Revista Educacional

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EDITORIAL

Nesta edição, a Revista Educacional mostra o quanto os educadores das Unidades Educacionais Maristas estão em busca de contínua formação e de respostas para uma Educação inclusiva, que traga equilíbrio para as relações entre a escola, a família e o processo de aprendizagem. As três autoras fazem parte das equipes pedagógicas dos Colégios em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro. A professora Elânia Duarte escolheu como desafio analisar o papel da avaliação escolar na interação entre família-escola, no contexto da proposta de ciclos da capital mineira. Essa política educacional propõe o grupamento dos anos de estudo, sem possibilidade de reprovação. A iniciativa, criada com a proposta de promover o sucesso escolar, traz na avaliação da aprendizagem seu ponto mais polêmico, por propor alterações na dinâmica pedagógica e causar, assim, insegurança da família quanto a sua efetividade. As diferenças no processo de aprender foi o tema escolhido pela educadora Ana Paula Maletta, que expõe a sua inquietude de pesquisadora em forma de questionamentos ao leitor: “As dificuldades no aprender que o aluno apresenta no seu percurso escolar seria um problema de quem? Do aluno que não aprende? Da escola que não sabe ensinar? Ou seria uma prática educativa guiada por princípios homogeneizadores? As conclusões são reveladoras e nos fazem refletir sobre o respeito à diversidade e em alternativas para a inflexibilização das relações tempo x espaço escolar. O texto sobre a contribuição da oralidade no ensino da Língua Portuguesa encerra a nossa publicação, com um chamado à escola para a responsabilidade de possibilitar o acesso aos usos da linguagem. O domínio da palavra pública, segundo Simone Lesiko, tem importância significativa no exercício da cidadania. Que possamos inovar nossas práticas educativas a partir dessas experiências. Boa leitura!

Amanda Ribeiro Analista de Comunicação Educacional

GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03


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A relação família-escola no contexto da proposta de ciclos: o papel da avaliação escolar ELânia Duarte Diniz

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Colégio Marista Dom Silvério | Belo Horizonte/MG

Resumo Este artigo analisa a relação das famílias populares com a escola, focalizando as práticas e concepções dessas duas instâncias de socialização em torno da avaliação escolar no contexto específico da política educacional dos ciclos. Os dados da pesquisa1, colhidos junto às famílias da cidade de Belo Horizonte e os profissionais de um estabelecimento de ensino da rede estadual mineira, revelam que a avaliação escolar é, sem dúvida, uma das fontes de conflitos - implícitos ou explícitos - no quadro das interações entre pais e professores, confirmandose a hipótese de que há uma forte contradição entre as lógicas que orientam as práticas das famílias populares e as lógicas escolares naquilo que se refere à avaliação na proposta de ciclos.

Sendo assim, há que se reconhecer que a avaliação escolar torna-se um meio privilegiado para investigar a relação entre duas instâncias de socialização que, de acordo com diversos estudos sociológicos, apresentam constantes manifestações de tensão: famílias populares e escola. Neste texto, propomo-nos, à luz do referencial sociológico das relações família-escola, examinar os dados provenientes da pesquisa de mestrado que investigou de que forma e em que medida as lógicas e padrões de socialização das famílias populares e da escola se influenciam mutuamente, configurando condutas, concepções e estratégias de ambas as instituições em relação à avaliação na proposta de ciclos, em uma escola da rede estadual de ensino em Minas Gerais.

Palavras-chave: Relação família-escola, A Proposta de Ciclos ciclos, avaliação escolar. Introdução A proposta de ensino em ciclos é uma realidade nas escolas públicas de todo o Brasil e traz, em seus fundamentos, alterações que perpassam por múltiplas variáveis da organização pedagógica. Como não poderia deixar de ser, uma política educacional com pressupostos ousados e sofisticados toca no âmago da avaliação escolar, alterando as concepções que educadores e pais de alunos assumem em relação a ela. 1 Dissertação de Mestrado intitulada Relação família-escola e avaliação escolar: um estudo no contexto dos ciclos - Universidade Federal de Minas Gerais.

O termo “escola em ciclos” como designação de políticas que visam combater o fracasso escolar surgiu, no Brasil, com a implementação do Ciclo Básico de Alfabetização (CBA) no estado de São Paulo, em 1984, estendendo-se, em seguida para diversos outros estados brasileiros. No entanto, o termo “ciclo” já havia figurado na Reforma Francisco Campos (década de 1930) e na Reforma Capanema (Leis Orgânicas do ensino, 1942/1946) e fora utilizado para designar o agrupamento dos anos de estudo, sem a possibilidade de reprovação entre eles. A idéia de eliminação da reprovação não é, portanto, recente. As evidências históricas mostram que o debate em torno da

criação de políticas de não-retenção teve início no final da década de 1910, e que as experiências pioneiras foram introduzidas no final da década de 1950 (Mainardes, 2007). No entanto, foi a partir da atual LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº 939496 - que tal modo de organização do ensino manifestou tendência crescente de expansão, como uma das formas alternativas de estruturação escolar. Entretanto, embora tenha ocorrido um incremento expressivo das redes de ensino funcionando com o sistema de ciclos, e a introdução desse sistema tenha sido valorizada nos planos do discurso pedagógico e da gestão escolar, essa forma de organização da escola ainda constitui uma opção minoritária no país. Em geral, as escolas que adotam esse sistema são públicas (estaduais e municipais) e se localizam nos centros urbanos mais populosos da região Sudeste, exatamente onde se encontram os extremos de pobreza e riqueza. É o caso da Grande São Paulo, uma das maiores concentrações urbanas do mundo, da Grande Rio de Janeiro e da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Nas demais regiões, o percentual de matrículas em escolas com esse tipo de organização é muito reduzido (Barreto e Sousa, 2005). Sobre as alterações que essa política pressupõe no cotidiano escolar, estas não são poucas e podem contribuir para que mudanças estruturais ocorram nos aspectos político-pedagógicos das instituições de ensino que aderiram

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ao sistema de ciclos. Nesse tipo de organização, o tempo escolar geralmente é estruturado em blocos que unificam um número de anos não específico, o qual varia de região para região, não havendo reprovação de um ano para outro, dentro do mesmo “bloco” ou ciclo. Para aqueles que os propõem, os ciclos representam uma tentativa de superar a excessiva fragmentação e desarticulação do currículo durante o processo de escolarização. No que se refere ao Estado de Minas Gerais - lócus da pesquisa que ora alicerça as análises deste trabalho -, os anos iniciais têm dois ciclos de alfabetização: Ciclo Inicial, com duração de 3 anos e Ciclo Complementar, com duração de 2 anos (MINAS GERAIS, 2004). De acordo com a resolução SEE/MG2 nº 430/2003, a partir do 6º ano (equivalente à 5ª série), o ensino volta a ser seriado, ou seja, nos anos iniciais do Ensino Fundamental privilegiase o trabalho com ciclos e nos anos finais, a seriação define a organização do ensino. Como informa a SEE/MG, essa organização tem como meta propiciar, principalmente às crianças das camadas populares, possibilidades de alcançar níveis mais elevados de escolaridade. No entanto, para que tal meta seja alcançada, é necessário, ainda de acordo com a SEE/ MG, que a escola: desdobre o espaço da aula numa perspectiva ampliada; possibilite a diversidade de agrupamentos e reagrupamentos entre os alunos; recorra a diferentes recursos didáticos, entre outros aspectos. Assim, para promover o sucesso escolar, a proposta de ciclos baseia-se em pressupostos que, por propor alterações substanciais na prática pedagógica, podem causar transtornos, medo e insegurança nos sujeitos envolvidos no cotidiano escolar. Entretanto, a avaliação da aprendizagem é o ponto mais polêmico quando o assunto são as mudanças ocorridas nas escolas em ciclos, tendo em vista que ela passa a ser entendida como um instrumento diagnóstico e não mais como uma ferramenta seletiva e controladora por parte do professor. Dalben (2000) explicita que a Proposta requer, entre outros aspectos que a avaliação: sirva como registro do desenvolvimento processual do discente; ofereça uma visão das aquisições e necessidades em curso e esteja sustentada, sobretudo, em instrumentos de natureza qualitativa, 2 Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais

