revista eita! 3

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Narrando a pé a cidade “Terminologia Urbana do Recife” é o resultado de uma série de explorações a pé pela cidade do Recife. Um dos resultados do trabalho é apresentado nesse dicionário. Nós nos apropriamos assim de um formato de narração habitualmente acadêmico e genérico, para mostrar e contrapor um olhar cotidiano e mutante. Frequentemente, a cidade é interpretada por vozes que a observam à distância, de modo fugaz ou levando em consideração os interesses político-econômicos, gerando e promovendo assim interpretações manipuladas sobre o espaço público. Como resposta a essa leitura urbana equivocada, nós nos propusemos a narrar aqui a cidade a partir da proximidade e da presença. Entendemos que é necessário conhecer o território urbano através de uma experiência direta e pessoal, que supere o imaginário imposto e a leitura bidimensional do mapa. É necessário para isso “caminhar o mapa” para poder perceber e narrar a cidade tendo como ponto de partida a escala humana, física e emocional, pois esta é, afinal de contas, a base de interpretação mais rica e genuína que possuímos. Pau Faus e Diogo Todé Realizadores do workshop Terminologia Urbana do Recife


.Muro

1 Obstáculo artificial construído pelo homem para o isolar de algo ou alguém. 2 Artifício utilizado para demarcar propriedade, definir fronteiras. 3 Espaço publicitário. 4 Elemento essencial para grafiteiros. 5 Elemento gerador de sombra.

.Vende-se

1 Tudo. Absolutamente tudo está à venda: prédios quase destruídos na Mirueira. 2 O trator que se troca por um punhado de seu dinheiro na Dr. José Rufino. 3 Permanente estado de compra e venda nas ruas do Recife. 4 Aquilo que se aplica a placas para vendas de uma barraca de cachorro-quente na Rua da Saudade.

.Calçada

1 Local por onde não se anda, ou se anda com dificul dade. 2 Espaço público utilizado tal qual espaço privado 3 Local para comércio, secagem de roupa, oficina. 4 Loca para dormir. 5 Extensão da casa. 6 Mobiliário urbano. 7 Mostruário de material para pavimento. 8 Local para onde se deve olhar ao caminhar por Recife, a fim de esquivar-se dos obstáculos. 9 Terra de ninguém. 10 Dentro do mar Arrecife (do árabe “calçada que margeia a costa”).

.Gambiarra

1 Arranjo criativo para soluções temporárias que se tornam permanentes. Adaptação. 2 Costume frequente de adotar códigos abertos não patenteados. 3 Solução para a minimização orçamentária de cobranças.

.Mercado

1 Equipamento público ou privado que congrega pessoas que compram e vendem, que comem e bebem, que se encontram e desencontram. 2 Lugar multicompartimentado que oferece prestação de serviços. 3 Lugar onde se encontra mais facilmente tudo o que é produzido com rótulo de cultura popular e pessoas peculiares da cidade. 4 Na cidade do Recife, existem muitos formais ou informais. 5 O mercado organiza a feira.

.Favela

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1 Nome de habitações militares na guerra de Canudos, aplicado a um morro no Rio de Janeiro, e aplicado para todos os conjuntos de habitações subnormais do Brasil, incluindo estas áreas no Recife. 2 Assentamento humano espontâneo que lembra o aspecto desumano relativo ao subdesenvolvimento. 3 Comunidade informal em permanente estado efêmero. 4 Lugar de sobrevivência e invenção, com caminhos e surpresas.

.Pirataria

1 Difusão de informação humana sem CPF ou CNPJ. 2 Direito da não propriedade intelectual. 3 Do imaginário pirata, aquele que rouba. 4 Pode ser vista em pontos comerciais ilegais por toda a cidade, incluindo próximos a policiais.

.Bar

1 Cerveja, caldinho, ideias, música e amigos. Local de alegria e abstração alcoólica ao redor de pessoas queridas. Contém mobiliário que estimula a aproximação das pessoas. 2 Lugar que lembra uma farmácia, com líquidos que para dissolver problemas.


lo. al 7 e e r:

.Bicicleta

1 Principal meio de transporte da população de baixa renda, odiado por motoristas de carros ou ônibus. 2 Um veículo de baixo custo, ecológico, utilizado principalmente nas áreas planas do Recife. 3 Veículo para venda de diversos produtos. Vide Anuncicleta.

.Rua

1 Elemento multiuso. 2 Quando privado é igual a um mau lugar. 3 Podem-se criar eventos de rua por seu caráter de múltipla atividade. 4 Local de circulação de pessoas e mercadorias. Pequena extensão da casa.

.Dominó

1 Jogo de salão com peças de madeira, plástico ou marfim. 2 No Recife, o dominó é um território de socialização para seus moradores, em calçadas, próximos às ruas. 3 Sua queda é efeito em cadeia, em rede, e suas consequências são as que se notam no caos de Recife.

.Camelô

Vendedor ambulante de rua. Presente em todas as ruas dos centros urbanos subdesenvolvidos. Esta categoria está sempre sendo perseguida ou “oficializada” pelo poder público. Ações para a regulamentação da atividade aparentemente não demonstram surtir efeito. Um exemplo recente foi o fracasso do “camelódromo”. Desde os antigos mascates, pouca coisa mudou. Vide Dantas Barreto, Avenida.

.Mapa .Maresia

1 Cheiro ou atmosfera marítima. Geralmente úmida e com grande quantidade de sais marinhos. 2 O que corrói peças metálicas de uma casa à beira mar. 3 Cheiro de maconha no ar ou efeito de quem acaba de fumar.

1 Desenho cartográfico que tenta definir um território. 2 Através dele podemos nos desorientar. Mapa Mundi, Mapa astral, Mapa rodoviário, mapa do céu.

.Maré .Gelo baiano

Obstáculo de concreto e tinta lumirreflexiva. Limítrofe urbano utilizado na rolagem das ruas para disciplinar o trânsito. Em áreas de fluxo intenso pode assumir dimensões maiores, tornando-se um iceberg baiano.

1 Movimento dos níveis fluviais da cidade regulados pela lua. Modificação da vida, paisagem, cor, cheiro. 2 Determinante do trabalho dos pescadores. 3 Toma-se banho de canal quando a maré enche. 4 Renovação das águas. 5 Típica gíria: a maré não está pra peixe.


Te r m i n o l o g i a U r b a n a d o R e c i f e Pensar e agir sobre a trama urbana que configura a cidade do Recife. Eis operações que sempre estiveram presentes no SPA das Artes do Recife, e que mobilizaram os integrantes do Workshop que deu origem a essa colaboração para a Revista Eita! Ao longo de sua trajetória, o SPA vem se consolidando como o maior evento voltado para o Campo de Artes Visuais no Recife, repercutindo suas realizações para outros territórios. Antecipando a programação do SPA das Artes do Recife 2009, o Centro de Formação em Artes Visuais – CFAV realizou o Workshop Terminologia Urbana Recife, orientado pelo artista catalão Pau Faus e o artista recifense Diogo Todé entre os dias 24 de agosto e 03 de setembro. Durante o workshop, a cidade serviu de campo para expedições exploratórias e proposições artísticas, sendo inventariada e “dicionarizada”. Com essa iniciativa, o CFAV fomenta a investigação e os intercâmbios artísticos, ao mesmo tempo em que contribui para a apropriação e re-cognição da cidade e de suas redes de significado durante a realização de tais investigações. André Aquino Arte/educador e articulador do workshop

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“Quem você deixou de ser?” Esta é a pergunta da editora Débora Nascimento a jornalistas, escritores, músicos e artistas, cujas respostas o leitor pode conferir na página 60. Esta é a pergunta que a Eita! faz a si mesma, reafirmando a importância de pensar a cultura contemporânea com leveza, bom humor e sem medo de experimentar coisas novas. Editada pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, a revista Eita! é uma publicação da Gerência de Literatura e Editoração e do Centro de Design do Recife. Sua proposta consiste em articular, em um projeto gráfico que muda a cada edição, diversos segmentos artísticos. Aliando boniteza gráfica à excelência de conteúdo, o leitor encontrará, nesta terceira edição, astronautas visitando o rio Capibaribe, walkmans balzaquianos, receitas para fabricar zebras em casa, samambaias cósmicas, pinguins de geladeira, Papai Noel, ônibus voadores, entrevistas com personagens de importantes romances da ficção contemporânea em Pernambuco – que criaram vida especialmente para nossa revista – e até uma fotonovela noir! Texto e imagem tentam, em igual medida, mapear tendências e debater ideias: enquanto Anco Márcio se pergunta se performances e instalações podem ser chamadas de arte, acompanhamos o registro do trabalho do street performer Dimitri Gargamel, artista ainda fora do circuito “oficial” da arte. As ilustrações de Mauricio Nunes e Katalina Leão criam novos significados para os poemas de josé juva e Isa Feitosa, a ponto de dizermos que os poemas não estão na palavra, nem nas imagens – eles são a página. Estas e outras surpresas estão à sua espera! Eita: Estribeiras!, Interfluxo!, Tessitura!, Alti-tudo! Boa leitura, Os editores. Recife, 2009. Eita!, ano 2, número 3


João da Costa Bezerra Filho Milton Coelho Ruth Helena Vieira Renato L Luciana Félix Sandra Simone dos Santos Bruno Dida Maia Beto Rezende Heloísa Arcoverde de Morais Cristhiano Aguiar Renata Gamelo Débora Nascimento Karol Ferreira e Cristhiano Aguiar Gráfica FacForm Juin » Lucídio Leão e Sebba Cavalcante André Aquino, Arnaldo Siqueira, Célio Pontes, Cristhiano Aguiar, Débora Nascimento, Heloísa Arcoverde de Morais, Márcio Almeida, Mateus Sá, Raul Kawamura, Renata Gamelo, Karol Ferreira (estagiária) Colaboradores desta edição Textos: Anco Márcio Tenório Vieira, André Aquino, Cláudio Lacerda, Cristhiano Aguiar, Débora Nascimento, Diogo Todé, Fabiana Moraes, Hallina Beltrão, josé juva, Luciana Veras, Luiz Carlos Pinto, Marilena de Castro, Moema Cavalcanti, Pau Faus, Raísa Feitosa, Roberto Azoubel, Samarone Lima, Yellow, Zeca Viana Ilustrações: Ayodê França, Bruna Rafaella, Isabella Alves, Isadora Melo, Juin, Katalina Leão, Keops Ferraz, Laura Melo, Mauricio Nunes, Raoni Assis, Sebba Cavalcante, Yellow, Victor Zalma Fotografias: Beto Figueiroa, Déborah Guaraná, Javier Martínez, Marcelo Lyra, Moema Cavalcanti, Moema Moura, Osmário Marques Performance: Amanda Gabriel, Biagio, Dimitri Gargamel Fotonovela: Séphora Silva (direção de arte e cenografia), Hilda Torres (atriz)

Prefeito do Recife Vice-prefeito do Recife Secretária de Comunicação Secretário de Cultura Diretora Presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife Diretora Administrativo-Financeira Diretor de Desenvolvimento e Descentralização Cultural Diretor de Gestão e Equipamentos Culturais Gerência Operacional de Literatura e Editoração Coordenação editorial Centro de Design do Recife Jornalista responsável Revisão Impressão Projeto gráfico e capa Conselho editorial

ISSN 1983–1846 Direitos exclusivos desta edição reservados à Fundação de Cultura Cidade do Recife Cais do Apolo, 925, 15º andar. CEP 50030-230 Recife/PE O conteúdo das colaborações revistaeita.revistaeita@gmail.com não reflete necessariamente a opinião (81) 3232 2898 / 3232 2937 do conselho editorial da revista Eita! Impresso no Brasil – dezembro 2009

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Graduado em design/UFPE. Leciona disciplinas de animação na Faculadade AESO e coordena as oficinas de animação do projeto Cine SESI Cultural 2009

Ilustração Mauricio Nunes

Poeta, jornalista e artista visual. Mestrando em Teoria da Literatura pela UFPE

Texto josé juva

Estribeiras

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por uma possível “literatura mangue beat” Nem só de música vive o mangue beat: crônicas, manifestos, resenhas e blogues foram escritos por nomes importantes do movimento pernambucano A literatura sempre esteve presente em movimentos culturais. HisAté onde eu possa conhecer, acho que não. Mas toricamente temos vários exemplos de obras literárias e autores tem novidades por aqui. Uma tendência que que inspiraram ou que vieram atrelados aos movimentos culturais me parece muito boa é de um grupo chamado que ocorreram no mundo. Como desvincular o surrealismo do ‘A mula manca e a triste figura’. Eles fazem escritor André Breton? E o Romance da Pedra do Reino, do música com literatura, com a participação de Ariano Suassuna, do movimento Armorial? Como não juntar os poetas. Me pediram para gravar um CD onde pares Macunaíma/Modernismo brasileiro, On the Road/ leio o texto de Dom Quixote. Tem também Geração Beatnik, Panamérica/Tropicalismo? Os exemplos a Micheliny [Verunsky], que fez um CD e se multiplicam conforme aguçarmos nossas memórias. que é uma poeta muito forte, da cidade de Insinuando-se em direção a esta relação, a crítica Arcoverde, do sertão de Pernambuco, e que Heloisa Buarque de Hollanda, numa alusão à movimenagora está fazendo um mestrado na PUC de tação cultural que surgiu na cidade do Recife durante São Paulo. Sem dúvida aqui está se produzindo a década de 1990, lançou a pergunta que intituuma literatura subterrânea e boa. Nesse la este tópico em uma entrevista realizada com o campo, temos um contista chamado Carlos romancista Raimundo Carrero para o site Portal Magnata, que é muito bom e publica em Literal (publicada originalmente em 22/09/2004). blogs. Já que a imprensa não tem mais espaço Eis a resposta do autor: para contistas, para poetas, o caminho é esse mesmo. Eu também gosto de blog e até tenho um: www.aoredor.blogspot.com. É onde digo coisas, mando recados, converso sobre literatura.

