Araçá
Suplemento
ENTREVISTA
Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, p. 34
Edição: Março de 2020
Número 02 - Ano 01 - São Gonçalo -RJ Tiragem mensal e online www.entrepoetasepoesias.com.br
O PERCURSO INTELECTUAL DE RADUAN NASSAR: A LEITURA DA “PALAVRAMUNDO” por Juliane Elesbão
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Araçá - Edição: Março de 2020
Sumário Editorial... p.3 A vidinha de Roberto... p.4 Quem tem medo à liberdade?... p.5 Coisas de não sei onde... p.6 Amor de Carnaval... p.7 Lembranças de um garoto sonhador... p.8 O (L)ego... p.10 Castelos e Costelas... p.11 Eu escolho educar, e você?... p.12 A saia que virou bermuda... p.13 Por memória da Infância: Meus desacontecimentos, de Eliante Brum... p.14 Os cacos domésticos em Bolor, de Augusto Abelaira... p.18 Justiceiros... p.20 CAPA: O percurso intelectul de Raduan Nassar: A leitura da Palavramundo... p.22 O reconheciumento de uma equipe chamada vírus... p.27 Guerra Mundial Microscópica, Macroscópica e Educativa... p.28 Um dia de Carnaval... p.29 Disciplina - um hábito... p.30 Seres... p.31 Resenha: O Livreiro de Cabul... p.32 Entrevista com o roteirista e escritor Paulo Lins... p.34 Resenha: Interferência... p.35 Viagem sem rumo... p.38 “Viva la Vida”: Como a arte sustentou Frida Kahlo... p.39 O Trovadorismo e suas Cantigas... p.40
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Araçá - Edição: Março de 2020 EXPEDIENTE -Editor Responsável: Renato da Silva Cardoso -Editor: Erick Bernardes -Diagramação: Renato da Silva Cardoso -Revisão: Erick Bernardes -Colunistas: Antonio Rodrigues, Fabio Rodrigo, Angela Moreira, Altamir Lopes, Ivone Rosa, Fátima Daniel, Zé Salvador, Erick Bernardes, J.Sobrinho, Helena Corrêa, Juliane Elesbão, Dejair Martins, Marcelo Motta, Ezequiel Alcântara, Gilvan Carneiro, Erica Costa, Marcos Pereira, Luisa Tavares, Renato Cardoso -Arte final: Renato da Silva Cardoso -E-mail: revistaentrepoetasepoesias@gmail. com Site: www.entrepoetasepoesias.com.br WhatsApp: (21) 994736353
Araçá Uma publicação da Revista e Editora Entre Poetas & Poesias - SG - RJ.
Quem somos? O suplemento literário Araçá é um projeto da Revista e Editora “Entre Poetas & Poesias” e foi criado com objetivo de divulgar e propagar a arte a todos os cantos do Brasil e do mundo. Um periódico cultural que nasceu para tornar o cotidiano dos leitores mais suaves com mensagens líricas, filosóficas, entrevistas, poesias, artigos acadêmicos, debates educacionais, entre outros. Criada em Janeiro de 2020, pelo professor Renato Cardoso, o suplemento conta com uma equipe fantástica de escritores entre jovens e adultos. Uma equipe formada por profissionais de diferentes áreas, que visam gerar um conteúdo informativo e de quali-
dade para todos que aqui chegarem. Com acesso a uma ferramenta de qualidade para publicar para vocês, leitores, buscamos nos tornar uma referência na publicação de conteúdo no território nacional. O suplemento Araçá é uma periódico gratuito e digital, que visa, acima de tudo, abrir espaço para que você, leitor, possa publicar seus textos. Para isto, basta nos enviar para o e-mail: revistaentrepoetasepoesias.com.br. Todos os colunistas e colaboradores desta edição autorizaram a publicação de seus respectivos textos, sendo a eles atribuída toda a responsabilidade por seus conteúdos.
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oberto era um homem realizado. Após sair sua tão sonhada aposentadoria, foi morar com sua esposa em uma humilde casa num lugarejo no interiorzão do estado. Um pequeno distrito bastante afastado dos centros urbanos. Muitos lhe perguntam: o que tem pra fazer neste lugar, Roberto? Ele ignora as provocações de seus amigos e responde que o contato com a natureza é o que sempre sonhou pra sua vida. Da sua casa até o centro comercial mais próximo são quilômetros e mais quilômetros de distância. A cada quinze dias, Roberto vai até lá para comprar o que precisa para abastecer sua casa. Roberto cultiva sua própria horta no seu quintal. É dali que colhe as verduras e legumes que fazem parte de sua alimentação diária. O peixe, a carne de porco ou de frango que consome diariamente vem de seu criadouro nos fundos da casa. Na região em que mora, não há internet nem rede de telefone celular. Ele diz que não precisa dessas coisas. Arrependido de ter saído da cidade grande? Jamais. Roberto se considera o ser mais feliz do mundo. Conforme ele mesmo fala, encontrou o paraíso. Vive hoje em uma pequena propriedade rural, em que tudo o que come é produzido lá mesmo. Quando lhe perguntam sobre ganhar dinheiro com o que produz, prontamente responde que não. “O que tenho é o suficiente pro meu próprio consumo”. Roberto é feliz por não ter ambição alguma. Chegara ao ápice
Araçá - Edição: Março de 2020 de sua vida. Hoje tem a vida que pediu a Deus. Seus filhos estão casados e bem resolvidos. Resta somente passar o resto de sua vida com sua esposa no lugarejo que escolheu para viver. Seus amigos estão todos em busca de novos desafios. Seja para novo emprego, seja para a abertura de empresa, seja para uma nova aplicação financeira. Eles não entendem o que passa na cabeça de Roberto. Conforme eles dizem, Roberto foi se esconder naquele fim de mundo. Passados alguns anos, enquanto Roberto mantém a sua vidinha simples, seus amigos já acumularam diversas experiências. Estão cheios de novidade para contar. Enquanto eles continuam cheios de planos, Roberto continua com a vida que escolhera. Enquanto eles querem sempre mais; Roberto, o mesmo. Aqui a zeugma omite o verbo e exprime a morosidade de Roberto. O tempo passa e Roberto se sente cada vez mais feliz por viver onde sempre quis. Ele não percebe que os anos estão passando. Que está envelhecendo. Que suas mãos não lhe permitem mais capinar o seu próprio quintal. Que está perdendo suas forças. Roberto está morrendo. Morrendo por falta de ambição.
A vidinha de Roberto Fabio Rodrigo
fabiorodrigogc@yahoo.com.br
Fabio Rodrigo é escritor e professor
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Da sua casa até o centro comercial mais próximo são quilômetros e mais quilômetros de distância. A cada quinze dias, Roberto vai até lá para comprar o que precisa para abastecer sua casa.
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Araçá - Edição: Março de 2020 “liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. (Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência)
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rich Fromm (1900 – 1980), filósofo e psicanalista alemão, investigou-nos o medo que temos à liberdade: “Escape from Freedom / The Fear of Freedom” (1941), no Brasil, “O medo à liberdade”, sua obra seminal sobre o tema. Étienne de La Boétie (1530 – 1563) aborda outros aspectos da renúncia humana à liberdade em seu “Discurso da servidão voluntária”, um livro que nunca acaba de ser atual. Duas ótimas opções para quem quer se aprofundar na complexa questão do medo que tem o homem de ser livre. Em “Como vejo o mundo”, Albert Einstein questiona se a liberdade do homem, como anseio filosófico, é uma possibilidade: “Não creio, no sentido filosófico do termo, na liberdade do homem. Todos agem não apenas sob um constrangimento exterior, mas também de acordo com uma necessidade interior.” Jean-Jacques Rousseau, por outro lado, enxergava essa condição do homem como ser não-livre, mas que essa condição era oferecida pelo fenômeno social, o moldamento do homem pela “sociedade civil”. “O homem nasce livre, mas por toda a parte vive acorrentado. Um determinado indivíduo acredita-se
senhor dos outros e não deixa de ser mais escravo do que eles.” No plano religioso, o cristianismo, tradição religiosa que molda o Ocidente, anuncia a liberdade como o desvelar das verdade divinas, um encontro com a ilustração espiritual revelada por Deus: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Seja como for, a liberdade é um anseio humano, mas é também o centro dos medos humanos mais arraigados. Quem tem medo à liberdade? Por que, em determinadas situações, o homem abdica da liberdade em nome de regimes políticos ou religiões opressoras, que levam o homem ao cárcere? Por que o medo é nosso maior carcereiro, nosso pior grilhão, nosso verdugo mais cruel? Ou seria a liberdade, no jogo das dicotomias universais, o contrário do medo? Eduardo Galeano, em seu “O livro dos abraços”, resgata uma historinha que ilustra de forma magistral essa questão do medo à liberdade: “Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das índias. Chegou em casa numa gaiola. Ao meio dia, abri a porta da gaiola. Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.” Pois o que desejo, além dessas considerações bas-
Quem tem medo à liberdade? Antonio Rodrigues
ajr1977@gmail.com
Antonio Rodrigues é escritor
tante superficiais, é que o homem tenha coragem. Como o velho Rosa poetisa em suas veredas: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Que pela coragem o homem encontre o caminho da liberdade, e jamais aceite se submeter a qualquer regime político ou sistema religioso que lhe roube a liberdade. E, por fim, deixo aqui o famoso verso do Hino da Proclamação da República, como desejo autêntico de que estejamos cobertos pelas asas da liberdade: “Liberdade! Liberdade!/Abre as asas sobre nós!”
Zé Salvador
Araçá - Edição: Março de 2020
Zé Salvador é cordelista
zesalvador06@gmail.com
COISAS DE NÃO SEI DE ONDE
6 Genaro, Cassiano e Antonieta, que debulhavam e jogavam milho pras galinhas, e estas beliscavam e ciscavam no meio deles, estavam no alpendre proseando; os dois últimos, sentados em tamboretes feitos de pau de marmeleiro e ripas de canela de cunha, saídos das mãos grossas dele, agricultor metido a carapina. Todo prosa falava, se orgulhando de sua vida, de meeiro sim, mas honesto. O velho abancado numa preguiçosa de assento de couro curtido do modo mais grosseiro e bem artesanal, o qual ele mesmo fez no curtume improvisado. Na outra banda do alpendre, duas crianças brincavam numa rede de tucum que ficava armada o tempo todo e já fazia parte dessa mobília simples que mostrava a condição dessa gente. A necessidade toda vida o obrigou a ser um pouco de tudo, inclusive contador de histórias; um costume seu desde novo, que trouxe para a sua velhice, gastando as tardes de sol morrente. Só carecia de um ouvinte – pronto – desatava a prosear com histórias do arco... Desta vez, a prosa corria por conta de um assunto melindroso, uma promessa e uma dívida com o Caramunhão. Não que o velho Genaro tivesse feito algum pacto com o Enxofrento, pois além de ser frouxo com essas coisas – de não sei de onde –, era muito temente a Deus. Mas ele conhecia alguém que havia feito, dizia sempre nas suas prosas quando era esse o assunto: – É bem perto dali, ao alcance das vistas de quem quisesse vê. E, não duvide, pode botar fé! Falava com entusiasmo acrescentando: – Nem todo mundo, Deus Nosso Senhor, botou pra mode ser rico, mas tem gente que num se conforma com a pobreza que Deus deu e desata a fazer doidice. Faz promessa com tudo que é santo, num consegue, procura o “Dono-da-tentação”. E o “Courento” gosta! Cassiano, enquanto ouvia, pitava seu cachimbo entupido com folha de fumo novo, espichando o couro da testa formando uma carranca espantosa que se manifesta.
– Oxente! Aqui perto de nós tem esse miserento? – Tem. E o “Mofento” gosta. Ele vem lustroso, empolado, numa pinta só. Mas, só fachada! Depois que ganha a alma, faz do esgalamido por riqueza “gato-espichado”. Num pensa o senhor, não, nem todo mundo se livra da astúcia do “tisgo”, seu Cassiano. Isto é só pra impressionar o sujeito. Tem vez que vem até com uma maleta na mão. Falava se empolgando a cada argumento. E agora com uma pitadinha de maldade: – O Seu Rufino, mesmo, esse que o senhor conhece, mas... Olhe, sei de um caso que o meu pai contava que ouviu do meu avô; que um cabrocha lá pras bandas do Trapiá, era pobre feito Jó, mas enriqueceu ligeiro depois que fez um pacto com “ele”. E sabe como ele veio entregar a riqueza? Trouxe um ovo. O mulato deitou o ovo. Nasceu um caramanchãozinho, de rabo, chifre e tudo. Primeiro ele botou numa cabaça, o bicho quis fugir, ele arrumou uma garrafa e prendeu o seu diabinho de estimação dentro. Enricou depressinha! Antonieta olha para o marido e esbugalha os olhos. Ela mesma, entre acreditando e descrendo, preferiu fechar a boca, conhecendo o marido, que tinha! – Outro dia mesmo – continua seu Genaro convicto do que dizia – ali na encruzilhada, na estrada que vai pra o boqueirão; era boquinha da noite, o Josanilton filho do Pedro Aleixo, morador do coronel Rufino, estava chegando da vila e viu um senhor bem aparentado, um chapelão de massa umas “apragatas” bem bonita, calça e camisa de linho, num era branca não, era mais pra cor da flor do algodão, Josanilton deu boa noite, e o moço respondeu perguntando: – O menino conhece o Coronel Rufino? – Apôs, num conheço?! Se eu moro nas terras dele! Tô indo pra lá... ao que lhe atalhou o moço do chapelão de massa e “apragatas” bonitas: – Apôs avise pra ele que agorinha tô chegando lá. Diz o menino que o homem sumiu num trisco de tempo, num viu pra onde ele foi. Então?