como fichas descritivas, relatos individuais as estratégias avaliativas utilizadas e coletivos. e a participação dos alunos nesse contexto. A escolha pela referida Fase Tais alterações permitem que os justifica-se porque é nesse momento vários atores sociais - pais, estudantes, da escolarização que se torna possível professores, imprensa - assumam observar: a passagem dos alunos de um posições diferenciadas, no que se refere ciclo ao outro; o papel da avaliação nesse à proposta de ciclos. Uns a defendem sob contexto; o envolvimento dos alunos, dos o argumento de que os alunos tornam-se profissionais e familiares nesse momento mais aptos a aprender, evadem menos e de transição de ciclos; e as estratégias apresentam maiores possibilidades de utilizadas pela família e pela escola no concluir os estudos. Outros a advogam que se refere à progressão do aluno. por acreditar que a avaliação pedagógica e as oportunidades de aprendizagem Entrevistou-se as 3 professoras que oferecidas têm maior qualidade. No ministravam aulas nas turmas da Fase IV, a entanto, aqueles que a criticam dizem coordenadora pedagógica e a diretora do que apesar da evasão e repetência terem estabelecimento. Todas as profissionais diminuído, a qualidade do ensino também investigadas possuem nível superior em caiu, a indisciplina aumentou e o corpo educação e 3 delas têm pós graduação docente relaxou o controle do trabalho lato sensu. em sala de aula. O debate em torno dessa política educacional é, portanto, As educadoras alegam que utilizam de complexo e abrange posicionamentos vários instrumentos avaliativos com variados. os alunos, além da prova escrita, e esclarecem que os resultados da avaliação Os elementos elencados não esgotam são expressos por meio dos conceitos A, B todos os pontos que, reunidos, compõem e C, representando, respectivamente, se o a Proposta de Ciclos. Eles foram aluno alcançou, alcançou parcialmente ou selecionados para oferecer, ao leitor, um não alcançou os objetivos propostos para embasamento para as discussões que se o nível de ensino. farão a seguir. As famílias investigadas foram escolhidas segundo a indicação dos profissionais do Os sujeitos investigados estabelecimento, aos quais se pediu que indicassem tanto pais que apresentavam Investigar as concepções e práticas das questionamentos e críticas em relação à famílias de camadas populares frente avaliação na proposta de ciclos, quanto à avaliação escolar na proposta de famílias que, ao contrário, eram favoráveis ciclos implicou selecionar, para estudo, a ela. Mas, um segundo critério também um estabelecimento que atendesse foi estipulado: o desempenho dos alunos a essa camada social e que pautasse - avaliado segundo o julgamento docente. a sua organização escolar segundo os Selecionou-se, assim, pais cujos filhos pressupostos da Proposta. apresentavam, à época da pesquisa, uma boa avaliação escolar, bem como Nesse sentindo, o estabelecimento pais cujos filhos mostravam resultados escolhido para a realização da pesquisa foi insatisfatórios. Isso porque pretendiaindicado pela SEE/MG que sugeriu, entre se estabelecer uma relação entre as os estabelecimentos da rede estadual concepções e práticas das famílias e das de ensino em Belo Horizonte, aquele escolas - no que tange à avaliação na nova que apresenta uma implementação organização de ensino - e os resultados mais adiantada no que se refere à escolares das crianças. Dessa forma, 12 proposta de ciclos e cuja participação famílias foram escolhidas e entrevistadas familiar é mais efetiva na escolarização em suas moradias.3 dos filhos. Tal estabelecimento atende, exclusivamente, a alunos que cursam os As entrevistas ocorreram com as mães 5 primeiros anos do Ensino Fundamental, dos alunos que declararam, entre os quais são divididos em fases, a saber: outros aspectos, possuir ocupações Fases Introdutória, I e II do Ciclo Inicial pouco qualificadas (copeira, auxiliar de de Alfabetização e Fases III e IV do Ciclo serviços gerais, costureira, atendente de Complementar de Alfabetização. enfermagem, dona de casa, etc.), apesar de grande parte delas possuir o Ensino A investigação deu-se nas 3 únicas turmas Médio; fato este que se repete com seus da Fase IV (antiga 4ª série), nas quais se observou a dinâmica pedagógica, 3 Com exceção de uma mãe que somente pôde dar a

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entrevista em seu local de trabalho.


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cônjuges ( serralheiro, eletricista, porteiro, bombeiro hidráulico, pedreiro, auxiliar de jardinagem, lanterneiro, etc.). As baixas condições materiais, a pouca qualificação profissional e a ausência de perspectiva em relação ao alcance de níveis mais altos de escolarização são traços característicos das famílias entrevistadas. No tópico seguinte lançaremos mão da literatura sociológica das relações famíliaescola, a qual contribuirá para reflexões que se farão no último item deste trabalho, quando da análise da avaliação escolar como mediadora entre essas duas instâncias de socialização. A relação das famílias populares com a escola, na ótica dos estudos sociológicos contemporâneos No Brasil, pode-se afirmar que, nas duas últimas décadas, os pesquisadores começaram a situar a família como instância central na pesquisa em educação, interessando-se por questões como suas lógicas e dinâmicas internas, seu universo sociocultural e suas interações com o mundo escolar (Nogueira, Romanelli e Zago, 2000). Os estudos sociológicos mostram também, uma interdependência entre as condições sociais de origem das famílias e as formas de relação que estas estabelecem com a instituição de ensino. Entretanto, busca-se atualmente fugir das análises deterministas - que atribuíam o sucesso escolar do aluno unicamente à sua classe social - e investiga-se, com base no pressuposto da capacidade de ação dos atores sociais, as práticas e estratégias cotidianas dos indivíduos e seu significado para as famílias. No que se refere à relação das famílias das camadas populares com a escola, o traço que talvez designe melhor essa interação poderia, segundo Nogueira (1991: 90), ser definido pelo termo contradição. A autora aponta que, por um lado, os pais das classes populares expressam sentimentos e atitudes de rejeição e de distanciamento em relação à escola, mas, por outro, a reconhecem como fonte legítima de aquisição do conhecimento e nela depositam suas expectativas de promoção social. Essa “contradição” aparece de forma clara nos depoimentos de algumas das famílias pesquisadas:

[para escola] para ser alguém na vida, né? [ter um bom emprego] Isso que eu acho. Para não ficar trabalhando igual eu, não ganhando nem um salário mínimo. Então, ela tem que ter uma profissão melhor, né? (Mãe de aluna). ... A escola precisa conhecer melhor os alunos, os pais dos alunos (...) Os pais hoje não dão conta sozinhos, não tem jeito (...) Meu marido trabalha de dia e eu trabalho à noite (...) Às vezes, o pai e a mãe não têm aquele tempo ou aquela disposição ou mesmo um preparo para ajudar os filhos e a escola só sabe cobrar da gente, mas não ajuda em nada... (Mãe de aluno).

Thin (2006) esclarece que trata-se de dissonâncias e tensões entre lógicas socializadoras divergentes e de uma confrontação desigual entre dois modos de socialização: um, escolar e dominante; o outro, popular e dominado. Para o autor, as famílias de classes populares tendem a atribuir sentido à prática pedagógica, a partir do que julgam como a vida verdadeira: a vida laboriosa, horários rígidos e extensos, vigilância severa, entre outros, o que é caracterizado por Thin como “lógica do trabalho braçal”. Isso torna compreensível o fato de certas famílias apresentarem dificuldades em perceber o sentido pedagógico de grande número de atividades escolares contempladas na proposta de ciclos (jogos, dinâmicas, contação de histórias, etc.). Muitos pais consideram que esses tipos de atividades exigem pouco do filho e lamentam o fato de as professoras terem “afrouxado” a forma de ensinar, deixando os alunos atrasados, menos estudiosos e mal preparados: ... Antes eu achava que era mais apertado... Os meninos tinham que estudar mais. No 2º ano... no 1º ano, o menino já lia. [Os professores] ensinavam os meninos a ler de qualquer jeito. No 2º ano, já entrava com os meninos, a multiplicação, a divisão. E hoje não é isso, não. Está mais lento o processo. Não está tão rápido, igualzinho era antes, não, sabe? (...) Os meninos na 4ª série estão muito mal preparados. Chega menino na 5ª série que não sabe fazer fato! Quer dizer, como é que o menino passa da 4ª pra 5ª série sem saber fazer fatos? (Mãe de aluno).

Fato concreto é que os pais se preocupam se a escola está propiciando aos filhos melhores condições de progressão social. Para a maior parte das famílias de camadas populares, o domínio, pelos ...A escola é tudo, né? Porque igual eu falo filhos, dos saberes escolares é definido, com ela [ com a filha], que eu parei de antes de tudo, como um passaporte estudar há muito tempo Ela está indo lá para o emprego que garanta o sucesso

social (Charlot, 2005; Perrenoud, 1995). Sobre isso, Charlot (2005) afirma que aproximadamente de 75 a 80% dos alunos estudam para mais tarde ter um bom emprego. É uma questão de realismo o qual se torna ainda mais realista se pensando na lógica de que, para se ter um bom emprego, se deve ter um diploma e, para se ter um diploma, se deve passar de uma série para outra. Deve-se ter diploma para ter emprego, deve-se ter emprego para se ter dinheiro, deve-se ter dinheiro para ter uma vida normal (p.67). A seguir, é apresentada a fala de uma das entrevistadas na qual ficam nítidas as estratégias de que ela se serve para assegurar um capital escolar que propicie à filha maiores chances de galgar níveis mais altos na carreira escolar e em um mercado de trabalho dominado pela competição: ... Tem que estudar sempre (...) Se eles [os filhos] precisam de pesquisa, eu procuro, eu vou atrás, eu tiro na Internet. Nossa... Eu corro atrás mesmo, peço emprestado, porque na vida hoje, não está fácil de arrumar emprego. (Mãe de aluna).

