Araçá
Suplemento
Edição: Maio de 2020
Número 03 - Ano 01 - São Gonçalo -RJ Tiragem bimestral e online www.entrepoetasepoesias.com.br
O imundo do mundo, em Simpatia pelo demônio, de Bernardo Carvalho por Erick Bernardes
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Araçá - Edição: Maio de 2020
Caricatura da edição
Bernardo Carvalho Visite: www.entrepoetasepoesias.com.br
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Araçá - Edição: Maio de 2020 EXPEDIENTE -Editor Responsável: Renato da Silva Cardoso -Editor: Erick Bernardes -Diagramação: Renato da Silva Cardoso -Revisão: Erick Bernardes e Juliane Elesbão -Colunistas: Antonio Rodrigues, Fabio Rodrigo, Angela Moreira, Altamir Lopes, Ivone Rosa, Fátima Daniel, Zé Salvador, Erick Bernardes, J.Sobrinho, Helena Corrêa, Juliane Elesbão, Dejair Martins, Marcelo Motta, Ezequiel Alcântara, Gilvan Carneiro, Erica Costa, Marcos Pereira, Luisa Tavares, Renato Cardoso -Arte final: Renato da Silva Cardoso -E-mail: revistaentrepoetasepoesias@gmail. com Site: www.entrepoetasepoesias.com.br WhatsApp: (21) 994736353
Araçá Uma publicação da Revista e Editora Entre Poetas & Poesias - SG - RJ.
Quem somos? O suplemento literário Araçá é um projeto da Revista e Editora “Entre Poetas & Poesias” e foi criado com objetivo de divulgar e propagar a arte a todos os cantos do Brasil e do mundo. Um periódico cultural que nasceu para tornar o cotidiano dos leitores mais suaves com mensagens líricas, filosóficas, entrevistas, poesias, artigos acadêmicos, debates educacionais, entre outros. Criada em Janeiro de 2020, pelo professor Renato Cardoso, o suplemento conta com uma equipe fantástica de escritores entre jovens e adultos. Uma equipe formada por profissionais de diferentes áreas, que visam gerar um conteúdo informativo e de quali-
dade para todos que aqui chegarem. Com acesso a uma ferramenta de qualidade para publicar para vocês, leitores, buscamos nos tornar uma referência na publicação de conteúdo no território nacional. O suplemento Araçá é uma periódico gratuito e digital, que visa, acima de tudo, abrir espaço para que você, leitor, possa publicar seus textos. Para isto, basta nos enviar para o e-mail: revistaentrepoetasepoesias.com.br. Todos os colunistas e colaboradores desta edição autorizaram a publicação de seus respectivos textos, sendo a eles atribuída toda a responsabilidade por seus conteúdos.
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rigite era uma linda cachorrinha maltês. Seus donos a tratavam a pão-de-ló. Eles sonhavam em casá-la. Isso mesmo: casá-la. A única dúvida era o complemento indireto. Casá-la com quem? O noivo deveria ser escolhido a dedo. Não podia ser um cachorro qualquer. Tão depressa providenciaram um macho pra ela. Era um lindo maltês de pelo comprido, adquirido com um preço bem acima do valor de mercado. No dia do casório, os convidados chegavam com seus cães de estimação. O noivo, com seu terno fraque, esperava por Brigite no altar. Brigite finalmente entrou no recinto. Estava muito elegante. A cauda do vestido não impedia sua locomoção. Diga-se de passagem, o vestido era de muito bom gosto. Havia sido arrematado em um leilão. A cerimônia é iniciada. Os convidados se acomodavam para acompanhar o discurso do celebrante. No entanto, o latido da cachorrada era tanto que quase não era possível ouvir as palavras proferidas por ele. Brigite enfim estava casada. Uma chuva de pétalas de rosa acompanhava o cortejo dos noivos. Ao lado deles, seus donos estavam muito emocionados. Após a cerimônia, a festa teve início. De entrada, eram servidos os canapés, que lembravam a forma da pata canina. Enquanto isso, os cães dos convidados comiam ali-
Araçá - Edição: Maio de 2020 mentos especialmente preparados para eles. O lindo bolo, em forma de osso, ganhava destaque bem ao centro do lindo e glamouroso salão de festas. Houve um princípio de confusão quando um dogue alemão tentou avançar em uma poodle que estava solta. Os donos de cada cachorro também se estranharam por causa disso. No outro canto do recinto, um pitbull se atracou com outro, provocando ferimentos em ambos. Uma veterinária, que estava de plantão no casamento, providenciou os curativos. A cerimonialista a todo momento orientava os convidados a fim de evitar o tumulto com a cachorrada. A cerimônia caminhava para o fim. Muitos convidados já começavam a ir embora. Os donos de Brigite estavam satisfeitos. Sem sombra de dúvida, a festa havia sido impecável. Ganhou até destaque na coluna social de um dos principais jornais da cidade. A alta sociedade carioca estava presente. Portanto, não podia ser uma festa chinfrim. Meses depois, os donos de Brigite descobriram que ela estava grávida. A partir de então já começaram a planejar seu chá de bebê. E não será um chá de bebê qualquer. Afinal, terá que ser à altura de seus convidados.
Casamento de Brigite Fabio Rodrigo
fabiorodrigogc@yahoo.com.br
Fabio Rodrigo é escritor e professor
Instagram: @revistaentrepoetas
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Araçá - Edição: Maio de 2020 Vivemos tempos de crise. Que lições e caminhos podemos vislumbrar a partir da crise de nosso tempo, em meio ao caos de uma pandemia e às incertezas econômicas que daí resultam? “Em grego, krisis, crise, significa a decisão tomada por um juiz ou um médico. O juiz pesa e sopesa os prós e os contras e o médico conjuga os vários sintomas; então, ambos tomam a decisão pelo tipo de sentença ou pelo tipo de doença. Esse processo decisório é chamado crise.” * “A crise representa purificação e oportunidade de crescimento. Não precisamos recorrer à palavra chinesa de crise para saber dessa significação. Basta recordar o sânscrito, matriz de nossa língua. Em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De kri, vêm crisol, elemento químico com o qual limpamos ouro das gangas, e acrisolar, que quer dizer depurar. Então, a crise representa um processo crítico, de depuração do cerne: só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece. A partir do cerne se constrói uma outra ordem.” * A crise do nosso tempo ainda segue em processo, e o que daí resultará ainda é mera especulação. Mas há uma certeza: o mundo não será o mesmo depois. Que mundo restará desse processo? Uma constatação é clara. A crise revela os rostos humanos. Revela o que somos de melhor ou pior. José Saramago, em seu romance “Ensaio sobre a cegueira”, que tem seu ponto de partida numa misteriosa “cegueira branca” que acomete rapidamente a popula-
ção e a todos torna cegos (aqui há um detalhe excluído para evitar o maldito spoiler), utiliza a crise da pandemia da cegueira para eruir do homem seus fantasmas existenciais e revelar suas contradições. E uma das mais marcantes é o egoísmo humano. Na crise, é possível identificar dois grupos: os solidários e altruístas, e os egocêntricos. Na crise do coronavírus, no contraponto ao egoísmo de muita gente, uma onda de solidariedade e altruísmo deixará para o homem contemporâneo a lição fundamental. Não nascemos sós, não vivemos sós, é a força da comunidade que salva o homem em tempos de crise. Fica para mim a lição do padre italiano Giuseppe Berardelli, de 72 anos, que morreu no hospital após abrir mão do respirador em favor de uma pessoa mais jovem. Depois de seu gesto de radical altruísmo e entrega ao ideal maior de sua religião, seus paroquianos recordaram que o padre viveu na prática aquilo que pregou em vida, e chorando lembraram-se dele pregando: “Amai-vos uns aos outros… não há amor maior do que dar a vida por seus amigos”. Daí nascem as sementes de uma nova consciência. Que estejamos prontos e receptivos para repensar o caminho humano neste planeta e para construir uma nova história. * Citações: Leonardo Boff
Crise Antonio Rodrigues
ajr1977@gmail.com
Antonio Rodrigues é escritor
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A crise do nosso tempo ainda segue em processo, e o que daí resultará ainda é mera especulação. Mas há uma certeza: o mundo não será o mesmo depois. Que mundo restará desse processo?
Zé Salvador
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Zé Salvador é cordelista
zesalvador06@gmail.com
Peneiras que não tapam sol
6 Em uma corrida desenfreada, o mundo desembestou, nações revezando posição nessa corrida, como cavalos em um hipódromo, onde disputam o mais alto do pódio. O prado sempre ou na maioria das vezes desnivelado, vendendo vantagens aos mais fortes e preparados, os torna vitoriosos, ainda que por meios de logros e blefes, porém, vez outra, acontece de um azarão levar o prêmio, apesar dos engodos e entraves que se apresentam ao longo da pista. Mas geralmente é usurpado, por alguma manobra nas regras. Essa corrida tem todos os tipos de manobras, lícitas ou não, onde fala mais alto, aquele jóquei que tem um patrocinador com mais saúde no bolso, e que lhe pode colocar no rol dos vantajosos retornos. Em todos os tempos da existência humana, houve corridas na disputa de um pódio, o poder. Isto toda vida desencadeou discórdias. Estas corridas, nunca foram retilíneas. Pode se dizer que habitual, foram feitas em movimentos esféricos – igual uma roda gigante – girando sentido horário, onde os contundentes competidores (concorrentes) estão geralmente revezando posições. Disputas essas que são deflagradoras das guerras culminantes. Muitas corridas aconteceram ao longo das eras, estas, com diversos conceitos e objetivos. Dentro de acordos, na maioria das vezes escusos. E nessa linha foram as disputas por reinos, governos, cátedra episcopal, enfim, em um “descambo” para o poder. Todas essas práticas, sem exceção,
com o uso da força bélica ou não, têm suas vulnerabilidades fora da curva em algum momento. Nos tempos atuais, tempos de globalização, continuam as corridas – guerra pelo poder. Uma corrida que tem cavalos de puro sangue, praticando um turfe desleal e desonesto, onde mecenas autoritários mal-intencionados utilizam jóqueis, por interesses bilaterais, que montam cavalos dopados, apesar de organizações controladoras para inibir as ilícitas práticas que os tornam fortes, porém vulneráveis a efeitos colaterais, que são letais. A disputa, tornada guerra, hoje, sendo biológica, produzir respingos por todo o hipódromo. Sendo inevitável acontecer os abalroamentos simultâneos, onde montarias e jóqueis embolados batem cabeças. Os animais vazam no vácuo de seus deslocamentos ligeiros, ultrapassando barreiras e atingindo plateias; os jóqueis machucados saem deitados em padiolas. O tumulto atinge todo o hipódromo. Nesse momento, se faz necessário o esvaziamento do local. Todos estarrecidos, boquiabertos e atingidos são necessariamente obrigados a esvaziarem, voluntariosos ou não, o hipódromo. E dá-se o isolamento social. Análogo a tudo isso, cavalos invisíveis nos atingem, nós, plateia perdida, batendo cabeça, tentamos nos defender dos respingos com “peneiras” que não tapam sol. E o corona vírus está aí, na sua urgência de nos atingir. Façamos nossa parte, fiquemos em casa.
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APENAS UM SORRISO Ivone Rosa
profa.ivonerosa@gmail.com
Ivone Rosa é professora e poeta
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á alguns anos, fui convidada para uma festa de 40 anos de casamento. Algo atípico, pensei. Uma vez que a maioria dos casais comemora bodas de ouro. Porém, aquela festa tinha um propósito muito especial... O salão de festas estava impecável! Todo decorado minunciosamente com diversos tons de verde. A cerimonialista foi a neta mais velha do casal. Ela iniciou o discurso com uma breve e emocionante história dos dois: “Ele tinha dez anos, quando foi junto com a mãe à casa de uma amiga da família para visitar um bebê recém-nascido. A menininha estava com um mês e meio. Junto ao berço, perguntaram para ele o que achou do neném: - Linda! Muito linda! -respondeu com os olhos fixados nela. Coincidência ou não, neste momento ela sorriu. Ele acrescentou: - Quando ela crescer, vou me casar com ela! Todos as pessoas presentes gargalharam! Parecia utopia, mas não foi!