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O depoimento de Carrero parece contrariar a hipotética regra. E, de fato, numa rápida genealogia que considere seus perfis, trajetórias e mesmo cronologia (o Mula Manca, por exemplo, inicia suas atividades apenas no início dos anos 2000), os casos citados pelo escritor não parecem caracterizar o que se poderia chamar de “literatura mangue beat”. No entanto, retomo de viés a questão posta por Buarque de Hollanda: existe algo que poderia? Do ponto de vista estritamente estético, marcado pela presença de características narrativas ou poéticas que se repetem e a define, podemos afirmar que não há uma “literatura mangue beat”. Porém, algumas produções literárias locais, heterogêneas como a cena musical da movimentação e heterodoxas no que diz respeito aos gêneros literários, insinuam-se positivamente para sua existência. Quais seriam elas então? Onde, afinal, se encontraria tal literatura?

Texto Roberto Azoubel

Jornalista e doutor em Letras pela PUC-Rio

Ilustração Sebba Cavalcante utilizando a fonte Manguebat 2

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Mais perguntas, mais respostas

atribuído às produções artístico-culturais nordestinas; 2) e veiculada, sobretudo, em suporte digital (traço também apontado nos exemplos do depoimento de Carrero). Para ilustrar essa literatura, quatro produções servem de exemplos. São Sem entrar na discussão um tanto anacrônica se letra de músielas: os sítios Manguetronic e o O Carapuceiro, a coluna ca e manifesto podem caracterizar ou não uma literatura (em Contraditório? e o blog Aurora Boulevard. caso afirmativo, as questões acima já estariam respondidas, Criado no ano de 1996 por h. d. Mabuse, webdesigner pois além de inúmeras letras, o Mangue produziu dois manifesresponsável pela face tecnológica do mangue, e pelo jornalista tos), quando formulou sua pergunta a Carrero, Heloisa Buarque e Dj Renato L, considerado o “ministro da informação” da de Hollanda não estava interessada neste antigo debate. A crímovimentação, o Manguetronic foi um site que teve como tica queria informações para além dele – afinal, estava diante principal objetivo disponibilizar programações de rádio concede um genuíno “homem de literatura”, um romancista. Chegou bidas exclusivamente para internet (uma iniciativa pioneira na a hora de tentar respondê-la. Para isso, o texto “Caranguejos América Latina). Além dessas programações, ele apresentava com cérebro”, primeiro manifesto do mangue e que foi encaras seções: MP3, com lançamentos e raridades musicais da tado no disco inaugural Da lama ao caos da banda Nação cena do Recife e de grupos independentes do Brasil e do Zumbi, traz uma passagem que aponta um caminho na busca mundo para baixar no referido formato-título; Top Ten, com desse “graal” literário: listagens ao estilo “dez mais” sobre os mais variados assuntos; e Verbum, com textos de vários colaboradores. Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado Essa última seção do espaço literário do site abrigava em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa contos, matérias, entrevistas (inclusive uma com o cie produção de ideias pop. O objetivo é engendrar tado Raimundo Carrero) e, sobretudo, críticas. Estas um “circuito energético”, capaz de conectar as boas tratavam de diversos temas e produções culturais vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação como shows, cenas, bandas, discos, autores e livros: de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica On the road, de Jack Kerouac; Mate-me, por enfiada na lama. favor: a história sem censura do punk, dos jornalistas americanos Legs McNeil e Gilliam McCain; Como É justamente deste “núcleo de pesquisa e produção de ideias pop” dois e dois são cinco, do jornalista Pedro Alexanque uma possível literatura mangue sairá. É através da produção dre Sanches; Fliperama sem creme, do crítico de arte escrita de alguns integrantes de tal núcleo que é possível, de certa Teixeira Coelho; Nova geografia da fome, do escritor e forma, concebê-la. Sem romances, poemas ou qualquer formato jornalista Xico Sá, etc. Entre os autores, encontram-se, por literário canônico, ela se expressa através de crônicas, pequenos exemplo, os nomes dos próprios criadores, dos compositores contos, críticas culturais, entre outros gêneros textuais, sendo Tom Zé e Fred Zeroquatro, do cientista político Túlio Velho marcada basicamente por duas características comuns: 1) ela Barreto e do contista Daniel Albuquerque. Apesar de ainda esé extremamente urbana, livrando-se do folclorismo habitual tar online (http://salu.cesar.org.br/manguetronic/jornal), o

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de vários autores mais ou menos conhecidos do grande público como Antônio Maria, Cláudio Tognolli, Evaldo Cabral de Mello, Fábio Victor, Fred Zeroquatro, Honono qual passou a postar apenas textos de sua autoria ré de Balzac, Bocage, Nelson Rodrigues, Wilson Freire, entre vários outros. O Carapuceiro teve duas de suas (em geral críticas culturais, muitas delas matérias que escrevia para o Diario de Pernambuco, órgão em que crônicas reproduzidas nas coletâneas As cem melhores crônicas brasileiras (Objetiva) e Boa Companhia trabalhou como jornalista). Sem novas postagens desde janeiro de 2009 – período que coincide com a nomea– Crônicas (Companhia das Letras), publicações imção e posse do responsável como secretário de cultura portantes sobre o gênero no cenário literário nacional. Assim como o Manguetronic, passou pela mesma da cidade do Recife –, o acervo do blog continua disponível aos leitores no endereço http://manmudança de formato e, em abril de 2005, virou A blog mantido apenas por Xico Sá, autor único guetronic.zip.net. produção Juntamente com o Manguetronic, O dos textos que são postados. Em plena atiCarapuceiro foi um dos websites que vidade (no endereço http://carapuceiro.zip. de textos do net), o blog atingiu a expressiva marca de integraram a chamada MangueNet, rede de movimento endereços eletrônicos ligados à movimentamais de 500.000 visitações, computadas até ção cultural do Recife. Concebido por Xico o mês de abril de 2008. mangue foi Sá, h. d. Mabuse e Adriana Vaz, teve sua Única das produções citadas que foi veimarcada pela primeira edição no ciberespaço em fevereiro culada, ainda que não exclusivamente, em de 1998 através de um link no sítio Manmaterial impresso, Contraditório? foi oritemática guebit (também ligado à referida rede e ginalmente uma coluna no jornal Diario de urbana, que trazia informações sobre a cena cultural Pernambuco escrita pelo músico Dj Dolores da cidade). Tal como o homônimo e igual(pseudônimo do artista Hélder Aragão). Pupostura blicada entre outubro de 2005 e o mesmo mente satírico jornal de crônicas que circosmopolita culou na capital pernambucana na primeira mês do ano seguinte, ela tinha a música metade do século XIX (escrito pelo pacomo eixo temático. No entanto, o autor e uso de dre Lopes Gama), O Carapuceiro tinha incursionava por outros ambientes do mundo da cultura, fazendo análises e comentários também no gênero a sua maior produção suporte sobre livros, escritores, filmes, etc. Suas crítextual. Em sua maior parte escritas por digital Xico Sá (e por seus heterônimos), as crôticas ao bairrismo pernambucano e à tradição local renderam polêmicas fervorosas que nicas tratavam de diversos assuntos como fizeram do espaço uma arena de debates política, gastronomia, sexo, cultura, entre os escritos são verdadeiros documentos para outros, dispostas em suas oito seções fia discussão sobre identidade cultural. Em paxas. Recebeu colaborações e compilou textos Manguetronic encerrou suas atividades como website e não recebe mais renovações. No segundo semestre de 2007, foi retomado em formato blog por Renato L,

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ralelo à publicação no periódico, o Dj Dolores disponibilizou os textos em um blog que, mesmo sem atualizações após o final da coluna, encontra-se ainda no ciberespaço (http://djdolores. blogspot.com). Título de uma das seções d’O Carapuceiro, o blog Aurora Boulevard foi criado em dezembro de 2006 pela escritora Adriana Vaz. O nome é uma referência à rua da Aurora, via pública do Recife conhecida por seu preservado casario colonial, onde mora a própria autora. Dos exemplos citados é o de perfil mais intimista, apresentando crônicas poéticas femininas que giram em torno do mundo sentimental de Miss Soledad, pseudônimo de Vaz. Os textos tomam constantemente a cidade do Recife como ambientação das situações descritas nos seus enredos, conforme mostra esta passagem: A ilha calma, densa, pesada, ainda quente, apesar das chuvas. Uma Recife arranca-coração! Sente-se uma aridez descomunal na alma. Apenas alguns segundos de contemplação da geografia da velha Recife é suficiente para provocar no sujeito uma dormência, um amolecimento nas entranhas. As pontes, lavadas pela chuva. O Rio Capibaribe num terral assombroso! As coisas funcionando com lentidão. As pessoas a passar pela Aurora sentindo o cheiro dos biscoitos maizena que a fábrica sopra às cinco da tarde. O cair da noite: na imensidão escura da cidade úmida, não se vê um pé de gente. As pessoas se guardam, a alegria foi toda gasta no verão momesco. Mas, afinal, pra quê taannnnnnta alegria? Um Maracatu, pesando não sei quantas toneladas: é assim que a cidade arrasta seus dias chuvosos, seu quase inverno...

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O Aurora Boulevard compila também citações retiradas do universo literário da responsável, revelado em trechos transcritos de autores como Hakim Bey, Alberto Morávia, William Blake, Cioran, Jorge Luís Borges, Carlos Drummond de Andrade, Walt Whitman e Jean Baudrillard. O blog continua em atividade no endereço http://auroraboulevard.zip.net.


À margem da própria cidade e do mundo É certo que o recorte que fiz nesta resenha tenha deixado de fora produções literárias ligadas ou, sobretudo, inspiradas pelo mangue. Também passei ao largo de livros e trabalhos de análises críticas (como as inúmeras dissertações e teses acadêmicas) que tomaram a recente movimentação cultural pernambucana como objeto de suas investigações. Neste campo, gostaria de destacar as publicações Do frevo ao manguebeat (Editora 34), do jornalista e crítico musical José Teles; Música e simbolização - manguebeat: contracultura em versão cabocla (Annablume), da pesquisadora Rejane Sá Markman; e Hibridismos musicais de Chico Science e Nação Zumbi

(Ateliê Editorial), do professor da Universidade Metodista de São Paulo Herom Vargas. São os limites de uma genealogia que primou por atores que tiveram grande importância para a formação e eclosão do mangue. Por fim, creio ser importante dizer que nenhuma das produções tomadas acima como exemplos de uma possível “literatura mangue beat” estabeleceu traços característicos básicos que pudessem cunhar este rótulo – nem o procuravam. Nenhuma delas reivindicou o título desta literatura. O que pode caracterizá-las como tal é o fato, como escrevi acima, de terem sido realizadas por pessoas que estavam diretamente ligadas à criação da cena cultural pernambucana. Pessoas que escreveram textos heterogêneos, tanto em relação aos gêneros, quanto aos temas, mas que traziam em comum a manifestação escrita de uma postura urbana, cosmopolita e periférica, representativa daqueles que sempre foram colocados à margem pelo processo sócio-histórico-cultural não só da própria cidade, como do país e, num panorama ainda mais largo, do mundo.


Como criar zebras em casa Texto e imagem Moema Cavalcanti

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Pernambucana, designer. Criou cenários e figurinos para teatro e mais de 1.200 capas de livro

Você vai precisar de: 1 (um) por-de-sol decente Algumas janelas com persianas em frente ao por-do-sol 1 (uma) câmera razoável 300 gramas de sensibilidade 1/2 quilo de far niente Paciência o quanto baste Un certain regard


Modo de fazer Primeiro Passo Aguarde o momento exato em que o sol estiver bem vermelho.

Segundo Passo Regule as persianas. Let the sunshine in.

Terceiro Passo Adicione rapidamente os outros ingredientes pela ordem. Caso necessário, coloque um pouco mais de sensibilidade para dar o ponto.

Finalização Leve ao photoshop por cerca de vinte minutos. As zebras aparecerão como por encanto. Divirta-se. Estribeiras

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Texto Cristhiano Aguiar Cristhiano Aguiar é escritor, editor e crítico literário

Ilustração Laura Melo e Victor Zalma Laura Melo estuda artes plásticas, se mela de tinta e faz parte do coletivo 3x4 Victor Zalma é artista e ilustrador

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Entrevistas com importantes personagens da ficção pernambucana revelam outras histórias de suas “vidas”


ISMAEL

Ismael, você é descendente de patriarcas senhores de terra e, ao mesmo tempo, dos índios Kanela; está ligado ao sertão dos Inhamuns, mas viveu boa parte da vida no Maranhão e na Noruega... Como é conciliar tudo isso? Minha paternidade é o eixo do meu conflito. Natan, meu suposto pai, não me reconhece como filho. Fui adotado pelo avô Raimundo Caetano, o pai de Natan e proprietário da fazenda Galiléia. Mesmo assim a família não me reconhece. Como no judaísmo, de que o avô Caetano tanto se orgulha, a filiação é matrilinear, só tenho certeza de ser filho de uma índia Kanela. Também não possuo lugar, sou estranho a tudo. Nasci em Barra do Corda, no Maranhão, entre os índios Kanela e vivi um tempo entre os Rego Castro, na Galiléia, no sertão cearense. Depois voltei aos Kanela e fui levado para a Noruega, de onde retornei ao Brasil e depois novamente à Noruega. Sou de uma geração que não pertence a ninguém, nem a lugar nenhum. Isso não se concilia. E o que significa, para você, a palavra sertão? Um lugar supostamente meu, pois nele vive o homem que imagino ser o pai. Um lugar que aprendi a amar e a desejar como minha Terra Prometida.