Procurando identificar certas características comuns entre as famílias populares, Viana (2005) indica que elas tendem a expressar um ethos muito diferente - quando não divergente – do ethos da cultura da escola, na medida em que seus modos de pensar, de perceber, de sentir, de falar e de um modo geral, não convergem com aqueles que fundamentam e regem a vida escolar. Segundo apontam pesquisas disponíveis (Abreu, 2002; Glória, 2002; Lahire, 1997; Nogueira e Abreu, 2004; Silva, 2002; Terrail, 1997; Thin, 2006; Viana, 2000), esses diferentes “estilos” de conduta, de linguagem, de posturas corporais, de vestuário, entre outros, parecem implicar numa distância entre família e escola, no que diz respeito aos modos de conceber e atuar face à educação escolar. No que diz respeito à apreciação que a instituição de ensino emite em relação às famílias dessa camada social, há um certo juízo de valor do corpo docente que, muitas vezes, caracteriza os pais, tanto como “invisíveis na escola”, quanto como alheados da escolaridade de seus filhos (Silva, 2002; p. 119). Entretanto, alguns autores argumentam que o não comparecimento do pai à escola ou os maus resultados avaliativos da criança não significam, inevitavelmente, desinteresse pela escolarização do filho,

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nem ausência de incentivo e de apoio em casa (Montandon, 1996; Lahire, 1997, Silva e Lima 2002; Terrail 1997; Van Zanten 1996; Charlot, 2005 ), como veremos no próximo tópico.

primordial porque ela constitui o ponto de referência que lhes permite avaliar as flutuações na escolaridade do filho. Foi possível perceber que sem as notas, a maioria das famílias entrevistadas se mostrou “perdida”, em meio a conceitos4 A partir do exposto, conclui-se que a que dizem pouco, para elas, sobre o discussão das relações entre famílias desempenho dos filhos. de camadas populares e a escola exige pensar em termos de lógicas e padrões de ... Eu converso com ela [a filha], vejo os boletins dela e ela só tira A, né? Porque socialização próprios de cada uma dessas a nota agora é A. No caso, se fosse nota, era instituições, muitas vezes conflitantes. 100, né? Ela ia tirar só 100, 100, 100. Mas... Implica, também, analisar interações se ela tirasse um bom, eu gostaria de saber diversificadas que se desenvolvem a partir que ‘Bom’ é esse? Que nota que é esse do de pressupostos nem sempre explicitados ‘Bom’? Será que é um 6? Será que é um 7? ou conhecidos pelos educadores. Para ela poder saber se está bem, né? Isso me deixa muito na dúvida. (Mãe de aluna –

A avaliação escolar como mediadora na ênfase da autora). relação das famílias com a escola Os pais investigados reconhecem que há Philippe Perrenoud - autor do campo da vários instrumentos avaliativos, além da sociologia da educação que se interessou avaliação escrita. No entanto, um fato pela discussão das relações que a família que chama a atenção é a superioridade estabelece com a escola por meio da atribuída pelos pais à avaliação atitudinal avaliação escolar - afirma em sua obra dos filhos em relação a outras formas de Avaliação: da excelência à regulação avaliação. das aprendizagens, entre duas lógicas (1999) que a avaliação escolar constitui ...O comportamento da criança dentro de sala, o interesse da criança no estudo, um importante mecanismo de conexão (...) porque, às vezes, a criança não entre a família e a instituição escolar. Os compreendeu bem a matéria, mas ela pais são, com regularidade, solicitados a teve um interesse de estar participando, assinarem boletins escolares, verificarem teve interesse de aprender, por mais que provas e notas e tomarem conhecimento tenha tido aquela dificuldade, ela estava do nível de aprendizado do filho. Notaali dentro da aula, estava presente o se que a avaliação tranqüiliza a família tempo todo, sabe? Se interessando por sobre as chances de êxito da criança ou aquilo, tentando aprender. Eu acho que ela [a professora] vai... faz um apanhado prepara os pais para um possível fracasso, de tudo. (Mãe de aluna). ao final do ano. Funciona, portanto, como um “termômetro” e um sistema de No trabalho realizado por Paixão (2005), comunicação entre escola e família. a autora mostra que, ao avaliar o trabalho Ainda de acordo com o autor, as práticas realizado na escola, os pais de camadas tradicionais de avaliação, baseadas em populares se atêm pouco à dimensão indicações numéricas ou “notas”, são cognitiva e enfatizam mais a dimensão tomadas como naturais pelos pais, que afetiva e relacional, coincidindo com já vivenciaram o mesmo sistema em sua o que se constata no trecho acima. própria escolaridade. Para eles, esse Percebe-se que os pais das camadas sistema parece eqüitativo, racional e populares dão muita importância aos preciso, simples e convincente. Portanto, valores comportamentais transmitidos mudar o sistema de avaliação leva pela instituição de ensino. necessariamente a privar uma boa parte dos pais de seus pontos de referência Não há, pois como negar que uma habituais, criando ao mesmo tempo mudança das práticas de avaliação, em incertezas e angústias (Perrenoud, 1999: um sentido mais formativo, qualitativo e interativo, passa, necessariamente, por 148). uma mudança das representações e por De fato, os dados obtidos junto às famílias uma reconstrução do contrato implícito investigadas confirmam os argumentos entre a família e a escola. de Perrenoud, no que se refere à preferência pela notação numérica ao uso 4 Os conceitos na escola investigada são de conceitos. De acordo com Nogueira e representados pelas letras A, B e C, indicando se Abreu (2004) isso acontece porque essas o aluno alcançou - em relação ao nível de ensino famílias conferem à nota, como medida - os objetivos propostos, alcançou parcialmente os e não como conceito, uma importância objetivos propostos ou não alcançou os objetivos propostos, respectivamente.

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Estudos realizados por Dalben et al. (2000) indicam que essas mudanças aparecem como um dos aspectos de maior visibilidade verificados em escolas organizadas por ciclos e afirmam que essas alterações são consideradas pelos professores e pela comunidade de pais o ponto nodal da escola de ciclos5, sendo ao mesmo tempo, a sua maior conquista e o seu ponto de estrangulamento (p.80). Há, nesse sentido, de acordo com os autores, um argumento de que as incertezas e angústias da família, no que se refere à organização da avaliação na proposta de ciclos, decorrem de seu desconhecimento e incompreensão do novo projeto educacional das escolas. Parte da insatisfação dos pais estaria, assim, radicada em sua incompreensão dos eixos norteadores da proposta, especialmente no que se refere à avaliação, à ausência das notas e à não retenção. Nessa mesma direção, Glória (2002) aponta que há um desconhecimento e uma rejeição das famílias às mudanças avaliativas estabelecidas na escola e, principalmente, à não-retenção dos alunos. O estabelecimento de ensino dos filhos tem sido designado como sendo a escola dos que passam sem saber, onde, independentemente de seu nível de conhecimento e de envolvimento, os alunos são aparentemente alçados a uma nova categoria: a de diplomados excluídos, pois percebem que o diploma, em si, não lhes confere as competências e os saberes necessários à continuidade dos estudos ou à disputa por uma vaga no mercado de trabalho. De acordo com os dados apresentados pela autora, os professores avaliam que as relações entre a escola e a família tornaram-se mais conflituosas com a implementação da Proposta, e afirmam que a família tem sido omissa em seu papel educacional: ... Eles [os pais] têm a preocupação se tem prova, se não tem prova, se a escola dá prova. Têm uns que ainda colocam [o filho] para estudar, mas têm aqueles que deixam tudo por nossa conta... Estudar é só aqui [na escola] (...) Uma minoria acompanha, mas muitos, nem pelo resultado vêm. (Coordenadora Pedagógica).

É interessante notar que muitos professores relacionam o desempenho do aluno com a participação6 dos seus pais na escola. Há, muitas vezes, por 5 O estudo em questão refere-se à implementação dos ciclos na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte (Programa Escola Plural). 6 A participação dos pais é percebida pelos educadores da instituição investigada, sobretudo, como presença física na escola, através das festas e reuniões.


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parte dos professores, o argumento de que quando os pais são “participativos”, o aluno apresenta um desempenho escolar superior ao das crianças cujos pais são considerados menos “participativos”. Tal fato parece propiciar uma causalidade inevitável na concepção do educador que passa, paulatinamente, a estender os resultados escolares dos seus alunos às suas famílias. Entretanto, essa concepção é negada quando constatamos que tanto há alunos com bons resultados escolares provenientes de famílias consideradas “invisíveis” pela escola, quanto alunos com desempenho escolar insatisfatório em que as famílias são presentes em sua escola e escolarização. Sem dúvida, estudos como os de Dalben (2000); Dalben et al. (2000) e de Glória (2002) apresentam uma contribuição importante ao alertar para o fato de que há dificuldades de aceitação por parte das famílias quanto aos pressupostos e eixos norteadores da proposta de ciclos. No entanto, outra forma de abordagem tenta dar conta dessa questão. Abreu (2002) argumenta que a reação das famílias às formas avaliativas da nova proposta implica em questões bem mais amplas e complexas do que problemas de falta de informação, entendimento ou compreensão dos seus eixos norteadores. Para esse autor, é preciso considerar que os pais de camadas populares constroem a “forma de ver” a instituição escolar a partir de suas próprias experiências sociais e de suas lógicas de socialização. De fato, as mães pesquisadas se consideram ativas no processo avaliativo dos filhos; ao contrário do que julgam as professoras:

Elas constituem modos de sujeição dos pais aos professores, sob o disfarce de conversa polida e cooperação madura ( idem, ibidem: 67). O autor constata ainda que a escola procura estreitar os laços com os pais, por meio do apoio destes aos filhos em casa. No entanto, esse apoio é definido pela escola, refletindo somente os seus pontos de vista. A esse respeito, Silva (2003) assinala que os professores tendem, através destes esquemas de apoio, a tornar os pais em “agentes dos professores” (p.68).

Nogueira (2005) conclui que não há mais uma clara definição de fronteiras entre essas duas instâncias. Os canais de comunicação entre elas se ampliaram para além da tradicional participação nas associações de pais e mestres e da presença em reuniões oficiais com professores. Hoje há projetos pedagógicos, palestras, cursos e jornadas envolvendo os pais; há festas da família, caderno de avisos do aluno, contatos ... Os alunos não estão fazendo ainda bem telefônicos, conversas à entrada e na os fatos, estão usando pauzinhos. Não saída das aulas, etc. estão sabendo dividir e erraram muito. Pode ter uma tabuada em casa, não para decorar porque fica mecânico e ele não aprende. Dêem objetos como pauzinhos, botões e outros para que eles aprendam a partir do material concreto. O material concreto é usado da Fase Introdutória até a II, mas infelizmente na IV vamos ter que fazer uso do material dourado. Então, se o filho recebeu C, use o material concreto (...) Os alunos devem interpretar tudo. Vocês podem perguntar o que eles entenderam. Isso é matemática também. Tudo o que lêem, até na rua, outdoor. Isso é o que chamamos de letramento. (Professora da Fase IV).