Dezenove anos mais tarde, eles se casaram! Tiveram cinco filhos: duas meninas gêmeas e três meninos. Seis netos e duas bisnetas. Todos presentes na cerimônia!” Ela ergueu a mão em direção a um semicírculo ao redor do casal. Logo após ao relato, um neto com aproximadamente seis anos, correu até microfone e perguntou: - Vovô, o que você achou mais bonito nela? - O sorriso! – respondeu rapidamente sem hesitar. – E esse sorriso eu vou levar para sempre! E os aplausos dominaram todo o espaço entre lágrimas e muitos sorrisos. A família sabia realmente o que estavam fazendo, pois hoje este casal não está mais presente. Contudo, a felicidade guardaremos para sempre!
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Ele tinha dez anos, quando foi junto com a mãe à casa de uma amiga da família para visitar um bebê recém-nascido. A menininha estava com um mês e meio.
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Querer, Gostar e Amar! Ezequiel Alcântara é poeta e cordelista
Querer, Gostar e Amar! Querer, então desejo. Desejar, então quero. A ti quero desejar, Desejar a ti quero querer! Se for querer o que só quero, Quero só se for o que querer. Querer por que te quero bem Ou por que quero bem o meu querer? Gostar, então quero querer o que gosto. Gosto, então querer o que quero gostar. Gosto somente querer estar contigo! E comigo, apenas gostar?! Se for querer o que se gosta, Gostoso é querer então do que se gosta estar. Querer pouco tempo estar com o que se gosta Ou muito tempo querer com o que se gosta estar?
ezequielalcantara809@gmail.com
Se amar implica em tudo, Amar também implicaria em nada? Mas se o nada existe não existindo, Fixo em ausência e palavra dada, O amor não existindo existe apenas Querer, gostar, tudo e nada?
Ezequiel Alcântara
Poesia
Oh! Amar então é tudo. Tudo é então amar. Amar a ti gosto querer, A ti gosto querer amar!
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Erick Bernardes
ergalharti@hotmail.com
Uma inflação diferente
Há momentos na vida em que o senso crítico nos abocanha. Ficamos mais pensativos. De repente tudo nos comove. Certo trecho bonito de livro, uma letra interessante de música. Um filmezinho qualquer. Aí vêm as reflexões: o mundo se globalizou, ficamos sobremaneira instruídos. Consequência disso é que cada vez mais suprimos nossas necessidades com invenções utilitárias. Com Tati não foi diferente, ela poupa suas economias no intuito de pôr próteses para preencher uma falta, um vazio em seu peito, ou seja, quinhentos mililitros de silicone para suplementar seus seios. Algo utilíssimo por sinal. Certa vez segredou-me: _ Ahhh ! Seu eu fosse como aquelas americanas com “air bags” enormes, faria maior sucesso lá no bairro. Todos iam saber da minha força de vontade e que tenho empenho pra levar um sonho até um fim. Há três anos que essa nossa amiga cismou com seus mínimos mamás. Tati realiza pequenos trabalhos como modelo fotográfico de revista e em promoções de jornais: compre, concorra e leve para casa.
Quando sai com a galera leva apenas cinco reais enfiados no bolso e um cartão bilhete único, para não ficar a meio caminho das diversões que costuma participar. No pagode bebe cerveja sem gostar, come salgado sem gastar. Porque todo mundo compra uma loirinha gelada e um tira-gosto pra curtir. E no meio da bebedeira ninguém sabe mais quem pagou ou não. Aquele camarada que gastou para molhar o “bico” nem liga de ver a econômica amiga com a boca no gargalo e a língua saliente. A futura Pamella Anderson não pode movimentar sua conta poupança. Razão pela qual, sempre tem alguém que carrega consigo sentimentalismos elevados que permitem trocar uma ou outra garrafinha de “Ice” por beijos sôfregos e amassos nada gelados. Intercâmbios ultramodernos de gestos e fortes abraços que acabam em expressões maiores e mais contundentes. Dia desses, na casa de praia que seus amigos alugaram para passar o carnaval em Cabo frio, Tati resolveu mudar o rumo da sua vida. Decidiu ganhar dinheiro para acelerar o processo de superinflação mamária. Como não fez parte da lista das despesas da casa de veraneio, ela teve uma ideia, gastou dez por cento da poupança na esperança de ampliar o seu capital. Empreendedora de primeira ela pensou (por ela mesma) em comprar quinhentas caixas de leite pra concorrer à promoção da marca “longa vida” Ordenha preciosa. Recortou os úberes das vaquinhas que estampam o produto lácteo e os enviou à fábrica de laticínios do concurso em questão. Recentemente, noticiaram que
Tati ganhou uma moto zerinho zerinho num desses sorteios. E, até o momento, pelo que sei, ela concorre a tudo, até a capas de telefone celular para seu Iphone sem crédito. Dizem que a nossa amiga vende quase todos os itens dos concursos que ganha, ficando assim famosa pelas suas frequentes premiações. O que se sabe dela, mais recentemente, é que passou a ser conhecida como a garota propaganda do leite desnatado. Anda de carro por aplicativo, fazem por aí piada com Uber e úbere, no intuito de provocar. Não sei, confesso saber apenas fofocas pontuais. Bem da verdade, nas poucas vezes que a encontro, digo um oi sincero e até qualquer hora. E, se der tempo, fixo o olhar no seu decote, para poder enxergar em que altura se encontra a realização do seu grande sonho. Enfim, das conquistas de Tati tiram largas lições lá na comunidade. E, na próxima eleição, virá até como candidata a vereadora. Seu Slogan já é filosofia na boca da população masculina: “Todos conhecem os grandes feitos da Tatiana, quem não os conhece não sabe o que é firmeza”. Este conto é uma adaptação do original “Grandes feitos”, publicado pela Revista Jangada: Crítica, Literatura e Artes, da Universidade de Colatina e da Universidade de Chicago, n. 8, jul-dez, 2016 > https://revistajangada.ufv.br/Jangada/ article/view/129
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Poesia
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Triângulo
marcelo.poeta.1968@gmail.com
Marcelo Motta
O baricentro encontrava-se numa festa... na casa dos seus parêntes(es), Não estava mais feliz do que as lacunas, Mas, de repente, seus olhos viram uma beleza numeral. Então ele se aproximou pela linha da tangente Da doce e senoidal Bissetriz... Ela, Bia, usava uma minissaia triangular, Tinha a boca multiforme de aspecto elíptico. E os seios de formato regular. Já a havia antes, próximo da região triangular... Na esquina da paralela com a transversal, Ela, porém, estava acompanhada do seu amante, Este tinha o corpo truculento, todo diagonal. A partir daquele instante, seu coração linear Apaixonou-se pela encantadora e curvilínea Bissetriz, Ele, nada modesto, sexualmente dizia-se uma potência... Casaram e foram morar na primeira zona perpendicular, Até que tiveram como filhos, uma raiz, uma fração, Duas percentagens, e a caçula: a solução. Era o que era, e assim continuou seno. Viviam numa constante, buscando sempre um ponto de interseção. Ela sonhava com uma sem que fosse preciso dividir a parte pelo todo... Mesmo que a largura não fosse compatível com o comprimento. Ele lembrou-se que quando criança ia muito ao círc(ul)o E só o fazia por causa do palhaço e do trapézio. Contudo, ela não sabia que ele a traía com a Matriz, Surgindo assim, um complicado triângulo amoroso. Nisso, ela sentiu sua vida fracionada. Até que a sua amante exigiu a separação. Esta discussão rendeu e se propagou, Até que, ela, pobre matriz, se suicidou, Pulando de um penhasco no Vale das Equações. Agora era a vez da Hipotenusa Sofrer nas mãos do seu machismo matemático. Seus irmãos a apoiavam, entre eles, os catetos . Ele voltou a procurar a linha da tangente, Mas até seu cunhado, o outro, o oposto, Estava contra ele, assim como o adjacente. A duras penas fez-se um marido sem mais adições à sua vida. E não mais dividido e divisível como o M.D.C. E a levou à praia dos números na sua variante, Aliás, tinha três: a X, a Y e a Z. E a afogou no mar dos quadrantes. Ao se apresentar não criava polinômios Enfim, tomou uma atitude radical. E buscou sua reta. Marcelo Motta é poeta.
Publique Conosco O Suplemento Araçá abre espaço gratuitamente para você, escritor, publicar o seu texto, poesia ou artigo científico. Para isso, basta observar os critérios abaixo e enviar. 1. O texto tem que ser original, ou seja, autoral; 2. Todo é qualquer conteúdo considerado plágio é de responsabilidade do autor; 3. Não publicaremos textos que firam os direitos humanos ou que deningram a imagem de outrém; 4. O suplemento se reserva ao direito de ampla divulgação do conteúdo enviado, sem que haja a necessidde de pagamento de ambas as partes. Basta enviar para o e-mail: revistaentrepoetasepoesias@gmail. com
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O Pianista
Dejair Martins
dejairmartins@live.com
Artigo
Há distintas maneiras de contar esta história – disse o pianista – porque não é certo que uma imagem valha mais que cem palavras. Se o juiz tivesse escutado a garota talvez tudo fosse esclarecido. Não o crime, se é que houve um crime, mas ao menos a verdade. Jogou-se um pouco atrás no banquinho baixo no qual se sentava em frente ao piano como tinha visto Glenn Gould que se sentava, bem abaixo, colado, longe do teclado, como se os braços não estivessem em seu corpo e tocava torto, agitando-se, enquanto improvisava a maneira de Erroll Garner sobre o standard de I Found a Million Dollar Baby (in a Five and Ten Cent Store). – Mas ao menos a verdade… – repetiu e começou a rir e depois se inclinou buscando o macaco que se movia, nervoso, de lado no chão, agitando o rabo, mas não conseguiu agarrá-lo porque o macaco escapou até um canto e se escondeu embaixo das pernas de uma mesa no fundo do salão vazio. Porque tinha um macaco, o pianista, um macaquinho de cara branca, esperto, rápido que se chamava Thelonius, embora o macaco, para dizer as coisas como são jamais lhe dava bola e somente o olhava, às vezes quando o pianista lhe dizia, ao macaco, Villegas. O pianista tocava todas as noites para três ou quatro contrabandistas e dois ou três dealers de droga e algumas garotas de vida fácil e vários viajantes comerciais, no cabaré Mogambo, aí, nesse povoado perdido na fronteira com o Brasil, na província de Misiones, no meio da selva, ao final de um caminho de asfalto, que todos no lugar, diziam que era a rota pan-americana e que se um seguia até o norte subindo e subindo sem perder a linha branca asfaltada, ao final chegava ao Alaska.
