habitaram um território comum, configurado em certos modos de fazer, modos de experimentar e pensar um e outro. Nas duas últimas décadas, especialmente, temos visto a investigação em torno dessas relações tornar-se um tema recorrente entre teóricos de ambos os campos. Este interesse crescente parece suscitado pelo rápido processo de transição tecnológica que vai pouco a pouco abolindo as diferenças oriundas dos suportes tradicionais. Para alguns, o problema da “fotografia no cinema” ou do “cinema na fotografia” deve ser pensado no âmbito da questão dos hibridismos, da transterritorialidade e da diluição das ontologias. Para outros, a cena se abre para as arqueologias e as sobrevivências, fazendo eco, de algum modo, à proposição que Rosalind Krauss fez uma vez a si mesma: “Não pude abrir mão da idéia de que o meio é uma fonte contínua de sentido; então, em minha própria mente, converti o slogan de McLuhan em ‘o meio é a memória’”1. Neste dossiê organizado pela Devires, trata-se de pensar as relações entre o cinematográfico e o fotográfico numa perspectiva que reconheça traços e vestígios de um e de outro, não com o objetivo de demarcar territórios e, muito menos, apontar sua indiscernibilidade, mas de investigar as condições e as implicações deste encontro. E muitos podem ser os lugares construídos para observá-lo. Pensemos, por exemplo, no espaço-tempo marcado pela presença de uma câmera. Sejam quais forem os rituais que envolvem a cena – a produção de um retrato, uma tomada do filme de ficção, o plano do documentário –, trata-se com frequência daquele acontecimento singular e irreversível que é o encontro entre corpos mediados pelo dispositivo maquínico2. Fotografia e
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1. KRAUSS, Rosalind. Perpetual Inventory. Cambridge (Mass): MIT Press, 2010, p. 19.
2. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 240.
3. LISSOVSKY, Maurício. O tempo e a originalidade na fotografia moderna. In: DOCTORS, Márcio. Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
4. BELLOUR, Raymond. Entre-imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997, p. 134-135.
cinema compartilham aí da operação de extrair fragmentos de tempo e espaço, sob a forma da imagem fixa ou da imagem que se move, instaurando neste momento uma outra temporalidade, tensionada pela duração de uma espera e pelo instante do corte. No artigo que abre este dossiê, “Arret sur l’image – Cuando el tren de sombras se detiene”, Antônio Weinrichter ressalta a dimensão espectral e melancólica que resulta dessas imagens, bem como o aspecto alegórico contido no gesto de arrancar algo de seu contexto vital. O conceito benjaminiano de alegoria e a noção de montagem ao qual está associado são retomados por Weinrichter para explorar aquilo que cinema e fotografia têm em comum e o que os distancia. Ao perguntar o que acontece quando o fluxo das imagens se detém, o autor vai se concentrar no exemplo oferecido por filmes de remontagem e de found footage nos quais a suspensão do movimento define a interrupção como um método de pensamento. A sensação de parada no audiovisual atribuída à fotografia pode também acontecer quando há o uso da câmera lenta ou do plano sequência, como demonstram Suzana Kilpp e Cybeli Moraes no artigo “Imagens entre a pausa e a espera”. A busca por estes rastros do fotográfico no audiovisual leva à identificação de uma forma de audiovisualidade nomeada “ethicidade pausa”, cujos sentidos serão abordados através da análise do filme Sauve qui peut (la vie) (1978), de Jean-Luc Godard. Na pausa que se atualiza em cada frame ou em cada corte, o que dura é um tipo de espera – virtualidades – que as autoras aproximam daquela que caracteriza o instantâneo da fotografia moderna: “onde o refluir do tempo tem curso, onde o instante ainda não está dado e onde ele se realiza”3. A investigação a propósito do instantâneo apresentada por Benjamin Picado, no texto “Signos da ação na fotografia: linearização e temporalização do instante no fotojornalismo”, concentra-se na forma como determinados aspectos plásticos da imagem fixa são capazes de restituir dramaticamente a duração originária de um acontecimento, alcançando assim um efeito narrativo. Numa indagação análoga à que Raymond Bellour endereça ao filme quando o instantâneo se torna pose ou pausa, suspendendo a projeção, Picado interroga-se sobre “quais são os instantes que a interrupção do movimento supõe, a que tipo de instante ela se refere”4. O autor toma a conhecida fotografia de
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Apresentação / ANNA KARINA BARTOLOMEU E MAuRicio lissovsky
Ian Bradshaw, The Twickenham Streaker (1974), para demonstrar que os gestos, as relações entre os corpos e sua distribuição no espaço, capturados no ponto climático da ação, funcionam como operadores da parada e como vetores de um sintagma de leitura. Afastando quaisquer determinações do dispositivo referentes à indexicalidade da fotografia, reivindica-se aí uma autonomia da imagem e dos sentidos que ela produz em relação ao fato que efetivamente ocorreu. O reconhecimento da pulsão de morte que habita os arquivos, tal como descrito por Jacques Derrida, é o ponto de partida do texto “Poiética da queima”, de Samuel de Jesus. Neste caso, o esforço do autor não passa necessariamente por colocar cinema e fotografia frente a frente, mas em flagrar as passagens entre eles, que ocorrem quando o aniquilamento de um suporte original resulta em outras formas de sobrevivência da imagem, em obras cinematográficas, fotográficas e plásticas contemporâneas. No segundo bloco deste dossiê encontram-se textos nos quais a abertura das imagens ao mundo histórico é o mais decisivo. Na seção Fotograma Comentado, Monise Nicodemus discorre sobre duas fotografias jornalísticas – campo e contra-campo – que registraram o assassinato da menina haitiana Fabienne Cherisma, pela polícia, em 2010. As duas imagens permitem pensar, nos termos de Serge Daney, sobre o domínio do visual e o domínio da imagem: o primeiro, que elimina o contra-campo e as condições da tomada e o segundo, que implica, na imagem, a fronteira entre dois campos de força e revela as condições do encontro que a torna possível. A partir daí, a autora discute o trabalho do documentarista em zonas de conflito e a necessidade de se repensar, na fotografia e no cinema, o que se mostra e como se mostra. No artigo “Formação do estado, tecnologia visual e espectatorialidade: visões da modernidade no Brasil e na Argentina”, Jens Andermann confronta o fotográfico e cinemático no momento em que, segundo Jonathan Crary, o observador clássico, pontual, vai sendo substituído por um sujeito atento instável, cuja visão é reconfigurada como dinâmica, temporal e compósita5, diante de um permanente bombardeio de estímulos. A transição entre dois modos de ver, correspondentes aos regimes escópicos políticos dos séculos XIX e XX, será abordada no exame de uma série de fotografias de Juan Gutiérrez por
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5. CRARY, Jonathan. Suspensions of Perception: Attention, Spectacle, and Modern Culture. Cambridge, MA: MIT Press, 2001, p. 148.
ocasião da celebração de cinco anos da república brasileira e do conto de Jorge Luis Borges, “O Aleph” (1949). Em ambos os casos, assinalam-se os limites de um modo de ver estático e monumental. Quando a própria visualidade é concebida como ato performativo, tornam-se indistintos os domínios da mise-en-scène e da espectatorialidade. A inscrição de circunstâncias históricas específicas em fotografias e filmes é tematizada por Fábio Uchôa em “A Boca do Lixo nas Fotografias de Ozualdo Candeias”. O pesquisador traz à luz o arquivo fotográfico do cineasta, produzido entre as décadas de 1960 e 1980, no auge da região paulistana conhecida por concentrar a produção de filmes de baixo orçamento, notadamente os eróticos. Além de indicar correspondências entre as fotografias e a obra cinematográfica de Candeias do ponto de vista formal, a análise ressalta a forma como os corpos dos habitantes e trabalhadores do cinema frequentadores da Boca aparecem fixados naquele espaço, apresentado, por sua vez, como mais um personagem. O dossiê se encerra oferecendo ao leitor a tradução do clássico comentário do filme Carta a Jane (Letter to Jane, 1972), de Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin. Este ensaio desconstrói uma fotografia de Jane Fonda tomada em Hanói, durante a Guerra do Vietnã, para onde a atriz viajou alguns meses depois de filmar Tout va bien (1972), com os mesmos diretores. A questão sobre o papel dos intelectuais na revolução, central para Godard e Gorin (especialmente neste período, em que integravam o coletivo cinematográfico Dziga Vertov, de inspiração maoísta), é a pergunta comum aos dois filmes. No momento em que o conflito vietnamita despontava como o mais decisivo entre as lutas revolucionárias, os diretores analisam a fotografia da atriz como um “núcleo físicofotográfico” e como uma “célula fotográfico-social”, desvelando todo um jogo desencadeado a partir da produção e da publicação desta imagem. Godard e Gorin colocam as máquinas associadas ao cinema e à fotografia na mesma engrenagem, ligada aos “problemas reais de nossa verdadeira vida material”. Cada texto apresentado neste dossiê define sua própria trilha para chegar aos lugares de encontro entre cinema e fotografia: ora partindo da imagem que se move para pensar esta que permanece, ora do fluxo interrompido para pensar a sua continuidade ou, ainda, convocando certas categorias
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Apresentação / ANNA KARINA BARTOLOMEU E MAuRicio lissovsky
que marcam ambos os campos, como o tempo, a memória, a experiência histórica, a alegoria. As obras, por sua vez, continuam a produzir atravessamentos entre as formas, entre os rituais de produção e fruição associados a um ou outro modo de fazer, a um ou outro modo de experimentar as imagens. As obras continuam a nos convidar a pensar sobre este lugar. Lugar estranho, da reversibilidade problemática entre fotografia e cinema, de sua irredutível e desconfortável semelhança.
Anna Karina Bartolomeu Mauricio Lissovsky
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Fo t o g r a f i a
e Cinema
(IMAGEM)
Marina RB e HortĂŞncia Abreu
Arret sur l'image: cuando el tren de sombras se detiene antonio weinrichter Doutor em Hist贸ria do Cinema pela Universidad Aut贸noma de Madrid Professor de Comunica莽茫o Visual na Universidad Carlos III de Madrid
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Resumo: Inicialmente, o artigo apresenta o gesto sinistro do cinema e da fotografia de embalsamar um pedaço de realidade e permitir o acesso ao trabalho da morte. A essa dimensão melancólica, se junta a citacional – o movimento de arrancar uma imagem de seu contexto vital – através da qual cinema e fotografia encontram formas de aproximação e distanciamento. Se o sentido último da fotografia reside em seu poder de interrupção, ela se torna um modelo para a história que, como o pensamento, deve ser detida para ser compreendida. Já o cinema é fluxo e, ao recorrer à imagem fotográfica, pode colocá-la em movimento, temporalizála, narrativizá-la. Quando o fluxo é interrompido, dois gestos essenciais são identificados: um narrativo, eminentemente modernista, e outro reflexivo, que permite que a imagem pense, e que se pense através dela. Palavras-chave: Fotografia. Cinema. Alegoria. História.
Abstract: Initially, this article presents the sinister gesture of cinema and photography of embalming a piece of reality and allowing access to the death-work. To this melancholic dimension, a quotational one – the act of detaching an image from its vital context – is added, by means of which cinema and photography find ways of getting closer and distancing. If the ultimate meaning of photography relies on its power of interrupting, it then becomes a model for history, which, as well as thinking, has to be stopped in order to be comprehended. Cinema, on the other hand, is flux, and by appealing to photographic image, it can put it in movement, temporalize it, narrativize it. When the flux is interrupted, two essential gestures are identified: one narrative, eminently modernist, and another reflexive, that allows that image thinks, and that one thinks through it. Keywords: Photography. Cinema. Allegory. History.
Résumé: D’abord, l’article présente le geste sinistre du cinéma et de la photographie d’embaumer un morceau de la réalité et de permettre l’accès au travail de la mort. À cette dimension mélancolique se joint la citationnelle – le mouvement d’arracher une image de son contexte vital – par laquelle le cinéma et la photographie trouvent des moyens de rapprochement et d’éloignement. Si le sens ultime de la photographie se loge dans son pouvoir d’interruption, elle devient un modèle pour l’histoire qui, comme la pensée, doit être retenue pour être comprise. Par contre le cinéma est un écoulement qui, ayant recours à l’image photographique, peut la mettre en mouvement, l’offrir une durée et un récit. Quand l’écoulement est interrompu, deux gestes essentiels sont aperçus : un narratif, proprement moderniste, et l’autre réflexif, qui laisse à l’image penser et se penser par elle-même. Mots-clés: Photographie. Cinéma. Allégorie. Histoire.
1. LA SUSPENSIÓN DE LA VIDA No hay Historia si no existe la capacidad de detener el movimiento histórico. Walter Benjamin
En esta iconosfera que habitamos, y que nos determina, estamos acostumbrados a ver la reproducción fotográfica de una persona. Tan acostumbrados que a menudo olvidamos que esa imagen petrificada por la mirada de Medusa de la cámara exhibe una cualidad misteriosa e inefable, que revela la relación un tanto tenebrosa de la fotografía con el tiempo. Y también del cine por más que éste incorpore, precisamente, la temporalidad al instante fijado de la foto: ambos, foto y cine, fijan un instante o un momento en la emulsión fotoquímica para “siempre”. Algunos de los primeros pensadores que reflexionaron sobre esas formas a comienzos del siglo XX sí hicieron especial hincapié en esa cualidad. Resulta curioso: el hecho de que fuera posible la “fijación de lo real” en un soporte filmico o, de forma más modesta, la creación de una imagen externa del mundo real, no les llevó a hablar de una referencia externa o superficial de la apariencia de las cosas sino, al contrario, les encaminó por el lado de lo siniestro. Cualquier cinéfilo conoce la formulación de André Bazin, en sus escritos sobre la ontología de la imagen cinematográfica, sobre los poderes del cine para embalsamar un pedazo de realidad: la película producida por la cámara sería así como una máscara mortuoria. Más siniestra, y más precisa, es la formulación de su paisano, el cineasta Jean Cocteau, quien sugirió que el cine permite ver la mort au travail, a la muerte haciendo su trabajo. Donde Bazin hablaba del carácter conservacionista de la imagen cinematográfica, que preserva (una imagen de) aquello que reproduce, Cocteau insistía en el sentido negativo que reviste dicha operación: la persona que vemos viva en una imagen que fija un instante determinado de su existencia, empieza a envejecer a partir de ese momento, a acercarse a la muerte. Lo que vemos realmente de forma retrospectiva en toda imagen de un ser vivo es a la muerte haciendo su trabajo. Algunas películas de montaje han utilizado de forma obvia este efecto: en Rock Hudson’s Home Movies (1991), Mark Rappaport ensambla una sucesión de imágenes del actor Rock Hudson que le van mostrando desde su
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esplendor juvenil de símbolo sexual viril hasta su decadencia física en la edad de madurez y vejez. En unos segundos una vida pasa ante nuestros ojos, como se dice que ocurre… en el momento de la muerte. Y entonces vemos, como en esos films científicos que muestran de forma acelerada el crecimiento de una planta o la putrefacción de una fruta, a la mort au travail. Esa idea de Bazin y Cocteau será luego reformulada por Roland Barthes en su libro de reflexiones sobre la fotografía, Camera lucida: siempre tiene algo de horrible, dice, porque es la viva imagen de algo muerto. Pero había sido intuida también, como muestra Eduardo Cadava (1997) en su libro sobre el espacio que ocupa la fotografía en el pensamiento de Walter Benjamin, por el maestro alemán y por algunos coetáneos suyos con los que dialoga en sus diversos escritos. Pierre Mac Orlan, por ejemplo, escribía en 1930: “El poder de la fotografía consiste en crear una muerte súbita. El clic de la cámara suspende la vida en un acto que el film positivado revela como su misma esencia” (ORLAN apud CADAVA, 1997: 7). La fotografía anuncia la muerte del fotografiado, remacha Cadava, después de que, como dice Benjamin, le cosifique, le fije en – y le reduzca a – una imagen en la que queda suspendido para siempre. Es un asunto espectral, una cosa de fantasmas, esto de la fotografía; por eso el poeta Robert Desnos, escribiendo sobre la muerte del fotógrafo Eugene Atget, establece la inevitable conexión entre los dos ámbitos: “Atget ya no está. Su fantasma, iba a decir su negativo, debe deambular por los innumerables espacios poéticos de la capital” (DESNOS apud CADAVA, 1997: 11). Este carácter espectral desaparece o se olvida cuando sobreviene lo que Benjamin llama “el declive de la fotografía” (BENJAMIN apud CADAVA, 1997: 13) y que llega, precisamente, cuando ésta evoluciona y se refina técnicamente, pasando a verse dominada por una ideología realista crecientemente mimética, según lo formula Cadava. Esa capacidad de ofrecer una imagen mejor de la realidad hace pasar a segundo lugar las resonancias espectrales de la imagen cuando ésta ofrecía una representación menos literal del mundo: cuando era un “tren de sombras”, como decía el escritor Maxim Gorki en un famoso escrito que registraba su primera reacción ante el cinematógrafo, aludiendo más bien escéptico a los en principio envidiables poderes de la imagen animada (la imagen como medio) para restituir una imagen (la imagen como figura
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o metáfora) del mundo real. Sin embargo, la noción espectral de la imagen fotográfica reaparece más recientemente, y de forma quizás inesperada, a propósito de una película titulada precisamente con el gorkiano nombre de Tren de sombras (1997), en donde el director José Luis Guerín realizaba un primoroso ejercicio de falsificación de imágenes domésticas presumiblemente rodadas en los albores del cine. Al tratarse de home movies que revelaban una realidad íntima de seres anónimos capturados en imágenes carentes de toda pretensión artística, se hacía aún más presente que en el caso antes mencionado (las imágenes públicas, y compuestas según los protocolos del star system, de Rock Hudson) el principio de la mort au travail. El trabajo del tiempo – de la muerte – se hace más presente ante estas caras anónimas que ante sus contemporáneas del cine de ficción, fijadas a su época pero también al eterno presente inmutable de los relatos en los que aparecen y a la máscara de los personajes que representan, y lo mismo ocurre con las imágenes documentales de personajes históricos famosos, convertidos en emblema o máscara por su alta visibilidad y su significado fijado por la Historia. Este mayor peso del tiempo en las imágenes de seres anónimos se hace presente en los numerosos films de found footage que remontan imágenes amateur, como demuestra de forma brillante la serie de compilaciones del húngaro Peter Forgçacs Hungría Privada (19881997). Aludiendo a la formulación de Bazin, nos decía Guerín con motivo del estreno de Tren de sombras: El cine recoge un trozo de tiempo. Desde que dices ¡Motor! hasta que dices ¡Corten!, seleccionas y embalsamas un pedazo de tiempo. Eso hace del cine algo muy misterioso. Y era un sentimiento que en sus orígenes estaba muy presente en el espectador: la extrañeza ante una presencia que está ausente, la de esas figuras que se mueven en una pantalla. El cine de la industria trabaja para ocultar esa idea: le resulta revulsiva la idea de lo efímero. Sin embargo en las viejas escenas de una película familiar, íntima, por torpe que sea, la idea de que son personas desaparecidas está muy presente. Nace espontáneamente esa idea de que son personas que no están y que los muertos en cine se mueven con la misma naturalidad que los vivos, en una suerte de indiferencia extrañísima.1
De las complejas ideas de Benjamin sobre la fotografía, nos interesa evocar ahora las que se relacionan con la poética de su obra inconclusa, su revolucionario proyecto de análisis cultural conocido como los Pasajes: nociones como el montaje, la imagen dialéctica, la ruina, el ur-fenómeno, el fragmento y la cita, etc. En
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1. José Luis Guerín, entrevista con el autor mantenida durante el festival de Cannes en mayo de 1997.
2. Cf. BENJAMIN, W. Origen del drama barroco alemán. Madrid: Taurus, 1991.
3. El texto de Benjamin procede de sus “fragmentos” sobre Baudelaire, en concreto de Zentralpark.
concreto resulta especialmente fecundo el concepto de alegoría, desarrollado por Benjamin originalmente en relación al drama barroco alemán,2 pero que en sus últimos escritos desarrolla para acercarlo a lo que es virtualmente una teoría del montage: La mente alegórica selecciona arbitrariamente del vasto y desordenado material que su conocimiento le ofrece. Trata de encajar una pieza con otra para averiguar si pueden combinarse. Este significado con esa imagen, o aquella imagen con este significado. El resultado nunca resulta predecible porque no hay mediación orgánica entre ambos (BENJAMIN apud BUCHLOH, 1982: 46).3
Cuatro décadas después, Peter Bürger recupera la noción de alegoría para su teoría de la vanguardia, por lo bien que le cuadra a su concepción tanto de la obra de arte inorgánica como del montaje. Respecto al montaje dice que no sería una categoría nueva sino que “más bien es una categoría que permite establecer con exactitud un determinado aspecto del concepto de alegoría” (BÜRGER, 2009: 137). En efecto, dice Bürger, casi repitiendo las ideas de Benjamin recién citadas, lo alegórico “arranca un elemento a la totalidad del contexto vital, lo aisla, lo despoja de su función” y luego “crea sentido al reunir esos fragmentos aislados de la realidad. Se trata de un sentido dado, que no resulta del contexto original de los fragmentos” (BÜRGER, 2009: 131). Bien, ¿qué tiene que ver esto con la fotografía, que carece en principio de los poderes del montaje salvo precisamente en la práctica del fotomontaje, en donde se acerca al cine? En primer lugar, tanto el film como la foto son alegóricos de por sí porque fijan el tiempo (arrancando al objeto que capturan con su lente del flujo de la temporalidad) y porque tienen un componente melancólico (al hacer patente el paso del tiempo a partir de ese instante en que ha quedado suspendido), como ya hemos visto más arriba. La operación esencial de la alegoría, arrancar un elemento a la totalidad del contexto vital, es inseparable de su dimensión temporal, como afirma Susan Buck-Morss en su seminal estudio del texto inconcluso de Benjamin: “La Historia aparece como naturaleza en decadencia o ruina y el modo temporal es el de la contemplación retrospectiva” (BUCK-MORSS, 1995: 189). En sus escritos específicos sobre la fotografía, Benjamin repite algunas de estas ideas. Según argumenta Cadava en su lectura de los escritos benjaminianos, la fotografía y la Historia comparten una estructura citacional (CADAVA, 1997: 17). Y ya sabemos lo
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que significa para Benjamin el concepto de cita: es una operación no carente de cierta violencia semántica – incluso, diríamos, física – pues implica que un determinado objeto histórico debe ser arrancado de su contexto. El sentido último de la fotografía, por tanto, no residiría quizá en su poder de reproducción sino en su poder de interrupción (CADAVA, 1997: 28). Es una operación fructífera, también, porque para Benjamin el pensamiento histórico no implica tan solo el flujo de pensamientos, sino también su interrupción (“No hay Historia si no existe la capacidad de detener el movimiento histórico”) (CADAVA, 1997: 20). De ahí surge la analogía entre fotografía e Historia, por eso la primera puede ofrecer un modelo para entender la segunda. Los recursos asociados con los medios de reproducción “mecánica” de la realidad – reproducción, repetición, citación, interrupción, suspensión – se revelan esenciales para el pensamiento histórico. 2. LA SUSPENSIÓN DEL MOVIMIENTO Una foto no se mueve, no habla, no tiene sonido, ni tiempo, está congelada. Me siento como un cura al que le cuesta aguantar la abstinencia. La tentación es demasiado fuerte, y me dejo ir… Hago que las fotos se muevan. Shelly Silver
Desde el punto de vista de la “institución cine”,4 la fotografía comparte una dinámica similar de reproducción indicial/mimética y mecánica de la realidad. Esta semejanza es mucho más visible en la práctica del cine documental: las reflexiones sobre el inherente carácter melancólico o siniestro de la imagen fotográfica son más evidentes en una película documental, por su mayor relación con lo real, que en una película de ficción (lamentablemente muchas de estas reflexiones se hicieron cuando el documental, que sólo recibe su nombre en 1929, aún no se había afianzado en la historia del cine y mucho menos en el pensamiento sobre el mismo). Pero la fotografía vis a vis el cine remite también a algo más obvio y esencial: evoca otra forma de suspensión, la ausencia de movimiento. La fotografía “no es cine”, del mismo modo que se dice que el teatro filmado no es cine o es mal cine: le falta ese rasgo específico del cine que, desde la época de las vanguardias históricas, se localizó en lo cinético,5 más incluso que en ese otro elemento constitutivo del cine que es el montaje. Piénsese en lo que hace el cine cuando recurre a la imagen
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4. Utilizamos el término “institución” en el mismo sentido que Bürger en su Teoría de la vanguardia, cuando afirma que es necesario distinguir entre el contenido de las obras artísticas concretas y la “institución arte”, que designaría la forma en que se percibe y define el papel del arte en la sociedad, es decir, la forma en que el arte se produce, se vende, se distribuye y se consume. Cf. BÜRGER, op. cit, p. 65 y passim.
5. Véase la similaridad incluso fonética entre los términos cinético y cinematográfico, presente también en la lengua inglesa en donde el nombre genérico para las películas es motion pictures, literalmente fotos en movimiento…
6. La expresión inglesa still photo alude igualmente a la quietud (stillness); en ambos casos se trata de una redundancia semántica: una foto siempre es fija frente al flujo del cine.
fotográfica. Por ejemplo, en los documentales biográficohistóricos que se ven obligados a tirar de archivo fotográfico: más allá de utilizarla como documento visual, es raro que hagan una presentación de la foto-en-cuanto-foto, como un elemento completo y autocontenido que definiría un marco propio dentro del marco del cuadro (frame) del film. Existe de hecho toda una convención en el empleo de fotografías dentro del cine documental: un dispositivo especial, que puede ser la cámara rostrum o la truca (un aparato similar al que se emplea para determinados efectos especiales) recorre la superficie inerte de la foto, trazando panorámicas laterales o verticales y zooms de acercamiento o de alejamiento que se encadenan de forma incesante, repitiendo a menudo de forma cíclica su recorrido o volviendo a hacer énfasis en un detalle. Una foto es un objeto único, inalterable, que se da entero, de una sola vez, como un cuadro. Pero deja de serlo cuando aparece en una película: el cine pone en movimiento la fotografía, la temporaliza y la narrativiza al repetir o revelar gradualmente detalles “significativos” de la imagen, alterando su gestalt esencial. El cine aborrece la quietud, el carácter estático de la fotografía. Hay otro aspecto de la práctica cinematográfica que muestra de forma indirecta la distancia entre fotografía y cine. La expresión española “foto fija”6 alude a fotos de los protagonistas de un film (tomadas por un técnico que no es el responsable de la fotografía del film) que no se corresponden con momentos reales del rodaje del film: son fotos posadas que referencian o ponen en valor determinados componentes de la producción (los decorados, el valor de cambio de las stars o – ya para estudiosos – conceptos de iluminación, mise-en-scène, etc.). La foto fija existe para ofrecer una imagen del film de cara al mercado (promoción en medios, publicidad, cartelística); una imagen que se caracteriza precisamente por no formar parte del mundo “diegético” del film. Hasta en este ejemplo, circunstancial si se quiere pero de cierto valor simbólico, la foto es otra cosa que el film. Hay un sentido más sustancial en el que la fotografía es otra cosa que el cine. Una tira de film es una sucesión de fotogramas, es decir, es como un rollo de película fotográfica sólo que con variaciones infinitesimales (1/24 de segundo de intervalo) entre cada una de ellas. Eso es un film –literalmente, una tira de celuloide – pero el cine sólo se produce por medio de un dispositivo (en su
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sentido – añoremos la época de la haute theorie francesa – tanto técnico como simbólico) que produce una ilusión de movimiento.7 Una fotografía equivale a un positivado en papel, no necesita más para ser “la foto”. Pero una bobina de film positivado no es la película, no es cine: sólo cobra vida, sólo se hace cine, cuando se proyecta sobre una pantalla y se genera lo que algunos llaman moving image experience. Esta experiencia sobrepasa al puro soporte fotoquímico del film, existe solamente cuando se pone en marcha un artefacto que necesita de un anticuado proyector analógico, un proyeccionista, etc.8 El cine es flujo: el fluir del film en el proyector y el fluir de la imagen en la pantalla. Por eso aborrece la quietud. Entre otras razones, porque puede ser síntoma de una anomalía que pone en evidencia la fragilidad del dispositivo cinematográfico: cuando un proyector de cine se estropea, la imagen queda congelada de forma antinatural en la pantalla; y, a veces, lo que se ve no es el fotograma completo sino parcialmente dos fotogramas consecutivos con una franja negra que marca la separación entre ambos.9 O puede avisar de un riesgo de accidente: si el film se detiene en el proyector, puede quemarse. Y por eso mismo cuando el cine detiene su flujo voluntariamente, ese gesto adquiere una singular importancia. Pero distingamos dos variantes de este gesto. La detención del flujo de la imagen, que niega un rasgo ontológico propio del cine, a menudo puede ser un gesto simplemente narrativo. En otros casos no se relaciona con la diégesis sino que tiene una intención reflexiva (no necesariamente autorreflexiva, aunque también se produzca ese efecto de introspección): es el caso del film-ensayo y del cine de found footage. Algunos films de autor de la década de los años 60 pusieron de moda el recurso de congelar la imagen final de la película. El ejemplo más conocido es la opera prima de Truffaut, Les 400 coups, con ese plano final de Jean Pierre Leaud mirando desvalido a cámara como prisionero del frame; otros muchos le imitaron, como el español Carlos Saura en La caza, hasta el extremo de que llegó a convertirse en una convención que pervive. Pero parece claro que este recurso no alude a la fotografía: no se invoca un instante capturado, sino que la detención del flujo de la imagen denota una voluntad enunciativa. Es un gesto del narrador que parece dirigirse al espectador: “Yo paro aquí porque quiero… Dejo un final abierto pero el argumento, como la vida, continúa”. Es
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7. El dispositivo equivalente para la fotografía, suponemos, sería el proceso de revelado de un negativo.
8. El laborioso término de moving image experience se propone en una publicación reciente: FRANCIS, David et al. (eds.). Film Curatorship: Archives, Museums and the Digital Marketplace. Viena: FilmmuseumSynema Publikationen Vol. 9, 2008. Sobre la noción de artefacto en su sentido técnico y simbólico, véase también WEINRICHTER, Antonio. El dulce porvenir de un artefacto: notas sobre cine/arte/ museo. Secuencias: Revista de historia del cine, Madrid, n. 32, 2010. 9. Algunos films juegan a reproducir ese (d)efecto de forma deliberada, como Duck Amuck (1954), en donde el efecto cómico que persigue el director Chuck Jones no oculta una voluntad profundamente brechtiana agazapada como de contrabando en el interior de un humilde corto de animación. Es cierto que el carácter presentacional del cine cómico posibilita este tipo de guiños (un actor cómico puede dirigirse al público rompiendo la cuarta pared sin amenazar demasiado el verosimil, por ejemplo) pero rara vez se ha llegado más lejos que en esta obra maestra vanguardista de Jones, que juega con la paradoja que se produce entre dos fotogramas sucesivos.
10. La historia de esa negación es la historia misma – a nivel formal – del cine modernista: la negación de la profundidad de campo, del movimiento de la cámara, de figuras de montaje como el plano/contraplano…
11. Woody Allen proponía un mix similar entre pantalla y mundo real en La rosa púrpura del Cairo. Pero hacía trampa: los pirandellianos personajes del film-dentro-del-film tenían vida más allá de la pantalla, no se limitaban a vivir en un eterno bucle, sino que desarrollaban una conciencia propia.
un gesto eminentemente modernista porque el narrador se hace notar: se hace presente el acto narrativo, ése que oculta el relato clásico. Un rasgo del modernismo es desafiar las convenciones de la escritura clásica, restringiendo la paleta de recursos de que se ha dotado el cine para adquirir su pujanza narrativa.10 Hay un recurso que me parece más cercano al mundo simbólico de la fotografía, aunque irónicamente no recurra a la fijeza de la imagen; invoca sin embargo algo que tienen de común ambas formas. El cine también petrifica un momento en el tiempo; y como además tiene la ilusión de movimiento produce una mayor impresión de realidad, pero sus personajes no están vivos. A ello alude un video como Steps (1987), del artista polaco Zbig Rbczynski: muestra a un grupo de turistas (vulgares, ruidosos, grabados en color en video) que “visitan”, como se visita un monumento, la escena de las escalinatas de Odessa de El acorazado Potemkin (es decir, se introducen – se incrustan es el término técnico – en las venerables imágenes en soporte fílmico en blanco y negro). Una vez dentro, recorren la escena en el espacio y en el tiempo (los momentos se repiten o aparecen desordenados cronológicamente); por supuesto los actores de Eisenstein no se relacionan, no interactúan, con los turistas, algunos de los cuales no parecen entender el grado de realidad diverso en que se hallan, como cuando una mujer ve llorando al niño cuyo carrito luego caerá famosamente escaleras abajo y pregunta al guía turístico, “¿Sabe hacer algo más?”. Otro ejemplo: Ruzi ruzegari cinema, del cineasta iraní Mohsen Makhmalbaf, es un homenaje encantado al cine con una premisa enloquecida: el Sha Nasseredin ve el film La chica de Lorestán y se enamora de la protagonista. La actriz sale de la pantalla pero una vez fuera todo su encanto se reduce (“no sabe hacer nada más”…) a repetir una y otra vez la escena de la que ha sido arrebatada, en un bucle infinito, que sirve para recordar la verdadera naturaleza de la tan realista imagen del cine.11 La chica de Lorestán y el bebé de Odessa encarnan una precisa e irónica demostración de que, si el cine es the stuff dreams are made of, esa materia de la que están hechos los sueños no tiene nada de material; ilustran a la perfección estas palabras de Georg Lukacs, que enlazan con la lectura siniestra o melancólica de la imagen fotográfica que vimos más arriba: La imagen de cine… posee una vida completamente diferente [a la del teatro]; en una palabra, se convierte en algo fantástico. Pero lo fantástico no es lo opuesto a lo vivo, es otro aspecto
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de la vida: vida sin presencia, sin destino, sin causalidad, sin motivación; […] y aunque uno añore, a menudo, este tipo de vida, es una añoranza de un extraño precipicio, de algo muy lejano, interiormente distanciado. El mundo del cine es un mundo sin fondo ni perspectiva, sin distinción de propiedades o de cualidades. Es una vida sin orden ni medida, sin ser ni valor, sin alma, mera superficie… (LUCAKS apud ELSAESSER, 1996: 21).
La segunda variante de la detención de la imagen, es la que hemos calificado de reflexiva; aquí, la suspensión del movimiento define la interrupción como método de pensamiento. Hay ejemplos dentro del cine clásico: en films como All About Eve (Joseph L. Mankiewicz, 1950) o Bienvenido Mr. Marshall (José Luis G. Berlanga, 1953) la detención del tiempo tiene un aspecto interesante pues se detiene el movimiento narrativo, se congela la imagen, no tanto para darla a ver como para pensar sobre ella (una voz en off desgrana sus reflexiones sobre la imagen estática). El corolario es aún más interesante y define lo que casi podemos considerar un principio general: para pensar sobre un film hay que detener el flujo narrativo. Es lo que hacemos los profesores al proyectar el clip de un film en clase, es – citemos una autoridad mayor – lo que hace Godard al pensar en voz alta sobre la(s) historia(s) del cine. Por decirlo a través de una analogía policial, se detiene la imagen para su inspección. De igual modo que el fotógrafo le pide al cliente que se quede quieto para hacer su retrato, el cine puede detener el flujo para mirar la imagen, para interrogarla. Existe aquí una analogía más profunda con el hecho fotográfico: no sólo porque se detiene el flujo del cine, sino porque al fijar la imagen se extrae de su contexto. Cabe incluso deducir un mismo efecto de proximidad al aspecto alegórico del acto fotográfico en las películas de found footage que extraen un fragmento de film de su entorno original, sin necesidad de congelar sus imágenes,12 para someterlo a una operación de remontaje. Para poder mirar, para poder pensar, una imagen hay que sacarla del lugar que ocupa en la cadena metonímica. Hay que rebajar la imagen (descrestarla, por utilizar un añejo término semiótico), para desprenderla, y despertarnos, del encanto de Scheherezade del relato, del mismo modo que el científico extrae una muestra de tejido, por ejemplo, de su contexto orgánico. La interrupción de la narración nos permite conseguir, valga la expresión, una “foto” de la imagen o secuencia que nos interesa examinar.
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12. Pero uno de los recursos más habituales de esta práctica es precisamente la manipulación de la velocidad del fragmento apropiado: piénsese en los ralentis del cine de Gianikian y Ricci Luchi, entre otros muchos ejemplos.
13. En su texto “Al salir del cine” parece mostrarse tan escéptico sobre los encantos del mismo como Gorki y Lukacs.
14. Sobre la azarosa historia del reconocimiento de esta práctica, véase WEINRICHTER, Antonio. Metraje encontrado: La apropiación en el cine documental y experimental. Colección Punto de Vista, Gobierno de Navarra, Pamplona, 2009.
Una idea muy similar fue brillante y sucintamente expresada por Roland Barthes, gran pensador que no fue un gran amante del séptimo arte.13 En un libro que no trataba de cine sino de literatura aludía a cual podría ser el “modelo experimental” para su análisis de una novela de Balzac, y utilizaba para describirlo una metáfora puramente cinematográfica: el ralentí cinematográfico, del que dice que “no es ni del todo imagen ni del todo análisis” (BARTHES, 1970: 19). Parece claro, entonces: es necesario frenar la imagen para poder usarla, para poder estudiarla. A cámara lenta o congelada, en efecto, una imagen empieza a ser algo más (¿o algo menos?) que una imagen que cumple una función de mero vector narrativo: no la miramos sólo por la función que cumple, sino que la vemos en cuanto imagen. Al mismo tiempo no pierde toda su pujanza visual, por eso no es del todo análisis: la mera presentación no basta, piensa Barthes, cuyo horizonte al fin y al cabo es meramente literario, pese a que la vieja máxima de Benjamin (“No tengo nada para decir, sólo para mostrar”) y numerosos film-ensayos y piezas de found footage demuestren que el cine también puede pensar por medio del montaje y de esa versión aplicada del concepto benjaminiano de la cita que es el remontaje. Pero el remontaje se inscribe tradicionalmente en esa tradición sumergida del cine de vanguardia que es el cine de apropiación o de found footage.14 Las nuevas tecnologías digitales han puesto este recurso literalmente al alcance de todos. Con un lector de dvd, y con el indispensable mando a distancia, cualquier aficionado puede detener el inexorable flujo de imágenes, ralentizar una escena o congelar una imagen: puede obtener una “foto”, literalmente robada, de la película de su elección. En ese camino de vuelta a la base fotográfica del cine, puede estudiar los secretos del fotograma, esa unidad atómica del cine que siempre ha permanecido fuera del alcance de su experiencia. Y se le revelarán como nunca pudo imaginar las películas experimentales construidas fotograma a fotograma (la obra de Stan Brakhage, Len Lye, Norman McLaren, etc.). Una cosa es ver Mothlight (1962), de Brakhage, a su frenético ritmo de proyección convencional y otra verla a 1/2, 1/4, 1/8.. de su velocidad, o parando frame a frame: en cada caso se trata de una película, de una experiencia, distinta. Es la misma diferencia entre ver a un caballo corriendo o ver la descomposición de sus movimientos en aquellos pioneros
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estudios visuales de Muybridge. En un reciente libro en donde reflexiona sobre algunas de estas cuestiones, y en cuyo título alude precisamente a la stasis de la imagen, Laura Mulvey (2006) dice que con la tecnología digital la inmersión del espectador puede pasar del voyeurismo al fetichismo (el film como objeto que se “posee”); y sugiere que, al hacer más evidente que la base del cine son imágenes estáticas, el paradigma digital resitúa la tensión entre movimiento y quietud dentro de lo que llama una “estética del aplazamiento”. En el polo opuesto a esta socialización del acceso a la imagen, es decir, en el elitista terreno del audiovisual de artista o screen art, se produce también un imprevisto punto de conexión entre fotografía y cine, el último que queremos señalar. En una reciente conferencia, Raymond Bellour evocó alguna evocó algunas de las obras que mejor representan los pasajes entre los cuatro grandes regímenes de la imagen: el cine, el video, la foto y la imagen de síntesis.15 A la hora de cartografiar esa circulación de múltiple sentido, distinguió varias categorías. Una es la capacidad del video para jugar con el carácter figurativo de la imagen de cine, para desfigurarla electrónicamente. Entre las modificaciones que puede ejecutar el video está la de modular o parar el flujo (cinético, narrativo) de las imágenes: piensen en Bill Viola o en 24 Hour Psycho, de Douglas Gordon. Este potencial del video enlaza con otra categoría propuesta por Bellour, la relación entre la imagen móvil y la imagen fija, que es también un diálogo entre la fotografía y el cine: las Series of Images, de James Coleman; La peau, de Thierry Kuntzel; o la obra de un David Claerbout, quien anima fotografías con medios informáticos. En fin, algunos cineastas han tentado el camino de la fotografía… para volver a encontrar el cine; en todo caso, el movimiento de acercamiento – sea cual sea la trayectoria – no deja de establecer la distancia que los separa. No me refiero a los films que aluden a la fotografía y que emplean a menudo un recurso que ha llegado a ser una convención: un personaje toma una foto y el film lo representa… clic, parando la imagen, un hecho de montaje que marca la interrupción, la ruptura, la suspensión del flujo narrativo. Hablo de películas formadas íntegramente por fotografías que establecen un principio de animación, es decir, que introducen un montaje rápido de fotos sucesivas que produce una sensación de movimiento. El ejemplo
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15. Conferencia pronunciada dentro del congreso MEACVAD, Buenos Aires, octubre 2008. Si bien Bellour resumió aquí ideas que ha desarrollado, por ejemplo, en sus dos volúmenes de L’Entre-images.
16. Cineasta – y fotógrafo – contabilizan tres films formados exclusivamente por un montaje de fotografías; pero en Marker es el montaje precisamente y el voiceover – narrativo en el caso de La jetée, ensayístico en Le souvenir d’un avenir y conversacional en Si j’avais quatre dromadaires – lo que hace que esos films sean precisamente otra cosa que un “pase de diapositivas”.
17. Resultaría curioso comparar esta sensación de movimiento con la que producían aquellos juguetes ópticos – también llamados a veces juguetes filosóficos – que precedieron al cine. O con las cronofotografías de Etienne-Jules Marey que descomponían el movimiento en instantáneas sucesivas con un intervalo mínimo entre cada una de ellas. O con los flip-books o folioscopios, esos cuadernillos que producen impresión de movimiento al pasar sus hojas rápidamente, y que nos recuerdan que el cine de imagen real y el cine de animación comparten una misma base: la ilusión de movimiento de imágenes fijas. En cambio, esta nueva forma de animación de fotografías parece típica, como quizá diría Bellour, de la era del post-cine. 18. The Cineseizure (“el cine atacado”) es el título que le ha puesto Arnold a la edición en dvd de algunas de sus piezas más conocidas.
más conocido es también el más fugaz (y hermoso): ese instante de La jetée, de Chris Marker,16 en el que dos imágenes sucesivas de una mujer yacente con los ojos cerrados y abiertos producen una inesperada sensación de movimiento expresivo, de despertar, tanto de la mujer como de la photo roman misma. Artistas experimentales como John Smith (en Worst Case Scenario, 2003) y Shelly Silver (en What I’m Looking For, 2004) han trabajado este principio de animación más a fondo, con notables resultados. Rodadas, perdón, fotografiadas en las calles de Viena y Nueva York, respectivamente, revelan enseguida ese impulso que menciona Shelly Silver en el fragmento de su comentario en off que recogimos para encabezar este apartado. La misma Silver insiste luego en esta cuestión: “Quiero control, quiero ver el mismo movimiento repetido una y otra vez. Quiero que el tiempo sea líquido, que fluya hacia delante y luego se pare… para ver entre esas cesuras lo que falta, lo que estoy buscando”. El cineasta quiere hacer que las “fotos se muevan”: para encontrar lo que estaba buscando en otro medio, el de la fotografía, debe recurrir de nuevo al cine. Tanto el film de Smith como el de Silver son, finalmente, un triunfo del montaje, la gran herramienta del cine, la machine a faire penser de que hablara Epstein. Más que una tentación irresistible es una necesidad: para poder pensar (sobre) la imagen hay que detenerla pero luego hay que animarla de nuevo… Por cierto que el “movimiento” que produce esa animación de los fotogramas-fotográficos puede adquirir resonancias poéticas o siniestras (en el caso del film de John Smith) pero resulta siempre tosco, sincopado, entrecortado.17 Es una especie de tartamudeo de la imagen que nunca establece una continuidad real, ni pretende hacerlo. Recuerda de hecho la impresión que produce la obra de Martin Arnold, trabajando en sentido contrario, al descomponer el flujo de las imágenes de breves fragmentos de cine comercial hollywoodense por medio de la copiadora óptica: él habla de una imagen tartamuda, también, pero asimismo recurre al símil del ataque epiléptico, por los movimientos convulsos que adquieren sus personajes.18 El instrumento de trabajo de Arnold es la copiadora óptica (optical printer), que permite el copiado de un film incluso frame a frame: En cierto sentido, la copiadora óptica es un aparato que trabaja contra la cámara. La cámara produce imágenes en secuencia rápida para reproducir el movimiento. Con la
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copiadora óptica uno trabaja a partir de la imagen individual, a partir del ‘ladrillo’ con el que se construye la reproducción del movimiento, para crear un movimiento nuevo (ARNOLD apud MACDONALD, 1994: 11).
La copiadora óptica sería quizá un instrumento privilegiado de encuentro entre fotografía y cine pues permite frenar el movimiento habitual de la película y tratar sus componentes básicos – los fotogramas, los “ladrillos” a que alude Arnold – por separado, como un objeto concreto aislado de su inexorable flujo cinético-narrativo y devolviendo el cine a sus orígenes fotográficos.
Referências BARTHES, Roland. S/Z. París: Le Seuil. 1970. BUCHLOH, Benjamin. Allegorical Procedures: Appropriation and Montage in Contemporary Art. Artforum, New York, v. XXI, n. 1, sept. 1982. BUCK-MORSS, Susan. Dialéctica de la mirada: Walter Benjamin y el proyecto de los Pasajes. Madrid: Visor (La balsa de la Medusa), 1995. BÜRGER, Peter. Teoría de la vanguardia. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2009. CADAVA, Eduardo. Words of Light: Theses on the Photography of History. Princeton UP: Princeton, 1997. ELSAESSER, Thomas. Dada/Cinema? In: KUENZLI, Rudolf. Dada and Surrealist Film. Cambridge, MA: MIT Press, 1996. MULVEY, Laura. Death 24x a Second: Stillness and the Moving Image. Londres: Reaktion Books, 2006. MACDONALD, Scott. Sp... Sp... Spaces of Inscription: An Interview with Martin Arnold. Film Quarterly, v. 48, n. 1, aut. 1994.
Data do recebimento: 9 de setembro de 2011 Data da aceitação: 23 de dezembro de 2011
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(IMAGEM)
Anna Karina Bartolomeu
Poiética da queima, figuras em sobrevivência samuel de jesus Pós-doutorando em Artes Plásticas pela ECA-USP Doutor em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Université Paris III (Sorbonne Nouvelle) e pela UFRJ
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Resumo: Este estudo tem por objetivo analisar algumas das interfaces que permeiam a fotografia e o cinema, por meio de uma postura criativa estabelecida mediante uma práxis de queima. Para tanto, serão abordadas três obras singulares que testificam a questão particular da passagem entre essas duas mídias, no âmbito de suas próprias matrizes. Uma passagem que, ao término do processo de combustão do suporte originário, acaba por conferir um novo lugar a uma nova forma visual de sobrevivência. Palavras-chave: Arquivo. Fotografia. Cinema experimental. Queima. Combustão.