Esta entrevista aconteceu há alguns anos, quando estudei na Escola de Cinema do Semiárido. Meu trabalho de conclusão de curso seria um documentário sobre algumas fazendas em decadência do sertão do Inhamuns, no Ceará. Orientando o meu trabalho, dois amigos que à época trabalhavam com cinema: Ronaldo Correia de Brito e Francisco de Assis Lima. Nosso plano inicial, que seria depois copiado por Eduardo Coutinho no seu documentário O fim e o princípio, consistia em chegar sem um roteiro pré-definido nas fazendas e improvisar as filmagens. A primeira e única fazenda foi Galiléia. O filme nunca foi concluído, mas é provável que a viagem tenha inspirado Ronaldo a escrever o premiado romance Galiléia, publicado pela editora Alfaguara. Das entrevistas que fizemos lá, nenhuma me marcou tanto quanto a de Ismael. A presença de algumas pessoas nos causa um automático desconforto. Era o caso dele. Sempre franzino, tímido e pudico, nunca me senti à vontade perto de homens como ele, musculosos, passionais, mulherengos. Ismael intimidava: muitos o chamariam de “malencarado”. No entanto, ele se revelou uma pessoa sensível, cuja solidão me comoveu. Há uma tragédia domesticada em Ismael? Aqui vai um trecho da nossa conversa:

Quais são tuas lembranças mais fortes daqui, da fazenda Galiléia? As mais tardias são do carinho do avô Caetano e do ódio dos outros familiares. A amizade com o primo Adonias e o desprezo de meus irmãos Elias e Davi. A avó Maria Raquel nunca olhou no meu rosto. Lembro o meu desespero para garantir o lugar de filho na Galiléia e de minha vingança incestuosa contra o pai, fazendo sexo com a antiga esposa dele. E por fim o exílio, a proscrição. Em qualquer lugar onde estive, fui sempre um proscrito. É minha maldição de bastardo. Ouvindo uma conversa entre você e Adonias, lembro de você ter falado que “A Noruega é um sertão a menos trinta graus”. Como assim? Porque as pessoas terminam sendo sempre as mesmas, independente da latitude. Na Noruega, os rostos são queimados e envelhecidos pela exposição ao gelo e ao frio, da mesma maneira que são queimados e envelhecidos no sertão por conta do sol, do vento e da secura do clima. O norueguês é solitário, fala pouco, vive em silêncio como o sertanejo. Mas, é claro, me refiro a homens que talvez já não mais existam.

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BIBIU Bibiu, o senhor concordou com a biografia que o jornalista Homero Fonseca escreveu sobre sua pessoa? É verdade que o processou por “danos imorais”? O dr. Homero Fonseca esteve várias vezes aqui em casa. Sentava nesse mesmo tamborete que o senhor está sentado, prosava muito comigo. Escreveu não sei quantos cadernos. Quando li o livro, vi que ele mentiu muito, inventou muita coisa a meu respeito. Mas o que se há de fazer, não é? Uma moça, pesquisadora da universidade, veio aqui um dia e me esculachou, com base no que leu ali. Disse que eu era racista e machista e mais um monte de coisa que tá na moda hoje. Mas eu pergunto: em 1940, nos cafundós do Sertão, tinha alguma feminista? E não é verdade que ainda hoje o brasileiro não elegeu nenhum crioulo para presidência da República? Até os americanos, que nem bebiam água no mesmo bebedouro dos pretos, elegeram o Obama. Mas aqui nada. Então tem essas coisas. No livro do dr. Homero Fonseca também está que eu era contra o comunismo. Quase acabo uma amizade fina porque o camarada era chegado a essas ideias. Mas a gente crescia ouvindo que os comunistas matavam até criança. Ora, e hoje o comunismo não está tão prestigiado assim. Mas não vou me queixar do ilustre escritor, não. Ele me deu uma graninha que me permitiu comprar meus cachetes para reumatismo. E eu, que depois de ter sido muito celebrado andava meio esquecido, voltei a ficar famoso: o Fantástico fez matéria comigo, dei entrevistas à imprensa escrita, falada e televisada até do estrangeiro. Esse negócio de processo não é comigo, não.

Uma das minhas lembranças mais antigas, de quando eu ainda morava em Campina Grande, são os passeios com meu avô materno no centro da cidade. Ele me comprava gibis, bombons Xaxá, pirulitos Zorro e folhetos de cordel. Às vezes, íamos à feira e a maior atração do lugar era um senhor que falava mais que o homem da cobra, mungangueiro e prezepeiro; ganhava a vida contando, nas feiras, as histórias que passavam nos cinemas. Qual não foi minha surpresa quando, ao ler a biografia deste homem chamado Bibiu, escrita por Homero Fonseca e publicada pela editora Record sob o título de Roliúde, reconheci seu protagonista como aquele personagem que marcou minha infância. “Então tu é neto de Mottinha?”, esse homem quase centenário perguntou, enquanto me abraçava e contava Lendo Roliúde, fiquei impressionado com a quanti“as aventuras com Mottinha nos cabarés, nos tempos do seu Manoel dade de mulher que o senhor namorou. Como se Motta!”. Fui muito bem-recebido em sua casa – cheia de cachorros conquista uma mulher? Rapaz, não venha greiar comigo, não. Tô perto de completar 100 e passarinhos – na cidade de Caruaru e ri muito com os causos que anos como aquele arquiteto que construiu Brasília e que eu conheci Bibiu, mão tremida e olhinhos vivazes, me contava. Não abrimos uma vez numa farra no Rio de Janeiro, aí por 1963, e caímos na mão da cachacinha, enquanto Bibiu fazia questão de me mostrar gandaia. Mas esse troço de conquistar mulher não tem cartilha, não. as fotos que tirou com Pelé, Roberto Carlos e o presidente Lula. Mulher gosta mesmo é de pabulagem. Se você canta de galo, ou porque tem dinheiro, ou porque é famoso, ou porque tem poder – se for “Paraíba, tu e teu avô só têm um defeito: são alvirubros!”, me disse as três coisas juntas, então é um desmantelo – as mulheres caem Bibiu, ao se despedir. 16

direitinho. Mas cada qual tem seu jeito e eu não vou lhe ensinar o pulo do gato, rapaz, que já vi que você é mesmo é um sonso.


Conversei uma vez com Hermilo Borba Filho e ele me contou que lá em Manaus havia um contador de filmes igual ao senhor: ia de canoa de cidade em cidade e ganhava a vida contando pro povo as histórias que via no cinema. O senhor conheceu esse concorrente? Ouvi falar nessa história, mas garanto que deve ser outra invenção do dr. Homero Fonseca. Ou então, se existiu mesmo esse caboclo, ele deve de ter ouvido falar nas minhas façanhas, que eram contadas nos quatro cantos do mundo, e deu de me imitar, seja para ganhar dinheiro seja para vadiar com as índias da Amazônia. Mas posso lhe garantir, sem falsa modéstia: Bibiu só existe um e ele é essa pessoa exata que está na sua presença nesse momento, vivo e se bulindo. Quais são seus filmes preferidos? Já deu algum “branco” na hora de contar um filme? E quem é mais bonito: Bibiu ou Marlon Brando? Camarada, desde pequeno me engracei por cinema, trem, folheto de cordel e mulher mimosa. E não tenho assim uma condição de preferência. Gosto de faroeste, aventura, safadeza, romântico (mais ou menos), kung fu e histórico. Um que eu gosto em especial é a Paixão de Cristo, pelas altas lições morais e religiosas, embora, quando fui contar lá no Pajeú, tive que botar uma onça no meio pra agradar o coronel Patu – que Deus o tenha – e que só gostava de filme com onça. Nunca me deu branco nenhum, porque tenho boa memória, mas se eu esquecesse algum pedaço não tinha problema, eu inventava ali na hora. … Marlon Brando não é aquele que fez Viva Zapata? Quem sabe dizer quem era mais bonito (que agora tô velho e encarquilhado) são as moças. Mas nunca me preocupei em me comparar com ele, nem mesmo com Rodolfo Valentino ou esse Brad Pitt. Só sei que sempre fui muito bem tratado pelo departamento feminino e, em troca, sempre tratei muito bem as damas, fossem elas solteiras, casadas, viúvas ou acompanhantes, como se diz hoje.

M AT H E U S

Esta foi a primeira e única incursão minha no jornalismo policial. Na época, Matheus aguardava julgamento no Aníbal Bruno. Todos temiam que ele fosse morto pelos presos, pois fora acusado de estuprar a mãe e a irmã e assassiná-las – sim, foi um crime que chocou a sociedade pernambucana na época. Mas descobri que Matheus era visto como um tipo de santo, um santo do assassinato. Só esta mística explica que ninguém quisesse dividir-lhe uma cela. Imaginei, aliás, sua cela cheia de desenhos, ou de cruzes, ou de Bíblias espalhadas. Não. Só encontrei um cubículo recém-pintado de branco, algumas revistas Manchete velhas, empilhadas em um dos cantos da cela, e Matheus e seu olhar de santo. Talvez tenha sido isso que fez Raimundo Carrero escrever o romance O amor não tem bons sentimentos, editado pela Iluminuras, baseado na cobertura jornalística do crime. Quando li o romance, quase ouvia a voz infantilizada de Matheus – uma pureza azedada, que me fez sair do presídio numa febre de crise de fé. Interfluxo

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A polícia diz que o senhor assassinou sua mãe e sua irmã. É verdade? O que aconteceu mesmo? Por que o senhor diz que já morreu? Tenho lembranças confusas, não sei bem, não sei. Talvez, sim. Quem sabe, não é? Assim de repente vejo os policiais transformados em cachorros na beira do rio, por causa de minha mãe. Estavam me procurando. Mas Biba espirrou e eles saíram correndo. Possivelmente. Foi minha mãe Dolores que me matou com um refresco envenenado. Acredita em Deus? Tem medo Dele? Acredito sincera e profundamente em Deus. Em Jesus Cristo e no Divino Espírito Santo. Nossa Senhora é minha protetora, assim como Santo Antônio. Deus não quer ninguém com medo, mas com respeito. E Nele, sim, Nele o “Amor tem bons sentimentos”. Por que o senhor diz que está magoado com o mundo? Porque ele me causa dores e aos meus semelhantes. O mundo não merece tanta agonia, e minha cabeça sofre tanto. Sinto muita tristeza. E nostalgia. Fico pensando que a gente podia viver num Paraíso e os homens teimam em queimar o figurino. O senhor fala muito de uma parente sua, Tia Guilhermina. Poderia falar um pouco mais dela? Tia Guilhermina era um ser real, embora eu a conhecesse superficialmente. Não tinha aquelas manias de cantora, mas eu gostei tanto que fiz várias cenas. Ela andava apressadinha, mas tinha juízo, embora de longe não parecesse. Uma pessoa honrada e boa. Gostava muito do mundo dela. E gostaria que ela me desse banho.

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LÚ C I O GRAUMANN

Graumann, tenho a impressão de que você é um dos últimos nomes de uma espécie de “linhagem desconhecida” da literatura brasileira, da qual faz parte, por exemplo, Lúcio Cardoso. O que você acha? Eu consideraria uma grande honra participar dessa linhagem de “laterais” (outro nome para “desconhecidos” ou “quase desconhecidos”) que, na verdade, deveriam transitar, por justiça, no mainstream de nossa problemática literatura. Problemática, porque ela teve muitos caminhos partidos, desviados, torcidos em acidentes de percurso (um exemplo: a força nefasta dos “regionalismos”, no Nordeste e no Sul), e ainda agora segue na busca do seu rosto em branco, ou daquela face real que ainda é uma lacuna lentamente preenchendo-se de alguns acertos prejudicados por frequentes equívocos. Você poderia citar um “acerto” e um “equívoco”, na sua opinião? Crônica da casa assassinada, A menina morta, Confissões de meu tio Gonzaga foram acertos plenos e indiscutí-

O gaúcho Lúcio Graumann, o até agora único Prêmio Nobel de Literatura concedido a um escritor brasileiro, já estava muito doente quando o conheci, refugiado em uma praia pouco frequentada da Paraíba. O nosso encontro aconteceu duas semanas antes do anúncio do Nobel. Eu estudava a sua obra, principalmente o inusitado e pouco conhecido O livro das montanhas da lua, como bolsista de iniciação científica do curso de Letras da UFPE. Minha orientadora, Sônia Ramalho, era amiga íntima de Graumann e facilitou o nosso contato. Encontrei-o numa rede, na pousada na qual se hospedava. Não descansava como um turista: magro, seu corpo estava largado, mal rabiscado, torto. Com saúde, Graumann parecia com Jinkings, o meu avô paterno, já falecido; ambos eram serenos. Mas ali, Graumann era apenas um escritor esquecido; uma excentricidade de um país de intelectuais banguelas; um parente desconhecido. Não foi uma entrevista fácil. Quando faleceu, no dia 02 de Novembro de 2001, por complicações advindas de um câncer, no Hospital Português, no Recife, perdemos uma das mais singulares vozes literárias dos últimos 25 anos. Se o leitor da Eita! quiser saber mais, recomendo a leitura de O grau Graumann, do pernambucano Fernando Monteiro, editado pela editora Globo.

veis, modernamente falando (depois de Machado, de Pompéia e outros talentos de um grande início)... Quanto a um “equívoco”, me deixe em paz – que eu já tenho inimigos demais, meu rapaz. Alguns pessoas que lhe conhecem, como Carpinejar, Milton Ribeiro e Mauro Portela, me confessaram que você pensa em desistir da literatura. Por quê? Penso, sim. Estou me sentindo como uma piscina vazia debaixo das luas de janeiro. E a situação não me aflige, pelo contrário, até me agrada. Talvez eu esteja mais doente do que os médicos imaginam (com a proverbial falta de imaginação deles). O que acha das academias de letras e outras organizações de escritores do gênero? Aceitaria fazer parte de alguma delas? Não, nunca aceitaria. Escrever é uma danação. Se você aceitar a ideia de uma “academia de danados” (no sentido dostoievskiano da palavra) como algo normal, etc., então essa seria a justa Academia de Escritores. Um escritor é um possesso sob controle, transitando entre as pessoas comuns como um ser igual aos outros. Mas, ele não é igual, nenhuma artista o é – refiro-me aos verdadeiros artistas, evidentemente –, uma vez que os artistas que merecem tal nome são seres de exceção, criaturas endemoniadas que, nas suas obras, vampirizam a próprio ser a fim de expor esse terrível incômodo – a alma – como uma pele virada pelo avesso para secar ao sol. Interfluxo

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Texto Luiz Carlos Pinto Jornalista e doutorando em sociologia

Ilustração Isabella Alves e Isadora Melo Estudantes de design/UFPE. Juntas com o grupo Estampa dos Pampas fazem coisas gráficas desde 2008

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Lançado há trinta anos, o walkman trouxe mudanças comportamentais na forma de se ouvir música que transformariam a indústria fonográfica

Ah, o walkman... Quantos casais não se deram de presentes cassetes novos com listas de músicas como declaração de amor? Quantos enamorados elaboraram listas carinhosas? Quantas listas em cassete passaram anos para serem encontradas e ouvidas, na longa distância que separa o fundo da estante e o acaso da mão que encontra? Quantos cassetes arquitetados não serviram como cartão de visitas: oi, eu sou este sujeito, que ouve essas coisas e tem um “três em um”… O equipamento não foi o primeiro a permitir se escutar música em movimento. Desde a década de 1950 já havia receptores de rádio suficientemente pequenos para permitir isso. O que o Sony Walkman permitiu foi bem além da mera experiência de música descolada de um ambiente estável, o que já teria impacto muito grande - até o advento das tecnologias que permitiam o usufruto da música de forma totalmente individualizada, a experiência musical era necessariamente coletiva, a não ser, é claro, que se desse em uma situação de isolamento total. O que o walkman permitiu foi uma das primeiras experiências de edição de listas de música. Pela primeira vez era possível juntar pedaços de álbuns diferentes ao gosto do usuário e ouvi-los... Em movimento! Essa mudança parece muito evidente e sem maiores consequências, mas ela implicava no fato de que, com um aparelho “3 em 1”, qualquer sujeito podia se descolar também do padrão de experiência musical ditado pela indústria.