Podemos constatar que os critérios levados em conta na avaliação escolar da proposta de ciclos, bem como as formas de notação referentes aos resultados avaliativos dos alunos, se tornaram fontes de conflitos para a família, em decorrência de um novo universo escolar, no qual ela é “convidada” a se inserir - mas não a participar - distanciado daquele que ela conhecia como “pedagogicamente correto”.

... Acompanho o dever, peço para corrigir os erros, vou a palestras, festas, mando bilhete, vou a todas as reuniões e, então, as professoras me perguntam o que eu CONSIDERAÇÕES FINAIS posso fazer para estar ajudando... (Mãe A pesquisa foi profícua em nos oferecer de aluno).

É importante salientar que as reuniões de pais convocadas pela escola representam o momento privilegiado pelos educadores, para o envolvimento da família no processo avaliativo dos filhos. No entanto, Silva (2003) argumenta que a escola tende a entender o estreitamento das relações com as famílias como sinônimo de reuniões. Para o autor, as reuniões de pais - muitas vezes encaradas como reuniões convocadas pelos docentes e/ ou administração da escola - contribuem para reforçar ou até aumentar distâncias sociais e culturais entre essas duas instituições, em vez de diminuí-las.

e das questões de ordem pedagógica e disciplinar.

subsídios para constatarmos que não se pode compreender a relação que os pais e a escola mantêm entre si, por meio da avaliação escolar, sem se levar em conta as mudanças ocorridas tanto no seio da família, quanto no âmbito dos processos escolares.

Por um lado, a escola contemporânea não mais se limita às tarefas de desenvolvimento intelectual do aluno, estendendo sua ação aos aspectos corporais, morais e emocionais de seu processo de desenvolvimento. Por outro lado, a família de hoje se arroga o direito de intervir no terreno das aprendizagens

Como exemplo da “nova zona de interação” entre as esferas escolar e familiar (Van-Zanten, 1998, p. 187, apud Nogueira, 1998, p. 96 ), os dados da pesquisa chamam a atenção para a posição de algumas mães que chegam até mesmo a desafiar a escola ao se decidirem pela retenção do filho numa dada fase ou ciclo escolar, e obtêm, para isso, o respaldo da equipe pedagógica. Alegam um prejuízo para o filho se ele passasse para o ano escolar subseqüente. Isso mostra que a família tem interferido em aspectos pedagógicos que antes eram reservados à instituição de ensino. Por seu turno, a escola investigada evidencia uma “imbricação” crescente (Terrail, 1997) com as famílias atendidas, quando avalia os alunos nos aspectos moral e comportamental, antes de responsabilidade, sobretudo, da família. Seria, porém, ingênuo pensar que a interação entre os estabelecimentos de ensino e as famílias ocorre sem tensões ou contradições. Os dados da pesquisa evidenciam que a avaliação escolar é, sem dúvida, uma das fontes de conflitos - implícitos ou explícitos - no quadro das interações entre a família e escola. É preciso ter em vista que se trata de uma relação desigual (entre leigos e profissionais e entre grupos sociais diferentes), tensa e permeada de dificuldades para professores e famílias. Dificuldades que são estruturais - e não meros mal-entendidos - porque produto de uma oposição profunda entre duas lógicas sociais diferentes, e muitas vezes contraditórias (Thin, 2006). Mais uma vez se confirma que há uma forte contradição entre as lógicas que orientam as práticas das famílias populares e as lógicas escolares. Podemos constatá-la naquilo que se refere à avaliação na proposta de ciclos.

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RECONHECER AS “DIFERENÇAS NO PROCESSO DE APRENDER” DOS ALUNOS NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL É UM IMPERATIVO PARA A ESCOLA DE HOJE! Ana Paula Braz Maletta

Mestre em Educação pela pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-Graduada em Gestão de Processos Educativos e Avaliação - Novas Tecnologias. Pedagoga e professora da Educação Básica e Superior. Colégio Marista Dom Silvério | Belo Horizonte/MG

RESUMO

problema dos alunos. O trabalho conclui que a escola coloca seu enfoque na Este texto tem a intenção de suscitar aprendizagem e não no ensino e esta uma discussão em torno de um grande conduta acaba desencadeando práticas desafio que nos é posto hoje nas series de ensino excludentes. iniciais do ensino fundamental: respeitar as diferenças no processo de aprender de cada aluno. Trata-se um recorte de uma Palavras-chave: ensino, aprendizagem, pesquisa sobre a recontextualização do diferenças, currículo, série iniciais. currículo na sala de aula das Séries Iniciais do Ensino Fundamental, onde a principal questão do estudo foi investigar como INTRODUÇÃO o currículo é posto em prática e se ele atende ou não às diferenças dos alunos É cada vez mais comum, nos tempos no processo de ensino e aprendizagem. atuais, nos depararmos com classes das Objetivou-se avançar na compreensão séries iniciais do Ensino Fundamental, das relações entre o currículo prescrito bastante heterogêneas, apresentando e o currículo que se desenvolve em alunos com faixa etária e níveis de sala de aula, compreendendo a lógica aprendizagem diferenciados. Na nossa destas práticas e das alternativas realidade escolar, trabalhar com esta sugeridas para o enfrentamento das diversidade não é nada fácil. Mas com a diferenças que aparecem na sala de certeza de que ela está aí, e como tal deve aula, chamando atenção para aquelas ser tratada, fica pra nós educadores o que exigem do professor uma atenção grande desafio de respeitar as diferenças mais particularizada para efetivar o no processo de aprender de cada criança, processo de ensino e aprendizagem. Para considerando-a como um ser único, capaz realização da pesquisa, os estudos da de aprender como qualquer outra criança, chamada Teoria Crítica do Currículo e suas desde que a perspectiva do processo de bases na Sociologia da Educação foram ensinar, seja também, acessível a ela. fundamentais. De um modo geral, dada as circunstâncias A investigação teve como foco as Séries para a entrada no primeiro ano escolar Iniciais do Ensino Fundamental e a do ensino fundamental, as séries iniciais argumentação central da pesquisa é apresentam classes heterogêneas, a de como o Currículo inclui e exclui compostas por alunos com faixa etária e aqueles alunos que apresentam ritmos níveis de aprendizagem diferenciados, não de aprendizagem diferenciados, ou seja, importando o tipo de escola1. A grande que necessitam de um tempo diferente questão é que enfrentar essa diversidade para aprender e que muitas vezes não A maioria das pesquisas na área da encontram espaço dentro da escola ou a 1 educação que objetiva discutir as práticas pemesma nada flexibiliza para eles, quando dagógicas e seus resultados tem como objeto a as variáveis: tempo, aprendizagem e escola pública. Aqui a discussão se refere tanto diferenças são tratadas como sendo a escola pública, quanto a particular.

nos impõe o desafio de trabalhar as diferenças no processo de aprender de cada criança, num contexto curricular onde, tempo e espaço, ao determinarem o que o aluno pode e deve realizar e, ao mesmo tempo, o que não pode e o que não deve, é que definem seu percurso escolar. Segundo Lopes e Fabris (2005:01) “ tempo e espaço escolares são, entre outros elementos, determinantes das condições normais de uma aprendizagem considerada adequada e dentro dos níveis de desenvolvimento cognitivo apontados, a partir de diferentes pressupostos teóricos”. Algumas pesquisas2 no campo do currículo revelam que na programação curricular estabelecida na escola o tempo escolar é único, não existindo uma relação de atendimento temporal particularizado para alguns alunos que, dentro de um ano letivo, devido às suas particularidades, demandam ritmos diferenciados de aprendizagem ou necessidade de procedimentos pedagógicos especializados (ALVES et.al, 2002). Perrenoud (1993), entretanto, reforça a importância da leitura das diferenças no trabalho pedagógico: Seja qual for o grau de seleção prévia ensinar é confrontar-se com um 2 Este texto é fruto de uma dissertação de mestrado realizada em 2007 na Linha de Pesquisa Conhecimento Escolar, Práticas e Políticas Curriculares, do Programa de PósGraduação em educação da PUC Minas onde a centralidade da pesquisa foi investigar como o currículo é posto em prática na sala de aula e se ele atende ou não às diferenças dos alunos no processo de ensino e aprendizagem.

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grupo heterogêneo (do ponto de vista das atitudes, do capital escolar, do capital cultural, dos projetos, das personalidades, etc...). Ensinar é ignorar ou reconhecer estas diferenças, sancioná-las ou tentar neutralizálas, fabricar o sucesso ou o insucesso através da avaliação formal e informal, construir identidades e trajectórias. Porém, regra geral, as didáticas nada dizem sobre as diferenças; falam de um aluno ‘médio’ ou de um sujeito epistêmico (PERRENOUD,1993, p.28).

e de um ciclo escolar para outro4. De certa forma, a seriação não deixa de ser um mecanismo de exclusão e um dificultador para a gestão da diversidade na sala de aula, mas a progressão dentro do sistema de ciclos também seleciona e exclui.