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Amor de Carnaval Ivone Rosa
profa.ivonerosa@gmail.com
Ivone Rosa é professora e poeta
Primeiro dia de carnaval. Ela chegara à cidade do norte do estado do Rio, após cinco horas e meia de viagem. Anoitecia e as luzes da praça principal misturavam-se às decorações coloridas, bem como às fantasias dos foliões que caminhavam em direção ao Clube. Incentivada pelos anfitriões da casa – temporária – foi ao baile acompanhada pelos amigos. À distância era possível ouvir as marchinhas tocadas pela banda do lugarejo. Embora preferisse um bom rock a carnaval, deixou-se levar pelo clima do espaço festivo. Seus olhos observavam tudo, pois queria aproveitar cada momento. De repente sentiu que também estava sendo observada por um rapaz de cabelos compridos e com rosto pintado igual ao Paul Stanley da banda Kiss. Impressionada com a perfeição da maquiagem, ela sorriu e recebeu de imediato o sorriso de volta. O clube estava cheio, porque era o único da cidade. O acesso até a lanchonete não era fácil, porém, era o local mais confortável para conversar devido ao volume das
músicas que eram cantadas pelas pessoas. Ele havia feito um gesto para que ela fosse até lá, mas foi arrastada um por “trenzinho” que a levou para o lado extremo do salão. Assim, perderam-se de vista. No segundo dia, ela acordou febril por causa de um resfriado e não saiu durante dois dias. Foi na última noite que finalmente se encontraram por acaso em um dos corredores da lanchonete. Conversaram, trocaram curiosidades e riram bastante. O próximo encontro ficou marcado na rodoviária, ela chegou à estação procurou por ele e como não achou entrou no ônibus que estava prestes a sair. Neste momento um rapaz bate a janela, ele estava sem maquiagem e com os cabelos presos, ela já tinha visto, contudo, não o reconheceu. O ônibus foi embora, e só houve tempo para um adeus!
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No segundo dia, ela acordou febril por causa de um resfriado e não saiu durante dois dias.
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Ezequiel Alcântara é poeta e cordelista De coisas passadas do meu tempo de criança é o que faz meu coração pulsar, as lembranças permanecem sempre vivas aqui junto a mim. A minha velha casa de taipa, com aquele terreiro grande, pouco movimentado, onde todas as noites jogava bola com meus amigos, com aquela simples bola de meia e fazendo a trave do gol junto à bela árvore de jucá. É como um sonho a gente lembrar os tempos de criança, viver aquele instante bom, lembrar o velho vizinho resmungão com raiva das nossas brincadeiras. Lembro-me bem, pois assim que escurecia, junto com os amigos ia brincar no terreiro de minha casa, separávamos os times entre nós, traçávamos nossas próprias regras e fazíamos os melhores momentos que uma infância poderia ter. E brincávamos de todas as brincadeiras populares daquela época: Esconde-Esconde, Futebol, Bandeira, Pega-Pega, Jacarandá e outros, que nos divertia muito. Depois, já exaustos das artimanhas mais ou menos no anoitecer, encerrávamos na “Hora das Almas”, bendita hora do ângelus, em que traçávamos o sinal da cruz em silêncio às almas, aqueles velhos costumes populares. Mais tarde, após tomar o banho e depois da janta, nós íamos e sentávamos
na calçada da casa de meu avô, que era bem dizer do lado da minha, para ouvi-lo contar suas belas histórias. Lembrança boa, eu ficava fascinado com o jeito que ele nos contava aquelas histórias, com os seus gestos, seu ânimo e sua esperteza, que deixava não só eu e meus amigos admirados e curiosos, mas também meus familiares. Dentre as vezes que meu avô convidava um amigo para conversar um pouco lá pela casa, era muito bom, pois ouvíamos mais histórias e bebíamos aquele delicioso café que minha avó fazia. Bate então no peito aquela saudade. Gostava muito quando chegava o mês de junho, festa de São João Batista, o padroeiro da comunidade. O povo nesse período festivo ajudava sempre no que podia para organizar a festa: Dona Maria fazia bolos magníficos e colaborava no leilão, Seu Quinzinho cortava a fogueira, o Sr. Augusto ajeitava as barracas, Dona Margarida organizava a quadrilha, meu avô dava um carneiro e fazia inúmeras coisas para ajudar, e muitos outros ajudavam em diversos outros afazeres. No dia dos festejos, principalmente na última novena, era muito bonito ver a fogueira acesa, muitas bandeiras coloridas, o povo muito feliz, comida boa aos montes e a juventude brincando. Ah!
ezequielalcantara809@gmail.com
Lembranças de um garoto sonhador
Ezequiel Alcântara
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Lembro-me que vestia apenas roupas simples, já que meus pais não tinham condição de comprar roupas de boa qualidade, ficava tímido para conversar com as outras pessoas, mas não me impedia de sentir aquele ânimo de aproveitar aqueles momentos únicos, e eu caprichava no perfume, pois tinha muita moça bonita na festa. Assim era uma das nossas tradições populares da pequena comunidade de Riacho das Flores. Inventavam vários costumes referentes à cultura que me engradeceram muito. Como era bom ver o povo se reunindo na casa do Sr. Evaristo para vê-lo declamar belos romances, aqueles que vinham escritos em versos nos livrinhos de cordel! E eu gostava muito daqueles heróis, príncipes que lutavam pelo amor de uma princesa, a bravura e luta de grandes sertanejos... Nos dias de hoje são os carros, robôs e desenhos animados que divertem a garotada, e outras coisas muito diferentes daquela época. Certas vezes, tomando um bom café, fico relembrando de quando era moço, das
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vezes trabalhei o dia todo no roçado, capinando e plantando os legumes com a minha velha enxada, tirando dali o sustento necessário, porém, sacrificante, para a minha família. Ainda lembro-me bem da minha primeira namorada... Ah! Como era linda! Simpática, os cabelos negros, aquela bela voz suave, que muito me encantava, era com certeza a mais bela e perfeita para mim. Em algumas noites eu pegava o violão do meu pai emprestado e fazia uma serenata em sua janela, e ela vinha com mais de mil beijos apaixonados fazendo-me sentir um amor que nunca mais esqueci. Todas essas lembranças ficaram cravadas no meu coração, e que serão jamais apagadas do meu pensamento. E minha família, como ela está?! Hoje minha família é excelente como sempre sonhei. Minha primeira namorada tornou-se minha amada esposa, batalhadora junto comigo, sempre fiel a mim e eu a ela, tenho filhos magníficos, muito inteligentes, hoje já adultos, casados, seguindo suas vidas, que sabem ler e escrever – coisa que nunca aprendi, pois há muito tempo as coisas eram difíceis, eu tinha que ajudar meu pai na plantação, trabalhando da manhã à tarde, sempre ajudando-o a sustentar a família, por isso nunca tive tempo
ou encorajamento para os estudos, sendo assim uma pessoa não muito letrada. Mas de tudo isso eu nunca esqueço, pois também é uma lembrança, que me faz herói, exemplo singular de minha família. E agora? Terminou? Não, pois eu ainda continuo vivendo na santa felicidade, ganhando mais experiência, vivendo meu presente, e sempre me recordando do meu passado, daquilo que vivi e aquilo que passei, pois todas essas lembranças fazem meu ser cativo e feliz, ao recordar e reviver os tempos de criança, virando garoto outra vez. Essas lembranças que me tiram da realidade me fazem dizer o quanto foi bom sonhar, foi bom viver, foi bom amar sem medidas e fazer os outros felizes, e é por isso que essas lembranças fazem eu me tornar um velho garoto sonhador.
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Lembro-me que vestia apenas roupas simples, já que meus pais não tinham condição de comprar roupas de boa qualidade, ficava tímido para conversar com as outras pessoas, mas não me impedia de sentir aquele ânimo de aproveitar aqueles momentos únicos, e eu caprichava no perfume, pois tinha muita moça bonita na festa.
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O (L)ego Erick Bernardes
ergalharti@hotmail.com
Erick Bernanrdes é professor e escritor Vamos brincar de deus! Convoco você meu amigo a esta empreitada. Vamos brincar de Zeus! Poderosa divindade da matriz ocidental. Nesta brincadeira façamos um trato, ou melhor, um pacto, entre mim e você; narrador e leitor. Sou o personagem Ego e não vivo longe do centro. Detesto periferias, gosto mesmo de cada coisa em seu lugar, tudo certinho, separadinho, só penso em mim mesmo. Sou um pequeno construtor em processo lúdico seguindo a tradição. A proposta é a seguinte: você imagina milhares de blocos em minhas mãos, quadradinhos, a criarem um mundo de faz de contas, como se fossem pequenos dados lançados ao léu por um jogador de roletas qualquer. O jogador canta o lance de dados, a ordem. O Ego, que sou Eu, regula a jogada, as posições das peças para você empilhar. Aí te vejo embaralhar tudo, leitor, trapacear para ganhar o inesperado presente. E ganha, não o presente intacto, mas a ideia, a experiência de ser e estar ali. Nunca ouviu o senso comum repetir que o importante é parti-
“O jogador canta o lance de dados, a or-
dem. O Ego, que sou Eu, regula a jogada, as posições das peças para você empilhar. Aí te vejo embaralhar tudo, leitor, trapacear para ganhar o inesperado presente. E ganha, não o presente intacto, mas a ideia, a experiência de ser e estar ali. cipar? Pois é, adoro o que todo mundo diz. Com as ideias dos outros brinquei de deus pela primeira vez. Fiz uma cidade, dei registro, me transformaram em Deus maiúsculo. Se acredita que no princípio era o verbo, te enganaram, era o nome. Postei na entrada a alcunha legal, nomeei a cidade de Zeus e, em seguida, desconstruí. Tentei fazer de novo, repetir o feito. Saiu diferente. Diferente não, semelhante. Semelhante não, verossimilhante. Nomearam ficção. Agora você entrou na jogada; sua vez. Rodam a roleta de novo ... Em cada rodada o ciclo se repete, mas não exatamente como antes, pois a previsibilidade provoca em ti novas atuações. Enquanto a roleta movimenta, você monta e desmonta seu novo mundo, mas não percebe que tudo muda. Até que eu, personagem e narrador desta história, lhe chamo à interlocução — você não é personagem nem narrador, eu é que sou, não venha interferir, só a minha estética deve refletir! Perceba então que os mínimos bloquinhos à sua disposição, aquelas pecinhas de encaixar
umas nas outras, não pertencem ao quebra-cabeça que lhe dei. São só palavras, matéria-prima e filha do meu discurso, na mesa de brincadeira que será, daqui por diante, conhecida por outro alguém. Ouço agora a minha voz misturada à sua, para mais tarde revelar, a quem chegar até aqui, uma única verdade aceitável, aquela que acabei de encenar. Fostes tu decodificador, interlocutor. Um deus também, para mim, para você mesmo, e quem mais nesta armadilha quiser entrar. Mas sou autor, seu autor, tenho a autoridade de lhe mandar sair daqui, vá embora e chame por favor quem estiver aí fora. Você não enlouqueceu, só busca entreter-se. Quem chegou até aqui pode mergulhar. Bem-vindo à transgressão de limites entre o real e o inventado! Sou o seu imaginário. Olé! https://escritorerick.weebly.com
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Poesia
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Castelos e Costelas Nossas costelas... Nossos Castelos. Presença que nos une, imortal Homem e mulher ao mesmo elo A seguirem pelo plano do astral... Voando feito tantos pássaros... Na brisa ou temporal que nos leve E mesmo que seja em lentos e curtos passos Lá ou aqui teremos estadias breve... Lá e cá... Indo e vindo... No ciclo perene e imutável Tão eterno como o tempo que pressinto Envelhecer e morrer pela morte retumbável... Imponente como qualquer outra mesma saga Corpo e alma ceifados quase sempre por um grito surdo Pelo estardalhaço de um revólver ou pela estocada da adaga E vai, enfim, o corpo, ao tumulo, agora mudo.
marcelo.poeta.1968@gmail.com
Marcelo Motta
O tempo não se rende a um ato ágil O vento galopa de tão trágico Perante as horas, esta horda. O Homem é sempre frágil Por seu fim sempre ser hemorrágico. Tão rente e perene na luz da eternidade Ora um... Ora outro... Mudando de Natureza Como nunca faz o tempo ou o vento em sua divindade Por ser esta de Deus Sua maior Proeza. Homem ou Mulher. Eis a poesia de um só verso. Tantos medos segregados em segredos Mas todos nascidos do mesmo Verbo Universo de átomos perdido em arvoredo. É porque o corpo, esta matéria vira pó Mas nossa alma segue sempre em luz O tempo não existe, nele se desata todo nó Nos mistérios legados pela Santa Cruz... Mas aqui ainda insistimos e estamos, Tão algemados às artífices da matéria Não importa a nosso igual, o que façamos E sim para onde partiremos, a TERRA etérea. Marcelo Motta é poeta.
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ções, com ausência de sofrimento e nunca ser contrariado. A punição para quem erra é necessária, concordo com ela, apesar de discordar dos parâmetros utilizados para aplicá-la, mas isso é tema para uma outra conversa, no entanto, faz-se necessária uma reflexão profunda sobre a geração que estamos produzindo socialmente, as causas geradoras dos problemas passíveis de “castigos”. Nossa meta deveria ser encontrar mecanismos para EDUCAR as novas gerações e tratar a adoecida geração atual, para que, em um futuro próximo, os debates fossem menos sobre penalidades e mais sobre EQUIDADE E RELAÇÃO HUMANA.
Erica Barros é professora.
Erica da Costa Barros
le Sistema. Todo Sistema, repetido em círculos, transforma-se em Cultura. Certa vez, vi um aluno ficar com a boca roxa e urinar a roupa ao ver um guarda municipal entrar em nossa escola, uma criança de quatro anos! Me aproximei e ele me perguntou: “Tia, ele vai pegar e quebrar tudo?”. Aquilo me entristeceu. Policiais são trabalhadores, honestos, tão vítimas dessa sociedade ávida por punições quanto os punidos, pais e mães de família usados de maneira irresponsável por um poder público que não deseja exercer sua função. Após esse episódio, fizemos um projeto pedagógico de ressignificação da “figura policial”, do resgate, do respeito, do amor, fizemos um trabalho de EDUCAÇÃO. Engana-se quem pensa que somente as crianças pobres são vítimas das causas que provocam o caos social. Quantos não são os filhos criados por babás, internados por doze horas em escolas integrais, trancados em quartos, em um lar farto de comida, lazer, tecnologia, brinquedos, conforto, viagens e carentes de afeto, diálogo e carinho? Lembro de um adolescente para o qual lecionei em um Cursinho Preparatório que me confidenciou que gostaria que seus pais lhe dissessem “não”, porque isso significaria que eles se importavam com ele. Conversamos, com o jovem e sua família, tivemos reuniões, encaminhamos para profissionais da área da Saúde e, ao final, o resultado fora bastante positivo. EDUCAMOS aquelas pessoas. Lembra do Sistema repetido em círculos? A Cultura aqui também é institucionalizada. Os pais foram criados desta maneira, entendendo que “amar” é dar presentes, dinheiro, bens materiais, uma vida luxuosa, sem retri-
ericacbarros2010@hotmail.com
Acusar, culpar e punir. Mais que verbos, ações que representam o tribunal social atual, com as suas inúmeras discussões sobre a redução da maioridade penal, da liberação e uso das drogas, dos programas sociais, do porte de arma, dentre outros, não raro, vemos como argumentos para a diminuição do caos social o aumento na severidade de regras punitivas, descartando a reflexão acerca da outra ponta da questão: a causa do problema. Há tanto esforço e embate para castigar a mazela social, mas porque não se discute o que a provoca? A criança que cresce vendo os pais usando drogas, com cinco anos, sozinha em casa, cuidando dos irmãos menores. Anda quatro quilômetros para chegar à escola, cansado, em uma sala de aula quente e pequena, desejando o prato de comida e o lanche, em um ambiente superlotado e com profissionais, muitas vezes, desgastados pelo Sistema escravizador. Mora em um casebre no “lixão”, dorme no chão coberto por papelão, passa os dias e noites sentindo cheiro de chorume, o único alimento que tem é no período das aulas e os pais entram em desespero quando chegam as férias, pois não terão como saciar a fome dos filhos. Não, querido leitor, não exagero para comovê-lo, descrevo realidades de alunos que passaram por mim ao longo da minha carreira. São histórias reais, fortes e tristes. Nas comunidades, lugar de gente que acorda cedo, trabalha, guerreira, as crianças crescem vendo o “chefe” dando a comida, o remédio, o brinquedo, o chocolate que lhes falta. Não, eles não têm discernimento da origem do dinheiro, os pais, adultos, são frutos daque-
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EU ESCOLHO EDUCAR. E VOCÊ?