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Na prática, a forma mais comum de fazer isso era gravar no cassete as faixas dos long players de acordo com o gosto e a intenção de quem pretendia ouvir ou dum fiel namorado, talvez de um promissor amor. Claro, também era possível gravar do rádio. Na verdade, essa forma descolada e deslocada de apreciar música que veio com o walkman não foi prevista pela indústria da produção de música, que teve que se adaptar - a indústria do entretenimento também chegou a vender álbuns no formato de cassete (lembro que o único cassete nesse formato que comprei foi o álbum Tudo ao mesmo tempo agora, dos Titãs). E por causa desse uso imprevisto, também o walkman foi considerado uma tecnologia que permitia desrespeitar os inalienáveis e eternos direitos autorais. Ou seja, os marcos regulatórios que garantem o monopólio de exploração sobre a propriedade imaterial por parte das empresas do setor de entretenimento, porque é isso que são tais legislações – tanto na forma da common law, europeia; quanto em sua forma americana. Hoje as tecnologias consideradas nocivas ao sacrossanto direito autoral são as redes P2P, os torrents, a navegação anônima e a criptografia – a não ser que seja usada pelas pessoas certas. Nesse sentido, o invento do engenheiro japonês Nobutoshi Kihara é um capítulo importante no longo processo pelo qual vem passando a produção e o usufruto dos bens imateriais. Processo esse em que informação, cultura e conhecimento se desprendem de suportes físicos para serem usufruídos de forma mais autônoma. Tecnologias, como o walkman em sua época, permitem subverter as formas padronizadas de acesso a tais bens imateriais. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento dessas tecnologias faz parte do complexo processo de desenvolvimento do próprio capitalismo. De modo que o século XX, o século das tecnologias que fizeram com que as indústrias fonográfica, do rádio, da TV, do cinema, dos conteúdos digitais se tornassem uma das principais fontes de riqueza, é o mesmo século que viu o desenvolvimento das tecnologias que evidenciam o caráter imaterial dessa mesma riqueza.

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O que o walkman permitiu foi uma das primeiras experiências de edição de listas de música pelo consumidor


Compre um carro, se puder. Um bem material: use-o como bem entender. Mude a cor da lataria, altere pneus, calibragem do motor, espessura dos vidros. Chame os amigos para passear, empreste o carro, sugira novos usos para seu possante. A relação entre o vendedor-produtor e o consumidor não impõe a este último um modelo único. Compre um CD, se quiser. Um suporte de um bem imaterial: use-o como a gravadora previu. Depois, se cansar, procure alterar as formas de consumir a música contida no CD. Solicite ajuda. Copie o conteúdo e disponibilize em público. Peça sugestões, acréscimos de ruídos, reduções de vibrações, alterações de frequências, procure por colagens, distorça, deixe a faixatítulo parecida com o seu gosto pessoal ou de um certo grupo de pessoas a quem você queira agradar. Distribua o resultado de seu trabalho – e das pessoas eventualmente envolvidas. Você encontrará problemas. Por quê? Porque nesse terreno o capitalismo se preparou para que a relação entre o vendedorprodutor e o consumidor não se extinga – ao contrário do que acontece na nossa relação com bens materiais. O consumo dos bens imateriais é, mesmo depois de pago, subordinado a determinadas regras e restrições. Entretanto, por não sofrer de escassez, tanto sua compra original, quanto aquilo que foi modificado, podem ser reproduzidos sem desgaste do original, sem perda. Com as redes digitais, o custo para a reprodução do CD original e das músicas alteradas será equivalente ao custo da conexão. O incentivo às diversas tecnologias que permitem maior capacidade de manipulação de bens imateriais, entre eles o walkman; o estímulo aos processos, serviços e produtos de digitalização; a sedimentação de redes informacionais onde escoar conteúdos digitais e a aceleração do ritmo dos ciclos de reprodução do capital foram guiadas por um argumento sedutor: o aumento dos lucros. É esse o grande problema do capitalismo informacional: esses avanços desencadearam consequências imprevistas. Leia mais: http://www.locoporti.blog.br http://www.lastfm.com.br/user/Luiz35/ http://dialogosconsoantes.blogspot.com/

Entre elas, os bens imaterias se evidenciaram (se evidenciam), como tal. A emergência de instâncias produtivas e consumidoras de informação, cultura e conhecimento fora do mercado é, em última instância, um fruto bem-vindo daquilo que não estava em cena – daquilo que era, portanto, obsceno. Um novo ambiente técnico-informacional está apenas se desenhando. Nele, as vozes mais otimistas veem a possibilidade de que a produção imaterial gradativa e inelutavelmente seja associada ao bem comum, com mais benefícios para todos. Outros, expectativos, preparam-se há anos para a guerra que essa possibilidade oferece. Outros ainda, pessimistas, descreem que a história se repete como farsa, como sugeriu Marx. E preveem não a abertura ao bem comum, mas a insidiosa repetição dos cercamentos – desta vez não dos campos públicos de pastagem animal do período feudal, mas das virtuosas possibilidades do saber. Para muitos, é apenas o walkman fazendo 30 anos.

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UMA ARTE QUE NÃO OUSA DIZER SEU NOME

Um artista plástico convida você e uns amigos para passear pelo rio Capibaribe, a bordo de um catamarã. Como diversão, uma orquestra de frevo e a leitura de um texto retirado da internet. Findo o “recreio”, você descobre que participara de uma performance artística. A explicação do cicerone é que aquele passeio (que fora selecionado por uma comissão curadora) não só era Arte, como se inscrevia no campo das artes plásticas. Certamente, enquanto a performance era explicada, você e os demais convidados deviam estar perguntando onde residia a diferença entre aquele passeio de catamarã e os que são cotidianamente realizados pela empresa proprietária dessa embarcação de recreio (e, não raras vezes, também ao som de uma orquestra de frevo). Pois sendo aquela uma obra de Arte que se confunde com gestos e atos ordinários, que aos olhos de um transeunte

Até que ponto performances, vídeo-arte e instalações podem ser chamadas de artes plásticas? Texto Anco Márcio Tenório Vieira Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE

Performance Dimitri Gargamel Artista gráfico e street performer Fotografia Marcelo Lyra Fotógrafo da Agência Olho Nu Fotografia e colaborador do coletivo Santo Lima

em nada difere das suas ações cotidianas ou das que ele observa no mundo que o cerca, qual foi, então, a base epistemológica que a curadoria lançou mão para contemplar essa ou aquela proposta e, por extensão, definir a qualidade daquele evento transitório e o grau de satisfação dos seus resultados? Creio que as perguntas acima apontam duas reflexões distintas. Primeira, sendo a Arte uma busca por traduzir o mundo em linguagem (lembrando que o próprio cotidiano já está saturado de linguagens), mas não uma linguagem que apreenda o real pela via da semelhança, como uma simples cópia, porém pelo caminho do fingimento e da diferença (daí Magritte afirmar que o cachimbo que pintara não era um cachimbo —

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“Ceci n’est pas une pipe” —, pois sua representação pictórica só serve para ser apreciada e não para aspirar tabaco), como julgar uma ação que em nada se diferencia de um gesto pedestre? Onde está o limite entre as ações cotidianas e a linguagem artística? Segunda: sendo essa performance acatada como uma manifestação das artes plásticas, como então podemos aplicar os procedimentos formais e de linguagem que nos valemos para abordar a pintura, a gravura, a escultura e o desenho, quando nos voltamos a uma ação performáDenominar tica? Isto é, como julgar determinados uma performance procedimentos que são específicos das artes plásticas (a exemplo dos matizes como inscrita cromáticos de uma dada cor e seus no campo contrates; a contextura do traço e da das artes plásticas tinta sobre a superfície contínua da tela; os contornos leves ou espessos sobre não é o mesmo uma imagem; o uso ou não do esboço que continuar como base à pintura; a composição e a chamando o cinema proporcionalidade harmônicas das parde teatro? tes constituintes da obra; a textura volumétrica das esculturas) e estendê-los a fim de avaliar uma performance, que encerra uma linguagem completamente diversa: o uso do corpo como um “objeto” de criações sensoriais, i. é. o corpo não apenas como um meio, mas como a própria forma em si — seja como “objeto” que emana ações (gestos corriqueiros ou dramatizados, sons, uso da respiração, movimentos lentos ou abruptos...), seja como “objeto” que adiciona em si outros “objetos” (roupas, maquiagens, adereços dos mais diversos...)?

Confesso que a primeira reflexão — o estatuto artístico da ação (trata-se ou não de uma obra de Arte?) — é complexa demais para ser discorrida no curto espaço que dispomos. Além do mais acredito que, grosso modo, Arte — sendo em si uma convenção — é tudo que um artista afirma sê-lo, indiferente da sua qualidade estética. E isso serve tanto em relação a uma pintura de Giotto, quanto para um ready-made realizado por Marcel Duchamp. Logo, não me interessa aqui colocar em discussão o estatuto artístico da ação que foi realizada sobre o rio Capibaribe, e sim como o autor da ação performática inscreve — e, por extensão, justifica — seu objeto no campo das artes plásticas – como podemos epistemologicamente analisá-la e julgá-la. Vejamos: quando na década de 1910, Duchamp começa a ressignificar objetos triviais, de uso transitório, dando-lhes o estatuto de Arte, ele está levando ao limite um processo que, no campo das artes plásticas, começara com os impressionistas: evidenciar a forma e, com ela, a linguagem, em detrimento do tema; substituir temas tidos como nobres por imagens do cotidiano. Com seus ready-made, Duchamp empareda os princípios da Estética e o conceito de Belo ao nos mostrar que é antes o discurso que envolve o objeto (e não ele em si) que o torna uma peça artística. A grandeza de uma obra não está tanto no modo como o artista manipula a linguagem, mas no que está fora da própria obra: a discursividade que a cerca. “A escolha do ready-made é sempre baseada na indiferença visual, e ao mesmo tempo, numa ausência total de bom ou mau gosto”, dizia Marcel Duchamp. Quanto mais banalizado é um objeto, mais ele se torna invisível aos nossos olhos. Deslocá-lo de espaços, desfuncionalizá-lo do seu uso cotidiano — logo, de campos discursivos — nos leva a perceber a beleza de suas formas e ver que o mesmo princípio (inclusive o da matéria-prima: metal, porcelana, vidro) que regeu a confecção de uma escultura como a Venus de Milus, também

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Duchamp parte do princípio de que cada objeto — foi aplicado na execução de uma peça de mictório ou de uma indiferente da sua utilidade prática e mercadológica — roda de bicicleta. encerra regras formais que, em razão da sua função, passam Se o princípio da confecção é o mesmo, os procedimentos desapercebidos por aqueles que o consomem. No caso da formais para julgá-los também não foram alterados: tanto a Venus de Milus quanto o ready-made eram objetos esperformance, a “experiência de vida” substitui tanto a ideia do “objeto encontrado” (ready-made), quanto a denúncia cultóricos, tridimensionais, constituídos por uma determinada volumetria, textura, simetria, proporcionalidade e harmonia; promovida por Duchamp de que é “o processo de mercao que se dilatara fora a ideia de Beleza: “podem as formas dorização que cria a Beleza dos objetos” (Umberto Eco). de um mictório ser tão belas quanto às de uma escultura de Na performance, “experiência de vida” se confunde com Vênus?”, perguntava a crítica. Mais: “não sendo o mictório “experiência estética”, abolindo fronteiras entre os efêmeuma peça única, fruto ros atos cotidianos da manipulação artee a “sacralização” Na performance, “experiência de vida” sanal do artista sobre o hierárquica do obse confunde com “experiência estética” material escolhido, e sim jeto estético. resultado de um design Em traços gerais: para Duchamp interessa a desfuncionalização do “objeto que busca atender funções muito específicas (logo, objeto da reprodutibilidade técnica), ele pode nos suscitar emoção igual encontrado” e a sua refuncionalização enquanto objeto de arte. a da Venus?”. São paradigmas que vão reger as discussões Para o artista performático é a desfuncionalização da “experiência de vida” e sua refuncionalização como “experiência estéticas nos campos da teoria artística e da crítica. E aqui retornamos à ação descrita no parágrafo inicial: estética”. Ou seja, se em Duchamp há uma preocupação com os aspectos formais do “objeto encontrado”, inserindo-o no diversamente da “matéria-prima” substantiva que rege o mesmo horizonte de linguagem dos demais objetos acatados ready-made, a da performance se volta para gestos e situentão como artísticos, na arte performática esses aspectos forações cotidianas, pedestres. No entanto, se o ready-made e mais se encerram em outra linguagem distinta: a do corpo e a performance terminam por acatar o discurso/conceito como seus gestos em direção à “experiência estética”. Logo, os mais importante do que a própria “obra” em si, o que separa procedimentos formais que lançamos mão para analisar um a poética de Duchamp da performance?