Então eu pergunto: As dificuldades no aprender que o aluno apresenta no seu percurso escolar seria um problema de quem? Do aluno que não aprende? Da escola que não sabe ensinar? Ou Diante desse quadro, é recorrente seria de uma prática educativa guiada nas escolas tratar-se as “dificuldades por princípios homogeneizadores? no aprender”3 que o aluno apresenta como sendo o problema dele. Não há interesse aqui em julgar a Além disso, esses alunos são, prática escolar, o currículo e até frequentemente, encaminhados para mesmo a escola e/ou sua equipe tratamentos e/ou acompanhamentos docente, porém discutir o que psicopedagógicos. Assim, a solução acontece no interior da sala de aula em buscada para que eles possam dar relação à aprendizagem, nos permite conta de acompanhar o tempo e uma tentativa de compreender como as exigências da escola regular é a escola situa e lida com o aluno que transferida para fora da escola, sendo apresenta diferenças no processo de considerada tarefa a ser assumida aprender. pela família. Isso fica evidente nas constantes observações das Em várias pesquisas na área, o que professoras das classes pesquisadas se evidencia em é um ensino voltado quando solicitada a esclarecer os para práticas homogeneizadoras, motivos dos alunos não conseguirem com atividades comuns a todos, desenvolver as tarefas ou sobre suas ofertadas da mesma forma para todos dificuldades para lidar com eles: “ele os sujeitos. Sendo, a maneira como é difícil de aprender”; “a família não cada sujeito adquire o conhecimento, ajuda”; “ a família não olha direito pouco considerada. O princípio o problema dele”; “a família não da homogeneização faz constituir procurou tratamento especializado”. práticas de ensino centradas no coletivo. Dessa forma, torna-se viável Por melhor que sejam as intenções, a apenas um único modelo: um modelo complexidade de procedimentos que padrão de práticas educativas e um envolvem o cotidiano da sala de aula modelo padrão para aferir o que os reflete parte das dificuldades que os alunos aprendem. professores enfrentam para lidar com a diversidade. Além disso, sabemos O professor, na verdade, não sabe o da importância que tem o rendimento que fazer com a diversidade presente escolar do aluno ao longo do ano e em sua sala de aula, mesmo que que ele é pré-requisito para que ele muitas vezes declare sua intenção em passe de uma série para outra, ou que atendê-las. Desta forma, as diferenças demonstre condições para avançar dos sujeitos que, ao entrarem na nas etapas dentro de um ciclo escolar escola se encontram na condição 3 O termo “dificuldades no aprender” pode ser encontrado nos estudos de Corrêa (2001) com a seguinte definição: Dificuldade de aprendizagem ou o grau de dificuldade para aprender, dependendo do tipo de obstáculo a ser superado para que o sujeito aprenda. Pode ser um problema de desenvolvimento, em que faltam as estruturas cognitivas necessárias para compreender, ou um problema de aprendizagem, em que existem os esquemas necessários e a compreensão depende do funcionamento dos mecanismos cognitivos. (CORRÊA, 2001, p.36).

4 A organização escolar em ciclos visa adequar o tempo escolar ao desenvolvimento global do aluno, considerando suas características individuais e culturais, suas individualidades, potencialidades e dificuldades, diferentemente da idéia simplista de que seria, apenas, um processo onde os alunos considerados mais fracos teriam um tempo maior para aprender ou uma inovação para acabar com a repetência escolar. É uma concepção de ensino onde a aprendizagem do aluno deveria ocorrer sem as rupturas existentes na organização escolar em séries. Mas pesquisas têm mostrado que isso não ocorre (LAGES, 2001; GLÓRIA, 2002).

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de alunos, emergem como que em ebulição, na forma de um leite que se põe a derramar. Os professores, ao tentarem buscar alternativas para o descompasso entre o seu modelo de ensino e o modelo de aprendizagem do aluno, se deparam com práticas excludentes, em primeiro lugar por causa da própria inflexibilização das relações tempo X espaço escolar. As práticas curriculares muitas vezes são pautadas num modelo fixo de aluno, de ensino e de aprendizagem; desta forma, tudo que foge a este modelo é visto como diferente, sendo o diferente, neste caso, sinônimo de inadequado, de dificuldade ou até mesmo de incapacidade. Essa situação encontrada nas escolas merecia uma discussão no contexto do direito à educação, uma vez que implica a realização de práticas que, longe de incluir os diferentes no processo escolar, resultam em exclusão daqueles que apresentam dificuldades. Neste sentido retomo algumas reflexões de Adorno. As contribuições de Adorno para o debate sobre o sentido e possibilidades da educação, pensadas no início da segunda metade do século passado, continuam atuais. Uma delas é a indicação da necessidade de novas práticas pedagógicas e da defesa de outro conhecimento, que sejam capazes de capacitar as pessoas para uma vida social plena e com dignidade, que resgate condições de vida social plena. Para Adorno, a sociedade se esqueceu ou se afastou da “doutrina da vida reta” (ADORNO, 1993:7) e, para ele, não há possibilidade de vida correta num mundo onde as relações sociais, também, estariam danificadas. Essas dimensões da obra adorniana sugerem a necessidade de reflexão sobre a complexidade da trama que se passa dentro da escola, quando o assunto é currículo e relações de poder. Essa reflexão aponta para a necessidade uma série de mudanças, e uma das mais fundamentais é que os educadores tomem consciência das relações de dominação e de massificação presentes no ato pedagógico, como condição para que possam compreender as conexões


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entre o que se passa na sala de aula (entre o que se ensina e as relações que são estabelecidas entre os pares) e o que é produzido fora da escola, isto é, com as relações de poder da sociedade. “Essa tomada de consciência por parte dos educadores é exigência de uma proposta de Educação que se oriente por criar as possibilidades de uma sociedade emancipada da opressão e da injustiça, tal como postulada por Theodor Adorno”. (VILELA, 2005:91).

Nos estudos sobre Indústria Cultural e Semiformação (HORKHEIMER E ADORNO, 1985 B; ADORNO,1996) Adorno discute dilemas da sociedade que também continuam atuais, visivelmente presentes em nossa realidade educacional. Entre esses dilemas encontra-se a necessidade de superar o processo de massificação, dilema que tem uma forte aproximação com a discussão sobre uma Educação que seja inclusiva, que atente para as particularidades e diferenças. A questão central está no que para o teórico é o objetivo mais importante da educação para emancipação: a promoção da autonomia e da reflexão crítica como criadoras de uma precondição para a transformação. Transformação no sentido de produzir relações sociais dignas para a vida de todos. Adorno já defendia que nossa sociedade necessita desenvolver relações sociais que não naturalizem as diferenças, mas que reconheçam o direito de todos os diferentes. Com isso, ele não almeja uma sociedade consensual, o que ele defende é o direito à pluralidade. Para ele “ uma sociedade emancipada não seria nenhum Estado unitário, mas a realização efetiva do universal na reconciliação das diferenças” (Adorno, 2003:89). Nesse sentido, a escola inclusiva deve ser um universo de igualdade onde todos desfrutem dos mesmos direitos e que reconheçam os direitos dos outros.

discriminação. Além disso, a escola vê e avalia as diferenças atribuindo ao aluno a responsabilidade naquilo que o distancia dos outros e dos padrões esperados; assim, ela confirma as diferenças como situações de desigualdades e de inferioridade. A escola é o local onde circulam hierarquias e valores nas suas formas evidente e ocultas, aspectos muito bem pontuados pelos teóricos críticos do campo do currículo (APPLE, 1982). Para compreender como essa escola lida com a diversidade de seu alunado, consideramos pertinente resgatar aqui um pouco da concepção de educação defendida por Adorno, baseada na crença da produção de uma consciência verdadeira. No diálogo entre Adorno e Becker (ADORNO, 2003 B) Adorno reforça o quanto o desenvolvimento da consciência , como subjetivação da autonomia, deve se dar desde a primeira infância porque isso é imperativo para que o indivíduo possa conquistar a sua emancipação. Uma vez que o conceito de emancipação para Adorno significa o mesmo que conscientização, racionalidade, nos deparamos com um movimento contraditório de adaptação, e Adorno tem consciência disso. Por isso, ele considera a presença da relação dialética da educação como um mecanismo de orientação do sujeito para o mundo, e nele os dois componentes estão em tensão permanente: De certo modo, emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade. Mas a realidade sempre é simultaneamente uma comprovação da realidade, e esta envolve continuamente um movimento de adaptação. A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo da adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém, ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo nada além do well adjustede people, pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que a situação existente impõe precisamente o que tem de pior” ( ADORNO, 2003 B:143).

