revista eita! 5

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#5 - Menina, não esqueça de pentear a revista! - Menino, vai levar a Eita! para passear na esquina! - Menina, não deixe de ler seu travesseiro! Em sua quinta edição, a Eita! chega bem estranhinha, com novos modos de usar e abusar e cheia de histórias cabeludas. Nas matérias do primeiro caderno, por exemplo, é possível fazer um passeio pelas cidades contemporâneas através dos artistas que repensam e reescrevem os traçados urbanos. Se viver nas cidades e transformálas são um grande desafio nos tempos atuais, pensar a criação textual, em suas mais diversas modalidades, é outra questão abordada: como ficam a poesia, a dramaturgia, a ideia de autoria e as publicações independentes, hoje? É o que indagam os textos de Conrado Falbo, Fábio Andrade, Juliene Codognotto e Paulo Floro. Além desses temas, reflexões sobre música, cinema e a fotografia estão presentes neste número, que conta ainda com um poema ilustrado de Julia Panadés, um conto de Sidney Rocha e um ensaio visual de Vitor César. Editada pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, a Revista Eita! é uma publicação da Gerência de Literatura e Editoração e do Centro de Design do Recife. Formada a partir de um trabalho colaborativo dos diversos equipamentos e gerências que compõem a Secretaria de Cultura e a Fundação de Cultura, procura contemplar as mais variadas linguagens criativas da cultura contemporânea.

Encontro! E1

Carnaval & Arte Urbana Raul Córdula

Taí! T1

pg. 08 E2

Arte Pública & Cidades Contemporâneas Betânia Corrêa de Araújo

pg. 42 T2

pg. 12 E3

Dramaturgia como Encontro Juliene Codognotto

Ensaio Visual Victor Cesar

T3

I1

EITA!: Encontro! Interligar! Taí! Ah!

Uma teia que, felizmente, não acaba Luiz Otávio Pereira

Poesia no Tubo de Ensaio Conrado Falbo

pg. 50 T4

pg. 20

Interligar!

Escrita & Simulação: Autoria & Contemporaneidade Fábio Andrade

pg. 46

pg. 16 E4

Periódicos Independentes Paulo Floro

Armstrong Sidney Rocha

pg. 54

Ah! A1

HQ Victor Zalma

pg. 58 pg. 26

Boa leitura, Os editores.

A2

Recife, 2010. Eita!, ano 3, número 5.

Cantores Débora Nascimento

Nenhum pente foi utilizado na confecção desta revista.

pg. 32

I2

Cidade vistosa é cidade vestida Rafael Cardoso

pg. 60 A3 I3

Por que enxergamos as fotografias? Georgia Quintas

O Fantasma sobe ao palco Astier Basílio

pg. 66 pg. 36 A4 I4

Olho no Rio Wladimir Quirino

Poesia Empoeirada Julia Panadés

pg. 70 pg. 38 A5

Pergunta da Edição Cristhiano Aguiar

pg. 72


Copyright © 2010 Fundação de Cultura Cidade do Recife

Jornalista responsável Débora Nascimento

Prefeito do Recife João da Costa

Revisão Karol Ferreira e Cristhiano Aguiar

Ilustrações Julia Panadés Raul Luna Victor Zalma Vitor César

Vice-prefeito do Recife Milton Coelho

Projeto gráfico e capa Raul Luna

Fotografia Vitor César

Secretária de Comunicação | Especial de Relações com a Imprensa Ceça Britto

Conselho editorial Arnaldo Siqueira Célio Pontes Cristhiano Aguiar Débora Nascimento Heloísa Arcoverde de Morais Márcio Almeida Mateus Sá Raul Kawamura Renata Gamelo

Secretário de Cultura Renato L Presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife Luciana Félix Diretora Administrativo-Financeira Sandra Simone Bruno Diretora de Desenvolvimento e Descentralização Cultural Luciana Veras Diretor de Gestão e Equipamentos Culturais Fábio Cavalcante Gerente Operacional de Literatura e Editoração Heloísa Arcoverde de Morais Coordenador editorial Cristhiano Aguiar

Colaboradores / Texto Astier Basílio Betânia Correa de Araújo Conrado Falbo Cristhiano Aguiar Débora Nascimento Fábio Andrade Geórgia Quintas Julia Panadés Juliene Codognotto Luiz Otávio Pereira Paulo Floro Rafael Cardoso Raul Córdula Sidney Rocha Wladimir Quirino