11 – E dizem Alaska, - disse o pianista – porque o Alaska é o paraíso para um povo morto como este onde sempre faz mais de 40 graus na sombra. Oh, a brancura do Alaska – disse o pianista – penso nos grandes icebergs que flutuam no mar gelado cada vez que alguém faz tilintar o gelo num copo de guisqui . Depois repetiu que ele conhecia a história melhor que ninguém porque passava as noites escutando aventuras e delírios e sonhos de todos os desesperados que vinham morrer na fronteira. Tocava a partir das oito e fazia várias entradas até que começava a clarear e sempre alguém lhe contava algum conto extraordinário. O pianista pensava que as peças que tocava no piano e as histórias que escutava no cabaré formavam uma só melodia. Como se ele as acompanhasse no piano, como se a vida não pudesse ser contada sem música de fundo. – Para começar a garota esteve vários dias no povoado e veio me ver antes do acidente. Se depois ela quis escapar ela saberá por que. A selva transforma a gente e a enlouquece, mas ela era mais louca antes de chegar que depois de ter ido. Louca é um dizer. Nunca se viu uma mulher assim por estas bandas. Bela como um anjo e distinta como uma princesa polaca. Clide Calveyra. Sentava-se aí onde está o senhor me escutando tocar e sempre me pedia The Lady is a Tramp e eu tocava como se fosse Bill Evans e ela – se tinha bebido gim suficiente – cantava em voz baixa, algumas estrofes, só para mim, imitando o estilo sossegado de Maria Bethania. Alguns dizem que a garota usou Toninho como anzol para pescar Mister Morrison, mas se um viu uma vez os olhinhos de gato de Morrison, dará conta de que isso é impossível. Um sedutor, uma espécie de
12 bebê gordo e malvado. Dizem que ela matou por dinheiro, que fingiu um acidente para tirar de cima de Toninho, que agora seus advogados pleiteiam com a família Morrison enquanto Clide está descansando em um convento de monjas no Paraguai. Falso, se alcança com um cruzar de pernas para conseguir o que quer. E, além disso, falso, porque ela nunca teve família e pelo que se sabe terminou apelando para proteger-se a um advogado morto de fome, um defensor de pobres e indigentes, um bêbado sem esperança que tem seu estúdio no fim do mundo, num povoado que se chama San Bartolomè. Charlie “Toninho” Samoná já tínhamos visto antes aqui, na fronteira, porque vive na selva. Foi o único sobrevivente num acidente de aviação há dois anos e passou um mês perdido na montanha e caminhou mais de uma semana antes de chegar a Manaus. Ganha a vida contando essa história às viúvas ricas e fazendo excursões pelo rio até o fim do Amazonas. Parece que Toninho conheceu Mister Morrison e a garota num hotel de Buenos Aires e os entusiasmou para subir a selva. Thomas Morrison III é herdeiro dos herdeiros e a fortuna de sua família consta na bolsa de Tóquio. Encontraram o Land Rover de Toninho num barranco, cinquenta quilômetros ao norte daqui, com o cadáver dos dois homens e nenhum rastro da mulher. No porta-malas havia duas fitas de Super-8. Morrison os tinha filmado continuamente, Clide e
Araçá - Edição: Maio de 2020 Toninho, sobretudo Clide, como se para esse fosse feita a viagem. Para isso e para morrer em um descampado. Na última imagem o vê sentado num tronco, numa clareira, com óculos escuros e nu, uma pistola 7,65 na mão enquanto que ao fundo se percebe a silhueta esquiva de Toninho que estende a mão até a garota que escapa. Seguro Morrison apontou a câmera numa árvore e filmou a si mesmo e a imagem captou o momento em que Toninho diz à garota que fuja ou para retê-la, mas tudo é confuso porque os dois estão já fora de foco. Essa imagem final e as imagens da última semana quase se perdem porque um camponês roubou a câmera na tarde do acidente; encontrou a caminhonete com os mortos e a câmera jogada ao lado e a pegou para vendê-la. Descobriram-no várias semanas depois e o homem estava apavorado porque temia que o acusassem do crime. Era um mestiço japonês, que tinha uma plantação de mandioca nos arredores de San Cristóbal. Não havia visto nada, não sabia nada, só disse que os macacos e os papagaios essa noite tinham gritado até o amanhecer e que saiu para ver o que ocorria e encontrou o Land Rover capotado e restos de um acampamento na clareira. A câmera estava intacta, carregada com os últimos metros de filme. Claro que quando se pode ver que Morrison filmou antes de morrer já todos no povoado tínhamos uma versão e ninguém
necessitava de outras provas, nem acreditava nas imagens. Ninguém, claro, salvou o juiz. Mas o juiz era um obstinado, um homem abstrato, o que eu chamei um homem abstrato, que vivia de acordo com seus princípios e somente fazia juízos críticos a priori, um kantiano, um discípulo de Kelsen, cujo princípio básico, sua razão suficiente, diria, era que apenas se crer no que se vê e apenas nisso. Tinha olhos claros, desse celeste apático que os ingleses chamam de cinza e porque era filho de ingleses se sentia obrigado a ser irônico, distante, indireto, com um humor tão fino que um demorava uma semana para se dar conta de onde estava a graça do assunto cada vez que o juiz dizia algo divertido. Era um homem detalhista, muito cuidadoso, me lembro que levava uma garrafa de brandy, uma dessas garrafinhas de metal, forradas de couro fino, que se guardam no bolso secreto do colete e isso sei porque uma vez o vi meter os dedos finos na cava, como se fosse um ladrão de si mesmo, o juiz, e tirar a garrafa limpamente e beber um trago, no meio da rua. Levantou-a apoiada contra a palma da mão esquerda, porque era canhoto, entre o polegar e o mindinho, enquanto com a direita abria a tampinha niquelada e deu um gole seco, torcendo o pulso e depois de beber limpou a beirada com um pano branco e me convidou, mas
Araçá - Edição: Maio de 2020 eu lhe disse que não bebia na rua e ele sorriu resignado e começou a me contar que fez vários coletes com um alfaiate em Olivos que era o único, segundo o juiz, disse o pianista, que, contudo recordava o costume dos cavaleiros ingleses de levar sua garrafa de brandy no bolso do colete e seguia cortando esses coletes com bolso secreto embora o juiz e o dono de uma cadeia de cinemas de Adrogué e o embaixador da Índia em Buenos Aires eram os últimos clientes que restavam ao alfaiate, claro que logicamente, agregou ao juiz, fazer o colete queria dizer também fazer o traje, assim que o alfaiate podia sobreviver, em sua casa em Olivos, onde tinha uma oficina e vivia sozinho entre casimiras e centímetros de goma amarela e ternos com as entranhas desenhadas com grandes gizes triangulares exibidos sobre brancos manequins de madeira sem cabeça. Deu-me toda essa explicação porque pensou que eu tinha me surpreendido, não por vê-lo tomar um trago na rua e nessas circunstâncias, mas pelo costume insólito de usar colete no verão, no norte de Misiones, como se me dissesse que usava o colete e as camisas brancas e o traje escuro só para levar a garrafa de brandy com ele aonde fosse. Não era um alcoólatra nem nada parecido, sobretudo comparado com a gente daqui, que toma álcool marca Acevedo que compra na farmácia e mistura com cascas de laranja para perder a cabeça ao pri-
13 meiro gole, nada disso, o juiz usava a garrafinha quando estava desesperado ou muito nervoso porque na realidade seu costume em seguida, foi vir aqui tomar seu copo de guisqui ao cair da tarde, a vista de todos, quando terminou o trabalho do dia no juizado que improvisou no hotel. Era um homem decente que chegou neste lugar no fim do mundo e se deixou buscar a verdade como quem rastreia na selva um cavalo perdido. Trabalhava em Posadas, mas era de Rosario e viveu em Londres e o designaram esse caso porque sabia falar inglês. O vimos chegar uma noite a estação e descer do trem com uma mala e um impermeável e olhar o povoado como quem acaba de desembarcar no inferno. E era ali onde desembarcou claro; mas ele confirmou somente no final. Tinha um cômodo reservado no hotel da praia e em seguida quis ver as fitas. Passou três dias trancado no quarto do hotel com as imagens tilintando contra uma tela presa na parede, sentado na penumbra sob o ventilador de paleta, atrás do projetor, fumando e tomando notas, fazendo planos, mapas, certificando dados, rostos, recordações. Depois instalou o escritório do julgado e abriu o sumário e começou a chamar as testemunhas. Gente da zona, camponeses, pescadores,
que viram passar Morrison, Clide e Toninho, acampar, seguir, adentrar cada vez mais na selva. Os relatos confirmavam, desmentiam, completavam o que se via nas imagens filmadas. A história se ia construindo em fragmentos, uma história densa, cada vez mais perversa. Viajaram até o norte, paralelos ao curso do rio, pescando e caçando e fotografando aos pássaros ou gravando o grito dos macacos como se esse fosse o sentido da aventura. A partir desse itinerário se podia tecer várias tramas igualmente verdadeiras e igualmente sinistras. Em uma, por exemplo, Morrison usava Clide e Toninho para seu prazer pessoal; em outra, Toninho enganava Morrison; em outra se enfrentavam os dois esmagados pelo tédio e o horror de estar longe de tudo, perdidos na montanha. O certo é que logo tomaram a decisão inesperada de regressar e se voltassem e tivessem o acidente no barranco do norte. Nessa trama contraditória somente a figura da menina se destacava, nítida, sempre igual a si mesma. Como se apenas a mulher existisse realmente e o resto, incluindo os mortos fossem ficções, conjecturas. Nesse jogo de imagens e de falsas realidades ficou capturado o juiz.
14 Todas as suas convicções derrubaram-se quando o camponês entregou a câmera e pode ver a fita que faltava. Essas imagens o alucinaram, ficou fixo ali, fascinado pela garota e por sua história. Primeiro buscava provas, mas depois só buscava a garota. Detinha a imagem sobre a imagem nua de Clide, sobre a cama onde Toninho e ela se deleitavam na depravação, sobre a garota beijando Morrison, sobre a garota caminhando sozinha por uma clareira do bosque ou dormindo no catre, embaixo do mosquiteiro, junto ao fogo, no meio da noite. Passava cada vez mais tempo em seu quarto, detido no corpo belíssimo de Clide reproduzido na tela e tomava cerveja, porque começou pedindo cerveja e esse foi o primeiro sinal de que já havia afundado. Sentava-se na poltrona de cana no meio do quarto, olhando as imagens. Às vezes saia na sacada, em frente estava à montanha, atrás a luz celeste do projetor com a figura inesquecível da garota. As pessoas são esquisitas, mudam rapidamente, basta uma ilusão e a vida se dá a volta. Começou a tomar cerveja brasileira e a ficar horas quieto em frente à imagem da garota, buscando algo que se tinha perdido. E esses foram para mim, os primeiros sinais de que o juiz mudou. Tomava cerveja em seu quarto, guisqui no cabaré e brandy na rua. Essa seria para mim disse o pianista, a forma mais rápida de descrever sua evolução. Lembro-me a primeira vez que
Araçá - Edição: Maio de 2020 entrou aqui. O local estava vazio, eu tocava How Deep is the Ocean de Irvin Berlin segundo o arranjo de Oscar Peterson e o juiz parou de frente ao bar e pediu um guisqui. A luz entrava pela claraboia e tudo estava quieto e tranquilo. De repente Thelonius trepou no bar, correu pelo estanho parando em frente ao juiz e colocou os dedinhos em seu copo de guisqui, isso durou um instante que pareceu eterno, porque em seguida o macaco escapou até a lateral e começou a chupar os dedos, sentado sobre o balcão, levantando e baixando a carinha, com uma expressão de assombro e de tristeza em seus olhos enormes. – Ouça – disse o juiz e me olhou, agora com o copo na mão – o macaco lavou os dedos no meu copo de guisqui. – The monkey washed his finger in my glass of whisky – disse eu – Pelo título não conhecia, mas se cantarolar seguro que me lembro. Então, logo um segundo de hesitação o juiz se deixou rir, foi uma risada estranha, longínqua, como se risse em inglês. Depois desceu do banco e veio até aqui e se sentou na mesma mesa onde se sentava Clide para cantar The Lady is Tramp. Estava em outro planeta, isso soube esse dia o juiz quando Thelonius fez seu pequeno número de meter os dedos no copo de guisqui e os chupar, porque também o macaco (como todos nós) necessitava
beber para suportar a vida. Estava em outro mundo, estava na fronteira, no limite do nada. Entendemo-nos em seguida, o juiz e eu pela piada do macaco, porque nenhum dos dois era daqui, porque os dois perderam tudo, salvo o prestígio incerto do que parecíamos ser (um juiz, um pianista) e porque nenhum dos dois fez o que o outro fazia. No começo veio para escutar falar de Clide, porque eu vi de perto a garota e se aproximou para ter uma visão um pouco mais direta das coisas. Era óbvio que estava obcecado com ela, já não com o que podia complicá-la no crime (se é que houve crime), mas com o mistério da menina. Nunca antes vi de perto um juiz – disse o pianista –, mas entendo que é uma profissão solitária. Difícil ser juiz, mas este além de ser juiz era um alucinado, um possuído. Na madrugada se algum de nós saia caminhando pelas ruas vazias via sempre no andar mais alto do hotel o juiz, fumando, na sacada, buscando o fresco da madrugada com a luz escurecida do projetor iluminando apenas a janela do quarto. Falava dela como se fosse uma recordação, como se ela o abandonara por outro ou se fora embora sem dar explicações. Buscava detalhes, traços que confirmavam o que já sabia. Parecia doente, enfurecido. Não tinha outra coisa que imagens numa tela branca,
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Araçá - Edição: Maio de 2020 mas as convertia no único que havia de verdadeiramente real em sua vida. Soube claramente uma noite em que esperou até que fechasse o cabaré e veio comigo. Saímos juntos ao calor úmido que subia da montanha e caminhamos até seu hotel. Essa foi à vez que o vi beber da garrafa na rua e essa foi à vez que me contou a história do alfaiate de Olivos que fabricava coletes com bolso secreto para ele, para o dono dos cinemas de Adrogué e para o embaixador da Índia em Buenos Aires. Essa madrugada veio como a despedir-se, porque decidiu me disse subir para buscá-la, disse subir e essa foi à prova de que mudara e de que já falava como nós, como os forasteiros que terminamos perdidos na selva. Eu sabia da fazenda “Las lobas” na fronteira sul? Tinha provas, ela estava ali, disse o capanga dessa plantação de café ao lado do Brasil. Não tinha jurisdição, mas isso não o deteve. Contratou um chofer e foi nessa mesma manhã. Saiu para buscá-la, meteu-se na selva, somente com a imagem da garota e a segurança de que se alguém a viu alguma vez não poderia esquecê-la. Chegou à fazenda dois dias depois. Conversou com o patrão, Don Cayetano Souza, que o recebeu como a um dignitário do governo. A garota esteve ali, se sentia perseguida, dizia que era vítima de uma conspiração que queria culpá-la de um crime. Ficou duas semanas e depois seguiu viagem, estava assustada, necessitava que a defendessem.