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j.jsobrinho@globo.com
J.Sobrinho
A SAIA QUE VIROU BERMUDA
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J. Sobrinho é jornalista.
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sítio ficava localizado em Sambaetiba. Waldemar, o proprietário – um cara super trabalhador – sempre cuidou da propriedade com muito zelo e carinho. Ele não parava, ficava de um lado para o outro, plantando e colhendo os frutos que ele mesmo plantava. No sítio tinha quase tudo que alguém possa imaginar: laranja, banana, abacate e tantas outras frutas, além do saboroso café, puro e de altíssima qualidade e muito leite para dar e vender… Todo final de semana, Waldemar e sua esposa, Ana Lúcia, recebiam em sua residência os seis filhos – alguns já casados – para aquele bate-papo gostoso e salutar. Churrasco, pamonha, tapioca e outras delícias, serviam para animar o excelente ambiente, além, é claro, das fofocas que não podiam faltar. Waldemar, quando sobrava um tempinho – depois do almoço – gostava de tirar um bom cochilo. Afinal, ninguém é de ferro. Pois bem, num desses dias, Waldemar – um tanto quanto cansado, até porque já não era tão jovem assim – foi tirar o seu tradicional cochilo. Antes, pediu à esposa para chamá-lo caso houvesse alguma necessidade ou alguém o chamasse. Os familiares ficaram todos na imensa varanda e o papo rolando solto, enquanto Waldemar roncava
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de tal forma que até assustava a todos, causando preocupação. Lá pelas tantas, dona Ana Lúcia, resolveu acordá-lo, pois já estava quase anoitecendo. Waldemar acordou – de repente – meio assustado e, sem prestar muita atenção, pegou a primeira peça de roupa que encontrou pela frente e vestiu. A princípio, ninguém tinha prestado muita atenção e, só depois que ele saiu, visitando residências e bares vizinhos, é que todos perceberam que o nosso Waldemar tinha saído vestido de saia, bem colorida por sinal, imaginando que estava de bermuda. Ao perceber o vacilo e com tamanho constrangimento, Waldemar saiu correndo para casa, indo direto para o quarto e, na volta, não sabia onde enfiar a cara, de tão envergonhado que estava. Quanto mais tentava explicar, aí é que piorava a situação, pois a turma não se cansava de cair na gozação. Até os dias de hoje – sempre que os amigos abordam o assunto, Waldemar disfarça e vai saindo de fininho – todo sem jeito – culpando a família que não lhe chamara a atenção para o fato. Ao mesmo tempo, ele procura disfarçar, afirmando que ninguém está livre de uma situação parecida e que casos semelhantes costumam acontecer quase todo dia. Para Waldemar, tudo isso faz parte da vida e ninguém perde por esperar.
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Araçá - Edição: Março de 2020
POR UMA MEMÓRIA DA INFÂ NCIA: Meus desacontecimentos, de Eliane Brum Dejair Martins
dejairmartins@live.com
Artigo
Eliane Brum, escritora e jornalista, oriunda do interior do Rio Grande do Sul, é famosa sobretudo pelas suas colunas nos jornais e por alguns livros investigativos, os quais já proporcionaram à autora prêmios e reconhecimento em seu meio profissional. Sua estreia na literatura veio com o romance Uma duas, que narra a relação perturbada e difícil de uma filha com sua mãe. Repleto de frases e períodos fortes e curtos, com uma linguagem seca e objetiva, sem muitos floreios, e que de certa forma apresenta alguns traços autobiográficos. E uma característica recorrente em sua literatura que será desdobrada em seu livro de memórias da infância: as relações entre as famílias, sobretudo relações entre mulheres de uma mesma família ou o impacto que certas mulheres conseguem em uma vida. Em Meus desacontecimentos, segundo livro literário da autora, de fundo já agora totalmente autobiográfico, no qual será narrado a sua infância no interior gaúcho, sua vida e principalmente os casos e situações que a permeiam ainda jovem com desdobramentos possíveis no passado, no presente e no futuro e como ela mesma designa que fez “um percurso de dentro para dentro”: Desta vez, fiz um percurso de dentro para dentro. Me percorri. Lembranças não são fatos, mas as verdades que constituem aquele que lembra. Recordações são fragmentos do tempo. Com elas costuramos um corpo de palavras que nos permite sustentar uma vida [...]. Ao descrever aqueles que mor-
reram, possivelmente confronto as reminiscências de outros. Os que ainda vivem talvez discordem do que neles adivinho porque enxergam a si mesmos de modo diverso. Esta é a minha memória. Dela eu sou aquela que nasce, mas também sou a parteira (2014, p. 9). A narrativa do livro é em espiral, no qual os fatos da infância vêm aos saltos, fragmentos, trechos e pedaços descolados, como a memória constituída em mosaico, com pequenos trechos narrados e observados pela Eliane adulta, misturadas com o presente e o passado predominante e que dita o ritmo dos acontecimentos. E como a própria afirma: “Quando se escreve memórias de palavras, os tempos se misturam. O passado não existe, assim como o futuro. O que há é um eu inventando um passado e um futuro, no presente. Que em seguida escapa. O presente como um tempo que não existe, uma possibilidade lógica” (2014, p. 20). O primeiro ponto a chamar a atenção na obra e que será o nosso ponto de partida da análise consta na sua dedicatória: “Aos meus irmãos (e à minha irmã)”. Irmã essa falecida com apenas cinco meses de vida, vítima de um tipo raro e fulminante de meningite. Deste modo, a autora Eliane Brum como relata em suas memórias de infância, só foi concebida e nasceu em virtude da morte da primeira irmã. Suas fotografias estampavam a sala onde vivia na infância e os álbuns de família, uma das primeiras recordações desse período: “Aprendi a reconhecer minha irmã nas fotos, minha irmã loira de olhos azuis que eu estudava durante horas nos
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Araçá - Edição: Março de 2020 álbuns de família. Procurando, procurando. O que eu tanto procurava?” (2014, p. 18). Às vezes a experiência desse passado longínquo pode ser traumática e não muito estimulante, mas ao fim toda rememoração é trazer à tona um passado, que por mais nebuloso que tenha sido ainda é possível se extrair certa beleza dele, já que recordar é trazer à vida algo que não mais ocorrerá, fatos sepultados no tempo histórico de cada indivíduo. A primeira mulher familiar que aparece na obra constantemente, portanto é essa irmã, seja como uma lembrança e um marco gravado fundo em sua história e no de sua família, ou seja como uma espécie de símbolo de seu nascimento, para a autora existir a outra precisou falecer. E em um pequeno capítulo intitulado “Irmãs” diz: “Minha irmã me deu uma bio, já que eu não nasceria se ela não tivesse morrido. Eu agora lhe dou uma grafia. Aqui consumamos nossa fusão, mas também a separação definitiva” (2014, p. 24). Outro ponto interessante sobre a irmã morta se relaciona a obrigação da autora, assim como seus dois irmãos durante toda a infância, a visitarem periodicamente seu túmulo. E o que a faz se questionar e reiterar: [...] eu, a filha viva, sentia que a viva era a outra. E mais morta do que viva, eu falhava em renascer as partes ausentes de minha mãe
[...] Nasci não de um, mas de vários túmulos. O primeiro deles foi o corpo de minha mãe, assassinado pela morte da criança que veio antes. Uma menina, a primeira menina. Hoje compreendo tanto essa dor, jamais por inteiro, espero que jamais por inteiro. Diante daquele túmulo, eu me esforçava para chorar, eu tentava sofrer pela outra, mas não conseguia [...]. Sentia um medo quase paralisante, um medo ainda sem vogais e consoantes, de que minha mãe me trocasse se descobrisse um jeito de fazer isso. E que um dia fosse eu a filha morta que a família visitaria no cemitério (2014, pgs. 13-14). Das primeiras lembranças vividas e recordadas juntamente com a imagem da irmã, se liga a imagem da “casa escura” em que viveu até os cinco anos e que odiava, porém ficou terrivelmente doente quando soube que se mudaria. Local onde essa irmã foi velada e ambiente de eterno pesar e lamento de sua mãe pela perda tão sentida: “A casa foi deixada para outros. Meus pais e meus dois irmãos mais velhos mudaram-se para o apartamento onde, cinco anos depois da morte da minha irmã, eu nasci para reatar os fios” (2014, p. 19). A lembrança da casa e da irmã só permanecem na mente e nas memórias da autora por terem sido muitas e muitas vezes, beirando a exaustão, contadas e recontadas por sua família e
parentes, pois de fato sua primeira recordação proveniente da própria cabeça é do apartamento onde nasceu: “Minha primeira memória é a escuridão desse apartamento enjambrado, onde o sol pouco entrava” (2014, p. 20). Lejeune em seu artigo “Techniques de narration dans le récit d’enfance” aponta que, ao criarmos uma voz a um narrador criança, destacamos a distância e certa emoção na memória ao ser reavivada. Pois, a experiência da criança é a de um narrador que fala de um grande lapso de espaço temporal e não alguém que está vivenciando tais fatos no presente, e por isso mesmo tais lembranças quando vividas e rememoradas trazem grande carga e altas dosagens de emoções, até então reprimidas ou canalizadas para outros espaços ou situações. A segunda mulher que vem à mente das memórias de infância da autora é a empregada, na verdade empregadas, pois foram muitas ao longo dos anos, mesmo não tendo vínculos de sangue, elas são formadas e constituídas na lembrança como mulheres sem rostos, apenas como marcos indicando uma passagem e fragmentos espalhados, como se todas se resumissem a uma, em essência. A menina Eliane, por decisão dos pais, dormia com essas mulheres, por desde muito jovem sofrer de grave insônia e assim passava as
16 madrugadas à espreita pelos cantos e com um pouco mais de idade lendo. E na cozinha, ouvindo as novelas pela rádio, local no qual havia intimidade entre elas, por horas e horas, com uma novela atrás da outra pelo correr da tarde. A empregada chorava e se emocionava com o que ouvia daquele mágico aparelhinho, e os olhos da criança brilhavam de curiosidade daquilo tudo. E essa cozinha em suas lembranças representa o lugar mais iluminado e aquecido da casa, pois lá é que a magia de todos os dias se realizava. Até no nome há influência das novelas, já que o nome escolhido por sua mãe seria Isabel, então na época nome da protagonista da novela mais badalada, porém por medo de nascerem muitas Isabeis por causa disso resolveu mudar e assim virou Eliane Cristina. O Cristina referente a uma tia muito querida por sua mãe e o que fez com que a autora sempre invejasse o nome de Isabel e sempre que nascia uma nova menina era esse o nome que estava em sua boca como primeira sugestão. A novela de rádio rompeu a escuridão da casa-túmulo como um daqueles raios de sol que se enfiam por um buraco da parede e fazem nascer flores em ruínas de guerra. As palavras rastejaram para dentro das minhas orelhas, com suas unhas compridas, raramente limpas, e me contaminaram para sempre. Foi ali que co-
Araçá - Edição: Março de 2020 mecei a me tornar uma escutadeira que conta. E conta. Para contar (2014, p. 32). Refletindo sobre o livro de Eliane Brum vemos que a autora narra suas memórias como um imenso mosaico, no qual aos poucos detalha fragmentos de sua infância, ao mesmo tempo em que de certa forma “brinca” e “joga” com seu leitor, fornecendo dados reais de sua história particular, mas ao mesmo tempo criando um tecido narrativo que o prenda atentamente em seu relato. A terceira mulher disposta no caleidoscópio da memória da autora é a sua avó materna. Essa avó italiana, bem magrinha e discreta, abriu um mundo de possibilidades para a criança, o mundo das fantasias e das histórias. Através dela soube de muitas coisas e aprendeu demais, a avó era companheira e confidente, chegando ao ponto de beberem juntas e escondidas em uma festa. A avó vestia todas as suas bonecas e lhe incutiu o hábito de cultivar plantas, sonhando um dia em ser professora. E assim aparece seu avô, que mandava belas e afetuosas cartas de amor a sua avó. Muitos anos depois descobriu que o avô era analfabeto, na verdade quem enviava as missivas românticas era sua tia, irmã dele e a única que dominava as letras entre suas irmãs. E como aponta: “As cartas de amor da minha avó provam que não há reparação para a palavra escrita [...]. Pela memória da minha avó, aprendi a escrever com a ponta
dos dedos” (2014, p. 46). A quarta mulher destacada é sua tia Ivone. Essa tia, por ter uma filha com certa deficiência, passava seus dias trancada em casa cuidando da menina, e por isso mesmo fez de seu jardim praticamente uma selva temática, com todos os tipos de flores possíveis, na qual a jovem Eliane adorava brincar, e juntamente com as plantas da avó, a prática de cuidar do meio-ambiente e da natureza para ela se tornou quase uma obsessão, mesmo depois de adulta. A quinta mulher retratada é uma homenagem da autora a uma moça chamada Luzia, a qual foi a responsável por seu pai, então analfabeto, conhecer o mundo das letras, e justamente por isso, ele desde cedo a incentivou tanto a ler quanto a escrever, e muitos anos depois seu pai levava flores todos os anos ao túmulo de sua primeira professora, costume que a autora sempre que possível ao voltar a sua cidade natal perpetua. A autora abre um parêntese em seu livro para narrar a história da origem do seu nome Brum desde o embarque do tataravô da Itália para o Brasil e como o Brun italiano se tornou quase automaticamente o Brum brasileiro. E lembrar desse passado o revivendo é trazer à tona a memória daqueles que nos constituíram e nos fizeram ser o que somos: Eu escolho a memória. A desmemoria assombra