Gerente operacional de Artes visuais e Design / Centro de Design do Recife Renata Gamelo

Realização

Apoio

ISSN 1983-1846

Direitos exclusivos desta edição reservados pela Fundação de Cultura Cidade do Recife. Cais do Apolo, 925, 15º Andar, 50030-230, Recife-PE. + 55 81 33553144 / 33556892 gole@recife.pe.gov.br

EITA! Online

http://issuu.com/revistaeita revistaeita.revistaeita@gmail.com






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E4 • ENSAIO VISUAL

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por vitor césar


ENSAIO VISUAL

por vitor césar

• E4

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E4 • ENSAIO VISUAL

por vitor césar

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VITOR CÉSAR é artista visual e designer

ritin@uol.com.br


ENSAIO VISUAL

por vitor césar

• E4

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A


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ARMSTRONG Aquele conto de SIDNEY ROCHA

Ele já não suportava mais. A mãe zelosa, entretanto, queria o nenê a bolinha cor-de-rosa que ela vira na capa da revista, o bebê Jonhson 1969, os dentinhos sorrindo para as leitoras. Ela o banhava todas as tardes e, se aquilo não o desagradava por completo, achava um excesso, já o incomodavam os talcos, os pompons, o cheiro de lavanda, mas ia levando. Aguardava-o um mundo de verdade, ele sabia, o quarto azul era uma metáfora, sentia-se um pouco Armstrong nos seus pequenos passos sem o mó- dulo lunar do anda-já, as pessoas o achavam grave e talvez sério demais nos aniversários, ahhh, as pessoas eram uma nuvem para ele, reconhecia as bocarras, eles pareciam perus glugluzando quando se aproximavam da sua cara de romã, mas de longe estavam sempre precisando de foco, os seus olhos já não se esforçavam mais em reconhecê-los pelas manchas, apurara os ouvidos como um cão, só restava isto a fazer por enquanto, as retinas com o tempo o presenteariam com um mundo em tecnicolor, mas agora tinha a rotina de um cego, sem ser cego; de um bêbado, sem ser um, mas precisava de ajuda para ir tomar sol, para limpar-se, para mudarem o canal da TV pra ele, as mais simples vontades se transformavam num cataclismo de gestos sempre perdidos, não podia ir sozinho por exemplo à esquina tomar uma coca-cola. Isto, porém, sustentava com paciência e profissionalismo. Não sabia como os outros se viravam, cada um vem ao mundo para se virar como pode, mas não suportava mesmo era quando a mãezelosa lhe enfiava o mamilo marrom na boca três vezes ao dia. Ele regurgitava na hora. À tarde, vomitava o leite da manhã, pela manhã o da noite, mas a mãezelosa não conhecia descanso e empurrava a santa pelanca, a meleca branca de volta, aquilo criava uma gosma pegajosa no céu da boca, as pilhas de cueiros azedando por toda parte, e ele pensava em fugir – mas como, se parecia um bebum quando tentava um passo qualquer? –, pensava em se matar, em se deixar asfixiar pela bolona, o bico cor de terra, a nitidez que a vida até ali lhe dera, com promessas de um mundo todo em panavision, enquanto lá fora o astronauta via a aurora do novo mundo, a Terra de fato azul. Não suportava mais. De qualquer forma, levaram-no junto com a mãe naquele dia. O médico saberia retirar do seu estomagozinho o mamilo da mulher, ela berrava como uma louca pela janela do outro carro, “Me deixem matá-lo”, “Me deixem matá-lo”, “Me devolva”, “Me devolva”, talvez pudessem, sim, devolvê-la a luazinha marrom por direito e plástica. Se não, o doutor saberia como desfazer do rosto dele aquele sorrisozinho de felicidade, tipo capa de revista, toda mãezelosa tem ou quer uma fotozinha assim do seu homenzinho.

Sidney Rocha é novelista e editor nascido no Ceará. É autor, entre outros, do romance Sofia, vencedor do Prêmio Osman Lins de Literatura, com edição pela Cepe (1994), Ateliê Editorial (2005) e Editora Iluminuras (2010). Publicou o livro de contos Matriuska, também pela Iluminuras, em 2009, com o qual é semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2010, ainda em curso. Outras informações sobre sua obra podem ser lidas em matriuskando.blogspot.com/.

sidneyrocha1@gmail.com

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A1 • HQ

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por viCtor ZALMA


A1 • HQ

por viCtor ZALMA

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viCtor ZALMA é ilustrador. victorzalma@gmail.com



O debate sobre as “cidades limpas” revela o delicado limite entre ordenamento urbano e descaracterização cultural.