Não foi muito longe, lhe disse Souza, foi a San Bernardo buscar um advogado, um tal Quiroga. Então o juiz seguiu essa pista, anotou os dados, cruzou o rio e chegou a San Bernardo numa lancha ao anoitecer e se meteu nos bairros altos do povoado. A casa do advogado tinha dois andares e demoraram em recebê-lo. Conduzido por uma mucama que parecia muda atravessou várias escadas e corredores até um cômodo onde um homem delirava de febre estendido numa cama coberta com um mosquiteiro. Era Quiroga. De tempos em tempos o homem tirava um braço da gaze e levantava uma garrafa de gim para tomar do gargalo. Às duas horas o juiz pode entender que a garota o havia pedido proteção legal, que era inocente e que ele a havia aconselhado que se apresentasse diante o juiz, mas ela foi embora e cruzara outra vez a fronteira e que andava por ali, escondida, entre Misiones e Formosa. Isso foi tudo que trouxe da viagem. A conversa com De Souza e os papéis indecisos da quitação que escrevera esse defensor de pobres e indigentes, o Tordo Quiroga, como o chamavam todos em San Bernardo, um bêbado perdido, doente de malária, que ganhava a vida assinando sem ler pedidos de habeas corpus para os traficantes paraguaios que defendiam a extradição na
zona da tríplice fronteira. Isso era tudo, dizendo não era nada, mas o alcançou. Com esses testemunhos e esses dados que qualquer um descartasse, ditou a sentença. Disse que foi um acidente, que a menina estava livre de culpa e cobrou e mandou o escrito a Posadas e antes que a justiça se enterrasse do seu ditame, fez tirar os diários da província a sentença com o nome e a foto de Clide e a declaração onde assegurava uma ou outra vez que a menina era inocente. Depois disso sentou-se esperando. Estava convencido de que ela ia vir. Mas o que chegou não foi à menina, e sim uma ordem do tribunal federal de Santa Fe que lhe exigia voltar imediatamente e levar as provas, as fitas, os documentos, porque sua sentença foi julgada e sua conduta jurídica e sua ética profissional postos em dúvida. O juiz ia ser julgado. Pagou todas as suas contas, preparou a mala e se foi, com o impermeável que nunca foi usado no braço direito, a garrafa de brandy no bolsinho do colete e seu olhar sempre claro, sempre imperturbável. Pediu um táxi que o levou ao aeroporto de Posadas. Quando terminou de fazer os trâmites e despachou a mala entrou no bar e pediu uma cerveja. E então sucedeu algo extraordinário. Sentada numa mesa contra a janela tomando um coquetel estava Clide. Ele estava para-
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16 do no balcão, muito próximo dela e a olhou contra o ar limpo da tarde e a reconheceu. A menina estava ali, tranquila, com seu belo rosto iluminado pela luz que entrava pelo lugar, mas foi como se ele nunca a tivesse visto. Não é maravilhoso? – disse o pianista-. Um momento perfeito, inesquecível. Estiveram juntos nesse bar quase vazio, como num sonho. Por fim o juiz terminou a cerveja, saiu, cruzou o hall e passou a área de embarque. Clide continuou no bar esperando seu voo para Buenos Aires e, sem dúvida, o viu por uma janela caminhar pela pista, com o impermeável no braço e subir no avião que o levava de volta a realidade. Sempre lamentei não estar ali para poder acompanhar a cena com o piano. Tudo podia ter mudado e tudo seguiu igual. A vida é esquisita, disse o pianista e se pôs a rir. Então se inclinou sobre o piano e começou a tocar The Lady is a Tramp. O macaco em um canto se agitou quando escutou a melodia e olhou até a porta com seus grandes olhos inquietos.
Notas: 1- Conto traduzido a partir do texto publicado no livro Ricardo Piglia: la escritura y el arte nuevo de la sospecha (GANCEDO, 2006). 2 - Manteve-se aqui o termo original utilizado pelo autor, cujo significado refere-se a traficantes (N.T.). 3- Uísque (N.T.).
REFERÊNCIA GANCEDO, Daniel Mesa (coord.). Ricardo Piglia: la escritura y el arte nuevo de la sospecha. Sevilha: Secretariado de Publicaciones – Universidad de Sevilla, 2006.
Dejair Martins é Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente realiza estágio de Pós-doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Helena Corrêa é professora e pedagoga
METAMORFOSE Helena Corrêa
helenamscorrea@gmail.com
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udar é preciso, transformar é urgente. O mundo pode mudar, a vida pode se transformar, mas nada me fará desistir de tudo que acredito ser essência em minha vida. As várias quedas, atropelos, bofetadas, têm me feito mais forte, blindada e, querendo ou não, mais insensível para algumas coisas. As borboletas, antes de se tornarem belas, são lagartas, na maioria das vezes desprezadas, vistas como nojentas, com diversos adjetivos que depreciam sua imagem. Até chegarem à pompa de uma linda borboleta, sofrem duramente de tudo e toda sorte de críticas. Ainda serei borboleta (quem sabe um dia), mesmo que o tempo de vida de uma borboleta seja curto, eu saberei para que e porque passei nessa terra. Há momentos de lagarta, de casulo e há momentos de borboleta. Que eu não me deixe abater no momento de lagarta, que o casulo me traga o isolamento, crescimento e fortalecimento para a chegada das asas, que estas e a beleza de ser borboleta não me façam soberba e sim misericordiosa e ajudadora aos que estiverem no mesmo processo. Que assim seja.
Altamir Lopes
altamirlopesconsultoria@gmail.com
A virulência da falta de educação
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Altamir Lopes é gestor de RH.
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izem os cientistas que quanto mais se conhece a respeito de um vírus, mais chance se tem em lograr vitória na luta contra ele. É justamente por isso que se estudam todos os detalhes a respeito de um micro-organismo: para que se torne possível criar os medicamentos ou, até mesmo, a vacina para combatê-lo. Essa mesma linha de raciocínio, se for aplicada a outras áreas da nossa vida vã, nos ajuda a chegar à conclusão clara a respeito do que realmente está acontecendo na sociedade desde tempos idos. Parece que, desde a sua criação, o ser humano sente dificuldade em se encontrar. Esse “encontro” está diretamente ligado à sua capacidade de absorver (ou de compreender sobre) o conhecimento a respeito de si próprio, do semelhante e da interação entre si e tudo o que o cerca, incluindo o meio ambiente e suas leis naturais. Essa dificuldade, por vezes, aparece velada em relação à sua origem, mas, definitivamente, estabelecida em relação às suas consequências, ela se espalha como um vírus maldito que não permite que as pessoas adquiram a vacina contra a ignorância chamada educação. Não me refiro apenas à educação acadêmica, ou seja, aquela conquistada através dos livros didáticos, da escola formal, dos professores... Não! Refiro-me também à educação adquirida a partir daquilo que os nossos pais nos ensinam. A educação que se consegue extrair da leitura dos livros que escolhemos voluntariamente, para mergulharmos no mar de ideias ou para questionarmos seus conceitos. Refiro-me à educação emocional, educação interpessoal, educação intrapessoal... Por que não incluir também a educação baseada nas regras de etiqueta, nas regras de convivência, de como lidar adequada e empaticamente com o próximo, de ter a capacidade de falar bom dia, boa tarde, boa noite, obrigado, com
17 licença, por favor, “me desculpe”. O que dizer da educação que se adquire a partir do desenvolvimento espiritual? Essa, então, como é complicada! Como é complexa! Muitos dizem possuí-la e agem falsamente contra ela própria - contra sua própria fé - e tornam-se pessoas condenadas pelas próprias palavras e ações. Ademais, tal qual um vírus mortal, é altamente contagioso. A falta de educação se espalha onde encontra terreno fértil as mais profundas manifestações de preconceito, maldade, engano, mentira, ódio, orgulho, ganância e desumanidade. Parece que, muitas vezes, quando o ser humano é convidado a adquirir o soro que poderia curá-lo da falta de educação, ou quando ele é estimulado a tomar a vacina para se prevenir contra esse mal, parece haver prazer em não querer adquirir educação alguma. Muitos a rejeitam, sim, muitos. Faria isso parte da natureza humana? Sobre as consequências, ou melhor, com relação aos sintomas dessa falta de Educação, torna-se evidente um modo contínuo de retroalimentação – e, mais claro ainda, quando as pessoas percebem que essas mesmas consequências dos seus maus atos antieducacionais não lhes são devidamente cobradas. Com efeito, outros acabam pagando pela falta de educação alheia. Exemplo disso é a dificuldade em se respeitar a autoridade, especialmente a autoridade constituída. O ser humano parece ter dificuldade com o ato de obedecer. Seja o que for. Nesse sentido, considerando a educação relevante e poderosa à existência, ela encontra em si mesma seu mais frágil tendão, decerto não conseguirá - sozinha - alterar esse comportamento tão explicitamente (des)humano. Sim, a mesma educação afirma, como regra áurea, as pessoas possuem a liberdade de aceitar suas gotas vacinais ou sorológicas, ou não; ela mesma se expõe como autolimitante. Enquanto isso, nos apercebemos imersos em ambientes contaminados pela falta de educação. Vivemos em quarentena, sim, há mais tempo do que pensávamos.