Abstract: This study aims to analyze several exchanges which unify photography and cinema, through a creative posture that came from a practice of cremation. We will deal with four singular works which attest to the particular question of the passage between these two medias, into their own matrix. A passage that concludes to create, until the end of this cremation process made upon its original support, a new place for a new visual form of survival. Keywords: Archive. Photography. Experimental cinema. Burning. Cremation.
Résumé: Cette étude vise à analyser quelques uns des échanges qui unissent entre la photographie et le cinéma au travers d’une posture de création mise en oeuvre à partir d’une pratique de la crémation. Seront ainsi abordées quatre oeuvres singulières qui témoignent de la question particulière du passage entre ces deux médiums, dans leur propre matrice. Un passage qui finit, au terme du processus de crémation réalisé sur son support originaire, par créer un nouveau lieu pour une nouvelle forme visuelle de survivance. Mots-clés: Archive. Photographie. Cinéma expérimental. Brûlure. Crémation.
Em seu ensaio Mal d’archive, Jacques Derrida associa o arquivo a uma pulsão de morte cuja finalidade consistiria em sua própria destruição. Segundo o autor: Por operar em silêncio, ela [a pulsão] jamais abdica de quaisquer arquivos que lhe sejam seus. O seu próprio arquivo, ela o destruiu com antecedência, como se nele estivesse a motivação mesma do seu movimento mais característico. Ela trabalha para destruir o arquivo: a fim de apagá-lo, bem como apagar os seus “próprios” registros. (DERRIDA, 1995: 24-25).
Ao assumir a hipótese de que a imagem possa conter essa pulsão destrutiva, que Derrida igualmente denomina pulsão “anarquívica” (“anarchivique”), numerosas obras cinematográficas, fotográficas e plásticas contemporâneas dão conta de como certa imagística obtida pelo recurso do fogo e pela prática da queima pode se apresentar como espaço de conservação do ato específico de sua própria destruição e perda. A consequência de tal ato nos lembra que: “Naquilo que consente e condiciona o arquivamento, jamais encontraremos outra coisa senão aquilo que o sujeita à destruição, e que na verdade o ameaça de destruição.” (DERRIDA, 1995: 26-27). Nasce assim um paradoxo: de fato, o que acaba por ser conservado, deslocado, reapropriado, reanimado, portanto levado a conservar e assegurar um dado registro, não faz que constatar sua inexistência (ou não-existência em definitivo), como sublinha o autor: “Não há arquivo sem um lugar de conservação, sem uma técnica de reprodução e sem certa exterioridade. Não há arquivo sem externo.” (DERRIDA, 1995: 26). Este artigo propõe explorar como tal pulsão, e sobretudo o ato que ela convoca de modo implícito, pode revelar-se contraditória ao se relacionar a uma postura e uma prática similar que faz uso do fogo e da combustão, destruindo assim qualquer registro físico do seu objeto, enquanto que o reanima e conserva mediante o deslocamento de seu lugar originário a um novo suporte sensível. Tal deslocamento pode ser observado, por exemplo, no filmeensaio Nostalgia (Hollis Frampton, 1974); bem como em uma série fotográfica intitulada Delocazione (Claudio Parmiggiani, 1990-2002), obtida a partir de uma sucessão de projeções criadas in situ; e, finalmente, nas duas séries fotográficas intituladas Scènes e Masques que compõem uma obra “híbrida” conhecida sob o título Précis de décomposition (Eric Rondepierre, 1993-95) e na série Moires1 (Eric Rondepierre, 1996-98). Três séries que se aproximam do processo de recriação do filme experimental
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1. O termo francês Moire designa um tipo de tecido feito de seda ondulada.
2. Cf. VALÉRY, Paul. Discours sur l’Esthétique [1937]. Œuvre vol. I. Paris: col. Pleiade, Gallimard, 1957.
3. Cf. DURAND, Gilbert. L’imagination symbolique. Paris: PUF, 2003, p. 64.
Decasia (Bill Morisson, 2002), realizado a partir da montagem de imagens de arquivos deteriorados, cujas alterações químicas inoculadas na película não somente constituem um registro iconográfico singular, quase mutante, como criam uma nova poiética visual. Partiremos desses três exemplos, os quais operam, cada qual, uma passagem entre a imagem fotográfica, plástica e/ou fílmica, para buscar compreender dois aspectos. De um lado, como tais práticas podem constituir, pouco a pouco, uma poiética. Poiética esta que constitui o que Paul Valéry nomeou, em seu temo, de Estésica2, ou seja, uma ciência do Belo cujo princípio primordial aplicado à imagem vem, nesse caso preciso, inverter o modo de produção, de uso e de percepção que estabelecemos face à imagem. Trata-se, portanto, de apreender não apenas o seu complexo processo de criação, como também seu dispositivo de conservação. De outro lado, trata-se de compreender como tais figuras multiformes vêm confirmar essa possibilidade última da obra enquanto lugar e refúgio de conservação da imagem gerada de sua própria queima. Imagem-arquivo e/ou obra artística, ressalte-se, que entra em processo de luta consigo mesma, independentemente do suporte que a receberá em definitivo. Tal é o propósito de nossa proposta: um convite à reflexão sobre aspectos melancólicos de certas obras que constituem, pouco a pouco, um tipo de registro iconográfico dentro do qual essas figuras sobreviventes, quando recolhidas, tornamse verdadeiros vestígios visuais bidimensionais. Longe de significarem meros exemplos de intervenções fixadas sobre a superfície do suporte, inertes, elas demonstram, antes, como a noção mesma de passagem/transição entre diferentes práticas e áreas de experimentação plástica recria o seu sentido e a sua força imagética. Trata-se da imagem como epifania3.
I. A figura redentora Iniciamos nosso estudo em torno da análise de uma primeira figura do fogo, que denominaremos figura de queima ou, mais precisamente, figura de consumação. Trata-se de uma figura que resulta da experiência posta à prova no filme-ensaio Nostalgia, realizado em 1974 pelo artista e escritor norte-americano Hollis Frampton. Nostalgia é um média-metragem de caráter biográfico
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Frame de Nostalgia (Hollis Frampton, 1974).
particularmente evocativo, ao longo do qual o artista queima sucessivamente, enquanto filma, doze fotografias selecionadas no recôndito de seus arquivos pessoais. Esse filme ganha importância ao demarcar a passagem/transição do artista de sua práxis fotográfica para a de cineasta. Ao longo das combustões que se seguem, uma voz em off (voz essa que não outra que a de seu amigo cineasta Michael Snow) comenta lentamente cada fotografia selecionada. Se toda a ambiguidade da obra nasce, em primeiro lugar, do aspecto assincrônico do filme entre a imagem e a voz que a comenta e descreve – caráter produzido pelo próprio comentário atrasado –, isso se deve ao fato de que a voz opera uma profunda ruptura não somente em relação à narração convencional, como sobretudo em relação ao modo de montagem e disposição associativa entre palavra, voz e imagem. Essa ruptura deve-se ao retardo que desloca um dos elementos face ao outro: a voz não comenta a imagem, tampouco o conteúdo que ela nos apresenta no momento mesmo de sua desagregação, em chamas sobre uma chapa elétrica de fogão, até sua completa e total desaparição. Se essa des-sincronização é aplicada com o fito de perturbar o sentido e “parasitar” a compreensão do espectador, desde o início da narração até o final da queima da imagem, ela também nos convida a experimentar um verdadeiro trabalho de memória: tentamos assim nos lembrar da história particular
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que acompanha cada imagem – e, inversamente, rememorar a imagem que acompanha a história. A título de exemplo, podemos nos referir à primeira sequência, que nos apresenta um retrato de Michael Snow, emoldurado de forma a bloquear o pêndulo de um metrônomo, como que para intervir sobre a passagem do tempo. Por fim, cada retrato acabará por reduzir-se a cinzas. Ao modificar assim o sentido de seu discurso originário, Hollis Frampton acaba por transportá-lo e transformá-lo numa forma híbrida, situada a meio caminho entre o gênero documentário e o ficcional, ainda que a motivação “primeira” do artista tenha nascido da constatação que se segue, conforme Frampton declarou num artigo datado de 4 de abril de 1974: Achei as fotografias que eu tinha escolhido (diferentemente daquelas que descartei) um tanto constrangedoras. Decidi então, humanamente, destruí-las, queimando-as (guardando os negativos, obviamente, para imprevisíveis necessidades futuras). O meu filme biográfico seria um documento desse ato de compaixão! (FRAMPTON, 2009: 224).
Logo, se a imagem entra em luta consigo mesma – uma luta antes de tudo empenhada em garantir a sobrevivência de uma memória abrigada pelo suporte fotográfico e que nos conecta ao mundo –, Hollis Frampton adota, nesse caso preciso, uma postura oposta. Não pela destruição da matriz originária da imagem fotográfica, mas de todo e qualquer signo ou registro do passado, ao mesmo tempo em que a tudo deseja conservar, à maneira de um arrependimento, por meio de sua transferência fílmica. O seu suporte constitui-se então como uma nova matriz arquivística e consignatária que se permite ser observada, contemplada. Resistente em seu instante final de vida como prova fotográfica, ela como que cumpre um último esforço em sua lenta combustão, e então se inflama e se consome na tela. Ora, o mais importante a ser retido – além do próprio processo da montagem sonora e visual discordante que une o som da voz em off à imagem –, consiste não somente no fato de que esse filme nos oferece um aspecto da memória cujo movimento se inverteu completamente, haja vista habitualmente seguirmos o fio cronológico do evento mais remoto até o mais recente; mas também, uma vez que esse tipo de memória pressupõe igualmente uma escolha: “eu não posso suprimir o movimento para interpretar, selecionar, guardar ou não os registros; portanto,
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para constituir os registros em arquivo e escolher o que eu quero escolher.” (DERRIDA, 1998: 26). Se o filme de Hollis Frampton incorpora perfeitamente uma primeira figura resultante de um processo de queima, isso se enfatiza também pelo fato de o artista, uma vez montado o filme, experimentar uma estranha sensação melancólica durante sua projeção. Uma experiência quase esquizofrênica de se ver, de algum modo, desdobrado em seu próprio papel de personagem virtual. Em seu relato dessa sensação: “Ao fim, quando eu mesmo assisti ao filme, senti que eu havia realizado uma efígie da vida dele, de um jovem rapaz opaco, ainda que não carregasse sua tristeza por inteiro.” (FRAMPTON, 2009: 225). Contudo, na medida em que a experiência desse tipo de montagem assincrônica entre voz e imagem venha a desafiar e desmistificar de alguma forma sua veracidade, ao sublinhar em paralelo a fragilidade e o caráter efêmero “orgânico” de sua matriz, ela também dá-lhe por encerrada. A mesma dicotomia simultânea entre a fotografia e a voz que a comenta pode ser também observada no filme intitulado L’appartement de la rue de Vaugirard (O apartamento da rua de Vaugirard), realizado pelo artista francês Christian Boltanski em 1973, bem como no livro epônimo (O apartamento da rua de Vaugirard), posteriormente editado. Como no filme de Hollis Frampton, essa obra nos remete àquilo que poderíamos resumir como uma consciência temporal e melancólica da espera, cujo eco do seu objeto ressoa, aqui, segundo um modo inverso: não por sua aparição, mas, claramente, por seu desaparecimento, sua ausência. Nessa obra, a ambiguidade não se constrói respeitando a relação referencial da imagem com o lugar de abandono, desafetado, mas de uma prática baseada num discurso dicotômico que revela, assim, uma experiência criativa particular cujo telos nostálgico se enuncia durante um outro deslocamento. Há um segundo tipo de passagem que leva a outro nível de leitura e de percepção da referência inicial do registro produzido. Ao tomar o caráter fortemente documental da imagem (fotografada, recolhida e agenciada segundo a ideia de um inventário; prática que, entre outras, consolidou a fama do artista), associado a curtas legendas descritivas que acompanham cada foto, a montagem acaba transpondo e mantendo a obra em um gênero inteiramente fictício.
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Ao longo dessa transição (visual e conceitual), desfilam visões de espaços privados e vazios fotografados. Esses espaços particulares e íntimos tornam-se anônimos, desprovidos tanto de história particular como de valor simbólico. Eles constituem, assim, o lugar perfeitamente adequado para experimentar e praticar a experiência visual do “nada” e do banal. Assim, a sensação de ausência é intensificada pelo comentário que descreve cada cômodo e seu cenário fictício e pelo encadeamento sistemático desses retratos íntimos de um apartamento qualquer, apresentado e regido à maneira de um inventário. A câmera passeia, de fato, por um apartamento esvaziado de seus moradores e de seu mobiliário, enquanto uma voz em off comenta meticulosamente a antiga e “suposta” configuração de cada um dos aposentos. O livro, por sua vez, também retoma um dispositivo descritivo semelhante do apartamento. Assim, a legenda de cada fotografia não será outra coisa senão uma nova versão de um comentário oral anterior. Impessoais e sem nenhum afeto, na verdade, são imagens permutáveis, adaptáveis pelo procedimento descritivo. Esvaziando toda referência autobiográfica, o dispositivo assimila esses lugares particulares escolhidos pelo artista em detrimento de quaisquer outros, nos quais subsistam somente as marcas de objetos, intactas, nas paredes e no chão: resíduos frios de um espaço agora impessoal. Uma sensação poderosa de solidão soma-se ao aspecto silencioso e sutil e, pouco a pouco, se inocula no espaço singular e universal no qual chegamos a detectar certa presença indefinível. Sensação esta que se relaciona ao que o filosofo Nicolas Grimaldi identifica, em seu ensaio Traité des solitudes (Tratado das solidões), como uma consciência singular do ser, ou seja, uma: “Unidade de uma dualidade, presença em si que transcende rumo ao futuro, no qual a espera é o estofo mesmo da consciência. Visto só ela tornar possível a experiência da demora, a espera é, além disso, o único fundamento possível da consciência do tempo.” (GRIMALDI, 2003: 65-76).
II. A figura receptáculo Podemos, portanto, prosseguir nossa análise nos apoiando em um segundo exemplo de figura, que podemos definir como sendo uma figura receptáculo. Trata-se, aqui, de convocar de modo
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Da série Delocazione (Claudio Parmiggiani, 1990-2002).
explícito a questão do registro e da impressão como vestígios da queima, por combustão, e a consequente destruição da sua matriz originária cuja imagem fotográfica combina simultaneamente os dois modos, preservando a passagem de um registro em uma impressão que se faz notar como signo de um evento já dado. Ora, se o tema do registro continua a chamar nossa atenção, isso se deve ao fato de que o lugar originário da imagem e sua conservação se constrói no seio de uma matriz modificada, senão destruída. Pois, segundo François Soulages, o registro: “Não vale nada em si: é necessário trabalhá-lo. Isso não significa fazê-lo reviver, tampouco fazer reviver o ente do qual é o registro, mas produzir alguma coisa a partir dele” (SOULAGES, 2004: 21). Trabalhar com o registro fotográfico, fixá-lo na matéria do suporte que o recebe, é uma ação, ao longo de uma intervenção, que nos leva novamente a observar uma passagem executada a partir de um processo de produção inverso: não somente a impressão fotográfica criada revela-se em negativo, mas, além disso, ela é o resultado de um des-locamento, pela transferência de um suporte de produção até seu suporte receptáculo de fixação.
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Mas além de uma des-localização, o exemplo aqui selecionado resulta mais precisamente de uma deslocação do objeto do seu lugar originário. Essa prática do fogo, relativamente recente, encontra-se, de modo plenamente explícito, desde os anos 1960, na série Pinturas de fogo (Peintures de feu, Yves Klein, 1963). Essa atração particular pelo fogo foi analisada, entre outros, por Gaston Bachelard. Segundo o autor, ela manifesta “pela chama [do fogo] uma admiração natural, ouso mesmo dizer: uma admiração inata. A chama determina a acentuação do prazer de ver algo além do sempre visto. Ela nos força a olhar” (BACHELARD, 1989: 11). A força plástica e fotográfica dessa deslocação pode ser avaliada justamente pelas intervenções feitas in situ na obra intitulada Delocazione (Claudio Parmiggiani, 1970-2002). Essas intervenções, quase “fotográficas”, resultam de sucessivas impressões compostas de ar, poeira e luz, cujas combinações constituem ao mesmo tempo a matéria e o corpo da obra. A experimentação das possibilidades combinatórias desses elementos observa-se, por exemplo, na intervenção monumental realizada em 2002 na biblioteca do Museu de Arte Moderna de Montpellier (também conhecido como Musée Fabre). Esse conjunto heterogêneo, mesclando várias matérias, conforma e delimita uma estranha figura fantasmagórica da qual emana uma sensação tão melancólica quanto nostálgica: melancólica, pois refere-se ao que já não mais existe, mas que permanece como uma silhueta vibrante, impressa pelos contornos de sua forma; e nostálgica pelo desaparecimento definitivo do objeto de seu lugar originário. A pesquisa plástica do artista nasceu por acidente, principalmente pelo acaso da retirada de um objeto “de cena”, cuja consequência acabou por criar um efeito de reserve: um objeto que resta limitado a seus contornos, no caso circunscrito pela queimadura e pelo depósito de uma camada de cinzas que mancharam o espaço todo fechado. Uma camada que se fixa, como que por incandescência, pela ação da luz, na parede que a acolhe. A partir daí, essa superfície receptáculo substitui definitivamente o filme negativo e o papel fotossensível. O fogo incandescente acaba por organizar o depósito de poeira em torno do objeto, perceptível no lugar de onde fora arrancado: permanece somente a forma espectral extraída de seu molde, à maneira de um “porte-
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empreinte”. Essa figura de “porte-empreinte” é nomeada de outro modo pelo termo grego Khôra, que Platão definiu no Timeo como o lugar da criação do mundo, o que nos remete àquilo que dá forma às figuras em si: “Para conceber o lugar é preciso sempre, por uma abstração quase irrealizável, separar, destacar os objetos do ‘lugar’ que eles ocupam.” (PLATÃO, 1992: 51). Entretanto, de que forma a noção de Khôra deve ser entendida? Khôra é simultaneamente tanto o lugar onde se dá a gênese das figuras como o lugar que cuida delas. Ponto relevante, a Khôra refere-se, portanto, às representações que se relacionam menos às copias que às formas originárias. Do mesmo modo, a obra Delocazione sugere percebê-la menos como impressão do que como conjunto de formas originárias das quais nasce uma nova geração de imagens. Ela se faz perceber simultaneamente como o túmulo de memórias das imagens ocultas e como o lugar “nativo” de novas imagens. É graças a ela que pode ser atribuída a faculdade de tornar visível aquilo que é não menos que da ordem do impalpável. Delocazione não tem, em si mesma, outro destino que não o de cuidar e garantir a sobrevivência da sua impressão, pela luz e pela poeira dos pneus consumidos, trazidos pelo ar durante sua transfiguração. Essa impressão induz, pois, a um deslocamento que resulta de uma pulsão destrutiva e construtiva do espaço. Nesse sentido, a cinza não é uma matéria morta, consumida e inerte. Mas matéria que age, orgânica, na qual uma nova vida ocorre a partir de uma “reativação” de imagens fossilizadas. A partir do exemplo da biblioteca do Museu Fabre, observamos que se a intervenção do artista procede a esvaziamentos dos objetos e do cenário que estruturam o espaço, também preenche, como que por substituição, sua superfície receptáculo, sobre a qual formas e sombras surgem, pela linha de delimitação de cada um de seus contornos. Como nota a crítica de arte Véronique Mauron: “A matéria residual da cinza garante uma aparição ‘nativa’; aparição esta que é da própria imagem. [...] Como um raio, o processo da Delocazione provém da combustão para produzir uma imagem. Por isso essas figuras claras assemelham-se tanto às imagens criadas pelo relâmpago quanto a um negativo fotográfico” (MAURON, 2001: 54). Toda a atmosfera dessa fotografia se desdobra, por conseguinte, de um silêncio mortífero, pelo depósito de um véu de poeira que cria as marcas deixadas pelo abandono.
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É o caráter volátil e frágil das cinzas impregnadas na superfície da parede que leva o historiador da arte Georges Didi-Huberman a qualificar esse tipo de espaço como espaço soprado, ou seja, enquanto produto de um sopro de cinzas que invade o espaço e reanima a memória do lugar dos seus objetos originários. Esse processo “torna visível o ato mesmo de retirar o quadro”, instigado por Parmiggiani a partir de: “uma movimentação do lugar”. Isso porque, segundo o autor, quando nós estamos “inflando um espaço, não criamos somente num lugar: insuflamos o tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2001: 32). Por meio dessa presença indizível do tempo, eis que uma memória surge e se apresenta diante de nós, meros espectadores. Parmiggiani qualifica esse tipo de memória de “Urgência”; qualificação argumentada em função da seguinte necessidade: “Não há razão alguma para querer relacioná-la a uma memória percebida como passado […] Logo, meu trabalho não se dirige se não que ao meu presente e a uma memória que eu chamaria de urgência.” (DIDI-HUBERMAN, 2001: 34-38). Verdadeiros fantasmas, hologramas de objetos desaparecidos tomando forma em seus contornos, eles são agora restituídos, após a última fase de reserve, sobre o espaço plano do suporte. Delocazione é uma série que subsiste ao estado fossilizado. Ela persiste, nesse sentido, pela maneira segundo a qual um lugar pode constituir-se paradoxalmente como o guardião de uma memória que se inscreve num tempo fora do tempo. Isso se dá pela própria destruição dos elementos que a compõem. Ora, essa estranheza do tempo não seria jamais possível sem a atuação de uma estranheza do lugar. Parmiggiani enfatiza tal constatação ao declarar que: “O objeto já não está mais lá, todavia o percebemos em sua profundeza, não somente por meio do seu simples contorno, mas enquanto qualidade física. […] Não como a sombra de uma forma física, mas como a forma física da sombra” (DERRIDA, 1990: 123). A sombra constitui-se, pois, como lugar da queda, da catástrofe, a partir da qual sobrevive uma imagem nova, criada pelo poder destrutivo do fogo. Se a imagem fotográfica pode assemelhar-se ao espelho – distorcido – de certa representação caótica do mundo, a obra de Claudio Parmiggiani entreabre a brecha do caos ainda mais profundamente, instilando in situ, dentro do seu método de destruição/ recriação da obra, certa dimensão apocalíptica. Uma passagem violenta: “O apocalipse
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nada mais é do que uma revelação ou mise a nu, desvelamento que torna visível, verdade da verdade. […] Ele desvela também segundo o evento de uma catástrofe ou de um cataclismo.” (DIDIHUBERMAN, 2001: 88). O fogo, por sua ação simultaneamente destruidora e criadora constitui-se, antes de tudo, como o agente principal da gênese da imagem. Portanto, esse fogo permanece no campo do invisível, do qual percebemos somente as consequências, no silêncio dos seus vestígios consumidos. No centro desses vestígios, a imagem, qual fênix mítico, renasce, reaparece das cinzas. A imagem é aparição.
III. Figura em decomposição Frame de Decasia (Bill Morisson, 2002).
Chegamos finalmente ao término do nosso percurso, com a abordagem de um último tipo de figura. Um tipo que pode ser nomeado de figura de decomposição, ou ainda, figura em degradação, cujo processo vem a ser preservado mediante uma práxis de reapropriação. Nossa análise dedica-se a uma série fotográfica extraída da obra Précis de décomposition, do artista francês Eric Rondepierre. Obra que ecoa também no filme Decasia, realizado pelo cineasta americano Bill Morrison, no qual a ruína da narrativa se dá pelo desgaste do tempo, e que trata ainda de uma narração paradoxal da ruína que nasce justamente
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4. A película 35 mm estandardizada (institucionalizada em 1908-1909) foi composta, até o inicio dos anos 1950, de uma película de celulose de nitrato, uma camada de gelatina e uma emulsão de sal de prata sensível à luz.
dessa dupla resistência da imagem fílmica e sua matéria-prima. Trata-se, na verdade, da decomposição simultaneamente material e simbólica da imagem iniciada dentro de sua própria impressão mnemônica. Por serem constituídos de diversos fragmentos em preto e branco captados entre o início do século 20 e a década de 1940, alguns deles aparecem muito descompostos4. Os fragmentos compõem uma suntuosa alegoria da sobrevivência e do gesto criativo a partir de um efeito verdadeiramente destruidor. Nesse sentido, vale retomar a declaração do filósofo e sociólogo alemão Georg Simmel, que, em seu ensaio As ruínas, de 1907 (SIMMEL, 1998: 113), declarou que: “O interesse das ruínas é possibilitar que uma obra humana seja percebida quase como que um produto da natureza”. A ruína produziria assim uma nova coesão, rompendo a unidade de uma entidade tal como uma edificação, pois é concebida e produzida pela intenção humana sob a pressão do acaso, integrando-a dentro do seu cenário natural. Nesse sentido, em uma construção arruinada pelos anos e pelos séculos, inscreve-se uma força antagônica dividida entre o passado e o presente, a determinação e o acaso, e cujas energias contrárias acabam por criar uma nova unidade estética. Se as séries que constituem o Précis de décomposition conservam características e valores próprios de um arquivo, a questão relevante aqui consiste em saber de que modo esse tipo de fotografia, para além da função documental, torna-se em si objeto simultaneamente reapropriado e mantido num estado de vestígio revelador de um olhar em particular. Tal qual um pensamento contemplativo frente à ação corrosiva do tempo sobre a matéria e o suporte de representação, dado que: “Se nada persiste, tudo tende a desaparecer num continuum despedaçado, desestruturado, caótico.” (DIDI-HUBERMAN, 2001: 88). Esse olhar melancólico pode ser absorvido pela noção de fotograficidade, desenvolvida por François Soulages, enquanto parte fotográfica da imagem e que consiste em: “considerar, além da existência de uma fotografia real, a sua dimensão do possível.” (SOULAGES, 2005: 107-134). Este conceito abstrato só pode nascer da tensão existente entre duas realidades: uma delas física, pela sua irreversibilidade e a fragilidade de sua impressão negativa, sem qualquer poder de intervenção sobre a captação da imagem; a outra, temporal, pelo processo de reprodução inacabado, estendido ao infinito. A única forma – e também a mais radical – de interromper esse
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caminho inacabável é a que induz a destruição do seu suporte de impressão negativo. Essa impossibilidade de alcançar um fim emerge como um estupor angustiante. Eric Rondepierre ressalta que: “Começamos por atingir a imagem antes de atingir o seu referente, talvez um provoque o outro, por meio de uma espécie de contaminação assustadora. Talvez sejam a mesma coisa: o medo é, já em si, ‘imagem’, porque representa a paixão do congelamento” (RONDEPIERRE, 2001: 39). Faz-se necessário distinguir aqui, brevemente, a diferença entre as noções de arquivo e de registro. Se o conceito de arquivo denota um sentido particular, o de registro aparece, ao contrário, universal, vasto e ilimitado. Obviamente, o arquivo resulta de um registro (escrito, fotográfico) e nesse sentido as duas noções estão intimamente ligadas, ainda que exprimam uma divergência: o registro é livre, em si, de qualquer intenção – o registro fotográfico nasce de um processo “universal”. Ora, se de fato não existe arquivo sem registro, o contrário não se aplica. O arquivo, enquanto registro, pressupõe uma intenção, uma motivação que se assemelha à apropriação, por vezes resultando de uma prática mesma de reapropriação. Embora o método de coletânea e posterior seleção de fotogramas empregado por Eric Rondepierre possa se confundir com uma prática próxima à de arquivamento – o título conferido a certas provas nada mais é do que um número de inventário do filme do qual o fotograma foi extraído e posteriormente ampliado, ou ainda a adoção de um intertítulo ou legenda sobreposta à imagem –, tal procedimento justifica-se pelo fato de essas fotografias terem por princípio, em primeiro lugar, guardar e conservar tão somente a matéria da imagem, tal como esta se faz visível, no momento mesmo da sua recuperação, livre de todo risco de deterioração. O Précis de décomposition reúne assim três séries em que podemos observar tanto um rosto desfigurado (na série Máscaras), quanto fotogramas de cenas deformadas (na série Scènes), ou ainda fotogramas cuja representação do objeto atinge os limites das anamorfoses (a série Moires). O Précis de décomposition aparenta-se, portanto, a um método do martírio. A esse propósito, o artista declara que: “Estamos exatamente na posição do espelho deformado do si mesmo, o anúncio da morte em sua versão tremulante e espantosa, lá onde o assassinato da imagem situa-se
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mais perto da imagem do assassinato; o martírio da fotografia, da fotografia do martírio.” (RONDEPIERRE, 2001: 41). Logo, estamos diante da necessidade de ler e decifrar, em retrospecto, o enigma dessa imagem misteriosa – cujo conteúdo transfigurado tornou-se, ao longo de seu extenso processo de deterioração, sempre ilegível, marcado pelo selo da queimadura. Assim, chegamos pouco a pouco à beira do vazio de sua fenda singular, de seu rasgo evidente. Face a esse espanto, congelado em seu contágio, o fotograma nos aparece, nesse sentido, realmente “estupefato”. Preso no limiar do último movimento de seu sopro mudo, tal aspecto pode ser observado no exemplo da fotografia intitulada W1930A, extraída da série Cenas. Essa paralisação, essa brecha do círculo por meio do qual mergulhamos no abismo do medo e do irrecuperável, faz-se também presente no exemplo intitulado Espelho, extraído da série Moires, ou ainda nos exemplos W1921A e W168A, ambos incluídos na série Masques. IV. Conclusão Ao olhar e analisar essas obras fotográficas, plásticas e cinematográficas, somos levados por fim a observar e perceber a imagem enquanto resultado de um processo de Monstração. O que, porém, pode-se depreender desse termo? Segundo o filósofo Jean-Luc Nancy, ele pode ser esclarecido pela premissa de que: “Assim, a essência da imagem é de ordem mostrativa ou mostrante. Cada imagem é uma monstrance [...]. A imagem é da ordem do monstro: monstrum, é um signo prodigioso (moneo, monestrum) que adverte contra uma ameaça divina […]. É por isso que há uma monstruosidade da imagem: ela é fora do comum da presença porque ela o é em ostentação” (NANCY, 2005: 46-47). Nesse sentido, Eric Rondepierre cria a partir de todas essas deteriorações “naturais” um catálogo de formas visuais autônomas cujo recurso serve a uma nova tentativa desejosa de que as fotografias unam-se plenamente aos seus referentes originários. Essa possibilidade, explicitamente presente nesses exemplos, faz da destruição e da deterioração da imagem uma faculdade cujo processo poiético sensível e autônomo da imagem vem a acentuar paradoxalmente seu caráter profundamente aurático. Igualmente paradoxal, por seu caráter de fato acheiropoïète, excluindo de sua feitura a mão do homem, reduzido tão somente à intervenção
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cuidadosa de seu único imperativo de conservação. Assim, esse procedimento da fotografia é carregado de um profundo valor ritual, que Walter Benjamin, em seu tempo, conferia às primeiras fotografias. A obra de Eric Rondepierre nos lembra a ligação que Benjamin operou entre “o culto das imagens” e as suas “belezas melancólicas”. Um laço sem o qual a celebrada “aura” da imagem não teria mais razão de ser, já que: “No culto devido à lembrança de um amor longínquo ou morto, o valor de culto das imagens encontra seu último refúgio. Na expressão fugidia de um rosto humano, a aura sinaliza, pela última vez, nas primeiras fotografias. É isso que torna sua beleza melancólica e incomparável” (BENJAMIN, 1997: 35).
Referências BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BENJAMIN, Walter. L’œuvre d’art à l’époque de sa reproductibilité technique. Paris: Col. Arts et Esthétique, Dominique Carré, 1997. DERRIDA, Jacques. Mémoires d’aveugle: L’autoportrait et autres ruines. Paris: RMN, 1991. ______. Mal d’archive. Paris: Galilée, 1995. DIDI-HUBERMAN, Georges. Génie du non-lieu. Paris: Editions de Minuit, 2001. FRAMPTON, Hollis. On the Camera Arts and Consecutive Matters. Cambridge: Writting Art series, The Mit Press, 2009. GRIMALDI, Nicolas. Traité des solitudes. Paris: Presses Universitaires de France, 2003. MÉAUX, Danièle; VRAY, Jean-Bernard. Traces photographiques, traces autobiographiques. Saint-Étienne: Publications de l’Université de SaintÉtienne, 2004. MAURON, Véronique. Le signe incarné: ombres et reflets dans l’art contemporain. Paris: Hazan, 2001. NANCY, Jean-Luc. Au fond des images. Paris: Galilée, 2005. PLATÃO. Timeo. Diálogos. Madrid: Gredos, 1992. v. 6. RONDEPIERRE, Eric. Apartés. Paris: Filigranne éditions, 2001. SIMMEL, Georg. La parure et autres essais: Paris: La maison des sciences de l’homme, 1998. SOULAGES, François. Esthétique de la Photographie. Paris: Armand Colin, 2005. VALÉRY, Paul. Discours sur l’Esthétique. In: Œuvre. Paris: col. Pleiade, Gallimard, 1957, v. 1.
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Data do recebimento: 14 de agosto de 2011 Data da aceitação: 23 de dezembro de 2011
(IMAGEM)
Aroldo Lacerda
Imagens entre a pausa e a espera suzana kilpp Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS Coordenadora do grupo de pesquisa TCAv/UNISINOS
cybeli moraes Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS Integrante do grupo de pesquisa TCAv/UNISINOS
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Resumo: Atentamos para um tipo de rastro fotográfico no audiovisual e procuramos entendê-lo como inscrição memorial e conotadamente fotográfica que produziria efeito similar via câmera lenta e plano sequência. O que seria essa fotografia que dura no audiovisual? Assumindo-a como audiovisualidade, identificamos uma ethicidade que chamamos de pausa, um constructo de dupla potência que estende e corta o audiovisual. Dissecando molduras praticadas no filme Sauve qui peut (la vie) (Jean-Luc Godard, 1978), a ethicidade foi reconhecida como uma espera de natureza imagética. Palavras-Chave: Inscrição fotográfica. Audiovisualidades. Câmera lenta.
Abstract: We attempt to a kind of photographic trail in audiovisual and try to understand it as a memorial inscription and connotative photographic, which produce similar effects by way of slow motion and long take. What would be this lasting photography at audiovisual? Assuming it as audiovisuality, we identified an ethicity that we will call pause – a construct of dual power that extends and cuts the audiovisual. Dissecting the film frames practiced in Sauve qui peut (la vie) (Jean-Luc Godard, 1978), the ethicity has been recognized as a wait of imagery nature. Keywords: Photographic inscription. Audiovisualities. Slow motion.
Résumé: Notre attention a été attirée par le vestiges photographiques qu’on peut trouver dans l’audiovisuel; nous les comprenons comme s’ils étaient une sorte de inscription de mémoire, notamment photographique, semblable aux effets produits par des mouvements ralentis ou par les plans séquentiels. Qu'est-ce qu’elle serait cette photographie qui est permanent dans l’audiovisuel? En la voyant comme audiovisuélité, on peut identifier une ethicité que nous pouvons appeler de pause; une construction de double puissance parce que au même temps qu’elle étend, elle coupe l’audiovisuel. En disséquant les cadres du film Sauve qui peut (la vie) (Jean- Luc Godard, 1978), la ethicité se rend reconnue par les retards qui ont une caractérisés comme des images. Mots-clés: Inscription photographique. Audiovisuélités. Ralenti
O fotográfico no audiovisual: primeiras impressões A imagem audiovisual ocupa lugar decisivo no mundo contemporâneo, assim como a fotografia em época anterior, da qual às vezes se diz que, animada, deu origem ao cinema. Ainda que se possa problematizar historicamente a questão das origens, não há dúvida que existe uma imbricação de uma na outra, um atravessamento de parte a parte que nos faz reflexionar sobre o fotográfico durante o audiovisual. As fotografias instauradoras de Juvenília (Paulo Sacramento, 1994) foram o nosso primeiro embate com a problemática que estamos nos colocando na pesquisa: são fotos fixas, imagens estáticas em movimento e uma edição de som diferenciada – as principais características de fotofilmes realizados a partir de imagens still em set, sem o sistema tradicional de registro fílmico contínuo. Souza e Silva (2005) chamou as imagens de Juvenília de fotografias audiovisuais. Mas “restaria” ainda fotografia, propriamente dita, após os processos de montagem e animação do filme? E, especialmente, em processos que nos habituamos a chamar de convergentes (JENKINS, 2008), ou de hibridizantes (CANCLINI, 2000)? Se não, diante do que estaríamos? Se sim, a que “restos” nos referimos? Não seria mais adequado, então, falar em rastros fotográficos no audiovisual? Esses foram nossos primeiros questionamentos, dos quais intuímos a necessidade de fazer avançar os conceitos para que dessem conta dos fenômenos observados. Os embates metodológicos e o reconhecimento do fotográfico na câmera lenta e no plano sequência Tendo em vista que não é possível responder a estas questões levando-se em conta somente os modos de agir (BERGSON, 2006) das superfícies que nos cercam, é preciso atentar para os modos de ser daquilo que chamamos fotografia, audiovisual, fotofilme ou fotografias audiovisuais. É preciso procurar elementos comuns, porém, diferenciantes; não apenas atentar para o teor conteudístico (narrativa, sentidos, suportes), mas também para o que a coisa diz de si - até mesmo onde ela aparentemente não está. Para acompanhar algo que não se curva facilmente à representação, tendo em vista esta zona fronteiriça de imagens que estão entre os suportes e as linguagens do vídeo, do
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1. Esta pesquisa encontra-se em fase de desenvolvimento e ajustamento do corpus, que até o presente momento possui cerca de 20 arquivos coletados nos portais de compartilhamento Vimeo (http://www.vimeo.com) e YouTube (http://www.youtube. com).
cinema, da TV e da fotografia – só para citar aquelas imagens produzidas por aparelhos (FLUSSER, 2002) –, Deleuze e Guattari (2000) propõem um caminho: a cartografia, um procedimento que possibilita inventar o objeto com uma liberdade criativa viabilizada e mediada pelo encontro entre pesquisador e campo. O corpus de uma pesquisa cartográfica acaba resultando num conjunto aparentemente desfocado. No entanto, há nele uma liga, aquilo que Deleuze (2006) chamaria transversalidade: um caminho para o estabelecimento de relações que não carecem de conjuntos para se unificarem. Em lugar disso, se comunicam por singularidades, por uma espécie de não-comunicação que instaura distâncias entre coisas contíguas que, no entanto, fazem parte do mesmo rizoma. Cartografar implica a realização de um mapa aberto, conectável, desmontável, reversível e suscetível de receber modificações. A cartografia nos faz atentar para a heterogeneidade e as conexões possíveis: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a outro, motivando o “apagamento” dos objetos foto, vídeo, cinema e mesmo audiovisual, para que as linhas e agenciamentos fiquem visíveis. De acordo com Kastrup (2007), o rizoma é instaurado em ao menos três momentos – a suspensão, a redireção e o deixar vir – ao longo do rastreio do campo, da seleção do corpus e da análise dos materiais. O rastreio coleciona, varre o campo, dessensibiliza repertórios e (pré) conceitos. A redireção exige que se faça um recorte. Em função disso nosso rastreio e recorte1 se deu livremente em filmes, na web, nos livros de foto, em portais como o Immage bank, o YouTube e o Itaú Cultural, em sites de núcleos de pesquisa da USP, UFRJ e UFBA e em núcleos experimentais como Studium, da Unicamp. Estivemos inicialmente concentradas no reconhecimento de fotos, mas logo percebemos, por exemplo, que em programas de TV sobre a alta sociedade as personagens agiam como se estivessem sendo fotografadas pelas câmeras de televisão. Ao final, constatamos que entre os modos de agir da fotografia no audiovisual – de inscrever-se como resto ou rastro – há um conjunto variado de figuras do instantâneo fotográfico: além das fotomontagens, cliques e flashes que lembram o aparelho fotográfico, tutoriais e álbuns de compartilhamento, fotos em videoclipes, poses em matérias telejornalísticas, em webportfólios
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IMAGENS ENTRE A PAUSA E A ESPERA / SUZANA KILPP E CYBELI MORAES
e em power points. Abandonamos, assim, as expressões fotografia, audiovisual, fotofilme e fotografia audiovisual, e avançamos na direção da inscrição ela mesma, memorial e conotadamente fotográfica. Um recorte do platô a que chegamos naquele momento pode ser visto nos quadros abaixo (FIG. 1): Figura 1: Frames do exploratório cartográfico, 2008. Fonte: Youtube; Vimeo, 2009.
Ou seja, observamos que nos diferentes materiais2 há a mesma sensação de “parada” que em geral atribuímos à fotografia
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2. Os quadros fazem parte dos seguintes arquivos: ZING X LANE CRAWFORD BEAUTY REVEALED PART 2 TATIANA (Lane Crawford, 2006); SIENA MILLER & JUDE LAW ALFIE BEST SCENE. ALFIE (Charles Shyer, 2004); PAUSE (Aaron Sjogren, 2007); GENEVIEVE (Saam Gabbay, 2009); LONG JUMP (Ian Mackinnon, Dominic Parker in association with the Getty Images Short & Sweet Film Challenge, 2008); PHOTOGRAPH OF JESUS (Laurie Hill in association with the Getty Images Short & Sweet Film Challenge, 2008); DEF LEPPARD – PHOTOGRAPH (David Mallet, 1983); DAMAGE (Louis Malle, 1992); THE PERFECT LIE - A PHOTOSHOP TRANSFORMATION (Youssef, 2007).
(imagem do instante). Mas logo nos demos conta que ela ocorre também quando entram em cena montagens que fazem uso da câmera lenta e de planos sequência, tensionando a perspectiva que ensaiávamos de explicar a parada pela inscrição fotográfica. Por exemplo, vejamos alguns quadros selecionados do final de Damage (Louis Malle, 1992) (FIG. 2), que associa inscrições fotográficas a movimento lento e plano sequência (a cena tem um total de 1.672 frames):
Figura 2: Frames de Damage (Louis Malle, 1992). Fonte: Youtube, 2010.
Ou seja, chegáramos ao reconhecimento da inscrição fotográfica nos materiais atualizados, mas também percebemos que se produzia efeito similar via câmera lenta e via plano sequência. O que é, então, essa fotografia durante (que dura, virtual) no audiovisual? Cartograficamente tratava-se de “deixar vir” o fotográfico intuído. 3. Disponível em: http:// noticias.terra.com.br/ciencia/ interna/0,,OI3738360-EI238,00. html. Acesso em 2 set. 2010.
A ethicidade pausa Em primeiro de maio do ano de 2009 o portal de notícias do provedor Terra3 anunciou a invenção da câmera mais rápida do
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mundo: um aparelho capaz de capturar mais de seis milhões de imagens por segundo. Já em novembro do mesmo ano, a empresa belga I-MOVIX lançou a poderosa SprintCam V3 HD4 capaz de produzir imagens em “super” câmera lenta, com até dois mil frames por segundo e replays instantâneos. As duas notícias referem-se a investimentos em tecnologias relacionadas à produção de um fenômeno aparentemente paradoxal: sequências aceleradas de imagens em movimentos cada vez mais lentos. Esclarecemos: para produzir um efeito de câmera lenta (do inglês, slow motion, movimento lento) é preciso o suporte de uma câmera rápida (high speed, velocidade rápida). Tendo em vista que o olho humano consegue perceber até 220 frames por segundo (fps)5, as duas invenções revelam não só uma crescente captação de mais e mais imagens, mas, inclusive, a captação daquelas que não poderíamos fisiologicamente enxergar. Ou seja, ainda que não planejado, elas incitam, demandam e treinam nossa capacidade cerebral e ótica, pois conforme alguns cientistas afirmam nossa visão se adapta aos dispositivos de ver.6 Voltando então à questão dos restos (e rastros) de um instante fotográfico que se atualiza em inscrições fotográficas, mas também em movimentos lentos ou sequenciais de câmera, é preciso tentar renomear o que os atuais (o corpus observado) mostram de si, tendo presente que agora não falamos mais de audiovisuais, mas de virtualidades audiovisuais: falamos de audiovisualidades que se atualizam no cinema, no vídeo, na televisão e na Internet, mas que permanecem ainda e sempre em devir. A princípio, pensamos ser pose a palavra que buscávamos para tentar explicar esta ethicidade – a já mencionada qualidade do instante. No entanto, ao pesquisar a etimologia do termo percebemos que pausa (que inclui derivações da palavra pousa) era mais adequado para designar o que víamos. Então, tendo em vista que conservar e destruir estão na própria origem da fotografia, é possível pensar a pausa no audiovisual em dois âmbitos: o dos instantes que param (e parecem fazer regredir) o fluxo e o dos instantes que animam (e parecem fazer avançar) o fluxo, ambos implicados na produção de ritmo. Ou seja, o audiovisual é, assim, ainda que dito abruptamente por limites deste texto, essencialmente pausa, desde que o consideremos como montagem de cortes, ou de linhas, ou de pixels, o que, sabemos, precisaria ser mais bem explicitado para justificar-se.
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4. Imediatamente comprada por gigantes do mercado midiático como a Rede Globo, a SprintCam V3 HD produziu imagens que fizeram sucesso nas transmissões esportivas do canal, especialmente durante a Copa do Mundo de 2010. Mais informações nos sites: http:// www.i-movix.com/en/newsfeeds/146-tv-globo-choosesi-movixs-sprintcam-v3-hd e http://veja.abril.com.br/blog/ copa-2010/africa-do-sul/oproblema-da-ultra-camera-lenta/. Acesso em 2 set. 2010. 5. Disponível em: http://amo. net/NT/02-21-01FPS.html. Acesso em 2 set. 2010.
6. Basta lembrar que o cinema, em seus primórdios, era realizado com 16 fps e que o padrão da TV brasileira é de 29,97 fps, ou seja, nem os 24fps do cinema atual, nem os 60fps de alguns games, aos quais também já nos habituamos.
Mas, e aí vem o desafio da pesquisa, ainda que toda pausa seja um tipo de corte, nem toda pausa corta, e há diferentes formas de cortar, dentro ou fora do plano. Acompanhemos, por exemplo, dois recortes de quadros da parte final de Matrix Revolutions (Andy e Larry Wachowski, 2003) a sequência total entre os dois planos mostrados tem 258 frames (FIG. 3):
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Figura 3: Frames de Matrix Revolutions (Andy e Larry Wachowski, 2003). Fonte: Youtube, 2009.
Entre os quadros 1 e 8 não há corte da cena de um plano a outro, mas ainda assim, os múltiplos frames ficam aparentes pelas imagens sobrepostas (pausas dentro de um plano que, dos
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quadros 1 a 8, seria considerado um só no fluxo da cena). Notemos que entre os frames 9 e 11 nem podemos considerar uma troca de planos, pois eles mal aparecem a olho nu, resultando, no fluxo, numa sobreposição que sobra nos planos anterior e posterior. Então, dentro do filme, que é sobretudo montagem de pausas (cortes de plano), temos as pausas aparentes dos cortes de câmera de um plano a outro (dos quadros 12 para 13), e pausas dentro das pausas dentro das pausas - planos de um filme formado por falsos planos únicos de câmera lenta (entre os quadros 1-12 e 13-18), que em Matrix ficam aparentes pela sobreposição borrada da montagem. Essa pausa a que nos referimos é, então, necessariamente, uma ethicidade, nos termos de Kilpp (2003); ou seja, é uma imagem que dá a ver pessoas, objetos e acontecimentos que são, na verdade construtos midiáticos. Como ethicidade, a pausa engendra novas formas de percepção, participa da instauração de mundos e promove emolduramentos (agenciamentos de sentido) que são ofertados por molduras e moldurações. Assim, para reconhecer os sentidos ofertados ao audiovisual pela pausa é preciso dissecar7 as molduras em que comparece, sendo que nesse texto serão destacadas a seguir as molduras praticadas no filme Sauve qui peut (la vie) (Jean-Luc Godard, 1978).