Quando eu era moleque, lá pelos nove, dez anos, perguntava para minha mãe, “Mãe,

eu sou bonito?”. A resposta dela estava sempre pronta, na ponta da língua: “Homem não tem que ser bonito, tem que ser limpo e arrumado.” Aquilo me deixava contrariado. Limpo e arrumado? Ora bolas, eu queria é ser bonito! Limpo e arrumado era ambição digna para as crianças mais feinhas da turma: aquela dentuça enjoada da primeira fileira, o cara de fuinha com cabelo oleoso, o gordão malvado que comia minhoca. Não para mim! Àquela época, eu ainda nutria certas esperanças. De modo geral, limpeza é boa coisa. Quem não gosta de um bebê limpinho, perfumado, de chuquinha no cabelo e cheirando a alfazema? Mas, nem sempre é o caso. Limpeza é, muitas vezes, um conceito superestimado. Vejam só a tal da limpeza étnica, no que deu. Ultimamente, entrou para a moda falar em ‘cidade limpa’. Sou a favor. Moro no Rio de Janeiro, que é uma cidade porca – conforme acusou seu próprio prefeito, não faz muito tempo – onde as pessoas jogam lixo nas calçadas e fazem xixi nas ruas, mesmo sabendo que é uma baita falta de educação. Haja companhia de limpeza urbana para ficar catando a sujeira de gente que não está nem aí para nada, nem para seus vizinhos e muito menos para o meio ambiente! Porém, temos que tomar cuidado para não jogar fora o bebê com a água de banho... Até porque a chuquinha e a alfazema vão junto. Nem tudo que os proponentes de ‘cidade limpa’ chamam de sujeira é sujeira. Vejam o caso da pichação. Tem pichação que não acrescenta nada à paisagem. Existem outras que não, que alegram e encantam e fazem pensar. Para distinguir umas das outras, o pessoal mais arrumadinho passou até a chamar as boas de graffiti. Mas, quem é que decide qual é qual? Na verdade, pichação é tudo uma coisa só. Muitos grafiteiros conceituados, que hoje expõem em galerias de arte, começaram a vida como humildes pichadores, ‘emporcalhando’ paredes com seus garranchos incompreensíveis. Quer dizer, incompreensíveis para quem não é do ramo, visto que se trata justamente de uma conversa cifrada. Pichação costuma ser uma atividade de gente que se conhece entre si e se sente marginal ao mundo das pessoas que leem textos como este – tipicamente, jovens de periferias urbanas. Você acha feios aqueles sinais nas fachadas dos edifícios? A ideia é essa, meu caro leitor! Querer barrar a expressão visual dos outros porque achamos feia e suja é equivalente a querer proibir funk ou rap ou axé ou sertanejo porque eu e você achamos esses estilos pobres e repetitivos.


Muito nas

do

que

cidades,

chamamos,

de

“poluição

visual”, pode na verdade ser considerado como patrimônio histórico

Para quem quiser um exemplo menos polêmico, tem o caso das propagandas em outdoor. Existem peças publicitárias de todos os níveis, desde as mais toscas e imbecis até umas que são primorosas. Tem campanha que cria polêmica, lança moda e marca época. Ninguém ignora o quanto a publicidade se tornou matéria-prima do discurso cultural no Brasil, e o outdoor é uma mídia prezada pelos publicitários. Sem dúvida, há excessos. Dizem os especialistas que os outdoors mal colocados podem até causar perigo para motoristas. Não sou maluco de brigar com especialista, mas será que a solução para melhorar esse problema passa por proibir o outdoor? Será que não existe um critério técnico que permita coibir os abusos sem se privar de algo proveitoso quando bem-utilizado? Afinal, no que tange ao perigo para os motoristas, creio que seja bem mais perigoso falar ao celular e dirigir ao mesmo tempo. Nem por isso, cogita-se proibir o celular.