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Erick Bernardes
ergalharti@hotmail.com
O imundo do mundo em Simpatia pelo demônio, de Bernardo Carvalho
CaPa
Erick Bernardes é professor de Língua Portuguesa e Literaturas. Mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ) e Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Este ensaio aborda o romance Simpatia pelo demônio (2016), de Bernardo Carvalho, tendo como tema central o discurso aparentemente fabular do seu enredo. Interessa, portanto, o aspecto caricatural dos personagens e a estrutura de fábula que reveste a trama em questão. Escolheu-se a perspectiva teórica sério-cômica, no intuito de ir além do teor psicológico que é peculiar a Carvalho. Considera-se, na obra em questão, o modo como seus enunciados transitam ora pela ludicidade dos pequenos acontecimentos do dia a dia, ora sobre assuntos de violência temáticas de guerra civil. Enfim, são problemas como desavenças ideológicas sob o pretexto da religião e o sequestro internacional baseado em conspirações terroristas, que aliás revelam um convite à reflexão, acerca da civilização no auge da modernidade considerada globalizada. De modo a contextualizar esta fala, vale ressaltar que o romance Simpatia pelo demônio (2016) é uma narrativa em terceira pessoa, cujo enredo gira em torno de Rato, um agente humanitário locado em Nova Iorque e de personalidade contraditória. Ao beirar os seus cinquenta e cinco anos de idade, sendo considerado um Coach reconhecido internacionalmente, e autor do célebre Tratado sobre a violência, esse conceituado ativista humanitário viaja o mundo ministrando palestras sobre temáticas de conflitos étnico-religiosos. No entanto, após alguns reveses da vida, o protagonista, marido e pai de família aparentemente exemplar, vê
a sua vida pessoal e profissional subitamente desmoronar. A trama possui dois fios condutores estruturais: uma linha diegética que conduzirá o leitor à vida amorosa de Rato, munindo a malha textual de peculiaridades típicas de uma história cotidiana acerca de um indivíduo em suas crises conjugais, e outra, que incide sobre a vida pública desse protagonista anti-herói, ampliando o horizonte de percepção do leitor sobre assuntos polêmicos e provocadores, tais como radicalismos religiosos, a relação político-econômica proveniente dos conflitos armados, até assuntos globais de conspiração política. Ao discorrer sobre a aventura de Rato (ou seria desventura?), quando este tenta cumprir a missão de pagar o resgate por alguém incógnito ao grupo radical terrorista, o narrador não hesita em pontuar a diegese com explanações críticas, muito próximas das reflexões acerca da civilização e da barbárie extraídas do pensamento de Theodor Adorno e Walter Benjamin, referidos pela própria voz narrativa. Conforme: O homem almeja a paz quando já não aguenta lutar ou enquanto dura a memória do horror, que costuma ser curta e caracteriza a fase gloriosa dos processos civilizatórios fadados a terminar em guerra. Basta dar tempo ao tempo para que, recuperadas as forças, o entusiasmo se transforme em rancor, o homem se esqueça do que passou e se prepare nova-
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Araçá - Edição: Maio de 2020 mente para o ataque exigido pelas circunstâncias de sempre mas que ele verá como novas e inesperadas. (CARVALHO, 2016, p. 30) Desse modo, notamos que o horror transformado em espetáculo revela-se elemento preponderante na configuração da trama de Simpatia pelo demônio (2016), evidenciado por um impasse ético criado pelo protagonista, quando este carrega consigo “adereços” de guerra, provenientes dos lugares dominados pela violência pelos quais passou. Essas atitudes contribuíram, em parte, para o começo do declínio da sua carreira, porque aqueles “espólios” transformados em souveniers, oriundos dos países em batalha, e que são ostentados pelo personagem central, revelaram-se talismãs da queda demoníaca de quem outrora fora símbolo do “bom” serviço humanitário. Soma-se a isso, o escândalo sexual resultante da armadilha engendrada por um mexicano chamado chiuaua (ex-amante e algoz do Rato) e o personagem denominado Palhaço, cuja relação homossexual, entre o portador da alcunha canina e o agente humanitário, reverberou na mídia mundial como um suposto estupro com motivações homofóbicas, decorrente de uma farsa inventada pelo neurocientista mexicano, no intuito de difamar o agente humanitário. Do céu ao foi inferno e, sem muitas delongas, de figura conhecida, ora simpática ora desacreditada pela própria agência na qual o personagem trabalhava, o que nos salta aos olhos no texto de Bernardo Carvalho é um sujeito em crise sob múltiplas relações, sejam elas íntimas ou públicas, intrínsecas ou extrínsecas ao próprio protagonista. De acordo com Marilena Chauí, parafraseando Walter Benjamin, a barbárie “não está no exterior, mas é interno ao movimento de criação e transmissão da cultura” abordados em Simpatia pelo demônio, pois, para nós, o enredo em questão contemplaria um problema sócio-político: “o cortejo triunfal dos vencedo-
res pisoteando os corpos dos vencidos e (que) conhece o preço de infâmia de cada monumento da civilização”, a cultura dominante (o ocidente) em vias de aniquilamento do outro (o oriente). Vale ressaltar, que esta receita narrativa de conflitos bélicos entre civis não é nova, as circunstâncias romanescas é que são outras, pois Bernardo Carvalho já havia se utilizado da fórmula de relacionar uma panorama global de peripécias amorosas e familiares entre os seus personagens, construído sobre o pano de fundo de guerras étnicas e religiosas. Em outras palavras, se em O filho da mãe (romance publicado em 2009) a diegese evidenciava o trânsito de personagens por países como Brasil, Guiana-francesa, Suriname, Rússia e Chechênia, atrelados ao tema da violência, agora o cenário da ação em Simpatia pelo demônio - embora inclua anisocronias pontuados por cidades como São Paulo, Nova Iorque, Berlim - permite ao autor se valer do ingrediente psicológico, semelhante aos modos analíticos da escola freudiana na construção do perfil dos seus personagens. Ademais, assim como fizera em Reprodução (2013), entre uma ou outra referência de Twitter ou Skype, o tema da crise existencial também é explorado pertinentemente neste seu último romance. No entanto, de maneira distinta dos seus livros anteriores, em Simpatia pelo demônio (2016), é a caracterização da estrutura “aventuresca” que abre espaço para os moldes caricaturais na criação dos seus personagens. Em entrevista concedida por Bernardo Carvalho a Camila von Holdefer (2016), vemos declaradamente o tom fabular incidir sobre os apelidos dados aos personagens. Conforme: “Em Simpatia pelo demônio, eu tentei dar um sentido de fábula à primeira parte, que é escrita à maneira de um romance de aventuras, de ação, num ambiente de guerra. Os nomes dos personagens principais também remetem à fábula”. Dessa forma, se por um lado, a alcunha do protagonista Rato denota mobilidade, por atravessar zonas perigosas e vias escusas, por outro lado, seu ex-amante e algoz, chiuaua
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se nos apresenta como uma referência depreciativa, (nota-se que a letra inicial da raça canina é minúscula) tal qual uma sujeito mimado e egocêntrico, e que preferia ser chamado de “raposinha” na intimidade. Além da figura do Palhaço, personagem cujas atitudes na trama se afiguram a própria antítese semântica de um personagem circense: em vez de alegria, vemos a melancolia e o sadismo desvelar-se, sobretudo, durante uma inesperada conversa com o protagonista no avião. Assim, somado ao aspecto caricatural dos personagens e da estrutura fabular da trama, podemos afirmar que para além do teor psicológico que lhe é peculiar, este último romance de Bernardo Carvalho transita pela ludicidade das pequenas ações cotidianas, quando, por exemplo, o “Palhaço o levava (o chiuaua) para passear, fazia todas as suas vontades e o deixava brincar livremente” (2016, p. 123). Esse personagem caricatural, terceiro elemento nuclear na relação amorosa, mestre da comicidade, não hesitava em tratá-lo “como um cãozinho de estimação pulando nas pernas de estranhos e cheirando o rabo de outros cães, até que se aborrecia (...) e o arrastava de volta para casa, na coleira” (CARVALHO, 2016, p.123). De acordo com Camila Holdefer: Apesar da densidade do protagonista e de seu amante, o próprio Bernardo Carvalho ressalta, na entrevista concedida ao Livros abertos, que chamar os personagens de Rato e chihuahua reforça o tom de fábula da narrativa. Qual é a moral, se há alguma? O amor como tábua de salvação para romper com o “percurso miserável de um indivíduo do nascimento à morte”? É apenas uma das muitas ressonâncias de um dos livros mais brilhantes do ano. (HOLDEFER, 2016, s\p) Portanto, entre um aspecto ou outro da bar-
bárie em nossa civilização, e o artifício fabular narrativo de um inusitado triângulo amoroso, o recurso de construção textual se assemelha ao teatro do absurdo, ora com problemas hiperbólicos como a guerra entre civis e o sequestro internacional baseado em conspirações terroristas, ora como uma história de amor e perversão. Enfim, entre um homem-bomba e o sequestro planejado por radicais religiosos, conjugado ao enredo amoroso de três personagens que beiram a “comédia pastelão”, a obra Simpatia pelo demônio (2016) se nos apresenta como uma provocação, ou melhor, uma reflexão acerca da civilização no auge da modernidade alcunhada globalizada. Referências: CARVALHO, Bernardo. Simpatia pelo demônio. São Paulo: Companhia da Letras, 2016. ____________, O Filho da mãe. São Paulo: Companhia da Letras, 2009. Disponível em: <http://www.livrosabertos. com.br> Acesso em: 14 nov. 2016. Disponível em: <https://acasadevidro. com/2013/08/23/walter-benjamin-comentado-por-marilena-chaui> Acesso em: 14 nov. 2016.
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A MULHER DO DOUTOR MARCELO Gilvan Carneiro é poeta e escritor.