Entre a pausa e a espera Finalmente, dissequemos então um dos materiais observados – Sauve qui peut (la vie). Trata-se de uma obra atípica tanto em seu formato (que mistura filme e vídeo já nos anos 70) quanto em sua narrativa (coisas de Godard!). Como comenta Anita Leandro (2003), Godard era possuído por um desejo de ver seu roteiro antes mesmo de escrevê-lo ou filmá-lo, por isso alguns elementos em seus filmes sublinham um lento escoamento do tempo, necessário à maturação de uma ideia. Quanto aos formatos, diz Rita Lima (2005) que, neste filme, Godard faz interferências diretas da imagem-vídeo na imagem-celulóide, na própria trama narrativa do filme. O uso do vídeo dentro do filme produz como que inserções de “estados” diferenciais da experiência de determinado personagem na trama, que vai definindo o seu papel, o “clima” do personagem, sua relação com a história narrada. É como se Godard estivesse, com essa mistura de imagens vídeo/
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7. A dissecação de molduras vem ao encontro de uma análise que objetiva a des-discretização (DERRIDA; STIEGLER, 1998) da imagem audiovisual, que é de grande opacidade justamente em função do compósito de molduras que escondem e disfarçam seus modos de produção.
8. Disponível em: http:// members.optusnet.com. au/~robert2600/godard.html. Acesso em: 13 set. 2010.
9. Podemos pensar tal “gagueira” como a produção do que chamou Bellour (1999) de “entreimagem”: passagens espaçotemporais, ou instauração de voltas, incrustações e sobreposições – que acabam por existir em mundos próprios somente reconhecidos em nosso olho (ou em função da enganação de nosso olho) – que resultam em imagens provocadoras de um movimento de dupla hélice: que conecta as simulações em torno do móvel e do imóvel, ambas formas de trabalhar a analogia. 10. Idem op. cit. 24. 11. Disponível em: http:// members.optusnet.com. au/~robert2600/godard.html. Acesso em: 13 set. 2010.
12. Disponível em: http:// truth24framespersecond. blogspot.com/2009/04/jlgjlg_16. html. Acesso em: 13 set. 2010.
cinema, inscrevendo diferentes sistemas de sensações na imagem, que podem ser decodificados e lidos diferentemente a partir do suporte ao qual se associam. O escritor australiano Robert Lort8 comenta a dificuldade de se dissecar um filme de Godard ao apontar como uma das características da obra do cineasta a produção de trabalhos rizomáticos (DELEUZE e GUATTARI, 2000). Godard ramifica, desconecta as coordenadas espaciais e temporais, promove mudanças repentinas em graus de velocidade variados – ora lentos, ora quase à deriva. Em função disso, para Lort, a obra de Godard está sempre “entre dois; entre texto e imagem, cinema e televisão, som e visão, paixão e política”. Esse tipo de montagem – que também ocorre entre duas imagens e a fissura criada pela justaposição destas – é caracterizado por Lort, a partir de Deleuze, como uma “gagueira visual”9. Como diz o próprio Godard: “admitindo que você está gaguejando, que você é meio cego, que pode ler mas não escrever, a questão é sempre o que há para ver? O que é imperceptível?”10. Em determinado diálogo de Sauve qui peut (la vie), uma personagem diz a outra: “é descrevendo os eventos secundários que você coloca luz sobre as questões centrais”. A própria estrutura criada pelo cineasta, aliada a técnicas como a câmera lenta, promoveria uma dissolução das narrativas e das convenções do cinema. “As sequências de movimento lento, avanço rápido, repetição, distorções e desfocados lutam para desconstruir os sentidos dos telespectadores, para desestabilizar o plano perceptivo”, diz Lort11. Ao retardar o movimento e tornar a acelerá-lo, Godard parece tentar nos mostrar o que resta nas cenas, o que perdemos a cada frame e que pode ser ainda revelado. Como o próprio cineasta diz sobre seu inusitado uso da câmera lenta em Sauve qui peut (la vie) em entrevista citada num blog de admiradores da obra de Godard, ela serviria “apenas para termos o tempo de olhar. Para levar você a olhar o que está fazendo. Esse movimento pode ser um golpe ou uma carícia. O tiro é muito longo, talvez uma mudança de ângulos ou timing. Mas eu os mantive das duas formas... ora demasiado sentimental, ora violento.”12 Sauve qui peut (la vie) ganhou vários títulos ao longo de seu lançamento na Europa e nos Estados Unidos. Na Ucrânia virou Slow Motion devido às varias cenas presentes no filme que
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utilizam esta técnica. Mas o que levaria Godard a utilizar o slow motion em seus filmes se o próprio cineasta aponta que o efeito é clichê? Em Jean-Luc Godard: interviews13 o cineasta diz: Méliès não achou interessante criar uma ilusão de movimento. O que era importante, disse ele, era ver diferentes tipos de movimentos. Para nossa pesquisa, analisamos diferentes tipos de velocidades, a fim de escolher a velocidade certa para o roteiro certo. Talvez você precise de uma velocidade mais lenta para um beijo. Eu acho que se você analisar a forma como os atores estão beijando nos filmes de hoje, você vai descobrir que é sempre a mesma velocidade. Como contraste, pense na forma como Greta Garbo beijava Ramon Novarro. No cinema mudo, havia grandes diferenças na velocidade, que foram determinadas pelo ator, não pela câmera. Hoje, nós perdemos isso e estamos sempre no mesmo ritmo. Os ritmos do cinema mudo foram desacelerados e imobilizados pelas linhas faladas nos filmes sonoros, o que às vezes é uma coisa boa. Mas o movimento lento das cenas de morte de Sam Peckinpah, ou de Rocky II se tornaram clichês – agora explorados pela publicidade – e é por isso que eu acho melhor usar diferentes tipos de velocidades... mas é apenas um começo.
De fato, o slow motion de Godard não é a mesma câmera lenta que vemos em Matrix: ela é quase uma freeze-frame motion, um congelamento, uma inscrição fotográfica (em câmera lenta) reforçada pelo áudio que, juntos, enunciam contraditos. Na dissecação das molduras de Sauve qui peut (la vie) recortamos cenas e aproximamos os recortes uns dos outros, e, nessa primeira incursão, constatamos o seguinte. No filme, a pausa atualiza-se como plano sequência já na abertura, com a amplidão de um céu azul que denota começo. O término da abertura é marcado pela retirada abrupta da música, uma trilha suave de piano. Com a câmera parada, Godard deixa por vezes um resto de cena (alguns frames do cenário) depois de já concretizada a ação do filme, como se quisesse nos forçar a ver o espaço sem a presença dos atores e da ação diegética: diante do que não se move – como a paisagem – a câmera percorre, lenta, o inanimado, num plano contínuo (FIG. 4). Depois de observar várias vezes uma das câmeras lentas de Godard passamos a não atentar mais para o que se passa no plano, mas sim para uma vassoura que repousa estática no canto do cenário. O slow motion, aqui, nos permite atentar para coisas que poderiam passar despercebidas, mas que estão ali com certeza para sugerir algo. Nas diversas vezes em que se atualiza, a câmera lenta anuncia por vezes uma ação confusa,
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13. STERRITT, David. Jean-Luc Godard: interviews. Jackson, Mississippi: University of Mississippi Press, 1998, p. 95. Trecho da obra disponível em: http://books.google.com.br/ books. Acesso em: 13 set. 2010.
Figura 4: Frames de Sauve qui peut (la vie) (Jean-Luc Godard, 1978). Fonte: Youtube, 2010.
Figura 5: Frames de Sauve qui peut (la vie) (Jean-Luc Godard, 1978). Fonte: Youtube, 2010. 14. Disponível em: http:// truth24framespersecond. blogspot.com/2009/04/jlgjlg_16. html. Acesso em: 13 set. 2010.
Figura 6: Frames de Sauve qui peut (la vie) (Jean-Luc Godard, 1978). Fonte: Youtube, 2010.
15. Disponível em: http:// truth24framespersecond. blogspot.com/2009/04/jlgjlg_16. html. Acesso em: 13 set. 2010.
contraditória: sexo amoroso ou violento, violência consentida ou involuntária, acidente fatal ou burlesco? Mas enuncia também que um personagem observa outro, com lascívia ou nostalgia – de resto permitindo que os observemos também (FIG. 5). Num outro momento, também com uso da câmera lenta, os atores são transformados em uma espécie de bonecos de caixinha de música, girando ao som de uma trilha suave. Essa associação de suavidade à câmera lenta se dá quase sempre quando aparecem em quadro as personagens femininas ou seu olhar sobre as coisas. Aliás, a câmera lenta é pouco utilizada para expressar emoções das personagens masculinas. Como o próprio Godard diz, “uma das mulheres está indo rápido demais, a outra vai mais devagar, e o homem não se move. E talvez aí esteja o desespero”14. O mesmo áudio é compartilhado nas cenas a seguir (FIG. 6). Para encerrar esta breve incursão em Sauve qui peut (la vie) resta enfatizar a moldura áudio, já referida. Ao atentar para a trilha e para os sons do filme recordemos uma frase do cineasta Sacha Guitry: “quando se acaba de ouvir um trecho de Mozart, o silêncio que se lhe segue ainda é dele”. Pensando a pausa em Godard como uma espécie de silêncio que se instaura para que possamos ver detalhes, na pausa o áudio passa a ser enunciativo, uma vez que a trilha sonora sofre cortes secos entre uma cena e outra, aparece remixada com sons capturados no ambiente ou oscila sobre a voz off das personagens de cenas vizinhas. Por exemplo, o áudio de uma das cenas (congelada vagarosamente em câmera lenta) é o off da cena anterior (na qual personagens falam no interior de um quarto, fora do qual se escutam carros passando e barulhos da cidade). Então, assim como o silêncio de Mozart que se faz ouvir mesmo após o término da música, o áudio de Sauve qui peut (la vie) costura as cenas umas nas outras. Em alguns momentos de violência e tensão sexual a trilha sonora que acompanha as imagens em câmera lenta é ritmada e pulsante, o que não quer dizer que a trilha esteja de acordo com a ação retratada, uma vez que outras cenas, também violentas, são ambientadas com uma música suave. Tais montagens são assim explicadas por Godard: “para mim não há real diferença entre a imagem e o som, eles são apenas ferramentas... Você tem que ouvir a imagem e olhar o som”15. Tais observações sobre o filme de Godard nos levam à questão: se, como já dissemos, todo corte é pausa, mas nem toda a pausa corta, o que não cortaria a pausa?
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Considerações ou interrogações finais A câmera é paciente, ao passo que o ser humano não parece mais o ser. Tanto que cria mecanismos que se propõem a mostrar, de forma ágil, detalhes ínfimos para que não precisemos contemplá-los horas e horas a fim de percebê-los. Mas há sempre um virtual no rastro dos atuais, que dura para além de suas atualizações (ou realizações). Por enquanto em nossa pesquisa intuímos que o que dura na pausa atualizada é um tipo de espera (sua virtualidade), aquela que é anterior ao instante. A experiência do tempo fotográfico (instantâneo) atualizado no audiovisual comporta um paradoxo: uma aceleração crescente e um encurtamento. Como refere Lissovsky (2003a), o ícone supremo deste tempo acelerado é o instante instantâneo, herdado de Descartes e Newton, que fia toda uma sincronicidade – que Bergson combate via sua metafísica da duração, dando como exemplo o já citado mecanismo do cinema. Tal aceleração rumo ao instantâneo também faria com que o presente moderno passasse a ser percebido como que tendo uma inclinação para o futuro. “O surgimento da ficção científica, como gênero literário popular, demonstra quão difundida tornara-se esta sensação” na qual “presente e futuro pretendem convergir para uma mesma atualidade”, refere Lissovsky. Mas, como ele mesmo diz, As condições técnicas da emergência da fotografia moderna já existem desde o último quartel do século XIX, isto é, desde quando o tempo de uma exposição fotográfica – o tempo da pose – tornou-se uma duração inapreensível para os sentidos humanos. Mas é somente a partir das décadas de 1920 e 1930 do século passado, quando uma nova geração de fotógrafos viu o instantâneo como naturalmente intrínseco ao seu meio, que o ato fotográfico transformou-se em um modo peculiar de instalação no ambiente técnico. Daí em diante, a espera, mais que a interrupção, tornou-se o cinzel dos fotógrafos modernos (...). (LISSOVSKY, 2003a: 3).
Nas palavras de Bergson (2006: 9) eis o que ocorre durante a espera: “Passo em revista minhas diversas afecções – parece-me que cada uma delas contém, à sua maneira, um convite a agir, ao mesmo tempo com autorização de esperar ou mesmo nada a fazer.” Tal “espera pura” Deleuze (apud PELBART, 1998: 22) descreveu como “desdobramento em dois fluxos simultâneos, um que representa o que se espera, e que tarda por essência, sempre
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atrasado e sempre reposto, e o outro que representa algo de que se espera, o único a poder precipitar a vinda do esperado”. É baseado nestes pensamentos que Lissovsky (2003b: 7) afirma: “a fotografia moderna adquire uma duração que lhe é própria, que toma corpo neste lugar [a espera] onde o refluir do tempo tem curso, onde o instante ainda não está dado e onde ele se realiza”. É aí então que o instante deixa de ser a interrupção artificial da duração, comenta o autor, e passa a ser produzido por ela. O instantâneo fotográfico deixa de ser uma imagem desprovida de tempo (como o fotograma) para constituir uma forma particular em que o tempo se manifesta pelo seu modo de refluir. Ou seja, baseando-se na observação da fotografia moderna, Lissovsky firma uma concepção que procura reconhecer o devir do instante como uma modulação no âmbito da duração – o que conferiria certo poder de mudança à pausa: quando situada no instante não instantâneo, ela retira-se do tempo (se ausenta dele) para instaurar uma linha de fuga que dura – não congela, enfim, a continuidade, mas realiza um recorte da mesma e instaura outras continuações – como pode ser percebido nos emolduramentos (KILPP, 2003) apresentados em Sauve qui peut (la vie). Perguntamos, então, ao invés de parar, como antes cogitamos, se tais esperas (atualizadas nas diferentes pausas) conduziriam o audiovisual (como os quadros-janelas de Aumont, 2006) para fora dele mesmo, ou se elas estabeleceriam outro tipo de parada, já no fluxo diacrônico do audiovisual, numa outra direção ou duração? Até o momento da pesquisa em curso sabemos que a pausa realça, silencia e confere ritmo ao audiovisual – ainda que “gago”, como realiza Godard. Subordina, pergunta, exclama, explica e muda o tom. E é certo jeito de se usar o som, a imagem, a montagem, a narrativa que estabelece na contemporaneidade uma capacidade de fazer cada coisa esperar sua vez – ou, ainda, de esperarmos a vez das coisas, dos cenários, do tempo das personagens como visto em Sauve qui peut (la vie). Como tal, a pausa possui uma dupla potência: a de estender e prolongar, mas também a de cortar, por vezes destilada e progressivamente. Isso nos faz atentar para o dúctil, viscoso, pegajoso e duradouro. Como uma slow emotion que atualiza audiovisualidades para além de audiovisuais, e virtualizações de diversas esperas de qualquer natureza imagética. Mas esperas de quê?
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Data do recebimento: 14 de julho de 2011 Data da aceitação: 23 de dezembro de 2011
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Mauro Henrique Tavares Portela
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Signos da ação na fotografia: linearização e temporalização do instante no fotojornalismo benjamim picado Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF
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Resumo: Avaliamos as imagens de ação do fotojornalismo como campo de provas de uma análise das qualidades cinéticas e dinamizadoras do instante na fotografia, a partir de uma reflexão sobre as relações entre a imagem e a ordem temporal dos acontecimentos. Nos detemos no tratamento dos aspectos de expressão corporal e fisionômica das personagens, assim como na sua disposição espacial na imagem. Tais elementos promovem um efeito de linearização das formas visuais, convergindo para os modelos de temporalidade narrativa ao qual o instante fotográfico fica submetido, particularmente no caso do fotojornalismo. Palavras-chave: Fotografia. Instante. Ações. Narrativa visual.
Abstract: We evaluate the pictures of action in photojournalism as an empirical field for the analysis of the kinetic features of photographic instantaneity, departing from a thought on the relationships between the image and the temporal order of events. We fix our attention on the treatment of corporal and psysiognomic features of human characters, alongside with the spatial disposition of these elements in the picture. Such elements promote an effect of linearization in photograph’s visual forms, converging towards the models of narrative temporality under which visual instants are generally construed in photojournalism. Keywords: Photography. Instant. Actions. Visual narrative.
Résumé: Nous proposons les images photojournalistiques de l’action comme champ empirique d’analyse des qualités cinétiques de l’instantanéité photographique, a partir d’une réflexion sur les rapports entre l’image et l’ordre temporelle des événements. Nous nous concentrons sur le traitement des aspects de l’expression corporelle, ainsi que leur disposition spatial dans l’image. Ces éléments favorisent un effet de linéarisation des formes visuelles, convergeant vers les modèles de la temporalité narrative à laquelle l’instant photographique est soumise, en particulier dans le cas du photojournalisme. Mots-clés: Photographie. Instant. Action. Récit visuel.
0. Avaliamos a fotografia aqui em suas qualidades cinéticas, para chegarmos a um exame concreto dos regimes plásticos e discursivos mais frequentes no fotojornalismo, sobretudo em motivos visuais como o das ações ou conflitos. Neste contexto, a admissão das funções dinamizadoras do instante (através de gestos, fisionomias, posições relativas dos corpos) nos permite estabelecer uma relação complementar e contínua entre os aspectos de arresto e restituição do movimento dos corpos para uma compreensão da representação das ações na imagem fotojornalística. A eficácia desta síntese entre instante e animação decorre do modo como a fotografia pode ser concebida como indexadora de uma modalidade mais ativa da experiência visual: em nossa perspectiva, o sentido da participação sensorial e afetiva infundidos através da imagem fotográfica é um fenômeno que deve ser investigado na sede de uma discussão sobre os “modos de ver” emergentes de uma possível caracterização da experiência das fotografias. Naquilo em que a função do instante fotográfico é capaz de restituir temporalidade e animação ao acontecimento – mobilizando certos esquemas sensório-motores da percepção comum – se constituem as matrizes das novas regências e imperativos de sua significação visual. Isto é especialmente notável quando a imagem fotojornalística se deixa examinar em seu funcionamento concreto, a título de certos discursos sobre os objetos e acontecimentos rendidos fotograficamente e manifestos nas formas mais próprias à sua apreensão visual. Propomos aqui uma análise que privilegia uma maior atenção aos aspectos internos das formas visuais da fotografia (enquadramentos, qualidades e variações tonais, instabilidade ou fixidez de seus motivos, inter alia): nestes últimos, identificamos os operadores de um fenômeno bem particular à história das representações visuais, a saber, o de um imperativo discursivo das imagens. Particularmente associado à compreensão dos ícones visuais em geral (e num domínio primeiramente definido pelos motivos históricos e religiosos da representação pictórica, em suma, pelos objetos de uma “pintura das ações”), este aspecto da rendição fotográfica do mundo visual será avaliado aqui nas relações que propicia à conflagração da imagem enquanto segmento de uma possível discursividade visual.
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Historiadores da arte como Aby Warburg e Ernst Gombrich nos oferecem fartas sugestões sobre como o problema da representação pictórica poderia interessar ao universo da comunicação pela imagem: sabemos que a expressividade própria a pinturas de uma dada espécie é o resultado de operações internas ao discurso visual e que podem ser objeto de uma interrogação sistemática; isto posto, vale dizer que a compreensão dos modos pelos quais uma propriedade dos objetos da percepção (como a do movimento) é visualmente rendida na pintura – numa forma estável e única – não nos instrui apenas sobre os operadores do discurso expressional na arte, mas podem muito bem ser apropriadas à compreensão de como, por outro lado, percebemos fotografias de ação, tão comuns à cobertura fotojornalística de eventos de toda espécie (GOMBRICH, 1984). Partindo destas mesmas sugestões, queremos explorar a questão de um hipotético modelo de discursividade visual, oriunda da compreensão sobre os mecanismos da representação pictórica e suas eventuais repercussões sobre nosso modo de compreender fotografias: poderemos reconhecer aí os meios e modalidades próprias à construção do desejado efeito pelo qual a instantaneidade fotográfica se associa às modalidades discursivas da informação, especialmente quando identificamos nos motivos mais dinâmicos da representação um de seus elementos principais e mais frequentes. A capacidade da rendição fotográfica do movimento requer que a representação dos elementos capturados no campo visual seja capaz de nos restituir a um domínio partilhado da compreensão visual que sintetizaria a arte da figuração pictórica e o esquematismo da percepção visual: é no horizonte desta síntese que Gombrich formulará seu “princípio do olhar testemunhal”, próprio sobretudo à origem das narrações visuais na fase áurea da cultura artística da Antiguidade grega. Os operadores manifestos deste fenômeno (pelo qual a matéria da representação ascende à condição de um testemunho vicário) são os valores comunicacionais e expressivos que atribuímos a gestos, fisionomias, posturas corporais e aparência dos elementos da cena (o que é ilustrado pelo exame de inúmeros casos de motivos mais dinâmicos, na arte grega do século IV a.C.). Os pontos de contato mais cristalinos entre a poiésis dramática da pintura de ações e o registro testemunhal do fotojornalismo
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que pretendemos formular podem-se intuir nas observações de Gombrich sobre um painel pompeico do século I a.C., comemorativo à vitória do monarca macedônio Alexandre sobre seu adversário persa Dario (FIG. 1): Ninguém duvida que o artista e seu patrocinador quisessem celebrar o triunfo de Alexandre. Mas não é só da glória da vitória que o pintor nos faz participar: da tragédia da derrota também. Pode ser que o gesto de desespero do rei vencido derive daqueles símbolos de rendição incondicional que conhecemos das crônicas do Oriente antigo – mas num novo contexto, de testemunho visual, ele ganha outro sentido. Obriga-nos a ver a cena da carnificina, não apenas do ponto de vista dos vitoriosos, mas através dos olhos do homem que foge. Sentimos que ele olha para trás, atormentado (...). O audacioso escorço das figuras do primeiro plano, o persa caído, cujo rosto se reflete no seu escudo, tudo nos arrasta a tomar parte da tragédia. (GOMBRICH, 1995: 146).
Evitando divagações teóricas demais sobre estas questões, procuremos restituir o quadro desta análise àquilo que doravante designaremos como sendo o caráter testemunhal da fotografia: nos interessa examinar o marco mais empírico das relações que se estabelecem entre a ordem visual do fotojornalismo e seus imperativos de discursividade comunicacional. Nossa questão se refere assim aos modos nos quais as teorias da representação visual presumem na ideia de um testemunho ocular a dimensão semiosicamente determinada das formas visuais, combinando-a com a natureza mesma dos dispositivos técnicos da fotografia. 1. Procuramos estabelecer distância com respeito a dois aspectos principais da reflexão sobre a significação visual da fotografia: nossa crença nestas imagens dispensa considerações sobre o valor determinante das atitudes proposicionais do fotógrafo; do mesmo modo, não nos interessa o discurso sobre uma essencial indexicalidade da imagem fotográfica. Tudo isto dado, no que se pode afetar propriamente a ideia de que assim vendo fotografias, ainda possamos nelas reconhecer infundida uma ordem discursiva determinada, por exemplo, aquela que é própria à narração de um acontecimento? Nossa proposta é conceber a apreciação de uma fotografia
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Figura 1: Filoxênio de Erétria, “Batalha de Issus”, mosaico (entre 90-69 a.C.).
(quando a examinamos na mais anódina leitura de um jornal) a partir da estrutura mesma na qual reconhecemos os valores expressivos da comunicação não verbal, exemplificados em toda uma iconografia pictórica – inspirados pelas análises de Gombrich. Do nosso ponto de vista, aí estão os problemas fundamentais que nos impulsionam a explorar, de um ponto de vista metodológico, a questão dos imperativos discursivos da imagem fotojornalística, sendo por intermédio delas que fazemos a seguir uma análise da imagem seguinte (FIG. 2):
Figura 2: Ian Bradshaw, “The Twickenham Streaker” (1974).
De saída, concedemos que o caráter testemunhal da fotografia é aqui derivado da (o que não significa que seja fundado na) instantaneidade de sua manifestação originária: trata-se de um registro mecânico de um evento realmente havido e capturado em um momento preciso de todo um continuum espaço-temporal das ações, no modo como estas se oferecem ao dispositivo. Neste sentido, não nos convém supor que a percepção do instante em questão envolva forçosamente a artificialidade sugerida pelo forte sentido composicional que emerge desta imagem fotográfica específica. Estamos diante de um exemplo daquilo que Kendall Walton
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exprime como sendo a manifestação do sentido próprio do realismo fotográfico, a saber, o regime da “transparência” que dá o caráter mais específico de sua experiência (WALTON, 1984): neste contexto, quaisquer assunções sobre as condicionantes intencionais desta imagem nos afastariam daquilo que é próprio a sua gênese mesma, ou seja, o fato de que um dispositivo de visualização foi capaz de efetuar a rendição do mundo visual, transmitindo este valor de conexão factual com seu motivo para a percepção comum de suas formas visuais. Estamos portanto interditados a tomar em conta qualquer maneira de pensar um tal clichê, valorizando nele algo mais do que a mera coincidência entre o artifício e o acidente. Pois bem, lancemos um breve olhar sobre outras imagens oriundas do mesmo acontecimento, obtidas nas mesmas condições práticas da fotografia anterior (sendo em verdade pertencentes à mesma série visual que gerou o conhecido ícone de Bradshaw, disponíveis nas folhas de contato desta cobertura): nestes últimos parece exprimir-se um sentido bem outro da significação do instante fotográfico, naquilo que reconhecemos como sendo seu “valor de testemunho” (FIG. 3).
Figura 3: Ian Bradshaw, “The Twickenham Streaker” (1974) – folhas de contato.
O que faz a diferença entre estas quatro imagens? Podemos dizer que na fotografia mais conhecida de Bradshaw nota-se uma genérica qualidade dramática que é constitutiva de sua manifestação: isto quer dizer que a ação apreendida nesta imagem se deixa render em um ponto climático de seu desenvolvimento, sendo que seu sentido de composição (intencional ou não) reforça esta valorização da função temporalizadora da instantaneidade com a qual o acontecimento foi apreendido; seu efeito plástico é o de uma concentração física dos elementos representados, que simboliza esta relação da ação com uma temporalidade global do acontecimento.
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Quando comparadas a esta imagem, os outros instantâneos mostram-se menos impregnados desta dimensão restituinte de uma durée originária do evento, aspecto este que se impõe como marca da significação fotográfica. É precisamente nesta diferença aspectual entre as várias imagens de Bradshaw que finalmente instalamos nosso ponto de observação ao fenômeno no qual a fotografia pode conferir temporalidade a esta rendição instantânea dos acontecimentos. O modo pelo qual este instante adquire sua significação mais especial – relativamente ao tempo integral das ações – é um fenômeno que não pode ser abordado sem remissão aos evidentes aspectos narrativos (relativos à produção da intriga visual) e dramáticos (respectivamente ao contexto dinâmico das ações representadas): é esta síntese entre “render” e “narrar” que orienta a ordenação plástica dos aspectos que a imagem exibe de maneira mais saliente (conferem a ela a qualidade cinética que associamos a fotografias de ações). Ainda que sejam todos eles oriundos de um singular dispositivo de visualização, devemos avaliar com cuidado até que ponto as crenças que infundimos sobre as formas visuais daí derivadas são consequências de uma relação da percepção comum com as condições oferecidas ao olhar pelo próprio dispositivo fotográfico. Em termos, devemos nos interrogar sobre o que é mais determinante em nosso modo de lidar com a informação fotojornalística: a suposição sobre sua autenticidade ou a dimensão patêmica de sua manifestação. A primeira questão nos conduz ao problema do dispositivo e de seus poderes, mas se interrompe por aí, ao passo que a segunda pode acatar a singularidade tecnológica da origem fotográfica, mas avança para além destas considerações, quando avalia o regime afeccional e sensorial de suas imagens. Encontraremos esta mesma “qualidade temporal” da imagem de que falamos em todo um outro gênero de representações que nos dão a impressão de haver sido subtraídas a uma vasta linearidade das ações e da qual elas retêm apenas um momento mais significativo. Neste caso, não é de modo algum exclusivo à experiência da fotografia que um instante se manifeste como o modo mais adequado de nos oferecer a sensação de um acontecimento atualmente havido, mas vivido apenas vicariamente. Ainda que a fotografia nos pareça dotar de uma
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sistematização mais pregnante deste fenômeno de embargo do movimento, devemos considerar que a estrutura desta experiência é inerente a qualquer representação visual do tempo num instante. 2. Em um segmento de seus textos sobre os regimes da imagem cinematográfica – discursando sobre os fundamentos fotográficos da expressão fílmica – Raymond Bellour enfatiza as proximidades que se podem estipular entre a interrupção do movimento (característica de certas fases da modernidade fílmica) e o efeito de parada sobre este mesmo dinamismo das coisas – que é, por sua vez, mais próprio à fotografia. São duas operações de intervenção sobre a sucessividade: de um lado, aquela do filme e de seu regime sensório-motor; de outro, a da instantaneidade fotográfica que interrompe a viva animação dos motivos visuais. Em especial, Bellour destaca como aspecto comum a estas operações o fato de que ambas instauram sobre o movimento uma interrupção que, entretanto, não afeta decisivamente o status temporal que renasce constantemente no modo destas imagens se relacionarem com os regimes duracionais da percepção: no filme, por sua própria constituição enraizada na durée – para a qual a interrupção do movimento não corresponde à interdição da proliferação da própria imagem interrompida, na sua projeção; na fotografia, pelo fato de que o instante que caracteriza sua eleição enquanto imagem é aquele que consegue ainda comunicar-se com a sucessão dos eventos, no plano da relação poética que propõe com sua percepção possível. Podemos ficar tentados, com base nessas formulações, a adiantar mais diretamente a ideia do filme como fotografia. Isto é, apreendido pelo espectro da fotografia. A questão pode ser formulada do seguinte modo: o que acontece ao filme quando o instantâneo se torna ao mesmo tempo a pose e a pausa do filme? O privilégio singular do congelamento da imagem não seria o de fazer ressurgir, no movimento do filme (de determinados filmes) o fotográfico e o fotogramático? Ou, mais precisamente, o fotogramático como fotográfico? Isto é, não o fotograma arrancado do filme, ou que duplica utopicamente o que o filme narra, como queria Barthes; mas o fotograma que surge por meio da fotografia, a evidência ofuscante do fotográfico imerso no filme, impondo-se no sentido e ao longo de sua história. Isso nos leva a perguntar também: quais são os instantes que a interrupção do movimento supõe, a que tipos de instante ela se refere? (BELLOUR, 1997: 134-135).
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No mesmo espírito, avaliemos certos elementos da imagem de Bradshaw imaginando as funções neles preenchida para a realização desta significação temporalizada do instante. Se analisarmos cuidadosamente os elementos mais evidentes da expressão fotográfica do tempo das ações nesta imagem, identificaremos de início todo um sistema da gestualidade encarnado na expressividade das personagens: este mesmo sistema parece replicar certos motivos da atitude humana, oriundos por sua vez de motivos icônicos da representação visual canônica (na pintura, na escultura e no desenho). Considerando que o assunto desta imagem é um instante definido em face de uma ação (cujo desenrolar-se é visualmente significado através desta urgência imposta por sua rendição), a presença das personagens na fotografia implicará características de uma poiesis dramática: aí estão compreendidas sua organização relativa à sucessão dos eventos, a cenografia na qual suas partes constituintes serão capturadas e uma liturgia das relações possíveis entre aqueles presentes no quadro. Tudo isto invoca uma hipotética internalização de protocolos da pintura de ações – uma espécie de “arquivo inconsciente de imagens, gestos, posturas e enquadramentos” – que se deixa incrustar no olhar fotojornalístico, em geral. De certo modo, essa imagem de Bradshaw ecoa uma maneira de pensar a história da arte, para a qual os quadros devem mais a outros quadros do que à observação da realidade (WÖLFFLIN, 1989). Aprofundemos aqui o exame das relações entre instantaneidade e ação na fotografia, sob a forma do arresto promovido sobre a animação de seus motivos. É necessário que percorramos estes elementos do discurso plástico da fotografia, no propósito de recolher os dados mais próprios para a construção de uma estrutura elaborada da discursividade visual, no interior mesmo desse clichê de Bradshaw. Nossa atenção se deterá sobre os códigos gestuais das personagens da imagem, a partir dos quais as atitudes dos corpos e as expressões fisionômicas se definem como unidades de uma linguagem bastante específica. Ademais, gestos e fisionomia se prestam à função de operadores desta parada feita à animação do motivo visual (e da função semiótica que esta operação assume, na remissão dramatizada do instante capturado à durée mais integral das ações). Em vista destas condicionantes do olhar fotográfico, na
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sua relação com estruturas prévias da compreensão visual e em seus regimes específicos de discurso (sobretudo aqueles que se colocam em relativa independência quanto aos poderes do dispositivo técnico), notaremos uma relação entre o gesto indicador da personagem principal da fotografia de Bradshaw e a aparente leveza da conversação que ele mantém com o policial à sua direita (FIGS. 4 e 5).
Figuras 4. e 5: Ian Bradshaw, “The Twickenham Streaker” (1974) – detalhes
Esta questão do valor discursivo da gestualidade na representação visual deve ser explorada sob dois pontos de vista principais: tanto em sua dimensão retórica quanto em sua significação plástica. Vejamos em primeiro lugar as relações entre gestos e retórica: notamos nesta foto que a conversação das personagens está ligada a um aspecto convencionado do comportamento retórico, que é o da manifestação gestual que acompanha a interlocução verbal. O gesto da mão direita do homem nu é claramente redundante com o ato mesmo da conversação que ele mantém com o policial. No nível da manifestação do gesto (e até mesmo no modo instantâneo como esta figura se fixa na imagem fotográfica), podemos dizer que estes dados não são compreendidos na instância da leitura da imagem, a não ser em função de todo um sistema da expressão gestual: na economia concreta da significação da fotografia, o gesto da personagem central não se confunde com o ato de indicar o que quer que seja, mas significa um protocolo retórico daquele que demanda a fala ou efetivamente a pronuncia. Neste último caso, o gestual que o homem nu adota tem um sentido de reforço ou de ênfase do registro propriamente verbal do discurso retórico. Mas é necessário destacar que, neste ponto, não estamos tratando da economia na qual a imagem lida com este valor da
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expressão gestual, mas considerando o papel que este segmento manifesto tem em sua relação com a própria expressão verbal. A capacidade da imagem em contratar o sentido de tais relações é, por sua vez, derivada do fato de que nos comportamos da mesma maneira, quando tomamos em causa a operação do discurso pela fala, em situações as mais ordinárias possíveis, sendo estes os problemas de uma dramaturgia da existência social, para os quais já nos chamaram a atenção certos ramos da psicologia social. Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento possui os atributos que aparente possuir, que o papel que representa terá as consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. Concordando com isto, há o ponto de vista popular de que o indivíduo faz sua representação e dá seu espetáculo “para benefício de outros”. (GOFFMAN, 1999: 25).
Neste caso, é necessário identificar as maneiras nas quais este dado do comportamento discursivo é internalizado pelo ato fotográfico e demarcado no relevo mesmo da imagem fotográfica: isto se faz de modo a nos auxiliar a condução de uma compreensão que primeiramente lineariza e depois narrativiza esses significantes visuais (o gesto, as fisionomias e o encontro dos corpos), constituindo-os a partir desta vetorialização como um sintagma de leitura, que nos leva a reconhecer a conversação que eles mantêm como parte de uma ação narrativa). Isto nos coloca em face do segundo problema associado à compreensão destes gestos, a saber: o das relações entre sua mais vivaz manifestação e o caráter estrutural da rendição visual propiciada pelas formas pictóricas. A história da arte (e a este mesmo título, uma história das formas visuais impressas, como é o caso da fotografia de imprensa) é densamente povoada de exemplos que ilustram esta suplementação que atravessa as relações entre a mudez dos gestos e a loquacidade dos discursos: se pensamos este fenômeno sob a perspectiva de uma experiência concreta da discursividade extraverbal, uma maneira possível de enquadrar este aspecto da significação gestual é a de aí reconhecer uma dimensão de ato ritualizado; é este caráter previamente litúrgico de certos gestos que ofereceu à arte pictórica os materiais pelos quais foi possível selecionar a apresentação dinâmica dos motivos da representação visual, de maneira tal que a percepção
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pudesse com eles trabalhar, nos regimes mais próprios de sua compreensão semântica e fruição estética. Quando nos voltamos à imagem de Bradshaw, vemos que este gesto indicador da personagem principal está jogado num complexo de relações que recolhe este ato, em particular. Notamos de saída a troca de olhares que ele e o policial mantêm entre si, assim como a mão direita deste último, que (com o auxílio do capacete) cobre a nudez do primeiro: pois é exatamente o jogo mantido entre todos estes elementos simultaneamente presentes no instantâneo que se impõe ao olhar, como indicadores de uma discursividade à qual a imagem parece se submeter (uma vez que funciona nos circuitos semióticos da reportagem jornalística de acontecimentos). Pois é precisamente a economia textual desta configuração em que o gesto se rende na imagem que nos interessa avançar, a partir de agora. Tudo isto invoca uma outra maneira de abordar o gesto, na sua dimensão de convencionalidade: foi precisamente este aspecto, que motivou Gombrich (examinando uma gravura da artista plástica alemã Käthe Kollwitz, Nie Wieder Krieg, de 1924) a tematizar a representação dos gestos como cindida entre a ritualidade (própria aos símbolos) e a expressividade (típica dos sintomas); foi também esta noção mesma da arbitrariedade dos gestos na representação que nos legou decerto uma estrutura de base que nos permite compreender a maneira como os artistas captavam a comunicação entre os elementos vivos de uma composição, fossem estes humanos ou não (FIG. 6). O jovem no pôster exibe certamente o sintoma da emoção coletiva (...): o tônus elevado, a postura rígida, a cabeça erguida, o avanço forte do queixo, mesmo o cabelo ereto, todas as reações físicas que acompanham a emoção do entusiasmo das massas (...). Se retivermos o termo sintoma para estes signos visíveis, poderemos usar o termo símbolo para outros tipos de signos visíveis, o gesto da mão com dois dedos esticados, que convencionalmente acompanha o proferimento de uma promessa, na Europa central, um ritual, no sentido estrito do termo. Se o sintoma natural e o símbolo convencional podem ser vistos como os dois extremos de um espectro, poderíamos, creio eu, colocar o gesto que o jovem realiza com sua mão esquerda em algum ponto intermediário destes dois extremos. (GOMBRICH, 1982: 63-64).
Esta integração convencionada dos gestos às ações deve ser entretanto abordada para além da relação entre o gesto e a fala subentendida das personagens da imagem: se nos deslocarmos
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Figura 6: Käthe Kollwitz, “Nie Wieder Krieg” (1924).
Figuras 7. E 8: Ian Bradshaw, “The Twickenham Streaker” (1974) – detalhes
momentaneamente desta relação algo exclusiva que mantêm as duas personagens principais da imagem, voltando-nos agora para aquela simpática e angustiada figura que (ao fundo e à direita do campo) vem correndo na direção dos dois – sobretudo em mãos, para cobrir a nudez do “exibicionista” – veremos como este outro aspecto da arbitrariedade dos gestos e da atitude corporal se manifesta (FIGS. 7 e 8). A relação entre estes dois segmentos simultâneos da imagem instaura, de imediato (mas na ordem de uma estrutura anterior às condições de instantaneidade de rendição visual propiciadas pelo dispositivo), esta correlação linear pela qual se implica a manifesta nudez da personagem principal da imagem e o pudico afã do bonachão em recobri-la o quanto antes. Muito embora a apresentação destes segmentos seja manifestamente coesa na imagem, sua significação é, por outro lado, da ordem de uma distensão temporal ulterior ao próprio instante: atribuindo o sentido próprio desta unidade visual e de seus componentes, nela investimos uma potência de desdobramento das ações, plasticamente significado pela vetorialização linear com a qual se apresentam no plano visual (pela distribuição destes elementos no eixo horizontal da imagem). Pois é nesta assimilação da temporalidade à linearidade que se instaura na imagem o valor sintagmático pelo qual ela promove uma discursividade mais própria: o instantâneo fotográfico significa o tempo das ações pelo modo como deixa distribuírem-se no espaço do campo visual os elementos da consecução, apresentados dentro de certos princípios de sua organização. É também evidente, por outro lado, que o caráter mais efetivo dos desdobramentos prometidos por este arranjo instantâneo da imagem fotográfica não são garantidos por esta manifestação linear do instante: não temos assim razões para assumir que a personagem mais roliça vá, de fato, conseguir alcançar o homem nu, para cobri-lo; do mesmo modo, a conversação que verdadeiramente se dá entre o exibicionista e o policial decerto não coincide com aquilo que a imagem sugere como sendo uma mútua e algo prazerosa interação que se manifesta nos olhares e sorrisos que as principais dramatis personæ da imagem trocam entre si. Dadas todas estas disjunções e disparidades temporais, comportamentais, tópicas e referenciais da imagem (o fato de
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que seu tema, seus desdobramentos, o caráter das personagens e a própria realidade dos fatos não sejam garantidas pelo arranjo instantâneo com o qual seus elementos se apresentam), é preciso estipular o lugar no qual nosso exame sobre seus regimes de sentido se fixa. A ordem semiósica desta remissão do instante à temporalidade estão garantidos tanto na linearização significante de seus elementos plásticos quanto no caráter previamente determinado de certos esquemas da representação da ação em formas visuais. Quanto a isto, de resto, deve-se debitar estes aspectos que roubam do instantâneo seu quinhão de indexicalidade a uma certa ambivalência semântica que é trazida de arrasto com este modo no qual a instantaneidade fotográfica pode servir a um mythos: pois é muito frequente que encontremos em tais imagens da cobertura de várias ordens de acontecimentos este efeito pelo qual os sentidos da imagem se deslocam momentaneamente de uma coligação existencial mais específica com seus motivos; é por isto mesmo que podemos avaliar a significação desta imagem fotojornalística (conferindo a sua figura principal um aspecto ora crístico, ora estoico), numa relativa autonomia com respeito à efetiva cobertura sobre a prisão de um exibicionista, durante o intervalo de um jogo de rugby entre as seleções da Inglaterra e da França, realizado nos arredores de Londres, em um dado sábado do mês de fevereiro de 1974 .
Referências BELLOUR, Raymond. A Interrupção: o instante. In: Entre-Imagens: foto, cinema, vídeo (trad. Luciana A. Pena). Campinas: Papirus, 1997, pp. 126-155. GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana (trad. Maria Célia Santos Raposo). Petrópolis: Vozes, 1999. GOMBRICH, Ernest. The Image and the Eye: further studies in the psychology of pictorial representation. London: Phaidon, 1982. ______. Reflexões sobre a revolução grega. In: Arte e Ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica (trad. Raul Sá Barbosa). São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 123-155. WALTON, Kendall. Transparent Pictures: on the nature of photographic realism. Critical Inquiry, v. 11, n. 2, 1984, pp. 246-277. WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte (trad. João Azenha Jr.). São Paulo: Martins Fontes, 1989.
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Data do recebimento: 5 de setembro de 2011 Data da aceitação: 23 de dezembro de 2011
Paul Hansen
fotograma comentado
Por uma presença ética do fotógrafo monise nicodemos Mestranda em Cinema e Audiovisual pela Université Paris III (Sorbonne Nouvelle)
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Fabienne Cherisma tinha somente 15 anos quando foi morta pela polícia. A jovem haitiana caiu na poeira do subúrbio de Portau-Prince nos dias dramáticos que seguiram o terremoto do ano passado. A história de Fabienne, que parece ter sido baleada por um policial local no dia 19 de janeiro de 2010, após o roubo de 2 cadeiras de plástico e 3 quadros, provocou em seguida enorme polêmica sobre o papel dos fotógrafos em situações extremas. O debate retornou nos últimos meses, após a atribuição do prêmio sueco de melhor fotografia jornalística à Paul Hansen por uma das imagens desse drama. A foto de Hansen é extremamente estilizada. Graças a seu céu nublado em contraluz, esta parece-se mais com uma cena de sonho que com a barbárie da guerra, dispondo assim do poder que tem a fotografia de mudar as coisas. “Como imagem, uma coisa pode ser bela – ou terrificante, ou insuportável, ou ainda muito suportável –, o que ela não é na vida real” (SONTAG, 2003). No entanto, essa fotografia não é o único testemunho do ocorrido. O fotojornalista americano Nathan Weber imortalizou a cena do mesmo ponto de vista do sueco. Mas, depois de ter feito a sua foto ‘’ícone’’ do corpo da jovem, decidiu mudar o ângulo e produzir outra imagem, que conta um novo aspecto da história: o fora de campo do evento dramático, o contexto em torno da produção fotográfica. Weber incluiu no quadro os outros sete fotógrafos, alinhados lado a lado e que tentavam, como ele, fabricar o melhor clichê possível da morte. De todas as fotografias do cadáver de Fabienne que circulam na mídia, a de Weber me parece a mais interessante. Sua imagem, no momento em que ela quebra a ‘’quarta parede’’ da ilusão do fotojornalismo – a convenção arbitrária e falsa de que o nosso olhar é diretamente presente na cena – nos provoca um duplo choque. De fato, quando nos deparamos com uma fotografia publicada pela imprensa, esquecemos frequentemente a presença dos fotógrafos já que o jornalismo televisivo e impresso tenta convencer-nos de que a imagem que vemos é o ponto de vista de ninguém. Nós terminamos assim por negligenciar que mesmo se uma imagem fotográfica é um vestígio, ela nunca será o reflexo transparente do que se produziu. “O princípio do traço, por mais essencial que seja, marca somente um momento de todo o processo fotográfico. De fato, antes e depois desse instante de inscrição
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‘natural’ do mundo sobre a superfície sensível existe uma série de gestos ‘culturais’ e codificados, que dependem inteiramente das escolhas e das decisões humanas.” (DUBOIS, 1990). E são essas decisões e o comportamento dos fotógrafos em uma cena do gênero que nós podemos criticar. Weber e Hansen, como tantos outros profissionais da imagem, acreditam ter, devido às suas funções jornalísticas, o direito de estarem presentes na cena, fotografarem e filmarem qualquer situação – ainda que os personagens envolvidos já não sejam mais capazes de se oporem. Quando questionados sobre a moralidade de seus atos, eles se justificam pela fórmula de Brady: “O aparelho é o olho da história” – como se os fotógrafos tivessem o dever, em todas as circunstâncias, de tudo registrar para salvar a nossa memória. Em contrapartida, o público aceita transferir a esses profissionais o mandato da presença na cena do crime à condição de que, nas imagens produzidas, eles não estejam realmente lá. Naturalizamos assim o olhar de ninguém e terminamos por questionar cada vez menos as imagens e a presença do fotógrafo no campo, aceitando – como aponta Serge Daney no texto Montage obligé – o visual que nos impede de ver. O visual é sem contracampo, não o falta nada, ele é fechado, autossuficiente, assim como a imagem do espetáculo pornográfico que é somente a verificação estática do funcionamento dos órgãos e só dele. Quanto à imagem, essa tal imagem que nós gostamos tanto no cinema até a obscenidade, essa seria o contrário. A imagem sempre se dá no limiar de dois campos de forças, ela tem por vocação testemunhar uma certa autoridade. (DANEY, 1999).