O xis da questão é um conceito bastante duvidoso chamado ‘poluição visual’. Todos já ouviram falar no termo. Muitos o empregam com naturalidade, impensadamente. Ainda não encontrei ninguém capaz de defini-lo de modo convincente, muito menos de comprovar sua existência. Poluição é aquilo que fere ou agride o meio ambiente: resíduos químicos, dejetos tóxicos. Por analogia, poluição sonora é aquilo que fere os ouvidos: barulhos e ruídos de intensidade tamanha que prejudicam a audição. Os efeitos nocivos da poluição sonora podem ser demonstrados por uma simples audiometria. ‘Poluição visual’ é o quê, exatamente? Existe algum caso nos anais da medicina de pessoa que ficou cega ou apoplética de tanto ver imagens? Se for este o caso, crítico de cinema precisa ganhar um adicional por insalubridade! Se não é a saúde que está sendo prejudicada, é o quê? Por dedução, só pode ser o senso estético de quem reclama. Ah, então está explicado! ‘Poluição visual’ é aquilo que alguém, entendido em estética, acha feio. Mas, peraí! Será que existe algum consenso entre os especialistas sobre o que é bonito ou feio? Que eu saiba, nenhum! Ao contrário, a filosofia da arte discute o assunto há duzentos anos, sem chegar a uma conclusão. Sendo assim, a opinião de cada um a esse respeito, por mais que possa soar erudita, não passa disto: uma opinião entre outras. Para quem ainda não se convenceu, há um exemplo incontrovertível do valor da comunicação visual supostamente poluidora: os letreiros e placas de estabelecimentos comerciais. Caso se aprovasse hoje, no Rio de Janeiro, uma legislação parecida com aquela que foi aplicada em São Paulo alguns anos atrás, perderíamos de noite para dia uma rica profusão de sinalização informal que inclui preciosidades de época, muitas cultuadas por designers e historiadores.


Um dos meus letreiros prediletos é o da “Musculação Atlas”, no bairro de Copacabana, que ostenta um boneco pintado com rosto de adolescente espinhento dos anos 1960 e um braço musculoso em neon verde, cujas flexões de bíceps em três tempos já foram fonte inesgotável de fascínio para mim. Alguns técnicos, de mente estreita, avaliariam tais manifestações da memória gráfica como ‘sujeira’. Para quem tem horizontes um pouco mais amplos, isto também se chama patrimônio histórico. Ninguém menos do que João do Rio dedicou uma crônica famosa às tabuletas de lojas, em A alma encantadora das ruas, descrevendo-as como “brasões da democracia, escudos bizarros da cidade”. Se o grande escritor já era capaz de enxergar o valor cultural desses artefatos em 1908, por que há ainda quem insista em desprezar essa forma de expressão, tachando-a de poluição?

Não é de hoje o conflito entre quem busca ordenar o espaço urbano e quem busca dar vida e vibração a ele. Os códigos e posturas municipais são necessários, mas costumam conter muito resquício de ideias ultrapassadas. Inclusive, preconceitos estéticos hoje inadmissíveis no mundo das artes, as quais desistiram de ser ‘belas-artes’ há muito tempo. Um bom exemplo é o cartaz lambe-lambe, humilde e heróico representante da resistência de uma tradição tipográfica que data, entre nós, de quase dois séculos. É inacreditável que a prática de colar lambe-lambe seja proibida em muitas cidades brasileiras. Em meados do século 19, o profissional que colava esses cartazes era chamado de ‘casa-linda’, singelo apelido que parece misturar uma admiração sincera pelo ofício do sujeito com uma boa dose da mais fina malícia carioca. Com o devido progresso dos séculos, conseguimos reduzir essa figura simpática – o casa-linda, ou embelezador de ruas – a um mero ‘emporcalhador’, praticamente um fora-da-lei. Está mais do que na hora de resolver esse conflito hipócrita entre o que permitimos e o que gostamos. Se o negócio existe há séculos, gera demanda e não faz mal a ninguém, por que proibir?

Não é de hoje o conflito entre quem busca ordenar o espaço urbano e quem busca dar vida à ele

Hoje em dia, o lambe-lambe é uma prática ameaçada de extinção, que sobrevive apenas pela teimosia de quem faz e pelo gosto evidente com que o público o acolhe. Esse objeto maltratado, perseguido, faz parte de nossa cultura. É coisa nossa – ‘a pintura das ruas’, aproveitando outro dizer de João do Rio – que conta a história da nossa vida como ela é, mas talvez não como alguns gostassem que fosse. Como se vê, uma praga a ser combatida. Do mesmo modo que já foram perseguidas, neste admirável país de contradições, outras manifestações da cultura popular como capoeira, samba e candomblé. Hoje, o acarajé é reconhecido como patrimônio histórico imaterial; mas o lambe-lambe continua a ser caso de polícia, passível de multa para quem faz e quem manda pregar.