Daquela, ninguém comentava. Ou melhor, comentava-se demais, mas à boca pequena, sem sequer pronunciar o nome. Chamavam-na “ela”. Ou “a mulher do doutor Marcelo”. Chegara do Rio de Janeiro, de braços dados a ele recém-formado. Nome que todos tinham muita dificuldade de pronunciar. Falavam: “soçologia”. Marcelo não ligava. Prosseguia a conversa, não se importando com a sociologia ou “soçologia”. Não dava importância ao diploma que adquirira em uma das melhores faculdade da capital. Dizia que os doutores não sabiam nada. “Nunca viram uma vaca”, dizia ele. Mas “ela”, ela sempre corrigia: “sociologia, não soçologia!!!”, com veemência. Só faltava mandar repetir. O que ninguém ousava, com medo de errar de novo. Apenas abanavam a cabeça, dizendo: “Sim senhora, sim senhora.” Fazia compras abundantes. Sempre que ela esteve na cidade, o crédito dos Bernardo no armazém do seu Francisco aumentava e muito, quase que dobrava. O doutor Paulo, pai do doutor Marcelo, permitia essa prodigalidade exercida pela nora, como que para dizer a Mar-
Gilvan Carneiro gil.carneiro@uol.com.br
celo : ”Não está vendo? Dinheiro não é só um pedaço de papel. E no fundo, você, nem com sua sociologia, nem com a mesada que recebe, não daria para pagar sequer as compras que a sua esposa faz no armazém. Todos comentavam a gastança sem mais nem quê da mulher do doutor. Até mesmo seu Francisco, que aumentava a féria, ficava contrariado com a gastança da mulher. E o pior, na maioria das vezes, com bugigangas, bobagens. Também quem mandava a venda do seu Francisco, aqueles “secos e molhados”, ter de tudo? Então, a madame entrava na loja e ia pedindo. Pedindo, não, mandando: “Eu quero um desses negócios. Outro daquele outro. Daquele eu quero três, do outro quatro”. E ia assim, numa numerada danada, quase infinita, que até seu Francisco que, em se tratando de dinheiro, era o melhor matemático do lugar, confundia-se com os números. Mas as compras não eram nada perto das roupas que ela mandava vir do exterior, lá do Rio de Janeiro. Eram “tudo moderna, dessas de mostrar o corpo. Realçar as formas”, além de muito extravagantes. Sendo uma mulher
bonita, de corpo bem feito, as roupas que usava chamavam ainda mais atenção. Era uma mulher bonita, é verdade, diziam, achavam, palpitavam, apostavam até, porém, mais chamavam atenção as roupas dela do que ela. Perto das roupas, não fosse ela que as carregava, ela quase que passava despercebida. Mas não, as roupas iam com ela. De modo que ninguém podia ficar sem notar nela. Era ela passar e todos pararem o que estavam fazendo só para olhar para ela ou sua roupa. Alguns paravam discretamente, diminuindo o compasso do andar, ou do fazer, outros não ligavam, paravam mesmo de repente. Podia até estar fazendo algo de importância, rápido, porque necessita de urgência. Mesmo assim, paravam, nada nesse momento podia ser mais urgente do que ela e sua roupa. A mulher do doutor Marcelo. Seu Marcelo não ligava. Quando passava com ela era o mesmo. Também, com ele, as pessoas todas eram
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discretas. Olhavam mais de soslaio ainda. Devagar, para ninguém reparar. Seu Marcelo cumprimentava a todos, sem distinção. Mas, também muito discreto, um cumprimento quase sem querer. Tiveram uma filha. Mesmo com ela dizendo que não queria engravidar. Dizia que a barriga iria enfeia-la, que o marido iria enjeitá-la, essas coisas. E Marcelo só atenções. Era ela pra cá, ela pra lá. Ela e sua barriga que, mais do que ela, Marcelo parecia carregar. Quando nasceu a criança, não quis amamentar. Disse que fazia mal aos seios. “Eles vão cair”, dizia ela. “Bobagem”, respondia Marcelo. “Onde é que você ouviu isso?”. E ela: “Eu não ouvi, eu sei”. Um dia, foram-se, mãe e filha, não se sabe como nem por quê. De repente não estavam mais lá. Mas, dizem as bocas pequenas, que havia traição no meio. Tudo especulação. Mas onde há muita especulação sempre pode haver um pouco de verdade. Para a família, bem como para os conhecidos mais próximos, aos que ousavam perguntar, Marcelo resumia-se a dizer, “nos separamos”. “Mas como, assim, tão
de repente?”. “Nos separamos!” Traíra ou não traíra? “Traiu”, apostavam alguns, valendo até dinheiro. Dizem que tinham visto com “esses próprios olhos que a terra há de comer”. “Não, não traiu. O doutor não seria homem de deixar uma coisa dessa haver assim, sem uma reprimenda, sem uma justa condenação. No mais ver ninguém, então...” “Como não? Ela de braço dado com aquele rapaz, e conversa...” “De braço dado? Aquele rapaz era um amigo dela. Vocês daqui, que nunca foram à cidade grande, só sabem maldar tudo. Lá todo mundo anda de mãos dadas, e até se beijam, e nem por isso é como se fosse casal, nem por isso tá traindo”. “De braço dado, modo de dizer. Mas só sorrisos, só olhares, E olhar não trai.” Traiu ou não traiu? E a dúvida permanece ali por muitos e muitos anos...
“
Todos comentavam a gastança sem mais nem quê da mulher do doutor. Até mesmo seu Francisco, que aumentava a féria, ficava contrariado com a gastança da mulher.
Instagram: @revistaentrepoetas
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julianeelesbao@gmail.com
Juliane de Sousa Elesbão
O romance que não foi lido: Helena, de Machado de Assis.
RESENHA
Juliane Elesbão é Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará.
23 RESENHA LUZ, Eduardo. O romance que não foi lido: Helena, de Machado de Assis. Fortaleza: Edições UFC, 2017. A abordagem da ficção machadiana – especificamente do romance Helena – que lemos em O romance que não foi lido apresenta-se original e, podemos dizer, audaciosa, sobretudo pela análise heterodoxa baseada numa metodologia de leitura rente ao texto, conhecida como close reading – procedimento de leitura que se atenta aos pormenores textuais e linguísticos no corpo a corpo com cada palavra, num processo assemelhado à decifração de um enigma, e que nos põe como Édipo frente à esfinge. A partir desse procedimento metodológico, o professor Eduardo Luz revela-nos uma outra obra, que, até então, havia sido julgada por um consenso crítico preso às convenções românticas, que a classificam como pertencente a uma primeira fase de Machado de Assis, fase essa que seria de aprendizagem, destituída, portanto, da brilhante maturidade intelectual e literária do escritor identificada em obras posteriores, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Na contramão dessa leitura mais ortodoxa, já convencionada, e inconformado com o entendimento romântico sobre a obra, Luz dá sequência aos seus estudos acerca da obra machadiana para nos apresentar um “romance que não foi lido”. Assim, é-nos delineado o jogo de imposturas do narrador de Helena, cuja atuação é respon-
sável pelos efeitos produzidos sobre o leitor; logo, é constatado um narrador “onisciente, mas que finge não saber”, “que oferece perspectivas parciais” da narrativa. Ao analisar esse elemento estrutural, o autor destaca a consciência que Machado tinha da força de atuação da instância narrativa e do domínio hermenêutico que esta (até) deixa mostrar em Helena. Além disso, há duas linhas prospectivas que também orientam o trabalho: a primeira diz respeito à técnica da aemulatio, recurso de composição que parte de um modelo prévio, mas com o acréscimo de elementos ou dados novos. No caso de Machado, conforme o estudo de Eduardo Luz, a técnica da emulação resultou numa espécie de bricolagem de três tragédias gregas que contemplam o mito de Electra, a qual teria sido incorporada à tessitura machadiana. Seriam elas Coéforas, de Ésquilo; Electra, de Sófocles; e Electra, de Eurípides. A segunda linha prospectiva deriva dos insights intuídos por alguns estudiosos de Machado, como José Aderaldo Castello, Regina Zilberman e Helen Caldwell, que demonstraram uma percepção que transpassava “a aparente simplicidade de uma intriga quase detetivesca”, mas que não foi devidamente desenvolvida por conta justamente da leitura romântica que a orientava. Partindo de tais perspectivas, temos a vingança e o incesto como as principais motivações para a intriga do referido romance. A protagonista age movida pelo desejo de vingança contra a família de seu falecido padrasto, o Conselheiro Aires, que matara simbolicamente Salvador, pai biológico de Helena, ao adotá-la e unir-se
24 à sua mãe Ângela. Apaixonada pelo seu pai sanguíneo, a Electra de Machado trama um plano para destruir Estácio, seu irmão adotivo. No entanto, tal missão terá um desfecho “soberanamente infeliz”, visto que Helena converte-se “na causa do próprio mal”, precipitando-se para a própria perda. Para dar corpo a esse trabalho de inteligência e necessário esforço, O romance que não foi lido está dividido em três partes, a saber: uma introdução intitulada “O que Machado de Assis fez”, em que tomamos ciência do aporte teórico que alicerça a pesquisa de Luz; o desenvolvimento, composto por notas de leitura que dão conta da análise heterodoxa proposta, rotulado “Como Machado de Assis fez”; e, por fim, uma conclusão intitulada “O que Machado de Assis é”, que sintetiza todo o percurso reflexivo e enfatiza que o Bruxo do Cosme Velho “não foi romântico e não foi realista”, ele foi “machadiano”, citando Gustavo Bernardo. Com esse trabalho árduo de pesquisa que se propõe emancipador de Helena, a impressão que fica é a de que estamos a aprender a ler Machado do modo como ele gostaria de ser lido. Por fim, a genialidade do Bruxo é mais uma vez confirmada com o engenhoso trabalho de Eduardo Luz, que nos mostra que o referido romance é mais uma das primorosas elaborações literárias machadianas.
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Eternidade Angela Moreira
angelamoreira09@hotmail.com Angela Moreira é professora. Ser eterno é sinônimo de para sempre, mesmo que doa o coração. Ao se olhar no espelho, as lágrimas caem. Ao ver aquela figura destruída pela vida e sem forças para lutar, caem. Tudo se acabou, o tempo passou. A agora é tarde pra voltar, retornar e consertar tudo. Sobre a face enrugada, o olhar sombrio: tristeza. Dentes caquéticos, corpo desconsertado. Não existe força pra andar, para seguir. Eis que, de repente, sopra um vento forte, a janela se abre e dela vem uma brisa perfumada de jasmim. Ela olha para o espelho, uma luz aponta lá de dentro e, sem explicação alguma, aparece a palavra FÉ. Impossível evitar mais choro. As lágrimas fluem, o ocaso muda a sua vida. A palavra FÉ. Sim, estava escrito. Porque as boas lembranças são muitas e a fazem a alma renascer das cinzas. Tal qual Fênix, ou melhor, assim como a águia depois de cansada, ao se afastar de tudo, ficando lá, distante, protegida. Quando cria novas
unhas, novo bico, retorna para a vida. Vigor. Então, cá está a nossa personagem também. Ela se ergue, enxuga as lágrimas e segue em frente. Sente-se firme, forte, segura. Sem medo algum de viver a própria eternidade.
“
Sobre a face enrugada, o olhar sombrio: tristeza. Dentes caquéticos, corpo desconsertado. Não existe força pra andar, para seguir. Eis que, de repente, sopra um vento forte, a janela se abre e dela vem uma brisa perfumada de jasmim.
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Marcos Pereira
marcoscpereira@globo.com
Que haja luz!
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Marcos Pereira é professor.
Vivemos em um planeta que, como todos os corpos do Universo, encontra-se em movimento. Terra, como é chamada. Logo, podemos deduzir que estamos vulneráveis a qualquer força que venha do cosmo, além de todos os movimentos que o planeta produz. Quando pensamos na Terra, pensamos na sua forma geométrica e, ao meu ver, não é à toa que ela é esférica. Talvez, esta aparência não queira dizer nada, mas se observarmos bem, a sua circunferência deixa evidente que estamos vulneráveis a tudo que nos rodeia. Vista do alto pelos astronautas, é azul. Um planeta água, que tanto foi cantado em verso e prosa. Uma morada momentânea, um templo vivo da maior trajetória do corpo e da alma, independentemente do que somos, temos e cremos. Estar aqui e viver aqui é a forma que o universo encontrou para nos dizer que a nossa presença é fundamental na perpetuação da nossa existência. Porém, nos indagamos: como atingir esta perfeição? Se todos os dias assistimos perplexos a destruição do ecossistema do mundo, que se encontra carregado de um fardo que o homem por si próprio produziu pelos seus próprios interesses. Na verdade, somos os nossos próprios algozes e, prova disso, são as mutilações que causamos neste sistema, pois sem nós ele girava em perfeita harmonia. Agora, esse mesmo sistema nos cobra ações e esclarecimentos de como podemos produzir inúmeros bens sem des-
truir, como nos alimentar sem desmatar, como deixar de poluir a nossa própria morada. Na realidade, o sistema nos mostra que sem ele não existe Terra e consequentemente não existe vida. Assim, ele nos cobra ações, dando-nos mais uma chance de revermos a nossa própria trajetória. O que fazer? Como fazer? Será que estamos predestinados à extinção? Atualmente, por causa do Corona Vírus, inserimos vários posts clamando a Deus por dias melhores. Lotamos as redes sociais com correntes e orações, além de lotarmos os templos, sinagogas e etc., para mostrar aos frequentadores que somos os predestinados, mas Deus é justo e não podemos responsabilizá-lo por tudo que nós mesmos desenvolvemos e criamos para a nossa própria destruição. Então, qual a solução? Conforme João 13: 34-35, Jesus disse: “Novo mandamento vos dou: que vos amei uns aos outros; Assim como eu vos amei...” É através deste mandamento que devemos refletir, pois a luz que procuramos não tem valor por si mesma, já que sua utilidade depende da existência das outras coisas que são iluminadas por ela ou que se beneficiam dela, e o homem é uma delas. Assim, nada se resolverá se prosseguirmos sem valorizar o que é mais importante na nossa caminhada. “O AMOR AO PRÓXIMO”.