Nesse mundo do visual, onde falta frequentemente tudo que é do domínio de ‘‘quem fala”, uma foto como a de Weber é de extrema relevância. Ela oferece uma face às imagens e questiona as agências para quem os fotojornalistas trabalham. A partir da contemplação dessa fotografia, nos recordamos que ‘’a atividade fotográfica permanece uma forma de participação. Ainda que o aparelho fotográfico seja um lugar de observação, existe no ato mais do que uma observação passiva’’ (SONTAG, 2004). Quando Nathan Weber insere como parte do evento a presença dos fotógrafos em ação, ele consequentemente se coloca dentro do quadro. Esse gênero de imagens, como explicita Alain Bergala em L’absence du photographe “alude ao fotógrafo enquanto
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sujeito travando uma luta com o ato fotográfico em si, sendo que todo ato verdadeiro empenha tanto os nossos pensamentos, como as nossas angústias e os desejos do momento”. O fotógrafo acaba realizando uma pequena revolução no uso das imagens de reportagem de guerra, ousando falar de si como sujeito no meio de outros profissionais, em uma imagem documentária de forte ressonância política e até histórica. Nesse processo, a câmera de Weber trabalha como um instrumento para olhar para dentro de si, como um verdadeiro bloco de notas. A sua imagem não ousa passar pela realidade, que é muitas vezes representada no fotojornalismo, de forma muito crua (os cadáveres e o sangue à mostra) ou muito estilizada (os céus azuis, a beleza estética da desordem e da pobreza) para poder ser um testemunho justo da brutalidade de uma guerra. A atividade autorreflexiva de Nathan releva-se como uma crítica sana ao trabalho dos fotógrafos. De certa forma, os profissionais que estão dentro do quadro, e por reflexo o próprio autor da imagem além dos fotojornalistas ausentes, são associados à figura do predador. Ao olhar a fotografia do americano, é forte a tentação de ver o wild pack dos fotógrafos como um branco faminto que abocanha a presa. A presença dos fotógrafos termina por dissolver toda a retórica do quadro, toda a comoção, deixando no ar a suspeita da exploração do sofrimento. Como na reminiscência proustiana, a imagem ausente da fotografia de Weber – ou seja, o regime das mídias, que vive da concorrência desenfreada entre as diversas agências, jornais e os próprios fotógrafos – surge de um ponto de encontro localizável no mundo real. Em Proust, nós encontramos a pequena madalena. No nosso caso, é o detalhe dos fotógrafos em ação que desencadeia a evocação da imagem ausente. No entanto, ao invés de abrir nesse artigo uma discussão sobre a figura da mídia, gostaria de manter o nosso foco no papel dos fotógrafos. A fotografia de Weber nos permite investigar se são mesmo mais interessantes as imagens onde ‘’a caça foi frutuosa’’, onde o encontro se deu, dando fim a angústia do fotógrafo, saturando a fotografia de uma conotação pictórica ou retórica e dando ao leitor a imagem plena de uma realidade pretendida, onde o próprio fotógrafo não tem espaço. Em um verdadeiro ato fotográfico em que os fotógrafos arriscam-se como sujeitos, não se trata somente de uma
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experiência puramente externa, há sempre uma exploração interna. Não podemos esquecer, como sublinha Bergala, que ‘’a fotografia coloca em jogo no ato fotográfico sua relação com o real (como um encontro perdido), com o imaginário (na sua identificação com aqueles que ele fotografa e com o seu próprio fantasma de domínio), e com o simbólico (uma memória, uma cultura, a relação com o ausente).’’ (BERGALA, 2006). Entretanto, esse texto não tem a intenção de dizer que as fotografias, que nunca poderão ser o espelho da realidade, não nos mostram nada sobre o mundo que observamos. Constatamos apenas que uma imagem sozinha não diz tudo, e principalmente que ela é a representante do ponto de vista de alguém, mesmo quando a opinião do autor é, de qualquer modo, mascarada. Como Didi-Huberman, no seu livro Images malgré tout, acredito que o nosso maior defeito diante de uma imagem é o de pedi-la demasiado (ou seja, toda a verdade) ou o de não questioná-la em nada (relegando-a à uma esfera de simulacro). As imagens devem ser vistas pelo que elas são, sempre com um olhar crítico, e sem nunca esquecer seu contexto de produção. Quanto à fotografia e ao documentário de guerra, não será pela exposição desenfreada do horror que nós conseguiremos compreender o escândalo, o desespero e a loucura de tal situação. Assim como Sontag, questiono se o choque que nos causam essas imagens não se torna, aos poucos, familiar. E mesmo que esse fenômeno não se confirme, há sempre a possibilidade de fugirmos dessas fotografias, de taparmos os olhos a cada vez que o afrontamento do discurso nos parece insuportável. Talvez por isso eu tenha acolhido com tanto entusiasmo a posição tomada por Nathan Weber. Certamente a sua foto do cadáver de Fabienne é muito chocante, tanto quanto são quase todas as imagens de guerra e catástrofes naturais, em grande parte por causa das exigências do mercado midiático em voga, e da sutileza necessária para encontrar a medida do que se deve ou não mostrar. Weber, ao inserir o contexto de produção da imagem no campo, parece desejar ampliar a discussão, propondo um debate sobre a presença do fotógrafo em cenas de tragédia. A nós, como leitores, fica o dever de prolongar o diálogo, de tirar os ensinamentos dessa imagem, e, se possível, propor uma presença dos fotógrafos mais humana e digna nas situações de calamidades.
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De fato, esse ensaio tinha, até aqui, a intenção de utilizar a fotografia de Weber para elaborar uma breve análise sobre a função e a posição dos fotógrafos em momentos extremos (discutindo principalmente a conduta de Weber e Hansen). Mas, depois de ter assistido ao vídeo sobre a cobertura da morte de Fabienne no site pessoal de Weber tornou-se impossível não fazer alusão a esse, mesmo se corremos o risco de situar o nosso discurso ‘’a presença ética do fotógrafo’’ na direção oposta daquela tomada pela nossa leitura da sua fotografia. Quando o fotógrafo americano fez esse vídeo, ele parece ter esquecido que “o pudor no documentário é um dado semiótico, percebido em termos de distância e ângulo de vista, já que filmando nós nos posicionamos em relação à gramática social de interlocução em curso na cena em questão. A realidade tem suas próprias restrições e suas regras locais de inteligibilidade, que são sociais. Uma vez que o diretor de documentários aceita estar presente, ele contrai uma dívida de respeito com os seus interlocutores.’’ (BRETON, 2006). No momento em que Nathan Weber dirige a sua câmera na direção do cadáver de Fabienne, ele não nos mostra esse pudor almejado por Breton; ao contrário, Weber filma tudo como se a morte da adolescente fosse um evento ficcional. O problema é que a reportagem televisiva e a ficção não têm os mesmos códigos; no documentário, na reportagem, no jornalismo, não é somente o que se mostra que faz sentido, mas sobretudo a maneira que olha aquele que mostra. Trata-se sempre de uma questão de ponto de vista, assim como de distância e de posição. Nathan, em seu vídeo, opta por não distanciar-se do sujeito. Ele parece se alegrar com cada gota de sangue que rola dos quadros (os mesmos que foram roubados) e que estão posicionados ao lado do cadáver. O fotógrafo acompanha (exageradamente) de perto os passos de um pai com a jovem filha morta nos braços, a histeria inconsolável da mãe e os gritos de desespero dos familiares e passantes. A sequência do vídeo ainda será seguida de imagens fixas com uma canção de forte conteúdo dramático. Ao assistir todo o vídeo é impossível não se chocar, mas não choramos a morte de Fabienne. A verdadeira Fabienne, nós não a conhecemos. Weber é somente um fotógrafo que cruza momentaneamente o destino da jovem, e esse vídeo é o mero resultado desse encontro oportunista. Nós choramos assim a transformação
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da Fabienne em objeto, uma imagem da indiferença governamental. Choramos com os seus parentes que não tiveram, no pior momento de suas vidas, o direito ao silêncio, de estar entre os íntimos. Quando Nathan Weber decidiu filmar e colocar na sua página pessoal o vídeo sobre o episódio Fabienne, ele entregou aos seus familiares a imagem (em movimento) eterna de um momento de intimidade que eles passarão uma vida inteira tentando esquecer. O fotógrafo americano poderia ter poupado a si mesmo e ao público dessa indelicadeza. Esse vídeo exige o retorno à própria fotografia de Weber, ele nos lembra a figura do fotógrafo-predador antes imortalizada no seu campo fotográfico. É importante repensar a presença dos fotógrafos nas situações de catástrofes, os fotojornalistas não podem passear nas zonas de crise como o enésimo paparazzo no tapete vermelho. É uma pena que, dessa vez, Weber não nos ofereça nenhuma esperança.
Referências BERGALA, Alain; DEPARDON, Raymond. New York. Cahiers du cinéma, Paris, 2006. BRETON, Stéphane. Télévision. Paris: Hachette Littératures, 2006. BROOK, Pete. Brouhaha in Sweden following Award to Paul Hansen for his Image of Fabienne Cherisma. Prison Photography, 23 mar. 2011. Disponível em: http:// prisonphotography.wordpress.com/2011/03/23/brouhaha-in-swedenfollowing-award-to-paul-hansen-for-his-image-of-fabienne-cherisma/. Acesso em: 05 dez. 2012. ______. Photographing Fabienne: Part Seven – Interview with Paul Hansen. Prison Photograph, 16 mar. 2010. Disponível em: http://prisonphotography. wordpress.com/2010/03/16/photographing-fabienne-part-seven-interviewwith-paul-hansen/. Acesso em: 05 dez. 2012. ______. Photographing Fabienne: Part Nine – Interview with Nathan Weber. Prison Photograph, 18 mar. 2010. Disponível em: http://prisonphotography. wordpress.com/2010/03/18/photographing-fabienne-part-nine-interviewwith-nathan-weber/. Acesso em: 05 dez. 2012. DANEY, Serge. Devant la recrudescence des vols de sacs à main. Paris: Aléas, 1999. DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les éditions de minuit, 2003. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus Editora, 1990. NBW Photo – content collection. Desenvolvido por Nathan Weber, s/d. Apresenta fotografias e vídeo de autoria de Nathan Weber. Disponível em: http://www. nbwphoto.com/. Acesso em: 05 dez. 2012.
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Paul Hansen Photojournalist. Desenvolvido por Paul Hansen, s/d. Apresenta fotografias de autoria do fotojornalista Paul Hansen. Disponível em: http:// www.paulhansen.se/. Acesso em: 05 dez. 2012. SMARGIASI, Michele. Il reporter dentro l’inquadratura. Blog Fotocrazia, 09 abr. 2011. Disponível em: http://smargiassi-michele.blogautore.repubblica. it/2011/04/09/il-reporter-dentro-linquadratura/. Acesso em: 05 dez. 2012. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das letras, 2004. ______. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das letras, 2003.
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Nathan Weber
Data do recebimento: 7 de setembro de 2011 Data da aceitação: 23 de dezembro de 2011
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(IMAGEM)
Lucas Martins Fernandes
Formação do Estado, tecnologia visual e espectatorialidade: visões da modernidade no Brasil e na Argentina jens andermann Professor titular de Estudos Latino-Americanos e Luso-Brasileiros na Universidade de Zurique, Suíça
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Resumo: Como podemos conceber a relação entre tecnologias da imagem e formações de poder político, sem reduzir as primeiras a meros efeitos de superestrutura de uma ideologia preexistente ou deduzir a segunda da determinante funcional inerente aos dispositivos técnicos? Neste artigo, retorno à noção do estado, como forma visual que propus em um trabalho anterior, argumentando que com vista a entender a articulação entre política e visualidade na modernidade temos de prestar atenção às performances de mostrar e ver que fazem a mediação entre espetáculo e espectatoriedade. Eu exploro estas questões por meio de dois “estudos de caso” bastante distintos: as imagens de Juan Gutiérrez dos rituais do estado brasileiro em meados dos anos 1890 e o conto “O Aleph”, de Jorge Luís Borges, de 1949. Onde a série de Gutiérrez prenuncia o cinema e seus modos de mobilizar semelhantemente atores e espectadores, o conto de Borges, retrospectivamente, encena a transição da visão fotográfica para a cinematográfica. Ao ler os dois juntos, ou um contra o outro, nos damos conta da dimensão de transitoriedade que mina a aparente solidez e atemporalidade com as quais os regimes escópicos nos prometem acessar o real. Palavras-chave: Performatividade. Regimes escópicos. Espetáculo. Cultura visual.
Abstract: How can we conceive of the relation between technologies of imagemaking and the formations of political power, without reducing the former to merely superstructural effects of a pre-existing ideology or deducing the latter from the functional determination inherent in technical apparatuses? In this article, I revisit the notion of the state as a visual form I proposed in an earlier work, arguing that in order to understand the articulation between politics and visuality in modernity we need to pay attention to the performance of showing and seeing that mediates between the spectacle and spectatorship. I take these questions through two rather different “case studies”: photographer Juan Gutiérrez’s images of Brazilian state rituals in mid-1890s and Jorge Luis Borges’s short story “The Aleph” of 1949. Whereas Gutiérrez photographic series announces the cinema and its ways of mobilizing actors and spectators alike, Borges’s story retrospectively enacts the transition from photographic to cinematic seeing. Reading the two together, or against one another, then, allows us to see the dimension of transience undercutting the apparent solidity and timeless with which scopic regimes promise us access the real. Keywords: Performativity. Scopic regimes. Spectacle. Visual culture.
Résumé: Comment pouvons-nous concevoir la relation entre les technologies de production de l'image et les compositions de pouvoir politique sans réduire les premières aux effets de superstructure d'une idéologie préexistante ou déduire les dernières de la détermination fonctionnelle inhérente à des dispositifs techniques? Dans le présent article, je reviens à la notion d’État comme une forme visuelle que j'ai proposé dans un travail antérieur, en soutenant que dans le but de comprendre l'articulation entre la politique et la visualité dans la modernité, nous avons besoin de faire attention à la performance de montrer et de voir que fait la médiation entre le spectacle et le spectateur. Je trait de ces questions par deux différentes «études de cas»: les images du photographe Juan Gutiérrez de l'État brésilien en milieu des années 1890 et le nouvelle de Jorge Luis Borges «L'Aleph» de 1949. Tandis que les séries photographiques de Gutiérrez annoncent le cinema et ses moyens de mobiliser les acteurs ainsi que les spectateurs, l'histoire de Borges met en scène rétrospectivement la transition de la vue photographique à la vue cinématographique. Alors la lecture des deux ensemble, ou de l'un contre l'autre, nous permet de voir la dimension de la fugacité que mine la solidité aparente et l’atemporalité avec lesquelles les régimes scopiques nous promettent l'accès au réel. Mots-clés: Performativité. Régimes scopiques. Spectacle. Culture visuelle.
Como as fotografias pensam o político? E como a política e o estado moderno acomodam-se a um modo de captura visual que é – ou tem sido até bem recentemente – peculiar à câmera e à sua manufatura da instantaneidade, da imobilidade e distanciamento visual? Desde a primeira Guerra do Golfo, e paralelamente à ascensão e refinamento das tecnologias digitais, os debates no âmbito dos estudos fotográficos e cinematográficos acerca da crise da indexicalidade (físico-química) e suas consequências para o status e os usos futuros da memória fotográfica da modernidade tenderam a relacionar este processo ao fenômeno mais amplo do desaparecimento da sociedade disciplinar e de suas tecnologias do sujeito, agora presumidamente suplantadas pela sociedade de controle deleuziana e seu modo de difundir imagens e tecnologias de vigilância através de redes globalizadas. Ao mesmo tempo, no entanto, a digitalização e a difusão ao vivo de imagens que ainda são fotográficas e cinematográficas (apenas deslocando o índice para um novo arranjo eletro-numérico), reabriu também a discussão para os tipos de performance diante e atrás do visor, da tela ou do impresso, que cada tecnologia particular da imagem solicita de seus usuários e como teriam moldado as próprias formas que o político assumiu na modernidade. Ariella Azoulay, por exemplo, argumentou que a fotografia esteve crucialmente envolvida tanto no disciplinamento e arquivamento do campo visual quanto na subversão crítica das suas fronteiras e da suposta coerência pan-óptica das suas práticas arquivísticas (AZOULAY, 2001: 97). Ao mesmo tempo, ela insiste que esta apresentação do campo visual (que muito da teoria fotográfica, de Bazin a Barthes, notoriamente imiscuiu com o próprio real) provém de um apagamento original de acontecimentos visuais que são então relegados ao espaço do não-visto: não dos corpos materiais (muitos dos quais, Benjamin assinalou, a câmera tornou perceptíveis pela primeira vez), mas dos modos prévios de
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Juan Gutiérrez, Arco Triunfal, 1894 (albúmen, 21 x 27 cm) Cortesia George Ermakoff Arquivo de Imagens, Rio de Janeiro.
ver e construir as coisas como objetos. Este ato de apagamento, sustenta, pode tanto ser opressivo (sempre que pretende apagar até mesmos os vestígios do modo de ver que desaloja) quanto assumir uma forma crítica, expondo a falsa pretensão de uma imagem anterior à exclusividade opressiva e, por isso mesmo, apontando para as suas próprias limitações intrínsecas (2001: 94). A imagem mostrada no início deste artigo exemplifica esta relação crítica que a fotografia estabelece com outro tipo de encenação do político, que ela tanto registra como apaga. Não por acaso, também é uma imagem relacionada com o início de uma forma moderna de estado – neste caso, a república brasileira, cuja fundação, cinco anos antes, é comemorada por um desfile militar que esta fotografia retrata. A parada militar tanto confirmava como reencenava este momento de transição na passagem das tropas pelo arco do triunfo, inscrito com a data fundacional e a da sua comemoração no presente (15 de novembro de 1889 e 1894, respectivamente). Ao mesmo tempo, entretanto, como mostrarei detalhadamente abaixo, a parada militar em marcha ordeira remove da cena pública quaisquer referências sobre a localização tropical e a uma cultura híbrida e popular que a heráldica e a teatralidade da monarquia brasileira haviam tentado incorporar em seu arsenal visual e performático. A fotografia de Juan Gutiérrez torna este ato de apagamento performativo visível reintroduzindo no seu espaço visual um ato de performance não encenada, a cargo dos soldados no primeiro plano, flagrados ainda em meio aos preparativos para iniciar seu desfile. Meu argumento, portanto, é que nesta e em outras imagens de Gutiérrez das comemorações públicas no Brasil emerge uma dimensão de transitoriedade e contingência que contraria o papel que presumidamente se espera da fotografia que é o de duplicar e reforçar a performance monumental do triunfo republicano. Mas, ao tornar visíveis os próprios limites da ordem republicana ao encenar o “povo”, em nome de quem ela tomou o poder, a fotografia também nos permite refletir sobre seus próprios limites como instrumento de mobilização política. Na segunda parte do artigo, volto-me para um texto chave da literatura latino-americana moderna, o conto “O Aleph”, de Jorge Luis Borges, escrito durante o governo de Juan Domingos Perón (que Borges detestava), no qual, acredito, podemos ler, em um nível, uma meditação a respeito dos limites de um
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modo particular, monumental e estático, de abranger o político, associado a dispositivos visuais do século XIX como o mapa e o museu. O Aleph ainda é uma câmera, como vou mostrar (e uma câmera impossivelmente poderosa), mas o modo de ver que ela solicita não é mais fotográfico, mas cinematográfico, ao mesmo tempo em que prevê o seu próprio desaparecimento (entre outras coisas, ao apontar a possibilidade de uma experiência da totalidade que não é mais de natureza visual, mas auditiva). Eu termino com uma breve discussão do modo como a mudança tecnológica e seu impacto no espetáculo e na performance do político está ela própria emaranhada nas dinâmicas do capital, de um modo que não é possível deduzir transparentemente (como os estudos de cinema dos anos 1970 esperavam demonstrar) dos regimes de produção para os dispositivos ideológicos. Permitam-me brevemente enquadrar esta discussão no contexto de uma articulação emergente entre visualidade e poder na modernidade latino-americana na segunda metade do século XIX. Em outra oportunidade, abordei os arranjos especulares os quais, na Argentina e no Brasil, engendraram novas representações persuasivas e monumentais do tempo como teleologia histórica e do espaço como território natural. Manifestas em estantes de museus, monumentos urbanos e mapas geográficos, estas representações forjaram um modo de ver que confere à forma-estado uma presença ao mesmo tempo palpável (suas fundações heroicas, seus marcos naturais, suas riquezas vegetais e minerais, são postas ao alcance visual do observador) e uma ausência enigmática como causa e fim da realidade visível, a qual, tanto como o observador, está sujeita ao ser transcendental do estado. Desta copresença paradoxal do estado em todo tipo de imagem e, simultaneamente, sua ausência como um invisível que subscreve sua coesão e sentido, resulta uma forma particularmente anamórfica de ver. Nela, o olhar é convocado, simultaneamente, a reconhecer o real como externo, quantificável e objetivamente “dado” e a mergulhar no campo visual, numa relação cinética e performativa que cancelava a distância perspectiva e a imobilidade. O itinerário da visita ao museu e o da expedição geográfica ou militar que explorava, mapeava e “conquistava” territórios nacionais, são exemplos desta “dupla visão” na qual, eu argumentei, o moderno estadonação configurou-se como “forma visual: como um modo de olhar
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e também como objeto que comanda a observação..., relação que une um certo olhar a um artefato em particular” (ANDERMANN, 2007: 2). A ordem moderna que estas visualizações estavam subscrevendo era, de fato, uma formação transitória na qual as demandas do capital (tanto local como estrangeiro), assim como as lutas por autonomia de múltiplos agentes (escravos libertos, camponeses, populações indígenas, e, mesmo, oligarquias regionais) reivindicavam uma implementação mais inclusiva da forma do estado-nação e procuravam evitar, igualmente, a plena constituição da cidadania popular. Portanto, a visualidade construída através de uma variedade de ambientes institucionais convocava o olhar dos cidadãos espectadores, mas de modo a testemunharem e confirmarem a ausência do povo das imagens da história e a da natureza, apresentadas como externamente “dados”: como uma dádiva do estado ofertada ao povo-nação que, em um futuro não muito distante, emergiria destas fundações assentadas, e vigiadas, pelo estado. Os historiadores das ideias já mostraram como esta suposta “evolução progressiva” de cidadania foi calçada em noções científicas de raça e gênero – sendo confiado ao estado pilotar o barco nacional, evitando as ameaças da “degeneração” e rumando a uma gradual “melhora” (através da absorção e eliminação do “elemento inferior” da raça, como nas ideologias brasileiras do “branqueamento”) (BERTONI, 2001; CHALHOUB, 1996; SALESSI, 2000; SCHWARCZ, 1993). Entretanto, seria um erro pensar que os dispositivos visuais do estado eram meramente instrumentos concebidos pela “elite” de modo a submeter a população, transformando-a em uma audiência dócil e passiva. As “elites” dificilmente eram os produtores de mostruários dos museus, álbuns fotográficos, ou mapas geográficos, e mesmo se – o que seria de se esperar em sociedade onde a riqueza permanecia fortemente concentrada – os escalões superiores da sociedade fossem os principais clientes e financiadores de tais representações visuais e materiais, eles dificilmente exerciam qualquer pressão aberta sobre sua forma ou conteúdo. Claro, fotógrafos de estúdio, institutos geográficos e museus, dependiam do patrocínio das elites – como tantos outros empreendimentos em uma sociedade ainda essencialmente oligárquica, como demonstrava também a própria literatura – mas o seu próprio sucesso em obter apoio parece sugerir, mais que
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qualquer coisa, que os membros da elite estavam tanto sob o jugo dos dispositivos quanto o “populacho”, se não mais.1 De fato, vou sustentar que a elite, mais do que o “populacho” era a principal destinatária deste tipo de exibição visual, este último sendo servido por outras formas de espetáculo e performance (feiras, procissões, carnaval) – não necessariamente menos “modernas”, mas menos exclusivamente dependentes dos recursos da ciência e da tecnologia.2 Portanto, também, qualquer distinção clara entre mise-enscène e espectatorialidade se frustra, tendo a visualidade que ser concebida como um ato performativo, no qual o olhar nunca é meramente um observador passivo de um artefato ou imagem autossuficientes, plenamente constituídos. De fato, só na resposta performativa, encarnada, dos observadores históricos concretos, as imagens e os mostruários visuais exibidos nos museus, atlas e monumentos se tornam formas visuais completamente realizadas. Mais do que confinar a análise ao “arquivo de materiais supostamente duráveis”, Diana Taylor (2003: 19-20) sugeriu, devemos prestar atenção no “assim-chamado repertório efêmero da prática/conhecimento encarnados”, que excede o dispositivo arquivístico, na medida em que a “performance viva nunca pode ser capturada ou transmitida apenas por meio do arquivo”. O problema aqui é, me parece, que o paradigma de Taylor de “arquivo X repertório” permanece ele próprio baseado na oposição entre escrita e gesto, derivada em larga medida da relação teatral entre texto e encenação, que deixa intacta a redução da espectatorialidade a um testemunho contemplativo e passivo. O que pretendo sugerir aqui é que este testemunhar é uma parte ativa da performance, parte que não apenas confirma a validade posterior “depois do fato”, mas também a precede na forma de uma “expectativa” ativa. Uma forma visual, portanto, é a inter-relação de espetáculo, performance e espectatorialidade com evento espaço-temporal, que gera uma impressão de durabilidade como seu efeito estrutural, quando na realidade é altamente contingente e espúria. Performando o olhar Em 1894, a Companhia Fotográfica Brasileira, criada pelo imigrante hispano-caribenho Juan Gutiérrez em 1890, publicou, sob subscrição, o álbum Recordação das Festas Nacionais,
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1. O trabalho de Alejandro Losada tem sido chave para entender a passagem de uma dependência das formas culturais do patrocínio oligárquico para o desenvolvimento de uma autonomia incompleta, e por vezes crítica, na América latina. 2. Sobre as culturas de lazer popular e das elites e sua relação como as tecnologias visuais na Argentina do século XIX, ver o excelente ensaio de Ana Maria Telesca e Marta Dujovne (1987).
3. José Murilo de Carvalho argumentou que, diferentemente de um “conflito popular”, aos moldes da revolução francesa um século antes (cuja retórica e iconografia tentou-se subsequentemente apropriar), a destituição militar do Imperador D. Pedro II e de sua corte foi na realidade um ato isolado de uma classe militar insatisfeita com escasso apoio popular – em várias partes do Brasil, multidões de setores populares teriam, ao contrário, saído em apoio ao monarca deposto nos anos seguintes, como na revolta de 1904, contra a vacinação obrigatória. Ver Carvalho, 1987.
registrando as celebrações do quinto adversário do regime republicano. No ano anterior, o próprio Gutiérrez havia produzido uma série de imagens documentando o intenso bombardeio sofrido pela cidade do Rio quando a marinha monarquista, comandada pelo Almirante Custódio de Melo, levantou armas contra o governo republicano do Marechal Floriano Peixoto. Como fotógrafo “engajado” junto ao finalmente vitorioso exército, que havia encomendado seu trabalho para fins propagandísticos e provavelmente também por razões legais, as imagens do conflito produzidas por Gutiérrez observam cuidadosamente os limites estabelecidos pelas fotografias da Guerra da Criméia por Roger Fenton, uma década antes, focando nos danos materiais infligidos a prédios e armamentos, mais do que em corpos de mortos e feridos. Efetivamente inaugurando a prática do fotojornalismo no país, algumas das imagens de Gutiérrez são publicadas no semanário O Álbum, revista ilustrada dirigida pelo escritor Arthur Azevedo em que o próprio Gutiérrez era responsável por produzir e adquirir material fotográfico. A fotografia que aparece no início deste artigo também surge em destaque nas páginas de O Álbum. Seu assunto imediato, marcado pelas duas diagonais das fachadas convergindo para uma cruz axial atrás do arco triunfal, e, portanto, escoltando o nosso olhar até este, é a própria cerimônia, que aqui se encontra em seu clímax ritual e simbólico, o momento em que os soldados em marcha atravessam o arco onde estão inscritas a data fundacional e seu aniversário no presente. Portanto, o arco – na realidade, uma estrutura temporária de madeira, gesso e tela, que foi derrubado depois do evento – liga simbolicamente o presente ao passado, assim como as datas gravadas acima de cada uma das colunas, cuja sequência da esquerda para a direita conota o tempo histórico como linear e progressivo, semelhante aos atos de ler e escrever. Os pelotões militares ordeiramente marchando através do arco “re-presentam” alegoricamente o momento pretérito da “fundação heroica” (o golpe militar de 1889)3 no presente, assim como confirmando seu caráter fundacional, o arco encarna no espaço a passagem temporal do passado monárquico ao presente republicano. Este, então, é o momento do clímax do ritual capturado pela câmera de Gutiérrez, mas ele é contraposto aqui a um outro modo – profano – de instantaneidade: este do segundo pelotão de soldados, entrando pela parte inferior direita do quadro, que
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provavelmente se prepara para marchar, estando ainda fora de formação. O seu movimento, ainda desordenado, invade o espaço do pelotão que marcha, chegando a encobrir sua ala direita. Ao mesmo tempo, sua diagonal avança cortando a das calçadas e fachadas, apontando, de fato, para um centro diferente, alternativo, da imagem: o soldado que ajusta suas botas no meio da rua, justamente abaixo da linha dos que estão atravessando o arco. O segundo grupo de soldados é crucial aqui, uma vez que torna a fotografia de Gutiérrez algo mais do que simplesmente um documento visual do desfile de aniversário. Sem ele, a fotografia teria apenas reproduzido a rígida estrutura do ritual político, reforçando-o inclusive, ao conferir uma durabilidade ilusória à sua efêmera arquitetura, ao cercá-lo de prédios no instante em que era observado. Com seus gestos e poses casuais, os soldados em primeiro plano contrapõem-se a essa tendência reificadora, inscrevendo na temporalidade da cerimônia um outro tempo histórico: não o da historicidade monumental da parada, mas o tempo vivido, contingente, da prática social. Na sua cuidadosa composição de planos e pela posição central ocupada pelo soldado que se arruma, a relação entre estes dois grupos de militares e estas duas temporalidades dificilmente corresponde à oposição barthesiana (1980: 48-9) entre studium e punctum (que se poderia buscar, talvez, no pedestre de terno branco que se afasta da cena na calçada esquerda, aparentemente sem dar maior atenção ao evento). Em termos formais, os soldados do primeiro plano introduzem um eixo distinto de orientação visual que se contrapõe ao movimento visual em direção ao arco central e sua inscrição (da direita para esquerda), levando o nosso olhar a até a massa de espectadores à esquerda do pelotão em marcha, cuja presença é indicada por duas mulheres vestidas de branco, destacadas pela luz do sol. Isto é, por meio da introdução de um movimento de contraposição, a performance central do pelotão em marcha passa a ser emoldurada por dois espaços que permitem que ela se torne um acontecimento: a coxia e a galeria. Ao ocorrer entre os espaços-tempos do ensaio e da espectatorialidade, a performance ritual do estado é portanto reconfigurada como um evento, um aqui e agora. Longe de ser uma crítica ou subversão da lógica ritual do espetáculo, o que faz a fotografia de Gutiérrez é remetê-lo ao nível de um ato histórico contingente, descobrindo a resiliência,
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Juan Gutiérrez, Pavilhão no the Campo de Aclamação, Rio de Janeiro, 1894 (albúmen, 21x 27cm). Cortesia George Ermakoff Arquivo de Imagens, Rio de Janeiro.
mas também a fragilidade da causa republicana que ela apoia. A fotografia, portanto, re-reconhece a instantaneidade que ela desdenha em outro lugar (o arco triunfal), contrapondo à figuração alegórica da história, este modo propriamente moderno de se alcançar a universalidade através da intensidade fugidia de um momento capturado. A imagem icônica de Robert Doisneau, na Paris recém-libertada, de um soldado e uma enfermeira que se beijam, nos sugere algo similar. Mas isto também significa que a fotografia (mesmo aquela “a favor”) introduz uma temporalidade que difere fundamentalmente desta do espetáculo. A defasagem entre estas duas abre, de fato, uma “crise da história” à qual só o advento do cinema colocará novamente em cheque. Em outra imagem do álbum, Gutiérrez registra as comemorações por ocasião de uma condecoração pública de soldados que se destacaram a serviço da República (Fig. 2). O que me interessa aqui é o modo como a fotografia de Gutiérrez, novamente, tanto sanciona como suspende a lógica ritual do evento encenado. Uma vez mais, o centro da imagem é ocupado por uma construção efêmera – um pavilhão temporário, provavelmente o lugar desde onde as autoridades militares e os soldados homenageados por seus serviços testemunhavam sua “aclamação” – e o espaço circular em torno, por uma multidão de espectadores. A imagem é tomada em contre-plongée de uma posição elevada e atrás do esquadrão de cavalaria prestes a aproximarse do monumento através do caminho que foi aberto para eles por guardas montados que podemos ver a meia distância. Nosso olhar está portanto “atrás” e “à frente” do grupo que está em vias de fazer sua entrada, retendo-o a caminho do pavilhão e, ao mesmo tempo, desejando que prossiga em direção a ele. Em outras palavras, a composição da fotografia leva nosso olhar a performar uma atitude de ativa expectativa da qual a massa de espectadores está simultaneamente tomada, os mais próximos dentre estes, olhando para os soldados montados enquanto eles (nós) nos movemos em direção a eles.
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A fotografia de Gutiérrez antecipa – e isto é verdade para toda a série de ‘retratos comemorativos’ – no âmbito do próprio registro fotográfico, um modo de olhar (de observar, incorporando e contendo o movimento) que só o aparelho cinemático poderá plenamente realizar. A sequência de plano e contra-plano, por meio da qual o cinema logo aprenderá a codificar a produção e a circulação do afeto, em uma relação triádica entre antagonismo ou atração, na tela, e espectatorialidade, que reproduz e reconduz a pirâmide de luz do projetor para a tela, também é figurada aqui na organização espacial da imagem, no modo como compele o nosso olhar, enquanto ele se move sobre a superfície da imagem, a assumir os diferentes pontos de vista que existem nela. Há pelo menos três destes: o olhar “conduzido” para dentro do espaço visual da foto, junto com o nosso, pelo esquadrão de cavalaria que entra pela direita baixa, movendo-se em direção ao pavilhão central; um olhar que é quase que imediatamente “interrompido” e remetido a si mesmo quando se encontra com aquele dos espectadores que lhe abrem espaço. A constelação dos dois cavaleiros mais abaixo, abrindo caminho para aqueles que estão prestes a entrar na fotografia, reproduz e portanto enfatiza esta estrutura de olhares cruzados, o mais próximo a nós voltando-se para a o pavilhão, e portanto dirigindo nosso olhar a ele, somente para colidi-lo com este seu companheiro que literalmente nos obstrui o progresso. Finalmente, há o próprio pavilhão, cujos ocupantes são pouco visíveis para nós, mas que supomos ser capazes de apreender todo o espetáculo que se desdobra em torno a partir de sua plataforma elevada – tal como nós, graças ao trabalho de Gutiérrez! O pavilhão, em outras palavras, é figurado tanto como um dispositivo visual quanto como objeto da visão, e o “caminho” que leva até ele também descreve, em outra reversão de direção, a pirâmide visual que se estende a partir dos olhos de seus ocupantes. Ele é, poderíamos dizer com uma referência meio irônica ao raio de luz que o perfura vindo da direita (ou tratar-seia de fato de uma bandeira flanando no vento?), uma câmara de visão – uma câmera – que projeta o olhar de Gutiérrez e o nosso de volta contra nós mesmos. Essa fotografia não é, portanto, apenas sobre espectatorialidade como um fato externo (a visão se tornando um objeto visual de próprio direito), mas sobre a expectativa como um
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Juan Gutiérrez, Estátua do General Osório antes de ser descerrada, 1894 (albúmen, 21 x 27 cm). Cortesia George Ermakoff Arquivo de Imagens, Rio de Janeiro.
momento de mútua observação, de auto-observação e exposição, entre espectadores-performadores. Sobretudo, é também uma imagem do olhar fotográfico como um modo de espectatorialidade já inscrito neste espetáculo de olhares testemunhando um ao outro. Em muitos sentidos, a indecidibilidade desta imagem a respeito de quem está atuando para quem (que espectatorialidade serve à performance do outro) deve-se à impressão que é a própria câmera que está no ponto de convergência dos olhares da massa, como se ela fosse o verdadeiro espetáculo que a reuniu para assistir. De fato, a própria fotografia está sendo “reconhecida” como um modo de captura no qual o evento que se desenvolve diante dela abriu espaço. Se a fotografia de Gutiérrez permite que o nosso olhar apreenda o espetáculo no seu próprio desdobramento – ao percorrermos os diversos pontos de vista inscritos nele – isto decorre de que o próprio ritual é organizado em uma sequência de poses instantâneas para a captura visual de uma “câmera”: aquela no seu centro, mas também aquele que se projeta nele desde fora, carregando o nosso olhar para dentro do quadro. Talvez, mais do que qualquer outra imagem da série, a que retrata o desvelamento do monumento ao general Osório, comandante das tropas brasileiras durante a Guerra do Paraguai (cujos restos foram enterrados sob o monumento), prenuncia este modo já fotográfico de espetáculo público e espectatorialidade em fins do século XIX, “no limiar do cinema” (figura 3). Em outro momento, já abordei as implicações políticas e dramatúrgicas desta fotografia – a reocupação monumental do espaço público pela República, dissolvendo o seu passado monárquico – assim como comentei a relação autorreferencial entre a caixa preta no centro da imagem (Osório ainda “velado”) e o processo fotográfico (ANDERMANN, 2007: 2-6). De fato, podemos ser tentados a dizer que o “desvelamento monumental”, como na inauguração pública da estátua de Osório, era o do próprio estado, em seu modo já fotográfico de não tanto inscreverse na imagem, mas de montar o real como imagem, transformando
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todos em testemunhas – como espectador e performador – da sua “revelação”. A “monumentalidade fotográfica”, entretanto, foi também uma forma transicional crítica, interposta entre aquela das festas populares de rua e o cinema – dito de outro modo, entre o estado oligárquico e o estado nacional-popular. Historiadores da transição do Império para a República no Brasil chamaram a atenção para o modo como artistas e intelectuais filiados à causa republicana tentaram refazer a iconografia nacional depois de 1889, criando uma martirologia e um alegorismo para o estado republicano nascente, que era apresentado aos cidadãos na forma de monumentos, pinturas, livros de história, e assim por diante (CARVALHO, 1990). As “Festas Nacionais” fotografadas por Gutiérrez eram parte deste “processo ritual”, desta produção de uma nova ordem simbólica na qual o “Brasil novo” ostensivamente purgava-se do seu passado monárquico, agora associado ao antimoderno e ao arcaico. Isso também determinou a remoção nos rituais do estado de quaisquer traços ou signos que pudessem ser associados às formas populares de ocupar as ruas – basicamente, procissões religiosas e carnaval – agora consideradas antípodas do esforço republicano em direção à modernidade e ao progresso. A ordem ritual da monarquia, como Lilia Moritz Schwarcz mostrou, ainda era capaz de acomodar a cultura popular: carnavais, procissões e variadas formas de festas afro-brasileiras menos antagonizavam que ativamente confirmavam e reproduziam a dramaturgia pública do estado imperial (SCHWARCZ, 1998: 24794). De fato, uma das razões pelas quais a República Velha obteve escassa popularidade entre as classes baixas, cujos membros em parte só recentemente haviam sido libertos da escravidão, era que, de modo a apresentar-se como superação da natureza arcaica – e carnavalesca – da monarquia imperial, ela dissolveu estas correspondências entre rituais populares e oficiais, extirpando de sua própria cenografia e emblemática todos os traços de tradição local.4 É disso, portanto, de que se trata na caixa preta de Gutiérrez? Claro, estou ciente que ao sugerir que é a dissolução do povo como encarnada e performada por “o povo”, que está sendo significado, como uma presença ausente, neste espaço negro que ocupa o palco central, posso estar estendendo demasiadamente meu argumento a respeito da autorreflexividade fotográfica na série
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4. Sobre a implementação contraditória do republicanismo liberal no Brasil, ver a discussão clássica de Roberto Schwarz, “Misplaced Ideas: Literature and Society in Late NineteenthCentury Brazil”, em Schwarz (1996: 19-32). Sobre a mania por arte, moda e arquitetura europeias na virada do século, e a remodelação da cidade do Rio de Janeiro de acordo com princípios hausemannianos, ver Needell (1987).
das Festas Nacionais de Gutiérrez. Realmente, ao ler-se a caixa preta como uma figuração, mesmo que negativa, investe-se esta imagem com um sentido que dificilmente poderia ser considerado como “contido” nela, ou que tenha sido intencionalmente posto lá pelo fotógrafo. Aparte o fato de que as simpatias republicanas que Gutiérrez abertamente professava tornam difíceis de atribuir-lhe quaisquer intenções subversivas, um argumento deste tipo suporia um grau de controle sobre o dispositivo e sobre o modo como o sentido é gerado nele e por meio dele, que a fotografia estava na verdade levando para o seu fim. Não estou perseguindo aqui uma revelação “inconsciente” ou “involuntária” da verdade, mas, pelo contrário, isso que emerge quando observamos as relações encenadas de uma performance organizada em termos de captura fotográfica. A autorreflexividade não é algo “atribuído” à imagem, mas a própria relação que ela mantém com o seu conteúdo, no modo como, por exemplo, a arquitetura efêmera e a organização da cena convidam a uma visão descontínua, sincopada, tornando cada um e todos os observadores em câmeras virtuais. O que é notável a respeito da fotografia de Gutiérrez é precisamente sua indiferença – sua falta de distância crítica – em relação ao espetáculo que ele observa, e a cuja força ela se rende plenamente. A força peculiar dessa imagem do desvelamento da estátua de Osório parece provir, em larga medida, do modo como a aparente solidez do bloco central contrapõe-se à agitação dos cavaleiros em primeiro plano. Isto é, a composição de Gutiérrez coloca em relação duas áreas da fotografia que permanecem fora da visão: a primeira, porque está oculta sob um manto negro que impede a penetração da luz; a segunda, porque sua velocidade excede a sensibilidade da chapa na qual a câmera captura o evento. Se a primeira refere-se a um tipo de solidez que antecipa o monumento em vias de ser desvelado (a caixa preta, de fato, é uma espécie de suplente no interior do instante fotográfico, para um tempo monumental que literalmente excede o evento de seu desvelamento), as figuras borradas em primeiro plano apontam para um limite diferente, mesmo oposto, do tempo fotográfico. Mais do que “simplesmente” uma imperfeição técnica, uma incapacidade de coadunar as temporalidades e posições disparatadas que se desenvolvem diante dele, também podemos vê-la como um modo de ativamente marcar as limitações da instantaneidade fotográfica, do mesmo modo que cada uma
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das outras imagens da série das “celebrações” apontava para um movimento, real ou “esperado”, que as excedia. Estas observações apontam, de fato, para uma ampla “crise da representação” no final do século XIX, a mesma que Deleuze (1983: 83) – parafraseando Bergson – caracterizou como o momento em que não era mais possível sustentar posições estáveis que nos permitiam separar claramente as imagens formadas na consciência dos movimentos dos corpos no espaço. Foi o momento em que, como Jonathan Crary coloca, a visão... é reconfigurada como dinâmica, temporal e compósita – a destituição do observador clássico, pontual e bem ancorado, começa no início do século XIX, sendo progressivamente deslocado por um sujeito atento instável... competente para ser tanto um consumidor como um agente na síntese de uma proliferação diversificada de ‘efeitos de realidade’, um sujeito que se tornará objeto de uma proliferação de demandas e atrações da cultura tecnológica do século XX. (CRARY, 2001: 148).5
A fotografia de Gutiérrez também assinala um ponto de emergência deste novo sujeito, flutuante, interpelado por novas configurações tecnológicas e produzindo novas respostas ao permanente bombardeio de estímulos sensório-motores. Ele o faz, contrapondo a fotografia a uma forma mais antiga de retenção do movimento – o monumento – em uma operação crítica de empréstimos e confrontações intermidiáticas que torna visível os horizontes contingentes da própria fotografia. É como uma operação de intermedialidade crítica, prossigo argumentando, a partir da qual Borges, meio século depois – desde uma posição “periférica” similar na história da tecnologia – forja seu próprio indiciamento da ascensão e já prenunciada obsolescência da imagem em movimento cinematográfica. O estado aléphico Como podemos pensar o impacto no político destas mudanças nas interfaces entre tecnologias e padrões de percepção e performance? O trabalho de Crary a respeito das figurações do observador nos séculos XVIII e XIX e sobre a reconceitualização das relações entre atenção e distração no limiar do século XX tem uma importância crucial por nos fazer entender estas interfaces em relação à disposição do poder social na emergência do sistema global capitalista. O seu Suspensions of Perception identifica os
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5. Sobre as formas transicionais entre fotografia e filme, ver também Kittler (2002, 195-262).
antecedentes imediatos do cinema como o momento em que “a cultura do espetáculo [não mais] está fundada na necessidade de fazer um sujeito ver, mas em estratégias nas quais os indivíduos são isolados, separados, e habitam o tempo como desprovidos de poder” (2001: 3). Neste sentido, a modernidade é configurada como uma “crise permanente de atenção” (2001: 13-14), arrasando o que Foucault chamou o grande sonho escatológico do século XIX: a busca por conhecimento positivo, estável, objetivo, do mundo e do próprio homem. Ao mesmo tempo, responde à necessidade do capitalismo de continuamente produzir novas fontes de estimulação e, portanto, de constantemente desfazer e redirecionar constelações de atenção e distração para novos limites e umbrais. A distração portanto se torna um elemento constitutivo, mais do que uma interrupção ou distorção, dessa nova economia da atenção. O problema do realismo (e o da “representação” de modo geral) muda consequentemente daquele da mimesis para o do alcance de um compromisso contingente, temporário, entre síntese e dissociação no gerenciamento dos estímulos perceptivos. A densa argumentação de Crary acerca da Parade de cirque (1887-8), de Georges Seurat, como uma obra de transição intimamente relacionada a um amplo espectro de reconfigurações da experiência espectatorial, da neuropsiquiatria à nascente sociologia, a Gesamtkunstwerk wagneriana, e as formas précinemáticas de animação visual, é particularmente significativa aqui. Ela revela a preocupação comum de interpelar audiências não em termos de um modelo ótico – o dispositivo perceptivo como um conduto transparente até a câmara sensível do cérebro – mas como um organismo psicomotor complexo, simultaneamente singularizado e coletivo. Na linha traçada por Crary, via Seurat, da psicologia ótica de Helmholtz e Charles Marey a Bergson e Peirce, a distinção entre sensação e movimento colapsa em um único evento espaço-temporal. Em sua resposta experimental, especulativa, à questão que tal mudança cataclísmica coloca para uma forma essencialmente imóvel como a pintura, sugere Crary, a obra de Seurat também antecipa os objetos e forças que se tornariam componentes chaves para as novas operações do poder social no início do século XX. Seurat descortina modos nos quais indivíduos... podem ser reunidos em novas pseudossolidariedades, sejam multidões ou audiências, mesmo mantendo seu efetivo isolamento. (2001: 186-7).