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Araçá - Edição: Março de 2020 monstros sem palavras. A memória, não. É uma escolha do que esquecer e do que lembrar – e uma oportunidade de ressignificar o passado para ganhar um futuro. Pela memória nos colocamos não só em movimento, mas nos tornamos o próprio movimento. Gesto humano, para sempre incompleto (2014, pgs. 83-84). A próxima mulher marcante em suas lembranças de menina se chamava Lili, e era a gerente da livraria de sua cidade de infância. Graças a ela poderia ler à vontade num cantinho sossegado do estabelecimento, e posteriormente foi “promovida” a leitora oficial, cuja tarefa era ler os livros recém-lançados pelas editoras e dizer se deviam ou não serem encomendados. O curioso dessa história é que a moça se mudou da cidade e por décadas se mantiveram distantes, até que por um jornal local, em uma coluna contando tal fato e a importância dessa moça em sua formação como leitora e escritora, foi possível o reencontro. As duas últimas mulheres marcantes e com certeza as principais não são narradas como um todo nesse relato de infância. A relação forte e problemática com a mãe em linhas tortas e romantizada está contada em Uma duas. E a outra essa sim só visualizamos pequenos esboços. Trata-se da filha da autora, que a teve com apenas quinze de anos de idade. E pode-se imaginar o que uma menina nessa idade em fins da década de
1970 grávida em uma cidade pequena e de costumes tradicionais muito arrigados passou e enfrentou. E assim a autora conclui seu itinerário e sua jornada pelas lembranças de sua infância: Alguns creem que as memórias da primeira infância ou são boas ou não existem, temerosos de que até o mito da infância feliz lhes escape. São os que preferem não lembrar. Eu lembro muito, sempre lembrei. E ainda hoje há noites, muitas noites, em que acordo com o coração descompassado. Sempre vou temer o retorno da escuridão, que para mim é o mundo sem palavras (2014, p. 12). Portanto, ao fazer esse livro de memórias da infância “de dentro para dentro”, Eliane Brum mais do que apontar, delimitar ou demarcar fatos e acontecimentos de sua juventude ela aprofunda questões bastante interessantes, como a constituição de um escritor/ leitor, o modo como um grupo mínimo de pessoas, no seu caso algumas mulheres, pode moldar um caráter e uma vida, e sobretudo como uma menina consegue se fazer mulher trazendo consigo toda uma bagagem e uma história de vida baseado em fatos da infância. _________________________ [1] Os grifos nas palavras “bio” e “grafia” do mencionado capítulo foram feitos pela auto-
Dejair Martins é Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente realiza estágio de Pós-doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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Os cacos domésticos em Bolor, de Augusto Abelaira
Erick Bernardes
ergalharti@hotmail.com
artigo
Erick Bernardes é professor de Língua Portuguesa e Literaturas. Mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ) e Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Este miniensaio constitui uma breve abordagem acerca do livro Bolor (1999), de Augusto Abelaira, uma narrativa cuja fugacidade de enredo vai na contramão dos romances que buscam “o tal” embasamento histórico e generalizante. Isto ocorre por causa do tratamento estético dado pelo artista às banalidade das ações cotidianas a servirem de enredo, na relação entre os personagens Maria dos Remédios e Humberto, a embasar o plano ficcional, revelando um estilo arguto, que preza sobretudo a micronarrativa, mas,- também, devido ao procedimento composicional pautado por referências das datas de calendário (estilo diário), quando aponta para o dia a dia mecanizado da sociedade de hoje, sob o atual contexto cultural referido como pós-moderno. O discurso sobre a convivência entre marido e mulher se afigura, por demasiadas vezes, mediante a sobreposição de anisocronias, ou seja, a alternância insistente dos tempos narrativos, no intuito de apresentar uma interposição
de narradores, ora masculino ora feminino. Entre os personagens Maria do Remédios e Humberto, surge uma terceira personagem para compor a cena discursiva, é Catarina, antigo relacionamento de Humberto, e de quem a recordação (e consequentemente o ciúme) dará o tom da complicação na trama — embora haja um certo número de personagens secundários. Entretanto, é quando mergulharmos na história do casal, que seus enunciados revelam uma peculiar superimportância dada aos objetos, enquanto imagem de desejo de consumo. Apesar da obra em questão haver sido escrita já vai lá algum tempo, o valor expresso pela mercadoria se assemelha a uma fantasmagoria contemporânea, cujos indivíduos se parecem com os próprios bens que consomem, uma espécie de “coisificação” do sujeito. Conforme: “Há tantas mulheres iguais a ti por esse mundo, as que escolhem brincos iguais aos teus (...)” (ABELAIRA, 1999, p. 28). Como se vê, homens e mulheres, por meio dos persona-
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Araçá - Edição: Março de 2020 gens de Bolor (1999), são tão esvaziados de sentidos quanto os próprios objetos por eles obtidos. O valor da mercadoria é posto em segundo plano, em detrimento de uma relação fantasmática de reificação de si mesmo. Esse empreendimento narrativo é entrecortado e muito se assemelha ao que Walter Benjamin (1892-1942) definirá como composição alegórica: estratégia de contrapor o símbolo à alegoria. O que isso significa? Se para o filósofo alemão, em Origem do Drama Barroco Alemão (1984), o símbolo carrega o sentido completo e lacrado acerca de uma ideia, a alegoria desmontaria esse símbolo, e reconstruiria uma nova percepção fluida e multidimensional, a partir dos resquícios do que outrora foi o símbolo: o passado “assombrando” o presente através dos cacos no aqui e agora. Do mesmo modo, podemos chamar de alegórica a história de amor satirizada por Augusto Abelaira, pois o que vemos na obra é um mosaico textual, sem preocupação alguma com a linearidade narrativa. Em Bolor (1999), está evidente essa alternância entre o passado e o presente, no intuito de construir a ideia daquilo que Michael Foulcault referirá como “uma peça da dramaturgia do real”, embora não importe “qual seja sua exatidão, sua ênfase ou sua hipocrisia, atravessados por ela: fragmentos de discurso carregando os fragmentos de uma realidade da qual fazem parte”. (FOULCAULT, 2003, p. 207) Sendo assim, seguindo a esteira das palavras de Benjamin (1985, p. 143), adaptadas à nossa análise do texto de Bolor, entendemos que “a alegoria é a máquina-ferramenta da Modernidade”. Consequentemente, tabus teóricos à parte, fica-nos compreendido que o livro de Abelaira se nos apresenta mais como uma narrativa artística e satírica, permeada pelo posicionamento intelectual de uma voz autorizada, via discurso ficcional, e menos um engajamento vão, de cunho retórico-político, o qual tenderia a acarretar prejuízos estéticos à obra.
“O discurso sobre a convivência entre
marido e mulher se afigura, por demasiadas vezes, mediante a sobreposição de anisocronias, ou seja, a alternância insistente dos tempos narrativos, no intuito de apresentar uma interposição de narradores, ora masculino ora feminino.
Referências bibliográficas: ABELAIRA, Augusto. Bolor. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Editor Brasiliense, 1984. BENJAMIN, Walter. “A Paris do Segundo Império em Baudelaire” in KOTHE, Flávio R. Walter Benjamin. Ática, São Paulo, 1985. FOULCAULT, Michel. “A vida dos homens infames” in MOTTA, Manoel Barros da. Michel Foulcault: Estratégia, Poder-Saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
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Justiceiros Gilvan Carneiro é poeta e escritor.
“...Não é fácil ser um justiceiro, sobretudo um justiceiro que pretenda justiçar todos os crimes existentes na cidade. Ou, pelo menos, todos os crimes que merecem ser justiçados. Isso porque tal tarefa implica numa onipresença digna de apenas um deus. E, como tal, também esse deus necessita ser justo. Pelo menos a seu modo. E ser justo também não parece fácil. Mesmo para quem se baseie num código tão simples como uma espécie de “Código de Hamurabi, do tipo “olho por olho, dente por dente”. Uma justiça do tipo “olho por olho, dente por dente”, que nem o “Código de Hamurabi”, parece ser bem simples. Diferente dos sistemas jurídicos tão complexos que lhe sucedem. No entanto, não é isso o que acontece. Apesar de serem bem mais complexos do que o “Código de Hamurabi”, os sistemas jurídicos contemporâneos podem ser resumidos num mesmo princípio, segundo o qual cada um dos crimes deve ser punido e o criminoso corrigido sempre numa mesma moeda, que é a da perda da liberdade, variando apenas no valor dessa moeda.
Gilvan Carneiro gil.carneiro@uol.com.br
É verdade que até mesmo em alguns sistemas jurídicos modernos, como em alguns lugares dos Estados Unidos, por exemplo, há ocorrência de uma pena de morte. Uma outra moeda que não a mera perda de liberdade. A perda total da liberdade. Ou, seria a liberdade total? Nesse caso, seria de pensar se a pena de morte não seria uma injustiça. Não por pena demasiado grande para um crime, seja que crime for. Mas, sim, por ser uma recompensa pela prática de um crime. No entanto, como, praticamente, todo crime passível de pena de morte é uma espécie de homicídio, nesse caso, este não seria um crime, sendo perfeitamente aceitável que alguém que o cometesse (cometesse esse bem) fosse recompensado na mesma moeda, portanto, com a morte. A liberdade de morte. De qualquer modo, o fato é que, se isso for verdade, a maior parte das pessoas sequer o sabe. E, para sabê-lo, também será necessário morrer. Se assim não fosse, nos países onde há a pena de morte, todos iriam querer praticar um homicídio, a fim de também ser recompensado com a morte. Ou antes, pra-
ticariam os “crimes” contra si mesmo, cometendo um suicídio. Mas esse não é o único problema para aquele que pretende fazer justiça (com as próprias mãos) a todo e qualquer crime que deva ou mereça ser justiçado. Existe uma série de outros. Por exemplo: como fazer justiça, na base do “olho por olho, dente por dente”, a alguém que tenha praticado uma chacina? A chacina de toda uma família. Matando esse criminoso junto com toda a sua família? Como, se a sua família, pelo menos em tese, não tem nada a ver com esse seu crime? Isto é, não é culpada do mesmo crime. Matar apenas o criminoso, mesmo que com muitas balas, muitas facadas, etc, dados em todas as pessoas que foram mortas não parece eficiente. Até porque, depois que se morre com um ou dois tiros, golpes, etc, enfim. Depois que se morre, tanto faz tanto fez que se leve mais um ou mil outros golpes, pois não se pode matar um morto. Ou
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matá-lo mais um pouco. O mesmo pode ser dito em relação a uma série de outros crimes que não sejam homicídio. Contudo, em relação a este conjunto de crimes, o próprio pensamento jurídico tem considerado o que se denomina de “crime continuado”. Este pode ser caracterizado como a continuação de um mesmo crime de forma consecutiva, sem interrupção, como se fosse apenas um único crime e não um conjunto de crimes. É assim que, se uma pessoa assalta um ônibus em que estavam 30 passageiros não significa que o assaltante, necessariamente, tivesse praticado 30 atos de roubar. Ao contrário, é possível considerar o ato como apenas um único assalto e, portanto, na prática, o que ocorre é a redução da pena. Ou um aumento da mesma em trinta vezes. Todavia, a teoria do “olho por olho, dente por dente” não se preocupa com a firula jurídica. Ao contrário, condena-a. Mas, voltando ao caso dos homicídios, que são o tipo de crime que mais merece a pena maior (ou seria melhor?), o fato é que são diversos os casos em que se mata com muitos tiros, muitos golpes.
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Em parte, como uma garantia, para certificar-se de que matou realmente, em parte com uma forma de matar-se mais uma vez. Não deve haver nada mais desagradável do que querer matar alguém e não conseguir. Não falo daquelas tentativas desesperadas em que o cidadão (porque o criminoso, pelo menos antes de cometer o crime, ainda é um cidadão) pega numa arma ocasional ou mesmo não ocasional, mas que é movido por uma forte emoção e, devido a isso, dispara um ou um monte de tiros em alguém. Falo daquele que está decidido a matar alguém, de modo consciente e sem perdão. E mata. Mata profissionalmente. Portanto, de forma supostamente eficaz e garantida. Por exemplo: descarregar o tambor de um revolver na “encomenda”. A sua encomenda. No entanto, por algum motivo que não se sabe qual, quiçá uma vontade divina, a vítima não morre. “Agoniza, mas não morre”, tal como diz o sambista.” (Fragmento do romance “EU SOU O BICHO”)
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É verdade que até mesmo em alguns sistemas jurídicos modernos, como em alguns lugares dos Estados Unidos, por exemplo, há ocorrência de uma pena de morte. Uma outra moeda que não a mera perda de liberdade.
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julianeelesbao@gmail.com
Juliane de Sousa Elesbão
O PERCURSO INTELECTUAL DE RADUAN NASSAR: A LEITURA DA“PALAVRAMUNDO”
CAPA
Juliane Elesbão é Doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará.