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professorrenatocardoso@gmail.com
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Humanismo Literatura Renato Cardoso
Renato Cardoso é professor Uma semana se passou, desde que meu tio me falou sobre o Trovadorismo. Aquela aula já deve ter sido dada e, se foi com a empolgação com a qual ele me ensinou, imagino o sucesso que deve ter sido. Tio José me chamou para conhecer uma cafeteria nova que havia aberto aqui na nossa cidade. Esqueci de falar, mas além de meu tio ele é meu padrinho. Estava marcado às 15 horas, e na hora exata estávamos lá. Cumprimentamo-nos e logo procuramos um lugar para nos sentar. Rapidamente perguntei sobre a aula e ele respondeu que foi legal e que a próxima já estava pronta (ele ia falar sobre o Humanismo). Como sou curioso, não dispensei tal palestra (era uma honra poder ter acesso a todo esse conhecimento). Antes da garçonete chegar, com tudo que havíamos pedido, tio José começou: “Garoto, o Humanismo remonta o final da Idade Média (Século XV) e o início da Idade Moderna (Século XVI). Na Europa, a expansão marítima, de potencias como Portugal e Espanha, ditava um novo ritmo a economia continental, pois facilitou a troca e venda de mercadorias. O lucro obtido nessas novas transações fez com que surgisse uma nova classe social, a
burguesia. Com isso, as cidades, principalmente as portuárias, cresceram, fazendo com que os camponeses largassem o campo e fossem para estas cidades. O sistema feudal, antes explicado no Trovadorismo, entrou em crise. A burguesia e a nobreza brigavam pelo poder, assim como a cavalaria e a marinha. Mas toda esta revolução comercial, só foi possível graças a invenção da bússola, que facilitou toda essa expansão territorial, pois norteava os navegantes quanto a sua localização”. “Nossa!’ – pensei. Hoje a bússola foi substituída por sistemas informatizados de localização, mas teve seu papel fundamental na história. Imagina se não a tivéssemos inventada? Logo, voltei a atenção total para a explicação do meu tio. Pude perceber que a palestra de hoje seria mais longa. “Continuando… A todo esse comércio feito no período das grandes navegações damos o nome de Mercantilismo. Mas tivemos uma outra invenção revolucionária, a prensa móvel. Ela foi inventada por Johannes Gutemberg e ajudou no aperfeiçoamento da imprensa, além de descentralizar o conhecimento, que até então estava com a elite burguesa. Imagina só, o proletariado nesse momento teve acesso as obras clássicas e a bíblia. O homem começou a buscar sua liberdade, a ser senhor de si próprio. A religião virou opcional”. Neste momento, interrompi meu tio e perguntei: “Nossa tio, como você sabe disso tudo?”. Ele sorriu, terminou de tomar um gole do seu chocolate quente e antes de comer um pedaço de torta, me respondeu: “Estudo! Simples!”. Paramos por cinco minutos, pois estávamos comendo, mas ao término do primeiro pedaço de torta, ele prosseguiu en-
tusiasmado: “Voltando… A Igreja Católica tomou um grande golpe no período, pois toda aquela subordinação que o homem tinha, deixou de existir. A racionalidade chegou ocupando espaço na mente dos seres daquela época, o Teocentrismo entrou em conflito com o Antropocentrismo, a Ciência e a Religião se digladiavam no campo do conhecimento. E o homem? Este, estava mais propenso a ciência e ao antropocentrismo, pois ele se sentia livre e queria ter a explicação de tudo. O cientificismo, o modelo clássico, a valorização do corpo humano e das emoções, assim como a busca pela beleza e perfeição foram temas pertinentes a este período literário”. “Em Portugal, Fernão Dias se tornou cronista-mor da Torre do Tombo (1418) com o objetivo de contar as histórias dos reis através de documentos históricos. Ao contrário dos anteriores, Fernão não usou somente a oralidade para montar seus textos. Ele uniu a narrativa histórica a narrativa artística. Ele era mais realista e não tinha o cunho religioso, descrevia, com detalhes, o cotidiano do palácio e das aldeias, apresentando, inclusive, as festas populares e o papel do povo nas guerras. Tudo isso tem um nome, chamavasse Verossimilhança, ou seja, a busca pela retratação mais próxima possível da realidade. Os reis, sobre os quais ele escreveu, foram: D.Pedro, D.Fernando e D.João I e sua obra pertenceu ao gênero narrativo” – explicou com toda
Araçá - Edição: Maio de 2020 calma do mundo. Percebi que a senhora que estava sentada próxima a nós, se interessou pela história que meu tio contava. Ela o olhava com tamanha atenção, que nem percebeu que eu estava olhando para ela. Sem perda de tempo, meu tio a chamou para sentar conosco. O nome dela era Aurélia. Tinha seus 60 anos, era uma arquiteta aposentada e adorava literatura. Agora com Dona Aurélia devidamente alocada, meu tio voltou a falar: “A poesia, neste período, sofreu uma significativa modificação. A música que a acompanhava no Trovadorismo, a deixou e a poesia seguiu seu rumo sozinha (a palavra finalmente era ouvida sem interrupções). O amor foi outra característica mudada. Antes platônico, passou a ser mais real, um amor com intimidade, com o toque (sem cunho carnal). Os poemas eram feitos em redondilhas maiores, ou seja, versos com 7 sílabas poéticas e com uma linguagem elaborada. A obra que marcou esse período foi “Cancioneiro Geral” de Garcia Resende (1516), que contava com mil de poemas de trezentos autores. Para tudo isto, foi dado o nome de Poesia Palaciana”. Dona Aurélia se emocionou, mas quem não iria. Não sei se foi tudo que meu tio falou, ou se foi o pedaço de torta dela que chegou. Percebendo que havia atrapalhado, ela pediu para que meu tio José continuasse. “Finalizando… O grande nome deste período, com certeza, foi Gil Vicente. Quem não lembra do “Auto da Barca do Inferno”? O Teatro Vicentino revolucionou a época, tinha um caráter popular e criticava todas as classes sociais (não poupava ninguém, nem mesmo os monarcas e o clero). O seu tom era mo-
27 ralizante, mas não no sentido de ditar regras, e sim no sentido de buscar a coerência das pessoas. Para ele, se o homem buscava a Igreja, no mínimo, deveria seguir seus valores. Para coroar tudo isso, Gil Vicente usava o humor. Mas ainda havia muitas características medievais em suas obras, tais como: o sagrado, o místico, a questão catequizadora, contrapondo sempre ao pagão, ao crítico, ao satírico, ao cotidiano e ao profano do Humanismo. As suas encenações eram dividas em: litúrgicas e profanas. As litúrgicas eram subdivididas em: mistério (falavam da vida de Cristo e das histórias da Bíblia), milagres (contavam as vidas dos Santos e seus respectivos milagres) e moralidades (descreviam as virtudes e os vícios dos homens). Já as profanas eram subdivididas em: momos (teatro de mímicas, que buscava a ridicularização dos costumes da época), farsas (eram populares e mostravam, através do humor, o cotidiano da vida na corte) e sotties (era o teatro baseado em personagens loucos, que tinha liberdade para dizer todas as verdades, que uma pessoa “normal” não diria)”. Uma hora e meia havia se passado, todos nós já tínhamos terminado os nossos lanches. Dona Aurélia agradeceu meu tio pelo conhecimento. Ela saiu mais leve e feliz. Já estava na hora de irmos. Meu tio pagou a conta e saímos rumo a casa da vovó Gertrudes.
No dia em que eu te encontrar! No dia em que eu te encontrar vai haver festa de luzes, os pássaros vão cantar e seremos só alegria. No dia em que eu te encontrar será feriado mundial, o céu se abrirá com uma cor alucinante. E teremos muitos versos encantando nosso encanto. Muitos prazeres no ar, toda cidade a cantar. Encontraremos os amigos lá… bem pertinho do mar. O vento será uma brisa a chuva , garoa fina, os raios do sol intenso fazendo esculturas nas nuvens. No dia em que eu te encontrar, já não me serei eu só, estarei com um bando de estrelas para estar ao teu redor. Não haverá mais tristezas, nem gritos e nem maldade, teremos um sono lindo para toda a eternidade.
Fatima Daniel
fatima.daniel@yahoo.com.br
Fátima Daniel é professora e poetisa.