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Claramente, o que Crary tem em mente é o que a teoria do cinema chama de “efeito de sutura” – o desfazimento, pela interpelação sensório-motora, afetiva, da separação constituinte (dos espectadores em relação à tela; da criança em relação à mãe), e que esta própria interpelação simultaneamente reforça – como um novo tipo de subjetivação que se torna plenamente operacional por volta da virada do século. Portanto, uma nova política de mobilização de massas que faria as formas monumentais da cultura visual do século XIX, baseadas na relativa estabilidade da relação entre observadores e objetos, largamente obsoletas. Esta natureza quase imediatamente efêmera das formas e dispositivos do início da modernidade, suplantadas pelo progresso tecnológico, foi uma fonte de fascinação não apenas para Benjamin e os surrealistas, mas foi também um ponto de partida para uma crítica bastante diferente da modernidade, associada ao nome de Jorge Luis Borges. O interesse de Borges pelo cinema pode ser remontado a seus primeiros escritos, entre eles, as resenhas de filmes que escreveu para Sur e El Hogar, nas décadas de 1920 e 1930, algumas das quais foram incluídas em seu livro Discusión (1930), sem falar das tramas abertamente cinematográficas de História Universal da Infâmia (1935), entre muitos outros exemplos.6 Só recentemente, depois da republicação póstuma dos primeiros trabalhos ensaísticos de Borges, a importância do cinema para sua obra com um todo ficou clara, em particular para a sua reinvenção da forma curta do conto nas ficciones de 1944 e 1949. É chave aqui (como na noção quase contemporânea de Kracauer de “salvação da realidade exterior”) o reconhecimento do modo como o cinema expurgou a narrativa do lastro do realismo psicológico do século XIX, permitindo que seu núcleo épico ressurgisse no modo como o movimento e as coisas materiais – mais do que os “sujeitos” – propulsionam a ação. Mas ao mesmo tempo – e uma vez mais, numa linha notadamente similar ao das primeiras críticas da Escola de Frankfurt –, o juízo de Borges a respeito das operações estéticas da cultura de massas casa-se com uma preocupação com os efeitos ideológicos recentes que, ao invés de visarem uma crítica da alienação focada nos dispositivos culturais, levam-no a um implacável ataque à banalização e brutalização da tradição popular sob o peronismo (como no extraordinariamente violento conto escrito em parceria com Bioy Casares, “La Fiesta del
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6. Além das resenhas de Ozep, Chaplin, Sternberg e King Vidor, intituladas simplesmente “Filmes”, as referências ao cinema (especialmente aos filmes de gangster de Sternberg) também figuram com destaque em dois outros textos de Discusión: “La Postulación de la realidad” e “El arte narrativo y la magia.” Sobre Borges e o cinema, ver a excelente compilação de Edgardo Cozarinsky, Borges in/ and/on Film (1988), e também Zischler e Andermann (2000).
Monstruo”, de 1947), à qual irá opor sua própria criação de um universo autoconscientemente artificial de legendas populares. Estratégias e modos cinematográficos (montagem descontínua, poses icônicas, delegação do agenciamento narrativo a objetos e cenários, mais do que a “personagens”) informam muitas de suas “histórias de aventura”, frequentemente incidindo sobre sujets livrescos: o gaúcho de fronteira, da Argentina; as fantasias de alteridade, do Orientalismo; o mito germânico e a antiguidade clássica, além das conjecturas de enciclopedistas, cabalistas e outros colecionadores de conhecimento secreto. De toda a sua obra, é o Aleph que mais abertamente tematiza sua dívida com o espetáculo visual como um ponto de referência e um modo de organização interna do que John Barth sucintamente chamou “literatura de exaustão” – isto é, tanto um fim à literatura como a libertação da narrativa de seus constrangimentos. Alternativamente lido com uma alegoria antecipatória do ciberespaço, uma meditação autobiográfica sobre a tendência à cegueira do escritor e/ou suas inibições sexuais, o que me interessa aqui é o modo como o conto associa a visão cinemática com a incerteza epistemológica. Ainda que sua natureza política seja bem menos explícita que a série fotográfica de Gutiérrez que discuti acima, gostaria de olhar o conto de Borges a partir de uma operação igualmente retrospectiva e prospectiva de confronto intermidiático, no qual, desta vez, são os próprios atos de apagamento e áreas de cegueira do cinema que se expõem, enquanto ele suplanta um regime de visualidade prévio, imóvel e atemporal. Um Aleph, permita-nos recordar, é “um dos pontos do espaço que contém todo o espaço” (1998: 280). Diferentemente da caixa preta de Gutiérrez, o Aleph não é a materialização do invisível no espaço do visível, mas um ponto de visibilidade absoluta no interior de um espaço de escuridão. É como se fosse uma visão de dentro da cripta funerária sob o monumento a Osório que, por sua vez, está no interior de uma caixa preta. Afinal, de modo a ver o Aleph, o espaço que guarda – como Carlos Argentino Daneri, seu rival amoroso e nêmesis literário, antecipa – “todas as imagens de Beatriz”, o “Borges” narrador precisa assumir a própria posição da falecida e deitar no piso de uma câmara subterrânea úmida e escura, como se houvesse sido enterrado vivo. Como um abismo do visual, dissolvendo o objeto de sua visão
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em uma multiperspectividade ilimitada que necessita sempre, de modo implacável, contemplar sua própria contemplação em tudo que observa e que, portanto, não pode manter como imagem estável, o Aleph é uma visão da e desde a morte: “vi um adorado monumento na Chacarita”. “Borges” conclui assim a fragmentada e sôfrega descrição de sua experiência: vi a relíquia cruel do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem tem olhado: o inconcebível universo. (1998: 283-4).7
Se, de fato, todas as coisas e lugares podem ser vistas, de todos os ângulos e simultaneamente no seu passado, presente e futuro, no Aleph, então o Aleph é também o que há para ver em todos os lugares e tempos. Colocando de outro modo, ver só ocorre por meio do Aleph, na sua ubíqua suplementaridade, na sua co-agitatio monstruosa, nos termos de Martin Heidegger, como aquilo que “conduz tudo junto para a unidade daquilo a que é então dado caráter de objeto” (HEIDEGGER, 1977: 150). Mais do que discutir o conto de Borges em profundidade, desejo mostrar como o contraste entre dois modos de ver, relacionados aos regimes escópicos políticos do século XIX e XX, é figurado em “O Aleph” como uma luta entre duas escritas pela restituição na linguagem do abismo da visualidade do Aleph. Estas duas escritas disputam pela verdade do Aleph como seus autores uma vez disputaram pelo corpo de Beatriz Viterbo do qual ele é, de muitas maneiras, um substituto monstruoso – um dom do universo marcado pela perda, como uma figura metonímica da ausência.8 O Aleph (assim como os retratos de Beatriz que o narrador observa na saleta de sua casa, antes do encontro com o Aleph) revela-se “falso”, afinal, precisamente porque a posse exclusiva que promete, se não do objeto amado, mas de sua infinda retirada para a ausência (“que nenhum homem havia olhado jamais”), é uma promessa que foi feita duas vezes. O presente de “Borges” já havia sido dado a outro, o primo de Beatriz, Carlos Argentino Daneri, que reivindicava a propriedade do Aleph como um recurso
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7. Usou-se aqui a tradução de Flávio José Cardoso em: BORGES, Jorge Luis. O Aleph. São Paulo: Globo, 1996. (N. do T.).
8. A figura da perda de um objeto libidinal que retorna como (des)ordem escópica universal tem óbvias conexões com a teoria de Lacan do “estágio do espelho” (cuja primeira versão publicada apareceu no mesmo ano de “O Aleph”) como instância visual de autoformação na primeira tomada de consciência da separação do corpo materno. De muitas maneiras, claro, o Aleph é o oposto do espelho de Lacan, uma vez que em vez de “refletir” a superfície especular da identificação narcísica do sujeito – seu próprio corpo como objeto externo – o Aleph torna todos os corpos indiferentes: “Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo”.
9. O próprio Borges, antes de escrever “O Aleph”, tentou, sem sucesso, inscrever “O Jardim dos caminhos que se bifurcam” no concurso literário da cidade de Buenos Aires, em 1941 – uma cause celèbre que resultou em um número especial do jornal cultural Sur protestando contra a decisão do Júri.
10. Compare-se a noção deleuziana de “imanência cinemática”: “Cet ensemble infini de toutes les image constitue une sorte de plan d’immanence. L’image existe en soi, sur ce plan. Cet en-soi de l’image, c'est la matière: non pas quelque chose qui serait caché derrière l’image, mais au contraire l’identité absolue de l’image et du mouvement.” (DELEUZE, 1983: 87).
poético, sugando seu infinito visual para compor uma enumeração verbal sempre em expansão: um poema ridículo e insípido, A Terra, cuja “seção nacional” termina por ganhar um prêmio literário (as estrofes “citadas” no texto desenham uma maravilhosa caricatura das preciosidades oratórias do nacionalismo poético argentino, talvez inspiradas no poema de 500 versos “Ode aos gados e às searas”, de Leopoldo Lugones, um tour de force lírico, de 1910, sobre a paisagem nacional).9 Portanto Daneri, nas palavras de Alberto Moreira, mantém com o Aleph a mesma “relação estudiosa com o monumento” que “Borges” manteve com os retratos “oficias” de Beatriz na saleta. Os escritos de Daneri “exemplificam o tipo de literatura mimética regida pela vontade de expressar o exprimível, de saturar o real” (MOREIRA, 1999: 212). A escrita de Borges, pelo contrário, será organizada não pelo (ana)lógico do studium, mas pela força de disparo e dissolução do punctum. É uma “escrita lápsica”, uma escrita do lapsus (1999: 193): uma escrita, portanto, que permite que a ausência aproprie-se de seus silêncios de modo a que estes organizam sua própria enunciação. Entretanto, mesmo assim, a impossibilidade de traduzir o visível em palavras, a presença em memória, é “o centro inefável do meu conto”. A escrita de Borges no Aleph é como a de Daneri: ainda a transcrição de uma visão, só que de outro tipo. Ambos os escritores trans-crevem a partir de regimes escópicos distintos: Daneri, do espaço estático, calculável, do ver, que é típico das formas do século XIX, tais como o museu e o mapa (de fato, sua escrita não é nada além de um “mapeamento” de segmentos espaciais coletados, cujos conteúdos são exaltados); Borges, do espaço aberto organizado pelos cortes móveis das imagens em movimento, imagens-movimento, em outras palavras, cinema. O mundo-imagem de fins do século XIX, onde Daneri ainda pega suas deixas, foi plasmado, sugere Gilles Deleuze, na visualidade do instante congelado, e portanto em uma noção oximórica de um espaço e um tempo de calculabilidade ilimitada, “infinitamente mensuráveis”. Em contraste, a identidade da imagem e do movimento no dispositivo cinemático, com a sua nova relação com o tempo e o espaço como o ontologicamente Aberto, expressava um novo plano de imanência onde matéria e consciência viriam a confundir-se uma com a outra – um Aleph moderno.10
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Como a enumeração descontínua de fragmentos visuais de Borges mostra, esse “plano de imanência universal” próprio ao dispositivo cinematográfico resulta primordialmente de um novo modo (maquínico) de incorporar o invisível. Mais do que aquilo que instala as coisas em seus lugares fixos, o invisível se torna o meio onde a sua mobilização se dá; mais do que o movimento congelado do monumento equestre na praça, o kinematógrafo, como Borges se deu conta em seus primeiros escritos sobre cinema (sobre o western, de fato), nos dá “a escrita do movimento, que enfatiza velocidade, solenidade, tumulto” (BORGES, 1997 [1929]: 381). Uma nova relação, portanto, entre estase e movimento, que se tornaria o modo sensório-motor dominante do espetáculo visual na era do nacional-popular nas suas mais variadas expressões: uma mobilização de massas nas quais as massas (os coletivos espectatoriais de Crary, “reunidos em pseudossolidariedades” e “mantendo seu efetivo isolamento”) tornam-se articulações móveis de um novo tipo de poder. A imagem precisa se “mover”– tanto literalmente como figurativamente. Ela tem que fixar o movimento e ativar os afetos dos espectadores. Como um plano de imanência, o ver cinemático deve perpetuamente, e de modo sempre renovado, ser suturado ao dispositivo, dando-se a imagem como ação, percepção, afeto, mais do que meramente como coisa. No regime escópico anterior de cortes imóveis e saturação mimética do real (mesmo na fotografia, sugere “O Aleph”), a imagem ainda é dada como um objeto externo, porque ela não se dirigia aos seus observadores (“o povo”) como se eles formassem uma massa móvel, mas antes lhes indica um lugar para o olhar, uma relação “objetiva” e estável para a visão. É claro, porém, que “O Aleph” não mira apenas o seu próprio presente cinemático, ele também aspira por um espaço não-mimético de infinita calculabilidade, associado à passagem do imaginário analógico ao digital. De modo similar à novela de ficção científica de Bioy-Casares, A Invenção de Morel, da mesma época, o conto de Borges antecipa a ciberimagem – e portanto a crise do filme analógico fotográfico – ao justapor formas visuais do cinema (enumeração descontínua, cortes móveis) com as que ele havia deslocado (a exterioridade monádica do real-como-objeto). Aponta, neste sentido, para a conjuntura crítica em que nos encontramos hoje, na qual a escansão cinemática da iluminação e da escuridão (a enumeração descontínua, fragmentada, dos
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vestígios do real) foi substituída pela virtualidade da imagem digital, imagem que é puro cálculo. Portanto, “O Aleph” pode ser também lido – como as frases de abertura sobre a mudança das propagandas de cigarro na rua já sugerem – como uma meditação sobre a história, ou como um texto sobre a obsolescência precoce das formas subsequentes da experiência histórica no modo do espetáculo. Se, de fato, a imagem-movimento do cinema no início do século XX teve por consequência o fim da exterioridade do real tal como foi expresso em formas visuais pré-cinemáticas como o mapa, o museu e o álbum fotográfico (para não mencionar agora dispositivos óticos extintos como o diorama, o estereoscópio ou o praxinoscópio), o espaço visual da imagem digital, como anunciado em “O Aleph”, volta a ver o dispositivo cinematográfico como sutura de si próprio como objeto externo. Essa “objetivação” é, em si mesma, dupla; assinala a existência impossível do Aleph como objeto da linguagem, um nome (que deve ter sido lido em algum lugar, talvez no próprio Aleph, e que aponta inexoravelmente “para outro ponto aonde todos os pontos convergem”), e, desse modo, para a própria operação intermidiática do conto ao encenar, como um evento da linguagem, o choque entre dois modos de ver. Mas também, subsequentemente, transforma este objeto em matemática, a máquina de visão sendo, de fato, nada além do “símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes” (1998: 285). Como Laura Mulvey sucintamente apontou: o digital, como sistema abstrato de informação, produziu um corte no imaginário analógico, levando de roldão a relação com a realidade, que foi, em larga medida, dominada pela tradição fotográfica. A sensação de fim do cinema foi, por conseguinte, complicada esteticamente pela crise do signo fotográfico como índice. (MULVEY, 2006: 18).
É este próprio desaparecimento que nos leva a repensar o índice fotográfico (cujo curso de vida na história da tecnologia provou-se afinal ser relativamente curto) de modo mais complexo “não mais vinculado a velhos debates sobre a verdade da evidência fotográfica. O índice pode agora ser considerado na sua relação com o tempo e como o registro de um fragmento de uma realidade inscrita que pode ser sem sentido ou indecifrável” (2006: 31).
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Fantasma na máquina O que dizer, porém, em respeito à relação capitalista, este outro e bem menos tangível “real” que, como a teoria do dispositivo fotográfico nos ensinou, está inscrito menos indexalmente que estruturalmente nos regimes audiovisuais de produção que sustenta e comanda sua própria reprodução? Na história de Borges, a natureza transitória da visão aléphica – seu ser já tratado como obsolescência – é anunciada na subtrama do conflito de Carlos Argentino com seus senhorios. Estes – empreendedores imobiliários com os sobrenomes ridiculamente italianados de Zunino e Zungri –, estão prestes a demolir a velha mansão da família na Calle Garay – um nome que não somente aponta para a antiga parte sul da cidade, mas para a sua própria fundação (sua segunda fundação, para ser preciso, por colonizadores criollos que desceram o rio vindos de Assunção). No entanto, qualquer tentativa de ler o conto em termos de um confronto entre a Argentina de antigamente e a cidade moderna do comércio e da imigração em massa esbarra no nacionalismo caricato de Carlos Argentino. O modo como a trama imobiliária enquadra a descoberta de Borges do Aleph (e o próprio Aleph, de fato) indubitavelmente aponta para a natureza transitória dos arranjos especulares aparentemente atemporais que garantem as visões da totalidade e abrigam as memórias sentimentais. Em “O Aleph”, estas tecnologias do conhecimento e do afeto estão sempre em vias de desaparecer em virtude das forças de “destruição criativa” deslanchadas pela modernidade capitalista. Na história de Borges, paradoxalmente, é também a destruição do quarto escuro que permite a preservação do Aleph, apesar de seu caráter de objeto, das artimanhas do mercado, tornando finalmente possível para o narrador sustentar a fantasia de um locus de presença universal não mediada – mesmo que embutido “no coração de uma pedra”, no tempo monumental. A “Companhia Fotográfica Brasileira”, de Gutiérrez, por sua vez, poderia ser lida, do ponto de vista do conto de Borges, como uma empresa “aléfica”, ainda que de um tipo mais daneriano que borgeano. Estabelecida em 1890, com 31 acionistas, incluindo os quatro maiores bancos do país, o objetivo da companhia era a criação, por meio do controle da importação e do mercado de equipamentos fotográficos e material sensível, amador e profissional, de uma rede nacional de estúdios, visando atender
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um público amplo e abastecer a sede, no Rio, com um catálogo de imagens brasileiras, incluindo festividades e eventos políticos, para publicação na imprensa. (ERMAKOFF, 2001: 249) Um dos maiores acionistas, Gutiérrez havia sido nomeado diretor técnico da companhia, que se inaugurou em 1892, em uma mansão suntuosamente decorada na Rua Gonçalves Dias. A companhia pretendia produzir um registro fotográfico abrangente da “realidade” brasileira, e sua mercadorização como imagem, usando a fotografia, não da maneira tradicional, artesanal, individual, dos fotógrafos-artistas itinerantes, mas de um modo corporativo, antecipando as agências fotográficas tipo-Magnum, envolvida continuamente na produção visual do presente. Este ambicioso projeto, tanto do ponto de vista operacional como financeiro, cambaleou por seis meses depois de inaugurado, requerendo falência em 17 de junho de 1892, vítima – como muitas outras companhias societárias da época – da explosão de uma bolha especulativa no Brasil, no início dos anos 1890, conhecida por encilhamento. De fato, quando realizava sua série das “celebrações”, Gutiérrez estava trabalhando, para saldar suas dívidas, como contratado do principal fiador e credor da companhia – o Conselheiro Francisco de Paula Mayrink – a quem o arquivo e o maquinário da empresa haviam sido hipotecados. Portanto, de fato, as imagens de celebração de Gutiérrez, expunham não apenas a fragilidade dos arranjos políticos que eram retratados como monumentais e duradouros (pela eternização do instante da sua performance ritual) mas também a dinâmica da relação capitalista sobre a qual a traiçoeira (in)substancialidade da política repousava: a sistemática expropriação e alienação dos produtores de seus meios de produção. Essa dinâmica, que no domínio da cultura visual, vinculava a perda de controle subjetivo sobre a imagem mercantilizada por parte dos operadores dos dispositivos produtores de imagens, permanece ausente – isto é, banida, ativamente não dita – da imagem como tal, e é essa elisão que constitui o efeito de poder da imagem, o modo pelo qual o político forja sua própria solidez a partir da transitoriedade. A relação entre instantaneidade fotográfica e arquitetura efêmera, por exemplo, poderia ser entendida como um marcador indexical (no sentido peirceano do termo, como assinalando “a junção entre duas porções da experiência”) desta condição de transitoriedade no coração do espetáculo (PEIRCE, 1955: 109). Ao referir-me à (in)substancialidade desta relação, tento
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chamar a atenção tanto para os efeitos propriamente reais que este espetáculo do estado produz, quanto para sua natureza inteiramente ilusionista (isto é, à falta de qualquer equivalência e continuidade funcional ou estrutural entre este espetáculo e a relação capitalista que ele ofusca, equivalência que permitiria ainda deduzir a “verdade da ideologia” da sua manifestação no dispositivo). Não se trata de ideologia, ou de apenas ideologia, mas de algo mais trivial e letal, que vincula a tecnologia à relação capitalista, e à qual não seria demasiado incluir o próprio Juan Gutiérrez entre suas vítimas. Poucos anos após tirar as fotografias discutidas aqui, Gutiérrez faleceu nas trincheiras de Canudos, a comunidade religiosa do interior da Bahia cuja terrível destruição pelo exército nacional veio a ser tema do monumental ensaio geo-histórico de Euclides da Cunha, Os Sertões. Gutiérrez havia se alistado no conflito como voluntário do exército e fotógrafo oficial, o primeiro a chegar à cena, em abril de 1897. Nenhuma das suas imagens desta guerra contra os camponeses locais, que resultou na destruição completa da cidade e no massacre da maioria de seus habitantes, sobreviveu – se é que ele chegou a produzir alguma antes de ser mortalmente ferido em 28 de junho de 1897. Se o seu “alistamento voluntário” foi motivado pelo fervor republicano ou pela necessidade desesperada de pagar seus credores, colocando sua vida em jogo por uma imagem que provavelmente nunca chegou a fazer, permanece matéria de especulação. Ao fim e ao cabo, entretanto, Gutiérrez aparece como alguém duplamente “cativado” pelo poder que as suas imagens tanto capturam como desencadeiam. Este “sobreinvestimento” provavelmente ainda empresta a algumas delas um impacto notável, como vestígio ou eco de um sujeito inteiramente absorvido pelo espetáculo, entretanto separado dele pelo dispositivo e destituído de seu antigo status de autor-produtor. É talvez esta região penumbrosa entre a absorção ideológica e a progressiva destituição que a caixa preta de Osório traz à tona, ainda que de modo fantasmagórico. Fantasmagoricamente, claro, é também o modo como a fotografia e o cinema fazem aparecer a história, como Gilberto Perez (1998: 36) incisivamente argumentou, o modo no qual “o vívido acolhe o evanescido”. Da mesma maneira, acrescentaria, o modo no qual o evanescente nutre e alimenta a vida: o modo no qual, como espectadores-consumidores do
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espetáculo visual, estamos sendo simultaneamente interpelados a “colocar nossas vidas em jogo” como performadores de sua duradoura presença. Tradução de Mauricio Lissovsky Referências ANDERMANN, Jens. The Optic of the State: Visuality and Power in Argentina and Brazil. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2007. Azoulay, Ariella. Death’s Showcase: The Power of Image in Contemporary Democracy. Cambridge: MITPress, 2001. BARTHES, Roland. La chambre Claire: Note sur la photographie. Paris: Cahiers du Cinema/Gallimard/Seuil, 1980. BERTONI, Lilia Ana. Patriotas, cosmopolitas y nacionalistas: La construccion de la nacionalidad argentina a fines del siglo XIX. Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 2001. BORGES, Jorge Luis. The Aleph. In: Collected Fictions, trad. Andrew Hurley. Harmondsworth: Penguin, 1998. ______. El cinematografo, el biografo. In: Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emece, 1997. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. ______. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Córticos e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. COZARINSKY, Edgardo. Borgesin/and/on Film. London: Lumen, 1988. CRARY, Jonathan. Suspensions of Perception: Attention, Spectacle, and Modern Culture. Cambridge, MA: MIT Press, 2001. DELEUZE, Gilles. L’image-mouvement: Cinema I. Paris: Minuit, 1983. ERMAKOFF, George. Juan Gutierrez: Imagens do Rio, 1892-1896. Rio de Janeiro: Capivara, 2001. HEIDEGGER, Martin. The Age of the World Picture. In: The Question Concerning Technology and Other Essays, trad. William Lovitt. New York: Harper & Row, 1977. LOSADA, Alejandro. Creacion y praxis: La produccion literária como práxis social en Hispano america y el Peru. Lima: Universidad San Marcos, 1976. ______. Rasgos especificos de la produccion literaria ilustrada en America Latina. Revista de crítica literaria latino-americana, v. 3, n.6, 1977, p. 7-36. MOREIRAS, Alberto. Tercer espacio: Literatura y duelo en America Latina. Santiago de Chile: Arcis-Lom, 1999. MULVEY, Laura. Death 24x a Second: Stillness and the Moving Image. London: Reaktion Books, 2006 NEEDELL, Jeffrey. A Tropical Belle Epoque: Elite Culture and Society in Turn-of-the-
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Data do recebimento: 9 de setembro de 2011 Data da aceitação: 23 de dezembro de 2011
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Lucas Martins Fernandes
A Boca do Lixo nas fotografias de Ozualdo Candeias1 fábio uchôa Mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP
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Resumo: Este artigo examina os retratos feitos por Ozualdo Candeias, na Boca do Lixo, entre os anos 1960-70. A partir da contextualização histórico/cinematográfica, são identificados alguns dos usos sociais de tais fotografias. Uma análise de estilo, baseada na representação dos corpos e nas intervenções sobre o material fotográfico, sugere pontos de contato entre as imagens fixas e os filmes do cineasta. Palavras-chave: Ozualdo Candeias. Boca do Lixo. Fotografia. Corpo. Cidade de São Paulo.
Abstract: This article examines the portraits made by Ozualdo Candeias, between the years 1960-70, at Boca do Lixo. From the cinematographic and historical background, it’s possible to identify some of the social uses of these photographs. An stylistic analysis, considering the representation of the bodies and the interventions on the photographic material, suggest points of contact between the pictures and movies of the filmmaker. Keywords: Ozualdo Candeias. Boca do Lixo. Photograph. Bodies. City of São Paulo.
Résumé: Dans cet article, on examine les portraits réalisés par Ozualdo Candeias, a la Boca do Lixo, aux anées 1960-70. L’interrogation de ces photos a partir de son contexte historique et cinematographique, nous permet d’identifier leurs usages sociaux. Une analise stylistique, basée sur la répresentation des corps et sur les interventions sur le materiel photographique, aide a mettre en relation les images fixes et les films du cineaste. Mots-clés: Ozualdo Candeias. Boca do Lixo. Photographie. Corps. Ville de São Paulo.
Ao longo de sua carreira, Ozualdo Candeias usa a técnica fotográfica de diversas formas, migrando entre a fotografia fixa e a fotografia de cinema. Os filmes realizados entre os anos 196080 são conhecidos por uma estética violenta, repleta de zooms e travellings, que enfatiza a paisagem humana do campo e da metrópole. As populações socialmente excluídas, especialmente os migrantes, são enfatizadas a partir de uma estética que une o primitivo ao erudito (FERREIRA, 13 jun. 1978), a banalidade ao sonho (MACHADO JR., 2007: 19). Entre as pesquisas realizadas, são raras as referências a Candeias como fotógrafo urbano. Baseado no acervo fotográfico da Cinemateca Brasileira, este artigo explora um grupo de fotografias que documentam os habitantes e trabalhadores da Boca do Lixo paulista. Tais imagens fixas indicam um tipo de sociabilidade específica, estabelecida por Candeias com o pessoal daquela região, pautada pela dignificação da pobreza. O estudo de seus procedimentos formais, por outro lado, sugere relações entre a produção de imagens fixas e em movimento do cineasta. Entre nossos pontos de partida estão: a) a contextualização da produção fotográfica de Candeias, b) a singular recorrência do retrato como forma privilegiada e c) a construção dos tipos humanos pelas lentes do fotógrafo/cineasta, levando em conta a abordagem dos corpos e dos espaços da cidade. Além de diretor de cinema, Candeias é conhecido como um fotógrafo aficionado pela fauna física e humana da Boca do Lixo. Tratam-se, em sua maioria, de retratos feitos na região, entre as décadas de 1960-80. O aspecto fragmentar da coleção de fotografias do cineasta impossibilita uma abordagem mais ampla e sistemática. Ele é composto por um conjunto de ampliações e negativos depositados na Cinemateca Brasileira, além do livro de fotografias intitulado Uma rua chamada Triumpho, publicado pelo próprio Candeias em 2001. Entre os documentos da Cinemateca, há: duas pastas de fotografias feitas na Boca do lixo, contendo cerca de 50 fotografias cada; um álbum de fotografias de cineastas brasileiros composto por 110 páginas; uma coleção de retratos de diretores de cinema emolduradas em pequenos quadrinhos, com 9 retratos; um conjunto de retratos também de cineastas, baseado em foto-montagens; além, das fotos de still feitas para os filmes O meu nome é Tonho (Ozualdo Candeias, 1969) e A opção (Ozualdo Candeias, 1981).
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1. Agradecimentos ao Arquivo Ozualdo R. Candeias e à Heco Produções, por permitir o uso das imagens contidas neste artigo. As fotografias discutidas fazem parte do acervo fotográfico da Cinemateca Brasileira.
O começo das atividades de Candeias como fotógrafo é nebuloso. Não existem dados exatos a respeito das influências ou do aprendizado das técnicas de revelação/ampliação, trabalho este feito certamente por ele mesmo. As informações aqui expostas baseiam-se em entrevistas concedidas pelo cineasta e em uma crítica escrita por Ricardo Mendes (2002). O primeiro trabalho de Candeias como fotógrafo acontece no filme Mulheres modernas (1958), de Alberto Cunha. Quanto à primeira máquina, tratase de uma Exakta, comprada por recomendação de Ody Fraga, durante as filmagens de A margem (Ozualdo Candeias, 1967). Em sua iniciação à fotografia, além das dicas de Jacques Dehenzelein, com quem trabalhava, realiza um aprendizado autodidata, acompanhado por um intenso processo de experimentação (Cf. MENDES, 2002: 94). A informação de que Candeias inicia o trabalho com fotografias a partir de 1967, presente em depoimento do cineasta, contrasta com os dados de um currículo, escrito possivelmente por ele mesmo, em 1979 (CANDEIAS, 1979). No referido documento, entre os anos de 1964-67, consta uma viagem por países da América do Sul, levantando dados para a realização de um longametragem sobre culturas incaicas e pré-incaicas. Neste contexto, Candeias toma imagens de populações andinas, organizadas no documentário América do Sul (1965). De acordo com o currículo consultado, haveria ainda cerca de 3.000 fotografias, realizadas durante a mesma viagem. Quanto à existência e ao destino de tais materiais, não conseguimos maiores informações. A partir dos anos 1970, a técnica fotográfica é usada com novos objetivos: “Fotografia era então uma etapa de investigação para a produção de seus filmes, mero veículo a serviço de outro, o que revela uma relação muito objetiva, direta, com a técnica.” (MENDES, 2002: 94). Isto pode ser tomado como um uso próximo à ideia de fotografia de still, com a produção para a divulgação do filme e, também, com o objetivo da previsão de espaços usados para as filmagens, bem como uma organização dos futuros enquadramentos do filme. A grande quantidade de fotografias de still existente na Cinemateca Brasileira, referentes aos filmes Meu nome é Tonho e A opção, indicam a possibilidade de tal uso instrumental. Por outro lado, é interessante confrontar esta referência de Mendes com o processo de filmagem, baseado na incorporação do imprevisto, sugerido pelo produtor Virgílio
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Roveda2. Em termos de produção e de filmagem, os filmes do cineasta são obras abertas ao acaso. Incluem desde um roteiro maleável, de acordo com a disponibilidade de atores no dia das filmagens, até o uso experimental da câmera, atenta a transeuntes ou acontecimentos não previstos. Daí a impossibilidade de uso das fotografias de still enquanto uma forma rígida de previsão de enquadramentos. Ao longo dos anos 1970-80, Candeias participa de diversas produções eróticas da Boca do Lixo. Em muitas delas, trabalha como câmera, diretor de fotografia, ou fotógrafo de still. Paralelamente a tal atividade, de forma rotineira, o cineasta realiza um amplo trabalho fotográfico sobre a Boca do Lixo3, enfatizando a vida cotidiana, os habitantes, as prostitutas, a arquitetura dos casarões, as construções nas imediações do bairro da Luz, bem como os trabalhadores da indústria cinematográfica. Entre o material, predominam os retratos, de cineastas, atores, atrizes, técnicos, críticos, intelectuais, carregadores de fitas, além dos moradores de rua da região. Embora Candeias atribuísse à sua produção um caráter esporádico, ingênuo e sem propósito aparente, as fotografias consultadas remetem-nos a um empenho ou um projeto. Há um esforço, quase compulsivo, de fixar os corpos dos frequentadores da Boca naquele espaço.
As exposições fotográficas e o livro Uma rua chamada Triunfo Em 1984, os retratos feitos por Candeias compõem a exposição A boca, organizada por José Maria do Prado, da Imprensa Oficial. As movimentações em torno desta exposição podem ser acompanhadas pelas cópias de cartas, folhetos e recortes de jornal pertencentes à sucinta coleção de documentos depositada pelo cineasta na Cinemateca Brasileira. Do ponto de vista da cobertura feita pela imprensa, a exposição contribuiu para a divulgação dos habitantes da Boca e do tipo de cinema ali produzido. Anos depois, tais retratos são reorganizados na exposição Uma rua chamada Triunfo, inaugurada no MIS-SP em junho de 1989. Ela era composta por 17 painéis de mais de dois metros de altura, de material impermeável, acompanhados por uma mostra de Comédias Eróticas. Ligada à Secretaria de Estado da Cultura, a mostra foi itinerante, percorrendo diversos Estados do país. Durante a década de 1990, a exposição acompanhou mostras de
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2. Depoimento concedido por Virgílio Roveda ao pesquisador em 19. 03. 2007.
3. Leva-se em conta aqui o livro Uma Rua Chamada Triumpho, bem como a coleção de fotografias depositada pelo cineasta na Cinemateca Brasileira.
filmes dedicadas a Candeias, como aquelas realizadas em 1993 no Clube recreativo Tro-ló-ló, em Tatuí, contexto da pré-estreia de O vigilante (1992, Ozualdo Candeias), e em 1994, no Clube de Cinema de Marília. Posteriormente, tais fotos originaram o livro “Uma rua chamada Triumpho”, bancado pelo próprio cineasta e publicado em 2001. A partir das imagens presentes neste livro, é possível indagar algumas questões e traçar características. Entre elas estão a reincidência do espaço da Boca do Lixo, de forma a colocá-la não apenas como palco, mas também como personagem. Além disso, verifica-se o mapeamento dos profissionais do cinema, frequentadores e figuras socialmente excluídas ligadas à região. No caso das pessoas fotografadas, há uma dignificação e uma troca simbiótica de significados. Elas são transformadas em personagens de uma crônica urbana, ambientada nas imediações da Boca.
Boca do Lixo: localização imaginária; espaço de produção cinematográfica A Boca do Lixo situa-se nas imediações das estações da Luz e Júlio Prestes, região esta que anteriormente, no século XIX, fazia parte da Chácara Mauá. A região é inicialmente ocupada por residências de classe média, hotéis e pensões familiares. Aos meados da década de 1950, porém, é ocupada pela prostituição. A partir deste período, possível origem da designação “Boca do Lixo”, o espaço passou a ser associado ao trabalho de mulheres da vida, à criminalidade, à marginalidade e à delinquência. Associação esta para a qual contribuíram as páginas de jornais sensacionalistas e as crônicas policiais. Entre tais referências estão os escritos de Romão Gomes Portão (S.D.) e de Hiroito Joanides (2003). O segundo livro citado, uma memória sobre a região, contribui para a compreensão de alguns dos significados a ela atribuídos. Trata-se da autobiografia de um personagem que, entre os anos 1960-70, era conhecido como o rei da Boca do Lixo. Influenciado por uma sociologia positivista, Joanides traça a constituição, a ascensão e o declínio da Boca. As mais variadas formas de crime, associadas àquele espaço, são vistas por Joanides como reflexos de uma sociedade delinquente. Para ele, a Boca constitui-se como
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uma sociedade à parte, com suas formas de sociabilidade, sua ética, seu comércio, seu lazer, além de uma estrutura social com cargos e funções identificáveis. Neste sentido, o livro pode ser visto como um sucinto almanaque dos tipos de delinquência (que vão da prostituição ao lenocínio, passando pelo roubo de canetas Parker) e das atribuições relativas a cada uma delas. A localização da Boca do Lixo, entre a Estação da Luz e a Estação Júlio Prestes, a torna um local de acessibilidade estratégica. Isso representava vantagens, em termos de distribuição cinematográfica, permitindo que uma fita alcance rapidamente os mais longínquos recantos do país, com a simples ajuda de uma pessoa com um carrinho de mão. Em decorrência da geografia privilegiada, segundo Inimá Simões (1981: 13), desde meados do século XX algumas distribuidoras de filmes já estavam instaladas no local. Ainda nos anos 1920, situada à rua General Osório, a Distribuidora Matarazzo foi uma das primeiras. Com o crescimento do mercado cinematográfico brasileiro, durante a década de 1930, foi a vez dos estúdios norte americanos, como a Universal, a Columbia Pictures e a Fox, montarem seus escritórios de distribuição. Inicialmente relacionada à distribuição de filmes, a Boca do Lixo passa a sediar produtoras. Oswaldo Massaini é um dos primeiros a produzir filmes na área. Com seus trabalhos antes restritos à distribuição, a Cinedistri parte para a produção em 1953, associando-se ao filme Rua sem sol (1953), de Alex Viany, e instalando-se na Boca do Lixo a partir de 1956. Gradativamente a produtora de Massaini torna-se uma das mais sólidas do país, com filmes como Absolutamente certo (1957) e O pagador de promessas (1962), ambos de Anselmo Duarte. Egressos dos grandes estúdios dos anos 1950, como a Vera Cruz, a Maristela e a Multifilmes, outros produtores despontam na região a partir dos anos 60. Entre eles, Alfredo Palácios e Antônio Polo Galante, que se associaram em 1968, dando origem a mais uma produtora: a Servicine. As comédias eróticas resultam de uma forma de produção típica da Boca do Lixo paulista no período 1970-83 (Cf. ABREU, 2006). Embora não constituam um conjunto homogêneo de filmes, os mesmos dialogam em termos de forma de produção. Durante o referido período, nas imediações do bairro da Luz, em São Paulo, prospera um sistema que aproxima: produtores,
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distribuidores, grupos de exibidores e um público suficientemente amplo para sustentar a continuidade do processo. Trata-se de um esquema que articula produção, distribuição e exibição. Em O imaginário da Boca (1981), Inimá Simões identifica estas realizações pelo modelo “produção barata + erotismo”. O mesmo é estimulado pelas leis de mercado, implementadas pelo Estado, relacionadas à obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros no cinema. Apesar de financiadas principalmente pelo setor privado, as comédias eróticas refletem um momento no qual o Estado autoritário implementa um projeto modernizador no campo da cultura e, mais especificamente, do cinema. A partir do final da década de 1960, há uma mudança espacial na distribuição das atividades cinematográficas de São Paulo. A Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) e o Museu de Arte Moderna (MAM-SP), antes situados na região central, transferem-se para outros pontos da cidade. Os críticos e diretores que conviviam na rua Sete de Abril passam a concentrar-se na rua do Triunfo, espaço relacionado às produtoras e à distribuição cinematográfica. Assim, Boca transforma-se num local de encontro e de negócios, frequentado pelos mais diversos profissionais ligados ao cinema. Reunido no Bar Soberano (rua do Triunfo), a partir de 1968, entra em atividade um grupo de cineastas conhecido como “Cinema Cafajeste”, algumas vezes associado à ideia de Cinema Marginal. Fazem parte deste grupo João Callegaro, Antônio Lima, Carlos Reichenbach e Jairo Ferreira. Suas movimentações têm início com as filmagens do curta Essa rua tão augusta (1966-68), de Reichenbach, e continuaram com a realização de As libertinas (1968), de Callegaro, Lima e Reichenbach. Ao longo das décadas de 1960-70, Candeias documenta as atividades deste grupo. Entre os eventos fixados pelas lentes do fotógrafo/cineasta está a festa do “Prêmio Ferradura”, uma espécie de Oscar subdesenvolvido às avessas, destinado aos piores filmes do ano. Como salienta Inimá Simões (1981), a atribuição criada por Antonio Lima, Ozualdo Candeias, Bernardo Vorobow, Mojica Marins e Carlos Reichenbach é recebida de maneira reticente por membros da crítica paulista convidados para participar do júri. A cerimônia da entrega, feita em 1972, é fotografada e filmada por Candeias. Estes trabalhos resultam nos documentários Uma rua chamada Triumpho 1970/71 (1971) e Uma rua chamada Triumpho 1971/72 (1971), realizados pelo cineasta.
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Nas fotografias de Candeias, Boca não é um mero espaço da cidade. Trata-se de um reduto, relacionado a um imaginário de crimes e prostituição, cuja marginalidade é compartilhada com as pessoas fotografadas. Estas últimas, em sua grande maioria de classes populares, são retratadas pelo cineasta/fotógrafo de maneira próxima, honrosa e nostálgica. Por outro lado, em termos das poses e dos usos, parte do material examinado poderia ser pensado como um grande álbum de família, tomando a Boca do Lixo como uma grande comunidade de pertencimento.
Um álbum de cineastas e celebridades do cinema brasileiro Na coleção de fotografias da Cinemateca Brasileira, chama atenção um pequeno álbum de fotos de cineastas e celebridades. Cada uma das 110 páginas possui entre um e três retratos. No início do álbum, encontram-se cineastas estranhos à Boca do Lixo. Entre eles: José Medina, os irmãos Del Pichia, Vitorio Capellaro, Trigueirinho Neto e Abílio Pereira de Almeida. Já a partir da segunda dezena de fotografias, passa-se ao espaço da Boca do Lixo e seus frequentadores, como que trazidos à rua do Triunfo pela vontade de Candeias em fixá-los naquele espaço. A partir da ordenação das fotos, aos poucos, nos aproximamos da Boca do Lixo. É como se a região tivesse um poder de imantação. Como se a história do cinema brasileiro, reorganizada por meio do gesto do fotógrafo, tivesse por cenário necessário a Boca do Lixo. Nesta coletânea coexistem duas formas de registro. Por um lado, algumas das fotos revelam a ação do fotógrafo diretamente sobre os corpos e o espaço. Isso está presente nos enquadramentos, na escolha do retrato como forma, bem como no trabalho de ampliação. Entre os principais traços interventivos, destacamse: a) a criação de verticalidades, unindo corpos e espaços; b) a construção de uma aura, atribuindo ao espaço traços oníricos; e c) o uso do recorte, de maneira a aproximar os técnicos e cineastas em relação à Boca do Lixo, ou ainda, gerando o acúmulo de corpos. Por outro lado, existe a apresentação pura e simples dos objetos, numa tentativa de documentação antropológica. Imaginariamente, a rua do Triunfo é cercada por figuras verticais. É o caso da torre da estação Júlio Prestes, dos postes da rede elétrica, dos orelhões e das fachadas dos prédios. Nas fotos de Candeias, existem rimas, entre a referida verticalidade e a postura dos corpos em pose. A presença da estação Júlio
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Figura 1: Álbum de cineastas e personalidades de Ozualdo Candeias, página 78. Acervo fotográfico da Cinemateca Brasileira.
Prestes, por exemplo, gera um forte impacto visual. Embora esteja presente em apenas quatro das 110 páginas, a sua aparição ecoa sobre as demais fotos. No caso da imagem da página 78, por exempl, os corpos de seis pessoas encontram-se de pé, em uma das calçadas da rua do Triunfo (FIG. 1). Ao fundo, os diferentes elementos do espaço urbano rimam, de forma a reiterar tal verticalidade. Há também uma parede imaginária, vertical, unindo as fachadas das diferentes casas da rua. Ressaltada por uma espécie de brilho branco, conseguido por meio de intervenções durante a ampliação da fotografia, nota-se uma superfície esbranquiçada. Ela parte do lado esquerdo, no primeiro plano, para o lado direito, ao fundo. Trata-se de um movimento que, acompanhado pelos postes situados à esquerda da rua, desemboca na torre da estação de trem. Desta forma, corpos, fachada dos prédios e postes rimam com a verticalidade imposta, ao fundo, pela torre. Um terceiro elemento a contribuir para a rima vertical, predominante na composição desta foto, é a provável ação do fotógrafo sobre a ampliação. O ato de interferir no suporte, recortando-o, aparece em diversas imagens da coleção de Candeias, depositada na Cinemateca Brasileira. No caso da foto da página 78 do álbum, a intervenção explica o fato do corpo do rapaz, situado em primeiro plano ao lado esquerdo, estar cortado, restando para dentro do quadro apenas trecho de suas pernas e de sua maleta. No outro canto da fotografia, um homem de
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terno também tem a ponta do cotovelo cortada pela borda do quadro. Por meio da verticalidade, os profissionais de cinema e a Boca do Lixo rimam, unindo-se. Promove-se um diálogo, no qual os corpos adquirem características urbanas (verticalidade) e o espaço urbano é humanizado. Eis o efeito da névoa, que percorre a rua do Triunfo captada pelo fotógrafo. Ela se aproxima de algo brilhante, onírico, cuja nebulosidade contribui para a sua apreensão enquanto algo uno e aparentemente importante. Com seus reflexos brancos, que podem ser aproximados da noção benjaminiana de aura (Cf. BENJAMIN, 1994), a rua parece única e longínqua. Com seus contornos parcialmente embaçados, auráticos, unindo-se ao fundo com a torre, a rua do Triunfo deixa de apresentar-se apenas como palco, passando a ser também um personagem. Como um álbum familiar, este conjunto de imagens de Candeias aproxima membros de um mesmo grupo, que possuem algo em comum. A função de tais imagens não tem a ver com o espaço de exposição das galerias ou dos museus. Um álbum deve ser manipulado, passado de mão em mão. Aparentemente, ele cumpre a simples função de comprovar que aquelas pessoas existiram e estiveram reunidas naquele local. Não um lugar qualquer: a Boca. A confecção do álbum sugere, novamente, uma ação do fotógrafo sobre o material fotográfico. Ele elege, seleciona, recorta, aproxima, une diversos corpos – cuja identificação seria impossível, para uma pessoa estrangeira ao cinema paulista da época, sem a ajuda das legendas. Eis mais uma forma de poder sobre as pessoas fotografadas, que terá reflexos sobre os personagens dos filmes de Candeias. Um álbum é uma coleção de fragmentos, unidos com a finalidade de legitimar um determinado grupo. No caso de Candeias, o gesto originador do álbum, para além de validar um conjunto de cineastas, atores, atrizes, críticos e técnicos de cinema, possui uma vertente espacial: busca unir tais corpos ao espaço da Boca, espaço imantado e, do ponto de vista do álbum, fundador do próprio cinema brasileiro. Com o intuito de exemplificar tal gesto fundador, podemos retornar ao grupo de fotografias, para a descrição de mais alguns exemplos. A ação de recorte propicia uma aproximação, entre os corpos e o espaço da Boca. Na página 65 do álbum, em uma
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Figura 2: Álbum de cineastas e personalidades de Ozualdo Candeias, página 65. Acervo fotográfico da Cinemateca Brasileira.
mesma cartela, encontram-se fotos de duas pessoas diferentes. Ademar Gonzaga está na Boca do Lixo; Alberto Pieralisi, não (FIG. 2). No retrato de Adhemar Gonzaga, percebemse novamente as rimas verticais, explicitadas em primeiro plano pela relação do corpo com os postes e, ao fundo, pela enevoada presença da torre da estação Júlio Prestes. A intervenção do fotógrafo sobre as ampliações está sempre presente e, em alguns momentos, tende a uma segunda forma de recorte que atua sobre os próprios corpos, aproximando-os por meio de colagens fotográficas, nos quais os contextos de origem de cada material são descartados. Outro efeito do recorte é o amontoamento de corpos, tendo por pano de fundo as calçadas e interiores de bares da região. Na página 100, por exemplo, Candeias faz uma homenagem aos tipos humanos que transitavam pelas imediações da Boca (FIG. 3). Prostitutas, transeuntes, um mendigo e até um estranho anão, cuja fisionomia lembra aqueles de Também os anões começaram pequenos (1970), de Werner Herzog, encontramse contemplados nesta fotomontagem. Provenientes de fotos e contextos fotográficos diferentes, estão de tal forma recortados e aglomerados que dão a impressão de um grande amontoamento de corpos, ao qual foi ironicamente atribuído pelo fotógrafo o nome “Pygocentrus Piraya”. O nome científico usado nesta cartela remete-se a uma espécie de piranha, típica de rios brasileiros. Nesta foto, seu uso ironiza as prostitutas, mas também sugere um mapeamento documental da fauna humana frequentadora da Boca do Lixo. Trata-se de um dos traços, apontados por Ricardo Mendes na obra fotográfica de Candeias (MENDES, 2002: 94). O título da composição da página 100 refere-se a tais figuras a partir de um ponto de vista objetivo, uma tentativa irônica de roupagem científica, embora aplicada a imagens resultantes de uma abordagem bastante informal e descontraída. Alguns dos comentários, tecidos a respeito da exposição fotográfica A boca (1984), contribuem para pensar no álbum
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fotográfico aqui discutido. No artigo “Flagrantes de uma estética bizarra” (01 jun. 1984), Miguel de Almeida enfatiza o universo urbano e, em especial, os personagens marginais retratados por Candeias. Inspirada na Geografia Urbana, a argumentação deste crítico identifica nas fotografias uma paisagem física e humana. Nela, coexistem diferentes temporalidades, comportamentos e linguagens. Eis a base da estética bizarra referida por Almeida: a constatação de tal multiplicidade de elementos, em busca do desconhecido, do inaudito. É possível depreender que neste espaço, cuja arquitetura incorpora temporalidades variadas, os personagens também apresentam múltiplas fisionomias e comportamentos. Miguel de Almeida interessa-se também pela manipulação, exercida por Candeias sobre as pessoas retratadas. Trata-se de um olhar crítico, pautado pela “alquimia da transformação” (ALMEIDA, 1 jun. 1984). Uma transformação presente na ideia de um clique quase irônico – flagrando os personagens, descobrindo algo inaudito – , ou ainda, nas referências à caricatura4. Neste extremo, chegamos a uma nova maneira de manipulação dos corpos, de forma a reafirmar o poder exercido pelo fotógrafo sobre os personagens. No álbum aqui discutido, a deformação dos corpos pelo uso da lente grande angular é explicitada apenas em um dos retratos; aquele de Luiz Sérgio Person, na página 36 (FIG. 4). Apesar disso, este efeito é amplamente usado em outras das fotos da coleção de Ozualdo Candeias, disponibilizada pela Cinemateca Brasileira. O uso da grande angular aparecerá em outros trabalhos do fotógrafo/cineasta, tais como o livro de fotografias Uma rua chamada Triumpho e o documentário Bocadolixocinema (1976). Ao explorar o grotesco, o uso da grande angular nos remete a um ensaio fotográfico, publicado por Candeias em Cinema em Close-Up (CANDEIAS, 1977). Neste ensaio acompanhado por um pequeno texto, são apresentadas fotos de uma moça nua,
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Figura 3: Álbum de cineastas e personalidades de Ozualdo Candeias, página 100. Acervo fotográfico da Cinemateca Brasileira. 4. Junto com a exposição A boca, Candeias expôs um conjunto de caricaturas, feitas por um amigo, inspiradas nas fisionomias de personagens presentes nas fotos. Este dado está presente no próprio artigo de Miguel Almeida (1 jun. 1984).