Precisamos romper com a concepção da vida das ruas e do crescimento da cidade como algo a ser combatido, contido e controlado, como se fosse um câncer a atacar um corpo saudável. Ordenamento urbano, sim, claro! Porém, que se leve em consideração que as cidades são organismos em constante transformação. Não existe uma configuração estável, ideal, permanente, um momento quando se para e decreta: está pronta. Quando uma cidade atinge um grau de perfeição, segundo determinada visão estética, e para de mudar, é porque ela está morta. Vejam Paris, uma cidade que todos acham linda (eu, inclusive), mas que se transformou num grande museu ao ar livre em algumas de suas partes mais turísticas. É uma cidade pensada para ser admirada bovinamente por muitos, aproveitada plenamente por poucos e excludente para quem não pode pagar o preço do ingresso. Será que é este o objetivo que queremos alcançar? Nossas cidades são grandes textos para serem lidos, escritos por muitas mãos e reescritos diariamente por quem vive nelas. O maior crime que cometemos contra elas é de destruir seu tecido urbano por motivos torpes como nossa infindável ganância especulativa. O segundo maior crime que cometemos contra elas é de mumificar seu tecido urbano por motivos fúteis como nossas pequenas picuinhas estéticas. O gosto e a moda são notoriamente instáveis; e o que hoje é considerado uma linda ideia, amanhã pode ser motivo de constrangimento e desprezo. Vejam os muitos viadutos construídos a altíssimo custo nas décadas de 1960 e 1970, inaugurados com alarde por prefeitos e governadores, e que hoje se sonha em derrubar.

Nossas

cidades

são

grandes

textos para serem lidos, escritos por muitas mãos e reescritos diariamente

por

quem

vive

nelas

Por outro lado, aquilo que é considerado feio, inútil ou poluidor das delicadas sensibilidades estéticas, pode vir a ser percebido de outro modo. Nunca é demais lembrar que algumas opiniões abalizadas pediram que a Torre Eiffel fosse desmontada após a Exposição Universal de 1889 porque, segundo os padrões conservadores de sua época, ela enfeava a paisagem. Ou, para citar um exemplo mais próximo, que foi arrasado em pleno século 20 o Morro do Castelo, berço e núcleo fundador da cidade do Rio de Janeiro, por ser considerado velho e insalubre. Esta vergonhosa destruição, crime contra o patrimônio histórico inédito no resto do mundo, o Rio carregará como culpa para todo o sempre.


A próxima vez que você se deparar com políticos querendo se eleger em cima da

ideia de ‘cidade limpa’, pare e pense sobre o que isto quer dizer, realmente. Pense um pouco naquilo que se foi para sempre e naquilo que seria bom a gente preservar. Pare e pense no tipo de cidade em que a gente quer viver. Ordem e limpeza são coisas ótimas, mas estão longe de serem os valores mais elevados da humanidade. Muito do que eu e você consideramos arte, já foi tachado de sujeira, decadência e imoralidade por autoridades e poderes passados. Se dependesse da opinião estética de muita gente considerada esclarecida em outras épocas, nossa herança cultural seria bem menos diversa e plural. Pense nos escritos do Profeta Gentileza, maluco que ‘emporcalhava’ os lindos viadutos dos generais com crípticos dizeres pintados, e que hoje é objeto de documentação e resgate, graças à visão de pesquisadores, cineastas e instituições que reconheceram o valor cultural de seu trabalho. Quando as cidades estiverem totalmente livres dessas sujeiras e inutilidades, haverá quem sinta a sua falta. Conto-me entre estes. Vai ver, ainda tenho aspirações secretas a ser bonito e a viver numa cidade vistosa. Deixa essa coisa de ‘limpa e arrumada’ para as mais feinhas.

Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte. rafael105@oi.com.br


FAN TAS MA A3.... O FANTASMA SOBE AO PALCO por Astier Basílio

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P66

o

sobe ao palco

por Astier Basílio


Quando li que Al Pacino havia comprado, ele

mesmo, os direitos de A humilhação, a nova obra de Philip Roth, um prazer meu foi desmanchado:

o de escalar o elenco dos romances que leio.