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ready-made são completamente distintos dos que nos valemos para julgar uma performance, não obstante esta ser uma retomada conceitual das ideias de Duchamp, assim como as deste foram desdobramentos da ruptura promovida pelos românticos em relação aos valores clássicos. E aqui voltamos às questões epistemológicas da linguagem: se os procedimentos formais que usamos no intuito de interpretar e avaliar um ready-made (que se situa dentro do mesmo horizonte de linguagem da pintura, do desenho, da gravura, da escultura e suas congêneres) são distintos dos da performance, por que os artistas que fazem performance se definem como artistas plásticos? Denominar uma performance como inscrita no campo das artes plásticas não é o mesmo que continuar chamando o cinema de teatro, pelo simples fato de que o cinema se vale de alguns dos recursos da arte dramática? Ou seja, acatar o cinema como sendo um teatro filmado (por que não como uma ópera filmada? Ou a ópera como um drama cantado?) pelo fato de se valer de cenário, atores e de contar uma história por meio de uma ação, é desdenhar toda a linguagem que nasceu e só foi possível com a invenção do cinematógrafo (planos, enquadramentos, o uso da câmera objetiva ou subjetiva, o chicote, o contracampo, cortes, a montagem, as elipses, etc.). Se não posso estender os mesmos procedimentos formais que utilizo para julgar um ready-made ou uma escultura, uma pintura, um desenho ou uma gravura quando avalio uma per-

formance, não seria ela, assim como a video-arte e as instalações, um novo gênero artístico? Estou convencido que sim. No entanto, a pergunta prossegue: por que seus criadores continuam se denominando de artistas plásticos e circunscrevem suas obras no campo das artes plásticas, disputando os mesmos espaços (galerias, museus, editais de artes plásticas) dos escultores, dos pintores, dos gravuristas e desenhistas? Espaços estes que escritores, músicos, cineastas, arquitetos, dramaturgos e diretores de teatro não ousam participar (por reconhecerem que trabalham com linguagens distintas, que exigem procedimentos formais específicos), exceto quando são convidados a um evento multidisciplinar? A resposta, creio, seria a mesma caso cineastas continuassem chamando seus filmes de gênero dramático: evocar para seu trabalho o prestígio estético-social-crítico que o teatro carrega e, por desdobramento, ocupar os mesmos espaços de prestígio — no caso, as casas de teatro — e os orçamentos que lhes são destinados. No caso do cinema, seria uma péssima aposta, pois os orçamentos destinados ao teatro são hoje inifinitamente inferiores aos destinados ao cinema. No caso dos artistas performáticos, de video-arte e de instalações a aposta foi vantajosa: como seu produto não é comumente destinado à venda, a realização da obra conceitualmente pensada depende das dotações orçamentárias que os museus, galerias e editais destinam aos artistas plásticos e suas realizações. Sem falar que sua obra já nasce respaldada pelo aval das instituições

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promotoras e pelo circuito de crítica e curadores que estão por trás dessas instituições. Romper conceitualmente com as artes plásticas seria romper com uma das estruturas mais prestigiosas que as sociedades modernas construíram: as dos museus e galerias. Mas também é quebrar um sistema que gera bilhões de dólares hoje em todo o mundo: o da relação museu/galeria/curador/ artista. Com a crise da Arte Moderna, na Com seus qual a linguagem plástica denota uma grande exaustão, os gêneros conceituais termina- ready-made, ram por ser a panaceia para justificar toda Duchamp a estrutura e o sistema que mantêm vivos as nos mostrou instituições de Arte. que o discurso Enquanto ninguém ousa dizer que sua performance, vídeo-arte e instalação cons- ao redor dos objetos tituem um novo gênero artístico, estamos é o principal diante de uma Arte que não ousa dizer seu responsável por nós nome; e ao não enunciá-lo, aumenta cada vez mais a cesura entre o público e a obra: os chamarmos esta se vale de uma dada linguagem e aquele de arte continua tentando abrir as portas dessa linguagem com uma chave inadequada. Entre um e outro, a figura do curador: explicando e justificando suas escolhas. Na verdade, justificando a sua própria existência ante produções que apenas revelam a miséria intelectual de quem as produziu.

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Conto Marilena de Castro Extraído da coletânea Recife conta o Natal Volume 2, publicado pela Fundação de Cultura Cidade do Recife

Fotografia Osmário Marques Roteiro e adaptação Cristhiano Aguiar & Heloisa Arcoverde Direção de arte e cenografia Séphora Silva Atriz Hilda Torres Pintura (sem título) Greg Pintura “Síndrome do telefone vai tocar” Maurício Castro Interfluxo

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NĂŁo sabia quanto tempo estava esperando, esperando o quĂŞ?

Arrumou a mesa com dois lugares e enfeitou a casa. O tender estava assado. Tudo pronto.

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Verificou os recados na caixa postal do telefone e os e-mails.


mo oe rdem.

an gole de vinh m o: U

d tu

casa e es ela ta p va a r a d

Sonhava e esperava.

Esperava. Só ter esperança. De quê? Esperar quem?

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Acordara lembrando do 炭ltimo dia do ano passado, em que conhecera Paulo. Ele, devagar e manso. Ficou t達o dentro dela que nem percebeu que se entregava.

Onde ele estava? Havia marcado. Em todos os encontros, as noites eram leves e embriagantes.

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Chorava quando recebia as rosas vermelhas, t達o vermelhas como a paix達o e uma mensagem: Eu te amo, querida.


Sempre se comunicavam pela internet. Encontraram-se apenas duas vezes. Não havia o amanhã, só o agora. A presença ou ausência que sentia, ou a saudade das mãos ou do cheiro.

Súbito viu a mensagem pequena que brilhava como as estrelas: Feliz Natal, querida!

Estou em Miami.

Mudou a música. Ouviu a campainha e abriu a porta para um jovem alto e esguio vestido de Papai Noel.

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Stencil Juin

Foto Javier Martinez

Coletivo de dois. Pinta os muros da cidade com stencil e humor

Jornalista. Mora em Recife desde 2008. Pesquisa e fotografa grafites das cidades por onde passa para o projeto Arte Urbana http://flickr.com/arte_urbana


Te s s i t u r a

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Texto Cl谩udio Lacerda Bailarino, core贸grafo, professor e pesquisador

Fotografia Moema Moura Motion designer, ilustradora e professora

Performance Amanda Gabriel Atriz e preparadora de elenco

Te s s i t u r a

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Como se dá a gênese da criação de uma obra de dança? Esta pergunta teria tantas respostas quanto criadores de dança. A criação se dá através de uma intrincada rede de relações, a começar do nexo entre os componentes do medium da dança – movimento, bailarino, espaço e som – e a partir de relações entre particularidades destes e do espectador: a maneira como uma obra é oferecida, incluindo o gênero e estilo no qual se enquadra (ou para onde aponta), como está emoldurada e situada no espaço da apresentação, as visões de mundo e escolhas temáticas e de movimentos feitas pelo coreógrafo, a formação corporal deste e dos bailarinos, os tipos de corpos, gênero, etnia e classe social dos bailarinos, a maneira como a presença destes corpos é agenciada, as convenções teatrais e sociais e como o coreógrafo trata a representação de gênero. Todos esses fatores constituirão camadas significativas, as quais o espectador irá acrescentar/sobrepor as suas. Criação em dança está diretamente ligada a escolhas, a todo momento, e as maneiras e caminhos para a criação desdobram-se numa miríade de possibilidades. Rosemary Butcher – pioneira da dança contemporânea na Grã-Bretanha – valoriza a criação em dança como uma prática, conquistada e maturada ao longo dos anos, um craft. Butcher necessita do corpo maduro do bailarino para que suas questões se corporifiquem. Em suas aulas de criação coreográfica, muitas vezes impaciente com trabalhos insatisfatórios de alunos, disparava: “coreografia não cai do céu”. Meg Stuart considera “o corpo como uma entidade física”, ou seja, o corpo como o sítio por excelência onde o trabalho vai fermentar. Pina Bausch vê a trajetória de um coreógrafo como “um processo muito vagaroso e [que] não acontece de um dia pro outro”, sempre começando de novo, precisando permanecer receptivo para “abrir novas portas”. Para levar adiante suas questões, é notória a necessidade de Bausch por bailarinos mais maduros. William Forsythe considera a dança “mais como um trabalho de pesquisa com resultados incertos”, um “processamento”, no qual as variáveis podem ser mudadas a qualquer hora em qualquer dire-

ção. Para trabalhar suas questões de desmontar e rearranjar ele precisa de corpos maduros, sensíveis e inteligentes. Márcia Milhazes leva anos em seus processos de criação, nos quais trabalha minuciosamente suas obras. Segundo Milhazes, necessita-se de solidão para esse processo e as pessoas ultimamente não estão entrando em contato com esta solidão. Marta Soares igualmente precisa de processos longos, períodos de incubação das questões nas quais está imbuída, para delas poder destilar uma síntese no corpo e na cena. A criação também pode vir em jorro, como em Airton Tenório nas suas criações para a Companhia dos Homens. Podemos elencar o que faz um coreógrafo consistente: uma formação sólida, preocupação em continuar pesquisando, curiosidade com o mundo à sua volta e capacidade de se deixar arrebatar por questões. Mas, selecionei esses artistas, de práticas, backgrounds e referências diversas, porque neles podemos encontrar o elemento diferencial da criação em dança: o atravessamento das questões no corpo. Na sociedade falocrática e logocêntrica ocidental, o corpo tem ocupado um lugar um tanto marginal, uma posição hierárquica inferior à linguagem, meio de expressão hegemônico de nossa sociedade. Essa posição dota o corpo de um potencial transgressor forte e o diferencial que a dança tem a oferecer, mesmo com diálogos e colaborações com outras áreas artísticas, é justamente de as questões serem processadas, fermentadas no corpo. As obras dos criadores citados estão baseadas nesse atravessamento, o que faz deles corpos que importam. A gênese de uma obra artística comporta duas questões: o que move a criação e a gênese de sua materialização ou atualização. Falando sobre a primeira, Suely Rolnik diz que o artista cria porque existe, antes de tudo, uma necessidade dessa criação. Quanto à segunda, como o artista encara o espaço vazio ao seu redor e inicia um processo de criação? Para Gilles Deleuze, esse espaço não está vazio, pelo contrário, está repleto. De clichês, seja de referências artísticas, pessoais, imagens, sons, ..., “clichês psíquicos” e “clichês físicos”. Para ele, o artista “não tem de preencher uma superfície em branco, mas sim esvaziá-

O corpo tem ocupado uma posição hierárquica inferior à linguagem, na nossa sociedade. 40


la, desobstruí-la, limpá-la”. Isso é especialmente difícil quando se trata de um criador iniciante, que vem com sua taça cheia, transbordante. Também é um trabalho que se torna mais complexo para um criador maduro ou em vias de amadurecimento: limpar sua “tela” de mais e mais imagens e experiências acumuladas. Os primeiros anos de um artista novato deveriam ser dedicados a aprender a esvaziar este espaço em branco. Claro que formação e informação importam, e muito, pois ajudam a ver e entender seu lugar no mundo, e aprender que a história da dança não começa consigo mesmo, que seria o primeiro passo nesta tentativa de esvaziamento. Esvaziar para deixar o corpo preparado para ser atravessado, para ser um corpo que importa. Sem esse atravessamento, o corpo vai ser um lugar de copiar/colar. Nos anos 80 e 90 encontrávamos montes de “afilhados” de Bausch; de repente começaram a surgir os de Forsythe e os de Jérome Bel, “afilhados” que tentam copiar a forma superficial desses criadores, transformando-se em simulacros turvos ou papagaios dançantes. As maneiras como artistas da dança se sustentam financeiramente são diversas e só entre os exemplos enumerados encontra-se uma variedade de contextos. Necessidade criativa e viabilidade econômica são variáveis de uma equação sempre em conflito. No contexto brasileiro atual, os editais têm sido um mecanismo importante para suprir subsídios para as artes. São casos complexos de se analisar e que aqui não caberia em sua totalidade. Apesar de sua importância, faltam políticas a longo prazo para o desenvolvimento de continuidades artísticas. Sempre é uma nova loteria ser aprovado a cada edital e ver o risco da continuidade de uma trajetória não ter subsídio garantido. Uma preocupação, tanto dos artistas novos quanto dos mais maduros ou em vias de amadurecimento, é de aprender a fazer bem um projeto.

Inaugurou-se uma era na qual determinados artistas começaram a fazer muito bem seus projetos e, ao conseguirem a aprovação, esqueceram-se de, antes, amadurecer seu ofício artístico, seu craft. Após aprovado um projeto, para criar a obra, obedecendo a prazos relativamente curtos, não há lugar para atravessamento nenhum, não há lugar para angústia da criação. E, aos borbotões, vão surgindo espetáculos vazios, sem consistência, sem burilamento, sem amadurecimento. É triste perceber que esse fenômeno recente vem acompanhado de outras questões. Palavras como pesquisa, investigação, conceitual, experimental, vão perdendo seu

peso e tendo seus sentidos descaracterizados, transformando-se em banalidades, simulacros, superficialidades sem consistência. Palavras como coletivo, história, memória, tornam-se ficções manipulatórias para servir a egos e jogos de poder nas esferas artística, de ensino e de pesquisa. O exercício artístico se dilui e também o exercício da ética. Deixamos aqui uma questão. Podemos, dentro da modernidade líquida, com sua rapidez e superficialidade de fast-food, preservar um lugar para a ética, a coerência e a integridade na criação artística e todas as relações, econômicas, sociais, políticas, que a envolvem?