Figura 4: Álbum de cineastas e personalidades de Ozualdo Candeias, página 36. Acervo fotográfico da Cinemateca Brasileira.
feitas com uma “objetiva de foco curto” (CANDEIAS, 1977: 9). O cineasta/fotógrafo questiona o uso do corpo feminino presente no cinema, no teatro e na publicidade da época. Segundo ele, o nu era utilizado para vender “desde segredos de Estado a papel higiênico” (CANDEIAS, 1977: 9). Nas referidas imagens, o corpo da garota tem as nádegas aumentadas, dando origem a uma massa de celulite, passando assim a um outro tipo de registro. O corpo chama a atenção pela expressividade de sua massa. Nas palavras do próprio fotógrafo, “a celulite, a luz e a deformação foram utilizados como elementos estético/dramáticos”. (CANDEIAS, 1977: 9) O gosto pelo grotesco aparece também nos filmes do cineasta. Neste caso, a distorção dos corpos decorre do uso de lentes alternativas, da superexposição da película à luz, ou ainda, da predileção por corpos deformados. O curta-metragem A visita do velho senhor (1976) é um bom exemplo. No seu início, é usado um tipo de lente que embaça a imagem, mimetizando a visão distorcida de um portador de catarata. Já no filme A opção (1981), há um deficiente físico, que come segurando o garfo entre o ombro e o pescoço, sobe escadas de cabeça para baixo e usa os braços como pernas. Outra referência ao uso da grande angular é um conjunto
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de retratos de cineastas, também constantes no acervo da Cinemateca Brasileira. Neles estão representados cineastas como Sérgio Person, Ary Fernandes, Anibal Massaini, Edward Freund, Lima Barreto e Maurício Rittner, a partir de uma técnica baseada na colagem. O retrato inicial de cada uma destas pessoas, feito com uma grande angular, é recortado. Depois, ele é colado sobre um novo fundo, composto por outros rostos e objetos, contendo também legendas com os nomes do cineasta e dos filmes por ele produzidos. A imagem final representa rostos grotescos, circundados por figuras fragmentadas e legendas. A moldura, por sua vez, atribui à foto um uso específico. Suas dimensões reduzidas indicam uma possível troca de mão em mão. Por outro lado, essa moldura destaca as figuras dentro dela representadas. Os cineastas são afirmados enquanto estrelas, dignas de serem memoradas e afixadas em uma parede como um quadro. Tais retratos servem como provas, da existência das pessoas retratadas e do ofício por elas realizado. Assim como o álbum, tais quadrinhos podiam ser passados de mão em mão, de forma a legitimar e unificar uma família, um acontecimento ou um ritual. A troca de fotografias, cuja forma remete àquela de certos retratos familiares, pode ser vista como mais uma forma de manipulação dos corpos, agora transformados em personagens, ou membros de um grande clã. A partir da documentação fotográfica realizada por Candeias vislumbra-se o tipo de envolvimento estabelecido por ele com os frequentadores e a produção cinematográfica da Boca. A convivência estabelecida parece ultrapassar o contato profissional, configurando-se como o reconhecimento, ou legitimação social, do cineasta/fotógrafo como o detentor do poder de fixar e criar a memória daquele grupo de pessoas. Nos retratos de Candeias, é possível identificar algumas das funções sociais, atribuídas por Pierre Bourdieu (1965) às fotografias familiares. Trata-se de um instrumento de solenização, usado em momentos rituais, que escapam ao cotidiano. Sua função é aquela de integração, a partir da manutenção de uma memória coletiva, que anula uma memória simplesmente individual. Os indivíduos, por sua vez, são fixados em condutas socialmente reguladas e aprovadas, indicadas pelas legendas e pela ordenação dentro das imagens. Em muitas das fotos de Candeias, a Boca do Lixo está em festa. Trata-se de um ato simbólico de resistência, do cinema nacional diante do cinema estrangeiro, tendo por heróis os cineastas, técnicos e habitantes da Boca.
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A ação de Candeias sobre os corpos, o espaço e o suporte em si da imagem atinge outro patamar quando pensamos nos documentários Uma rua chamada Triumpho 1970/71 (1971) e Uma rua chamada Triumpho 1971/72 (1971). São duas versões de um curta-metragem realizado pelo cineasta. Neles, a história da rua do Triunfo e de seus profissionais é contada, a partir da reapropriação das fotografias feitas por Candeias. Por meio da técnica de table top, as fotografias ganham dinâmica, abordadas pelos nervosos movimentos óticos e oscilações de câmera feitos pelo cineasta. Assim, a câmera explora tais imagens recortando-as, percorrendo-as minuciosamente, aproximando-se, distanciandose, entre outros deslocamentos bruscos. Os trechos de fotografias, recortados pelos enquadramentos escolhidos, sucedem-se ao som off de uma voz que cumpre a mesma função das legendas no caso do álbum: explica quem são as pessoas apresentadas pelas imagens, citando nomes, filmes e empresas às quais estão ligados. Novamente nestes documentários percebe-se a importância dada aos corpos, apresentados por meio de retratos filmados. Assim como nas fotos, a Boca aparece como um importante espaço/ cenário. Nos filmes, ela adquire uma história e uma temporalidade na qual os corpos e a atividade cinematográfica se inserem. Os comentários aqui reunidos constituem um ponto de partida, para um estudo mais amplo a respeito da produção fotográfica do cineasta. Eles sugerem um exame do uso das fotos pelos frequentadores da Boca do Lixo, bem como das poses e das relações estabelecidas entre fotógrafo/cineasta e fotografados. Um trabalho de reorganização e mapeamento da obra fotográfica de Candeias, levando em conta um universo documental mais amplo, possivelmente existente, porém até agora inacessível, poderá ajudar a responder estas indagações.
Referências ABREU, Nuno César. Boca do Lixo: cinema e classes populares. Campinas: Ed. da Unicamp, 2006. ALMEIDA, Miguel de. Flagrantes de uma estética bizarra. Folha de S. Paulo, 01 jun. 1984. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, Arte e política. Obras escolhidas vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196.
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BOURDIEU, Pierre. Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie. Paris: Les Editions de Minuit, 1965. CANDEIAS, Ozualdo R.. Ozualdo R. Candeias. Cinema em Close-Up, v. 3, n. 14, 1977, p. 8-9. ______. [currículo do cineasta] 1979. Arquivo Plínio Garcia Sanchez. Cinemateca Brasileira. ______. Ozualdo Candeias. Entrevista concedida a Jairo Ferreira. Cine imaginário, v. 4, n. 43, jun. 1989, p. 8-9. ______. Uma rua chamada Triumpho. São Paulo: Ed. do autor, 2001. FERREIRA, Jairo. Candeias, opção do cinema independente. Folha de S. Paulo, Ilustrada, São Paulo, 13 Jun. 78, p. 27. JOANIDES, Hiroito de Moraes. Boca do lixo. São Paulo: Labortexto Editorial, 2003. MACHADO JR., Rúbens. Uma São Paulo de revestrés: Sobre a cosmologia varziana de Candeias. Significação, São Paulo, n. 28, 2007, p. 111-131. MENDES, Ricardo. Candeias fotógrafo. In: PUPPO, Eugênio; ALBUQUERQUE, Heloísa. Ozualdo R. Candeias 80 anos. São Paulo: Heco Produções, 2002, p. 94. PORTÃO, Ramão Gomes. Estórias da Boca do Lixo. São Paulo: Livraria Exposição, s.d. SIMÕES, Inimá. O imaginário da Boca. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1981.
Arquivos Consultados Coleção Ozualdo Candeias – Setor de Fotografia da Cinemateca Brasileira. Arquivo Plínio Garcia Sanchez – Arquivos Especiais/ Cinemateca Brasileira. Coleção Ozualdo Candeias – Arquivos Especiais/ Cinemateca Brasileira.
Data do recebimento: 4 de setembro de 2011 Data da aceitação: 23 de dezembro de 2011
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(IMAGEM)
Investigação sobre uma imagem (Carta a Jane) 1 jean - luc godard e jean - pierre gorin
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Cara Jane, No folheto publicitário que acompanha Tout va Bien2 nos festivais de Veneza, Cartago, Nova York e San Francisco, preferimos incluir, em vez das fotos do filme, uma foto sua no Vietnã. Encontramos essa foto em um número de L’Express3 no início de agosto de 72, e pensamos que ela nos permitirá falar muito concretamente dos problemas levantados por Tout va Bien. Não se trata, absolutamente, de desconversar e não falar de Tout va Bien, como se temêssemos falar deste filme. De modo algum. Mas trata-se também de não marcar passo (como as tropas do fantoche Thieu4 em Quang-Tri), o que, mais cedo ou mais tarde, leva a pisotear os outros para sair do atoleiro (como os obuses da 7ª frota sobre Quang-Tri5). Trata-se, portanto, de fazer um desvio, mas um desvio direto, por assim dizer. Isto é, um desvio que nos permitirá enfrentar diretamente os terríveis pequenos problemas colocados, bem ou mal, pelo filme que rodamos juntos no início deste ano. E em vez de esquadrinhar desde já as qualidades e os defeitos de nosso filme, preferimos convidar os críticos, os jornalistas, os espectadores, a fazerem conosco o esforço de analisar essa sua foto no Vietnã, tirada alguns meses depois do filme que fizemos em Paris. Com efeito, essa foto e o curto texto que a acompanha nos parecem capazes de resumir Tout va Bien melhor do que poderíamos fazê-lo. E isto por uma razão muito simples. Essa foto responde à mesma pergunta que o filme levanta: que papel devem desempenhar os intelectuais na revolução? A esta pergunta, a foto dá uma resposta prática (a resposta da sua prática). De fato, essa foto te mostra, Jane, a serviço da luta pela independência do povo vietnamita. A essa questão, Tout va Bien também responde, mas não do mesmo modo, pois, menos certo que a foto das respostas a dar, o filme faz primeiro outras perguntas. E estas equivalem, no fim das contas, a não levantar, tal e qual, a questão dos intelectuais e da revolução. Como então colocá-la? O filme ainda não responde com exatidão. Mas a maneira pela qual ele ainda não responde é, de fato, um modo indireto de fazer novas perguntas, pois de nada serve dar antigas respostas às questões colocadas pelo rumo atual das lutas revolucionárias.
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1. Este texto constitui a banda sonora do filme Letter to Jane (Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, 1972). Publicado originalmente na revista francesa Tel Quel, n.52, Inverno de 1972 (p.74-90), ele foi republicado mais tarde, sob o título “Enquête sur une image”, no volume Godard par Godard, organizado por Alain Bergala (Paris: Cahiers du Cinéma / Ed. de l’Etoile, 1985, p.350-362). Assinada por Luiz Rosemberg (a quem devemos, entre muitas outras coisas, a organização do precioso volume Jean-Luc Godard, Rio de Janeiro, Taurus, 1987, 257p.), uma primeira versão desta tradução tomou como base o texto de Tel Quel e saiu publicada na revista eletrônica Farnel, Rio de Janeiro, n.0, setembro de 2006. Muito modificada, a tradução de Rosemberg reaparece aqui co-assinada, com seu acordo, por Mateus Araújo, que assumiu a tarefa de revisá-la atentamente do início ao fim, desta vez a partir do texto incluído no Godard par Godard. [N.d.E]. 2. Tout va bien (Godard & Gorin, França, 1972), com Jane Fonda e Yves Montand nos papéis principais. [N.d.T]. 3. Revista semanal francesa (fundada em 1953), de orientação centrista à época do filme. [N.d.T]. 4. General Nguyen Van Thieu, então presidente do Vietnã do Sul (de 1967 a 1975) aliado aos Estados Unidos na guerra contra o Vietnã do Norte e o Vietcongue. [N.d.T]. 5. Ao mencionarem a província de Quang-Tri nestes dois parênteses vizinhos, os cineastas aludem a vitórias militares (de fevereiro de 1968 ou março de 1972) do coletivo Vietcongue / Vietnã do Norte sobre as tropas do Vietnã do Sul e seus aliados americanos naquela região, bem como à pesada reação militar americana que se seguiu, ali como alhures. [N.d.T].
É preciso também aprender a formular tais questões. E aprender com aqueles que, embora ainda não tenham tido tempo de redigir claramente essas novas questões, já conquistaram o terreno em que elas poderão florescer e se desenvolver, e o conquistaram através de uma prática nova. Dizíamos que a nossa maneira de não dar ainda uma resposta, como davam os vietnamitas e você naquela fotografia, era, na verdade, uma forma indireta de levantar novas questões. Uma forma indireta. Uma forma desviada. Agora você pode compreender porque a necessidade de um desvio antes de falar do filme. E porque um desvio pelo Vietnã. Primeiro, porque todo mundo concorda que lá se colocam questões realmente novas. E depois, porque você estava com eles após ter estado conosco. Daí, ao olharmos essa foto de uma atriz no teatro das operações, o nosso desejo de interrogá-la. Interrogar não a atriz, mas a foto. E, para nós, isto equivale a fazer algumas novas perguntas para a clássica resposta que os vietnamitas e que você, tirando e divulgando esta foto, deram a essa célebre questão dos intelectuais. Algo mais também contou em nossa decisão de aproveitar esta foto para fazer um desvio pelo Vietnã. Esse algo é nosso desejo de falar realmente do filme com os espectadores, sejam eles jornalistas ou não. Todo mundo é seu próprio jornalista e editorialista em função de como narra seu dia, o representa, faz para si mesmo seu “cineminha” a propósito da sua atividade material e cotidiana. E é precisamente desse “cineminha” e não do outro, inventado por Lumière e pela revolução industrial, que queremos enfim falar com o espectador. Mas, para isso, precisamos de um desvio. Afinal, assim como um filme é uma espécie de desvio que nos devolve a nós mesmos, para voltarmos ao filme devemos fazer esse desvio em nós mesmos. E aqui, nos Estados Unidos, “nós mesmos” quer dizer primeiro, ainda hoje, o Vietnã. Explicaremos isto um pouco mais detidamente. Pensamos que é importante e urgente falar um pouco, realmente, com aqueles que se deram ao trabalho de ver nosso filme. “Realmente” quer dizer lá onde eles estão e também aqui onde estamos. É preciso portanto fazer com que eles possam, realmente, apresentar questões se quiserem, ou dar respostas às perguntas que fizemos. É preciso que eles possam refletir. E refletir, antes de tudo, sobre
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este problema das perguntas e das respostas. É necessário que nós também possamos ser, realmente, afetados pelas perguntas (ou respostas) dos espectadores, e que possamos responder (ou questionar) com algo diferente de respostas (ou perguntas) já prontas a perguntas (ou respostas) já prontas também. Mas feitas por quem? Para quem? Contra quem? Ou seja, para introduzir uma possibilidade real de discussão a propósito de Tout va Bien, nos situaremos fora de Tout va Bien. Para falar desta máquina, sairemos da fábrica que a utiliza. Encontraremos nossa base de discussão fora do cinema, mas para voltarmos melhor a ele. E quando tivermos voltado, para partirmos novamente com melhor passo em direção aos problemas reais de nossa vida material real, da qual o cinema terá sido apenas um dos elementos. Não vamos deixar, nem abandonar Tout va Bien. Ao contrário, vamos partir do filme, partir para ir a outro lugar, ao Vietnã por exemplo, já que você está voltando de lá. Mas, e isto é o importante, vamos para lá com nossos próprios meios. De que meios se trata? De nossos meios técnicos de trabalho e do uso social que deles fazemos (você nessa foto, no Vietnã, nós com o filme em Paris). E é exatamente a partir deste uso que poderemos julgar melhor. E por uma vez não estaremos sós, o espectador também estará ali, ele produzirá ao consumir, e nós consumiremos ao produzir. Talvez tudo isso lhe pareça complicado. É que, como dizia Vertov a Lênin, a verdade é simples, mas não é simples dizê-la, e o tio Brecht havia percebido, em sua época, cinco dificuldades para dizê-la. Bem. Expliquemos isto de outro modo. Nos dias de hoje, diz-se frequentemente que o cinema deve “servir ao povo”. Ok. Ao invés de teorizar sobre os defeitos e as qualidades de Tout va Bien, iremos ao Vietnã. Mas iremos com e pelos meios de Tout va Bien. Vamos observar, se podemos dizer assim, como Tout va Bien “trabalha” no Vietnã. Em seguida, deste exemplo prático poderemos tirar, eventualmente, algumas conclusões sobre as coisas a fazer e a evitar, cada um de nós ali onde está, com sua mulher, seu patrão, seus filhos, seu dinheiro, seus desejos, etc. Em suma, vamos usar esta foto para ir ao Vietnã investigar esta questão: como o cinema pode ajudar o povo vietnamita a conquistar sua independência? E, como já dissemos várias vezes,
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6. Henry Kissinger, diplomata naturalizado americano, conselheiro de segurança nacional do governo de Richard Nixon à época do filme. Responsável por graves crimes de guerra no Vietnã, chegou a dividir com Le Duc Tho o prêmio Nobel da Paz em 1973 pelo cessar fogo. [N.d.T].
não somos os únicos a usar essa foto para ir ao Vietnã. Milhares de pessoas já o fizeram, provavelmente quase todo mundo aqui já viu essa foto e, durante alguns segundos, à sua maneira, se serviu dela para ir ao Vietnã. É exatamente isso que julgamos importante saber: como ele se serviu dessa foto para ir ao Vietnã; na verdade, como ele foi ao Vietnã. Porque o doutor Kissinger6 também vai ao Vietnã várias vezes por ano. E alguém como o doutor Kissinger, exatamente, nos perguntará o por quê dessa foto, e qual relação pode haver entre essa foto e Tout va Bien. E ele e seus amigos dirão que isto não é sério, que seria melhor falarmos do filme, da arte, etc. Mas é preciso fazer o esforço de ver que reflexões deste tipo falsificam a si mesmas ao se formularem assim, elas complicam tudo e impedem na verdade outras perguntas mais simples (como se diz das pessoas simples). Por exemplo, antes de dizer ‘qual relação’, é preciso perguntar primeiro: existe uma relação? E se existe, só depois perguntar qual é ela. E em seguida, só tendo descoberto qual é tal relação (aqui descobriremos mais adiante que a relação entre nosso filme e essa foto é o problema da expressão) poderemos eventualmente julgar sua importância, isto é, estabelecer outras relações com outras perguntas importantes e com outras respostas importantes. Isto parece bobagem, mero blábláblá, mas já na outra ponta desta nova pequena cadeia de perguntas, a questão da importância, que outros chamam de questão do resultado prático, se afigura extremamente importante. E isso porque o coletivo Vietnã do Norte / Vietcongue já respondeu à pergunta sobre a importância dessa foto, ao conseguir fazê-la publicar em toda parte no mundo “livre” (esse mundo livre que o encarcera), mostrando com isso a importância que atribuía a essa foto, a importância que atribuía à questão do resultado prático, a importância que atribuía à questão da importância. Esta foto é, portanto, uma resposta prática que os nortevietnamitas, com sua ajuda, Jane, decidiram dar à famosa pergunta que fazíamos há pouco: que papel deve desempenhar o cinema no desenvolvimento das lutas revolucionárias? Pergunta célebre, que ecoa uma outra não menos famosa: qual é o papel dos intelectuais na revolução? A esta pergunta, à qual essa foto dá uma resposta prática (a resposta da prática de um povo; a foto é feita e publicada, e
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é feita desse modo para se ter a certeza de publicá-la em toda parte, como de fato ocorreu, do contrário não a teríamos), a essa pergunta, ocorre que Tout va Bien também responde. Mas de outro lugar e de outra maneira. Uma maneira que consiste na verdade em não dar imediatamente este tipo de resposta. Uma maneira que consiste em dizer: aqui na França, onde estamos, em 1972, governados pelos amigos dos americanos e dos russos, nem tudo está tão claro ou tão evidente (lembramos, particularmente, de Fidel Castro dizendo na ONU que, para os revolucionários, nunca havia verdades evidentes, o imperialismo é que as inventara, e os grandes se serviam habilmente delas para oprimir os pequenos). E já que nem tudo é evidente, Jane, continuemos a nos perguntar, mas nos esforcemos para fazê-lo diferentemente. Numa palavra, façamos perguntas novas para podermos dar novas respostas. Por exemplo, observemos como os vietnamitas traduzem seu combate e nos questionemos, já que também queremos traduzir nossa luta. E, em primeiro lugar, perguntemonos honestamente o que nos permite dizer que realmente combatemos. Mas talvez nesse ponto, Jane, você nos pergunte: por que essa foto minha e não uma de Ramsey Clarke7, por exemplo? Ele também estava no Vietnã, também testemunhou o bombardeio dos diques. Simplesmente você, Jane, por causa de Tout va Bien, e porque seu estatuto social no filme era o mesmo que nessa foto. Você é uma atriz. Somos todos atores no teatro da história, é verdade, mas além disso, você faz cinema e nós também. Então, você poderia dizer: por que não Yves Montand no Chile? Ele também estava no filme. É verdade. Mas acontece que os revolucionários chilenos não julgaram oportuno divulgar fotos de Yves, ao passo que os revolucionários vietnamitas julgaram oportuno, com teu acordo, divulgar fotos tuas (na verdade, fotos de teu acordo com a causa vietnamita). Além disso, há outro problema, que não podemos evitar. Somos dois rapazes que rodamos Tout va Bien, e você é uma moça. No Vietnã, a questão não se coloca assim, mas aqui sim. E enquanto mulher, você ficará certamente um pouco, ou muito, magoada pelo fato de criticarmos, um pouco, ou muito, sua maneira de atuar nesta foto. Magoada, porque são ainda e sempre os caras que se viram para atacar as moças. Só por isso, já esperamos que você possa vir responder de viva-voz à nossa
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7. Jurista e ativista americano de orientação liberal (no sentido americano), muito combativo na luta pelos direitos civis e contra a agressão ao Vietnã. [N.d.T].
8. Dificilmente traduzível, o original dizia “on est dans le même bain, un grand bain/bordel dont cette photo peut servir de révélateur” (Godard par Godard, 1985, p.353). [N.d.T].
carta, à medida que a leiamos em dois ou três lugares dos Estados Unidos. Mas é verdade também que nos Estados Unidos e na Europa ainda estamos nessa situação (ou já estamos nela). E você e nós estamos mergulhados na mesma água, uma água turva8, da qual essa foto pode servir de revelador. Nós partimos daí. De você nos Estados Unidos. De nós em Paris. De você e nós em Paris. De você no Vietnã. De nós em Paris te olhando no Vietnã. De nós que vamos aos Estados Unidos. E de todo mundo aqui nesta sala de cinema que nos escuta e te observa. Partimos de tudo isso. Tudo isso está organizado de um certo modo, funciona de um certo modo. Queremos discutir isso, partir daí. Partir de Tout va Bien, ir ao Vietnã, voltar ao Tout va Bien, isto é, voltar do Vietnã a esta sala onde se projeta Tout va Bien e depois voltar para casa, e amanhã voltar à fábrica. Para falar de tudo isso, mostramos essa foto às pessoas. Ou melhor, tornamos a mostrá-la, pois os norte-vietnamitas e você já a tinham mostrado. Dito de outro modo, perguntamos e nos perguntamos: tínhamos olhado esta foto? O que tínhamos visto nela? E sobre cada pergunta descobrimos outra. Por exemplo: como olhamos esta foto? Como nosso olhar funcionou ao olhá-la? E o que o faz funcionar assim e não de outro modo? E ainda outra pergunta: o que faz com que nossa voz traduza nosso olhar mudo desse modo e não de outro? E acontece precisamente que Tout va Bien faz todas essas perguntas. Elas podem se resumir à grande questão do papel dos intelectuais nas lutas revolucionárias. Ou melhor, começamos a ver que essa grande e famosa questão dos intelectuais se bloqueia a si mesma, quando a formulamos tal e qual. E bloqueia as outras. E, finalmente, não é mais uma questão que pertence ao campo da revolução. A questão atual da revolução (vamos descobrila a propósito dessa foto, e depois a propósito do filme) seria antes: como mudar o velho mundo? E vemos imediatamente que o velho mundo do Vietcongue não é o mesmo que o de um intelectual ocidental, que o velho mundo de um palestino não é o mesmo que o de um menino negro do gueto, que o velho mundo de um operário especializado da Renault não é o mesmo de sua namorada. Vemos que essa foto dá, portanto, uma resposta prática a essa questão de mudar o velho mundo. Vamos, portanto, examinar
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essa foto/resposta, investigá-la. Vamos apontar indícios. Vamos analisá-los e sintetizá-los. Tentaremos explicar a organização dos elementos que compõem essa foto. Vamos explicá-los, por um lado, como se se tratasse de um núcleo físico-fotográfico e, por outro lado, como se tratasse de uma célula fotográfico-social. Em seguida, tentaremos relacionar a pesquisa científica e a pesquisa mais diretamente política (“de onde vêm as ideias corretas: da luta pela produção, da luta de classes e da experimentação científica” - Mao). Realizar esta investigação, interrogar esta foto, o que é senão tratar de saber como foi dada (nas condições da luta no Vietnã) a resposta que a foto dá? Veremos, então, se essa resposta é inteiramente satisfatória para todo mundo (para quem? Contra quem?) e se, talvez, não começam a surgir outras questões, aquelas mesmas colocadas, bem ou mal, por Tout va Bien. Veremos, por exemplo, que uma parte importante da foto (a expressão da atriz, a relação boca/olhar), em nosso entender, não pode nos satisfazer, na Europa ocidental, da mesma maneira que a seus atores, aqueles que tiraram ou decidiram tirar essa foto (o coletivo Vietnã do Norte/Vietcongue), o que é absolutamente normal à primeira vista, dadas as condições diferentes; mas ainda será preciso considerar atentamente, e tão obstinadamente quanto eles, o que condiciona esse “normal”. Dizer isto não equivale a fazer simplesmente como a maioria dos partidos comunistas do ocidente e seus apoiadores (o Papa, a ONU, a Cruz Vermelha) que dizem simplesmente: ajudemos o Vietnã a obter a paz. Ao contrário, dizer o que dissemos é algo muito mais preciso. Por exemplo: ajudemos a aliança do Vietnã do Norte e do Vietnã do Sul a obter a paz. E ainda mais precisamente: já que, ao mudar seu velho mundo, o Vietnã nos ajuda a mudar o nosso, como podemos ajudá-lo realmente em retribuição? E já que o coletivo Vietnã do Norte/Vietcongue luta, critica e transforma o Sudeste Asiático, como podemos lutar do nosso lado para mudar a Europa e a América? Claro, isto é algo mais longo de dizer (do que “paz no Vietnã”) e mais minucioso de fazer (do que criar dois ou três Vietnãs), e é por isto que Marx já reclamava (no prefácio da primeira edição de O Capital) leitores sem medo das “minúcias” para derrubar “o rei do inferno e liberar os diabinhos”. Posto diante dessa foto por você, Jane, e pelos vietnamitas,
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há alguns meses, posto novamente diante dela agora por nós mesmos, cada um pode fazer, se quiser, sua própria investigação. Poderemos comparar depois, livremente, os resultados. Poderemos tomar a palavra sem, por isto, tirá-la dos que escutam. Em suma, poderemos talvez, por um breve instante, dizer menos bobagem sobre nós e a revolução. Uma última coisa. Para que você não se sinta pessoalmente atacada (mas sem realmente poder evitá-lo, e pensamos que a questão está mal colocada desse modo, e que, no final desta carta, também teremos progredido nisso, e por isto precisaríamos muito que você viesse nos responder diretamente, pois não te escrevemos só como realizadores de Tout va Bien, mas também como leitores desta foto, e você reconhecerá que é primeira vez que pessoas que viram uma foto sua lhe escrevem deste modo a propósito dessa sua foto que viram na imprensa), para que não se sinta diretamente visada, como se diz, para que sinta que visamos não Jane, mas uma função de Jane Fonda, ao interrogar essa foto falaremos de você na terceira pessoa. Não lhe diremos Jane fez isto ou aquilo, diremos a atriz ou a militante, assim como faz, aliás, o texto que acompanha a foto. Eis aqui, então, a nosso ver, quais são os principais elementos (e os elementos dos elementos) que desempenham um papel importante nesta fotografia publicada na revista francesa L’Express do início de agosto de 1972.
Elementos Elementares − Esta foto foi tirada a pedido do governo do Vietnã do Norte, representando nessa ocasião a aliança revolucionária entre os povos do Vietnã do Sul e do Vietnã do Norte. − Essa foto foi tirada por Joseph Kraft, definido ao pé da foto num texto redigido não por quem participou da ação de tirar a foto, mas por aqueles que a divulgam; isto é, por um ou vários redatores de L’Express, sem consulta à delegação norte-vietnamita na França (verificamos isso). − Esse texto diz que se trata de um dos mais conhecidos e moderados jornalistas americanos Diz também que a atriz é uma militante radical pela paz no Vietnã. Mas o texto não fala dos vietnamitas que vemos na foto. Não diz, por exemplo, que o vietnamita que não se vê, ao fundo, é um dos vietnamitas menos conhecidos e menos moderados.
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− Essa foto, como toda foto, é fisicamente muda. E fala pela boca da legenda situada ao seu pé. Essa legenda não sublinha, não repete (pois a foto fala e diz coisas a seu modo) que a militante ocupa o primeiro plano e o Vietnã, o fundo. A legenda diz: “Jane Fonda interroga habitantes de Hanói”. Mas o jornal não publica as perguntas feitas pela atriz, nem as respostas dadas pelos representantes do povo vietnamita ali fotografados. − Já podemos notar que esta legenda, na verdade, mente tecnicamente. Com efeito, ela não deveria dizer que “Jane Fonda interroga”, mas que “Jane Fonda escuta”. Isso salta aos olhos tão certamente quanto um raio laser. E talvez esta escuta não tenha excedido 1/250 de segundo, mas foi este 1/250 que se registrou e difundiu. − Provavelmente, ao falar assim a legenda quer simplesmente dizer que se trata de um instantâneo tirado durante uma discussão em que a atriz/militante interrogava, realmente, habitantes de Hanói, e que não se deve dar importância a esse detalhe da boca fechada. Mas veremos mais adiante que não se trata de um acaso, ou melhor, que se algum acaso existiu, ele foi em seguida explorado no interior da necessidade capitalista, da necessidade para o capital de mascarar o real no momento mesmo em que o desmascara, ou seja, de “enganar” sobre a mercadoria.
Elementos menos elementares − A posição da câmera fotográfica é chamada de contraplongée. Ela não é hoje, na história da fotografia, uma posição inocente (tinha sido muito bem definida técnico-socialmente, embora inconscientemente, por Orson Welles em seus primeiros filmes). Hoje, por exemplo, o fascista Clint Eastwood sempre é filmado em contra-plongée. − A escolha do enquadramento tampouco é inocente ou neutra: enquadra-se a atriz que olha e não o que ela olha. Enquadrase a atriz, portanto, como se ela fosse a vedete. E isto porque, de fato, a atriz é uma vedete internacionalmente conhecida. Em suma: por um lado, enquadra-se a vedete militando, e por outro, no mesmo movimento enquadra-se também a militante como vedete. O que não é a mesma coisa. Ou melhor, o que pode ser a mesma coisa no Vietnã, mas não na Europa ou nos Estados Unidos. − Na página seguinte, vemos de resto não o que a militante
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9. GRP, Governo Revolucionário Provisório da República do Vietnã do Sul, foi um órgão central criado em 1969 naquele país para dirigir a ação da Frente Nacional de Libertação, lutar contra o exército americano e derrubar o governo de Nguyen Van Thieu. Após a vitória das forças revolucionárias em 1975, o GRP se torna o governo oficial do Vietnã do Sul. [N.d.T].
olhou nessa foto, e sim o que ela viu noutros momentos. Em nossa opinião, é a mesma cadeia de imagens do mesmo tipo que as transmitidas pelas cadeias de televisão e jornais do mundo “livre”. Imagens como já vimos centenas de milhares de vezes (tão frequentemente quanto as bombas) e que não mudam nada, exceto entre os que lutam para organizar esta cadeia de imagens de certa maneira, a sua (os 7 pontos do GRP9). Na verdade, se esta reportagem fosse assinada por um Dupont ou um Smith, a nosso ver os mesmos jornais a rejeitariam como banal demais. Realmente, para os meninos de uma comunidade agrícola da periferia de Hanói, deve ser banal reconstruir, digamos, pela vigésima vez, sua escola destruída pelos aviões Phantom do doutor Kissinger. Mas desta banalidade extraordinária, é claro, ninguém falará, nem a militante transformada em vedete, nem L’Express. − Não se dirá nada tampouco sobre o que puderam se dizer a atriz americana e suas irmãs, as atrizes vietnamitas que podemos ver também em foto na página seguinte. A atriz americana perguntou como se atua no Vietnã, ou como alguém que atua em Hollywood pode representar quando está em Hanói, de onde volta a Hollywood? Em nossa opinião, se L’Express não fala de nada disso, é porque a atriz americana também não fala. − É verdade que a militante falou das bombas de fragmentação e dos diques. Mas não se deve esquecer que a militante é também uma atriz, ao contrário do tribunal Russel ou de Ramsey Clarke, por exemplo. E convém lembrar que, precisamente por ela ser atriz, deve-se prestar atenção na Casa Branca que tentará, se a deixarem, dizer que essa atriz foi manipulada e recita um texto decorado. Tais críticas podem facilmente destruir todos os esforços da atriz e da militante. E deve-se ver porque essa destruição é possível. Para nós, nesse caso, é porque a atriz militante não falou dos diques a partir, por exemplo, de uma atriz vietnamita que os conserta primeiro, para dar em seguida um espetáculo teatral num vilarejo ameaçado pela ruptura dos diques. − Parece-nos já a este respeito que, se a militante partisse da atriz (e é o que fazem, a seu nível, os vietnamitas que a utilizam), ela poderia começar a desempenhar seu papel historicamente (historicamente), de um modo diferente do que se faz em Hollywood. Talvez os vietnamitas ainda não o necessitem diretamente neste terreno, mas os americanos provavelmente
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sim, e, portanto, indiretamente, os vietnamitas (reencontramos aqui a necessidade do desvio. Os vietnamitas são obrigados a fazer um desvio pelos Estados Unidos). − Nessa foto, nesse reflexo da realidade, duas pessoas estão fotografadas de frente, as outras de costas. Dessas duas pessoas, uma é nítida, a outra esfumada. Na foto, a americana famosa é nítida e o vietnamita anônimo, esfumado. Na realidade, é a esquerda americana que é esfumada e a esquerda vietnamita, extraordinariamente nítida. Mas na realidade, é também a direita americana que continua sendo extraordinariamente nítida, enquanto a direita vietnamita, a “vietnamização”, é cada vez mais esfumada. O que pensar, agora, da “moderação” [“mesure”] de Joseph Kraft, que mediu [a mesuré] todas as contradições, e que regulou o diafragma e a distância em função disso? Tudo isso foi medido, como vimos a propósito do enquadramento, com uma certa finalidade, a de focar a estrela militando e obter, assim, um certo produto, uma certa ideia/mercadoria, e isto novamente com um certo propósito. A produção deste produto, vale lembrar, está diretamente controlada pelo governo do Vietnã do Norte. Mas sua difusão fora do Vietnã não mais, ou muito indiretamente (nem sequer falamos da ação retroativa dessa difusão sobre a produção). Essa difusão está controlada pela cadeia de televisões e jornais do mundo “livre”. Há, portanto, uma parte do desenho que escapa aos desenhistas. Qual parte? E de qual partida de qual jogo se trata? E jogado por quem? Para quem? Contra quem? Digamos, simplesmente, agora (voltaremos a isso mais adiante) que se examinamos a relação nítido/esfumado expressa pelos dois rostos, percebemos algo extraordinário: o rosto esfumado é o mais nítido e o rosto nítido é o mais esfumado. O vietnamita pode se permitir ser esfumado por ser, há muito, nítido na realidade. O americano é obrigado a ser nítido (e é o esfumado vietnamita quem o obriga a isso, de uma forma muito nítida). O americano é obrigado a focar nitidamente seu real esfumado.
Elementos de elementos − Essa foto duplica outra foto da atriz que figurava na capa do mesmo número de L’Express. Este termo “capa” [couverture] é muito eloquente, se nos damos ao trabalho de ver que uma foto pode encobrir tanto quanto descobrir. Ela impõe o silêncio
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10. Organização comunista italiana fundada em 1969, que desempenhou um papel decisivo no episódio das greves da Fiat-Mirafiori em Turim naquele ano. Um de seus militantes criou em 1971 uma “Balada da FIAT” cantada em parte no miolo de Tout va bien. Cf. David Faroult, “De ‘la ballata della FIAT’ à la ‘chanson gauchiste’ de Tout va bien”, em Nicole Brenez et al., Jean-Luc Godard: Documents. Paris: Centre Pompidou, 2006, p.187-188. [N.d.T]. 11. Klute (Alan J. Pakula, EUA, 1971). [N.d.T]. 12. The Grapes of Wrath (John Ford, EUA, 1940). [N.d.T].
13. Young Mr. Lincoln (John Ford, EUA, 1939). [N.d.T]. 14. The Green Berets (John Wayne, EUA,1968). [N.d.T].
ao mesmo tempo em que fala. A nosso ver, isso é uma das bases técnicas do duplo aspecto de Jekyll e Hyde, capital fixo e capital variável, assumido pela informação/deformação quando ela se transmite por imagens/sons numa época como a nossa, a do declínio do imperialismo e da tendência geral à revolução. − A esquerda americana diz, frequentemente, que a tragédia está não no Vietnã mas nos Estados Unidos. A expressão do rosto da militante nessa foto é, de fato, uma expressão de atriz de tragédia, mas uma atriz formada social e tecnicamente por suas origens, isto é, formada/deformada na escola hollywoodiana do show-biz stanislavskiano. − A expressão da militante era a mesma em Tout va Bien, bobina 3, quando, atriz, ela ouvia uma figurante cantar um texto de Lotta Continua10. − A atriz também tinha este tipo de expressão quando, em Klute11, olhava com ar compassivo e trágico seu amigo, um policial interpretado por Donald Sutherland, e decidia passar a noite com ele. − Por outro lado, este já era o mesmo tipo de expressão que Henry Fonda usava nos anos 40 para interpretar o trabalhador explorado de As vinha da Ira12, do futuro fascista Steinbeck. E ainda mais longe na história paterna da atriz, no interior da história do cinema, esta é também a expressão que Henry Fonda havia usado para lançar aos negros olhares profundos e trágicos em Young Mr. Lincoln13, do futuro almirante de honra da Marinha, John Ford. − Por outro lado ainda, encontramos essa expressão no campo oposto, quando John Wayne se compadece dos estragos da guerra do Vietnã em Os Boinas Verdes14. − Em nossa opinião, essa expressão foi tomada de empréstimo (juros) à mascara cambista do New Deal de Roosevelt. Na verdade, é uma expressão de expressão, surgida por um acaso necessário no momento do nascimento econômico do cinema falado. É uma expressão que fala, mas só para dizer que sabe muito (sobre o Krach de Wall Street por exemplo) mas não dirá nada mais. É por esta razão, em nossa opinião, que esta expressão rooseveltiana difere tecnicamente das expressões que a precederam na história do cinema, as expressões das grandes estrelas do cinema mudo, Lilian Gish, Rodolfo Valentino, Falconetti e Vertov, enquanto ouvimos as palavras: filme = montagem do ‘eu vejo’. Basta fazer
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a experiência e fazer todos estes rostos olharem uma foto de atrocidades no Vietnã: nenhum terá a mesma expressão. − É que antes do cinema falado, o cinema mudo tinha uma base técnica materialista. O ator dizia: sou (filmado) logo penso (penso ao menos que sou filmado). É porque existo que penso. Depois do falado, houve um New Deal entre a matéria filmada (o ator) e o pensamento. O ator se pôs a dizer: penso (que sou um ator) logo sou (filmado). Sou porque penso. − Como acabamos de ver nesta experiência que aprofunda a de Kulechov, antes da expressão do New Deal, cada ator do cinema mudo tinha sua própria expressão, e o cinema mudo tinha verdadeiras bases populares. Ao contrário, quando o cinema falar como o New Deal, cada ator passará a dizer a mesma coisa. Pode se fazer novamente a mesma experiência com qualquer vedete do cinema, do esporte ou da política (alguns inserts de Raquel Welch, [Georges] Pompidou, Nixon, Kirk Douglas, [Alexander] Soljenítsin, Jane Fonda, Marlon Brando, oficiais alemães em Munique 1972, enquanto se ouve as palavras: penso, logo existo, e se veem em contracampo cadáveres vietcongues). − Essa expressão que diz muito, mas que não diz nem mais nem menos, é então uma expressão que não ajuda o leitor a ver mais claro em seus obscuros problemas pessoais (a ver em quê o Vietnã pode esclarecê-los, por exemplo). Por que então contentarse com ela e dizer que ela já é algo e permite que algo se transmita (todo o discurso do sindicato em Tout va Bien, bobina 3)? E por que, se a atriz ainda não é capaz de representar de outra forma (e nós ainda não somos capazes de ajudá-la corretamente a fazer isto), por que os norte-vietnamitas deveriam contentar-se com ela nesse campo? Em todo caso, por que nos contentaríamos com o contentamento dos vietnamitas? Nossa opinião é que nos arriscamos a lhes fazer mais mal do que bem, ao nos fabricarmos uma boa consciência tão barata (dito em termos científicos: o movimento que vai da entropia negativa à informação não custa caro). Afinal de contas, essa expressão também se dirige a nós, que fazemos o esforço de olhá-la pela segunda vez. É a nós que esse olhar e essa boca não dizem nada, se esvaziam de sentido, como os dos meninos tchecos diante dos tanques russos ou as grandes barriguinhas de Biafra e Bangladesh, ou os pés dos palestinos no barro cuidadosamente mantido pela UNWRA15. Vazio de sentido, atenção, para o capital que sabe embaralhar as pistas, que sabe
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15. A Wikipédia nos lembra que a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente, também conhecida pela sigla UNRWA (United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugeesin the Near East), é uma agência de desenvolvimento e assistência humanitária que proporciona cuidados de saúde, serviços sociais, educação e ajuda de emergência a mais de 4 milhões de refugiados palestinos que vivem na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, na Jordânia, no Líbano e na Síria. [N.d.T].
preencher com um sentido vazio o olhar real de seus futuros inimigos já presentes, olhar que ele precisa “ausentar”, fazê-lo voltar-se para lugar nenhum. − Como lutar contra essa situação de fato? Não cessando de publicar essas fotos e esta foto em questão (seria preciso suprimir imediatamente a totalidade das emissões de televisão e rádio, em quase todos os países do mundo, assim como todo tipo de jornais, o que é uma utopia). Não. Mas pode-se publicá-las de outro modo. E é neste “outro modo” que as vedetes, pelo seu peso monetário e cultural, têm um papel a desempenhar. Um papel esmagador, como se diz. E a verdadeira tragédia é que elas não sabem como desempenhar esse papel esmagador. São ainda os vietnamitas que se aplicam, eles, as vedetes da guerra revolucionária de independência. Como desempenhar esse papel? O que fazer para aprender a representá-lo? Muitas questões se colocam ainda na Europa e nos Estados Unidos antes de podermos responder com clareza. Nós colocamos algumas delas em Tout va Bien (como Marx, em sua época, partindo da Ideologia Alemã chegava a levantar a questão da Miséria da Filosofia contra Proudhon, que só sabia filosofar sobre a miséria). − Se observamos atentamente o norte-vietnamita situado atrás da atriz americana, percebemos logo que seu rosto expressa algo completamente diferente do que expressa o da militante americana. Por mais que não se veja aquilo que ele olha, se o isolamos e o enquadramos sozinho, percebemos que seu rosto remete àquilo que ele enfrenta todos os dias: bombas de fragmentação, diques e mulheres estripados, a casa a reconstruir pela décima vez, ou o hospital, a lição a aprender (Lênin dizia: primeira lição, aprender; segunda lição, aprender; terceira lição, aprender). E a imediata referência desse rosto à luta cotidiana é possível por uma razão muito simples: ele não é só um rosto de revolucionário, mas um rosto de revolucionário vietnamita. Um longo passado de lutas está cruelmente inscrito neste rosto, há muito tempo, pelo imperialismo francês, japonês e americano. Na verdade, esse rosto é reconhecido, há muito tempo, como o rosto da revolução no mundo inteiro, e até mesmo por seus inimigos. Não tenhamos medo das palavras: é um rosto que já conquistou a independência de seu código de comunicação. Nenhum outro rosto de revolucionário poderia atualmente remeter, de forma tão imediata quanto o dele, ao combate cotidiano. Simplesmente
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porque nenhuma revolução, exceto a chinesa, fez ainda a longa marcha da revolução vietnamita. Façamos a experiência. Este negro, não podemos dizer imediatamente porque ele luta, onde e como: em Detroit, nas fábricas da Chrysler por um salário melhor e ritmos menos embrutecedores? Em Johanesburgo, pelo direito de entrar num cinema em que os brancos exibem filmes de brancos? E este árabe, e este sul-americano, e esta europeia, e esta criança americana? Devemos ter a coragem de dizer que não temos nada a dizer ao observá-los, a menos que haja uma legenda na foto balbuciando tolices ou mentiras que repetiremos por nossa conta, e devemos ter a coragem de dizer que essa coragem não passa de uma confissão de fraqueza: estamos derrotados, não temos nada a dizer. Ao contrário, diante desse rosto vietnamita, nenhuma legenda é necessária: no mundo inteiro se dirá que aquele é um vietnamita, e que os vietnamitas lutam para expulsar os americanos da Ásia. − Isolemos, ao contrário, o rosto da atriz americana. Vemos logo que ele não remete a nada, ou melhor, que não remete a nada além de si próprio, mas um si próprio que não está em parte alguma, perdido na infinita imensidão da ternura eterna de uma Pietà de Michelangelo. Rosto de mulher que não remete a nenhuma mulher (o rosto do vietnamita era uma função que remetia ao real, enquanto o rosto da americana é uma função que só remete a uma função). Rosto que poderia ser o de uma hippie carente de droga, o de uma estudante de Eugene, Oregon, quando seu favorito Préfontaine16 acaba de perder os 5.000 metros olímpicos, o de uma namorada abandonada por seu homem, e também o de uma militante no Vietnã. É demais. Há informação demais num espaço/tempo pequeno demais. Estamos, ao mesmo tempo, certos de que se trata de uma militante pensando no Vietnã mas nada certos disso, pois ela poderia estar pensando em algo completamente diferente, como acabamos de provar. Então, acabamos tendo que nos perguntar como a foto de uma militante (ou atriz) pensando não necessariamente no Vietnã pode ser publicada precisamente no lugar daquela de uma atriz (ou militante) pensando forçosamente no Vietnã. Afinal, a realidade dessa foto está aí: uma maquiagem de estrela desnudada por sua própria falta de maquiagem. Mas isto não é dito pelo Express, pois seria um começo de revolução no jornalismo. Seria um início de revolução dizer, na Europa ou Estados Unidos, que, atualmente,
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16. Referência a Steve Prefontaine, excepcional corredor americano de fundo formado em Oregon, que batera vários recordes dos 1500 aos 10000 metros, e que morreria em 1975 aos 24 anos num acidente de carro. [N.d.T].