A educação escolar tem sido um veículo de legitimação da segregação, pois conta com um saber que se presta a correção e ao controle, Parece-nos, então, que para Adorno intensificando a estigmatização e a e Becker, a adaptação é um processo

que deve permitir o indivíduo “ser ele” e ser o “ser social”, sem que um sobreponha-se ao outro. Para Adorno, os conceitos de racionalidade e de consciência são, em geral, apreendidos como a capacidade formal de pensar. Mas o que realmente caracteriza a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo efetivo do mundo. Ele diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Neste sentido, a educação para a experiência seria idêntica à educação para a emancipação. Entretanto, na escola, o processo de adaptação forçado por todo um contexto socialmente construído pode acarretar num realismo supervalorizado. “Seria preciso estudar o que as crianças hoje em dia não conseguem mais aprender” para saber se a escola consegue assumir esta tarefa ou não. (ADORNO, 2003 B, p.146). Isso significa, também, desvendar porque não aprendem. Finalmente, a Teoria Crítica nos revela que a escola não é neutra e que as escolhas do que se realiza no interior da escola se dão a partir de relações de poder. A seleção dos conhecimentos é feita tendo em vista a lógica da dominação reinante na sociedade capitalista. Mas, a escola, enquanto um espaço de reprodução é, também, espaço de resistência às formas dominantes de controle social. Aqui, mais uma vez, fica evidente como Adorno antecipou questões e dimensões de crítica à escola, presentes na teorização crítica do currículo nos anos 1970. Também antecipa a questão central posta para o campo do currículo na atualidade: que a escola deve abarcar todas as particularidades dos sujeitos, ou seja, na escola devem caber todas as diferenças. Na perspectiva sinalizada por Adorno, A educação inclusiva deve ter como perspectiva que a educação para a inclusão é aquela que não naturaliza as diferenças, uma educação para a inclusão sabe que a acolhida das diferenças no espaço escolar não é a mesma coisa que reconhecer o direito de todos os diferentes (VILELA

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2005:97).

B) o caráter do sujeito começa a ser aprendizagem”, como sendo um constituído e os pré-conceitos ainda problema do sujeito isenta a escola Partindo do pressuposto acima não foram tomados como verdade. de agir para revertê-la e, ao mesmo estabelecido, a escola inclusiva, que tempo, torna legítima a proliferação de se propõe atender todos os alunos A escola, hoje, mais do que nunca serviços e clínicas que se encarregam respeitando suas singularidades, é chamada a desempenhar novas de minimizar, sanar ou recuperar deve entender o que faz as pessoas funções, ao mesmo tempo em que, alunos com dificuldades para que afirmarem com tanta freqüência a no desempenho deste novo papel estes possam estar acompanhando diferença, sem realmente admiti- social, ajuda a forjar o modelo de o ensino chamado regular, e no la nas suas relações sociais. Refletir sociedade no qual está inserida. tempo escolar pré-estabelecido para sobre os sentidos que as diferenças se Assim, essa escola precisa ser a aprendizagem. Isto apresenta-se apresentam e como tal são tratadas analisada e estudada, considerando como um limite para a efetivação da em nossa sociedade é de extrema suas múltiplas demandas. Na política de inclusão, porque impede importância para a compreensão da redefinição de sua função social, a o reconhecimento da situação de constante negação e desqualificação tão falada crise educacional parece desigualdade e do direto as diferenças. do outro, do diferente. Para isso, nada mais ser do que uma adequação a escola deve considerar como necessária para o contínuo exercício Uma escola que privilegia o ensino princípio básico que esta Educação, de sua tarefa institucional. Mas, em em detrimento da aprendizagem, que se predispõe a ser inclusiva, não todas as situações que a desafia, a que está centralizado na figura do pode se efetivar sem a plenitude do escola deve considerar a necessidade professor ao invés de focar na figura desenvolvimento do processo de de reorientar suas propostas e suas do aluno, em que o homogêneo não subjetivação e individualização, que práticas para formar pessoas. Neste dá lugar ao diferente; que busca o é para Adorno um imperativo para sentido, o pensamento de Adorno enquadramento, a sujeição ao padrão, se poder abarcar, na experiência está longe de ser inclusiva. “(...) pode ajudar a amparar os desafios educacional, todas as pessoas, da escola atual na sua tarefa ímpar de Respeitar as diferenças no processo de independentemente de seu lugar ter que entender o desenvolvimento aprender dos alunos é, com certeza, em extratos sociais ou a grupos histórico das novas posições acerca um imperativo para a escola de hoje! de pertencimento por condições do papel da escola no mundo A escola contemporânea enfrenta o de gênero, de etnias ou outras contemporâneo e a desenvolver uma singularidades. educação plural como a mais coerente desafio de rever sua principal tarefa perspectiva de inclusão”. (VILELA, – a de ensinar – e desvelar este Se para Adorno a primeira de todas as “protagonismo” do aluno que não 2005, p.97). exigências para a educação é a de que aprende. É a vez de a escola ocupar Auschwitz não se repita, fica evidente Ao assumir o direito da pessoa este lugar e implementar em suas que a escola deve educar para a à educação, assumimos uma práticas curriculares a “cultura do tolerância, para a solidariedade, para obrigação de constituí-la, o que Re”: “re-significar”, “re-criar”, “reo reconhecimento do direito de todos implica considerar as aptidões que inventar”, “re-fazer”, “re-estruturar”, a serem reconhecidos e aceitos com distinguem cada sujeito. Percebe- “re-organizar”, “re-começar”. suas particularidades. Segundo ele, se, por vezes, que a escola, na sua “Qualquer debate acerca das metas tarefa de ensinar, não se dá conta da educacionais carece de significado e particularidade das construções do REFERÊNCIAS importância frente a esta meta: que conhecimento elaborado pelos alunos ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Temas Auschwitz jamais se repita. Ela foi uma e, muito menos, não reconhece sua básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973. barbárie contra a qual se dirige toda complexidade. Os estudos de Corrêa ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. a educação” (ADORNO, 2003 C: 119.) (2001) corroboram essa reflexão: Elementos do anti-semitismo. Os limites da razão. in.: ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética Sua preocupação é a de que apesar “Aprender é atribuir significado e do esclarecimento. Tradução: Guido Antônio de da não-visibilidade dos infortúnios, construímos significados integrando Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. a pressão social continuava se ou assimilando o que desejamos ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Reflexões a impondo. Se Adorno assim pensava aprender... O que o aluno aprende partir da vida danificada. São Paulo. Ática:1993. em 19655, ainda hoje a educação tem não coincide inteiramente com ADORNO, Theodor W; Educação e Emancipação. sentido unicamente como educação aquilo que o professor ensina: ambos In.: KADELBACH, Gerd ( Org.).Theodor Adorno Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, têm percepções diferentes da vida 2003 A. dirigida a uma auto-reflexão crítica . concreta e tem objetivos, intenções Da mesma forma deve se reforçar a ADORNO, Theodor W. Teoria da Semicultura. e motivações diferentes. Antes de Educação e Sociedade. Campinas.N.83: 388-411. importância da educação na primeira qualquer coisa é preciso ter em mente Dez. 1996. infância, onde, segundo Adorno (2003 5 O dia 18 de abril de 1965 é a data da palestra levada ao ar na Radio de Hessen, que deu origem ao texto publicado, pela primeira vez em 1969. Na coletânea organizada por Kadelbach em 1971.

que a educação escolar se dá num contexto específico e com objetivos determinados.” (CORRÊA, 2001, p.59).

Considerar

a

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“dificuldade

de

ADORNO, Theodor W; Educação – para quê? In.: KADELBACH, Gerd ( Org.).Theodor Adorno Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003B. ADORNO, Theodor W; Educação após Auschwitz.


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A ORALIDADE NO ENSINO DE LÍNGUA SIMONE APARECIDA LESIKO

Especialista em Língua Portuguesa / Lingüística / Literatura: texto e ensino pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professora de Língua Portuguesa do Colégio Marista São José do Rio de Janeiro. E-mail:slesiko.rj@marista.edu.br

RESUMO Este artigo parte do princípio de que o domínio da palavra pública tem importância significativa no exercício da cidadania e que cabe à escola possibilitar o acesso a usos de linguagem mais formalizados que exijam controle mais efetivo da enunciação. Para isso, ela deve dar importância às práticas que envolvem o eixo oral da mesma forma que tem dado à escrita. Assumir uma concepção interacionista, funcional e discursiva da língua como uma forma de desenvolver a autonomia nos alunos é o caminho defendido por esse estudo que tem por objetivo avaliar a relevância do trabalho com a oralidade no sentido de contribuir para o ensino eficaz de Língua Portuguesa.

que mesmo estando a humanidade na era da comunicação é comum dizerem que o jovem não consegue expressar seu pensamento, articular um juízo e estruturar sentenças linguisticamente. Apesar de não compartilhar algumas dessas afirmações, o autor reconhece o fracasso das aulas de língua portuguesa tal como vêm sendo praticadas em muitas escolas. No sentido de levantar questões metodológicas que possam contribuir para reverter o quadro citado por Geraldi, este artigo pretende dar ênfase às questões que envolvem o trabalho com a oralidade em sala de aula. Eixo1 colocado em detrimento devido a valorização da escrita.