Até tentei dar outro rosto ao protagonista do

romance, mas sempre o velho e bom Al interrompia minha imaginação com a realidade de que, daqui a dois anos, era ele que estaria dando vida àquilo. Sobrou escalar todo o restante do elenco. Aliás, imaginar quem interpretaria

Tecendo os escombros de um teatro em ruínas

quem em romances de Roth tem uma espécie de felicidade clandestina. É que o escritor dá de ombros para a sétima

arte. Disse que o romance estaria em extinção, que a

conversam. Melhor, algumas peças de teatro

imagem venceria as palavras. Perguntaram se gostava

contracenam.

de Woody Allen, outro artista que partilha de obsessões

nos últimos romances de Roth, em que os

judaicas e neuroses sexuais, Roth disse que não: “Ele é

protagonistas se deparam com a crueldade

simplista e idiota”. Já imaginei Woody Allen interpretando o

do

atormentado protagonista de Complexo de Portnoy.

história, se vê na iminência da perda de algo

Sempre achei que Philip Roth fosse uma espécie de Woody

muito precioso: o seu talento de ator. E, para

Allen com ácido muriático.

voltar a falar sobre as citações do romance, a

Em A humilhação alguns livros

Como

irremediável,

Alex,

vem

acontecendo

protagonista

da

constatação da perda de talento do consagrado e veterano ator se dá após a interpretação em dois papéis shakespearianos: Próspero, de A tempestade e, claro, a mais maldita das peças,

Macbeth.

A3.... O FANTASMA SOBE AO PALCO por Astier Basílio

P67


Talvez o que

a forma como eles se relacionam com o

haja em

destino (o rei usurpador Macbeth atropela e

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ao duque usurpado Próspero se molda), algo

comum em

que parece escapar às mãos de Alex, seguir

ambos seja

rota própria como os cegos desígnios de uma inferno de uma clínica psiquiátrica, Al Pacino recebe a visita

Ter um filho, como? Após zanzar pelos círculos do

tragédia na qual, sem poder representar, por de uma velha conhecida sua. Não tão velha assim. É que ele não crer mais em sua arte, o ator não veja a pôs nos braços. Até ajudou a escolher seu nome: Pegeen mais sentido em estar vivo.

Mike. Da peça Prodígio do mundo ocidental, do dramaturgo irlandês John M. Synge. A mãe da personagem, do romance de Roth, fazia parte do elenco de uma montagem deste texto quando estava grávida. Mas, no mesmo da atmosfera de tédio, é ela, agora quarentona, Pegeen, quem lhe bate a porta.

Outro ponto em comum nas narrativas

de Roth, lembro que isso também ocorre em

A n i m a l agonizante (Ben Kingsley, eu nunca o escolheria!),

é que temos o anúncio da desgraça, a corrosiva constatação disso e a crueldade atinge o melhor de seus requintes aqui, uma espécie de trégua, de apaziguamento, como se o horizonte fosse mudar de cor. É nesse ludíbrio que Roth escava o mais humano, e o mais patético, dos seus personagens. Ver Al Pacino na sala de espera de uma clínica especializada em reprodução, ouvindo de uma médica simpática os riscos de ter um filho àquela altura da vida:

há coisas que o cinema não consegue, que ficam restritas à literatura – o solilóquio do velho imaginando que agora, sim, sua humilhação teve fim.

A3.... O FANTASMA SOBE AO PALCO por Astier Basílio

É ela, a lésbica, quem o beija. É ela quem o leva pra cama. É ela que, após apontar com uma perspectiva no horizonte arruinado de Al Pacino, no dia seguinte em que ele estaria na clínica de reprodução, nem sequer dá brechas para ele chegar e dizer, querida, sabe onde estive ontem? É ela quem diz: não dá mais. Ela é quem diz: tchau.

Eu escalaria Scarlett Johansson.

Entre o narrar e o viver ou um final de um romance quase perfeito.


Ninguém

cita

impunemente.

Intempestiva, Pegeen (a de Syng, não a de Roth), mesmo sendo prometida a outro, aceita se casar com um estrangeiro, Mahon, que nunca viu antes, isso logo nas primeiras cenas da peça. Pesa nos ombros dele a acusação de ter matado o pai (sim, o povo irlandês é único do ocidente infenso à psicanálise). É com o mesmo ímpeto que, no fim do terceiro ato, ela

Um deles dá uma espécie de conferência sobre o ato de se matar. Para este papel, pequeno, eu escalaria Robert Duvall. Sem vontade de se enturmar mais – pista do que virá a acontecer – Al Pacino se imagina interpretando um papel. O papel de um internado clínico. É só assim, no papel de um outro, que o personagem encontra sentido na vida. Não só na vida. Na morte também.

decide não casar mais com o estranho. É que descobrem que o pai estava vivo. Desesperado de paixão, Mahon mata o pai a enxadadas na frente de todos, inclusive de Pegeen. Nem assim ela o aceita e diz: “aprendi que tem um abismo entre uma história de espantar e um crime sujo”. Está aí a chave para entender o tormento do ator que décadas atrás, Roth é muito irônico, interpretou esse mesmo papel, o de Mahon.