Por isso, a dança tem um potencial transgressor forte Te s s i t u r a

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Quando recebi o pedido deste texto, estava passando uns dias em uma praia repleta de adoráveis clichês (areia r, sendo o-popula rou ic t s branca, coqueiros, mar ú r o esfera d o, já ent nsita na transparente, etc., etc.), faz temp a , r a t d a o d m in a respeito ,a rte (por a-tainhas ategoria “maior” a t a cerca de duas horas a a c d o o ç ic a t mem sp ac o poé ossanto e hamp, deixa o ho to de um r s c o a p s do Recife. Escrever sobre Enquanto o a a d o in o c eclamad o tema n seus, o a ado urinol de Du moda e arte era o mote. pouco r ários mu rização d v it c la r u m e a p e r p o v u – p s la s, com a luir a pa – e ficou evocar o Que enrascada, pensei se de inc imos ano não vou s lt a ú r, ix de” s o e o it d n le e e u de “atitu ida q lment v ia lo direto, sem aspas. Naqueles ao a c p e d m p k s e e x E ion we er, a e uieto). ado da dias, estava enamorada por q ís, não houve fash rolas do nada diz m que o signific Questão e é s a P siva) a ep ica, exclu ernalizad um desses frágeis barquinhos de o lado d n t a ú in ( i ” e e t fo t r r a a “ eia )e continua insolúvel, no tecido ”. Essa id dutível, mundana madeira, só o casco e um banquinho, entelha c e “estilo a o r m p u e r ( 7, disse nçou oda tão comuns por ali. Azul claro e branco, enquanto Quem la quando, em 200 junção m . o d a n rda tio a vangua ignatari pintado com um cuidado e uma delicadeza sse ques P ic fo n ú io c a é D a estilistas eta moda er deu uns foi o po comoventes. Olhava para ele todos os dias. ta que a bulia (e ele ainda is v e r t n e essa e concebem numa Detesto relativismos, que servem antes de tudo realment elso, mas C e u é q Z a e ir o ile Filh estão para aquecer briga em mesa de boteco, mas aquilo bras Antunes guardas pequenas scudos em ria). Mas as van a c ão é era uma questão maior. Pedi licença a Kant (foi mal histó tístico, n r a o p obras-primas é outra m a t, o aê, veio) e incluí para sempre aquele troço de pescar as no c aul Poire P e u q localizad r do consumo Então po passado tainhas em minha Galeria das Coisas Belas. Mas por que o século verdade? d io íc in sem diabos associo arte, panos, costuras, peixes e barcos? É que francês que no mulheres s a u s e tanto um vestido desenhado por Balenciaga, quanto o barquinho estiu lindament está (ou v ilho, não t r a p s e o livro azul e branco não se enquadram, à vera, no conceito clássico ara o no mesm ) e t apelar p n le a uiv das Belas Artes, aquele que nos lembra que Música, o peso eq udelaire? não tem a que Ba r u Dança, Pintura, Escultura, Poesia e Teatro são as lt u c a d gia de sociolo seis manifestações autorizadas a usar o prestigioso título. 42

Audrey Hepburn, Cinderela em Paris

Texto Fabiana Moraes Jornalista e doutoranda em sociologia


Em 2007, Décio Pignatari disse, numa entrevista, que a moda era a única vanguarda brasileira que realmente se bulia

que a m crer e tá s e como ma não os, assim o proble id lh e o s c s é E os bjeto nar poucos, struir o o e questio n m v o e e c d e e e id d s s O que aiúscula Beleza re s que têm o dom a Arte M lação da le e p e u u m q Q a te n l. s o C cia arela muito lhar espe i da pass o a s e Sexo dos anjos à parte, a questão é pensar se também não são s s e e u q o roupa lançad ridade é ual será , como a – e para quê – a moda necessita de tal comenda. e sua ra te” é u q já sobre o q ular entre muitos , ar nto circ a não é epartame Pessoalmente, acredito que a sandália que o ntá-la não pode da na loja de d firmar que “mod ti r a mpa me o pia c o m c , e estilista belga Dries van Noten criou inspirada a r e n e d a s a id um arte (e para A necess própria criação h , moda é r. im s lo a , no trabalho do artista Pol Bury (pai de lindas v e u r q a r e mais seu maio o, coloca e antes d ais nada, p s m m o e te m d o o c s fontes parisienses, totalmente feitas com m , es nte so tância gessar, a rir impor sta. Ao m e bobo e rancoro n o fe e p n o o r c p pequena uma e seja ra têm metálicas) esferas a tr a, assunto “estilo”), soa en bo de distinção p ente, as coisas só m r fo m e passei m m rim obra-prima. Também já de”, e te de um ca Persichetti recente tem “atitu se a necessidade tempos pensando num desfile da n o im etta ves ncia. o disse S m o nada hou C . s importâ a o h Huis Clos, acho que lá por 2007, 2006, n im li r à fe n e o c ao pano o a elas no qual as modelos circulavam por entre cia quand n tâ r o p im um tecido diáfano, aparecendo com vestidos que “não É sempre bom lembrar que essa postura – ditar socialmente o que “é” e o que conseguiam reunir com um incrível equilíbrio a ideia como é” – é, antes de mais nada, política. Ao pé da letra, basta trazer artistas de rigidez e suavidade, como origamis. E as mulheres um produtor de quadros “sem utilidade” por parte dos egípcias de Galliano, os vestidos de Cristóbal (nunca Kandinsky, visto como que evocavam uma “arte do trabalhador”; da Bauhaus alguém entendeu tanto o cor-de-rosa), os nadadores no revolucionários russos por nazistas. Determinava-se, ali, no papel e no fuzil, o lugar dos botões feitos pela maravilhosamente maluca tristemente fechada a 10 anos, alguém com tarefas menos importantes para Elsa Schiaparelli (que andava na mesma turma de que era arte. Daqui o barquinho azul e branco repousando ali no mar) pode Cocteau e Dalí, diga-se). Pensar que essas criações foram dar conta (como ver a moda na sétima das Belas Artes, fazendo soar alaridos reproduzidas em série não as tornam menos “artísticas” conseguir tornar de alegria por parte de uns; de dor por parte dos outros. Enquanto (agora seria a hora de evocar Andy Warhol, mas também isso, espero, estarão por aí alguns Chalayans, Dries, Gallianos, Clôs, vou deixar o moço descansar), nem obras “menores”: elas Fragas, Andrés, Neons (com seus divertidos desfiles-happening), serão, daqui a alguns anos, pequenos resumos de suas épocas, Posens. Espero que também (rezemos, classe operária) haja assim como é o retrato da Dora Maar de Picasso. O caráter uma alma boa na equipe de criação da Renner, quem sabe mercantil do sistema da moda, que é tantas vezes lembrado como outra na C&A, que abra-se uma H&M no Brasil, todas elas prova de sua incompatibilidade com a área elevada da arte (embora necessárias para fazer bonitos também aqueles que não os maiores consumidores dessa Arte Acima de Qualquer Suspeita sejam são clientes Van Gogh. os clientes preferenciais, ou os “clientes Van Gogh”), também não explica por si só a pouca legitimidade das roupas. Te s s i t u r a

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conteceu há poucos dias. Marquei um encontro no Bar Princesa Isabel com o Martin, meu amigo, que abriu os caminhos naquela Havana ainda desconhecida, entre o final de 2007 e o início de 2008. Ele, que mora lá há alguns anos, me apresentou os principais personagens do meu livro, Viagem ao crepúsculo (Editora Casa das Musas), recémlançado. Eu tinha que apresentar um de meus bares, claro. Princesa Isabel, ao lado do trabalho, no centro do Recife, e Seu Vital, perto de todas as boas lembranças, lar seguro do meu velho amigo Naná, no Poço da Panela, são os prediletos. Também compete o Caudinho do Biu, no Alto José do Pinho de Canibal, Peste, Zé Brown. Martin voltaria a Cuba, dois dias depois, para dar tratos ao curso de Medicina. Pobre, mãe analfabeta, ex-morador da Casa do Estudante do Nordeste, segue firme, no quinto ano. Veio para rever os amigos, a família, a mãe. Como no dia seguinte eu viajaria para Tabira, no Sertão do Pajeú, era última chance de acertarmos umas coisas, conversar, tomar umas cervejas. Ele me levaria uma caixa de charutos vazia, eu veria o que mandar para Celeste, a personagem principal do livro. Celeste é o nome que dei a ela, já que não podia botar o nome real dos cubanos que conheci. Precisava de um nome bem bonito, achei Celeste a cara dela. Esse meu namoro com as palavras tem disso. Celeste. Relativo ao céu, ou que se avista. Ou está nele. Sei que Celeste não está propriamente no céu, com sua vida duríssima, mas na minha constelação, ela está. Martin me deu a caixa vazia de charutos. Não se preocupem. Sou um colecionador de coisas sem muita vantagem. Máquina de datilografia tenho sete (vou receber outra esses dias, em troca de umas fotos que não são minhas), caixa de madeira tenho umas quatro, fotos da família tenho uma penca, fora os cadernos, cadernetas, caderninhos e umas cinco canetas-tinteiro pifadas, que me lembram que já me serviram, que me deram histórias, que andaram junto, nos bolsos e mochilas. Peguei a caixa de madeira, abri, cheirei, estava perfeita, quadradinha como eu imaginava. Pedi a Brahma que gosto e vi que Robertilha, meu garçom predileto e temperamental, não estava. O papo ficou por ali, naque-

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las besteiras fundamentais, nada de muito esforço com os assuntos, aperreio desnecessário. Na TV, aquele barrigudo chato e grosso do Datena mamava na desgraça alheia. Quanto pior a tragédia, mais ele baba. Não sei por que seu Azevedo, dono do Princesa, gosta tanto daquela desgraça.

Até q u e ch e g o u o E d i n h o Edinho é habitué do Princesa, o bom falante. Foi o único representante da velha guarda do Princesa que foi ao lançamento do meu livro. Não sei o motivo, mas comprou dois exemplares e leu de cabo a rabo. Outro dia se pegou a me falar do livro com tantos detalhes, que parecia saber das histórias melhor do que eu. Se encantou com Celeste. Minto. Não foi encanto. Ele se emocionou com ela. É impossível não se encantar com ela, mas alguns se emocionam e fazem questão de me dizer. Ele não parava de falar da cubana que me hospedou em sua casa, que me contou tanto de sua vida e do povo cubano. Quando apresentei o Martin a Edinho, ele se emocionou. Abriu um sorriso largo, parecia ter encontrado um velho amigo. Novamente, passou a falar do livro, de Celeste. Emoção de verdade, de dar alegria a quem escreve. Os personagens que encontrei em Havana de repente estavam num boteco do centro do Recife, tomando uma Brahma comigo, enquanto a TV exibia um gorducho boçal e sua coleção de crimes. Depois seguimos com nossos assuntos. Edinho foi conversar outras lorotas. Numa hora, saiu para fumar na calçada. Me aproximei. Conversei com ele, disse que estava vendo alguma ajuda para Celeste, que segue sua vida em Havana, vendendo coisas no mercado negro. Pensava em comprar umas roupas, uns colares, que ela é danada para vender coisas. Edinho quase não falou nada. Meteu a mão no bolso e tirou uma nota de cem reais. Fazia era tempo que eu não via aquela verdinha.

“Isso é para ajudar Celeste”, disse. Deu um trago no cigarro.

“Essa mulher é sensacional. Um dia ainda vou conhecê-la pessoalmente” Voltei para a mesa, entreguei ao Martin, que arregalou os olhos. Guardou o dinheiro e prometeu converter em dólares e entregar à minha amiga. Vai render mais de cinquenta dólares. Uma pequena fortuna para minha amiga. Talvez dois meses de trabalho duro em um hospital. A única coisa que me ocorreu foi isso. Há um momento precioso nesse ofício de escrever, de contar histórias, de lutar com as palavras, de tentar mostrar ao leitor um mundo, um cenário, uma paisagem, uma vida. É quando o que a gente escreve vira vida. Para o Edinho, claro.

Texto Samarone Lima Escritor e jornalista, escreve crônicas semanais em www.estuario.com.br

Fotografia Beto Figueiroa Fotógrafo. Fotos realizadas em março de 2007, para a exposição “nome da exposição” na Fototeca de Cuba Te s s i t u r a

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As cintilações cósmicas de Evaldo Coutinho: um ensaio sobre existência e arte Texto Zeca Viana Músico, videomaker, desenhista e (quase) bacharel em filosofia pela UFPE

Ilustração Bruna Rafaella Artista plástica (com ênfase em desenho e videoarte), produtora cultural e mestranda em Artes Visuais pela FASM (Faculdade Santa Marcelina, São Paulo)

Poucas vezes na história recente do Brasil, mais especificamente em Pernambuco, pudemos nos deparar com espíritos tão sutis como o de Evaldo Bezerra Coutinho. Nascido no bairro de São José, mais precisamente no Pátio do Terço, em Recife de 1911, Coutinho é relativamente desconhecido nos corredores das universidades e faculdades pernambucanas, e ainda menos pela recente produção intelectual brasileira. Porém, com obras que figuram a existência e a espacialidade – íntimas moradas de suas investigações filosóficas, estéticas e arquitetônicas -, seu nome já reverbera ao lado de figuras de igual grandeza como Osman Lins, Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, seu contemporâneo. Em um sistema filosófico completo intitulado A Ordem Fisionômica, base de sua ontologia, Evaldo Coutinho se aprofunda nos limites existenciais do plano estético da arquitetura, nos horizontes alegóricos da repetição do homem


Em meados de 2003 tive a oportunidade de no espaço arquitetônico, e antes, na estrutura do Ser que cintila no encontrá-lo por duas vezes em seu tranquilo íntimo dessas plataformas. Nos apartamento à beira-mar, ao lado da insepanove livros que formam este sis- rável Giselda, e conversar sobre como se dava tema, brilha a língua portuguesa essa experiência existencial e estética em sua culta, com extasiante plasticidade, obra. Evaldo refletia: “Quando morremos todo o universo morre com a gente. O Ser cintila numa dinâmica quase barroca. Existe uma lógica interna que na morte e no nascimento, como estrelas no permeia seu sistema criando uma firmamento, são cintilações cósmicas, acencadeia viva em todos os volumes, eri- dendo e apagando com medida.” No fim da gindo uma só obra. Tudo se entrelaça tarde (alegoricamente) os pulsos artísticos proporcionando peças para uma inter- dessa Eugonia Coutiniana, como em Hepretação radical de sua explicação ar- ráclito de Éfeso, visualizavam o Eterno no tística – no sentido mais profundo – do devir enquanto ação moto-perpétua na universo. Na completude de sua obra existência. “Não entramos duas vezes no o homem Evaldo Coutinho se afasta da mesmo rio”, pensei. No livro A Articidade do Ser se mortalidade e entra para o hall dos verdadeiros filósofos. Talvez o único com um explicita esse quase solipsismo. Assim sistema tão rigoroso, completo e engen- como um Eu-verso, uma “Teologia do drado da língua portuguesa. Ali estão suas Eu”, segundo as palavras de Coutinho. di-visões de mundo onde o Ser é, a cada Seu sistema tem um fio condutor esmorte e nascimento, a cada movimento no tético – existencial, metafísico – que vazio arquitetônico, uma cintilação cósmica. estrutura a composição do vazio no “Deus é arquiteto”, costumava dizer. plano da arquitetura. Este vazio é

artístico, ele é possibilidade formal que determina a repetição das ações dos habitantes do espaço arquitetônico. A Imagem Autônoma é uma reunião de seus primeiros estudos e escritos sobre a nova arte, mais especificamente sobre a origem do cinema enquanto obra de arte. Este é um belíssimo contributo teórico para o cinema recifense e pernambucano de um modo geral. Essa teoria tem que ser revisitada – ou re-conhecida – com profundidade por todos que fazem parte, ou pensam fazer parte, do processo de idealização, criação e articulação da produção cinematográfica do nosso estado. O cinema é investigado na sua origem estética enquanto obra de arte na relação formal, plástica e imagética do fenômeno artístico da matéria. Charles Chaplin e o cinema mudo são bases para suas reflexões. Estruturalmente o cinema é visto e analisado em sua forma mais básica, ele é imagem autônoma, não apenas em movimento, mas viva, autossuficiente.