Sabemos que a atividade da escrita não é independente da subjetividade criadora, haja vista que a manifestação desta não se dá num terreno neutro e estável – o da linguagem –, sem o filtro do espírito altamente complexo do autor no que diz respeito à sua própria pertinência existencial. Essa “filtragem” ocorre por meio da percepção do escritor, que o leva a mover suas expectativas, e às experiências sensíveis, chamando-as para uma ressignificação. A literatura, portanto, está vinculada ao âmbito pessoal do escritor, visto que ela “como configuração institucional condiciona os comportamentos, mas, para criar, o escritor deve explorar esse condicionamento e interferir nele. As obras emergem em percursos biográficos singulares [...]” (MAINGUENEAU, 2001, p. 45). A organicidade
interna da obra, além dos componentes linguísticos, estilísticos, de gênero, entre outros, também é nutrida do que lhe é exterior e do que atinge o escritor enquanto sujeito. A literatura convive com o meio social e obriga os escritores a alimentar-se de lugares, grupos e comportamentos desse meio. No entanto, esses elementos são pensados, aprofundados na escritura literária e surtem efeitos, quando na leitura, na sua trajetória de volta para a realidade exterior à literatura, na vida social e individual dos sujeitos. Por outro lado, o produto da atividade de escrita literária, a obra, sempre parece transcender a essa instância subjetiva, ao seu próprio “contexto” de criação, pela maneira como ela o exprime: a identificação problemática entre as palavras e as coisas, a articulação entre a palavra e outras enunciações a ela ligadas, a renúncia à expressão do que é indizível, entre outros. Em outras palavras, “a literatura é a transcendência pela linguagem de uma vida empírica ou do que nomeamos realidade” (HATOUN in DIGESTIVO CULTURAL, 2006, s. p.), isto é, a linguagem literária leva o sujeito a um horizonte mais amplo que sua existência, ancorado numa imanência do sujeito a si mesmo. Com base nisso, identificamos tal aspecto em Raduan Nassar. Criador de um universo literário que lança mão das ressonâncias da tradição cristã, com certo acento da tradição clássica mediterrânea, retratando um patriarcalismo austero e, ao mesmo tempo,
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Araçá - Edição: Março de 2020 frágil, a valorização do trabalho, as transgressões social e familiar, entre outras características, percebemos que as temáticas presentes na tessitura textual nassariana portam consigo rastros de leituras várias que compõem a criteriosa biblioteca pessoal do escritor. Na célebre entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira, Raduan chega a citar alguns autores pertencentes ao seu cânone de leituras: Jorge Luis Borges, Virginia Woolf, Osman Lins, Graciliano Ramos, Cyro dos Anjos, Autran Dourado, estes três últimos, segundo o autor, escreveram obras que “são lembranças que fazem parte do [seu] afeto” e “a qualidade dessas lembranças talvez revele algum parentesco”. Encontramos, ainda, na nota que ele escreveu para a primeira edição de Lavoura Arcaica (doravante LA), trechos destacados do romance e extraídos de outros escritores lidos por ele, como vemos abaixo: [...] Recurso indispensável, o A. [referindo-se ao personagem André] também enxertou no texto – na íntegra ou modificados – os versos que seguem: “especular sobre os serviços obscuros da fé, levantar suas partes devassas, o uso sacramental da carne e do sangue”, pág. 22, de Thomas Mann; “para onde estamos indo?” “sempre para casa”, págs. 31 e 32, de Novalis; “tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita”, pág. 84 de Walt Whitman; “o instante que passa, passa definitivamente”, pág. 97, de André
Gide; “que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?”, pág. 124, de Jorge de Lima; “eram também coisas do direito divino, coisas santas, os muros e as portas da cidade”, pág. 138, de Almeida Faria. (NASSAR, 1975, p. 193) O cânone de leituras particular de Nassar transfere valores estéticos para a sua escritura, na qual serão reatualizados e potencializados. Assim ocorre porque elementos são resgatados dos escritores lidos pela experiência atual do escritor-leitor, redescobrindo-os e acrescentando a eles outros significados. Inferimos isso pelas leituras mais evidentes na produção literária do autor e também por aquelas que se encontram nas epígrafes de LA que apontam para o poeta alagoano Jorge de Lima (1895-1953), já citado no trecho acima; para o Alcorão, considerado o primeiro texto em prosa no cenário da literatura árabe, cuja linguagem está estruturada em reiterações frequentes e orações que se repetem, objetivando a assimilação doutrinária e dogmática; e, por fim, nos trechos que remetem às releituras que Raduan fez de passagens pertencentes à Bíblia, um conjunto canônico de “livros sagrados”, que constitui o fundamento da fé cristã e considerado a palavra de Deus. No entanto, salientamos que mais do que a leitura dos livros, Raduan Nassar dava importância à leitura que fazia da vida – chamada por ele de “Livrão” – fora dos livros, conforme afirma: Por uns bons anos, certas leituras me fizeram bem. É do que me lembro. E tem isso: a leitura que mais eu procurava fazer era a do livrão que todos
temos diante dos olhos, quero dizer, a vida acontecendo fora dos livros. Dessa leitura da vida não senti exatamente orgulho, embora achasse a leitura mais importante a fazer, como escritor. Agora, apesar da importância que eu punha na leitura do Livrão (Livrão com maiúscula), é certo que muito do meu aprendizado foi feito também em cima de livros, especialmente de uns poucos autores, autores que iam ao encontro das minhas inquietações [...] (NASSAR in CADERNOS, p. 26-27, 1996). Assim as percepções de mundo e as experiências vinculadas ao âmbito pessoal confluem, no ato da escrita, com o seu texto, numa dialética articulada entre vida e literatura. Raduan coloca a necessidade de se pôr em relação com a sua contextura individual e histórico-cultural, de imergir em sua própria realidade para reinterpretá-la e dela emergir criticamente, a fim de forjar sua realidade ficcional. Podemos corroborar tal fato com a noção de palavramundo apresentada pelo educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) em seu artigo O ato da importância de ler (1984). Ao ensaiar a escrita desse artigo, Freire confessou que foi necessário re-criar, re-visitar “momentos fundamentais de [sua] prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de [sua] infância, de [sua] adolescência, de [sua] mocidade...” (1984, p. 12). A leitura da palavramundo foi imprescindível, como porta de entrada, para a leitura da palavra presente nos textos, para a sua alfabetização e para a construção de uma concepção crítica do próprio ato da leitura. A partir de então, compreende-
24 mos que a leitura da palavramundo contribui para uma reflexão acerca da subjetividade humana expressa no âmbito ficcional, que nos coloca frente a frente com o que desconhecemos, com o que desafia nossa relação com a própria língua e que põe o ser em questão. As percepções, a memória, as paisagens, os acontecimentos, as primeiras descobertas, ou seja, a palavramundo está exposta nos livros, nas narrativas, nos poemas que lemos e nos permite lidar com os jogos de significação, com os vazios textuais, com as negociações de sentido entre texto e leitor, ampliando e reforçando o desafio que a este, enquanto indivíduo, é dado em sua busca pelo autoconhecimento. Daí decorre a importância que Raduan dá ao ato de ler o mundo e a vida pelo significado que este ato lhe acarreta e pela importância que ela tem em sua formação, em sua narrativa pessoal. De leitor do seu mundo, apropriando-se dele firmemente, e da palavra, o autor passa para o ofício da escrita para manifestar o anseio de acolher a palavra lida e fazer dela uma possibilidade de existir, desenvolvendo, assim, o seu aprendizado primeiro: o da palavramundo. É perceptível, ainda, no seu labor verbo-ficcional, o contato que o escritor teve com a miscelânea cultural do Brasil – sobretudo, a literária –, visto que nasceu e morou no interior de São Paulo, e com um universo cultural diversificado alimentado pelo conjunto de saberes guardado e transmitido pelos pais (de origem libanesa). Essa parte do seu mundo biográfi-
Araçá - Edição: Março de 2020 co, mormente a que se refere à herança mediterrânea, ressona visivelmente em sua obra; por isso, segundo Lemos (2003, p. 14), não podemos descartá-la, já que ela dita o posicionamento do escritor, inserindo-o na tradição literária. A respeito dessa veia mediterrânea, que alimenta sua obra e que marca o peso do destino na tragédia familiar, nos fala o escritor “libanês-brasileiro”: O […] Alceu Amoroso Lima [crítico literário] já tinha enfatizado em outro momento o recurso à tradição clássica mediterrânea como atmosfera e contexto da tragédia. Uma tradição que acabou abarcando todo aquele fundo de Mediterrâneo. O Maktub árabe teria a ver com a implacabilidade do Destino grego. […]. Era todo um Mediterrâneo, europeu ou não, em processo de integração cultural. Seja como for, até que eu pense melhor sobre o assunto, vou de anfíbio mesmo quanto ao Lavoura. (NASSAR in CADERNOS, 1996, p. 30) O espaço onde os conflitos ocorrem na obra é construído à luz de evocações da tradição clássica mediterrânea, cuja miscigenação com a cultura brasileira, pela imigração sírio-libanesa, dá densidade ao discurso literário do romance, confere desmesura ao lirismo pungente, alimenta a “atmosfera e o contexto da tragédia” em LA. No que diz respeito ao termo “anfíbio”, citado por Raduan, no âmbito dos estudos literários, essa expressão designa a vivência de um escritor en-
tre duas culturas, colocando-o como estrangeiro em ambas, e seu reflexo na produção literária. José Paulo Paes, numa crítica de sua autoria sobre a obra do escritor de origem dinamarquesa Per Johns, destaca tal expressão em sua análise e afirma que o “anfíbio” pode apresentar um dado novo, algo diferente na sua representação artística. Com Raduan foi assim: vivendo entre duas culturas, a libanesa e a brasileira – em relação às quais organizou sua própria existência e sua própria identidade –, o escritor-anfíbio soube aproveitar seu material biográfico e cultural para a feitura ficcional de LA sob o prisma que toca nas origens e que desemboca na complexidade humana, cuja base está assentada no duplo antagônico pai/ filho e na sua dramática tensão. Soma-se também o contato que Nassar teve com a tradição católica logo cedo – aos nove anos de idade –, da qual não saiu ileso, como vemos na citação a seguir: As procissões da Semana Santa, sobretudo as da sexta-feira da Paixão, eu não vi até hoje nenhum espetáculo teatral que se compare com esse que eu tenho na minha imaginação de criança. A cidade toda escura, o pessoal andando, as congregações todas de preto – e folhas secas nas ruas para destacar o andar da procissão. [...] Era uma coisa assim de chorar. Ou então a procissão do encontro no domingo de Páscoa, às seis da manhã, entre a capela de São Pedro e a matriz. As pessoas se encontravam, eu chorava.
Araçá - Edição: Março de 2020 [...] Isso faz parte de meu mundo infantil. Inclusive, eu fui coroinha. (NASSAR in FOLHA, 1995, p. 1) A atmosfera religiosa cristã fez-se constante em sua escrita posteriormente e refletiu, de modo acentuado em LA, o sagrado, o profano e o mistério ligados ao próprio homem; o caráter teatral do ritual descrito na citação acima influencia a atmosfera dramática e trágica no romance; a essencialidade religiosa promove inquietações e conflitos entre os personagens; toda essa conjuntura que fez parte do “mundo infantil” de Nassar forma o menino André em LA, cuja fé fazia dele o “congregado mariano” “mais fervoroso que qualquer outro em casa” (NASSAR, 1989, p. 24). Assim, com Raduan, a “leitura” do mundo particular, prenhe de códigos linguísticos e não-linguísticos, permeia a sua escritura – vínculo entre os traços de linguagem e o trabalho verbal do escritor, ligado à subjetividade e à arte –, isto é, o “texto”, as “palavras”, as “letras” – a palavramundo – do seu cotidiano familiar tomam corpo e são assimiladas e reelaboradas pela sua produção literária. Perceber, pensar e interpretar parecem formar uma tríade dialética na formação do escritor que compreende, de forma mais ampla, o ato de ler o mundo: Valorizo o relato da experiência do outro e procuro até dialogar com ele sobre sua experiência vivida, mas posso sentir de modo diferente, se eu vier a viver uma experiência correspondente. Seria a vivência de um escritor, e não um olhar de
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empréstimo, o que poderia imprimir voz própria ao que ele escreve. Só isso. (NASSAR in CADERNOS, 1996, p. 27) Compreender também a prática do outro faz com que Raduan tenha uma visão mais coletiva e abrangente do contexto que o circunda e, de certa maneira, também se aplica à sua prática leitora e à sua escrita ficcional, fazendo-o reconhecer sua própria linguagem e sua visão de mundo por meio da linguagem e da visão do outro: “Abordar criticamente as práticas e as experiências de outros é compreender a importância dos fatores sociais, políticos, históricos, culturais e econômicos relacionados com a prática e a experiência a ser reinventada” (FREIRE; MACEDO, 1990, p. 81). Por outro lado, suas experiências particulares conferiram, de forma mais contundente, aspectos centrais da proposta de literatura que o escritor visava a manifestar no concernente às temáticas e aos questionamentos, de várias ordens, suscitadas na sua obra, já que para Raduan, “a literatura sem vínculos profundos com a vida não é nada!”. Assim, Modesto Carone, amigo de Nassar, ilustra tal fato e
aponta mais alguns escritores, considerados mestres pelo grupo de amigos que intentava enveredar pela escrita literária e que fizeram parte dos afetos do autor de LA: O tema recorrente das conversas era a relação entre a experiência e a literatura: quanto maior uma, melhor a outra. [...] As discussões podiam varar a noite e os exemplos de proeza pessoal e realização artística iam de Eugene O’Neill num cargueiro americano até Graciliano Ramos no cárcere ou Ernest Hemingway em armas contra o fascismo europeu. (CARONE in CADERNOS, 1996, p. 14) Com base na fala acima de Modesto Carone, entendemos, portanto, que a leitura aqui é entendida como experiência de formação do sujeito, tanto pelo conhecimento transmitido pelos seus antecessores quanto pelo que adquiriu com suas vivências, com sua sensibilidade... Isso faz de Nassar, junto aos seus companheiros de conversa, um leitor empenhado na leitura da sua própria existência e na sua construção enquanto escritor. Filtrando suas experiências, de origens várias, es-
26 gotando-as e remodelando-as em sua escritura, Raduan consolida uma linguagem e uma visão de mundo que caracterizam um universo mediterrâneo e de feição tradicional, ao mesmo tempo em que trata do que é universal pelo que contém de drama humano e subjetivo. Não se trata de impor uma linha causal determinista entre os acontecimentos da vida do autor e os fatos retratados em sua obra, pois “O que se deve levar em consideração não é a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união” (MAINGUENEAU, 2001, p. 46). A questão, portanto, se volta para uma demarcação do tipo de relação e do modo como sua formação pessoal e intelectual está vinculada à sua escritura, esta vista como inscrição do sujeito que transparece no texto por meio do uso que ele faz da linguagem. Tido como um romance de atmosfera trágica, LA é escrito com certa tonalidade lírica que expõe e põe em reflexão aspectos centrais que nortearam a formação do escritor: família, costumes, religião, infância. A partir de então, seu universo ideológico configura-se enquanto tal no diálogo com a linguagem lírico-dramática da obra que questiona a autoridade e a legitimidade de outros discursos, bem como problematiza as linguagens do passado e do presente. Em LA, a linguagem remonta às origens do próprio escritor, que se confundem com a trama do enredo, e, através da linguagem simbólica, os traços das experiências e das leituras atualizam-se e adquirem outros
Araçá - Edição: Março de 2020 significados no momento da narração. O escritor singulariza-se, também, por tratar de conteúdos universais que configuram o mosaico labiríntico do romance LA, com sua linguagem perversora, para aprofundar questões que tocavam seu próprio contexto: a cultura mediterrânea, a família de imigrantes, a religião, o trabalho com a terra e com os animais, o isolamento, a conduta humana... A partir de então, a discussão que se traça aqui sobre a vida e a obra do escritor Raduan Nassar faz-se necessária como um meio de compreender a linguagem, a narrativa e a escrita literária que ele desenvolve em sua produção ficcional e que resgatam, de certa forma, suas experiências. Em suma, o objetivo deste ensaio não é buscar traços biográficos na obra, mas reconhecer na sua empreitada literária a experiência pessoal, em sentido amplo, artisticamente trabalhada. Indivíduos fragmentados, perdidos, sempre a procurar respostas, refratam uma vida silenciosa, introspectiva, cheia de rupturas e densa como foi a de Raduan. Ocupando lugares sem ocupá-los, aos poucos o escritor firmou um compromisso instável com a literatura, abandonando-a logo depois. Como um andarilho, Raduan atravessou várias áreas do conhecimento humano sem se firmar em alguma específica, fato este que propiciou os investimentos literários que ele faria posteriormente. [1] Este ensaio é uma adaptação de um tópico da dissertação de mestrado intitulada LAVOURA ARCAICA: RASTROS DO COTIDIANO NA ESCRITURA DE RADUAN NASSAR da mesma autora.