Ninguém

personagem

cita

impunemente.

Trepliov,

de A gaivota, de Tchekhov,

é um

fracassado. Trepliov queria ser um escritor de sucesso. Torna-se um.

Al Pacino pega a espingarda que

apareceu no segundo ato. A atriz que Trepliov amava definitivamente não o quer, quando se reencontram. Al Pacino vai interpretar seu último papel, arma em punho. Trepliov constata: está sozinho, tudo o que escreve é seco, nenhum afeto o conforta. Al Pacino e Trepliov sincronizam as falas. Uma mesma sombra

Lá atrás, no começo do romance, há uma cena

atravessa a cena. Um tiro é disparado. Cai o pano.

em que se mostram os internos na clínica. O

contar as tentativas de suicídio “ c o m o jovens que comentam esportes”.

passatempo deles é

X

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Astier jornalista.

Basílio

é

escritor

e

} x x x x

xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx xxxxx

astierbasilio13@hotmail.com

A3.... O FANTASMA SOBE AO PALCO por Astier Basílio

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A4 “Poesia Empoeirada” [ poema + ilustração por Julia Panadés ] escrevo poesia

que

meu pensamento

empoeirada das

a

71 A poeira me fará refém do que passa.

assim serei simples

Amante

Amiga

paisagem

Inútil

Julia Panadés é poeta e artista visual - juliapanades@gmail.com


A5 > PERGUNTA DA EDIÇÃO por cristhiano Aguiar

§

PERGUNTA DA EDIÇÃO QUE OBRA DE ARTE É O SEU SONÍFERO PREFERIDO?

72

Por mais que as pessoas discordem entre si e tenham opiniões diferentes sobre o mundo, o universo e tudo mais, todos nós, em algum momento, concordamos que dormir é uma coisa muito boa de fazer. No entanto, mesmo o singelo “dormir nos braços de Morfeu” pode causar culpas e paranoias. Quem nunca se sentiu culpado por ter caído no sono quando lia Aquele Clássico da Literatura Universal, ou Assistia Àquele Filme que Todo Mundo Deve Achar Genial? Por isso, perguntamos aos nossos entrevistados: “Que obra de arte é o seu sonífero preferido?” Confira abaixo as respostas e veja se o que eles contam já aconteceu com você.. Faço muito o uso da obra de arte como sonífero, sobretudo no sofá da sala com um bom edredom, pipoca e chocolate. No caso a obra de arte (filme) serve apenas para compor o ambiente e fortalecer o sonífero... É difícil escolher o preferido... Mas acho que posso citar De olhos bem Fechados de Stanley Kubrick, todos do Buñuel e David Lynch, que amo e já vi-dormi várias vezes!

produtora cultural

Bebel Kastrup -

This Time The Dream’s On Me, do Chet Baker Quartet. Não que a música maravilhosa deste disco seja sonífera. Mas é que, na época em que eu morava no estresse recifense, costumava me deitar ouvindo à cabeceira o sopro suave do trompetista e, deleitado, terminava me embalando. Ouço a qualquer hora, mas é a coisa mais desestressante que conheço, junto com certo ansiolítico, que deixei de usar como fazia eventualmente desde que vim morar com Iracema em Barra Grande! Homero Fonseca - escritor

Há sete anos sou mãe, portanto, há sete anos meu sono não é o mesmo. Desde que o Theo nasceu tenho o costume de cantar para ele dormir (apesar de ter a impressão de que sempre durmo antes). A música preferida para este momento até hoje é Coisas da vida da Rita Lee. Canto uma, duas, três vezes e de repente a canção vai perdendo o ritmo e o que era música se transforma em texto e as palavras se convertem em sono, até que não sei mais se estou cantando, falando ou dormindo. Esse estado de indefinição, de não se saber mais lá ou cá, junto com uma letra que diz “eu não tenho hora pra morrer, por isso sonho...” é

Letícia Bertagna - artista visual e editora da revista Investigação nº 11

realmente o meu sonífero favorito.