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Araçá - Edição: Maio de 2020
por Felipe Vidal felipevidal003@gmail.com
Escolas Fechadas Escolas fechadas, hospitais lotados, pessoas trancadas e governos em colapso. É assim que 2020 se desenrola. Muitos estão, portanto, dizendo que este já é um “ano perdido”, o que, aliás, daria um bom título para este texto: “2020: o início da década do ano perdido”. O que achou? Enfim, não estamos aqui para falar sobre isso. Enfatizo, este texto estará recheado de referências à Cultura Pop, então, você pode encontrar uma ou outra frase de escritor famoso perdida por aí. Eu mesmo gostaria de começar com dois paralelos com os quais vivenciamos ultimamente. Duas palavras, extremamente simples e de fácil entendimento, mas talvez não estejamos conseguindo compreender seus significados agora: solidariedade e ignorância. Por mais clichê que pareça, são opostos a exercerem papel fundamental para entendermos o que acontece hoje. Quem foi que disse que tudo que é clichê é ruim? Por vezes, ser clichê nos ajuda a compreender a simplicidade. Interpretar os acontecimentos e refletir um pouquinho. Feche os olhos, pense! Quer dizer, melhor não, aguarde, não os feche. Você não conseguiria ler ainda, só pare, pense: como vive nos últimos meses, o que tem feito, como se relaciona com o mundo? Um pouco difícil (talvez) pensar nisso, afinal, provavelmente se encontre naquele ciclo vicioso:
acordar, comer, assistir Netflix, dormir. Na melhor das hipóteses, se vê estudando pelo tedioso Ead, trabalhando via home office, quem sabe? São inúmeras possibilidades. Provável ter sacado o que eu quero dizer aqui. Sim, é ruim estar em isolamento, passar ao longe do contato físico, olho no olho, pessoas. Péssimo se sentir sozinho, ainda que paradoxalmente acompanhado; não estar com quem ama; com seus amigos; família. Saudades das viagens em pé naquele ônibus lotado, matutinamente, exato, aquele mesmo sobre o qual você tanto reclamava. Horrível, sabemos, horrível é pouco. Recentemente meu avô foi ao centro da cidade, pagou algumas contas e minha mãe foi ajudá-lo. No fim, vovô a trouxe de carro e nos encontramos no nosso portão. Assim, como todo neto, meu primeiro impulso foi abrir os braços e tentar lhe dar um abraço. Isso mesmo, subitamente fui impedido pela minha mãe. Imaginei na hora o que havia feito de errado. A ficha caiu, sim, questão de segundo, compreendi. Você já interpretou, não é? Não se preocupe, ambos estão bem, só não podíamos correr o risco. Agora eu gostaria que você imaginasse outro cenário ocorrido comigo. Isso aí, um enfermeiro nova-iorquino trabalhando em um grande hospital. Ele cumpre o desgastante plantão; são 12 horas atendendo centenas de infectados a adentrarem o hospi-
tal. No fim do extenuante trabalho, passa no mercado mais próximo e se surpreende com o estoque de enlatados, papel higiênico e carne abaixo quase, sumindo da prateleira. Verdade, desapareceu quase tudo em questão de horas. Obviamente ele compra o que pode e volta para casa, porém, com uma diferença: não deve abraçar os filhos ou beijar a esposa. Na sequência, o quase herói pega o colchonete e leva até o porão. Difícil dormir assim. Medo de infectar a família. Triste, não? Essa é a rotina dos vários profissionais ao redor do mundo. Enquanto uns arriscam as vidas para salvar desconhecidos, conspiracionistas espalham mentiras, batem em médicos, pois é! Esses profissionais privam a sim mesmos de estar com as famílias; outros fecham os olhos, vivem suas vidas como se fosse tudo normal. Bem, agora já compreendeu o motivo de eu usar esses dois paralelos, certo? Sabe, sempre acreditei que a Terceira Guerra Mundial derivasse das ações mentirosas. Domínio sobre o petróleo, escassez de água, também, mas perceber o futuro saturado de disputas internacionais por causa de papel higiênico de folha tripla. Mentiras soltas, as montes, por aí. Quem, em sã consciência, acreditaria que água com limão e bicarbonato quente seria a mistura mágica a eliminar um vírus do organismo humano? Ou melhor, de onde surgiu o estudo do gargarejo milagroso de sal, vinagre e água morna prevenindo o Covid-19? Absurdo. Sem contar a mentira criada pela indústria farmacêutica no intuito de lucrar absurdos. Medidas de retaliação chinesa às sanções estadunidenses, cada maluquice acontecendo. Em tempo: quando a verdade ofende,
Araçá - Edição: Maio de 2020 mentimos até não nos lembrarmos mais. Contudo, ela continua lá. Cada mentira pública proferida incorre em algum débito para com a sociedade. Mais cedo ou mais tarde, tal dívida deve ser paga. Seria engraçado se o lado trágico dessa história real não nos assombrasse agora, todavia, pensar que pessoas dentre as quais já contraíram o vírus também são as mesmas contagiadas pela Gripe Espanhola, de 1918, surpreende. Ah, se surpreende! Uma senhora de 92 anos foi curada do novo coronavírus e (por incrível que pareça) curou-se do H1N1 há décadas. Outro exemplo é o caso da Rainha Elizabeth, ela mesma, a matriarca britânica, a completar 94 invernos nos próximas dias. A dona Elizabeth da Inglaterra, presenciou não somente os dois surtos do vírus Influenza, como também acompanhou notícias de quem lutou na Guerra. A dona da coroa viu o primeiro homem pisar na Lua, a queda do muro de Berlim, acompanhou a virada do século, e tudo mais. A humanidade passou por tanta coisa, já pensou? A “Era da Informação” então chegou. Verdade, eis os tempos da internet. Novamente raciocine: em janeiro de 1991, a CNN transmitia ao vivo o lançamento de mísseis cruzando a cidade de Bagdá, capital do Iraque, na surreal Guerra do Golfo. Pela primeira vez na história, um guerra sendo transmitida ao mundo enquanto as pessoas assistiam tudinho no conforto de seus lares. Hoje, 29 anos após, não nos surpreende haver líderes mundiais em conferências virtuais decidindo destinos microscópicos. Frentes religiosas em transmissões ao vivo para espalhar sua fé; professores educando através de plataformas online. Loucura! Em momento crítico assim, a informática nos auxiliando. Estaria a humanidade se adaptando
29 para continuar ou apenas coexistindo? É esse o contexto. Aparentemente o calendário apresenta grandes desgraças em cada século. Peste Bubônica, Cólera, Varíola, Gripe Espanhola e Gripe Suína. Isso sem contar, é claro, as inúmeras guerras e massacres civis. Fome e danos irreparáveis ao planeta, isso não falta. Mas, constitui agora apenas um detalhe na lista de assuntos dos ricos, certamente. Nos últimos dias, ouvi no podcast de um grande amigo, o Paulo, onde afirmava haver, nas mais horríveis situações, algo de bom a ser extraído. E eu fico imaginando, o que? Em 1985, o cantor e compositor Bob Geldof, juntamente com o guitarrista Midge Ure, da banda britânica Ultravox, criou um evento musical de proporções gigantescas com o objetivo de angariar fundos para erradicar a fome da Etiópia. O Live Aid ficou conhecido pelas inúmeras apresentações fantásticas de cantores e celebridades, incluindo a antológica apresentação do Queen. O evento foi um sucesso, sendo transmitido para mais de 100 países e arrecadando um montante de cerca de 150 milhões de libras em doações. Ontem, 18/04/2020, O Global Citzen, com curadoria da cantora Lady Gaga, apresentou o One World: Together At Home, evento virtual com o intuito de acumular fundos para combater a crise do Covid-19. É interessante notar que, entre as apresentações musicais, eram exibidas cenas de como o mundo reage a esse problema. A americana Shirley Raines tem distribuído comida e máscaras aos moradores de rua na cidade de Compton, Califórnia. Um motorista de táxi levava gratuitamente pessoas com suspeita do novo coronavírus a um hospital na Espanha. Tudo isso me faz pensar nesse momento intenso,
talvez existam pessoas boas o suficiente para contornar tal situação. Em momentos assim, por mais clichê que pareça, ainda há esperança. Novas esperança. “Em tempos assim Você aprende a viver de novo Em tempos assim Você se entrega e se entrega de novo Em tempos assim Você aprende a amar de novo”, Times Like These, Foo Fighters. Eu espero voltar e ler este texto daqui alguns anos. Se a humanidade realmente extrair aprendizados, constatar evoluções sociais. Ver se todos esforços surtiram efeito, se a luta valeu. Confesso desejo de só recordar deste momento com sensação de vitória. Contudo, de uma coisa estou certo, as interações humanas mais simples se revelam aquelas de que mais sinto falta. Quem diria. Um abraço, um sorriso, um tapinha nas costas. Faz falta, não é? Espero, acredito, viveremos com mais alegria depois da quarentena, porque “a vida se libera. Cruza fronteiras, rompe barreiras. Dolorosa ou perigosamente, mas, bem, é como é. A vida encontra um meio.” Twitter: @neeverlong Instagram: @felipevidal14
No parágrafo transcrito acima, notamos também seu envolvimento com roubos; com jeitinhos, levando vantagem e tirando proveito do que o ambiente fornecia ou de oportunidades que via surgir - evidenciando sua falta de adaptação à vida em sociedade. Outro exemplo disso é a forma como se dirige à vizinha quando essa chama sua atenção. Além disso, insuficiência de seu vocabulário é retratada em: “[...] Seu vocabulário era composto principalmente de palavrões aos quais acrescentava apenas nomes próprios. (TOKARCZUK, 2019)” Há, da parte do personagem, um descuido consigo que é reiterado no descuido com a casa e com suas roupas. Descuido, acreditamos, motivado pela pobreza e falta de perspectivas. Talvez fruto de um abandono de si mesmo: “[...] As pequenas janelas haviam sido calafetadas com papéis de vedação e plástico. Feltro betumado cobria as portas de madeira. (TOKARCZUK, 2019)” Não se trata apenas de uma casa simples ou humilde, mas sim de uma casa abandonada mesmo enquanto habitada, ecoando mais uma vez o abandono de si e a insuficiência no autocuidado, ou a pobreza in totem: “Era, de fato, um interior desagradável, sujo e descuidado. Sentia-se o cheiro de mofo, madeira e terra — molhada e voraz. O odor de fumaça, de
Luisa Tavares
“Era perito na floresta — sabia como usá-la para ganhar dinheiro, o que poderia vender e para quem. Cogumelos, mirtilos, lenha roubada, gravetos para acender o fogo, armadilhas [...]. A floresta alimentava esse pequeno gnomo, e por isso ele deveria respeitá-la, mas não era o caso. Uma vez [...] ele incendiou todo o mirtileiro. Liguei, aliás, para os bombeiros, mas não consegui salvar quase nada. Nunca soube por que ele fez aquilo. No verão, caminhava pelas redondezas com uma serra e cortava as árvores cheias de seiva. Quando chamei sua atenção, reprimindo a raiva com dificuldade, ele respondeu de forma simples: “Cai fora, sua velha”. Só que com mais grosseria. Ele sempre ganhava um dinheirinho extra roubando alguma coisa, dando um jeitinho; quando os veranis-
tas deixavam uma lanterna ou um podador no quintal, Pé Grande sempre aproveitava a ocasião para levar tudo e depois vender na cidade” (TOKARCZUK, 2019).
tavares.luisa20@gmail.com
Em “Sobre os ossos dos mortos” (2019), Olga Tokarczuk reflete sobre a condição humana e a natureza a partir da história de uma professora de Inglês aposentada que, em uma região remota da Polônia, costuma se dedicar ao estudo de astrologia e à poesia de William Blake além da manutenção de casas para alugar e a sabotagem de armadilhas para impedir a caça de animais silvestres. No enredo, a narradora descreve uma sucessão de mortes, dentre as quais, a de seu vizinho Pé grande. Ele é descrito como alguém que, apesar de conhecer profundamente a floresta, possui um conhecimento raso, uma vez que usa a floresta como sendo uma fonte inesgotável:
Homem-bicho: a pobreza “de tudo” forma um híbrido entre homem e natureza
Araçá - Edição: Maio de 2020
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Luísa Tavares é professora.
Araçá - Edição: Maio de 2020 longa data, envolveu as paredes com uma camada de gordura. (TOKARCZUK, 2019)” Suas roupas são descritas como trapos que repelem a narradora tanto pela aparência suja quanto pelo mau cheiro. Pé grande não apenas vivia como um animal, mas também é retratado como um. Numa oposição aparente entre natureza e cultura, ele parece habitar um limbo. Tal oposição é reforçada pela aparência de seus pés, cobertos por panos sujos e de aparência inumana. Os pés são, para a narradora, a parte mais íntima e pessoal do corpo. Mais do que os genitais, o cérebro ou o coração, órgãos que ela entende como insignificantes e supervalorizados. Acredita que todo o conhecimento sobre o ser humano é encontrado nos pés, sendo onde está todo o sentido fundamental do que somos de fato. É justamente ao descrever os pés do morto que encontra-se descortinada sua dualidade entre animal e humano: “esses pés nus eram, para mim, a prova de sua estranha ascendência. Não podia se tratar de um ser humano. Devia constituir uma forma inclassificada, uma daquelas que [...] dissolvem os metais em vastidão, transformam a ordem em caos. Talvez ele fosse uma espécie de demônio. As criaturas demoníacas sempre podem ser reconhecidas pelos pés, pois carimbam a terra com um selo distinto. Esses pés — muito compridos e finos, com dedos delgados e unhas negras e disformes — pareciam preênseis. O dedão destacava-se levemente dos restantes, como um polegar. Estavam cobertos por uma pelagem negra e espessa” (TOKARCZUK, 2019).
31 A pobreza material do personagem faz conjunto com o minguado da sua fala, com seu pouco conhecimento sobre as riquezas que a floresta poderia oferecer (sem se preocupar com sua preservação) e com o modo como tratava seus vizinhos. É necessitado “de tudo”: de maneiras, de vestimenta, de móveis, de calefação apropriada, de convívio, de conhecimento, de dinheiro, de afetos e de pertencimento à sociedade em que vive, ainda que composta regularmente pelos mesmos dois vizinhos durante o inverno rigoroso, quando os veranistas e turistas vão embora. Para a narradora de “Sobre os ossos dos mortos”, a saída; um descanso pra vida sofrida de um pobre “de tudo” como Pé grande é a morte, reduzindo-o a um animal ou, metonimicamente, a sua própria sujeira de homem-bicho (como forma de consolar-se pela morte do vizinho): “[...] Passou, então, pela minha cabeça a ideia de que a morte de Pé Grande poderia ser considerada, de alguma forma, algo bom, pois o libertou da bagunça que era a sua vida. E libertou outros seres vivos dele. Eis que, repentinamente, me dei conta dos benefícios da morte e de como ela era justa, à semelhança de um desinfetante ou de um aspirador. (TOKARCZUK, 2019)”. Bibliografia: TORARCZUK, O. Sobre os ossos dos mortos. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2019
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