[2] CADERNOS de Literatura Brasileira: Raduan Nassar. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996, n. 2. [3] Raduan cita, na entrevista, as obras do referidos escritores que o marcaram. São elas: São Bernardo (1934), O Amanuense Belmiro (1937) e Uma vida em segredo (1964), respectivamente.
[4] A referida ênfase foi constatada pelo crítico, que usava o pseudônimo Tristão de Athayde, na coluna Romances, numa das edições de 1976 do Jornal do Brasil. O jornal, com todas as suas edições, encontra-se digitalizado na hemeroteca da Biblioteca Nacional, no seguinte link: http://hemerotecadigital. bn.br/ [5] Essa expressão significa: “Está escrito”. [6] PAES, 1999, pp. 68-77.
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Marcos Pereira - marcoscpereira@globo.com
O reconhecimento de uma equipe chamada vírus
Araçá - Edição: Março de 2020
Marcos Pereira é professor.
O
mundo se encontra perplexo com o novo vírus que vem circulando pelo planeta. Com uma contaminação sem precedentes, essa nova epidemia, que já poderia ser chamada de pandemia, está modificando os costumes das cidades, vilarejos, aldeias e nações. O Corona Vírus só é combatido com consciência e investimentos. Assim como outros vírus existentes no mundo. Talvez pareça ironia, mas o Brasil foi o primeiro país do mundo a decifrar o genoma do vírus e, o mais incrível ainda, é que este genoma foi definido por uma equipe residente em uma faculdade pública. O destaque deste evento, foi o prazo que se levou para decifrar o genoma do vírus. Ficamos à frente das grandes potências mundiais, fato inédito para o controle desta pandemia. Infelizmente, essa mesma faculdade que fez esta descoberta é chamada pela política dos nossos governantes de balbúrdia. Sabemos que o povo brasileiro possui muitos talentos, mas é necessário que tenhamos investimentos condizentes para que possamos divulgá-los e enaltecê-los. O temor que temos do vírus se
instalar em nosso território é horripilante. Países que possuem grandes infraestruturas estão tão vulneráveis quanto qualquer outro país. Porém, eles possuem um grande diferencial, investem pesadamente em educação e pesquisas. Agora, imagina a catástrofe se o vírus se instalar de vez em nosso território? Qual a arma que utilizaremos para combatê-lo? Há anos, lutamos contra a Dengue e ela continua matando cada vez mais. Estamos falando de situações onde a percepção e a consciência de todos é fundamental. Não podemos deixar que as Fakes News tomem conta da população, conforme aconteceu e acontece no plano político. Prova disso é o reaparecimento de doenças radicadas no território nacional, pois as pessoas deixam de se vacinar, por acreditarem nas notícias divulgadas nas redes. Pensem, o país não possui estrutura hospitalar para tratar de todos. Fato que podemos constatar no nosso dia a dia. Estamos tão vulneráveis quanto qualquer outro, por isso, é fundamental que a população se deixe impregnar de higiene e conhecimento para combater mais este vilão que nos bate à porta.
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Altamir Lopes
altamirlopesconsultoria@gmail.com
Guerra Mundial Microscópica, Macroscópica e Educativa
Araçá - Edição: Março de 2020
Altamir Lopes é gestor de RH.
Armas e bombas? Não. Notícias bombásticas? Sim. Estratégias de guerra? Não. Nosso próprio meio ambiente contaminado? Sim.´ Ódio entre as pessoas? Não. Nossos amigos afastados de nós? Sim. Riscos flamejantes no céu? Não. Gotículas mortais invisíveis? Sim. Vitória garantida se tiver arsenal mais poderoso? Não. Derrota certa se não reforçar as defesas? Sim. Esse prelúdio ao nosso modesto texto sinaliza o assunto que está na crista da onda do mar da humanidade: A declarada Pandemia que ataca ferozmente a toda sociedade (des)organizada. E na crista dessa onda poluída e contaminada de morbidade e de palavras doentias firma-se a certeza de que o nosso pior inimigo é aquele que não somos capazes de enxergar. O Coronavírus. Ao deter a atenção compulsória de cada segmento, camada, estrutura e vontades de nossa sociedade, esse pequeno ser unicelular tornou-se o centro de todas as notícias no outrora esperançoso ano de 2020. E muito mais do que seus parentes próximos causadores de outras gripes animalescas, esse tal de “corona” está levando de carona uma sensação de instabilidade que rascunha sinuosamente um cenário similar a de guerras sangrentas. Especialmente porque o coração pulsante de sangue do sistema – a economia – está sendo abalado e próximo da fibrilação… E mais uma vez, dentre tantas e tantas vezes onde o palco de teatro mundial apresentava a importância da educação como meio preventivo para as soluções de problemas ou mesmo para que não nos metêssemos neles, essa mesma Educação se apresenta como principal arma – letal arma – para enfrentar esse inimigo poderoso. “Lavem as mãos. Lavem as mãos. Lavem as mãos.” Ensina-se agora o que nossas mães tentavam nos ensinar. Mas não é só isso. “Valorize a aprendizagem e o conhecimento. Estude. Precisamos de médicos, engenheiros, técnicos, professores, inventores… e sem ela, a Educação, não conseguiremos. Você não será nada nessa vida.” Até que criamos muito, inventamos muito, curamos muito. Mas não o suficiente para curar o ódio, a competitividade, a ganância, a preguiça, a mentira…estamos pagando por nossa falta de educação. Estávamos buscando educação no lugar errado? Vou contar um caso. Quando eu estava na 5ª série ginasial ( hoje o equivalente ao 6º ano do
Segundo ciclo do Ensino fundamental, no Brasil ) tive meu primeiro contato formal com a disciplina conhecida como História. O primeiro conceito relacionado a disciplina apresentado por aquela fantástica professora me chamou a atenção: ”Estudamos História para que não cometamos os mesmos erros praticados no passado”, professou a querida docente. Num ímpeto vigoroso e improvável dos meus franzinos 12 anos de idade levantei a mão quase alcançando o teto e rasgando a camisa de botões e nem esperei a professora me conceder a palavra: ”Então professora – reverberei com a cara fechada e com tons de sarcasmo e dúvida – o ser humano nunca estudou História, pois cometemos os mesmos erros até hoje”. Não houve resposta. Nem da professora, nem dos colegas. E desde Adão e Eva, a falta de zelo pela Educação, seja a fornecida pelo Criador de todas as coisas ou produzida pela tecnicidade Humana, tem gerado problemas os quais – temo eu – nem a própria Educação será capaz de mitigar, pelo menos sozinha, não! E Lê-se aqui Educação como princípio do respeito mútuo, às Leis universais, a integridade e a boa prática moral e ética. E tal qual um paradoxo, a soberania da Educação impera-se nessa guerra epidemiológica como único remédio para a doença causada pela ausência dela. E, voltando à história da História contada alguns parágrafos acima, não precisamos ir muito atrás nas páginas do livro da vida humana para percebermos que não estamos atentos ao que realmente importa nas entrelinhas. Um bom exemplo desse fato é o simples exame dos inúmeros periódicos, livros e revistas seculares que já apontavam desde anos atrás para um período como esse que agora vivemos. A revista Despertai, publicada há 15 anos ( edição de 22 de dezembro de 2005 ) cita diversas fontes fiáveis indicando claramente o retorno de uma grande pandemia: “Segundo muitos especialistas, a questão não é se um vírus violento vai retornar mas sim, quando e como isso vai acontecer. De fato, alguns estimam que um surto relativamente grande de influenza aconteça a cada 11 anos, e um surto severo, a cada 30 anos aproximadamente. De acordo com essas estimativas, o prazo para o surgimento duma nova pandemia já se esgotou” . Levando em conta que essa revista é uma das mais distribuídas no mundo e suas citações apontam a outras fontes de peso, podemos nos perguntar até que ponto estamos, ou deveríamos estar, realmente atentos e despertos – como o próprio nome da publicação sugere… Vamos aprender muito. Ou não. Numa guerra, macroscópica ou microscópica a lição fica. Ora nos livros, ora nos tempos. Ora, ora…já passou da hora. Lave a mãos. Mantenha sua consciência limpa.
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Um dia de Carnaval Renato Cardoso
professorrenatocardoso@gmail.com
Renato Cardoso é professor Marques de Sapucaí, o coração bate forte. Escuto o puxador do samba embalando o início do desfile. As últimas fantasias são colocadas e os últimos ajustes são feitos. Olho para o céu, tempo fechado. Uma gota de chuva cai e a preocupação aumenta. O cavaquinho começa a tocar. A multidão se empolga, mas isso não começou agora. Tudo começou há um ano. Diretoria reunida, enredo traçado. Os primeiros rabiscos acontecem. Fantasia por fantasia é confeccionada. Falta material, compra material, a verba é pouca, o governo cortou. Faz roda de samba na quadra para arrecadar mais dinheiro, faz o famoso angu à baiana da tia Maria. Os sambas começam a ser escritos (a poesia toma conta da escola). Finais de semana a fio são marcados para a grande decisão. Afinal, quem irá compor a letra que irá defender a escola na avenida (o sonho de todo grande compositor é ter seu nome eternizado num samba)? Depois de três meses, samba escolhido. Ensaios marcados. Muitas discussões, desentendimentos, mas tudo por um amor muito maior, o carnaval. Para muitos o Carnaval é simplesmen-
te uma data de folia, diversão, namoro ou pegação, mas para nós não! Para nós o Carnaval é a pulsação da vida, é o coração bater na toada do surdo, é a alma se elevar a cada giro da porta bandeira. O verão chega, a ansiedade aumenta. Os nervos ficam a flor da pele nos barracões. E começamos a nos perguntar: “Será que vai dar tempo?”. Dezembro termina e janeiro começa, contagem regressiva. Faltam 30 dias para o grande espetáculo! Noites em claro, dias corridos, todo barracão é inspecionado. Tudo é conferido, afinal 1 décimo pode decidir um ano inteiro. Voltamos ao grande dia. Corre-corre, gritaria, choradeira. A rainha da bateria chega na sua altivez tradicional. As passistas, com seu gingado, representam o que o samba tem de melhor, o molejo. A bateria se posiciona. A comissão de frente se concentra. O suor percorre o corpo de cada integrante, não pelo calor tradicional da época, mas pela responsabilidade de fazer bonito na avenida. A ansiedade dá lugar à euforia. O samba começa e todos cantam. Um nó na garganta vem, é
a consagração. 70 minutos resumem um ano inteiro de trabalho, um pouco mais de 500 metros nos separam da glória ou da derrota. Todos pulam, vibram, assim como a corda do cavaco a nos embalar. 45 juízes julgam nove quesitos, e nós somente clemência pedimos. Nesse momento todos veem a escola como unidade (a união de diversos em um só). O desfile acaba! Tudo certo, impecável! Ao fundo escuto uma senhora gritar: “É campeão!”. A exaustão bate. O trabalho de um ano chega ao fim. Na terça-feira, o descanso merecido. Na quarta-feira, a grande decisão, a apuração. Nota a nota é declamada (o locutor parece declamar, como o poeta, suavemente cada nota). Taquicardia, dedos estalados, falta de ar. A apuração acabou! Viradouro campeã! E para as demais só resta à quarta-feira de cinzas. O mestre-sala tira seu chapéu e fim do Carnaval.
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Helena Corrêa
helenamscorrea@gmail.com
DISCIPLINA – UM HÁBITO
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Helena Corrêa é professora e pedagoga
“
A disciplina irá gerar em nós o FOCO, uma visão do que desejamos, a partir da qual iremos criar estratégias e métodos, no intuito de alcançarmos cada objetivo proposto, dentro da nossa visão relativa, acerca do futuro.