17. L’Aventure, c’est l’aventure (Claude Lelouch, França, 1972). [N.d.T].
não é possível tirar uma foto de alguém pensando em algo (no Vietnã, numa trepada, num Ford, numa fábrica, numa praia, etc.). − Dirão que erramos ao isolar da foto uma parte que não fora publicada sozinha. É um péssimo argumento. Nós a isolamos precisamente para mostrar que ela de fato estava sozinha, e que a tragédia reside nessa solidão, pois se pudemos isolar esse rosto, foi também porque ele se prestava facilmente a isso, ao contrário do rosto vietnamita que, mesmo sozinho, não se deixa isolar de seu círculo. − Conhecemos na França, de longa data, essa expressão usada pela atriz. É a expressão do Cogito cartesiano: penso, logo existo, mumificada por Rodin e seu pensador. Seria melhor levar a célebre estátua para passear em todas as grandes e pequenas catástrofes a fim de apiedar as massas. A fraude da arte capitalista, do humanismo capitalista, saltaria aos olhos imediatamente. É preciso compreender que uma vedete não pode pensar, pois é uma função social: ela é pensada, e faz pensar (basta ver pensadores como Marlon Brando ou Pompidou atuarem como o fazem para compreender porque o capital precisa do apoio de uma arte desta espécie para aumentar a força da filosofia idealista em seu combate contra a filosofia materialista dos Marx, Engels, Lênin e Mao, representando seus povos nesse domínio). − Acabamos de dizer: isolemos, ao contrário, o rosto da atriz americana. Isolemos agora, as palavras “ao contrário” nesta frase (isolar, dividir: divisão revolucionária, dizia Lênin, que luta contra a divisão capitalista do trabalho). Vemos então que a figura da militante americana e a do norte-vietnamita são figuras contrárias. E o que realmente acontece na realidade imaginária dessa imagem é, em nossa opinião, a luta desses contrários. − O olho americano se contenta em ler a palavra horror no Vietnã. O olho vietnamita vê a realidade americana em todo o seu horror. Atrás da figura desse figurante vietnamita já figura então a maravilhosa e formidável máquina montada pelo coletivo Vietnã do Norte/Vietcongue. − Atrás da figuração dessa vedete figura ainda a ignóbil e temível máquina capitalista, cheia de uma expressão cinicamente humilde e de confusão na claridade (ver, a esse respeito, o filme de Lelouch, L’aventure, c’est l’aventure17). Em suma, luta entre o ainda e o já, luta entre o velho e o novo. Luta que não se circunscreve à produção da foto, mas que continua na sua distribuição, no
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fato de que a olhamos neste momento. Luta entre a produção e a difusão, segundo quem comanda uma e outra, o capital ou a revolução.
Outros elementos de elementos − Ao correr o risco de fazer divulgar essa foto, os norte-vietnamitas têm razão. Ou melhor, têm suas razões. Essa foto cumpre um papel de pequeno parafuso no mecanismo do desenvolvimento de sua ofensiva diplomáticomilitar atual. − Essa foto é uma das mil dadas pelo povo vietnamita com seu sangue, para replicar aos crimes de guerra dos Estados Unidos. Note de passagem, Jane, que o coletivo Vietcongue/Vietnã do Norte raramente publica atrocidades em seus documentos, mas frequentemente, combates. − Para dar essa réplica, aqui, o governo norte-vietnamita, representante de seu povo, representado aqui pelo Comitê pela amizade com o povo americano, convidou a atriz Jane Fonda. Trata-se, portanto, de representar um papel. − Contrariamente a muito outros americanos, a atriz americana aceitou fazer esse papel e, para isso, se deslocou. Foi a Hanói para se pôr a serviço da revolução vietnamita. Agora, cabe então a pergunta: como ela se põe a serviço? Ou mais precisamente: como interpreta esse papel? − A atriz americana em ação nessa foto serve ao povo vietnamita em sua luta pela independência, mas não o serve somente no Vietnã, e sim nos Estados Unidos em particular e também na Europa, já que a foto chegou a nós. Isto é, nós que olhamos essa foto daqui estamos livremente obrigados a perguntar: essa foto nos serve? E em primeiro lugar: serve-nos para servir ao Vietnã? (e é o Vietnã que nos obriga a formular essa pergunta).
Elementos sintetizados − Nem L’Express nem a militante americana fizeram diferença entre Jane Fonda falando, interrogando, e Jane Fonda escutando. − Para os vietnamitas, o fato de ela falar (e acreditamos que pouco importa para eles que ela fale ou escute, pois o silêncio também é eloquente, mas isto não é dito) é, por ora, nesta época
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18. William James Porter, diplomata americano nomeado chefe da delegação dos Estados Unidos nas negociacões para os “Acordos de Paris para o Fim da Guerra e a Restauração da Paz no Vietnã”, assinados em 27/1/1973. [N.d.T]. 19. Iniciadas em 1968, interrompidas e adiadas várias vezes, as negociações para os Acordos de Paz transcorreram oficialmente no prédio do antigo Hotel Majestic na Avenida Kléber, n. 19, em Paris, no Centro das Conferências Internacionais do Ministério das Relações Internacionais (Ministère des Affaires Étrangères) da França. [N.d.T].
histórica de sua luta, o elemento principal. O importante é que ela esteja ali. − Mas aqui, em 1972, o elemento principal não é, forçosamente, o mesmo. Temos que saber que força atua atrás desse “forçosamente”. − Fomos portanto obrigados a assinalar que a legenda da foto mentia ao dizer que a atriz falava aos habitantes de Hanói, quando a foto a mostrava ouvindo-os. E é importante para nós (que precisamos da verdade contraditória desta foto e não da sua verdade eterna) assinalar que L’Express mente em todos os níveis, mas é importante também acrescentar que se o jornal pode mentir, é porque a foto o permite. De fato, o L’Express aproveita (perda e lucro) a autorização implícita dessa foto para dissimular o fato de que a militante ouve, pois dizendo que ela fala, e que fala de paz no Vietnã, L’Express se isenta de precisar de qual paz se trata, deixando esse cuidado para a foto, como se fosse óbvio que a foto determina precisamente e por si mesma o tipo de paz em questão, quando vimos que não é nada disso. Mas se L’Express pode agir assim, é provavelmente porque a atriz americana só milita dizendo ‘paz no Vietnã’, sem se perguntar qual paz exatamente e, em particular, qual paz na América. E se ela ainda não se pergunta, ou se ainda não chega a fazê-lo, não é porque ainda atue como atriz em vez de militante, mas pelo contrário, é porque enquanto militante ela não se coloca ainda nenhuma questão de tipo novo sobre seu funcionamento de atriz, nem socialmente nem tecnicamente. Em suma, ela não milita como atriz, enquanto os norte-vietnamitas a convidaram justamente como tal, como atriz militante. Ela fala de um outro lugar e não de lá onde ela está, na América, o que interessa primordialmente aos vietnamitas. Daí o fato de que também ela dissimula que o mais importante nessa foto é ela estar ouvindo, ouvindo o Vietnã antes de falar dele, ao passo que precisamente Nixon, Kissinger e o infame Porter18 não ouvem nada, não querem ouvir absolutamente nada na avenida Kléber19. Daí seus disfarces, que trata-se também de desmascarar. E desmascarar Nixon não é dizer ‘paz no Vietnã’, pois ele também diz isso (assim como Brejnev). É preciso dizer o contrário dele. É preciso dizer: ouço os vietnamitas que me dirão qual paz querem em seu país. É preciso dizer: como americano, calo minha boca, pois reconheço não ter nada a dizer sobre isso, cabe aos vietnamitas dizer o que querem,
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e a mim ouvi-los para fazer o que eles querem, pois não tenho nada a ver com o sudeste asiático. O resto é uma mascarada. Mas, uma vez mais, não é algo desse gênero que se diz. − Não somos contra as máscaras (“a revolução avança mascarada”, dizia outrora Regis Debray a propósito de Cuba. E Marx e Engels em 1848: “um espectro assombra a Europa, o espectro do comunismo”20), mas não podemos deixar de fazer as perguntas: quem mascara quem? Quem mascara o quê? Para quem e contra quem? É nesse momento que se poderá decidir sobre a utilidade social da máscara, sobre sua necessidade estratégica e tática, pois queremos ser os atores de nossa própria história, nós, Jean-Pierre e Jean-Luc, da nossa, como você da sua, Jane (e não se poderia considerar as guerras de liberação do movimento operário como histórias que seus próprios atores querem realizar, sem obedecer ao roteiro ditado pelo capital e a CIA?). Somente nesse momento poderemos decidir exatamente sobre a utilidade social do ator neste ou naquele terreno das lutas. Em termos econômicos, poderemos decidir sobre seu valor de uso, isto é, sobre a utilidade social da troca de olhares mostrada nessa foto, e não acreditar mais automaticamente em seu valor de troca apenas. − Pode ser então que o Vietnã perca a longo prazo o que ganha a curto prazo na publicidade dada a uma troca de olhares entre uma estrela americana e uma habitante de Hanói bombardeada, pois a verdadeira questão passa a ser a de quem controla a troca e com qual finalidade.
Primeiras conclusões − Finalmente, dizem os romancistas e os filósofos. No fim das contas, dizem os banqueiros. Vemos que esta investigação sobre essa foto se resume a colocar corretamente, a expor corretamente (permanecemos no campo da fotografia) o problema da vedete. São as vedetes, os heróis, que fazem a história ou são os povos? − Teremos que levantar, ao mesmo tempo, a questão do delegado, a questão da representação. Quem representa o que, e como? Eu represento a classe operária alemã, disse o partido comunista alemão antes de enviar o grosso de suas tropas aos futuros sitiados de Stalingrado. Eu represento o socialismo, diz um jovem Kibutzin que planta, para nada, laranjeiras em terra
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20. Célebre passagem do Manifesto Comunista (1848) de Marx e Engels. [N.d.T].
21. Criado em Londres em 1902, o banco Leumi assumiu o sonho sionista, se instalou em Israel e se tornou um dos maiores bancos do Oriente médio. [N.d.T].
árabe, para o maior lucro do banco Leumi21. Eu represento a estabilidade americana, diz Richard Milhouse Nixon. Em suma, uns representam aspiradores, outros aspirações. São os mesmos. − Pareceu-nos útil, para entendermos um pouco o que se passa, fazer o que os jornalistas nunca fazem, interrogar uma foto que também representa a realidade; e não qualquer foto, nem qualquer realidade. Portanto, tampouco qualquer representação.
Segundas conclusões − Nosso desejo de interrogar essa foto não nasceu por acaso. A máquina de Tout va Bien também funciona com vedetes. E até mesmo vedetes de vedetes, já que se trata de um casal de namorados (a vedete dos roteiros no sistema imperial hollywoodiano) interpretado por duas estrelas do sistema capitalista, “casadas” com um realizador vedete. Ora, o que fazem todas essas vedetes no filme senão ouvir o barulho de uma greve operária, assim como Jane Fonda ouve o barulho da revolução vietnamita na foto? Mas na foto, não se diz isso. No filme, se diz. − Na verdade, podemos dizer que aos vietnamitas o que interessa é ter deslocado uma vedete americana. É no deslocamento desta vedete que eles mostram sua força e a justeza de sua causa. Mas é também no decorrer deste deslocamento que as tropas do capital aproveitam para atacar. E nós devemos aproveitar esse deslocamento forçado do capital para atacar de nossa parte. − Em nossa opinião, em lugar dessa foto deveria haver, lado a lado, as duas fotos contidas nela: a foto velha e a foto nova, com uma nova legenda sob a foto velha, e uma legenda velha sob a foto nova. − Isso daria, por exemplo, o seguinte: no Vietnã estou alegre, porque apesar das bombas há esperança para a revolução; na América, apesar do progresso financeiro, estou triste porque o futuro está obstruído. − Essa é a realidade: dois sons, duas imagens, o velho e o novo, e suas combinações. Porque é o capital imperialista quem diz que dois se fundem em um (e só mostra uma foto sua) e é a revolução social e científica quem diz que um se divide em dois (e mostra como, em você, o novo luta contra o velho). − É isso. Certamente, há outras coisas a dizer. Esperamos
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termos tempo de nos ver nos Estados Unidos e de discutir um pouco de tudo isto com os espectadores. De todo modo, boa sorte. Jean-Luc e Jean-Pierre Tradução de Luiz Rosemberg Filho e Mateus Araújo Silva
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(IMAGEM)
Elias Mol
A incestuosa gemeidade: notas sobre A Zed and Two Noughts, de Peter Greenaway debora breder Doutora em Antropologia pela UFF Professora da Universidade Candido Mendes
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Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre o modo pelo qual o ideal de uma “perfeita gemeidade”, comum à tradição indo-europeia, vem sendo atualizado nas narrativas ocidentais contemporâneas. Para tanto, empreende-se uma análise do discurso simbólico sobre a gemeidade, em suas possíveis articulações com a temática do incesto, no longa-metragem A Zed and Two Noughts (1985), de Peter Greenaway – cuja trama tem como protagonistas gêmeos de mesmo sexo. Palavras-chave: Gêmeos. Incesto. Mitologia. Cinema. Peter Greenaway.
Abstract: This article suggests a reflection on the way the ideal of a perfect twinning, common to the indo-european tradition, has been being updated in the contemporaneous western narratives. To achieve that we undertake an analysis of the symbolic discourse on twinning, on its possible articulations with the incest theme, in the Peter Greenaway's feature film A Zed and Two Noughts (1985) – whose plot has twins of the same sex as main characters. Keywords: Twins. Incest. Mythology. Movie. Peter Greenaway.
Résumé: Cet article propose une réflexion concernant la manière par laquelle l’idéal d’une parfaite gémellité, commun à la tradition indo-européenne, vient s’actualiser dans les narratives occidentales contemporaines. Pour cela, nous analysons le discours symbolique sur la gémellité, à travers ses possibles articulations avec la thématique de l’inceste, dans le long métrage A Zed and Two Noughts (1985), de Peter Greenaway – film dont la trame a pour protagonistes des jumeaux de même sexe. Mots-clés: Jumeaux. Inceste. Mythologie. Cinéma. Peter Greenaway.
C’est à la fois un conte et une “tragédie comique”: deux hommes découvrent qu’ils sont frères, et non seulement jumeaux mais siamois! La nature, vous le savez, a une prédilection pour la symétrie et pour les choses qui vont par deux... Peter Greenaway
Metamorfoseado em cisne, Zeus seduz Leda – esposa de Tíndaro. Honrada por ambos, Leda põe dois ovos de prata. De um nascem os gêmeos Pollux e Helena, filhos de Zeus; do outro, Castor e Clitemnestra, filhos de Tíndaro. O primeiro casal é de origem divina; o segundo, de origem humana. Um cisne se choca contra o para-brisa de um Ford Mercury. Entre estilhaços de vidro e uma revoada de penas, duas mulheres morrem no banco traseiro – e uma terceira, que estava ao volante, tem a perna amputada. As duas primeiras deixam viúvos dois gêmeos; a terceira, honrada por ambos, dará origem a gêmeos. Do mito ao cinema e do Olimpo ao Zoo, A Zed and Two Noughts (1985), terceiro longa-metragem de Peter Greenaway, nos descortina as aventuras científicas e desventuras metafísicas de dois zoólogos, os gêmeos Oliver e Oswald Deuce, que intentam compreender (mensurar) a morte (putrefação) de suas respectivas esposas com instrumentos científicos. Uma tentativa fadada ao malogro, evidentemente, conforme perceberão os infelizes no transcorrer de seus experimentos: mensurar a decomposição de cadáveres não explica a morte – ou seja, não confere sentido ao fato de que um cisne se espatife aleatoriamente no para-brisa de um Ford Mercury, provocando tamanha catástrofe. A trama do filme tem início, pois, com este insólito incidente. Em off, escutamos uma conversa radiofônica que reitera, em uma série disparatada de interrogações, o despropósito da ocorrência: “A swan? What sort of a swan? Leda? Who’s Leda? Is she the injured woman? Laid by whom? By Jupiter? What was the cause of death? A female swan! How do you know it was female? Eggs! Eight pounds! Was it wild? Perhaps it was a wild goose! Did it come from the zoo?”. O lento movimento de câmera que nos aproxima da cena do acidente até o rosto das vítimas congela subitamente em uma foto estampada na página de um jornal, um instantâneo p&b que, ao fixar o tempo, reporta definitivamente o acontecimento ao passado. “Swan crash, two die”, diz a manchete, encerrando o prólogo do filme.
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As próximas cenas focam as três personagens diretamente implicadas na catástrofe: enquanto Oliver recolhe em seu lenço os cacos de vidro espalhados na entrada do zoo e Oswald se recolhe em seu laboratório, aos prantos, em uma sala cirúrgica a única sobrevivente do crash, Alba, tem a perna amputada. A seguir vemos os heróis reunidos pela primeira vez na trama. Eles caminham juntos, desconsolados, um buquê de flores nas mãos. “Uma mulher se putrefaz em quanto tempo?”, quer saber um deles, indagando (suas esposas estavam grávidas de poucas semanas) se a gravidez influía no tempo médio de decomposição de um corpo. A pergunta, como era de se esperar, suscita uma série de indagações relativas ao processo – por onde começa, com quais bactérias, em que quantidade, etc. – que conduzem a considerações que passam pelo beijo de língua e remontam a Adão, Eva e a maçã no paraíso. Ao chegarem à entrada do zoo os viúvos observam a limpeza efetuada no local do acidente e depositam as flores no chão. Sobre essas imagens, em off, escutamos a voz grave de um locutor: “Se a evolução da vida em nosso planeta fosse representada por um ano de trezentos e sessenta e cinco dias, o homem teria feito a sua aparição na noite de trinta e um de dezembro”. Enquanto escutamos a locução, vemos inserts com imagens de um documentário representando o início da vida na Terra. Oliver está na sala de projeção do zoo, assistindo ao documentário com uma garrafa de destilado na mão. Na tela, vemos águas envoltas em gases e borbulhas pipocando no chão. “No começo não existia oxigênio; existia metano, amoníaco, óxido de carbono, água (...)”. A próxima cena, finalmente, reúne Alba, Oliver e Oswald. Assim, pode-se dizer que as primeiras sequências de A Zed and Two Noughts apresentam os principais fios da trama. O principal, evidentemente, é o que liga o z aos dois zeros do título: a mulher “coroada por plumas brancas” que engendrará os dioscuros a Oliver e Oswald. I – A figura dos gêmeos na mitologia Obra de deuses ou de homens, os gêmeos são um motivo recorrente na mitologia. Na África, os gêmeos de sexos diferentes figuram em inúmeros mitos como um modelo de completude e perfeição
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ontológica (DIERTERLEN, 1981). O mito de origem dos Dogon, Malinké e Bambara, por exemplo, coloca em cena quatro casais de gêmeos. São eles que engendram a humanidade, trocando dois a dois seus parceiros. Desse casamento primordial resulta a associação dos quatro pontos cardeais, dos quatro elementos, de suas quatro linhagens e respectivas substâncias (oito grãos contidos em suas clavículas). O mito evoca a perda da gemeidade pelos homens devido às transgressões do deceptor – que arranca antes do termo um pedaço de sua placenta a fim de apropriar-se de um cosmo em gestação – e de sua irmã gêmea – que transmite aos ancestrais da humanidade sua própria impureza, consequência da atitude precipitada de seu irmão. A noção de gemeidade também ocupa um lugar de destaque na mitologia ameríndia. No mito de origem xinguano, por exemplo, os gêmeos de mesmo sexo (masculino) figuram como heróis culturais. Kwat e Yaì, para os Kamayurá; Keri e Kame, para os Baikarí; Riti e Uné, para os Kalapálo – são eles que criam os homens a partir de diferentes hastes de flechas e empreendem a ordenação espaço-temporal do mundo: distribuem as tribos geograficamente e instauram a periodicidade, sazonal e cotidiana. Personificados nos astros Sol e Lua, os gêmeos também determinam a organização sociocultural das tribos, outorgando-lhes o fogo e atribuindo-lhes os traços distintivos que as caracterizarão como grupos étnicos diferenciados. Na América do Norte encontramos o mesmo motivo em um ciclo mitológico propalado da costa leste à oeste, conhecido pelo nome de Lodge-Boy and Thrown-Away. Um homem (ou um ogro, segundo as versões) extrai do corpo de uma falecida duas crianças a quem confere sortes distintas: guarda uma delas em uma cabana e joga a outra ao rio; descobertos, os gêmeos crescem juntos e passam por uma série de aventuras no decurso das quais suas disparidades se manifestam. Em outras versões os gêmeos aparecem sob a forma de uma criança e sua placenta; enquanto a primeira é lavada e cuidada pelo pai, a segunda é jogada ao rio. Descoberto, o menino-placenta é educado com seu irmão, demonstrando, nas peripécias em que ambos se engajam, ser invariavelmente o mais forte e esperto (LÉVI-STRAUSS, 1991; BELMONT, 1992). A mitologia indo-europeia, por sua vez, também põe em cena vários pares de gêmeos. Dentre aqueles caracterizados por serem
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homogêneos, quase indistintos, figuram os Asvina da Índia Antiga; Hârût e Mârût, do Oriente Próximo; os Haddingjar, da tradição escandinava; ou ainda Ibor e Ágio, Hengist e Horse, Rhaos e Rhaptos, da tradição germânica – além de uma vasta galeria encabeçada pelos dioscuros gregos Castor e Pollux, filhos de Tyndare e Zeus; Idas e Lunkeus, seus adversários; Eurusthênês e Proklês, fundadores da dupla realeza de Esparta; e, caso extremo de indistinção, Ktéatos e Eurutos, gêmeos siameses, indissoluvelmente ligados tanto na vida quanto na morte (SERGENT, 1992). Já dentre os gêmeos caracterizados por serem antagônicos poderíamos citar Ohrmazd e Ahriman, da tradição iraniana; Yngvi e Alfr, da tradição escandinava; Fer e Fergnia, e Cormarc e Corc Ouibne, da tradição irlandesa – e mais uma longa série pertencente à mitologia grega, como Etéoklês e Poluneikês, filhos de Édipo; Danaos e Aiguptos; Klaaitos e Ismênos; Panopeus e Krisos, entre tantos outros. A rivalidade pode lhes ser consubstancial, desenvolvendo-se ainda no ventre da mãe, ou surgir devido a uma contingência, especialmente disputas por uma mulher ou pelo poder. Este é o caso de Romulus e Remus, que partilham unidos a mesma sorte até o momento em que decidem erguer uma vila, passando então a disputar-se as prerrogativas de sua fundação e governo. Em Histoire de Lynx (1991), um de seus últimos trabalhos consagrados à mitologia ameríndia, Lévi-Strauss observa que a noção de gemeidade é concebida nos mitos segundo dois esquemas distintos: um representado pelos gêmeos de sexos diferentes, predestinados ao incesto e que dão origem à primeira humanidade; e aquele representado pelos gêmeos de mesmo sexo. Enquanto a primeira fórmula responderia à questão de como produzir a dualidade a partir da unidade – “ou plus exactement à partir d’une image assez ambigüe de l’unité pour qu’on puisse concevoir que la diversité en emerge” –, a segunda colocaria justamente a questão inversa, isto é, como produzir a unidade a partir de seu contrário – “La dualité peut-elle se résorber dans l’image approchée de l’unité par quoi on la répresente, ou offre-telle un caractère irréversible, à tel point que l’écart minimal entre ses termes doive fatalement s’élargir?” (LÉVI-STRAUSS, 1991: 299-300). Em resposta a esta questão os mitos ofereceriam uma série de gradações, indo da perfeita identidade entre os gêmeos à sua oposição mais extrema e irredutível.
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Ao considerar a mitologia ameríndia em relação à indoeuropeia, o autor observa que a primeira admitiria uma série de soluções intermediárias entre esses extremos: dos pares antitéticos representados pelo gêmeo benéfico e o gêmeo maléfico dos Iroqueses, pelo bom e o mau demiurgo dos mitos da Califórnia do Sul, por aquele associado à vida e o outro à morte, por exemplo, haveria toda uma gama de pares cuja desigualdade seria apenas relativa, um gêmeo sendo sensivelmente mais forte, mais esperto ou valente que o outro. Já a tradição indoeuropeia, ao contrário, teria privilegiado as soluções extremas, caracterizando seus gêmeos frequentemente por uma completa identidade, o que os torna quase indistintos. Entre estes, como vimos, encontram-se os Asvina – “praticamente indiscerníveis nos hinos e rituais védicos”, nas palavras de Dumézil (apud SERGENT, 1992: 206-207) –, e Castor e Pollux, que embora gerados por pais diferentes, um humano e outro divino, e possuindo atributos distintos, como a mortalidade e a imortalidade, logram anular essas disparidades mediante a “perfeição de seu amor fraternal” (FRONTISI-DUCROUX, 1992).1 Comparados ao mito grego, que opera no sentido de apagar a diferença entre os dioscuros, os mitos ameríndios tenderiam a sublinhá-la, senão mesmo a ampliá-la. Em suma, para o autor das Mitológicas – obra monumental dedicada à análise exaustiva de quase um milhar de mitos provenientes das Américas –, a mitologia ameríndia recusaria a ideia de uma perfeita homogeneidade entre os gêmeos, constituindo a identidade um estado temporário, impossível de perdurar. Ao ponderar acerca do sentido dessa “impossível gemeidade”, motivo constante nos mitos, Lévi-Strauss sugere que o pensamento ameríndio explicaria a organização progressiva do cosmo e da sociedade mediante o modelo de um dualismo em perpétuo desequilíbrio. Nos mitos, esse modelo representaria a ordenação do mundo por meio de uma série de bipartições (criador/criatura, índio/não-índio, céu/terra, alto/baixo, etc.), cujas partes resultantes a cada etapa seriam sempre desiguais. Este desequilíbrio dinâmico seria imprescindível ao bom andamento do mundo; como salienta, é justamente o estabelecimento contínuo destas distâncias diferenciais, tal como as concebe o pensamento mítico, que colocaria em marcha “a máquina do universo”. Já a tradição indo-europeia, ao que parece, caminharia em sentido inverso. Ainda que seus mitos tenham assinalado com
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1. Castor e Pollux constituiriam o par paradigmático aos olhos dos gregos antigos: “Seus gêmeos favoritos, aqueles que se tornarão ‘Os Gêmeos’, podem se permitir tudo: roubar o gado, perturbar casamentos, sequestrar as noivas de seus primos, trucidar os tais primos com a ajuda de Zeus... Apesar dessa violência, Castor e Pollux são exemplares. A perfeição de seu amor fraternal faz com que ganhem o céu e recebam o título de Salvadores e Benfeitores”. Já suas irmãs são culpadas de todos os crimes e males, “Mais nocivas uma que a outra, Clitemnestra [gêmea de Castor] e Helena [gêmea de Pollux] jamais são nomeadas ‘gêmeas’” (FRONTISIDUCROUX, 1992: 239, tradução minha). Como nota a autora, os textos míticos, filosóficos e médicos indicam que os gregos antigos temiam mais as mulheres do que propriamente os gêmeos; para Aristóteles, como sabemos, o nascimento de mulheres ao invés de homens constituiria um equívoco, a derrota da potência masculina.
certa frequência pequenas diferenças entre os gêmeos míticos – geralmente relativas à paternidade, à primogenitura, aos talentos e às afinidades de cada um (conforme ilustram Amphiôn e Zêthos, por exemplo, o primeiro belo, piedoso e músico exímio, e o segundo feio, peludo e habilidoso guerreiro, mas ambos “estreitamente unidos e indissociáveis”) –, tais diferenças não inviabilizam o ideal de uma “perfeita gemeidade”. Como nota Lévi-Strauss (1991: 303-304), na Europa as representações sobre a gemeidade versariam preferencialmente sobre o tema da completa identidade entre os gêmeos. De modo geral, estes seriam fisicamente indistinguíveis um do outro, salvo recurso a pequenos sinais como vestuário, penteado, maquiagem, etc.; partilhariam em grande medida o mesmo gosto, pensamento e caráter; seriam apaixonados pela mesma pessoa, ou tão iguais que seriam por ela confundidos; ficariam doentes simultaneamente, sendo incapazes de sobreviver um ao outro... O tema da perfeita identidade entre os gêmeos parece, de fato, uma fonte de inspiração na tradição indo-europeia, que refrata, em seus mitos e crenças, esses infindáveis jogos de espelho. II – Os “Deuce” “Os laços desses irmãos são de total coesão, através de belos fenômenos de diferenciação e complementaridade” (BOHLER, 1995: 229, tradução minha). Válida para inúmeros pares de gêmeos da mitologia indoeuropeia, pode-se dizer que a observação de Danielle Bohler, referindo-se às narrativas gemelares medievais, ajusta-se à perfeição aos heróis de A Zed and Two Noughts, esses cientistas enlutados que no transcurso de suas experiências defrontam-se com o fato de que o como não explica o porquê. Com efeito, a solidariedade da díade é fundada na perfeita identidade entre ambos: Oliver e Oswald são indissociáveis e complementares – e partilham a mesma sorte. O esquema narrativo do filme está estruturado, justamente, no movimento de disjunção/conjunção dos gêmeos – movimento este que pontua de forma inexorável a indissolubilidade dos laços que os unem: no transcurso desse processo os heróis, inicialmente bastante distintos entre si, tornar-se-ão cada vez mais indiscerníveis e indissociáveis.
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Cinco sequências chamam atenção ao longo do filme, delineando bem esse movimento que opera no sentido de apagar progressivamente as distâncias diferenciais entre os gêmeos. A primeira sequência – inserida no bloco referente ao terceiro “estado da evolução segundo Darwin”, marcado pela putrefação de uma maçã2 – é a tentativa de suicídio perpetrada por Oliver, que entre um gole e outro de vinho ingere os cacos de vidro recolhidos no local do acidente. Ao ser descoberto, ele consente que Oswald seja avisado de seu desatino: “Diga-lhe que perco meu sangue. Ele virá”. Nesse ponto da trama não há, todavia, qualquer referência ao parentesco entre ambos. A segunda – inserida no bloco referente ao quinto “estado da evolução segundo Darwin”, marcado pela putrefação de dois peixes – é a visita efetuada por Oliver e Oswald à “L’Escargot”, o lugar onde Alba nasceu. Ao contrário das sequências anteriores, nas quais os protagonistas se distinguiam pela coloração do cabelo, penteado, vestuário, etc., nesta cena ambos aparecem vestidos praticamente da mesma forma. Enquanto admiram a paisagem e conversam sobre a relação que mantêm com a mulher de perna amputada, ocorre então a primeira referência explícita à relação de parentesco que os une: “Será que Alba sabe o que faz?”, pergunta um deles; “Ela tenta repartir do zero com dois irmãos (...)”, responde o outro. Logo após a visita os Deuce serão informados por Alba de sua gravidez: “Eu vou me tornar mãe e vocês vão se tornar pai ou pais”. Já a terceira sequência – inserida no bloco referente ao sexto “estado da evolução segundo Darwin”, marcado pela putrefação de um crocodilo – assinala a revelação da gemeidade em um apologético discurso sobre a simetria. Recostada em seu leito e com um gêmeo de cada lado, Alba informa, devaneando sobre a complementaridade das pernas – “feitas uma para a outra” – que por recomendação médica amputará a que lhe restou. Desolados, Oliver e Oswald comentam que assim como suas pernas, eles também eram complementares. A observação, bem entendido, suscita uma série de considerações relativas a diferentes partes do corpo – “como a cartilagem que separa e reúne as narinas” –, que levam Alba a ponderar sobre o porquê de todas as coisas virem aos pares. “A simetria é tudo”, responde um dos irmãos, e o outro completa a guisa de explicação: “somos gêmeos”. A quarta sequência – inserida no mesmo bloco da anterior
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2. Entretecida com vários fios narrativos e uma profusão de signos, a trama do filme é pontuada pelas “8 etapas da evolução segundo Darwin”, conforme precisaria Greenaway em diversas entrevistas. Às 8 etapas da evolução ilustradas por 8 extratos do documentário (matéria em ebulição, micro-organismos, animais aquáticos, répteis, pássaros, mamíferos, primatas, homo Sapiens) correspondem 8 experiências com matéria orgânica em decomposição (uma maçã, alguns camarões, dois peixes, um crocodilo, um cisne, um dálmata, uma zebra e os próprios gêmeos); 8 episódios de libertação de animais; 8 reconstituições de quadros de Vermeer e assim sucessivamente. A cifra organiza inclusive os movimentos de câmera, 8 travellings, e a trilha sonora: “Foi assim que pedi a Michael Nyman (...) uma partitura baseada em 8 células musicais, cada qual mais complexa que a precedente”, explicaria o autor (SIMSOLO & PILARD, 1986). Embora não seja possível, no limite deste artigo, empreender uma análise de sua vasta obra, é notável o quanto essa “estrutura rigorosamente escandida” se repete em seus filmes: 12 desenhos em The Draughtsman’s Contract (1982); 7 monumentos romanos em The Belly of an Architect (1987); planos numerados de 1 a 100 em Drowning by Numbers (1988); 7 cores para 7 cenários em The Cook, the Thief, his Wife and her Lover (1989); 24 livros em Prospero’s Books (1991), etc. (CIMENT, 1984, 1987, 1989, 1991). “Para mim, a estrutura de um filme se impõe antes de seu conteúdo”, declararia o autor no lançamento de A Zed and Two Noughts, reivindicando a influência do “estruturalismo” em sua obra (NACACHE, 1986). Cf. CLOAREC, 2000 e RIVAL-MOREL, 1999, para uma análise fílmica de seus longas-metragens; BREDER, 2008, para uma análise de certos aspectos de sua trajetória no campo cinematográfico e a recepção de A Zed and Two Noughts pela crítica especializada; e LÉVISTRAUSS (1979: 573), para uma consideração sobre a invocação do “estruturalismo” em certas obras contemporâneas.
3. Ao enquadrarmos o discurso fílmico de A Zed and Two Noughts, vale notar a declaração de Greenaway (SIMSOLO & PILARD, 1986) na época de seu lançamento: “Minha postura é fazer um filme que se quer resolutamente cinema, isto é, artificial”, proclamaria o autor, explicitando os mecanismos utilizados para lograr uma mise-en-scène oposta, sob todos os aspectos – da decupagem à escritura dos diálogos, passando pelos movimentos de câmera, direção de atores, cenários, banda sonora e montagem – tanto ao “cinema dominante”, que “manipula o público”, quanto à tradição “realista” da cinematografia britânica, que tenderia a conceber o cinema como mera “extensão da prosa”. A um cinema de “escritores”, “prosa” e “realismo”, Greenaway proporia um cinema de “pintores”, “poesia” e “artifício”: “Deveríamos ter um cinema de pintores, e não um cinema de escritores” defenderia ao discorrer sobre a sua concepção “pictórica” da decupagem, reconhecendo sua preferência pelo plano de conjunto – pois privilegiaria a relação corpo/ paisagem –, e certa aversão pelo plano americano – “essa amputação ao nível das coxas” jamais encontrada em um quadro de Poussin... (BERTHINSCAILLET, 1992). Para este cineasta fascinado pelo barroco, obcecado pela taxionomia e que construiu sua distinção no campo cinematográfico reivindicando uma filiação às belas-artes, o recuo da câmera, uma constante em seus filmes, seria parte constitutiva de uma linguagem que visa o distanciamento, a metáfora e o artifício: “Meu diálogo é voluntariamente declamatório, artificial (...), me sinto mais à vontade com uma literatura que começa com Shakespeare, culmina com o teatro da Restauração, e que privilegia a tirada, o jogo de palavras, os enigmas, a alegoria” (CIMENT, 1994, tradução minha). Cf. BOUJUT, 1984; OSTRIA, 1986; CHION, 1987; BENOLIEL, 1991; VARLET, 1999.
– acrescenta à revelação sobre a gemeidade um detalhe que potencializa simbolicamente a indissolubilidade da relação que une os heróis em um destino comum: comemorando com Oliver e Oswald o sucesso de mais uma amputação, Alba os convida a juntarem-se a ela na cama; mas ao sugerir que trocassem de lugar ambos recusam, explicando que conheciam o seu lugar “desde os três anos” e que se sentiam confortáveis assim. Enquanto falam, os “siameses” mostram as cicatrizes que confirmam, nos corpos, a indissolubilidade dessa união. A mulher, que não ficara surpresa com a revelação de que eram gêmeos – “eu já sabia” (ao contrário de suas falecidas esposas, que desconheciam o fato) – ao descobrilos “siameses” se surpreende. Diante de sua admiração, Oliver e Oswald explicam que haviam omitido o detalhe seguindo um antigo conselho da mãe, que temia ver seus rebentos expostos em circos: “Os fenômenos atualmente vão para os zoos”, conclui um deles, “somos civilizados”. Por fim, a quinta sequência – inserida no bloco referente ao último “estado da evolução segundo Darwin” – é aquela na qual os gêmeos se constituem em seu próprio objeto de estudo e tentam registrar, em L’Escargot, a putrefação de seus corpos. Evidentemente, ao chegarem nesta etapa do inquérito para perscrutar a morte, os heróis já estão irremediavelmente indiscerníveis e “suturados”. Após montar o equipamento fotográfico e ajustar lentes e quadro, os “siameses” injetam-se uma droga e deitam em um espaço esquadrado, frente à câmera, para esperar a morte. Assim como o voo rasante de um cisne na entrada de um zoo, ocorre então um imprevisto em L’Escargot: dezenas, centenas, milhares de escargôs – animal admirado pelos irmãos por ser hermafrodita, “autossuficiente”, e ajudar o mundo a se decompor – invadem lentamente o local e recobrem seus corpos, cabos e câmera, provocando um curto-circuito no complexo dispositivo cuidadosamente preparado pelos gêmeos cientistas.3 *** Como vimos, os heróis de A Zed and Two Noughts são cientistas que se interrogam sobre a questão da origem e tentam perscrutar seu mistério: trata-se, para esses incansáveis gêmeos-zoólogos, de investigar o mecanismo da morte fotografando a putrefação de cadáveres de fêmeas prenhes.
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Em diversas mitologias os gêmeos frequentemente dão origem à humanidade ou figuram como seus heróis culturais. Em seu estudo acerca das representações sobre a gemeidade na literatura medieval, Bohler (1995) observa que as narrativas versando sobre o tema estariam geralmente relacionadas à questão das origens: os gêmeos “consanguíneos” medievais (em oposição aos gêmeos “metafóricos”4) constituiriam “crianças do exílio”, “crianças das pátrias perdidas” destinadas a reunir a célula familiar e trazer benefícios ao reino. Sob esse aspecto não deixa de ser interessante notar a atualização desse motivo no contexto das sociedades ocidentais modernas, cuja ideologia confere um lugar proeminente à ciência, tanto em suas práticas quanto em suas representações. Se os heróis de A Zed and Two Noughts não constituem, tal como os gêmeos “consanguíneos” medievais, criaturas “marcadas por sua ejeção fora do coletivo” cujo itinerário acaba por reconduzi-los de volta à família, eles não obstante parecem votados, como cientistas, a também retraçar suas origens – se não individuais, ao menos da espécie. E aqui vale notar um detalhe: se no mito, fecundada por Zeus, Leda dá origem aos dioscuros, em A Zed and Two Noughts são os próprios gêmeos-cientistas que fecundam Alba – a Leda coroada por plumas brancas – e dão origem a si mesmos. III – Simetria & incesto “Os gêmeos espelhados realizariam a dualidade, a gemeidade essencial de cada ser: seu aspecto destro e seu aspecto sinistro, sua máscara social e sua pessoa íntima”, observaria o psicólogo Renné Zazzo (1960: 105, tradução minha) referindo-se aos discursos biomédicos da primeira metade do século XX sobre a gemeidade – discursos estes que evocariam a ideia de unidade a partir da oposição simétrica de dois seres. Versando geralmente sobre a relação entre nature e nurture na gênese da personalidade, esses discursos deixam entrever certo fascínio pelo tema, conforme ilustram as mais variadas teorias referentes à inversão especular entre gêmeos monozigóticos. Embora as explicações para as assimetrias morfológicas e as diferenças de lateralidade – atribuídas em parte a fatores hereditários – variassem segundo os autores, todas compartiam um mesmo postulado: o espelhamento somático entre gêmeos seria decorrente de um mecanismo especificamente gemelar.
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4. A gemeidade metafórica constituiria uma nova representação sobre a gemeidade – fundada não na consanguinidade, mas constituída mediante a palavra empenhada em um pacto. Instituída por contrato, a gemeidade metafórica teria como efeito estabelecer uma extraordinária similitude de traços e gestos entre os pactuantes a partir do momento em que as palavras rituais são professadas. Segundo Bohler (1995), a instauração de uma perfeita identidade entre seres distintos, por meio de um pacto, constituiria um motivo específico à cultura medieval; em suas palavras, tratar-se-ia de um vasto conjunto de ficções a serem consideradas à luz das exempla, relatos inseridos por predicadores em seus sermões. Nessa fraternidade eletiva – que inclui em seus termos várias peripécias e um destino em comum –, a solidariedade entre os heróis deve ser invariavelmente testada, constituindo a posse virtual da mesma mulher, significativamente, a prova crucial que confirma, ou revoga, a relação gemelar. Sob esse aspecto a força do laço contratual reforçaria o interdito, e as soluções ofertas pelo imaginário medieval seriam seja a recusa da transgressão, evitando a possessão da mesma mulher (o que evocaria um incesto de segundo tipo, nos termos de Héritier); seja trocar a mulher por cessão voluntária, ou ainda, legar ao duplo a própria filha (solução que facultaria, em ambos os casos, a regulamentação simbólica das trocas matrimoniais).
5. O motivo da complementaridade entre gêmeos, presente nos discursos contemporâneos sobre a gemeidade, não seria estranho à tradição indo-europeia, na qual ao nosso moderno espelhamento psicológico, inspirado em grande medida no discurso científico moderno, especialmente nos saberes ‘psi’ que se desenvolveram a partir do século XIX, teria precedido uma espécie de espelhamento de funções – “funções opostas, mas destinadas a se fundir”, como diria Bohler (1995: 233-234) aludindo à gemeidade metafórica na literatura medieval.