LUGAR E PAPEL DA ORALIDADE NO Palavras-chave: Oralidade – Ensino - ENSINO DE LÍNGUA Linguística Ensinar oralidade na escola encontra pressupostos teóricos favoráveis INTRODUÇÃO em várias disciplinas periféricas da lingüística como sociolinguística, O baixo nível de desempenho pragmática, etnografia da fala, entre linguístico demonstrado por outras. estudantes na utilização da língua, tanto oral quanto escrita, tem Toda essa produção contribui para ocupado, segundo Geraldi (1997), despertar a possibilidade de trabalhar lugar de destaque no inventário das oralidade em sala de aula e sobre o deficiências apontadas quando se quanto essa prática precisa ocupar fala em crise do sistema educacional 1 Os PCN propõem que os conteúdos de Língua Portuguesa articulem-se em torno de dois eixos básicos: brasileiro. O autor ainda acrescenta o uso da língua oral e escrita. (1998, p. 34) GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

lugar claro e definitivo no ensino produtivo de língua materna. Marcuschi (1997) destaca que não se trata de ensinar a fala, mas sim identificar a imensa variedade e riqueza de usos da língua. Para isso, o autor diz que um aspecto central é a exploração da variação2 com o propósito de mostrar que a noção de um dialeto padrão uniforme é só teórica, não se dá na realidade. Assim, noções de norma, padrão, dialeto, variante, sotaque, estilo, gíria, bem como tudo que estiver relacionado às variações diatópica, diafásica e diastrática3 podem tornar-se aliadas ao ensino e ajudar o aluno a perceber que a língua é heterogênea, o que deixa claro a importância dos estudos sociolinguísticos aliados ao trabalho com oralidade. No entanto, não se trata de converter tópicos da lingüística em mais conteúdos que o aluno deva incorporar, mesmo por que, conhecer particularidades da linguagem oral não é garantia de desenvolvimento 2 “Quando se fala em variação, remete-se à sociolingüística, essa área da ciência da linguagem que procura, basicamente, verificar de que modo fatores de natureza lingüística e extralingüística estão correlacionados ao uso de variantes nos diferentes níveis da gramática de uma língua – a fonética, a morfologia e a sintaxe – e também no seu léxico”. (BELINE, 2006, p.121) 3 Diatópica – variação de lugar; Diafásica – variação de situação de fala ou de registro (mais ou menos informal); Diastrática – variação de nível sócioeconômico.


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da competência comunicativa4 que, segundo Bortoni-Ricardo (2004), permitirá saber o que falar e como falar com quaisquer interlocutores em quaisquer circunstâncias. Tratase, pois, de oferecer ao professor suporte para associar as contribuições teóricas aos dados da realidade transformando-os em objeto de ensino. (RODRIGUEZ, 1995 p.5). Marcuschi (1995) diz ser importante ter clareza quanto ao papel desse tipo de trabalho para não correr o risco de transformar a fala num tipo de conteúdo autônomo no ensino de língua, deixando, assim, de trabalhála integradamente e na relação com a escrita. Relação, essa, de fundamental importância no trabalho com a oralidade. Razões para ampliar o estudo da oralidade

convertidas na norma padrão da língua. Atividades como essas fazem com que a produção perca o seu valor de expressão cultural de uma comunidade. Além disso, transmitem a idéia de que seu padrão linguístico deve ser evitado (ANTUNES, 2002). Ou seja, aproveitar essas produções para estudar a fala, também, é uma oportunidade de esclarecer aspectos relativos à discriminação e ao preconceito lingüístico5. O estudo da oralidade também pode ser ampliado através da análise dos aspectos pragmáticos da organização textual em relação à fala e escrita a partir das diferenças, tendo em vista que esta não incorpora a gestualidade e a prosódia daquela.

usos linguísticos na vida diária, tendo em vista suas íntimas, complexas e comprovadas relações com a estrutura social. Além disso,

Sabemos como, ao lado de elementos morfossintáticos e semânticos do texto, encontram-se outros de natureza supra-segmental (como a entonação, as pausas, por exemplo), que em muito contribuem para a construção do sentido e das intenções pretendidos. Numa dimensão muito próxima ganha sentido também explorar a função de certas expressões fisionômicas, de certos gestos e outros recursos da representação cênica (como levantar-se, movimentarse), os quais funcionam de forma muito significativa, como elementos complementares no processo da interação verbal. (ANTUNES 2002, p.104)

Para esses dois autores, é necessário considerar a fala como um conteúdo indispensável na formação cidadã e na inclusão social do aluno.

Há muitas razões para ampliar a perspectiva do estudo da oralidade para além da simples observação do código linguístico. Uma delas diz respeito às relações mútuas e diferenciadas com a escrita. Na fase de alfabetização a oralidade influencia a escrita e com o passar dos anos de escolaridade esse ponto de vista inverte-se, como foi evidenciado nas pesquisas de Silva & Scherre (1996) e, mais recentemente, em Mollica Afastando-se da relação com a escrita, (2006). a autora (idem, p. 105) acrescenta que não há interação se não há ouvinte. É sabido, também, que o trabalho Numa relação interativa, analisar a com a oralidade pode ressaltar a oralidade desenvolve a habilidade de contribuição da fala na formação escutar com atenção e respeito os mais cultural e na preservação das tradições diferentes tipos de interlocutores. orais que persistem em culturas Para Marcuschi (1995 p.42), “aspectos nas quais a escrita já entrou de relativos à polidez ao tratamento forma decisiva (MARCUSCHI, 1995). interpessoal, às relações interpessoais É lamentável que, algumas vezes, e muitos outros podem ser facilmente realizações estéticas próprias da observados na produção lingüística na literatura improvisada dos cantadores própria sala de aula”. e repentistas apareçam na sala de aula apenas como pretexto para que sejam Finalmente, estudar a fala, segundo

4 A noção de competência lingüística foi implantada pelo sociolingüista norte-americano Dell Hymes numa crítica à noção de desempenho e competência proposta por Chomsky por considerar que ela não dava conta das questões da variação. O novo conceito é bastante amplo para incluir não só as regras que presidem à formação das sentenças, mas também as normas sociais e culturais que definem a adequação da fala. (BORTONI-RICARDO, 2004, p.73)

Marcuschi (idem), é uma oportunidade de analisar os mecanismos de controle social e reprodução de esquemas de dominação e poder implícitos em

5 Sobre preconceito lingüístico ver: BAGNO, M. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

a palavra humana é mais do que simples vocabulário: é palavra – e ação... falar não é um ato verdadeiro se não está, ao mesmo tempo, associado ao direito à auto-expressão e à expressão da realidade, de criar e recriar, de decidir e escolher e, em última instância, de participar do processo histórico de sua sociedade. Nas culturas do silêncio, as massas são mudas, ou seja, são proibidas de participar criativamente nas transformações de sua sociedade e, por conseguinte, são proibidas de ser. (FREIRE, 2006, p. 43)

Estudos que se ocupam das relações fala e escrita Para compreender as estruturas textuais próprias do discurso oral, a organização das classes em torno do trabalho com língua oral e avaliação das aprendizagens, Rodriguez (1995) considera fundamental reconhecer as diferenças entre a linguagem oral e escrita. Entender essas diferenças parte, inicialmente, da necessidade de compreender as variadas tendências dos estudos que se ocupam das relações entre fala e escrita e, assim, poder sugerir uma linha de tratamento menos comprometida com o preconceito e a desvalorização da forma oral. Quatro perspectivas Marcuschi (2007a) diz que a tendência de maior tradição entre a linguística é a da dicotomia que se dedica à análise das relações e diferenças entre fala e escrita. Dentro dessa mesma perspectiva encontram-se, de um lado, os teóricos de visão restrita

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e, de outro, os que percebem essas que ela resolva todas as questões. relações dentro de um contínuo, seja tipológico ou da realidade cognitiva e Chamada por Marcuschi (idem) de social. sociointeracionista, a perspectiva dialógica não forma um conjunto Da dicotomia mais estrita resultou teórico sistemático e coerente, o prescritivismo de uma norma tida mas tem a vantagem de perceber como padrão, que está representada com maior clareza a língua como na denominada norma culta e que fenômeno interativo, dinâmico e conduz o ensino de língua ao ensino dialógico marcado pela fala nas de regras gramaticais ignorando os estratégias de formulação em tempo fenômenos dialógicos e discursivos. real. Para Street citado por Marcuschi Essa perspectiva é a responsável pela (idem, p. 33) “essa tendência em separação da fala e da escrita em dois direção à análise (crítica) do discurso blocos distintos. Aquela é tida como unida à investigação etnográfica lugar do erro, do caos gramatical; essa poderia ser uma das melhores saídas como lugar da norma e do bom uso para a observação do letramento da língua. e da oralidade como práticas sociais”. Sozinha, a perspectiva A perspectiva fenomenológica sociointeracionista é considerada observa muito mais a natureza das de baixo potencial explicativo e práticas da oralidade versus escrita. descritivo dos fenômenos sintáticos As análises seguem uma perspectiva e fonológicos da língua e, também, cognitiva, antropológica e desenvolve das estratégias de produção e uma fenomenologia da escrita e seus compreensão textual. efeitos na forma de organização e produção de conhecimentos.Essa Por isso, Marcuschi sugere um tendência não serve para tratar das hibridismo entre essa tendência e relações lógicas, pois localiza suas a visão variacionista e a Análise do análises na formação da mentalidade Discurso e da Conversação aliados dentro de atividades psíquicas, sociais, à Linguística do Texto. Essa fusão econômicas e culturais, portanto, poderia apresentar resultados mais de visão global. Muitos problemas seguros e com maior adequação foram detectados nessa tendência e empírica e teórica. várias de suas postulações, que não cabe aqui mencionar, não passam Segundo Ramos (2002, p. 8) de crenças já desmontadas pelas “muitos profissionais que atuam na investigações contemporâneas. área de ensino da língua materna conseguem chegar à universidade A tendência variacionista, segundo (e por vezes sair dela) sem ter Marcuschi (idem) é a que trata do papel consciência das especificidades da da escrita e da fala e faz propostas fala em contraposição à escrita. Há específicas a respeito do tratamento quem acredite que se fala tal como padrão e não-padrão no ensino formal se escreve e vice versa”. Questão sob o ponto de vista dos processos bem mais agravante se considerar educacionais. Essa perspectiva é que um engano como esse acontece uma variante da dicotômica, mas com professores que trabalham com o diferencial encontra-se no fato ensino fundamental reproduzindo de que essa é muito mais sensível ‘pérolas’ como: “Agora que você me aos conhecimentos dos indivíduos contou toda história é só escrevê-la!”. que enfrentam o ensino formal. Destaca-se o fato dessa tendência A noção que se pode ter dessas observar variedades linguísticas e tendências e perspectivas mostra que não preocupar-se em fazer distinção o trabalho que se pode desenvolver entre fala e escrita. O autor diz ser a partir da oralidade, também simpático a essa perspectiva que se relacionada à escrita, é tão mais amplo caracteriza mais ideológica e menos que, nas palavras de Belintane (2000), lingüística apesar de não considerar não cabe a idéia de reduzir a dinâmica GERÊNCIA EDUCACIONAL | PROVÍNCIA MARISTA BRASIL CENTRO-NORTE | ano 02 | número 03