É
comum na roda da vida usarmos o nosso tempo de forma errônea, gastar o tempo, nossas energias, com coisas que não importam de verdade. Esses são elementos que sabotam, pouco a pouco, nossas vidas, trabalhos, relacionamentos, dentre outros. O que poderia ser prazeroso, acaba por se tornar um imenso fardo diário. Fato é que alguns poucos hábitos diários, algumas mudanças nesses hábitos, através de uma rotina positiva e persistente, podem revolucionar nossas vidas, nosso presente, nosso futuro, em vários aspectos. Seja emocionalmente, socialmente e até financeiramente… seja de uma simples palavra, de uma atitude diária e persistente: DISCIPLINA. A disciplina irá gerar em nós o FOCO, uma visão do que desejamos, a partir da qual iremos criar estratégias e métodos, no intuito de alcançarmos cada objetivo proposto,
dentro da nossa visão relativa, acerca do futuro. Como você vê seu futuro na sua família? Como você vê seu futuro nos seus relacionamentos, de modo geral? Como você vê seu futuro no seu relacionamento amoroso? Aliás, você consegue perceber seu futuro ou está vivendo um dia de cada vez, apenas por viver sem metas, sem objetivos ou sonhos para realizar? Essas são perguntas que devem responder a si próprias, para saber como anda a roda da sua vida, ou seja, se realmente está girando ou ela está parada, estagnada. Vale um alerta: somente você pode fazer a roda da sua vida mudar, girar, ser dinâmica, manter-se viva, brilhar e contaminar outras vidas. Seja o agente de mudança no seu viver e não fique parado, esperando o pozinho mágico da fada “Sininho”. Isso de pó da fantasia só surte efeito na “Terra do Nunca” — vamos combinar, né? Pense na disciplina, tal como uma chave que
irá abrir as portas das oportunidades à sua frente. A escolha é fácil: virar a chave, abrir a porta, entrar e encarar os desafios. Seja disciplinado, com foco nos seus objetivos e metas, superando a cada momento as limitações, as dificuldades que virão; ou simplesmente escolha jogar a chave fora, deixá-la em um canto qualquer, dando as costas à porta. Tipo de portal que pode abrir as oportunidades tão esperadas nas nossas vidas, ainda que se revelem cheias de medo, pois exigirão de nós foco e disciplina. Não é raro julgarmos nós mesmos, crermos não estarmos preparados para isso. Só que eu preciso te contar um segredo: ninguém está preparado para isso. Foco e disciplina são habilidades que nós treinamos, validamos e expandimos, cotidianamente. Basta querermos e termos disposição, pois exige muito de nós. Exigências no
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Araçá - Edição: Março de 2020 quesito tempo e, sobretudo, dedicação à obtenção dos resultados. Essa é a chave para a mudança em nossas vidas postas justamente em nossas mãos, a decisão é única, exclusivamente nossa. Não existe fórmula mágica, o que existe é a decisão de ter disciplina e foco para criar e seguir novos hábitos que nos levarão a alcançar cada meta traçada dentro das nossas expectativas. Sabe-se que, muitas vezes, passaremos por momentos de frustação e êxtase, durante todo esse processo, e justamente nesse ponto devemos ter uma mente disciplinada e focada — isso faz total diferença! Foco primordial é necessário, para não sucumbirmos ao desânimo, ao ego, seja qual for, pois a nossa vida (humanamente falando) é feita de picos e vales, de altos e baixos. Precisamos estar atentos, sim, aprendendo a lidar com momentos de oscilação de humor, tirando proveito dessas lições, com vistas a compreender, através de cada circunstância, qual crescimento se põe à nossa frente. Se não soubermos passar por esses momentos de disciplina e estarmos focados em nossos objetivos, cientes de quem somos, das nossas crenças enquanto processo mental, atitudes e valores, certamente nos perderemos
no processo, viveremos uma vida circular; estado da mesmice; momento de marasmo. Melhor é aproveitar cada segundo preciosamente, depositado nessa “conta” maravilhosa chamada de VIDA. Segundo João, o desejo para nossas vidas é exposto no sentido mais amplo possível: “Eu vim para que tenham VIDA, e a tenham com abundância (JOÃO 10:10). Portanto, estejamos certos que somos chamados para ter vida em abundância, o que não significa riqueza em valores e espécies, mas em qualidade e amor, carinho e afetividade, relacionamentos saudáveis, situações que independem de nossas posições sociais ou financeiras. Pegue a chave da sua vida, abra essa porta, tenha disciplina e foco e viva a vida extraordinária que foi planejada para você! Coragem! Você consegue. Dê o primeiro passo, mudança que somente você pode. Faça acontecer coisas boas no seu cotidiano e seja um incentivador na vida de outras pessoas. “Nenhum de nós se torna algo de repente, da noite para o dia. Os preparativos vão acontecendo ao longo da vida toda” (Gail Godwin).
Seres Somos seres inconstantes com carência de amor. Somos seres solitários esperando promessas vãs. Somos seres egoístas vivendo pro nosso “eu”. Somos seres alucinados que não nos conformamos com um adeus. Somos mutantes queridos, envolvidos em momentos, parecemos destemidos, mas precisamos de aconchego. Somos carentes de tudo aquilo que nos faça bem. Somos seres em ebulição vivendo o hoje e o agora e com tanta revolução vamos traçando a nossa história.
Fatima Daniel
fatima.daniel@yahoo.com.br
Fátima Daniel é professora e poetisa.
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Araçá - Edição: Março de 2020
Resenha por Antonio Rodrigues
O livreiro de Cabul, de Åsne Seierstad
“O livreiro de Cabul” é um livro-reportagem romanceado da jornalista e escritora norueguesa Åsne Seierstad, publicado logo após a guerra do Afeganistão, levada a cabo pelos EUA em sua caça ao Talibã, organização extremista islâmica que assumiu os atentados das “Torres Gêmeas”, o atentado histórico do 11 de setembro de 2001. Seierstad foi correspondente de guerra durante o conflito. Conheceu um livreiro na cidade de Cabul e, muito interessada em sua história, resolveu escrever um livro sobre ele e obteve autorização do livreiro para viver como hóspede durante três meses em sua casa, junto à sua família, para conhecer melhor a vida e a cultura do país. A narrativa logo revela o choque civilizacional que a autora teve no encontro com a condição da mulher no Afeganistão recém-saído do regime talibã. E, a partir desse choque, ela nos oferta uma série de pequenas histórias e, aos poucos, vai nos revelando personagens com os quais teve contato em sua estadia na casa do livreiro, nomeado por ela de Sultan Khan, patriarca de uma típica família afegã (com exceção da realidade dos livros). A fala da autora, na apresentação do livro, é reveladora: “O que me revoltava era sempre a mesma coisa: a maneira como os homens tratavam as mulheres. A crença na superioridade masculina era tão impregnada que raramente era questionada. Em discussões, ficava claro que, para a maioria deles, as mulheres são de fato mais burras que os homens, que o cérebro delas é menor e que não podem pensar de maneira tão clara quanto os homens.” Contudo, o livro é mais que isso, é uma reflexão acerca do quanto determinados
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da Europa, de cultura absolutamente diferente da encontrada por ela no Afeganistão. Até que ponto a visão europeia da autora influenciou o livro é uma questão a se discutir. O que sabemos é que o livreiro de Cabul viajou à Noruega depois da publicação do livro e processou a editora e a autora. Pois discordava da forma como ela o retratou no livro. Conseguiu, no máximo, o direito de escrever um livro para contar a versão dele, de tudo quanto ela abordou no livro, e foi publicado com o título “Eu sou o livreiro de Cabul”. Vale conferir o que diz o livreiro de Cabul depois de ler o interessante livro de Seierstad.
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códigos morais e religioso podem escravizar o homem em estruturas perversas. Um alerta sempre. Como um homem ilustrado, amante dos livros, um homem que passou por diversos regimes que lhe queimaram livros, prenderam-no, ameaçaram-no. Um homem que sonha deixar um legado ao seu país, uma biblioteca com livros e documentos de sua história milenar, para que a identidade de seu povo seja preservada às gerações vindouras. Um homem liberal, um opositor de regimes fechados. Como este homem pode ser tudo isso e ao mesmo tempo, no universo particular da família, ser um tirano, um reprodutor dos códigos morais fechados da sociedade em que vive? O livreiro de Cabul nos suscita estas questões. Mas é bom lembrar que o livro é a reprodução da visão de uma mulher do norte
Seierstad foi correspondente de guerra durante o conflito. Conheceu um livreiro na cidade de Cabul e, muito interessada em sua história, resolveu escrever um livro sobre ele e obteve autorização do livreiro para viver como hóspede durante três meses em sua casa, junto à sua família, para conhecer melhor a vida e a cultura do país.
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1. Você passou parte de sua vida morando no conjunto Cidade de Deus no Rio de Janeiro e, nesse mesmo período, despertou o interesse pelas letras. Como foi o processo de interesse pela escrita e leitura, dentro de uma região marcada pela violência? Quem ou o que foi seu maior motivador?
por Renato Cardoso
Um bate-papo com o roteirista e escritor Paulo Lins
Entrevista
Paulo Lins: Na verdade, esse processo começou muito criança ainda. Na época que morava no Estácio, antes de vir para Cidade de Deus, como não tinha televisão, minha família colocava cadeiras na frente de casa e contava histórias de assombração, de mula-sem-cabeça, macabras, e eu adorava. Desde criança, mesmo sem saber escrever, literalmente, eu fazia versinhos, gosta muito disso, era uma coisa que estava comigo. Aí, fui para Cidade de Deus e encontrei Dona Marília Freitas Dias e Dona Sônia Nobre Formiga, minhas professoras, que me passaram, no primário, a música popular brasileira. Foi quando conheci Caetano, Gil, Chico. Depois, veio
o pessoal do samba, quando comecei a escrever sambas. Eu batia à máquina as letras de uns amigos, e o pessoal me pedia para consertar o português. Eu consertava e acabava mexendo em alguns versos e acabei me tornando parceiro de alguns sambistas da escola de samba da Cidade de Deus. Depois escrevi um samba, comecei a fazer samba-enredo e, por fim, poesia, romance e roteiros. 2. Chegamos então ao romance Cidade de Deus, que é marcado pela descrição da violência local, mas também mostra a vinda de uma nova forma de favela e o início das organizações criminosas no Rio de Janeiro. Como foi o processo criativo do romance? Paulo Lins: Eu demorei 10 anos para fazer esse romance, porque eu nunca tinha escrito um e nem pretendia escrever. Minha relação era com a poesia, com a letra de música. Eu comecei a ler desesperadamente romance, eu lia como crítico literário, pois era
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Araçá - Edição: Março de 2020 professor de literatura e, depois, comecei a ler como escritor. E ler como escritor é roubar o máximo desses caras. Eu copiava, eu pegava um texto do Machado de Assis ou do Dostoievski e reescrevia ele todo, com sinônimos, e ia refazendo parágrafos. Às vezes, pegava um texto de Machado de Assis e escrevia com o mesmo número de substantivos ou adjetivos ou advérbios, reescrevia usando a mesma estrutura. Quando estava escrevendo Cidade Deus, eu utilizava o mesmo mecanismo de Guimarães Rosa, José Lins do Rêgo. Cada dia, eu pegava um autor. Fiquei 10 anos fazendo isso. Foi uma oficina que dei para mim mesmo com esses autores. Eu escolhi os escritores que eu mais gostava na época, não necessariamente os mais consagrados. Isso tomava muito tempo. 3. Depois do sucesso de seu primeiro romance, que foi traduzido para diversas línguas, você virou roteirista das séries Cidade dos Homens e Subúrbia. Como é a grande diferença e, consequentemente, grande dificuldade, da linguagem para TV? E, na sua percepção, qual a importância de trabalhos como este para a população que vive às margens da sociedade e pode se ver, através dos personagens, na TV?
Paulo Lins: Eu acho interessantíssimo isso, pois, na verdade, o primeiro roteiro que fiz foi “Quase dois irmãos”, com Lúcia Murat. Era um filme que se baseava na relação de preso político e preso comum, e a Lúcia Murat conviveu com preso político e eu com preso comum. Subúrbia, eu fiz com Luiz Fernando Carvalho, já Cidade dos Homens, com Katia Lund. E é onde o pessoal se reconhece, o pessoal que eu conhecia e com quem transito bem e onde fui criado. Quando chego à favela, o pessoal que se vê fala que estou escrevendo sobre eles. Não foi uma coisa que eu escolhi para fazer, eu fui escolhido. Quando fui convidado para escrever Subúrbia e Cidade dos Homens, encontrei ali parte da minha vida, do que eu via, das coisas que aconteciam comigo. É interessante que o público da favela e o público da periferia se conhecem de forma autêntica, sobre o que eles vivem, sobre o dia a dia deles. 4. Em 2012, você lançou seu segundo romance “Desde que o Samba é Samba”, a narrativa percorre os espaços da cultura negra carioca, penetra no universo dos terreiros de Umbanda
e do carnaval. Com uma trama que mistura ação, aventura, sexo, violência e amor, você constrói um enredo com personagens reais, envolvidos na fundação da primeira escola de samba carioca. Quanto tempo durou todo esse processo de pesquisa e como foi a construção do romance? Paulo Lins: Eu vivi no Estácio durante muito tempo. Mesmo morando na cidade de Deus, ia para casa da minha tia nos fins de semana. Quando era muito criança, tinha um bar na Rua Maia Lacerda que ninguém podia entrar, pois só frequentavam bandidos e prostitutas, era muito mal frequentado, e rolava um samba lá dentro. Aí, quando eu cresci, fui ver que quem ia ao bar era Nelson Cavaquinho, Cartola; os sambistas da época iam todos lá. Nasci num lugar onde nasceu a primeira escola de samba, Deixa Falar. Aí eu resolvi escrever. A tomada de consciência para escrever um livro sobre o nascimento da Umbanda e da escola de samba, foi quando li ... (inaudível) sobre a importância da cultura e o que ela representa para um povo. Por que, se a cultura é...(inaudível), é porque os escravos vinham da África para o Brasil e eram submetidos à religião do branco europeu, e até hoje é assim. O que a Igreja Católica fez no início do Brasil, hoje é a Igreja de cunho Protestante que faz. Elas continuam fazendo, essa monstruosidade; que é através da fragilidade
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Então a força da cultura é grande e, por isso, eu quis escrever sobre a Umbanda e a Escola de Samba, por causa da força da cultura dentro de uma sociedade racista.
das pessoas levar a sua cultura; que é uma outra religião para um desconhecido que vai perder o controle da relação com seus antepassados, isso é muito cruel. Aí eu vi que o negro entra na sociedade brasileira não através do trabalho, mas que deveria entrar, já que foram 400 anos de escravidão. O negro deveria ter posses, deveria ter direitos sobre seu trabalho. O negro brasileiro deveria ser remunerado pelos seus antepassados que foram escravizados. Toda a riqueza produzida no Brasil em 400 anos foi oriunda do trabalho escravo. Mas o negro não entrou na sociedade através de seu trabalho, mas através da cultura. Então a força da cultura é grande e, por isso, eu quis escrever sobre a Umbanda e a Escola de Samba, por causa da força da cultura dentro de uma sociedade racista. O negro deveria ser ressarcido pelos anos de escravidão, assim como o pessoal que foi sacrificado pela ditadura militar e recebeu uma recompensa. O negro deveria ser ressarcido pela escravidão que sofreu nestes 400 anos. 5. Seu segundo romance passa num período anterior cronologicamente ao seu primeiro. Você segue uma ação inversa à maioria, quando
você retorna no tempo. Esse retorno cronológico foi proposital, devido ao sucesso de Cidade de Deus, ou Desde que o Samba é Samba nasceu primeiro? Paulo Lins: Desde que o Samba é Samba nasceu primeiro. Eu estava tentando escrever, a primeira página escrevi uns 5 anos antes de Cidade de Deus e parei. Cidade de Deus foi muito de encomenda, ele foi abrigado na Unicamp e na UERJ. Então, ele partiu de uma pesquisa antropológica, de um trabalho científico, e eu era assistente de pesquisa, eu tinha bolsa da CNPq e recebi bolsa para escrever. Essas bolsas científicas que hoje o Bolsonaro quer acabar. O “Cidade de Deus” foi todo feito através de pesquisa cientifica, a partir do trabalho do CNPq, e, então, o Desde que o Samba é Samba foi parado. Aí a Editora Planeta encomendou uma novo livro, e eu perguntei se poderia escrever um livro que já estava escrevendo, aí foi assim. 6. Para finalizar, você também participou com coautoria no roteiro do longa Faroeste Caboclo, inspirado na música de Renato Russo, como foi trabalhar nessa adaptação inspirada numa obra de outro autor? Você pensa em escre-
ver algum livro que se volte ainda mais no tempo cronológico, indo para antes do Desde que é Samba? Paulo Lins: Eu achei interessantíssimo. É muito difícil adaptar uma música, a música é muito curta, embora cantada seja longa, mas é muito curta para um roteiro. Foi um trabalho bastante prazeroso. Eu morava junto com Renê nesta época, ficamos amigos, a gente ficava ouvindo música. Fui para Brasília. Eu fui para Ceilândia, depois para Taguatinga com Renê... (inaudível). E Marcos Bernstein finalizou. Foi muito bom. Foi uma experiência muito boa com Renê Sampaio. Agora, eu escrevi um pequeno livro chamado “Dois Amores”. Um livro num fôlego só, sem parágrafo, como se fosse um conto longo e com uma característica de poesia. Que fala sobre a vida de duas crianças no RJ, é bem atual, acontece agora. Eu não sei o que vou escrever, não tenho.... Eu estou com um contrato para escrever um livro, mas ainda não sei o quê. A editora me deu uma sinopse, estou pensando ainda como vou escrever, mas vai se passar no momento atual.