A Bossa nova me faz dormir bem. A sofisticação harmônica elaborada pelos pais da Bossa nova como Tom Jobim e João Gilberto, renovaram o samba e projetaram o ritmo para as terras do Tio Sam, dialogando principalmente com o jazz. Colocar Bossa nova no meu iPod é sinal que vou ter bons momentos de relax e tranquilidade até alcançar o REM. Amigos aqui da França do movimento Occitan (movimento que une os vários dialetos da língua occitan) dizem que a Bossa Nova é a trilha perfeita pra empurrar carrinho de compras no Supermercado. Voilá! “O pato, vinha cantando alegremente...quém, quém...” Merci! Silvério Pessoa - músico

O que me dá muito sono artístico é quando um fotógrafo diz que a fotografia é o registro da realidade. Antes dele terminar a frase, já peguei no sono! Adelaide Ivánova - fotógrafa e cronista


A5 > PERGUNTA DA EDIÇÃO por cristhiano Aguiar

Se a gente considerar ‘sonífero’ como o bálsamo que nos alivia da insônia, nos acompanha à cabeceira, nos relaxa e encanta, então, fico com meus livros de contos e de poemas, qualquer um que eu escolha naquela noite, como, por exemplo, o primoroso Macau, de Paulo Henriques Britto, ou os contos de Raymond Carver, estupendos. Agora, se ‘sonífero’ quer dizer aquilo que é bolorento e tedioso, lembro imediatamente de qualquer obra afetada, metida à besta, que teima em não se comunicar. Sobre essas... Ih! Esqueci... Me deu um sono... Adriana Dória

Se o Vik Muniz me faz dormir... a obra dele na abertura da novela da globo então... Paris, Texas, do Wim Wenders é melhor que Rivotril... o Pedro Mariano é um calmante fitoterápico, mas a música

Emiliano Freitas Arquiteto, ator, palhaço e cenógrafo

dele nem é obra de arte né.

Os filmes de Fellini me dão muito sono! Sei que tem todo um conceito na parada, e admiro isso... Mas que dá um sono da porra, dá.

China - músico

Matos - jornalista & editora da Revista Continente

O filme O Ano Passado em Marienbad de Alain Resnais. Há anos tento vê-lo inteiro e em todas as inúmeras vezes durmo em alguma parte. É bem possível até que juntando os fragmentos assistidos chegue ao filme completo, mas não garanto que na

acabei vendo por partes. Marisa Bentivegna

sequência correta. Mas um dia ainda consigo...

Lins - Designer

Rico

Geralmente tenho por perto literatura Clariceana, é como uma oração! Pesquiso a obra dela mesmo antes de entrar na universidade, é algo cumplice. Em artes visuais tenho pesquisado a obra de Leonilson, atualmente preparo uma exposição dele, e assim como Clarice é um complemento vital. Sempre durmo com eles! Bitú

crítico de arte

Cassundé - Curador e

Um sonífero para mim é ir ao cinema assistir a um filme e encontrar na verdade um programa de televisão, cheio daquelas regras “infalíveis” de mercado, todas enfadonhamente previsíveis, e ainda com as mesmas caras de sempre. A gente precisa se surpreender e a (boa) arte tem esta função.

Isabela Cribari Documentarista, produtora de cinema e diretora de cultura da Fundação Joaquim Nabuco O resto é sonífero e passatempo.

“SONHOS” do Kurosawa me fez dormir algumas vezes... tentei assistir inteiro, não rolou, depois me conformei quando entendi que era essa mesma a proposta da narrativa, te induzir ao sono, e

Designer

- Light

Por favor não me apedrejem em público, mas eu não gosto do Miró ( não o poeta Pernambucano,mas o artista plástico Espanhol). Já tive várias oportunidades de ver as obras dele, em vários locais e até no próprio museu do artista, mas a sua obra não me consegue suscitar qualquer tipo de sentimento a não ser indiferença, concretamente,

Márcio Laranjeiras - Designer gráfico e produtor cultural

acho mesmo chato.

Eu tinha um problema incrível com as páginas 19 dos livros. Passar delas era uma luta gigantesca. Não eram qualquer páginas, eram as 19. Mas, hoje em dia, nada me dá mais sono que aquela coisa obrigatória que separei justamente pra noite. Pode ser qualquer coisa - mas se coloquei na cabeceira, ferrou. Morre com um parágrafo por dia e olhe lá - vai competir com o que já mora ali e ficou pelo caminho. Pode ser a Piauí, um livro dez sobre Rock, biografia de Clarice Lispector, o Livro Budista do Nascer e do Morrer. Não adianta. Chegou ali, virou sonífero. E nem vou lembrar nada do que li no dia seguinte. Mariana Nepomuceno - Jornalista

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