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A Composição do Vazio (2001), é um

dos poucos registros da obra de Evaldo; uma cinebiografia produzida pelo diretor e roteirista Marcos Enrique Lopes, onde o espectador pode se aproximar desse vazio matemático, orgânico. Essas são apenas silhuetas da grandeza de sua obra, de uma vida dedicada ao conhecimento. Foi professor da Escola de Belas-Artes do Recife, fundou o Curso de Arquitetura da UFPE, formouse pela Faculdade de Direito em Ciências Jurídicas e Sociais, foi crítico de cinema em Recife de 1929 (Jornal do Commercio), depois no Rio de Janeiro (Diário Carioca), entre 1946 e 1950. Conviveu com diversas personalidades como o poeta e arquiteto Joaquim Cardozo, do qual teve grande amizade, trocou idéias com Manuel Bandeira, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, convidou Ariano Suassuna para a Escola de Belas-Artes, entre tantos amigos e admiradores que deixou. Dizendo estar acostumado com o silêncio em torno de sua obra passou os últimos anos tranquilamente recluso, ditando seus pensamentos para Dona Giselda manuscrever – Evaldo apreciava escrever de próprio punho –, produzindo até os últimos dias. E assim, no dia 12 de maio de 2007, todo o universo morreu um pouco com o encantamento de Evaldo Bezerra Coutinho, um verdadeiro filósofo, que levou um pouco de todos nós com ele e deixou uma grande obra para renascer na posteridade.

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Texto Raísa Almeida Feitosa Estudante de Design Gráfico pelo IFET-PE. Membro do grupo literário Dremelgas

Ilustração Katalina Leão

A l t i com t u d intervenção o 51 Artista plástica, trabalha urbana, fotografia, vídeo, pintura e desenho


KM 0 Longa jornada estrada adentro

Lançando mão do experimentalismo, novo filme de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz trata das tensões do mundo contemporâneo Texto Luciana Veras Jornalista pela UFPE e especialista em Estudos Cinematográficos pela Unicap

Fotos divulgação/REC

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Um homem, um para-brisa, um rádio a tocar Noel Rosa e uns versos que ecoam, não por acaso, “nosso amor que eu não esqueço, e que teve seu começo numa festa de São João, morre hoje sem foguete, sem retrato e sem bilhete, sem lugar, sem violão”. Uma estrada, talvez não tão perdida quanto outras retratadas nos road movies que o cinema se aperfeiçoou em oferecer, porém tão vasta e simbólica quanto o Sertão que ela corta, à navalha... O carro singra a terra seca e o geólogo Zé Renato explica sua missão de pesquisar o solo por onde, em breve, passará um canal ligado ao rio São Francisco. Em poucos minutos, descortina-se o mistério inicial de Viajo porque preciso, volto porque te amo (Brasil, 2009), longametragem de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz exibido na mostra Orizzonti, no Festival de Veneza, na Première Brasil, do Festival do Rio, e na II Janela Internacional de Cinema, em Pernambuco. A descoberta, contudo, não é de todo elucidativa. Há um mistério maior por trás de Zé Renato, personagem defendido por Irandhir Santos, aqui sem o corpo que lhe fez o Quaderna da adaptação televisiva para A pedra do reino, de Ariano Suassuna, o escorregadio comparsa de Amigos de risco, de Daniel Bandeira, ou o jovem que se encarrega de cavar a fossa por onde escoariam os detritos morais e físicos de Baixio das bestas, de Cláudio Assis. Quem é este homem que fala ao espectador da sua “galega”, que ficou na capital enquanto ele segue para vascularizar aquele chão inóspito? Quem é esse


som sem imagem, essa voz sem uma face, inundando a tela com a descrição de uma saudade sem fim? E que Sertão é esse que aparece ora na dura composição das rochas e no horizonte pétreo, ora nos postos de gasolina onde mulheres se acotovelam à espera dos solitários? Talvez a pergunta seja: que filme é Viajo porque preciso, volto porque te amo? Com seus 71 minutos, é quase um média, quase um longa. Com sua avalanche cromática e as cenas fotografadas em Super 8, digital, High 8, é um híbrido que parte da (inexistência?) das fronteiras entre os suportes a fim de unificar uma linguagem. Para erigir uma visão da vida, do mundo, do próprio cinema. Uma década atrás, o pernambucano Gomes e o cearense Aïnouz trabalharam juntos em Carranca de acrílico azul piscina. Algumas das passagens de Viajo... remetem a esse documentário experimental; outras carregam inevitáveis lembranças de Cinema, aspirinas e urubus, filme que em 2005 projetou Gomes no cenário internacional (prêmio do Ministério da Educação francês na mostra Un certain regard, do Festival de Cannes), e também de O céu de Suely, que em 2006 levou Aïnouz a lugares tão longínquos como Havana, Thessaloniki e Bratislava. Mas é preciso ressaltar, a bem da verdade e de sua essência, que Viajo... não é uma colagem das obras anteriores, tampouco uma continuação ampliada e amplificada de Carranca, ou ainda uma espécie de coda para as sinfonias de Aspirinas... e O céu.... O que definiria esse projeto? “Na realidade, esse é o nosso primeiro longa, que acabamos de depois de fazer o segundo e o terceiro. É um exercício que propõe e responde perguntas que nós temos em relação ao cinema. É necessá-

rio ver um personagem para um filme ser narrativo? É preciso que a narrativa tenha causalidade para o filme existir? Tudo em Viajo... tem a ver com essas questões. É nosso terreno de pesquisa, mais do que um objeto aonde queríamos chegar”, responde Karim Aïnouz.

Altitudo

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KM 100 A educação geográfica & sentimental A fertilização em Viajo porque preciso, volto porque te amo se dá logo a partir do protagonista. Zé Renato vagueia em um estado cambiante, à deriva, refém das próprias memórias. O estado de espírito do personagem se expressa, portanto, na cadência da fala e nos argumentos por vezes contraditórios, que aos poucos desnudam a real situação afetiva de alguém que nada pode fazer além de prosseguir a jornada. “Queríamos fazer um filme pessoal, com imagens que não fossem apenas narrativas, mas sensoriais, emocionais. Construímos o personagem nessa travessia, que de uma certa maneira é a mesma travessia que fizemos ao viajar por essa região. Há uma memória afetiva de nossa parte”, explica Marcelo Gomes. Como toda memória é intransferível, particular, única, o filme é o espelho intacto de um homem fraturado entre ir e ficar, entre o urbano e o rural, entre amar e abandonar. Desse modo, sua estrutura sentimental, por assim dizer, converge para uma narração, e narrativa, em primeira pessoa. “É uma construção de um diário de viagem, no qual a plasticidade e a textura das imagens emocionam e provocam sentimentos. Aquele lugar, na verdade, não é mais aquele lugar; é como aquele homem abandonado, à flor da pele, repleto de sentimentos, anotando tudo, que aos poucos não é mais o mesmo homem. Sua caneta e as imagens são a mesma ferramenta de escrever um diário”, acrescenta Gomes. Zé Renato, pois, vê-se na obrigação de se reeducar. Diante da ausência do afeto outrora lhe destinado pela mulher que deixou, ele se refugia nos ardentes afagos das jovens que espreitam os motoristas de caminhão, os viajantes, os homens insaciáveis e os corações partidos nas rodovias. À medida que conhece novas pessoas, fotografa-as, capturando suas feições

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Viajo... trabalha com os limites entre a ficção e o documentário, o industrial e o artesanal marcadas, porém sorridentes em sua retina e, por conseguinte, na da plateia, a essa hora menos observadora e mais cúmplice. “O filme dialoga com álbuns de família, polaroids, foto digital instantânea. Com uma série de maneiras de olhar o mundo e registrar o cotidiano, como blogs, YouTube, fotoblogs. São modos contemporâneos de fazer um diário. Mas, ao mesmo tempo em que flerta com esses registros e maneiras de narrar e apontar, é um diário de viagem absolutamente clássico, um road movie, em que o personagem sai de um lugar para outro e a travessia o transforma”, situa Aïnouz. Ou seja, o esteio de Viajo... é o da oposição, do antagonismo, até. O geólogo vive sob o signo da racionalidade até deparar com a demolição de suas certezas emocionais. A


palavra escolhida pelos dois diretores para consubstanciar tal rivalidade é fricção. “O que define a contemporaneidade? Os atritos, as pequenas fricções que se dão de diferentes maneiras, às vezes por meio de informações, outras por meio de etnias e temporalidades diferentes. O filme traz diferentes articulações sobre esse assunto. No próprio formato, carrega diferentes tempos. E o personagem está à procura de uma maneira de contaminar aquela região isolada com água. Há a sensação do pertencimento e do não pertencimento. A linha é cada vez mais tênue, como o é entre documentário e ficção, entre industrial e artesanal, entre o íntimo e o público”, contextualiza Aïnouz. Entre o amor despedaçado e a paixão por uma vida que julgava além de si mesmo, segue Zé Renato, invisível na tela, mas quase palpável de tão nítido nos seus devaneios líricos, quase oníricos. Como diz Gomes, “quisemos construir um personagem que espelhasse os espaços abertos daquela região, daquela travessia, que causam sentimentos. O personagem começa a olhar para si mesmo a partir da sensação de vazio que ele sente na estrada. Ele é extremamente clássico, mas lançamos a pergunta: você precisa ver o protagonista para se identificar com ele? Cada espectador pode construir o personagem que quiser”.

KM 200 O som e a fúria Viajo porque preciso, volto porque te amo ensaia, de

propósito, uma tensão estética, formal e afetiva entre o que já é consolidado e o que pode ser reagrupado, rearticulado, remodelado. “Tem começo, meio e fim, causalidade e transformação. Brincamos com os cânones clássicos da narrativa para

entender como é fazer cinema dentro de um novo contexto. Qual o papel do cinema com a internet? Qual o papel do cinema quando o diário de viagem se tornou algo bem diferente e 90% das pessoas fazem mais fotos do que faziam cinco anos atrás?”, questiona Karim Aïnouz. Videoarte, linearidade, artes plásticas, um protagonista não visualizado, paisagens corporais e sensoriais, uma trilha sonora com composições próprias e ícones do cancioneiro brega-fossa-popular... De tudo isso se constitui o filme. “Há nele um aspecto caseiro, de ‘fundo de quintal’, de uma experiência cinematográfica. Foi um exercício de construir as emoções passo a passo, de elaborar em cima de imagens já filmadas, de poucos elementos. Quanto menos elementos você tem, mais se exercita como criador para construir toda essa carga de emoção”, situa Marcelo Gomes. Acima de tudo, para a tela convergem o vigor e a potência da liberdade, a autenticidade de uma busca sem restrições e o desejo de reconfigurar parâmetros. Coesão e contraste, força e delicadeza, o local e o global; do Nordeste para o mundo inteiro, dentro da fábula que é o cinema, no espaço da ficção e nas bordas do documental, surge Viajo. “Uma desobediência de todos os parâmetros sistemáticos, o frescor do erro e acerto. É um filme de aventura para nós também. Um road movie, como gênero, é de aventura, e esse filme é a documentação de uma aventura, feita dentro de um âmbito de alegria. Viva o prazer de fazer cinema, e de não saber fazer cinema”, resume o cineasta cearense. Afinal, como canta Noel Rosa, “tudo penso e nada falo, tenho medo de chorar, nunca mais quero seu beijo, mas meu último desejo você não pode negar”. Um desejo de reinvenção, pois.

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Quem você deixou de ser? De onde vim? Para onde vou? Como vou pagar? Fora estas questões, a humanidade também vive um outro pequeno grande drama para tornar ainda mais divertida sua existência: quem deixei de ser? (talvez com um “Meus Deus” e uma exclamação no final). Quem deixei de ser? pode ser um belo motivo para enxaquecas em quem não está satisfeito com o ganha-pão. E, pior, para quem tinha talento para investir em outra área e, por diversas razões, não o fez. George W. Bush tinha vocação para ser cowboy, mas encasquetou de ser presidente dos EUA; John Lennon tinha o dom para desenhar e pintar, mas optou por ser John Lennon; o maldito Mark Chapman tinha tudo para ser um ótimo vigilante, mas resolveu ser o assassino de John Lennon; James Dean possuía diversas aptidões, inclusive para pintar e tocar instrumentos, mas apostou em ser ator - que virou ícone, que virou morto, que virou lenda. Os convidados da Eita! a responder a pergunta para esta aguardada terceira edição da revista, felizmente, estão de bem com suas profissões, sendo nomes festejados em suas respectivas atuações. Cada um revela aquele desejinho que ficou guardado, muitas vezes, no baú de suas histórias, e que, de alguma forma, pode até influir no trabalho que, por sorte nossa, vingou. 60


Ayodê França é ilustrador-artista-desenhista Raoni Assis é ilustrador

Ilustração Ayodê França e Raoni Assis

Jornalista

Texto Débora Nascimento

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DJ Dolores Compositor e DJ 62

“Deixei de ser padre, como minha avó e minha mãe queriam. A primeira comunhão, aos 5 anos de idade, foi tão decepcionante que acendeu uma chama ateísta em mim que nunca mais se apagou. Esperava sentir algum “barato”, falar com Deus... Enfim, qualquer coisa que provasse Sua existência... Mas o destino foi sábio, pois se eu realmente fosse padre, é muito provável que agora eu estivesse envolvido em algum escândalo sexual.”