Assim, atribuía-se o fenômeno seja à distribuição desigual de genes entre as duas metades do embrião; seja à transmissão genética invertida e à organização assimétrica do embrião; à separação do mesmo após sua organização somática e lateral; ou ainda, à correlação entre fatores genéticos e as condições da vida intrauterina (ZAZZO, 1960: 100 et seq.). No cerne dessas teorias, como vemos, encontra-se a ideia da unidade a partir da oposição simétrica de dois seres – ideia que conduz, significativamente e ainda que por preterição, à associação entre gemeidade e sinistrismo. Referindo-se ao sucesso alcançado por essas teorias, Zazzo (ibidem: 105) observa que elas responderiam “a todo um jogo de imaginação e de lendas sobre o ‘duplo’; a arcaicos devaneios sobre a direita e a esquerda”. O curioso é que para alguns autores, a esse suposto espelhamento somático corresponderia também um espelhamento psíquico. Nessa perspectiva, um gêmeo constituiria psicologicamente a imagem invertida do outro: um extrovertido, outro introvertido; um com inclinação para as ciências, outro para as artes; um forte, inteligente e ativo, outro mais fraco, sensível e passivo... Ao consideramos os heróis de A Zed and Two Noughts, é interessante notar que essa ideia de unidade a partir da oposição simétrica de dois seres, figurada em diversas narrativas contemporâneas sobre a gemeidade pelo “espelhamento psíquico” de seus heróis fisicamente idênticos, é figurada no filme de Greenaway – cineasta fascinado pela “simetria” e que recusaria o “exame psicológico das personagens ‘à la Tchekhov’” – pela oposição direita/esquerda. Trata-se, neste caso, não exatamente de um “espelhamento somático”, com um gêmeo destro e outro canhestro, mas de uma oposição inscrita literalmente na carne mediante uma cicatriz que atravessa longitudinalmente o corpo dos “siameses”, recordando a cada um a sua respectiva posição: Oliver à direita; Oswald à esquerda. Na trama, como vimos, a complementaridade entre os gêmeos não poderia ser mais bem proclamada durante o apologético discurso sobre a simetria.5 Uma simetria, dir-se-ia, ligeiramente assimétrica: embora não haja, evidentemente, qualquer referência à relação de primogenitura no caso desses “siameses” descolados na infância, não deixa de ser curioso notar certa precedência de Oliver sobre Oswald. Na trama, efetivamente, Oliver é sempre o primeiro,
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tanto do ponto de vista imagético quanto narrativo – é o primeiro a ser apresentado nos créditos iniciais; o primeiro a ser mostrado chorando a morte da esposa; assistindo ao documentário que retraça a evolução da vida na Terra; inquirindo Alba; libertando os animais no zoo; usufruindo os favores de Milo (outra personagem da trama); usufruindo, em seguida, os da francesa... Essa precedência, constantemente reiterada ao longo da trama, se não sinaliza qualquer assimetria do ponto de vista da caracterização “física” ou “psicológica” das personagens, ainda assim sugere certa preeminência que nos recorda que na oposição direita/ esquerda, os termos não são investidos simbolicamente com o mesmo valor. Como nota Robert Hertz (1980) em seu estudo sobre a polaridade religiosa, em vários sistemas de representação à direita corresponderia o sagrado, a vida, o alto, o masculino, etc., e à esquerda (a “sinistra”) o profano, a morte, o baixo, o feminino, etc.6 No filme, se à oposição direita/esquerda não se sobrepõem outros pares de oposições, tais como sagrado/profano ou masculino/feminino, por exemplo, não deixa de ser significativo que na primeira parte da trama, quando os gêmeos todavia são distinguíveis, Oliver – cabelos e roupas claras – dedicase à libertação de animais (caramujos, borboletas, pássaros), enquanto Oswald – cabelos e roupas escuras – registra a putrefação de cadáveres. À medida que os “siameses” vão se tornando indiscerníveis essas funções se tornam permutáveis (Oswald liberta um rinoceronte) ou são realizadas em conjunto (ambos observam a putrefação de uma zebra). Em A Zed and Two Noughts, pode-se dizer que o motivo do incesto está presente em filigrana desde o início na trama, pontuando o movimento de conjunção dos gêmeos: à medida que partilham os favores sexuais de Alba, os heróis vão se tornando cada vez mais indiscerníveis e indissociáveis. De modo geral, a clássica definição de incesto refere-se à união ou, mais precisamente, à relação sexual entre consanguíneos ou afins nos graus proibidos pela lei ou pelos costumes. No entanto, ao considerar as mais variadas representações sobre o tema presente em diferentes sociedades, Françoise Héritier (1979: 219) desenvolve a noção de incesto de segundo tipo, definido como “a relação que une dois consanguíneos do mesmo sexo que partilham o mesmo parceiro sexual”. Assim, em contraposição à
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6. Segundo o autor, a diferença hierárquica entre direita/ esquerda manifestar-se-ia na maioria das línguas indoeuropeias, que não apenas teriam uma multiplicidade de termos variáveis para “esquerda” e somente um termo para “direita”, como também lhe atribuiriam significados completamente distintos: enquanto a direita evocaria “ideias de força física e ‘desteridade’, de ‘retidão’ intelectual e de bom julgamento, de honradez e integridade moral; de boa sorte e beleza, de norma jurídica”, a esquerda evocaria justamente as ideias contrárias. Essa valoração distintiva seria reencontrada em diversas esferas, da iconografia de nossa tradição cultural – “Não é por acaso”, conforme pondera, que “(...) é a mão direita do Senhor que aponta a abóbada sublime para o eleito, enquanto a sua mão esquerda mostra aos condenados as mandíbulas abertas do inferno prontas para engoli-los” – aos provérbios e práticas populares, que recomendam “não acordar com o pé esquerdo” e romper o ano novo, preferencialmente, com o direito...
clássica definição de incesto, o incesto de segundo tipo estabelecerse-ia entre pai/filho, mãe/filha, irmão/irmão, irmã/irmã por intermédio de um parceiro comum. A autora propõe essa noção para tentar abarcar, de um lado, uma série de interditos que não se referem nem ao casamento, nem à reprodução e, de outro, os que se referem aos parentes por afinidade. Partindo da teoria lévi-straussiana da proibição do incesto, fundada no imperativo da troca, Héritier interroga a lógica simbólica do interdito, dimensão que de seu ponto de vista teria sido negligenciada pela teoria anterior. Conforme pondera, a reflexão do homem sobre si mesmo não poderia ser apenas de ordem abstrata, sendo elaborada também a partir de sua concretude, o que implica, necessariamente, uma reflexão sobre o corpo humano e um dado natural de base, irredutível e incontornável: a diferença dos sexos. Nessa perspectiva a autora postula a existência de um sistema ideológico que seria universal, englobando as mais heterogêneas crenças relativas ao incesto, e que estaria estruturado na oposição entre o idêntico e o diferente – categorias universais que articulariam o pensamento simbólico: A existência do incesto de segundo tipo nos conduz a conceber a proibição do incesto como um problema de circulação de fluidos de um corpo a outro. O critério fundamental do incesto é o contato de humores idênticos. Ele coloca em jogo o que há de mais fundamental nas sociedades humanas: o modo como elas constroem suas categorias do idêntico e do diferente. Com efeito, é baseado nessas categorias que as sociedades fundam sua classificação dos humores do corpo e o sistema de proibição/ solicitação que rege sua circulação. [sem grifo no original] (HÉRITIER: 1994: 11, tradução minha).
Assim, a lógica simbólica do incesto estaria ancorada na oposição entre o idêntico e o diferente. O incesto caracterizar-seia como o cúmulo do idêntico: o encontro de humores idênticos, de substâncias idênticas, mistura ou justaposição, em última instância, de uma mesma identidade partilhada. Este excesso de idêntico implicaria geralmente em risco, perigo iminente ou desequilíbrio. Haveria, por assim dizer, um “gradiente simbólico” – ainda que ajustado de forma peculiar em cada sociedade – indo da extrema identidade à alteridade mais absoluta: desse modo, como cúmulo do idêntico figuraria, em uma das extremidades, o incesto, a masturbação e a homossexualidade, por exemplo, e, na outra, relevando da alteridade mais radical, da confusão mesma de gêneros, a relação com o estrangeiro distante, o não-humano,
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a necrofilia, a zoofilia... Práticas, vale ressaltar, mais ou menos condenadas segundo os tempos e lugares, práticas improdutivas, que não geram, não fecundam, da mesma forma que as relações com meninas impúberes, mulheres menstruadas, na menopausa ou aleitando, como lembra Héritier (1994) a respeito dos mais variados interditos. Em suma, de acordo com esta ótica a proibição do incesto constituir-se-ia na proibição do cúmulo do idêntico conforme este seja concebido nas mais diversas sociedades. A autora observa, entretanto, que se o cúmulo do idêntico é considerado perigoso e nefasto em certos domínios, ele pode ser procurado por suas qualidades benéficas em outros. Tratar-se-ia de determinar o que é mais conveniente em todos os domínios da vida biológica, da vida social e do mundo físico, e se é preferível associar coisas idênticas ou diferentes.7 Se considerarmos, pois, a noção de incesto de segundo tipo como a relação incestuosa entre dois consanguíneos do mesmo sexo que partilham o mesmo parceiro sexual, veremos que o tema constitui o principal motor de A Zed and Two Noughts: é o incesto que pontua, simbolicamente, o movimento de conjunção dos gêmeos, figurado na trama pela progressiva indiferenciação dos “Deuce”. Nesse sentido é interessante notar que a primeira perna amputada de Alba denota uma assimetria fundamental que condensa, metaforicamente, em negativo, o ideal simétrico e estático (no sentido de relações as mais horizontais possíveis e uma identidade estável) que a gemeidade reveste em nossa tradição cultural. Na trama, a amputação da segunda perna da mulher que opera a mediação incestuosa entre os gêmeos assinala, no registro corporal, a restituição da simetria com a aceleração do apagamento das distâncias diferenciais entre ambos: a partir de então os “siameses” para os quais “a simetria é tudo” passam a partilhar simultaneamente – no mesmo leito e ao mesmo tempo – os favores sexuais da mulher, tornando-se rapidamente indistintos. *** Em sua análise da ideologia do parentesco nas sociedades amazônicas, Viveiros de Castro (2002: 178) nota, referindo-se
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7. Embora não seja universalmente proibido ou mesmo condenado, o incesto de segundo tipo estaria presente no sistema de representações de diversas culturas e diferentes épocas, como revelam as leis hititas, assírias e romanas, a literatura grega, as proibições inscritas na Bíblia e no Corão ou, ainda, os dados etnográficos de inúmeras sociedades contemporâneas (HÉRITIER, 1994). “Se um homem dormir com sua nora, serão ambos punidos de morte; isto é uma ignomínia e eles levarão à sua culpa”, já advertia o versículo 12, capítulo XIX, do Levítico. Outrora presente no imaginário da tradição cristã – que erigiu o princípio de una caro, ou seja, a identidade substancial entre esposos e aliados – o incesto de segundo tipo, parcialmente obliterado em nossa cultura, não deixaria entrementes de sinalizar a sua presença, como sugerem tantas narrativas literárias e cinematográficas.
à assimetria inerente à troca nessas sociedades, que “a perfeita simetria é o incesto, porque é perfeita autonomia (...)”. Retirada de seu contexto e transposta arbitrariamente em outro, esta observação, como vemos, não poderia sintetizar melhor o discurso simbólico da trama, iluminando seu ideal. De fato, a observação poderia constituir uma réplica dos Deuce a Alba, expressando verbalmente o que o filme sugere visualmente na cena em que os gêmeos (que admiram os seres hermafroditas por “bastarem-se a si mesmos”) revelam a sua condição de “siameses” devidamente instalados na cama com a mulher ao meio. Segundo Lévi-Strauss (1991: 305), o pensamento indígena atribuiria à simetria um valor negativo, não raro maléfico. Como vimos, em sua perspectiva a cosmologia ameríndia conceberia a organização progressiva do mundo mediante o modelo de um dualismo assimétrico, em perpétuo desequilíbrio. Nos mitos, esse modelo recusaria a ideia de uma perfeita homogeneidade entre os gêmeos, constituindo a identidade um estado temporário, impossível de perdurar: ainda que sejam inicialmente idênticos, os gêmeos míticos ameríndios tendem à diferenciação progressiva, ao contrário de seus homólogos indo-europeus, cujas diferenças iniciais tendem à progressiva redução. Assim, ao considerar o universo idealmente estático e simétrico de nossos heróis – figurado no filme de Greenaway por uma série de elementos que incluem desde a composição dos cenários aos enquadramentos de câmera – não surpreende reencontrar o motivo do incesto entretecendo mais esta trama gemelar: pontuando o movimento de conjunção dos gêmeos, o incesto é o operador simbólico que reduz a diferença ao mínimo.
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Data do recebimento: 19 de junho de 2011 Data da aceitação: 23 de dezembro de 2011
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Lucas Martins Fernandes
Maria Antonieta: melancolia, política, tempo andré antônio barbosa Mestrando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
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Resumo: Em Maria Antonieta, de Sofia Coppola, a presença de tempos mortos, planos dilatados, momentos “banais” e a caricaturização irônica dos personagens trazem à tona um forte sentimento de melancolia. Há, por outro lado, uma afirmação singular da vida, que privilegia a fugacidade e a finitude desta, sobretudo através dos papéis que as cores, o figurino e a trilha sonora exercem na mise en scène. Essa “dialética” se instala a partir de um mergulho anacrônico e nostálgico nos lençóis e camadas do tempo. Palavras-chave: Sofia Coppola. Política. Melancolia. Tempo. Nostalgia.
Résumé: Dans le film Marie Antoinette, réalisé par Sofia Coppola, la présence de temps morts, de plans dilatés, de moments “banals” et de parodie ironique des personnages apportent un fort sentiment de mélancolie. Il y a d’autre part une affirmation singulière de la vie concentrée sur son éphémère et sa finitude, en particulier à travers les rôles qui jouent les couleurs, les costumes et la bande sonore dans la mise en scène. Cette “dialectique” est installée à partir d’un plongeon anachronique et nostalgique dans les draps et les couches du temps. Mots-clés: Sofia Coppola. Politique. Mélancolie. Temps. Nostalgie.
Abstract: In Sofia Coppola’s Marie Antoinette, the presence of dead times, dilated shots, “banal” moments and the ironic travesty of characters bring up a strong sense of melancholy. There is, on the other hand, a singular affirmation of life, which focuses on its transience and finitude, especially through the roles that the colours, the costumes and soundtrack play in the mise en scène. This “dialectic” is installed from an anachronistic and nostalgic dip in the sheets and layers of time. Keywords: Sofia Coppola. Politics. Melancholy. Time. Nostalgia.
Foi sorte que o fundador da poesia moderna tenha sido um fetichista! Sem a sua paixão pelo vestuário e pela cabeleira feminina, pelas joias e o maquillage (…), dificilmente Baudelaire teria podido sair vitorioso do seu confronto com a mercadoria. Giorgio Agamben
Em agosto de 2011, Vladimir Safatle relembrou, em sua coluna para a Folha de São Paulo, um filme de 2006 sobre a última rainha da França, que foi brutalmente julgada durante os processos da Revolução Francesa: Maria Antonieta (Marie Antoinette, 2006), de Sofia Coppola. Curiosamente, o que remeteu Safatle ao filme foram agitações e movimentações políticas importantes da atualidade: Por trás de palavras de ordem como “educação pública de qualidade e gratuita”, “nós queremos justiça social e um Estado-providência”, “democracia real” ou o impressionante “aqui é o Egito” ouvido (vejam só) em Israel, eles dizem simplesmente: o mundo que conhecemos acabou (SAFATLE, 2011).
No texto, o autor cria um paralelo entre a jovem rainha heroína do longa-metragem, alienada num palácio cor-de-rosa, e a geração que cresceu na década de 90: ambos se enganaram ao ignorar a marcha das mudanças políticas na história, que acontecem do lado de fora da bolha do consumismo e das festas adolescentes. “Coppola acabou por falar de sua própria geração (...). Já temos sinais demais de que nosso presente caminha nessa direção. Nada pior do que continuar a agir como se nada de decisivo e novo estivesse acontecendo” (ibidem). Safatle destaca o modo como a “massa sem rosto” e “irrepresentável” que faz a história – cujos gritos surdos são apenas ouvidos assustadoramente à distância no filme, até uma de suas cenas mais sombrias, no final – é importante para a “lição” que o longa engendra. Em sua crítica para Maria Antonieta, Luiz Carlos Oliveira Jr. também parece falar de algo parecido: “a leveza é só o atributo provisório – e dilatado na sua duração – de uma brutalidade extracampo, que cobra seu lugar no fim de tudo (...) há o momento em que a História bate na porta e impõe sua participação à força” (OLIVEIRA JR., 2007). A reação dos dois autores ao filme
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é curiosa. Se por um lado um número considerável de críticos, sobretudo à época da estreia, enxergou no filme apenas uma espécie de exercício ostensivo, superficial e vazio de frivolidade e futilidade, Safatle e Oliveira Jr. de alguma forma parecem ter sido sensibilizados pela densidade melancólica da diegese, pelo onirismo fortemente construído das cenas e pela complexidade da mise en scène e procuraram expressar em que sentido o filme é, de fato, um produto interessante. No entanto, talvez ambos ainda estejam procurando no lugar errado. Mantenhamos a intuição deles de que há, de algum modo, uma conexão entre o filme e uma discussão sobre política e história. Porém, essa conexão não se apresenta através da dicotomia fácil que os dois autores apresentam: interior alienado e fútil versus a marcha política da história que verdadeiramente importa no exterior “irrepresentável”, no “extra-campo”. Manter o foco na turba revolucionária que mal aparece no filme parece não gerar muitos frutos. Lancemos mão do didático jogo de palavras que Jacques Rancière (2010a) criou, como ponto de partida, para tentar ordenar e tornar inteligíveis certos debates acerca das relações entre política e arte. Ao longo de sua carreira enquanto cineasta – ou sobretudo enquanto esteta – Sofia Coppola nunca esteve interessada na estética da política. Ou seja, nas mudanças e conflitos sensíveis operados entre partilhas ou ideias dissonantes de comunidade que se vislumbram nas manifestações políticas públicas, nas reivindicações do povo, nas revoluções sociais. Isso não impede, porém, que seja possível entrever uma política da estética no estilo complexo desenvolvido por Coppola em seus filmes e com o qual ela realiza Maria Antonieta. Para Jacques Rancière (2007), a função do artista no regime estético da arte é intuir, forjar e estabelecer conexões onde antes não havia nenhuma. É propor novas formas de ver o que antes estava invisível e de ouvir o que era considerado mero ruído. É criar imagens dissonantes que evitem o torpor da comunidade consensual da mercadoria. A arte de Sofia Coppola conjura conexões sensíveis deste tipo. Suas imagens podem remeter de uma maneira mais óbvia e fácil aos preconceitos de certa ideia, forjada no senso comum, que relaciona alienação, mercadoria e consumismo inconsequente. A operação que cria essas imagens, porém, é bem mais complexa, dotando-as de uma densidade importante que ameaça o torpor das regras consensuais que
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contextualizam sua produção. É a política engendrada nesse dissenso estético o que interessa aqui. Maria Antonieta começa ao som das guitarras agressivas de “Natual is not on it”, da banda inglesa – conhecida por seu engajamento político – Gang of Four. Os créditos iniciais surgem num design que remete às capas dos álbuns dos Sex Pistols, feitas pelo anarquista Jamie Reid. Em seguida, vemos a rainha (Kirsten Dunst) deitada languidamente com o cabelo armado, cercada de bolos elaborados, vários doces e uma ama colocando um sapato. Ela passa um dedo pela cobertura de um dos bolos e olha provocadoramente para a própria câmera. Esta abertura estabelece não apenas a atmosfera de todo o filme como já aponta para as conexões inusitadas que Coppola vem propor: certo sentimento de rebeldia contra a ordem social convencional engendrado pelo rock‘n’roll pós-punk (que predomina na trilha sonora) é posto em relação direta com uma espécie de universo “feminino”, leve, corde-rosa (a própria cor dos créditos sobre um fundo preto), com um gosto pelo doce, pela moda e pela sofisticação. Tal universo, porém, só surge no filme a partir de um sentimento generalizado de melancolia – perceber desde já a predominância das cores pastéis, esmaecidas, como de objetos velhos há muito esquecidos e abandonados – que dá margem à criação de anacronismos nostálgicos e fantasias decadentistas. Maria Antonieta surge através dessa orquestração de incomensuráveis. 1. A melancolia da decadência É interessante observar a associação que vários críticos, após o lançamento, fizeram entre o longa e certo sentimento de futilidade ou frivolidade típico de um consumismo alienado, como se Coppola, ao invés de ter feito cinema, tivesse realizado uma publicidade ou um editorial de moda longo demais. Associação estranha, que revela a não percepção de inúmeros aspectos do filme, a começar pela profunda melancolia que o assola desde o início. As primeiras sequências já revelam essa perspectiva. Vemos Maria Antonieta deixar seu lar na Áustria e se dirigir à França para se tornar a delfina e casar com o neto de Louis XV, como forma de cimentar as relações entre as duas nações. As cenas mostram a jovem dentro da carruagem olhando pela janela. Se de alguma forma esperamos ver logo em seguida a chegada do séquito,
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Coppola, pelo contrário, se detém na carruagem, onde não há mais nada que desperte o interesse de uma progressão narrativa mais ampla – se o filme pretendesse ser uma cinebiografia tradicional de Antonieta. Assim, ficamos com tempos mortos e com uma dilatação “desnecessária”. O que interessa à câmera são momentos banais, como dormir, comer, jogar cartas, soprar na janela de vidro e fazer um desenho que desaparece em segundos. O ritmo é lento. O efeito dessa construção é uma sensação generalizada de tédio perante a vida, ou ennui. A sequência é acompanhada por uma melodia triste de piano. A carruagem encontra seu caminho através de imagens desoladoras: trilhas numa floresta de árvores sem folhagens, secas. O longa já começa, então, preparando uma sensibilidade particular no espectador, pois Coppola retratou eventos diferentes que aconteceram ao longo de várias décadas muito fluidamente através de elipses enormes ou longos períodos de tempo morto, de modo a desafiar a visão do senso comum de tempo (...) o filme contém longas sequências onde pouco acontece e o que é mostrado é bastante “chato” (ROGERS, 2007, tradução nossa).
1. No longa-metragem mais recente de Coppola, Somewhere (2010), o personagem não é mais mulher nem adolescente. Esse mergulho profundo na melancolia, porém, continua fundamental.
A mise en scène começa a dar conta de uma situação específica, que tem interessado a Coppola em todos os seus filmes: um personagem encontra-se em um mundo que melancolicamente não faz mais sentido para ele. À diretora interessa filmar a forma sensível pela qual tal personagem pôde lidar com essa situação. Instala-se, nos filmes de Coppola, um mal-estar que é essencialmente moderno, e que, desde o romantismo, tem sido o sentimento dominante de toda uma tradição da modernidade estética. Faustianamente, nem a religião, nem a ciência, nem os rituais e meta-narrativas nas quais formas específicas de sociedades inserem os corpos das pessoas, atribuindo-lhe papéis, são suficientes para um engajamento ativo ou a construção de uma identidade tolerável nesse personagem. Nos três primeiros longas-metragens de Coppola – The virgin suicides (1999), Lost in translation (2003) e Marie Antoinette – esses personagens são mulheres adolescentes que, por causa de situações específicas, encaram pela primeira vez os caminhos para o fim da juventude e, portanto, a finitude de todas as coisas e a passagem inelutável do tempo1. Nessa perspectiva, elas precisam encontrar caminhos alternativos aos papéis (que portanto parecem alheios a elas) impostos, por exemplo, pelo provincianismo dos Estados Unidos dos anos 70, pelo casamento, e pelas responsabilidades de ser a
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delfina e, logo depois, a rainha da França em fins do século XVIII. Antes de ser a cinebiografia da última rainha da França, Maria Antonieta é o filme sobre uma adolescente para a qual as convenções e narrativas sociais nas quais precisa se inserir se tornaram obsoletas e vazias, pois a própria ideia de morte e finitude exigem a busca de caminhos alternativos para a vida. Esse sentimento de melancolia parece fundamentar-se em duas instâncias da mise en scène de Maria Antonieta. Tem-se, em primeiro lugar, uma espécie de mergulho na materialidade das coisas, com que se caracterizam os tempos mortos e os planos dilatados, os registros sistemáticos de momentos “banais” já mencionados. Em segundo lugar, há uma espécie de instância de caricaturização forte no longa. Um tipo de distância irônica concernente ao que é visto é sempre mantida, embora, de maneira complexa, em constante relação dialética com uma proximidade afetiva. Quando a carruagem com o séquito de Antonieta chega à fronteira da França, o comitê que a espera informa ser necessário que ela se separe de qualquer objeto ou pessoa da Áustria e, através da “cerimônia de entrega”, converta-se propriamente na “delfina da França”. Uma Antonieta chorosa se despede de suas damas de companhia e a atmosfera geral da cena é de uma tristeza permanente. Porém, quando arrancam Mops, o filhote de cão, dos braços da nova delfina e ela protesta com um choramingo infantil mostrando que talvez sentirá mais falta do cão do que de suas companheiras, a crueza patética da situação abre espaço para o distanciamento irônico. A heroína à qual Coppola dedica um filme é vista de maneira constantemente ambígua: ora podemos enxergá-la como essa criança fútil, ora sentir identificação pela jovem mulher que encontra seu caminho num mundo sombrio. Em sua investigação a respeito da continuidade fundamental dos sintomas da melancolia com relação à ideia medieval de acedia, Giorgio Agamben cita o depoimento significativo de um padre descrevendo o monge que padece desse estado desolador: [O acidioso possui] um horror ao lugar em que se encontra, um incômodo em relação à própria cela e um nojo dos irmãos que vivem com ele, que agora lhe parecem ser negligentes e grosseiros. Faz com que se torne inerte para qualquer atividade que se desenrola entre as paredes de sua cela, impedindo-o de continuar em paz e de prestar atenção à sua leitura; eis que o infeliz começa a lamentar que não tira nenhum proveito da vida conventual, e suspira e geme que o seu espírito não produzirá fruto algum enquanto ficar onde está; queixando-se,
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proclama-se incapaz de enfrentar qualquer tarefa do espírito e aflige-se por ficar aí vazio e imóvel, sempre no mesmo lugar, ele que poderia ter sido útil para os outros e guiá-los, e pelo contrário nada realizou nem ajudou a quem quer que fosse (CASSINI apud AGAMBEN, 2007: 23).
A argumentação de Agamben mostra a continuidade notável desse quadro nos interesses de vários artistas modernos importantes, do romantismo ou do decadentismo. De alguma forma, ele continua palpável no Versalhes de Sofia Coppola, sobretudo quando ele plasma a melancolia cujo epicentro é a própria Antonieta. Por um lado, trata-se de um lugar povoado de caricaturas odiáveis, exageradas, ridículas, meras imagens planificadas cuja função é preencher um tempo vazio com intrigas, fofocas e conflitos fúteis. Louis XV tem sotaque e trejeitos texanos; sua amante, a vulgar Madame Du Barry, é interpretada por Asia Argento e anda pela corte com macacos; as tias fofoqueiras estão sempre juntas e carregando seus pequenos cachorros de estimação, os quais têm penteados e enfeites tão elaborados quanto os delas. Por outo lado, Versalhes é um lugar repleto de rituais cotidianos obsoletos e sem sentido. Ao acordar, a delfina precisa ser vestida pelas damas da alta corte, há as refeições que ocorrem sob codificações extremamente formais, é preciso ir à missa... O filme mostra repetidamente esses rituais e, sempre que o faz, ouvimos a mesma música: o “Concerto in G”, de Antonio Vivaldi (uma das poucas músicas clássicas da trilha sonora), criando assim um distanciamento irônico, mostrando que a repetição desses rituais é vazia, e fazendo uma referência direta a All that jazz (1979), de Bob Fosse, onde as rotinas cotidianas do protagonista – que está próximo da morte – são mostradas num crescendo de intensidade ao som da mesma música. Se há no geral um tom cômico nesse sarcasmo ou ironia devastadora, trata-se apenas de um riso disfuncional, que encobre um vazio ainda maior, ou a fragilidade de um cristal prestes a se quebrar – e que de fato explode na cena em que Maria Antonieta se tranca no aposento particular para chorar. A ostentação visual de Versalhes, no filme de Coppola, indica falsamente que ele é um “palácio dos sonhos”. Na verdade, ele é o lugar onde prevalece uma espécie de imperfeição essencial. Nada é como se sonhou; Antonieta não consegue ter relações sexuais com o marido e demora a dar à França o tão desejado herdeiro do trono; a ironia
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diminui qualquer gesto que se pretendia grandiloquente. A certa altura do filme, escuta-se a trágica canção “Tristes apprêts, pâles flambeaux”, significativamente presente em outro filme sobre a enfermidade melancólica: A religiosa (La religieuse, 1966) de Rivette. Na direção de arte, cenografia e figurino – instâncias particularmente importantes em Maria Antonieta – prevalecem cores pastéis, esmaecidas, “lavadas”, como aquelas de pequenos objetos e bibelôs do passado, hoje ruínas sem nenhuma importância. No making-of do DVD brasileiro, o diretor de fotografia Lance Acord comenta que, antes das filmagens, Coppola havia lhe mostrado fotos como a de um queijo que estragou para dar uma ideia da paleta de cores. Se essas cores ajudam a difundir um sentimento de decadência (que visualmente lembra Gustave Moreau e, também, certa tristeza nostálgica das pinturas do rococó francês), provocam por outro lado um inusitado prazer visual, atestando a complexidade da dialética que Coppola põe em jogo no longa, que está, pois, longe de ser uma mera publicidade de moda. 2. A política do cor-de-rosa Sobre fazer Maria Antonieta, Sofia Coppola escreveu: Quando li pela primeira vez sobre Maria Antonieta, tendo apenas 14 anos e enviada a Versalhes, sem ninguém próximo com quem ela se relacionasse, e apenas rodeada por adoráveis objetos decadentes que são supostamente para agradar e fazer feliz, quão solitário pareceu. E eu pensei que era tocante, mesmo no ridículo de vestir-se como uma empregada para apresentar-se em seu pequeno teatro no Petit Trianon, como ela tentou encontrar seu próprio caminho (2006: 2, tradução nossa).
Podemos enxergar claramente como o “ridículo” deste depoimento se traduz no distanciamento irônico que permeia o filme. No entanto, o ponto central do interesse de Coppola por sua personagem foi sem dúvida o “como ela tentou encontrar seu próprio caminho”. O que fazer diante da passagem inadiável do tempo, diante da decadência de todas as coisas? Os personagens de Coppola nunca conseguem ignorar essa angústia melancólica essencialmente moderna e continuar a desempenhar os papéis que as narrativas sociais convencionais reservaram para eles. A situação-limite dessa angústia, seu extremo mais negativo, é o
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suicídio – que efetivamente ocorre em As virgens suicidas, embora não possamos esquecer o fato de que este primeiro longa de Coppola é narrado em retrospectiva por jovens contemporâneos das trágicas irmãs Lisbon, os quais, ao contrário delas, conseguiram achar seus próprios caminhos. A própria fantasia nostálgica que é o filme, a elaboração ativa da memória, faz parte da construção desses caminhos. Quando vemos Antonieta sentada sozinha, chorando em seus aposentos particulares (o frágil cristal afinal explodiu em mil pedaços), há um corte brusco, e o espectador passa a assistir, numa edição videoclíptica e ao som “selvagem” de “I want candy”, de Bow Wow Wow, Antonieta escolhendo tecidos de infinitas estampas, experimentando incessantemente peças de roupas, sapatos e novos e exagerados penteados, comendo doces, bebendo muito champanhe, jogando cartas. Jacques Rancière afirma que As artes nunca emprestam às manobras de dominação ou de emancipação mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito simplesmente, o que têm em comum com elas: posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível (2005: 26).
Que posicionamentos e movimentos de corpos, que funções, visibilidades e disposições vemos na mise en scène e nas imagens de Coppola? Pode-se responder que vemos os corpos em festa. “Festa” aqui, porém, não significa as celebrações previstas, quase protocolares, associadas aos rituais e aos marcos narrativos de uma determinada sociedade. Significa, pelo contrário, uma espécie de separação dessa sociedade e a instauração de outro tipo de comunidade. Uma comunidade cujos valores sensíveis dizem respeito aos prazeres possíveis de se aproveitar no próprio fluxo fugaz e material do mundo e à consciência aguda de que esses prazeres são banais, pequenos, breves e passageiros. Trata-se de um tipo de celebração que não cimenta uma ordem já existente, reforçando-a; antes, destrói seus laços, pois encara a morte de frente, a condição essencialmente frágil, rápida e acidental de nosso estar no mundo. É através da festa que Maria Antonieta melancolicamente encontra seu caminho no mundo. O som pós-punk dá o tom sombrio e destrutivo do desbunde dessas sequências de festa. Temos as sonoridades góticas de Siouxsie and the Banshees (baile de máscaras) e The Cure (coroação), ou “Ceremony”, de
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New Order, na festa de aniversário de 18 anos de Antonieta, de que Coppola fala: ‘’New Order tem um certo sentimento – um sentimento jovem, melancólico, romântico – que é específico à sua música. Eu os escutei muito em Maria’’2. O fim do aniversário mostra Antonieta e alguns amigos bêbados, caminhando e gritando pelo jardim do palácio, à meia-luz azul de um novo dia que ainda não nasceu – uma luz gelada que Coppola insiste em mostrar em seus filmes. O espaço que a câmera compartilha com os personagens em uma cena como esta conjura uma afetividade para com o que é mostrado que abandona por completo o sarcasmo de outras partes do filme. Nesta cena, luz natural é utilizada, enquanto a textura do filme se assemelha muito àquela do 16 mm, material frequentemente utilizado para evocar um sentimento de nostalgia e de memória que empresta aos corpos enquadrados pela câmera uma qualidade granulada, luminosa e fantasmagórica. Desta forma, Coppola consegue sobrepor cenas de júbilo e decadência com a qualidade melancólica de um calmo mau presságio (ROGERS, 2007, tradução nossa).
A “mise en scène da festa” de Sofia Coppola diz respeito a um uso da câmera na mão que mergulha languidamente no fluxo dos elementos do mundo e na fugacidade deles. É algo como a contrapartida dos tempos mortos e do tédio que a materialidade das coisas, presente no filme, traz a primeiro plano. É possível encontrar prazer nessa mesma materialidade e descobrir sensações novas: “Coppola é também uma esteta que cultiva um certo desequilíbrio, uma perda de controle sobre o material do filme, um transbordamento da cena” (OLIVEIRA JR., 2007). Uma outra dimensão da festa em Maria Antonieta é sua relação com a moda, com certa “poética feminina” e com a sofisticação. As estampas, o design, as cores dos tecidos (o rosa predominando) e papéis de parede, são elementos que também fazem parte desse mergulho lânguido no fluxo material do tempo. O figurino do filme, encabeçado por Milena Canonero, é uma reinterpretação neorromântica (inspirada em Vivienne Westwood) das roupas do século XVIII. A relação criativa e ativa com essas formas, tecidos e visuais inventados é uma instância crucial do “caminho” encontrado por Antonieta e que interessa a Coppola. Bem como a exploração visual que a câmera empreende pelos doces Ladurée – macarons e tortas com as tristes cores pastéis que predominam no filme, mas com um sabor açucarado – e a
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2. Tradução nossa. Cf. Sophia’s choices. EW, California, 14 out. 2006. Disponível em: http://www.ew.com/ew/ gallery/0,,1543124_1210257,00. html#1210262. Acesso em: jan. 2012.
identificação que Antonieta sente pelos espetáculos exagerados, mas sofisticados das óperas trágicas em Paris. Relacionar de maneira fácil esses elementos do filme univocamente a certa ideia de um consumismo fútil, vazio, orquestrador das circulações da mercadoria no capitalismo, é, em primeiro lugar, não ver como eles também estão inseridos nessa estética destrutiva, melancólica e de separação da comunidade instituída; e, em segundo, desconsiderar a dialética com a qual o filme empreende uma ambiguidade complexa e fundamental, como descreve Pam Cook em seu texto sobre Maria Antonieta: Em sua forma mais aventureira e provocativa, ela [a Moda] atinge o status de, ao mesmo tempo, arte gráfica e performance (...) [Mas] a incansável busca da Moda por novas ideias e formas, além de sua associação com o fetichismo da mercadoria, a tornam tanto atraente quanto alienante: seu potencial como arte é muitas vezes subsumido pelo seu elitismo; a disponibilidade de marcas de estilistas, limitada a um grupo de consumidores ricos que as usam para exibir status (...) o espírito da Moda como afirmação de um estilo criativo e reinvenção pessoal informa o filme de Coppola (...) Embora obviamente um retrato simpático, o filme de Coppola não deixa Maria Antonieta inteiramente fora do gancho. Em vez disso, se mantém fiel às contradições que fazem dela uma figura ambígua (...) não somos convidados a decidir se ela é boa ou má. Ao invés disso, somos encorajados a responder em um nível emocional a sua situação (2006: 38-39, tradução nossa).
3. O modo contemplativo com que a natureza é filmada no longa, sobretudo nas sequências do Petit Trianon – devedoras confessas dos longas de Terrence Malick – também demonstra essa inclinação romântica. Cf. Sophia’s choices. EW, California, 14 out. 2006. Disponível em: http://www.ew.com/ew/ gallery/0,,1543124_1210257,00. html#1210259. Acesso em: jan. 2012.
A “festa” em Maria Antonieta, então, é uma espécie de fuga das meta-narrativas arbitrárias que a sociedade impõe, e o retorno a um tipo de relação mais sensória com o fluxo do mundo; uma separação das convenções e a busca por relações vitais mais “autênticas”. Trata-se, como vimos, não apenas da situação vivida diegeticamente pela personagem, mas uma experiência a que a complexa mise en scène do filme convida o espectador. Coppola então se filia a um projeto não muito recente, porque tipicamente romântico (logo moderno) – movimento estético, aliás, cujo fascínio pela melancolia continua presente nos filmes da diretora. A própria Coppola mostra consciência da filiação a essa longa tradição ao fazer Antonieta citar Rousseau3. Maria Antonieta parece atestar a atualidade desse projeto de criar uma separação crítica das convenções de uma comunidade já instituída. Seguindo o pensamento de Rancière (2010b), não é possível prever quais implicações políticas um filme como o de Coppola pode ter em um
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contexto social como o capitalismo multinacional. Mas podemos identificar o dissenso que ele gera ao restituir a legitimidade da rebeldia desse projeto romântico e forjar visibilidades imprevistas e criar conexões inusitadas, como aquelas entre a potência do rock, a delicadeza dos signos femininos e a melancolia da modernidade. Um dissenso, acreditamos, de clara importância política; talvez, uma política do cor-de-rosa. Tudo a partir dos caminhos intuídos por uma jovem mulher do século XVIII. Caminhos que estão longe de projetos grandiloquentes ou meta-narrativas globalizantes. Eles precisam dar conta da banalidade fugaz de qualquer vida. Lembremos então, ainda, de como Coppola evita o exagero do melodrama e privilegia uma espécie de minimalismo cotidiano ao mostrar Antonieta, por exemplo, sabendo lidar maduramente com a partida do Conde Fersen, por quem havia se apaixonado, e sua nova solidão; ou se despedindo com dignidade de membros próximos da corte que precisam deixar Versalhes por causa dos perigos iminentes da Revolução Francesa. A existência é feita de momentos que acabam muito rápido, e é preciso criar modos de vida que não esqueçam ou recalquem esse fato. O filme de Coppola se propõe a apontar direções para um desses modos. Uma das sequências mais tocantes de Maria Antonieta mostra a rainha acordando com ressaca de sua festa de 18 anos. É pela “banalidade” deste tipo de situação que Coppola se interessa: ao redor de Antonieta, os vestígios da festa são limpados por amas; ela acorda com dificuldade, a peruca desarrumada, e vai tomar banho. É preciso continuar. 3. Experienciar o tempo A foto do queijo mencionada por Lance Acord faz parte de um conjunto mais amplo, que Sofia Coppola reunira na época em que estava apenas pensando sobre Maria Antonieta como um projeto. Esse “método” da diretora é bem conhecido e bastante mencionado em reportagens e entrevistas: antes de começar a filmar ou mesmo de escrever um roteiro, Coppola reúne diversas imagens e músicas que de alguma forma vão dar o “tom”, o sentimento geral ou a “atmosfera” do filme que está por vir. A ideia embrionária para Maria Antonieta veio da cor esmaecida de um queijo estragado, do colorido pastel nostálgico e feminino dos macarons da Ladurée, da capa de um disco da banda Bow
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Wow Wow, o “I want candy anthology” e das batidas melancólicas e rebeldes do rock pós-punk (que, como mostra o making-of do filme, eram tocadas nos ensaios e gravações para ajudar com o “clima” das cenas). Esse modo pelo qual Coppola começa a conceber suas imagens é revelador do nível de comprometimento da diretora com a tradição da modernidade estética e o papel que esta atribui à arte na relação entre as pessoas e o mundo. É interessante lembrar (e perceber a semelhança com a forma pela qual as imagens de Coppola nascem) do conhecido depoimento de Flaubert sobre como a cor do musgo encontrado em qualquer parte nas ruas, mas ignorado por todos, foi uma espécie de inspiração para o sentimento predominante em Madame Bovary. Os artistas ligados a essa tradição não estão interessados em contar “histórias” ou demonstrar sua excelência e virtuosismo na articulação de regras como a verossimilhança ou o respeito às características de “gêneros” específicos e diferentes. O que os move na realidade é a tentativa de trazer à tona e orquestrar certos afetos inarticuláveis pelos modos de inteligibilidade e racionalidade comumente instituídos numa determinada ordem. É a obstinação em perseguir, mergulhar em sensibilidades e configurações que parecem estranhas aos contextos nos quais essas obras surgem; é forjar conexões e formas de sentir “absurdas” ou não pensáveis nesses contextos. Podemos pensar no modo como Jacques Rancière (2009) descreve um regime estético da arte em oposição a um regime representativo e hierárquico das artes. Assim, enxergar Maria Antonieta apenas como uma cinebiografia ou um “filme de época” – e exigir que o longa respeite as regras que tradicionalmente são associadas a esses “gêneros” – é não perceber que o filme é antes de tudo a orquestração de algo mais forte: dos afetos que de algum modo Coppola já pressentia nas imagens e sons dos quais se cercou para criar Maria Antonieta, afetos que vinham de longe, do tempo, e que Coppola tentou plasmar em seu filme. Um “afeto” não é algo que pode ser facilmente articulável ou descrito racionalmente. É um sentimento obscuro, fugaz como um perfume ou um relampejar, que precisa ser perseguido com sutileza e que é, na verdade, apenas a “ponta do iceberg” para outras descobertas mais profundas. É uma forma de sentir o mundo que é ao mesmo tempo “pessoal” – afetos particulares e distintos são conjurados
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por artistas ou pessoas diferentes – e uma energia que, sentese, vem da origem dos tempos e já circulava muito antes (em objetos, cores, lugares, melodias, histórias, etc) de algum artista tê-lo tornado “visível” de novo ou ressuscitado. Nos termos de Gilles Deleuze (2007) – a quem não se pode deixar de referendar quando se pensa o afeto dessa maneira – Coppola foi fiel ao mergulho nessas energias impessoais por ela pressentidas, de modo que, para plasmá-las em seu filme, foi preciso ir além das conexões sensório-motoras óbvias de uma simples narração fechada: foi preciso se abrir ao tempo. Muito foi comentado, à época do lançamento, a respeito da abordagem anacrônica que Coppola empreendeu com Maria Antonieta a partir de estratégias como deixar os personagens em Versalhes falarem em inglês contemporâneo (com sotaque e gírias), escolher uma jovem atriz contemporânea conhecida no universo da cultura pop ou usar músicas dos anos 80 na trilha sonora. Mas a proposta do filme desde o início não era mostrar apenas o século XVIII; era experienciar o tempo. As imagens-tempo realizadas através de Maria Antonieta não narram algo que aconteceu apenas no passado; antes, sedimenta indefinidas camadas de tempos heterogêneos; dá a ver lençóis do passado; cria um reino de semelhanças (no sentido benjaminiano) onde entrevemos conexões velozes e fugazes entre nosso presente e “blocos” do passado; enxerga nosso presente, enfim, a partir de outra perspectiva: dentro do Todo – para empregar o termo bergsoniano com que Deleuze pensa – de um universo material em eterna expansão onde as divisões entre passado, presente e futuro são meras convenções abstratas, distantes da real experiência sensória com o tempo. Ao narrar como foi levado a descobrir elementos novos na pintura de Fra Angelico, até então “invisíveis” para a maioria dos historiadores da arte, inusitadamente por causa do relampejo de uma semelhança entre Angelico e os métodos – separados dele por séculos – de Jackson Pollock, Georges Didi-Huberman (2006) fala da urgência de se fazer uma história não mais pautada pelas regras da linearidade e da concordância eucrônica, mas pelos rigores próprios aos “sintomas” e aos anacronismos que fazem com que nosso presente acesse partes inesperadas do passado, as quais, porém, têm o poder de iluminar esse presente com mais força do que qualquer “contemporaneidade”. Segundo Didi-Huberman, o historiador deve ser como um artista que
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faz uma montagem, respeitando os impulsos do inconsciente. O autor ecoa, nessa reflexão, toda uma tradição de pensamento que busca pensar a história não com a rigidez ou a previsibilidade de um arquivista ou burocrata. Para Walter Benjamin (uma das principais referências de Didi-Huberman), a história não pode ser escrita como se as pessoas agissem dentro de um tempo vazio e homogêneo. Para Benjamin, a função do historiador é pesquisar as conexões entre o passado e o nosso presente em um momento de perigo. O esquecimento é algo importante para a prática do historiador. Pois só o que está esquecido pode ser acessado pelo inconsciente e mudar nossas perspectivas sensíveis de ação no presente. É possível dizer que é esse tipo de história – é essa montagem inconsciente, é essa história estética – que Coppola pratica com Maria Antonieta. Se os afetos plasmados no filme – já presentes em latência nas imagens e sons que a diretora reuniu na gênese do processo criativo – revelam para o nosso presente uma visibilidade nova, posicionamentos de corpos e recortes sensíveis inusitados, de, como vimos, uma importância política que não pode ser ignorada, é porque ele constrói uma história que não é a de um arquivista. Antes, é um entrever do tempo. Um entrever marcado por sentimento de nostalgia, ou seja: trata-se de acessar o passado não como algo morto e catalogado, mas como algo que revela uma conexão forte com o presente. A mise en scène de Sofia Coppola opera através de uma espécie de dialética. Por um lado, ela faz parte de uma tradição cinematográfica de realizadores com uma espécie de paixão pelo “real”. Mencionamos acima que a diretora cultiva certo “desequilíbrio” ou “imperfeição” na imagem que dão à sua diegese uma força notável. O modo como ela usa a câmera na mão, aproveita improvisos, descarta uma decupagem dominante ou planejada com muita antecedência, filma tempos mortos, planos dilatados, momentos “banais” e faz usos agressivos de elipses (lembremos que para Deleuze a elipse é uma das formas de se entrever o Todo na imagem-tempo) lembra diretores como os da “geração pós-Nouvelle Vague”, como Garrel (outro nostálgico incurável), Eustache e Pialat, todos fascinados pelos filmes dos irmãos Lumière. Esse mergulho radical na materialidade do mundo, que tenta enxergá-lo “nu”, sem sentidos prévios, é o contraponto de uma melancolia profunda (não rara nos produtos
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da modernidade estética) que, como vimos, predomina no projeto artístico de Coppola. No entanto, se essa melancolia assume uma espécie de negatividade pronunciada e destrutiva nos diretores citados (o suicídio de Eustache assombrando toda a geração), Coppola parece descortinar, pelo contrário, uma espécie de positividade mesmo na melancolia mais pronunciada – o que nos leva ao segundo termo da sua dialética. Por outro lado, então, esse mergulho sombrio na materialidade das coisas apresenta um contraponto: a exploração de certos afetos que circulam através dessa mesma materialidade. A paixão pelo “real” em Coppola convive com um deslumbre e um delírio visuais que parecem filiá-la menos ao cinema e mais às artes visuais, como se a pop art encontrasse o simbolismo, o romantismo, o surrealismo ou, até mesmo, a pintura rococó. Se a forma com que as narrativas clichês e divisões de uma determinada ordem social não fazem mais sentido, a melancolia de ter que achar seu próprio caminho se depara, em Coppola, com as sensações novas e descobertas que esse caminho indica. Maria Antonieta apresenta uma montagem tipicamente moderna: as partes não são “podadas” ou muito modificadas para beneficiar facilmente um “todo” orgânico. Pelo contrário, são mantidas de certa forma “íntegras” para que as conexões se façam através de atritos e distanciamentos. Um exemplo dessa lógica é o uso da música no filme. Coppola recusou uma trilha sonora original. A maior parte das músicas que embalam as cenas já existia. Mesmo tendo convidado o pianista Dustin O’Halloran para fazer algumas composições, Coppola pediu que ele trabalhasse sem olhar as cenas onde as músicas seriam usadas, e que produzisse assim peças “autônomas” cuja inserção no filme seria resolvida na etapa da montagem. Esse respeito quase que de uma “documentarista” para com os elementos que constituem o filme, para com seu “real”, apenas reforça a força dos afetos que já eram vislumbrados nesses elementos num estágio inicial da realização. Pois não são apenas os personagens de Sofia Coppola que precisam encontrar caminhos; os espectadores também.
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Referências
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Data do recebimento: 23 de abril de 2012 Data da aceitação: 28 de agosto de 2012
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