da língua oral ao espaço restrito em poucas páginas nos manuais didáticos. A compreensão do trabalho com a oralidade em sala de aula A partir da concepção de que os indivíduos se constituem na relação dialógica, a qual tem na língua falada sua matriz formadora, torna-se relevante ampliar o conhecimento da língua falada. Assim, de acordo com Marcuschi (1997a), a análise de interações verbais constitui-se um programa capaz de contribuir para a melhor compreensão do que se entende por “o homem é um ser social”. Além disso, o autor diz que é necessário ter uma noção de língua que sustente uma visão de fala coerente e produtiva e que se busque analisar as relações entre fala e escrita dentro de um contínuo evitando relações dicotômicas que privilegiem uma ou outra. Para isso, cabe aqui, fazer uso das contribuições da lingüística nos últimos trinta anos que enfatizam a análise da língua em contextos situacionais autênticos, ou seja, na língua em uso. Uso, que por sua vez, manifesta-se em situações cotidianas na oralidade ou na escrita. Segundo Marcuschi (idem) as pesquisas com a língua em uso resultam numa melhor compreensão da língua como atividade interativa e aplicam-se rapidamente ao ensino em virtude do seu enorme poder explicativo e aplicativo. Nas palavras do autor: “São perspectivas que permitem integrar de maneira significativa os aspectos pragmáticos, sociais, cognitivos e lingüísticos numa visão holística da língua enquanto atividade”. A partir da Sociolingüística, Marcuschi (1997) propõe que se trabalhe com atividades que tratem da distinção entre as falas de diversas regiões do país. Para tanto, o autor sugere que sejam apresentadas gravações de falas, novelas, entrevistas ou debates a fim de discutir aspectos relativos


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à prosódia, sotaques, léxico etc. Destaca-se a importância de um olhar não discriminatório que enfoque a fala como um fator que contribui para a formação de identidades. O estudo das variedades pode mostrar que a língua é heterogênea e não monolítica. Para isso podem ser explorados os mais variados aspectos: variação sociolingüística, dialetal, de registros, de situações sociocomunicativas, entre outras.

outra pela fala e o que a fala revela em Sociologia Interativa como teorias em relação aos falantes. ebulição. Elas vêm influenciando o ensino das línguas já que permitem Marcuschi (1997) sugere que se melhor analisar os processos analise a polidez e sua organização na interativos e concordam muito bem fala, bem como o fato desse aspecto com as teorias sobre funcionamento interferir de maneira decisiva na do texto, seja ele oral ou escrito. qualidade, na compreensão e na As contribuições de todos esses natureza dos atos de fala praticados. estudos não servem de novas Nesse sentido propõem-se atividades nomenclaturas e conceitos para que discutam sobre as formas de se substituírem os da Gramática desenvolver os temas, as diferenças Tradicional que ocupou (ocupa) maior entre fala e escrita com relação à parte do tempo das aulas de Língua mudança de tópicos e interrupção dos Portuguesa. Elas servem de suporte interlocutores. Ainda relacionado ao para que sejam desenvolvidas e campo da conversação, o autor sugere aplicadas metodologias que sirvam a identificação de elementos típicos da para ensinar os alunos a perceberem a produção oral, como os marcadores riqueza que envolve o uso da língua e conversacionais, as hesitações, a utilizarem-se, de forma competente, as repetições, as correções, os de uma ferramenta diária, a qual os modalizadores, os dêiticos etc. acompanhará por toda a vida.

Numa direção paralela à Sociolinguística, o estudo da modalidade oral ampliou-se no período entre 1980 e 1990 com a aplicação das teorias da Análise da Conversação6 que tornou possível o estudo da oralidade. Até então os métodos serviam apenas para análise A Linguística Textual também da língua escrita. apresenta fortes subsídios teóricos para o trabalho a partir da oralidade. Segundo Preti, Koch (apud BENTES, 2000) propõe Problemas novos, como o do turno que se veja essa teoria como o estudo (a macrounidade da língua falada) e das operações linguísticas e cognitivas suas estratégias de gestão; das leis de que regulam e controlam a produção, simetria na conversação natural; da construção, funcionamento e estruturação dos tópicos ou temas; recepção de textos escritos e orais. dos procedimentos de reformulação; do emprego de sinais característicos Sendo assim, a partir da perspectiva da língua oral (marcadores da Linguística Textual podem-se conversacionais); da sobreposição desenvolver atividades que explorem de vozes; do fluxo conversacional; da os fatores de textualidade ou a falta densidade informativa etc. vieram de textualidade relacionadas às para mostrar que a língua falada tem produções orais responsáveis pelo suas regras próprias (2003, p.8). sucesso ou fracasso da comunicação. A Análise do Discurso7, mesmo que Ao preocupar-se com todas essas centrada nos estudos acadêmicos, questões, a Análise da Conversação também pode oferecer contribuições descobre a oralidade como um para o trabalho a partir da oralidade. fenômeno central na vida dos Por intermédio dela podem ser indivíduos, no uso da língua e explorados aspectos relativos à na própria concepção de língua argumentatividade, ou seja, sugere(MARCUSCHI, 2007b). A aplicação se a análise dos textos orais a partir das contribuições dessa teoria pode de mecanismos usados pelas pessoas ser feita a partir de atividades que para persuadirem umas as outras. proponham distinguir uma pessoa da 6 Pesquisadores do estado de São Paulo publicaram, Outras teorias ainda podem contribuir a partir de 1997, uma série de volumes intitulados muito para o trabalho com a Projetos Paralelos – NURC/SP de estudos relativos à análise da língua oral na perspectiva da Análise da oralidade. Marcuschi (2007b) destaca Conversação. O livro que abre a coleção conta com a Etnometodologia, a Etnografia da uma série de dez ensaios sobre alguns dos problemas Fala, a Antropologia Linguística e a

mais latentes para o estudo dos textos orais numa perspectiva que se diferencia do estudo dos gêneros orais, visto que estão mais interessados em reflexões sobre oralidade e escrita, contextos conversacionais, planejamento, relação entre os interlocutores, mecanismos de paráfrases, sintaxe, léxico, entre outros. (Ver: PRETI, D. (Org). Análise de textos orais. 6. ed. São Paulo: Humanitas, 2003).

7 Apesar de não relacioná-la ao ensino, Mussalim (ver referência) proporciona um primeiro contato com a Análise do Discurso, passando pela origem dos estudos no estruturalismo, marxismo e psicanálise até as formações discursivas, os conceitos de sujeito e as condições de produção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Houve um tempo em que o behaviorismo imperava; o sujeito era considerado como ser passivo diante da aprendizagem e esta era algo resultante, principalmente, da prática e do reforço. Por esse viés, ensinar língua oral significava corrigir a fala do aluno – “Não é pra mim fazer, é pra eu fazer” – correção que, muitas vezes, interrompia a opinião empolgada do aluno acerca de algum tema e o fazia encolher-se. Nesse tempo, os alunos decoravam poemas de exaltação à Pátria ou à bandeira, e horas de ensaios e treinos eram consumidas, perdendo-se em virtude do nervosismo no momento da apresentação em eventos cívicos. Havia, também, o ensino da leitura em voz alta transformado em tortura (obrigatória) para os tímidos e em humilhação (também obrigatória) para os que apresentavam algum déficit de leitura. E, o que falar das famigeradas provas orais? Na verdade, eram memorizações de questionários ou de conceitos que não faziam sentido, e que os alunos tentavam reproduzi-los com fidelidade diante do olhar avaliativo do professor.

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O tempo passou e as práticas de antes não combinam mais com as concepções de linguagem e aprendizagem que surgem calcadas no cognitivismo de Piaget, no sociointeracionismo de Vygotski e no dialogismo de Bahktin. Essas teorias trouxeram uma nova concepção de sujeito, que passa a ser entendido como capaz de assumir sua palavra na interação, e de texto enquanto lugar dessa interação que é construído por interlocutores e os constrói simultaneamente. De modo geral, a noção de trabalho com o oral que se observa em materiais didáticos desconsidera sua condição de produção, sua intencionalidade e sua significação. Algumas vezes, ela é resumida em “Atividade Oral” e está distante de contemplar toda a riqueza que o tema pode representar. As discussões levantadas aqui ainda não fazem parte de muitos espaços de diálogos importantes e, para que as propostas apresentadas se efetivem em mecanismos de mudança e de promoção do saber, é indispensável que se invista nos profissionais de educação, oferecendo-lhes condições para que se mantenham informados através da atualização constante e intensiva. Emerge a necessidade de se adotar postulações teóricas que concebam a língua como sistema integrado pelos sistemas gramatical, semântico e discursivo e que entendam a cognição humana como processo de construção subjetiva socialmente mediada. Ou seja, abordagens que tomam os processos subjetivos de construção de conhecimentos linguísticos como culturalmente condicionados e a atividade textual como tributária das condições histórico-sociais de sua produção.

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