“O mundo perdeu o quarto Miguel Falcão Cartunista tenor, que cantaria junto com Carreras, Domingo e Pavarotti nos encerramentos das copas. Mas nem tudo está perdido, o eco do banheiro me ajuda a minimizar “Deixei de ser cartunista a minha frustração ou desenhista de HQ. e a assustar os meus Quando era moleque, vizinhos. E ainda posso ainda na escola primária, soltar a minha voz vivia desenhando na estrada com a minha super-heróis e personagens banda de rock...!” dos quadrinhos, tipo Super-homem, Batman e o Pato Donald. Na época da faculdade, cheguei a publicar uma charge num jornal estudantil do Diretório Acadêmico de Comunicação. Sempre fui muito fã de Millôr, Henfil, e de revistas como Animal, Mad, Love and Rockets, Fred Zeroquatro Músico e compositor Watchmen, etc.”


Alessandra Leão Cantora e compositora

Sérgio Dionísio Radialista, jornalista e apresentador

“Da infância para a adolescência deixei de ser médica e bailarina. Na adolescência, deixei de ser atriz e dramaturga, no início da fase adulta quase deixo de ser musicista para ser gerente de um centro médico... Mas ainda bem que deixei de ser isso também e voltei à música...”

“Um homem quieto, voltado para a contemplação e uma vida em recolhimento. Talvez dessa maneira sentisse menos ansiedade. Poderia usufruir o tempo numa outra medida, como se os dias fossem sempre iguais. Aprecio os afazeres simples, que as pessoas consideram menores, mas que têm para mim uma grandeza imensurável. Gostaria de alcançar a justa medida, e depois a modéstia e, se possível, a bondade.” Ronaldo Correia de Brito Escritor

“Eu podia ser tanta coisa... Trabalhei como office-boy; pintor letrista; peão de serviços de decoração; mas nada disso eu planejava para mim, fazia por necessidade. Como também por necessidade, e meio por acidente, estou na minha área atual. Quando criança, compunha músicas com um amigo que tocava violão. Somando-nos a outros colegas começamos a nos apresentar nas igrejas e festas da vizinhança. Depois de um tempo, passei a compor nos estilos brega, pagode, rock e até jingles políticos. Também dei minhas canjas no vocal. Portanto, se tem tantos cantores e músicas ruins por aí, eu poderia estar nesse meio também. Mas as oportunidades que surgiram foram na área de jornalismo mesmo, e aí eu deixei de ser cantor e compositor.” Altitudo

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José Teles Jornalista e crítico de música 64

Camilo Cavalcante Cineasta

“Eu certamente poderia ter sido músico. Aprendi a tocar com muita facilidade, pegando um violão de um tio meu. Detalhe: eu sou canhoto, toco sem inverter as cordas. Quando tinha uns doze, treze anos, passava o dia quase todo tocando. A primeira música foi A boneca que diz não, uma versão que fez sucesso com Bobby di Carlo, depois Meu bem não me quer, de Renato e seus Blue Caps, também versão. Depois fui mais longe, e aprendi Roda viva. Cheguei a tocar numa bandinha de garagem. Lembro de uma festinha em colégio, tinha 14 anos, eu solando um tema de faroeste italiano, acho que de O dólar furado. Depois cresci, tive que trabalhar, fui deixando a música de lado. Com uns trinta e poucos anos, comprei uma guitarra. Mas aí não dava mais, faltava tempo. Mesmo assim fiz um bocado de melodias. Umas, acho, até legais. A guitarra, repassei pro meu filho, que toca um bocado. Tenho um violão ao lado do micro. De vez em quando pego o bicho. Mas por pouco tempo. Música, hoje, só ouço.”

“A música sempre fez parte da minha vida e me acompanha até hoje em meus trabalhos audiovisuais. Certamente, se não trabalhasse com cinema seria um músico. Desde pequeno, quando morava em Parnaíba, no litoral piauiense, estudava piano. Aqui no Recife, na adolescência continuei os estudos no Conservatório Pernambucano de Música. Toquei em algumas bandas, participei de vários corais, dentre eles o da COMPESA, quando lá estagiei na área de Segurança do Trabalho. Depois tive que voltar todas as minhas energias para o foco cinematográfico, fato que acabou me afastando da prática musical até certo ponto, porque na verdade o cinema também é música: a música da luz”.


Nem tudo que reluz é

Texto Hallina Beltrão Mestre em design gráfico e editorial pela Elisava - Escuela de Disseny (Barcelona)

Ilustração (almofadas) Keops Ferraz Designer e ilustrador, BFA em mídia interativa digital Academy of Art College, São Francisco/CA

Como consumidora de Barbies, Melissas, filmes de Almodóvar, santos católicos e mais uma infinidade de indumentárias que fazem parte do universo kitsch, desabafo: não aguento mais ver o termo ser usado como sinônimo de mau gosto, exagero e vulgaridade.

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Não!

Kitsch não é a sombra do Photoshop, a calcinha com textura de onça, a música do Wando, o perfume barato. O kitsch não é uma estética, um movimento

artístico ou a própria antiarte. É a atitude de uma sociedade diante dos seus bens de consumo. Um estilo marcado pela ausência de estilo. É a mistura de vários elementos, em geral com o propósito único de ornamentação. Sobrepõem materiais, estilos artísticos, cores e estampas de forma harmônica e irreverente numa combinação que não tem regras. Vale misturar, no mesmo ambiente, anjinhos barrocos, cópias de quadros de Picasso, imagens de santos, bonequinhos de plástico e o que der na cabeça. É a ideia do “so bad it´s good”, que faz do kitsch a arte da alegria e da embriaguez dos sentidos. O kitsch como estética produzida visando a aceitação de uma sociedade de consumo tem uma ética de adaptação com a maioria. Suas mercadorias são componentes do universo da indústria cultural. É direcionada ao povão e alheia à complexidade da cultura especializada, vendendo efeitos fabricados com o objetivo de obter do público uma reação previamente calculada, reguladas pelo princípio da sua comercialização e não pelo seu conteúdo e estrutura. Um exemplo disso é o pinguim de geladeira. Grande ícone do kitsch, tornou-se febre nos anos 40, quando o refrigerador ainda era artigo de luxo e as donas de casa ostentavam o bibelô no alto do caro eletrodoméstico como um sinal de status. Do ponto de vista histórico, o kitsch é dividido em duas fases. A primeira remete à época da ascensão da burguesia que, com as grandes navegações e a indústria manufaturada, conquistou uma posição privilegiada na sociedade. Cheios de dinheiro, os burgueses queriam possuir os objetos de arte que a aristocracia tanto ostentava, embora a um preço mais justo. Pintores e artesãos amadores eram contratados para reproduzir quadros, móveis, joias e artigos de decoração usados pela nobreza. Nessa fase, a cada objeto era remetido um grande valor sentimental. Era como se cada um fizesse parte da história do seu proprietário, que o conservava por toda a vida. O kitsch religioso, com altares caseiros, cheios de imagens, velas e flores artificiais, representa bem essa fase. A segunda fase, o neokitsch, explode numa época em que o mundo (principalmente os Estados Unidos, recém-passado pela crise de 1929 e duas guerras mundiais) queria mais era esquecer os tempos difíceis se jogando na euforia do consumo. O kitsch indiscutivelmente perdeu a conotação de “arte de segunda mão” para tornar-se um fenômeno mundial. É o neokitsch, período áureo do kitsch, que dura até hoje. Nele, as pessoas já não têm relação afetiva com os artigos comprados e consomem por consumir. A ausência do sentimento faz do objeto um ícone vazio, cujo valor se sustenta principalmente no seu caráter, que está acima do fato de ser um bem material. O neokitsch é a sua própria referência - o “kitsch-kitsch”. O novo kitsch se estabelece definitivamente na vida das pessoas a partir dos anos 60. Uma época em que tudo é propício para a sua ascensão. O multiculturalismo, a quebra de velhos preconceitos estéticos, a aceitação das diferenças e a sobreposição de velhos e novos estilos, enfim, tudo conspira a favor.

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Um dos aspectos importantes do neokitsch é o gadget (do inglês, artigo engenhoso). Ele vende-se por sua “pseudo” funcionalidade, que atrai o comprador com promessas de mil e uma utilidades fúteis. Pode ser classificado em dois grupos: os gadgets unifuncionais e os gadgets multifuncionais - estes podem ainda ter funções contíguas (batom-espelhinho) ou não contíguas (canivete com cortador de unha, saca-rolha e outras funções que nada têm a ver umas com as outras). O gadget substitui a relação material entre o consumidor e o objeto por um jogo lúdico de mil possibilidades. Não importa se preciso de um celular para fazer chamadas telefônicas.

O aparelho será muito mais sedutor ao consumo caso tenha touch screen, câmeras integradas de alta resolução, MP3 player, TV, rádio, memory card e mais outras mil funções que nunca chegarei a utilizar. Outro aspecto do neokitsch, seguramente o mais redentor, é o poder de dar um novo valor aos seus próprios ícones a serviço da arte. Numa época de indiscutível desencanto com o progresso, a originalidade e a experimentação formal, o kitsch recicla objetos do gosto popular para as galerias de arte das maneiras mais inusitadas. Exemplo disso foi o movimento que povoou os anos 50 e 60. A pop art transformava símbolos da cultura popular e objetos corriqueiros da vida cotidiana em obras de arte. Latas de sopa, garrafas de Coca-Cola, quadrinhos, ídolos do cinema e da música foram sua matéria-prima. Encarava com ironia o consumo massificado, mas, ao mesmo tempo, exaltava a cultura de massa, dando status de obra-prima a elementos da cultura popular. Enfim, a democracia da arte. Recentemente, muitos artistas trabalham com signos do imaginário popular de diferentes maneiras. O fotógrafo Dana Salvo e as artistas plásticas Audrey Flack e Amalia Mesa-Bains resgatam os altares do kitsch religioso em suas obras. A última faz releituras fantásticas dos velhos altares substituindo as imagens tradicionais por figuras pouco santas como Frida Kahlo, Dolores del Río e sua própria avó. O trabalho do aclamado David Lachapelle também é um ótimo exemplo. O fotógrafo faz da sua obra um espelho da cultura popular atual. Multicolorido, divertido, ousado e impetuoso como só o kitsch sabe ser. Altitudo

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Concepção e performance Biagio Produção Rose Lima e Milena Andrade Artista plástico convidado (bandeira) Sérgio Altenkirch Registro audiovisual (doc) Alex Guterres Registro para videoperformance Oscar Malta Assessoria de imprensa Eva Duarte Fotografia Déborah Guaraná Apoio Sete Filmes Urros Masculinos Casa da Moeda Canal das Artes

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Foi a primeira performance de uma série que o artista vem produzindo com foco no rio Capibaribe, seu leito (físico) e seu leite (ideológico). Foi basicamente uma collage da odisseia da nave Apolo 11 até o primeiro passo de Neil Armstrong na superfície lunar e a colocação da bandeira norte-americana naquele solo, em 20 de julho de 1969. Exatamente 40 anos depois, Biagio enfrentou uma verdadeira “odisseia” no espaço urbano do Recife para, na manhã daquela segunda-feira, 20 de julho de 2009, fincar sua bandeira lunática na lama do rio. Cosmopolitismo versus regionalismo. O cosmo engolindo essa latitude 8º 04’03”s - longitude 34º 55’00” w. do planeta azul. O universal conquista o típico. E hoje a lua corre sob nossas pontes e é dela que tiramos esses siris raquíticos. Feitos de lama e lua, somos sempre quase reais, quase sempre lunáticos. Da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama da lua da lama 71

da lua da lama da lua da lama da lua da lama da


Contato dos colaboradores: Amanda Gabriel amandagabriel@gmail.com Anco Márcio Tenório Vieira ancovieira@yahoo.com.br Ayodê França ayoderock@hotmail.com Beto Figueiroa bfigueiroa@gmail.com Biagio biagiopsi@hotmail.com Bruna Rafaella brafaellaster@gmail.com Cláudio Lacerda claudiolacerda@hotmail.com Cristhiano Aguiar cristhianoaguiar@gmail.com Déborah Guaraná qq1porra@gmail.com Débora Nascimento deboranascimento@gmail.com Dimitri Gargamel dimitrigargamel@bol.com.br Diogo Todé toderrado@hotmail.com Fabiana Moraes fabimoraes@gmail.com Hallina Beltrão www.hallinabeltrao.com Hilda Torres hildatorresneta@hotmail.com Isabella Alves Isabellacomdoiseles@gmail.com Isadora Melo isadorame.lao@gmail.com Javier Martínez javmartinez@gmail.com josé juva omeninoverde@yahoo.com.br Juin flickr.com/coletivojuin Katalina Leão katalinaleao@yahoo.com.br

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O texto desta revista foi composto em Fiendstar, fonte desenhada por Nicholas Garner em 2006. O papel da capa é o Supremo Alta Alvura 250 g/m2 da Cia. Suzano. Os papéis usados no miolo foram o Offset 120 g/m2 (três primeiros cadernos), o Kraft 120 g/m2 (quarto caderno) e o Chamois Fine Dunas da Ripasa 120 g/m2 (dois últimos cadernos). A impressão e o acabamento foram feitos em dezembro de 2009 na FacForm, Recife, com tiragem de 2.000 exemplares.



Apoio

Realização ISSN 1983 - 1846

4 9 7 7 1 98 3 1 8 4 00 1


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