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Resenha
co-romana, por exemplo, a narrativa de Pandora e seu famoso vaso, passando por nomes da literatura universal como William Shakespeare, Franz Kafka e até Machado de Assis. A história possui como fio condutor a invenção de uma língua comum, o UniL, no intuito de proporcionar a comunicação entre os seres (o Comunicador) com os nativos do planeta Krios. Interferência toca em questões sobre éticas e ecopolítica, justamente por apontar problemas como: racionamento de água, relações sociais, questões étnicas, dentre outras atribuições. Enfim, para quem se interessa por aventuras espaciais, o romance de Márcia Silva se mostrará excelente, porque apresenta justamente aqueles atrativos acerca de investigações policiais, lutas, amores proibidos e mistérios. Portanto, como conclama a própria quarta-capa do livro de Silva: “fica aqui um convite — e uma ótima viagem — àqueles que decidem embarcar” nessa deliciosa aventura. Mas… cuidado, pois vão entrar em um terreno totalmente desconhecido, onde o leitor será abduzido ao mundo da ficção.
por Erick Bernardes
“Interferência”, de Márcia Silva
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ovens são curiosos e namoros de adolescentes quase sempre são conturbados, previsíveis, mas trabalhos de cientistas, por vezes, exigem engajamentos que vão além do que o leitor esperaria de histórias sobre físicos e astronautas. Junte agora tudo isso em um único livro. Pronto! Está composto assim o cardápio do romance Interferência (2018), primeira obra de ficção de Márcia Silva. O livro vem com o selo da editora Autografia e apresenta lindíssima capa ilustrada pela artista Tatiana Agra, conferindo assim apresentação elegante ao volume construído sobre a temática interplanetária. Marcia Silva é graduada em Letras com doutorado em Letras Clássicas. Professora de Língua e Literatura Latina e Cultura Clássica há duas décadas, atualmente leciona na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. De acordo com a autora, o gosto pela literatura voltada para o público jovem surgiu junto às leituras compartilhadas com a filha quando esta ainda era adolescente. Daí o interesse especial por esse modelo de composição literária nesta que é a sua obra inaugural. Embora Interferência não seja obrigatoriamente destinada ao público juvenil adulto, está claro que, ao construir a trama, o texto apresenta protagonistas jovens que se lançam ao desconhecido planeta Krios, e a história de um possível fu-
turo interespacial se revela. Angustiada pela “mesmice” do mundo em que vive, como é típico da adolescência sempre ávida por novidades, a jovem personagem Dora busca desvendar o planeta estranho, onde fixa residência junto à sua mãe também cientista. Como não podia ser diferente, para o bom andamento da trama, imprevistos ocorrem durante a ambientação no planeta Krios. Uma dessas surpresas acrescenta uma pitada de tempero ao enredo, a saber: o relacionamento indevido entre a jovem Dora e o nativo Marvil, habitante local do novo planeta, cuja ascendência remete aos primeiros seres de Krios. Tudo isso proporciona uma série de aventuras com as quais o leitor é capaz de se identificar, por causa da semelhança dos personagens com as pessoas do mundo de hoje cheio de tecnoloReferências: SILVA, Márcia R. gias. Segundo o próprio prefácio de In- de F. da. Interferência: série Krios. terferência (2018), o leitor que optar Rio de Janeiro: Autografia, 2018. pelo romance de Silva terá em mãos “um livro cujo enredo revela um caráter sobretudo provocador, pois encontra-se em franco diálogo com assuntos urgentes: racionamento de água, falta de comunicação entre os homens, intolerâncias sobre questões étnicas”. O romance é o primeiro de uma série de histórias com algumas referências mitológicas misturadas ao enredo futurista. O livro de Márcia Silva traz a público elementos da história clássica gre-
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Viagem sem rumo Angela Moreira
Angela Moreira é professora.
angelamoreira09@hotmail.com
“Paulo viajou durante três longos anos, mas ao retornar ao lar, verificou que
muita coisa havia mudado e somente ele não sabia.
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iajando por diversos lugares, Paulo fez muitos amigos. Conheceu pessoas e diversos lugares. Imaginou, algumas vezes, que tudo aquilo era um sonho, mas logo percebeu que era real e que ele se apaixonava mais e mais por todos os lugares que conhecia. Quando Paulo iniciou sua viagem, nem ele mesmo sabia ao certo para onde ia. Quanto tempo ficaria viajando e não sabia quando retornaria, ou ainda se isto ia mesmo acontecer. Paulo viajou durante três longos anos, mas ao retornar ao lar, verificou que muita coisa havia mudado e somente ele não sabia. Sua irmã tinha se casado e já tinha dois filhos: a menina com um ano e o menino com um mês. Ele ficou muito feliz, mas resolveu viajar novamente. Desta vez, foi para lugares diferentes, ficando distanciado do mundo e de todos, pois tinha ido para a África. Ele ficou quase quinze anos afastado do seio da família. Porém lembrou-se que sua sobrinha faria quinze anos
em breve e retornou para sua família. Ao chegar, já encontrou a festa da sobrinha acontecendo e ficou muito feliz por poder participar daquele momento. Passado uns dias, avisou à família que iria viajar para bem longe e não sabia se voltaria. Seu sobrinho pediu que o levasse com ele, mas, como ainda era um menino, Paulo informou que, da próxima vez, o levaria junto. Chegou o dia da partida e Paulo se despediu de todos. Levou dez anos longe da própria família, dessa vez viajando pelo mar. Passado esse tempo, retornou para cumprir o prometido, de levar seu sobrinho consigo na próxima viagem. E assim o fez. Partiram cedo, sem destino, prometendo que voltariam logo. O rapaz ficou deslumbrado pela beleza dos lugares onde passou. Retornou para casa feliz e realizado. Paulo se despediu de todos e disse que agora não retornaria, pois iria desbravar outros caminhos mais distantes. Navegou em rios, mares, caminhou por estradas e por muitos lugares. Até que achou um lugar pelo qual se
apaixonou e lá resolveu morar. Um dia sentiu uma grande saudade de sua família e resolveu visitá-la. Para sua surpresa estavam mais perto do que imaginava. Bastava cruzar a ponte e chegar na cidade onde eles moravam. E foi assim que Paulo percebeu que tinham que ficar próximos uns dos outros, E, a partir daí, nunca mais se separaram e passaram a se encontrar sempre. Nota da autora: Muitas vezes fugimos do nosso próprio “Eu” e dos nossos familiares e amigos, seguimos por vários caminhos, a procura da nossa estrada interior e, no final, descobrimos que o que procurávamos em lugares distantes se encontrava tão perto e não percebíamos isso. Aconteceu assim com Paulo. Um jovem que se tornou um adulto com espírito aventureiro e depois descobriu o lugar certo para viver. O qual não precisaria ter procurado tanto e se arriscado pelo mundo. Seu lugar era junto dos seus, bastava a ele olhar com os olhos do coração. Nunca é tarde para recomeçar.
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tavares.luisa20@gmail.com
vapor com a boca e com o dedo desenhava uma ‘porta’, saía em imaginação com muita felicidade. […] Eu era feliz, desenhava a ‘porta’ com a mão e ‘desaparecia’.” (HERRERA, 1984 p. 26) A pintura dela trás esse universo onírico e surreal em que transformava as dores ( do acidente que despedaçou seus ossos e perfurou o útero, do abandono do desejo de ser médica, dos abortos que sofreu, do casamento conturbado com Diego Rivera e das sequelas que a poliomielite contraída aos seis anos deixou) e sofrimentos em algo sublime. Elevando a vida comum para o senso estético. “Como era jovem, a desgraça não adquiriu um caráter trágico. Creio que tenho energia suficiente para fazer qualquer coisa no lugar de estudar medicina. Sem prestar muita atenção, comecei a pintar” (HERRERA, 1984 p. 63). A pintura não foi para Frida Kahlo somente a via para lidar com suas questões físicas e psicológicas, foi também objeto de seu desejo quando criança e meio pelo qual deu destino às suas pulsões após o acidente: “Meu pai teve durante muitos anos uma caixa com tintas e pincéis dentro de seu estúdio fotográfico. […] Desde muito pequenina, como dizia o ditado, eu não tirava os olhos daquela caixa de tintas. Não sabia explicar porque. Como ia estar presa a uma cama durante tanto tempo, aproveitei a oportunidade para pedir a caixa a meu pai” (KETTENMANN, 1994 p. 18). Uma dose de Nietzsche e a conclusão: “a arte existe para que a realidade não nos destrua”.
Luisa Tavares
Se, segundo Clarice Lispector, até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso porque nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro, temos posta a ideia de que conviver com defeitos físicos, traços indesejados de personalidade ou aspectos destoantes do dito normal é tão necessário e fundamental quando conviver com o que apraz. Como exemplo disso, eis o convite à vida e obra de Frida Kahlo, pintora mexicana que ocupou-se de retratar questões íntimas femininas. Tendo sua própria vida, marcada por paixões, dor, sofrimento e resiliência, sido mote para diversos de seus quadros. Frida começou a pintar em decorrência de um grave acidente sofrido aos 18 anos que resultou em meses acamada, levando-a a ressignificar sua própria existência. “Não estou morta e, mais do que isso, tenho uma razão para viver. Essa razão é a pintura”. Diz a jovem Frida a sua mãe, após o acidente que a deixou com sequelas por toda a vida e tornou-se o motivo que a levou a fazer da arte seu sustento. Não no sentido laboral, apenas. Mas também no sentido lispectoriano: “quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva”. Kahlo retrata a si e seus sofrimentos, se desfaz e refaz em pinceladas. Retrata seu mundo particular, acessível somente pela sua percepção da vida após o acidente. Ou, antes mesmo, pela porta para a imaginação que aprendeu a desenhar ainda menina, no vidro embaçado da janela. “Sobre um dos primeiros vidros da janela fazia um
“Viva la vida”: como a arte sustentou Frida Kahlo
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Luísa Tavares é professora.
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O Trovadorismo e suas Cantigas Renato Cardoso
Renato Cardoso é professor
professorrenatocardoso@gmail.com
Eu tinha um tio que era vidrado em literatura. Lia sempre, lia vorazmente. Lia de tudo, desde simples poesias a livros complexos de filosofia. Era influência do meu avô Geraldo, que incentivou nos filhos o prazer da leitura desde criancinha. Aos doze anos, meu tio José já havia lido mais de 200 livros, e por causa disso ele escrevia como ninguém. Um belo dia, chegando à casa da minha avó Gertrudes, com quem meu tio José morava (ficou solteiro uma vida inteira), o encontrei em sua biblioteca – seu local preferido da casa – como sempre lendo. Ele era professor universitário, dava aula na Universidade Federal que havia em nossa cidade. Ao perceber minha presença, me convidou para sentar-me ao lado dele. De pronto aceitei (gostava de ouvi-lo contar as histórias literárias), ele estava preparando uma de suas aulas. Era início de semestre e o tema era Trovadorismo. Ele, olhando minha curiosidade, me perguntou: “Você sabe o que foi o Trovadorismo?”. Mesmo tentando lembrar-me de algo, respondi: “Não!”. Ele deu
um sorriso de canto de boca (como quem tratava o tema com uma simplicidade extrema) e disse: “Se já falou com sua avó, fica aí que te contarei tudo”. Já havia falado com a vovó, que estava ocupada costurando, logo puxei um banco e sentei-me perto dele. Tio José abriu um livro e começou: “Garoto, toda e qualquer história a ser contada precisa ser contextualizada, lembre-se sempre disto. Não há entendimento sem contexto histórico. E a história que vou lhe contar começa, mais precisamente, no século XII, na Idade Média. A Europa era dominada pela Igreja Católica, que detinha boa parte das terras. A outra parte ficava a cargo dos monarcas, que as cediam aos nobres, que por sua vez cediam a outros nobres em troca de proteção (relações de suserania e vassalagem, respectivamente), e, na base da pirâmide, apareciam os servos que exploravam as terras e repartiam parte de sua produção com os acima deles. A Europa estava em constante guerra devido as invasões dos povos germânicos.
Deus era o centro da vida (teocentrismo), o homem buscava a salvação de sua alma e a Igreja realizava as Cruzadas, que em nome de Deus, faziam expedições para “libertar” a Terra Santa dos muçulmanos e dos heréticos”. Prosseguindo, ele perguntou: “Entendeu?”. Não havia como não entender. Ele contava a história com um brilho no olhar diferente, parecia que ele estava vivendo o momento. “Garoto, toda escola literária tem suas características e a maior do Trovadorismo é, sem dúvidas, o amor platônico. Os trovadores (nobres que escreviam as cantigas) foram influenciados pela lírica grega, ou seja, traziam em sua obra as características da arte clássica, como por exemplo: o canto, o acompanhamento musical (as cantigas eram cantadas por trovadores e acompanhadas por músicos e seus instrumentos musicais), a devoção a Igreja Católica e a reafirmação do sistema feudal citado acima. Gostou? Quer continuar lendo? Acesse:
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